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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

PROCESSO SELETIVO 2014


MESTRADO EM ARTES VISUAIS
ÊNFASE EM HISTÓRIA, TEORIA E CRÍTICA DE ARTE

PROJETO DE PESQUISA

Grimórios em Movimento: A Obra de George Méliès à Luz de Outros Fantasmas

Giordano Dexheimer Gil

Porto Alegre
Abril de 2015
“Não ficamos diante da imagem como diante de algo cujas fronteiras não podemos
traçar. O conjunto das coordenadas positivas – autor, data, técnica, iconografia, etc. –
não basta, evidentemente. Uma imagem, toda imagem, resulta dos movimentos
provisoriamente sedimentados ou cristalizados nela. Esses movimentos a atravessam de
fora a fora, e cada qual tem uma trajetória – histórica, antropológica, psicológica – que
parte de longe e continua além dela. Eles nos obrigam a pensá-la como um momento
energético ou dinâmico, ainda que ele seja específico em sua estrutura”
Georges Didi-Hubermann,
A Imagem Sobrevivente: História
da Arte e Tempo dos Fantasmas
seg. Aby Warburg
(p. 33-34)
1 TÍTULO

Grimórios em Movimento: A Obra de Méliès à Luz de Outros Fantasmas

2 DELIMITAÇÃO DO TEMA

O projeto de pesquisa Grimórios em Movimento: A Obra de Méliès à Luz de


Outros Fantasmas pretende pensar o lugar da obra do artista George Méliès na História
da Arte, deslocando-o tanto do enrijecido e limitado posto de pioneiro da técnica
cinematográfica quanto da mistificação em torno de sua atribuída paternidade do
cinema de ficção. A proposta é investigar seus filmes a partir das temáticas que trabalha,
e discutir a sintonia de seus temas em relação à pintura, à literatura e à cultura da virada
do século XIX para o XX, entendendo-o como um importante agente na construção de
certas questões da arte moderna.
O frequente reducionismo de que padecia a fortuna historiográfica de George
Méliès vem sendo erradicado pelos estudos cinematográficos. No entanto, este projeto
pretende olhar para suas imagens não como ancestral comum das diferentes Histórias do
cinema posteriores, mas como sintomas de movimentos simbólicos e culturais muito
anteriores à invenção do cinematógrafo. Partindo de suas imagens, estabelecendo
diálogos entre diferentes produções, o projeto segue orientado pelo leme fluido proposto
pelo historiador da arte Aby Warburg, e comentadores como Georges Didi-Hubermann
e Philippe-Alain Michaud, para encontrar a maneira como as imagens criadas por
Méliès já encontravam outras formas de se movimentar, filosófica e culturalmente,
antes de fazê-lo mecanicamente. Assim, para estabelecer uma conexão com a carreira de
mágico do cineasta, podemos enxergar o conjunto da obra desse artista não como um
grimório estático, um velho livro de feitiços empoeirado, mas sim como um grimório
dinâmico que, utilizando termos presentes em Warburg, invoca fantasmas de outros
tempos através do dispositivo moderno que usa como receptáculo.

Palavras-chave: George Méliès; Cinema; Warburg; Arte Moderna; Mágica;

Áreas de Pesquisa: História da Arte; Arte Moderna; Teoria e Crítica de Arte; Iconologia; História do
Cinema; Teoria do Cinema.
3 QUESTÕES DE PESQUISA

1 – De que maneira a obra de George Méliès dialoga com a produção cultural do século
XIX?

2 – Qual é o seu papel na construção da Arte Moderna, para além de seus avanços na
técnica cinematográfica?

3 – Como as temáticas trabalhadas no cinema de Méliès se manifestam na memória


cultural e imagética da História da Arte?

4 – Como acontece a relação entre os temas abordados em seu cinema e outras


tendências da cultura do fin de siecle e o princípio dos anos 1900, como a psicanálise, a
literatura fantástica e o simbolismo pictórico?

5 – Partindo das obras de Méliès, o que a aplicação dos estudos de Warburg ao motivo
do Mágico na História da Arte nos revela sobre a obra do artista e o contexto em que foi
produzida?
4 OBJETIVOS

4.1 Objetivo Geral

- Investigar as temáticas da obra do artista George Méliès à luz dos estudos de Warburg
e seus comentadores, estabelecendo diálogos com outras produções culturais do século
XIX, a fim de encontrar o lugar de suas imagens na construção da arte moderna.

4.2 Objetivos Específicos

- Questionar a posição marginalizada do cinema narrativo na História da Arte a partir de


seu período embrionário, utilizando George Méliès como sinédoque dessa produção.

- Distanciar a produção imagética do artista dos vícios que acometem a historiografia


tradicional, como a excessiva mistificação e a redução de sua relevância às trucagens
técnicas.

- Discutir o lugar do mágico tanto como tema para produção imagética, quanto como
representante de uma tradição de arte performática, que partilha com o cinema não só a
origem em comum nas feiras de atrações, mas também a marginalização em sua fortuna
historiográfica.

- Refletir de que maneira sua obra se transforma quando pensada ao lado de outras
produções culturais, como a psicanálise, a literatura fantástica, o romantismo e o
simbolismo pictórico.

- Identificar e investigar os temas trabalhados por Méliès, tais como a metalinguagem, o


duplo, o mágico, o espectral, as utopias, entre outros, através de uma genealogia
possível.
5 JUSTIFICATIVA

O cinema narrativo, em sua gênese, nasceu mais ligado às feiras de atrações e


aos espetáculos de mágica de palco do que com a produção cultural que a historiografia
consagrou como arte moderna. Percebemos a herança dessa ligação em dois níveis: o
primeiro é a mistificação ao redor do que popularmente até hoje se chama de “a magia
do cinema”, que encontra seu respaldo teórico nos ensaios de Edgar Morin; a segunda,
e mais grave, é a constante marginalização de toda a produção cinematográfica que
emana dessa tradição dentro do espectro da História da Arte. Para estudar essa
produção, desenvolveu-se o campo autônomo da História do Cinema que, ainda assim,
encontrou vícios que continuaram reduzindo a produção de George Méliès ou
encobrindo-a de névoas por muito tempo. O chamado Primeiro Cinema, nome dado às
produções cinematográficas das primeiras décadas de vida dessa tecnologia, continua
eventualmente sendo visto como um equivalente cinematográfico das imagens do
paleolítico e do neolítico, como se o advento do dispositivo desse início a uma linha do
tempo paralela à da História da Arte, e não como parte dela.
Esse projeto não pretende aproximar os dois campos, mas pensar um como parte
inerente do outro. Em minha formação acadêmica, optei por estudar em duas
graduações paralelas, Realização Audiovisual e História da Arte. Essa opção me fez
observar um campo sob o prisma do outro. Por isso, sempre tive dificuldade em aceitar
a distância metodológica e bibliográfica que parece estar estabelecida entre elas. Nesse
projeto de pesquisa, proponho o diálogo entre a obra cinematográfica de um artista, e
autores consolidados no campo das chamadas “Artes Visuais”, conceito que
arbitrariamente tende a excluir o cinema narrativo. Num momento em que um conceito
de “cultura visual” expande o que entendemos por “arte” e em que vemos a crescente
valorização da transdisciplinariedade como um caminho possível, acredito ser relevante
a contribuição para o fortalecimento das conexões entre dois campos de estudo, que se
bifurcaram devido a percalços historiográficos, mas que no fundo sempre tiveram um
objeto em comum: a imagem.
A escolha de Méliès como objeto não foi, evidentemente, um acaso. Sua obra
pertence ao momento em que a bifurcação começou a se impor, e que coincide com o
advento do próprio dispositivo com que trabalha. Como já afirmado antes, sua fortuna
crítica e historiográfica costuma dar mais atenção ao seu pioneirismo técnico do que às
imagens em si. Esse projeto pretende contribuir para os estudos de Méliès com um olhar
menos voltado para o dispositivo e mais interessado nos aspectos construtivos da
imagem.

Exemplos de obras:

O Retrato Misterioso (1899), uma das várias obras de Méliès que comenta a relação
entre pintura, fotografia e imagem em movimento. Na virada do século, período de
consolidação de questões caras à Arte Moderna, um mágico e cineasta duplica a si
mesmo como pintor e retratado, evocando a temática do doppleganger, o duplo, tão
recorrente na literatura fantástica do século XIX.
 

A Lanterna Mágica (1903), Méliès constrói uma narrativa sobre o próprio dispositivo,
unindo a questão da metalinguagem e da arte voltada para as questões de si própria ao
onírico e ao inconsciente.
 

A Viagem de Gulliver à Lilipute e à Terra dos Gigantes (1902), uma das primeiras das
várias adaptações literárias de Meliés. Aqui, adapta partes das Viagens de Gulliver,
descritas por Jonathan Swift em 1726. O fantástico, tema recorrente em sua obra, ganha
forte preocupação compositiva e pictórica.
6 MARCO TEÓRICO E METODOLÓGICO

O desenvolvimento do que será a base do marco teórico deste projeto partiu de


uma coincidência semântica entre escritos de Edgar Morin e Georges Didi-Hubermann.
Do primeiro, O Cinema ou O Homem Imaginário (MORIN, 2014), coletânea de ensaios
do filósofo acerca da arte cinematográfica. Do segundo, A Imagem Sobrevivente:
História da Arte e Tempo dos Fantasmas segundo Aby Warburg (DIDI-
HUBERMANN, 2013), em que Didi-Hubermann aprofunda-se nos textos do historiador
citado no título. É perceptível, quando colocamos os livros lado a lado, o frequente uso
de alguns vocábulos em comum. Palavras como “fantasma” e “magia” são evocadas
tanto por Morin ao falar de George Méliès quanto por Didi-Hubermann ao abordar
Warburg.
A conexão entre esses dois personagens não cessa no acaso das escolhas de seus
comentadores. Tanto o mágico e cineasta quanto o historiador da arte produziram a
maior parte do corpo de sua obra praticamente no mesmo período (entre o final do
século XIX e o início do século XX), e ambos foram marginalizados por décadas dos
campos para os quais contribuíram, ainda que continuassem os assombrando, para
seguir na árvore semântica sobrenatural proposta por Morin e Didi-Hubermann. Da
percepção dessas conexões, nasceu a proposta de apresentar esses dois espectros entre
si.
A abordagem de Warburg une antropologia e iconologia para a elaboração de
seus conceitos: a nachleben e a pathosformel, a sobrevivência das formas e a ideia da
imagem como sintoma. Seus estudos voltaram-se para a imagem pictórica, mas são
perfeitamente compatíveis às temáticas e simbologias trabalhadas por George Méliès,
profundamente enraizadas na literatura e na cultura do século XIX. Através dos autores
influenciados por Warburg ou de seus comentadores, é possível projetar outras matizes
sobre seus escritos, portanto, a pesquisa trabalhará também os trabalhos de Edgar Wind,
do próprio Didi-Hubermann, e também de Philippe Alain-Michaud, que propõe uma
possível aproximação entre essa tradição e o cinema em seu Aby Warburg e a Imagem
em Movimento (MICHAUD, 2013). A sobreposição desses autores poderá oferecer ao
projeto aquilo que Didi-Hubermann chama de “alargamento metódico das fronteiras”
(DIDI-HUBERMANN, p. 34) e permite que enxerguemos as imagens não apenas como
objetos, mas como complexos de relações.
Através dessa corrente da antropologia da imagem, é possível pensar uma
genealogia das questões trabalhadas por Méliès, como as aparições, o sobrenatural, o
mágico, o onírico, o duplo, a metalinguagem, colocando seus filmes ao lado de outros
nomes das artes e da literatura como Odilon Redon, Lewis Carroll, Charles Baudelaire,
Dostoievski, Oscar Wilde, Goethe, entre outros, que constituem o plural dos fantasmas
à luz dos quais o projeto pretende ver a obra fílmica do cineasta. Outro autor importante
para pensar a relação de suas temáticas com a literatura é Stefan Andriopoulos que
discorre acerca do assunto em Aparições Espectrais: O Idealismo Alemão, O Romance
Gótico e a Mídia Óptica (ANDRIOPOULOS, 2014).
A bibliografia se constitui de maneira plural justamente pela natureza de
mosaico das referências constituintes daquilo que entendo como o grimório de Méliès.
A palavra “grimório” origina-se do francês arcaico e apresenta a mesma raiz semântica
que “gramática”, estabelecendo um conjunto de instruções para atingir determinadas
combinações e alquimias, formando um sistema de magia dentro do qual opera um
mago. O corpo da obra de Méliès sintetiza essas fantasmagorias em celulóide, e é o
objetivo deste trabalho quebrá-las e reorganizá-las através de um marco teórico
derivado da História da Arte e da Iconologia.
Para atingir esse objetivo, a metodologia se constituirá a partir de alguns passos:
assistência dos filmes, categorização e seleção, análise iconológica e conexões teóricas.
O primeiro seria a assistência de uma boa parte dos filmes que ainda resistem do
cineasta e que possuo acesso em boa qualidade através da coleção George Méliès: O
Primeiro Mago do Cinema (1896-1913), lançada em DVD no Brasil pela CultClassics.
Em seguida viria a etapa de organização dos filmes em categorias temáticas
estabelecidas, e a partir disso, a seleção das obras sobre as quais pretendo me debruçar
através da bibliografia referida encontrando, a partir de análise iconológica, conexões
com os citados autores e outras produções culturais.
8 BIBLIOGRAFIA

ANDRIOPOULOS, Stefan. Aparições Espectrais: O Idealismo Alemão, o Romance Gótico e a Mídia


Óptica. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2014.

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Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2014.

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Contraponto Editora, 2012.

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DIDI-HUBERMANN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013

DIDI-HUBERMANN, Georges. A Imagem Sobrevivente: História da Arte e Tempo dos Fantasmas


segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013

DIDI-HUBERMANN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2014

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MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a Imagem em Movimento. Rio de Janeiro: Contraponto


Editora, 2013

MICHAUD, Phillippe-Alain. Filme: Por uma Teoria Expandida do Cinema. Rio de Janeiro: Contraponto
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RANCIERE, Jacques. As Distâncias do Cinema. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2012.

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