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INTELIGêNCIA

ANO Xix • Nº 72 • JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO de 2016

ANO Xix • Nº 72 • JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO de 2016 issn 1517-6940

MOSQUITO bom
é mosquito morto (parafraseando o general Philip Sheridan)
INTELIGÊNCIA

Saúde pública é uma força desarmada contra as epidemias. Veja à pág. 14.
recado
“Este é um mundo que se acaba (...). Sente-se o a classe política e não fazem distinção entre os
ranger das peças de um edifício que se esboroa” políticos. São todos “carcomidos”. Seus acólitos
(Tavares Bastos, 1869). chamam a Nova República de 1985-1988 de
“Antigo Regime”; falam em “revolta de março”
A cultura política brasileira, periférica e (“revolução” pegaria mal, por razões óbvias; e
atrasada, possui um espaço significativo para sustentam que “o gigante despertou”.
as “vanguardas modernizadoras”. Diversos
personagens ao longo de nossa história se Cumpre lembrar, todavia, que quem criou
acreditaram imbuídas da missão providencial as atuais estruturas judiciárias – Judiciário,
de regenerar a Pátria contra a classe política Ministério Público e Polícia Federal – foi a própria
corrompida ou “carcomida”: o tecnocrata classe política. Alimentaram os filhotes de onça
apartidário e patriota, engenheiro ou médico; com tigelas de leite. Agora os bichanos cresceram
o bacharel ou o jurista liberal ou libertário, e parecem querer alimento, digamos, com mais
constitucionalista ou penalista; o militar ou substância.
tenente positivista, etc. Nos últimos dez ou quinze
anos surgiu uma categoria nova, o operador Estão se fartando.
jurídico encrustado no Estado, magistrado ou
promotor de justiça, que se considera uma
espécie de novo tenente.

Estes praticam o ativismo judiciário e respondem


apenas à própria consciência “republicana”
iluminada pelos princípios constitucionais. É o
meio que vislumbram de “passar o país a limpo”.
Assim como os tenentes da década de 1920
queriam “varrer a política à metralha”, os novos
tenentes querem restabelecer a “pureza” das
instituições constitucionais de 1988 a golpes
de pareceres e despachos judiciais. Detestam
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Conselho EDITORIAL Décio Clemente


ISSN 1517-6940
Alexandre Falcão Edson Vaz Musa
DIRETOR
LUIZ CESAR FARO
Antônio Dias Leite Júnior Eduardo Karrer
Coriolano Gatto Eliezer Batista
EDITOR
C H R I S T I A N E D W A R D C Y R I L LY N C H Edson Nunes Eloí Calage
Emir Sader Eugênio Staub
EDITOR EXECUTIVO
claudio fernandez João Sayad Gilvan Couceiro D’amorim
Joaquim Falcão Hélio Portocarrero
PROJETO GRÁFICO
ANTÔNIO CALEGARI José Luís Fiori Henrique Luz
Lucia Hippolito Henrique Neves
PRODUÇÃO GRÁFICA
RUY SARAIVA Luiz Cesar Telles Faro Jacques Berliner

ARTE
Luiz Orenstein João Luiz Mascolo
PAULA BARRENNE DE ARTAGÃO Luiz Roberto Cunha João Paulo Dos Reis Velloso

REVISÃO Marco Antonio Bologna Joel Korn


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Cezar Medeiros Roberto Do Valle
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FSC

6 EXPEDIENTE
Insight-Inteligência tomou assento na távola redonda do Algonquin Hotel,
em Nova York. Ao nosso lado, Dorothy Park, George S. Kaufman,
Marc Conelly, Harpo Marx, entre outros outsiders. A 44th Street tremeu
com o ingresso da turma da revista no “The Vicious Circle”. Os nossos
patrocinadores, é claro, comparecem às tertúlias do Algonquin.
Matilda

Robert Benchley
Robert Sherwood

Franklin Pierce Adams

Dorothy Parker
Harpo Marx
Marc Connelly

Edna Ferber

Alexander Woollcott

Harold Ross
George S. Kaufman

Heywood Broun
A nova direita
brasileira:
Quando um ideias, retórica e
mosquito não prática política
é somente um
mosquito Jorge Chaloub e
Fernando Perlatto
Nísia Trindade Lima Direitopatia: psicopatia da
O repelente não é política?
o fim da picada

14 24

Sistema eleitoral e financiamento


de campanha: desventuras
do poder legislativo sob um
hiperpresidencialismo consociativo
Bruno P. W. Reis
A debâcle da Lava Jato já estava escrita

42

José Guilherme
Merquior e o
Ariel de Rodó
Kaio Felipe
A identidade
latino-americana em pauta

66
O novo
constitucionalismo
latino-americano: a arte
de sujar as constituições
transformadoras

sumário
Gilberto Bercovici
O direito na ponta da faca

80

10 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 72 janeiro/fevereiro/março 2016

A ciência política
de Star Wars
Guilherme Simões Reis,
Carlos Lemos,
Renato Barreira e
Weslley Dias
Há muito tempo, em uma
VOGUE
galáxia muito, muito próxima Elogio à elegância

92 110

O sertão
primordial e o
grande confronto
Gustavo Maia Gomes
O mistério dos primeiros
habitantes do Brasil

118

Vestido de Igualdade
organdi e outras Adalberto Cardoso
histórias Peripécias da vida
Rose Marie Lynch mercantil em tempo de
UPP
Proustianas fluminenses

140 148

janeirO • fevereiro • março 2016 11


14 s
cóalamidade
blue
Quando um
mosquito não
é somente um
mosquito
Nísia Trindade Lima
Socióloga

depoimento a Christian Lynch


e Luiz Cesar Faro

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Q
uando analisamos no tempo as políticas de gicas”, como chamamos as soluções representadas por
saúde pública adotadas no Brasil, o que ve- medicamentos, sobretudo antibióticos e vacinas. Sem
mos é sobretudo descontinuidade e fragmen- dúvida, esses recursos foram cruciais para melhoria
tação de iniciativas, além da expressão das das condições de saúde em diversos casos. Para mui-
desigualdades sociais no acesso aos serviços tas doenças para as quais existe vacina, a melhoria no
públicos. As políticas integradas e transversais de saú- controle, e mesmo na erradicação de algumas, a exem-
de exerceram papel nulo em toda essa história, a des- plo da varíola em todo o mundo e da poliomielite nas
peito da conquista representada pela instituição do Sis- Américas, é inquestionável. Contudo, a complexidade
tema Único de Saúde, em 1988. Todos os macrosseto- dos fenômenos biológicos, da evolução dos micro-orga-
res que se interligam diretamente com uma política de nismos e de variáveis ecológicas e sociais compõe um
saúde foram tratados como variáveis autônomas e dis- quadro bem mais difícil de ser abordado com soluções
tantes. Tecnologia e inovação, urbanização, saneamen- únicas e simples.
to, meio ambiente, transporte, tudo isso é saúde públi-
ca. A falta de integração desses setores ilustra bem o Combinação “perfeita”
que fomos e por que somos. Três momentos sintetizam A partir dos anos 80 a consciência sobre essa com-
esse processo: a frase de Miguel Pereira, na Primeira plexidade intensificou-se em razão da epidemia da aids
República: “o Brasil ainda é um imenso hospital”; a pala- e variados surtos epidêmicos de outras doenças. Ve-
vra de ordem do médico e então candidato à presidên- rificaram-se também epidemias tradicionalmente de
cia da República, Juscelino Kubitschek, em seu otimis- natureza mais local, que agora se internacionalizam,
mo sanitário: “o Brasil não é só doença”; e o lema da VIII e de doenças antigas que se manifestavam de outras
Conferência Nacional de Saúde, título da conferência de formas. Hoje é difícil afirmar durante quanto tempo um
Sergio Arouca: “Saúde é democracia”. Esta última, inspi- surto epidêmico que acontece em determinado local vai
radora da criação do Sistema Único de Saúde na Cons- se manter naquele mesmo ambiente. Isso porque mu-
tituição de 1988, expressava o anseio por uma política dou bastante a circulação de pessoas e de mercado-
social universal e integral. rias; com a disseminação do uso do avião e mudanças
Ao lado da ausência de integração das políticas se- também nas rotas turísticas. Este tema tem sido obje-
toriais, a velocidade da transformação do Brasil em uma to, desde então, de debates e projetos comuns de viro-
nação urbana em fins da década de 1960 e as condições logistas, ecologistas, epidemiologistas e historiadores
de vida nas cidades constituem um fator crucial para en- da ciência. Um desses grupos, liderado por Richard
tendermos a atual crise sanitária com a emergência da Krause, do National Institutes of Health, na década de
chamada tríplice epidemia: dengue, zika e chicungunya. 1980, promoveu uma série de debates e publicações
O surgimento de novas doenças e a persistência de an- sobre a persistência de doenças infecciosas que alcan-
tigas enfermidades infecciosas vêm contribuindo para o çaram impacto significativo e contribuíram para a mu-
questionamento das crenças otimistas da segunda me- dança no imaginário otimista sobre o futuro da saúde
tade do século XX, acompanhando tendência que se ve- pública no mundo.
rifica em todo mundo. Se é possível falar em transição Sobre o tema da persistência de enfermidades e de
demográfica e epidemiológica, com o aumento da longe- novas epidemias existem muitas questões a serem consi-
vidade e a menor incidência das doenças infecciosas, a deradas: mudanças na evolução dos micro-organismos;
importância destas é um fato inquestionável. relação das pessoas; modo de circulação; intensificação
O otimismo sanitário da segunda metade do século da urbanização e, principalmente, ambientes propícios
passado decorria da aposta nas chamadas “balas má- para a proliferação de tipos de mosquitos cada vez mais

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resistentes. A combinação desses fatores acaba crian- Conhecimento científico


do as condições das grandes cidades se tornarem um Desde que começou a ser reconhecida a gravidade
criadouro para mosquitos. No Brasil, convivemos há 35 do problema, esforços de pesquisa da comunidade cien-
anos com epidemias de dengue, doença transmitida pelo tífica brasileira, também contando com ações de coope-
Aedes aegypti, vetor conhecido pela transmissão de ou- ração internacional, vem se intensificando. Estudos já
tras moléstias infecciosas, a exemplo da febre amarela. publicados constataram a presença do vírus em tecido
Constata-se a ineficácia das medidas de controle ado- fetal e no líquido amniótico e comprovaram a passagem
tadas ao logo de mais de três décadas. pela barreira placentária. Pesquisadores têm destaca-
A partir de 2014 duas novas doenças transmitidas do a importância dessa transmissão congênita que não
pelo Aedes e sobre as quais ainda não havia registro no se resumiria ao aumento de casos de microcefalia, mas
Brasil começaram a chamar a atenção: chicungunya e poderia ser responsável por outros tipos de malforma-
zika. No caso desta última, pediatras e pesquisadores ções e problemas neurológicos. Um dos grandes proble-
da área clínica atuando na região Nordeste começaram mas para a ciência e para o desenvolvimento tecnológi-
a desconfiar de sua relação com o aumento inespera- co é a ausência de testes sorológicos, capazes de veri-
do de casos de microcefalia de recém-nascidos. Esse ficar o contato com o vírus, fora do quadro agudo, algo
quadro de reconhecida gravidade levou o Ministério de fundamental para que se entenda o comportamento do
Saúde a declarar um estado de Emergência Nacional de micro-organismo e as respostas dos indivíduos.
Saúde Pública. Três meses depois a Organização Mun- O fato é que há muitas perguntas ainda sem res-
dial de Saúde apontou o caráter global do problema ao posta, pois se trata de uma doença nova entre nós, ain-
declarar uma situação de Emergência de Saúde Públi- da que descrita pela literatura científica desde 1947.
ca de Interesse Internacional. Os surtos recentes no mundo foram em áreas como a

Os surtos recentes
no mundo foram em
áreas como a Polinésia
Francesa, com
população pequena

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Há estimativas de
que se possa chegar
até 15 mil crianças
com microcefalia até o
final de 2016

Polinésia Francesa, com população pequena. O Brasil é dar resposta à epidemia. Contudo, está na pauta da As-
sem dúvida um grande laboratório para o estudo dessa sembleia Legislativa do estado a redução do orçamento
doença que tanta insegurança vem trazendo à socieda- dessa importante agência. Em 23 de março, o governo
de. Em artigo recente de revisão sobre o tema, as pesqui- federal anunciou ações de apoio à ciência e à tecnolo-
sadoras C. Zanluca e Claudia Duarte dos Santos apon- gia e à educação no âmbito do Plano Nacional de Com-
tam algumas perguntas que precisam ser respondidas bate à Zika. Contar com esses recursos é fundamental
pela pesquisa científica: há outros modos de transmis- para várias frentes de atuação, inclusive para permitir
são da Zika além do vetor – mosquito? Há outras espé- que se chegue ao diagnóstico preciso, à possibilidade
cies de mosquito, além do Aedes, envolvidos? É possí- de intervenção terapêutica e a vacinas eficientes, o que
vel a transmissão interpessoal? É possível transmissão requer tempo e investimento sistemático.
sexual? Qual a taxa de transmissão por transfusão de
sangue? Zika é capaz de se estabelecer como infecção Centro de excelência
crônica? Há possibilidade de reinfecção? A Fiocruz, como instituição de ciência, tecnologia e
Pelas perguntas, fica patente o quanto de pesquisa inovação do Ministério da Saúde, com atuação em áreas
se faz necessária. E aqui é importante constatar que o que abrangem a pesquisa, o ensino, o desenvolvimen-
Brasil possui instituições científicas e universitárias com to tecnológico, a produção de vacinas e a assistência,
capacidade de resposta, que contaram com importante instituiu um gabinete especial para coordenar ações
financiamento público nas últimas décadas, mas que vi- de resposta à epidemia em torno de sete eixos: ampliar
vem hoje com restrições orçamentárias decorrentes da o conhecimento sobre o processo de infecção, a doen-
crise porque passa o país. No Rio de Janeiro, a Faperj ça e seus efeitos; disponibilizar teste diagnóstico rápido
mobilizou uma rede de pesquisadores e instituições para que permita diferenciar as três viroses; desenvolver um

18 calamidade
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teste sorológico confiável; contribuir para o controle da igrejas e associações. É preciso que haja mobilização
infestação pelo Aedes aegypti; contribuir para a defini- social e que a campanha não apele apenas para o con-
ção de protocolos para o tratamento dos casos agudos, trole dos indivíduos e das casas.
sobretudo de gestantes, a prevenção e sobre as conse- Nós constituímos um grupo de ciências sociais em
quências das más-formações congênitas; criar estraté- saúde, na Fiocruz, que vai produzir estudos sobre os de-
gias para o desenvolvimento de vacinas; e propor rees- terminantes sociais e ambientais e o impacto da epide-
truturação no sistema de saúde para lidar com as con- mia na sociedade, considerando fortemente os efeitos
sequências da epidemia. Sobre isso vale ler o artigo de nos valores sobre gênero e estratégias reprodutivas
Mauricio Barreto e colaboradores (“Zika vírus and mi- das mulheres e das famílias. Do mesmo modo é funda-
crocephaly in Brazil: a scientific agenda”. The Lancet. Fe- mental analisar o impacto da epidemia sobre os serviços
bruary 23, 2016). de saúde e termos experiência acumulada nessa área.
Diante de um quadro de incertezas e perguntas Formamos um grupo também para discutir controvér-
sem resposta, uma das grandes batalhas é aumentar a sias científicas. Surgem questões e mais questões no-
confiança na informação. Por isso temos trabalhado in- vas nessa epidemia. Você tem informações científicas
tensamente nessa direção. No Portal Fiocruz (www.fio- em tempo recorde, que não estão totalmente validadas.
cruz.br) damos acesso a várias informações e publica- Então você tem mais dúvidas do que certezas. Um exem-
ções científicas, com destaque para um site totalmen- plo dessa fronteira entre o científico ou não é que vários
te dedicado à zica, à dengue e à chikungunya, disponi- periódicos e instituições assinaram um acordo para pu-
bilizando o máximo possível de informações confiáveis. blicação em acesso aberto e de forma rápida, mesmo no
Hoje são divulgadas desinformações nas redes sociais. caso das revistas especializadas, sem passar por todos
É um processo de uma velocidade descomunal. A men- aqueles processos de validação acadêmica. O próprio
sagem que pode e deve ser dada para as pessoas é que pesquisador também coloca conclusões às vezes preli-
elas podem dispor de informações de instituições cien- minares na rede. É ao mesmo tempo positiva e preocu-
tíficas. O Ministério da Saúde também tem uma página pante a disseminação dessas informações, pois há de
dedicada a essas doenças. A internet é uma faca de dois fato muitas incertezas.
gumes. Ao mesmo tempo em que é postada muita coi- Na epidemia de aids você também teve disputas, teve
sa boa, é viralizada na rede a divulgação de boatos e in- controvérsias. Chegou a se suspeitar que o mosquito po-
formações que não têm por base evidências científicas. deria ser o vetor. No que se refere à transmissão sexual,
Há pânico, naturalmente. A melhor forma de combater vários equívocos foram cometidos, gerando estigmas, a
esse lado nocivo da internet é gerando produção cientí- exemplo do “câncer gay”, e interferindo negativamente
fica que permita afirmações mais seguras e confiáveis nas políticas de prevenção que deveriam ser adotadas
– ainda que, como foi dito, haja muitas perguntas sem por todos, independentemente da orientação sexual. Na
resposta e muitas controvérsias entre os pesquisado- atual epidemia de Zika, o que assusta mais não são tanto
res envolvidos – e disseminando essa produção cientí- os números de pessoas atingidas, mas a possibilidade
fica por meio de extensos programas de comunicação de você ter vários problemas neurológicos decorrentes
junto às comunidades. Nós da Fiocruz estamos discutin- dessa transmissão congênita. Isso é assustador, pois in-
do, entre outras iniciativas de comunicação, a colabora- terfere na expectativa de vida social. Já há estimativas
ção com a Ação pela Cidadania, criada por Betinho, um de que pode chegar a 15 mil o número de crianças com
trabalho junto com as rádios comunitárias. É uma série microcefalia até o final de 2016. É um dado terrível, mas
de ações de divulgação e conscientização, envolvendo não é possível se analisar o impacto dessa epidemia ape-
diferentes grupos e instituições, a exemplo de escolas, nas em função do dado estatístico. O impacto vai muito

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além, pois se trata de pensar o futuro dessas crianças, O controle sobre o mosquito é fundamental, mas ele
de suas famílias e de como as políticas públicas serão é muito difícil nas atuais circunstâncias. Temos um défi-
capazes de reduzir os imensos danos causados. Além cit de saneamento, um déficit na coleta e no descarte do
disso ainda não sabemos qual será o impacto no plane- lixo, um déficit na educação da população de um modo
jamento da gravidez daqui para a frente. geral em como lidar com essas situações e, apesar dos
Do ponto de vista de ações imediatas, sem contar avanços dos últimos anos, um razoável déficit social. É
com vacina e medicamentos, as ações se voltam neces- um problema bastante complexo, pois as ações têm que
sariamente para o controle do Aedes aegypti . ser contínuas. No momento, o que precisamos fazer é
uma mobilização que vá além do controle das casas;
Controle de vetores tem que haver uma verdadeira mobilização social. Com
Desde o início de 2015 eu ouvia falar da possibilida- isso você consegue pelo menos reduzir a propagação
de de novas doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. dos mosquitos transmissores das doenças. É também
No Conselho Deliberativo da Fiocruz, um dos integrantes, importante investir em novas soluções e tecnologias de
o infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, que há três controle. Na Fiocruz, nós estamos desenvolvendo uma
décadas vem acompanhando as epidemias de dengue, série de tecnologias alternativas para o controle do mos-
com frequência mencionava: “A gente hoje fala muito da quito. Uma delas é a introdução da bactéria Wolbachia,
dengue, mas a situação vai piorar com a chikungunya. E que infecta artrópodes e gera mosquitos não transmis-
não pela mortalidade, mas porque é uma infecção que sores da doença. Seu uso tem ocorrido em ambientes
traz complicações enormes: edemas, dores musculares controlados e com estratégia de informação e partici-
fortíssimas, dores nas juntas. As pessoas ficam com difi- pação das populações envolvidas. Outra tecnologia uti-
culdade de se locomover, impossibilitadas de trabalhar”. lizada na região Norte é a disseminação de larvicida pe-
No caso das epidemias associadas ao Aedes, o fator de- los próprios mosquitos que, dessa forma, inviabilizam a
terminante é o padrão de urbanização e o acesso aos sua reprodução.
serviços públicos. Não por acaso, em São Paulo tivemos
um aumento do número de casos de dengue com a falta Medidas intersetoriais
de água em 2015. Isso porque as pessoas fazem reser- O Brasil melhorou indicadores de saúde em várias
vatórios que geralmente não ficam devidamente veda- áreas: mortalidade infantil, tuberculose, acesso aos cui-
dos. O lixo nas ruas também faz com que o Aedes se pro- dados médicos e há importantes trabalhos mostrando
pague mais. Portanto, não é suficiente você fazer uma isso. O que não reduz a gravidade da atual epidemia,
campanha de informação focando só a casa. Você tem mas relativiza o quadro da saúde nacional. Nós avan-
todo o problema de limpeza urbana. Existem fatores am- çamos em várias áreas: política social, campanhas de
bientais, no caso da dengue, da chikungunya, da zica e imunização, combate às condições de extrema pobre-
demais doenças transmitidas pelo Aedes, que são muito za, com impacto evidente sobre as condições de saú-
sérios. Li recentemente um artigo de Ermínia Maricato, de. A gente vê isso em relação a diversas doenças. A
professora de urbanismo da USP, que chama a atenção questão fundamental é a continuidade dessas políticas.
para aspectos dos serviços urbanos e das políticas de Hoje você tem uma discussão muito forte sobre finan-
saneamento. Concordo inteiramente com ela. O padrão ciamento do Sistema Único de Saúde que é preocupan-
de urbanização e os problemas no acesso aos serviços te. Essa ameaça acontece em um momento que temos
públicos em nossas cidades são fatores cruciais para novas doenças surgindo com impacto ainda não devi-
entendermos as epidemias transmitidas pelos mosqui- damente avaliado sobre toda a dinâmica e o funciona-
tos e também para se pensar estratégias de prevenção. mento do SUS.

20 calamidade
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Seria bom que tudo se enfeixasse no ecossistema exemplo, tinha um número de obras de saneamento a se-
da saúde, reunindo infraestrutura sanitária, profilaxia rem alcançadas. Somente concluiu 26%. Do total, 1.209
por meio da educação, pesquisa e inovação e intera- iniciativas para melhoria do saneamento brasileiro es-
ção com a comunidade. Sem falar em uma política de tão no papel, ou seja, estão em estágio preparatório, em
obras públicas continuadas. Trata-se, portanto, de po- contratação ou em licitação. É um negócio complexo. Mas
líticas intersetoriais e não uma responsabilidade exclu- o fato é que esses atrasos têm um potencial impacto de
siva do setor saúde. Uma doença transmitida pelo mes- ampliação do número de casos de verminoses, esquis-
mo mosquito, que há mais de 30 anos é vetor da infec- tossomose, dermatites, leptospirose, para citar somen-
ção por dengue, é um problema, antes de tudo, interse- te algumas enfermidades, além, é claro, da proliferação
torial. Enquanto você trabalha no laboratório, tem que de mosquitos. O assunto é sério e não suporta poster-
praticar um saneamento adequado, aliás já devia estar gação. Para se ter uma ideia da gravidade, segundo os
praticando. Você tem que ter políticas urbanas adequa- dados do Sistema Nacional de Informações sobre Sa-
das. Isso para reduzir o surto da doença e prevenir em neamento do Ministério das Cidades, apenas 38% dos
relação ao futuro. esgotos do país são tratados, e cerca de 103 milhões
de brasileiros não estão conectados às redes de esgo-
Política de saneamento to. É importante ressaltar que em meio a esse lodo ain-
O Brasil ainda é um país atrasado do ponto de vis- da nasce uma flor. Apesar de todo o atraso, houve nos
ta das políticas públicas de saneamento. O problema do últimos três anos uma melhoria de 12% no tratamento
lixo, no caso das doenças transmitidas pelo Aedes, é fun- da água e de 5% no saneamento das cidades. De qual-
damental pelo fato de existir muito resíduo plástico, que quer forma, um dado emblemático é o de que 6 milhões
acumula água. Mudou o lixo também, e essa mudança de brasileiros não têm acesso a equipamento sanitário
joga contra as condições de saneamento. Têm especia- adequado em suas casas.
listas na área ambiental estudando isso. A coleta e tratamento do lixo devem ser objetivo de
Outro problema de longa história no Brasil é a des- investimento permanente. O problema é a crescente ge-
continuidade das políticas de saneamento. O PAC, por ração de resíduos, que não tem a mesma velocidade de

O Brasil ainda é um país


atrasado do ponto de vista
das políticas públicas de
saneamento

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É uma situação
que exige uma ação
transversal, incluindo
Ministérios do Meio
Ambiente, da Saúde e
das Cidades

respostas. Para se ter uma noção mais precisa do pro- vem analisando sistematicamente esse quadro e apon-
blema, basta que tomemos a cidade de São Paulo como tando o caráter não aleatório da distribuição das ca-
referência maior do desafio. Nela, cada pessoa produz rências: “são muito mais baixas as coberturas no Norte
diariamente entre 800 g a 1 kg, ou de 4 a 6 litros, de deje- e Nordeste do país que no Sul-Sudeste; são muito mais
tos. Por dia são gerados 15 mil toneladas de lixo. Em um baixas nas zonas rurais que nas urbanas; e muito infe-
ano, isso corresponde à ida e volta de caminhões enfilei- riores nas vilas e favelas.” (Le Monde Diplomatique Bra-
rados, cobrindo a trajetória entre São Paulo e Nova Ior- sil, 2 de julho de 2013).
que. Mas não se trata apenas de São Paulo, campeã no É uma situação que exige uma ação transversal, in-
consumo e, portanto, na geração de descartes. A gera- cluindo Ministérios do Meio Ambiente, da Saúde e das
ção de lixo está crescendo em média 4% ao ano no Bra- Cidades. Temos que atacar individualmente os proble-
sil. Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Bra- mas, mas também sistematizá-los de forma integrada,
sil 2013, cerca de 60% dos municípios brasileiros ain- procurando entender o impacto multiplicador das solu-
da encaminham resíduos sólidos e rejeitos para locais ções, sua sinergia, as iniciativas que potencializam os re-
inapropriados, e há lixões em todos os estados. No Nor- sultados. Precisamos também cruzar as ações dos pla-
deste, o hábito de descarte sobre o solo é praticado em nos de saúde estaduais. Hoje sabemos o que fazer nas
837 municípios. nossas respectivas áreas de atuação, mas não há a de-
É recente (de 2007) a promulgação da Lei 11.445, vida interação. É muito pouco para o tamanho do desa-
que estabelece o marco regulatório nacional para o se- fio. As políticas têm que ser colaborativas. Sem atacar
tor. Em 2013, a aprovação pelo Conselho Nacional das o conjunto dos problemas mencionados, a saúde esta-
Cidades do Plano Nacional de Saneamento Básico trouxe rá cada vez mais aquém de responder ao crescimento
alento e esperança ao traçar um quadro realista e pro- dos seus problemas.
por ações articuladas entre os entes federativos para
dar conta da magnitude do problema. Contudo, trata-se,
A depoente é vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação
como visto, de um déficit imenso. Léo Heller, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
da Fiocruz e relator da ONU para área de saneamento, nisial@gmail.com

22 calamidade
Isto é mais que qualidade.
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É confianca.

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seu medicamento de confiança para c ui d a r
d a s ua f am í l i a . janeirO
O r•efm é d i o d a• mf aarço
evereiro b r a s 23
m í l i a2016 ileira
24 Rua Direita
A nova direita
brasileira:
ideias, retórica
e prática política

Jorge Chaloub
Cientista político

Fernando Perlatto
Historiador

janeiro
aneirO • fevereiro • março 2016 25
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
cena cultural e políti- um primeiro momento, realizaremos
ca brasileira tem teste- um panorama mais amplo em torno
munhado, nos últimos de algumas grandes hipóteses que,
anos, um fenômeno so- embora não esgotem, ajudam a com-
ciológico com características muito preender o destaque que esses inte-
peculiares, vinculado ao destaque lectuais têm ganhado na esfera pú-
cada vez mais significativo na esfe- blica brasileira. Posteriormente, em
ra pública do país de uma nova fra- um segundo momento, abordaremos,
ção de intelectuais, portadores de de maneira mais geral, alguns dos
certo tipo de ideário claramente de argumentos defendidos por esses
direita, cujo protagonismo e atuação intelectuais, não no sentido de es-
merecem um esforço de compreen- miuçá-los, mas com uma pretensão
são mais sistemático.1 Intelectuais mais modesta de buscar pontos de
como Olavo de Carvalho, Reinaldo aproximação e distanciamento, bem
Azevedo, Luiz Felipe Pondé, Rodrigo como destacar as particularidades
Constantino, Guilherme Fiuza, Mar- que permitem classificar estes au-
co Antonio Villa, Denis Lerrer Rosen- tores como pertencentes ao campo
field, Diogo Mainardi, entre outros, político da “direita”.
vêm ganhando um espaço cada vez De forma sucinta, é possível
mais significativo no debate público formular seis grandes hipóteses
do país, e o destaque assumido por que contribuem para a compreen-
eles é indicativo da forte presença são do destaque que os intelectuais
é importante de um determinado tipo de reflexão da “nova direita” vêm adquirindo na
destacar que o abertamente de direita, que tem as- cena cultural e política do país. Em
fortalecimento de sumido protagonismo não apenas na primeiro lugar, é importante desta-
um novo discurso imprensa, mas também do mercado car que o fortalecimento de um novo
de direita não é um editorial do país.2 discurso de direita não é um fenôme-
Ainda que muitos desses inte- no restrito às fronteiras brasileiras.
fenômeno restrito
lectuais já tivessem presença desta- As últimas décadas registraram em
às fronteiras cada nas páginas dos jornais e nas diversas partes do mundo o surgi-
brasileiras redes sociais pelo menos desde os mento de distintas vertentes de pen-
anos 1990, a projeção deles na esfe- samento direitista, que se nutriram
ra pública nos últimos anos ganhou da crise, no campo político, do Es-
um novo impulso, adquirindo carac- tado de Bem-estar social e no plano
terísticas muito particulares, que me- teórico do marxismo, e que ganha-
recem maior atenção por parte dos ram força ainda maior com a que-
pesquisadores. da do Muro de Berlim. Essas novas
À guisa de refletir com maior torrentes ideológicas têm assumido,
amplitude sobre esses intelectuais entretanto, tanto do ponto de vista
da “nova direita” brasileira, dividi- intelectual quanto político, feições
remos o texto em duas partes. Em e características diversas da tradi-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cionalmente esposadas pelo campo Uma segunda hipótese que con- consolidação do processo de rede-
conservador e reacionário. tribui para compreender o desta- mocratização do país com a Consti-
Em artigos de conjuntura re- que assumido pelos intelectuais da tuição de 1988, torna-se mais con-
digidos nos anos 1980, Jürgen Ha- “nova direita” na esfera pública do fortável para muitos desses autores
bermas identificava o surgimento de país se refere ao próprio distan- se intitularem abertamente como de
um “neoconservadorismo” nos con- ciamento temporal da ditadura mi- direita, defendendo publicamente as
textos alemão e norte-americano, o litar, identificada no imaginário so- ideias e as agendas políticas asso-
qual se distinguiria de correntes se- cial como sendo de “direita”, o que ciada a esse campo do espectro po-
melhantes anteriormente desenvol- contribui para que aqueles setores lítico. Soma-se a isso o fato de que,
vidas por uma relação mais tranqui- identificados com essa perspectiva a despeito da permanência de enor-
la com a modernidade capitalista. A se sintam mais à vontade para es- mes mazelas sociais, o país passou,
desconfiança de um conservadoris- posar suas opiniões publicamen- ao longo dos últimos anos, por um
mo de corte mais tradicional em re- te, sem maiores constrangimentos. processo de redistribuição de ren-
lação ao mercado e a hegemonia de Passadas mais de duas décadas da da, marcado por uma atuação dire-
uma lógica do interesse daria lugar
a um elogio da modernização econô-
mica, de modo que as resistências ao
moderno ficariam restritas ao mun-
do da cultura, este o grande respon-
sável por destruir antigos valores e
instituições.
O capitalismo seria desejável e
perfeitamente compatível com a visão
de mundo advogada por esse conjun-
to de pensadores, que conseguiriam,
assim, dar nova vida a uma tradição
que parecia incompatível com a lógica
progressista que marcava os dois la-
dos da Guerra Fria.3 Habermas identi-
fica como características desse con-
junto de pensadores algumas teses e
atitudes intelectuais comuns, como a
moralização dos debates e problemas
públicos, que seriam adequadamente
resolvidos por meio do recurso à re-
ligião ou a um senso comum esque-
cido, o ataque aos conteúdos da mo-
dernidade no campo da cultura e a
responsabilização dos “intelectuais
de esquerda” por grande parte das
mazelas contemporâneas.4

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

na Folha de S. Paulo, e Denis Rosen-


field, n’O Estado de S. Paulo, embora
seu texto também seja publicado em
O Globo. A maior parte deles mobi-
liza principalmente as redes sociais
– como Twitter e Facebook – para a
difusão de suas ideias. Além disso, al-
guns desses intelectuais se valem de
instrumentos como a rádio para se
projetarem publicamente, a exemplo
de Rodrigo Constantino, que possui
um programa na Rádio Jovem Pan,
a qual se transformou – como bem
demonstrado em reportagem recen-
te na revista Piauí – em um dos prin-
cipais veículos de defesa de agen-
das de “direita”, abrigando jornalis-
tas como Rachel Sheherazade, que,
por sua vez, divide parte do progra-
ma principal da emissora paulista
com Marco Antonio Villa.
Para além da forte presença no
debate público, outro aspecto a ser
ressaltado no que concerne aos in-
telectuais da “nova direita” diz res-
peito à sua presença cada vez mais
significativa no mercado editorial bra-
sileiro. Essa presença se insere em
ta do Estado, o que incentiva, como do editorial, no perfil dos jornais de um movimento mais amplo, marca-
estratégia política de diferenciação maior circulação – que passaram do pelo crescimento significativo, ao
e movimento de resistência a esse a dedicar mais espaço a colunistas longo dos últimos anos, de publica-
tipo de mudança, a defesa mais ra- “ideológicos” – e, sobretudo, à ex- ções direcionadas para um público,
dical de agendas liberais, ancoradas pansão e a popularização da inter- cada vez maior, interessado por uma
na ideia de Estado mínimo. net, que permitiu a esses intelectuais literatura de obras políticas com per-
Em terceiro lugar, o protagonis- adquirir uma capilaridade social não fil de “direita” ou conservador. Esse
mo desses intelectuais da “nova di- imaginada em outros tempos. Muitos movimento, inclusive, foi destacado
reita” está vinculado a transforma- desses intelectuais têm colunas nos pelo editor da Editora Record, Car-
ções que tiveram curso, ao longo das jornais de grande circulação do país los Andreazza, em entrevista recen-
últimas décadas, na própria indús- – a exemplo de Rodrigo Constantino te para o jornal O Globo, no qual re-
tria cultural do país, destacando-se, e Marco Antonio Villa, n’O Globo, Rei- conhece o crescimento deste “nicho”
nesse sentido, mudanças no merca- naldo Azevedo e Luiz Felipe Pondé, no mercado editorial brasileiro, des-

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tacando o interesse de sua editora bém publicou outros trabalhos com Julgamento do Maior Caso de Cor-
em explorá-lo. perspectivas semelhantes, como Pri- rupção da História Política Brasilei-
Entre os títulos publicados recen- vatize Já! Pare de Acreditar em In- ra e Um País Partido: 2014. As Elei-
temente, que evidenciam este aspec- trigas Eleitorais e Entenda como a ções mais Sujas da História, ambos
to, podemos destacar, entre outros, Privatização Fará do Brasil um País também de Villa. Outras publicações
Guia do Politicamente Incorreto da Melhor e, mais recentemente, Con- desses autores já possuem mais um
História do Brasil (Leandro Narloch), tra a Maré Vermelha. Um Intelectual tom de manifesto político, com des-
Guia do Politicamente Incorreto da sem Medo de Patrulhas, que reúne taque para a obra Por que Virei à
História da América Latina (Leandro oitenta crônicas publicadas no jornal Direita?, de Luiz Felipe Pondé, Denis
Narloch e Duda Teixeira) e Guia do O Globo entre 2009 e 2014. A práti- Rosenfield e João Pereira Coutinho.
Politicamente Incorreto da História ca de reunir em livros artigos origi- De maneira geral, todos os trabalhos
do Mundo (Leandro Narloch), além nalmente publicados em jornais e mencionados apresentam bons índi-
de obras como Pare de Acreditar no revistas é comum entre esses inte- ces de vendagem e estão expostos
Governo. Por que os Brasileiros não lectuais, do que são provas as obras com destaque em várias livrarias do
Confiam nos Políticos e Amam o Es- Não é a Mamãe: Para Entender a Era país, evidenciando a capilaridade de
tado (Bruno Garschagen), O Mito do Dilma, de Guilherme Fiuza, com ar- seus argumentos entre amplos seg-
Governo Grátis (Paulo Rabello de Cas- tigos publicados no jornal O Globo mentos da opinião pública.
tro) e As Ideias Conservadoras Ex- e na revista Época; A Tapas e Pon-
plicadas a Revolucionários e a Rea- tapés e Lula é Minha Anta, de Diogo
cionários (João Pereira Coutinho). Mainardi, que reúnem crônicas ori-
Mais recentemente, algumas edito- ginalmente escritas para a revista
ras vêm apostando na tradução de Veja; O País dos Petralhas e Obje-
obras com esse perfil, a exemplo do ções de um Rottweiler Amoroso, de
livro Como ser um Conservador, do Reinaldo Azevedo, que congregam
filósofo político inglês Roger Scru- colunas do autor publicadas em seu o protagonismo
ton, lançado recentemente no Brasil. blog na Veja e na Folha de S. Paulo; desses
intelectuais da

O
assim como o já mencionado O Mí-
s intelectuais da “nova nimo que você Precisa para não ser “nova direita”
direita” analisados neste um Idiota, de Olavo de Carvalho, com- está vinculado a
artigo vêm sendo bem-su- pilação organizada por Felipe Mou-
transformações
cedidos ao se aproveita- ra Brasil, colunista da Veja, que reu-
que tiveram curso,
rem dessa “onda”, conquistando es- niu artigos publicados na imprensa
paços cada vez mais significativos no ao longo de mais de uma década. Es-
ao longo das
mercado editorial brasileiro. O livro sas publicações procuram analisar últimas décadas,
de Olavo de Carvalho, O Mínimo que a conjuntura política do país, seja a na própria
você Precisa para não ser um Idio- partir de uma perspectiva de maior indústria cultural
ta atingiu número alto de vendagens, duração – a exemplo do livro Déca- do país
assim como a obra Esquerda Caviar. da Perdida: Dez Anos de PT no Po-
A Hipocrisia dos Artistas e Intelec- der, de Marco Antonio Villa –, seja
tuais no Brasil e no Mundo, de Ro- a partir da investigação de fenôme-
drigo Constantino. Esse autor tam- nos recentes – como Mensalão. O

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aneirO • fevereiro • março 2016 29
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A isso se soma – e essa é a quar- testemunhando mudanças significa- esses intelectuais vêm adquirindo
ta hipótese que contribui para expli- tivas desde a ascensão de Rodrigo na cena pública se relaciona com os
car o protagonismo desses intelec- Constantino à presidência do Con- sucessos e fracassos da esquerda
tuais – a vinculação e a articulação selho Deliberativo, que substituiu a hegemônica no Brasil, representa-
de muitos desses personagens com tradicional ênfase na divulgação de da pelo Partido dos Trabalhadores
institutos como o Instituto Liberal, o clássicos liberais por uma militân- (PT). No que concerne aos sucessos,
Instituto Millenium, o Instituto Lu- cia social e virtual mais agressiva. procuramos sustentar o argumento
dwig Von Misses, o Instituto Liber- De maneira geral, esses insti- de que mesmo o “reformismo fraco”
dade, o Instituto de Estudos Empre- tutos reúnem empresários, econo- dos governos petistas, nos termos
sariais, o Estudantes pela Liberda- mistas, juristas, jornalistas e outros do André Singer, mexeu em pontos
de e o Instituto Ordem Livre. Essas intelectuais, e se comportam como sensíveis da estrutura social brasi-
instituições têm ou origem recente – think tanks5 orientados para a defe- leira, acabando por despertar fortes
como, por exemplo, o caso do Insti- sa dos valores e das políticas libe- reações de alguns segmentos, rea-
tuto Millenium, criado em 2005 – ou rais. Além disso, alguns desses ins- ções essas que têm sido muito ex-
passaram por grande reformulação titutos se engajam de forma mais di- ploradas por esses intelectuais em
recente – como o Instituto Liberal, reta em movimentos como o chama- suas intervenções públicas. A pola-
que, embora fundado em 1983, vem do “Escola sem Partido”, que procura rização da sociedade, à esquerda
aprovar um Projeto de Lei contra a e à direita, contribui decisivamente
“doutrinação” e “contaminação polí- para que ideias mais radicalizadas,
tico-ideológica” da esquerda nos es- como aquelas defendidas por esses
paços escolares. Os fortes vínculos intelectuais, possam encontrar es-
dessas instituições com relevantes coadouro e aceitação. De outra par-
grupos empresariais e da mídia são te, os fracassos dos governos do PT
claramente expostos por uma breve em promoverem alterações mais
A polarização
análise dos parceiros do Instituto Mi- estruturais da sociedade brasileira
da sociedade, llenium, que incluem a Editora Abril, e o fato de o partido ter segmentos
à esquerda e à a Gerdau, o Bank of America Mer- de seu quadro envolvidos em casos
direita, contribui ry Lynch, o Grupo Suzano, o Grupo de corrupção contribuíram para o
decisivamente Estadão, entre outros.6 Seus docu- enfraquecimento da agenda da es-
para que mentos tecem fortes críticas à polí- querda, que, na atual conjuntura,
ideias mais tica brasileira atual, que padeceria vê o discurso da direita crescer de
da ausência de verdadeiras forças forma cada vez mais significativa. No
radicalizadas
de direita e da escassa presença do vácuo político deixado pela oposição
possam encontrar liberalismo no país. Esses institutos partidária, que não conseguiu empla-
escoadouro e se vinculam a outras associações e car uma agenda alternativa, alguns
aceitação grupos sociais, sendo muito bem- su- desses intelectuais, em articulação
cedidos no sentido de projetar com direta com movimentos “Brasil Livre”,
mais força as ideias liberais no de- “Vem pra Rua” e “Revoltados ON LINE”,
bate público brasileiro. vêm buscando se constituir como as
A quinta hipótese que contribui legítimas vozes da oposição.
para explicar o protagonismo que Por fim, uma última hipótese que

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nadas agendas da conjuntura política


brasileira contemporânea. Uma breve
análise do seu conjunto revela uma
manifesta diversidade de trajetórias,
crenças e estilos retóricos, por ve-
zes ofuscados pela coincidência em
relação a adversários preferenciais
e pautas concretas. A atenção às di-
ferenças em meio às concordâncias,
que também serão devidamente des-
tacadas, é fundamental para que se
possa compreender com mais cla-
reza as ideias e os movimentos des-
ses atores no cenário político atual.
Ainda que reconhecendo as estrei-
tezas e os riscos de simplificações
e limitações de quaisquer tipos de
classificação, procuraremos, com
o intuito analítico, dividir os intelec-
tuais investigados em dois grandes
grupos, a saber: direita teórica e di-
reita militante.
A direita teórica reclamaria seu
lugar à direita no debate público a
partir de argumentos de ampla du-
ração histórica, de modo que as ra-
zões para a recusa à esquerda mo-
contribui para explicar o fortalecimen- tuais no debate público, inclusive, se bilizariam ideias e noções que ultra-
to desses intelectuais no debate pú- valendo dele para a criação de novos passam em muito o contexto imedia-
blico diz respeito à própria crise que partidos, a exemplo do Partido Novo, to, destacando os equívocos dos se-
o sistema partidário atravessa hoje criado em 2011 com o apoio de Ro- tores de esquerda em relação à mo-
no Brasil, exposta, de uma forma ou drigo Constantino, que teve seu re- dernidade e à natureza humana. As
de outra, nas manifestações que to- gistro aprovado recentemente no Tri- questões de política contemporânea
maram as ruas do país em junho de bunal Superior Eleitoral (TSE), com o ocupam a maior parte dos seus textos
2013. Nesse cenário de forte crítica declarado objetivo de defender um atuais, mas são sempre enquadra-
e de elevado ceticismo em relação à liberalismo de fato, que nunca teria das em uma narrativa de mais longa
política, o discurso de “terra arrasa- sido experimentado no país. amplitude, mesmo que muitas vezes
da” contra os políticos e as institui- Os intelectuais da nova direita não distante do tema em questão. O estilo
ções tradicionais ganha repercus- compõe um todo monolítico, mesmo de argumentação não exclui amplas
são, reproduzindo pressupostos ex- que, por vezes, pareçam agir como mudanças ao longo dos anos, muitas
plorados por muitos desses intelec- tal, sobretudo em relação a determi- delas impulsionadas pelas transfor-

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mações na conjuntura, mas leva ao pensamento católico como uma das tras quadras históricas, no mais das
esforço de sempre vincular as opi- suas principais influências. O grupo vezes influenciadas pelos autores do
niões políticas a bases mais amplas é majoritariamente composto pelos primeiro grupo, desempenham papel
e longevas. Os autores buscam se que argumentam a partir do campo de ornamento, são ou laterais para
distinguir pela mobilização de am- filosófico, como Olavo de Carvalho e a estrutura de suas ideias centrais
plo material bibliográfico, que inclui Luiz Felipe Pondé. ou motivadas por disputas coloca-
desde clássicos de vertente liberal e A direita militante, por sua vez, é das na ordem do dia. É possível, por
conservadora, amplamente presentes composta, sobretudo, por polemistas exemplo, que eles se ponham a alar-
na bibliografia mais corrente das hu- públicos, com seus intelectuais cir- dear os bons feitos da ditadura mili-
manidades, até teóricos menos cita- cunscritos às questões da conjuntura tar, mas esse exercício se faz com o
dos, muitas vezes brandidos de modo mais imediata e sua argumentação olhar voltado para embates contem-
a demonstrar a precariedade do am- raramente ultrapassando os marcos porâneos, como a identidade da atual
biente intelectual brasileiro. Há em al- mais evidentes do debate contempo- esquerda e as mobilizações em torno
guns autores do grupo, como Olavo râneo. As eventuais menções a ques- da Comissão da Verdade. Essa con-
de Carvalho, assumida presença do tões mais amplas ou o retorno a ou- duta faz com que tais personagens
se concentrem, sobretudo, no ataque
a seus inimigos mais próximos e evi-
dentes, sem grandes mediações em
sua argumentação.
Em que pese esse afã pelo ime-
diato, os intelectuais dessa verten-
te também buscam se vincular, até
como forma de legitimação, a linha-
gens mais longevas da história do
pensamento, esforço no qual eles
acabam por reivindicar mais explici-
tamente uma tradição liberal que os
citados anteriormente, mais afeitos
à linha conservadora. Há nesses in-
telectuais um constante esforço em
demonstrar erudição, o que por ve-
zes os leva a mencionar um grande
número de autores, mas suas ela-
borações estão usualmente ampa-
radas em princípios basilares de
um extremado liberalismo econô-
mico, onde são frequentes as men-
ções a Mises e Hayek, e nas formu-
lações de alguns atores do primei-
ro grupo. A heterogeneidade, toda-
via, é a marca desse conjunto, que

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tem no polemismo antiesquerdista por uma “frente direitista” convivam


o cimento que consolida suas teses com uma rotina de brigas e recon-
e percepções centrais. Nesse cam- ciliações, pode-se afirmar que, para
po, se situam, com suas diferenças, além dos movimentos políticos cons-
A direita
Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constan- cientes, as representações do cená-
tino, Guilherme Fiuza, Marco Anto- rio contemporâneo desses dois gru-
militante é
nio Villa, Diogo Mainardi, Denis Ler- pos já oferecem uma ampla platafor- composta,
rer Rosenfield, entre outros. Deve-se ma para a composição de uma ação sobretudo, por
ressaltar que alguns desses perso- conjunta, ao ressaltar aspectos coin- polemistas
nagens, como é o caso de Rosenfield cidentes do discurso dos dois gru- públicos, com
e Villa, possuem reflexões de maior pos. Apontaremos, em seguida, seis seus intelectuais
fôlego em seus trabalhos acadêmi- pontos de convergência entre essas
circunscritos
cos, mas usualmente não transpor- duas direitas.
às questões da

U
tam esse modelo de expressão para
sua atuação enquanto intelectuais ma primeira aproxima-
conjuntura mais
públicos. Um ótimo exemplo é o ca- ção decorre do que se imediata
pítulo escrito por Rosenfield no livro pode chamar de retóri-
Por que virei à Direita?, que se des- ca da “terra arrasada”.
taca pela quase ausência de recur- Nessa perspectiva, tanto o momen-
sos a argumentos de vertente mais to atual quanto a história brasilei-
geral, distintamente de Pondé e Cou- ra, são marcados por uma radical
tinho, os outros dois autores da cole- ausência de virtudes e conquistas.
tânea-manifesto. Desse modo, como O argumento é mais forte na pena
estamos tratando da persona públi- do primeiro grupo, a direita teórica,
ca desses intelectuais, faz mais sen- cujo discurso se ampara na comple-
tido enquadrá-los na categoria da di- ta aversão a qualquer tipo de contex-
reita militante. tualismo, o qual é sempre criticado7 Olavo de Carvalho explicita os radi-
As variações retóricas, assim por seu viés relativista.8 A recusa às cais fundamentos desse tipo de ar-
como as distinções de crença e ên- ideias de pontos de vista ou lugares gumentação: “Em quinhentos anos de
fase, acabam, todavia, nubladas em de fala leva a uma naturalização da existência, a cultura deste país não
um cenário no qual o adversário ideo- cultura vinda dos países “centrais” deu ao mundo um único registro de
lógico e político ganha feição mui- como única digna de ser chamada experiência cognitiva originária. Nos-
to clara, como na atual conjuntura por esse nome e nega a validade a sa contribuição ao conhecimento do
política. Em que pese a permanên- qualquer produção que fuja de um sentido espiritual é, rigorosamente,
cia de algumas disputas internas a cânone tomado como evidente por nula” (CARVALHO, 2013, p. 59).
esse campo mais amplo, a atenção si mesmo. Por esse olhar, a cultura O argumento não é inédito na tra-
se volta, sobretudo, para a derrota e a história brasileira são retrata- dição da direita nacional, que muitas
dos inimigos esquerdistas, que justi- das como uma sequência de equívo- vezes se defendeu a ideia de ruptura
ficam o esquecimento de discordân- cos. Em texto redigido ainda antes do com o passado como movimento ne-
cias e a moderação de ânimos. Mes- adensamento da influência desses in- cessário para o acesso à moderni-
mo que eventuais esforços em com- telectuais da nova direita, em 1999, dade. Personagens como Francisco

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Campos, Carlos Lacerda e Roberto sas, que assolam o Brasil. O panora- serviu à esquerda e aos ‘sociólogos’
Campos, por exemplo, antes viam na ma extremamente negativo sobre o para se liberarem da responsabilida-
tradição um obstáculo do que uma país muitas vezes é relacionado ao de moral. Esse é também um traço
base para a construção do futuro. predomínio da esquerda no cenário ‘mau-caráter’ da esquerda.” (PONDÉ,
O que surpreende no trecho, contu- político e intelectual nacional. Há, 2002, p. 35). A centralidade do argu-
do, é sua radicalidade, que abdica por vezes, um esforço de localização mento moral surge como olhar “cor-
de qualquer mediação na constru- dessa hegemonia da esquerda, que, reto” para o mundo e elemento que
ção do argumento e recorre a cla- em diversos momentos, é remetida distingue o joio do trigo. A esquerda
ros exageros, sem qualquer senti- aos anos que se sucederam à dita- seria não apenas equivocada, mas
do irônico, em todos os momentos dura militar, como muitas vezes afir- moralmente vil, como bem compro-
do raciocínio. ma Luiz Felipe Pondé.11 No mais das va a história pessoal dos seus mais
O tema também se faz, de certo vezes, entretanto, a esquerda passa destacados intelectuais.12

A
modo, presente na “direita militan- a ser diretamente identificada com
te”, constantemente retomado por o mal, sintetizando os mais diversos s ideias seriam, nesse sen-
Rodrigo Constantino, Diogo Mainar- aspectos negativos aparentemente tido, índices de moralida-
di e Reinaldo Azevedo. Constantino, dispersos na sociedade e na história. de e exporiam o lado su-
por exemplo, estabelece um víncu- O argumento decorre da visão perior ou rebaixado dos
lo direto entre esse cenário e a au- extremamente moralizada desses indivíduos. O argumento não se re-
sência de um verdadeiro liberalismo autores acerca da política e da so- duz à “direita teórica”, mas também
em terras brasileiras. Em artigo sin- ciedade. A moral, em seu procedi- se faz presente na “direita militante”,
tomaticamente intitulado “Liberalis- mento mais corriqueiro, remete às como bem demonstra o conceito de
mo no Brasil Colônia: o que podería- divergências a valores transcenden- “esquerdopata”, cunhado por Reinal-
mos ter sido” (CONSTANTINO, 2015), tes e absolutos, impassíveis de qual- do Azevedo e largamente utilizado por
ele retoma um pensador lusitano da quer contestação (DELEUZE, 2002, outros desses intelectuais. Segundo
Colônia com forte inspiração do ilu- p. 29), o que a torna extremamen- tal discurso, a afinidade com ideais de
minismo escocês, José Antônio Gon- te útil para representações biná- esquerda não seria simples crença
çalves, para apontar como a histó- rias, que tomam o opositor ideológi- ou afinidade política, mas patologia
ria nacional poderia ter sido outra co como inimigo. Em face ao inimigo psíquica: “Existe na política o corre-
caso os pressupostos liberais tives- não cabe o diálogo, mas a guerra. A lato da psicopatia, manifestado, no
sem sido plenamente aplicados em reivindicação da superioridade da caso, não como uma doença mental,
terras brasileiras. O raciocínio ex- moral ante a política é não apenas do indivíduo, mas como uma moléstia
põe sua aversão a eventuais relati- evidente na ampla maioria dos au- coletiva, ideológica. Há tempos em-
vismos, que ofuscariam a evidência tores, como aparece como um dos prego a palavra ‘esquerdopata’ para
de que apenas o liberalismo propõe critérios para distinguir a direita da definir certo tipo de comportamento.”
fundamentos adequados para a or- esquerda. Como destacado por Luiz (AZEVEDO, 2011). Algumas das pos-
ganização social.9 Felipe Pondé: “uma das posições do síveis consequências de semelhan-
Ambas as correntes também se pensamento conservador que mais te imaginário no campo da ação po-
aproximam – sendo esse o segundo me encantam é que, para ele, o pro- lítica não são difíceis de imaginar. É
ponto de convergência – na dire- blema do homem é, sobretudo, mo- difícil o diálogo democrático com in-
ta responsabilização da esquerda10 ral, e só secundariamente, político. divíduos portadores de uma doen-
pelas mazelas, recentes e pregres- A negação disso, porém, sempre ça. Patologias, ademais, requerem

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representante da esquerda,14 assim A nova direita retoma esse tema


como o restante do quadro partidá- e, como já exposto, em outros casos,
rio brasileiro; Obama é comunista e o abraça com grande radicalidade. É
Luciano Huck pertence ao campo da comum a quase todos os intelectuais
O caráter “esquerda caviar” (CONSTANTINO, do campo a ideia de que apenas um
autocentrado do 2013, p. 219). olhar distante dos esquerdismos
Os intelectuais da nova direi- pode perceber os reais traços do
discurso moral
ta usualmente recorrem, e esse é mundo. Pondé, por exemplo, afirma
também leva a uma
o terceiro ponto de aproximação, a sem maiores mediações que a “es-
representação um clássico topos conservador, que querda é abstrata e mau-caráter por-
do cenário pretende conferir ao próprio discur- que nega a realidade histórica huma-
político que so uma maior capacidade de repre- na a fim de construir seu domínio no
destoa bastante sentação do mundo. Nesse discurso, mundo” (PONDÉ, 2012, p. 81), enquan-
da percepção da as teses da direita teriam uma maior to Reinaldo Azevedo, em artigo sin-
ampla maioria proximidade com o real, colocando-se tomaticamente intitulado “Ainda es-
mais próximas da “vida como ela é”, querda e direita” afirma: “Esquerdis-
dos protagonistas
ao passo que a esquerda se carac- mo é ideologia sim. No mais das ve-
desse campo terizaria por seus devaneios e abs- zes, aquilo a que se chama ‘direita’
trações completamente alheios, por é só bom senso aplicado” (AZEVEDO,
inépcia ou má-fé, ao funcionamento 2013). A retórica do realismo leva os
do mundo. Os argumentos da direi- intelectuais da nova direita ao traba-
ta seriam, nesse sentido, não apenas lho de desconstrução de supostos
superiores moralmente como tam- cânones da esquerda. Há redobra-
um tratamento que não as conser- bém sobranceiros em sua capaci- do esforço em demonstrar como su-
va, mas busca sua exclusão do es- dade de compreender o que os cer- postas verdades não passariam de
paço social. ca. Mais uma vez estamos diante de invenções esquerdistas, amparadas
O caráter autocentrado do dis- um corriqueiro argumento do pen- na hegemonia na mídia e na acade-
curso moral também leva a uma re- samento conservador, fortemente mia para enganar a maior parte da
presentação do cenário político que reproduzido pelo pensamento auto- população, que se mostrariam sem
destoa bastante da percepção da am- ritário brasileiro. Analisando a obra qualquer fundamento teórico e his-
pla maioria dos protagonistas desse de Azevedo Amaral e Francisco Cam- tórico. A academia, aliás, é fruto de
campo. Para essa nova direita, a es- pos, Marcelo Jasmin (2007) identifi- pesadas críticas e retratada como
querda ocupa a quase totalidade dos ca em suas obras modelos retóricos antro de doutrinação esquerdista
postos de poder não apenas no Bra- que reivindicavam às ideias expos- e devassidão moral, onde o que so-
sil, onde o cenário é especialmente tas especial verossimilhança antes bra são títulos, cursos e escritos tão
crítico, mas no mundo, onde é eviden- o tempo do mundo e a fisionomia do inúteis quanto viciados.15
te, segundo Olavo de Carvalho, a he- país, por ele definidos como “mímesis Em meio a essa perspectiva mais
gemonia esquerdista.13 Nessa pers- do tempo” e “mímesis da nação”. Há, ampla, destacam-se alguns campos
pectiva, o PSDB, responsável por uma nesse sentido, a pretensão de cons- nos quais a “nova direita” aborda rei-
reforma neoliberal do Estado bra- truir um pensamento que expresse teradamente temas que ela reputa
sileiro, é, para muitos deles, franco fielmente o mundo. como particularmente dominados pe-

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versitário, como Rosenfield e Pondé, mentação, o autor sempre pode re-


em um grupo que despreza o meio correr às limitações de quem o in-
acadêmico, Villa dedicou boa par- quire, que não seria capaz de ver o
te da sua trajetória intelectual para óbvio e provavelmente estaria en-
O entusiasmo ante contestar supostos consensos sobre feitiçado ou pela mídia conivente ou
a modernidade a Ditadura e o Golpe.16 Atualmente, pela doutrinação esquerdista que
econômica porém, ele destina a maior parte do toma a educação e silencia as vozes
aparece de modo seu tempo ao papel de comentaris- da direita. O discurso repagina ar-
mais evidente ta político, que, como já dito, exercita gumentação anticomunista comum
regularmente na Rádio Jovem Pan e nos anos 1960,19 que justificava as
na “direita
em seu blog. O adversário a ser com- incompreensões do seu raciocínio
militante”, batido por Villa é a memória e a his- pela ação da ideologia adversária,
que toma o toriografia construída pelas esquer- a qual impedia a visão da verdade.
liberalismo das, que idealizariam o passado e a Se o esquerdismo é uma doença –
econômico como própria trajetória; perspectiva, que como aponta o termo “esquerdopa-
único evangelho na visão do autor, é amplamente he- ta” – um dos seus sintomas é a perda
para a construção gemônica na opinião pública.17 da capacidade de ver o óbvio. A pró-
A obstinada crença no acesso pria acusação de cultor de teorias da
de uma boa ordem
privilegiado ao real é uma das mais conspiração é uma prova da situação
diretas causas da tendência à cons- de descalabro na qual se encontra-
trução de teorias da conspiração ria o país: “‘teoria da conspiração’ é
que marcam esses intelectuais. O uma entre mil muletas léxicas a ser-
discurso começa por reclamar uma viço dos deficientes mentais loqua-
superior capacidade de compreen- zes que orientam e dirigem o país”
las falsificações esquerdistas. Dois der o mundo e logo passa a enxer- (CARVALHO, 2013, p. 322).
deles, que merecem insistentes co- gar traços ocultos da realidade, sem Como consequência do discurso
mentários de diversos personagens os quais ela não pode ser adequa- que atribui aos opositores à incapa-
do grupo, são a ditadura militar bra- damente interpretada. As dinâmi- cidade de perceber a verdade, está
sileira e o Golpe de 1964. Mesmo que cas políticas e sociais são, assim, presente na pena desses intelectuais
vários autores, como Olavo de Car- muitas vezes explicadas por meio da nova direita outro mote retórico,
valho, Constantino e Reinaldo Azeve- de desconhecidos acordos inter- o quarto ponto de convergência en-
do, dediquem várias manifestações nacionais e grandes conjurações tre as direitas militante e teórica: o
ao tema – sempre empenhados em desapercebidas pela multidão. As esforço em aproximar a direita dos
demonstrar a justeza e necessida- conjecturas de Olavo de Carvalho interesses e opiniões da população.
de do golpe, fundamental para evi- acerca do Foro de São Paulo e das A identificação entre formulações
tar a dominação esquerdista então articulações comunistas internacio- da direita e crenças do senso co-
em curso, e expor a injustiça com a nais – amplamente replicadas por mum é retomada por outros auto-
qual é tratado o regime autoritário – outros intelectuais – são um ótimo res, que contrastam uma esquerda
não resta dúvida de que o mais em- exemplo dessa tendência.18 hegemônica, isolada do povo e preo-
penhado na tarefa é o historiador Uma vez confrontado com a au- cupada em realizar apenas os pró-
Marco Antonio Villa. Professor uni- sência de evidências em sua argu- prios interesses – o que afastaria

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as massas do poder –, com uma di- se sempre se amparam em temas mais evidente na “direita militante”,
reita que representaria fielmente a relacionados a direitos de minorias, que toma o liberalismo econômico
população. Até mesmo personagens como mulheres, negros e homosse- como único evangelho para a cons-
da “direita teórica”, como Olavo de xuais. Em termos semelhantes aos trução de uma boa ordem. A valo-
Carvalho, que costumavam direcio- identificados por Habermas (2015) rização da noção de “meritocracia”
nar sua veia crítica também contra no neoconservadorismo alemão, es- aparece em praticamente todos os
o povo brasileiro, sempre retratado ses novos intelectuais conjugam um autores desse campo, que criticam
a partir de termos majoritariamente forte elogio à modernidade econômi- a esquerda por sempre buscar so-
pejorativos, passaram a adotar, mais ca com uma profunda ojeriza ante a brepor o social ao individual. Não
recentemente, esse mote retórico.20 suas construções no campo da cul- é diferente o cenário, todavia, nos
As evidências levantadas por es- tura e dos valores, ridicularizando a textos da “direita teórica”, que ar-
ses autores para comprovar as dis- agenda do reconhecimento. gumenta a plena conformidade en-
sonâncias entre a maioria da popu- O entusiasmo ante a moderni- tre um forte conservadorismo mo-
lação e a minoria esquerdista qua- dade econômica aparece de modo ral e a adesão ao mundo do capita-
lismo liberal. Aspecto que constitui
o quinto ponto de aproximação. Está
ausente do pensamento desses auto-
res o velho temor conservador, que
receava que ampla expansão da ló-
gica da mercadoria, inerente ao ca-
pitalismo, acabasse por solapar os
valores sobre os quais se fundavam
as sociedades tradicionais. Olavo de
Carvalho é exemplar nesse sentido:
“a consciência de que o capitalismo,
com todos os seus inconvenientes e
fora de toda intervenção estatal pre-
tensamente corretiva, é em si e por
essência mais cristão que o mais
lindinho dos socialismos, eis o de-
ver número um dos intelectuais libe-
rais” (CARVALHO, 2013, p. 199-200).
A clara afirmação dessa com-
patibilidade é central para a cons-
trução e manutenção do campo da
nova direita, permitindo a formula-
ção de uma agenda comum a atores
que, em outros momentos, não ne-
cessariamente estariam nas mes-
mas hostes. Para além dos funda-
mentos teóricos, a coesão nasce do

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entretanto, fez avanços, ainda que tí-


midos, na área dos direitos de mino-
rias, sobretudo através do fortaleci-
mento de secretarias temáticas e da
ampliação das cotas, e em certa va-
lorização do Estado, abrindo campo
para a exploração do desconforto
e dos preconceitos de certa parce-
la da população em relação a esses
movimentos. Na falta de movimentos
de afronta ao capital que forneces-
sem combustível ao discurso do ter-
ror comunista, – os governos petis-
tas não fizeram, por exemplo, movi-
mentos semelhantes ao de Jango no
Comício da Central – a nova direita
foi em busca de pautas morais e de
combate às agendas de reconheci-
mento das minorias como agendas
para justificar os ataques ao campo
da esquerda.
A conduta muitas vezes mode-
rada não impediu que o PT surgis-
se como alvo preferencial. Aspecto
que constitui o sexto, e último, ele-
mento de aproximação entre as di-
inimigo comum, detestado por suas A atenção às minorias decorre reitas. São inúmeros os textos e al-
ressalvas ante a visão capitalista do também das ações do mais evidente guns livros destinados a atacar não
mundo, mas também, como já dito, inimigo dessa nova direita: PT. A op- somente a experiência petista à fren-
por seu discurso de defesa das mi- ção do PT por um “reformismo fra- te do governo – associada sempre à
norias, retratadas por neologismos co”, nas palavras de André Singer, ideia de corrupção –, mas a própria
como ‘feminazis’, ‘gayzistas’, abortis- sempre cioso em destacar sua ple- constituição do partido. A retórica
tas.21 Se o campo comum nasce do na adesão ao capitalismo, dificulta os inflamada, comum aos atores que
elogio dos conservadores ao libera- ataques ao partido com o argumen- integram o grupo, alcança tons es-
lismo econômico, ele também decor- to da “comunização”, que se ampara pecialmente altos quando trata da
re da adesão dos liberais econômi- em teorias conspiratórias do corte do instituição e dos seus principais lí-
cos ao conservadorismo moral, for- Foro de São Paulo e em ataques con- deres, que figuram como constante
temente presente, por exemplo, nos tra os excessos da intervenção esta- alvo de qualificações pejorativas e,
diversos ataques do colunista Rodri- tal, ambos argumentos que não en- por vezes, de diretas ofensas. O PT,
go Constantino, presidente do Insti- contram evidente apoio popular, nem nesse discurso, não apenas retoma
tuto Liberal, a grupos minoritários.22 mesmo na classe média.23 O partido, velhos vícios do passado, represen-

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tante maior do comunismo em terras por um lado, se ancoram em agendas da e na execução de políticas afir-
nacionais, como produz graves pro- clássicas da direita, por outro, pas- mativas orientadas para a inclusão
blemas para o futuro, já que não vige sam por um processo de aggiorna- de “minorias” e forte objeção à es-
no Brasil uma democracia, mas uma mento para se vincular às disputas querda, de maneira geral, e ao PT,
ditadura que silencia as vozes da di- políticas colocadas na conjuntura. em particular –, eles possuem pontos
reita e ilegitimamente lega o poder à Nesse sentido, apontamos seis de divergências que não podem ser
esquerda.24 A plena deslegitimação grandes hipóteses que contribuem negligenciados. Procuramos explo-
do sistema democrático, presente no para a compreensão do destaque rar essas divergências a partir das
discurso de Olavo de Carvalho, en- que os intelectuais da “nova direi- categorias “direita teórica” e “direi-
contra versões mais amenas em ou- ta” vêm adquirindo na cena cultural ta militante”, reconhecendo, por um
tros intelectuais. Permanece, entre- e política do país: as mudanças no lado, os pontos de contato entre os
tanto, a chave que pinta o predomínio contexto internacional, a crescente intelectuais agrupados nessas duas
da esquerda, escancarada pelos go- distância da memória da ditadura categorias e valorizando, por outro,
vernos petistas, como incompatível militar, as transformações que tive- aspectos divergentes dos intelec-
com a democracia representativa. ram curso na própria indústria cul- tuais associados a cada um desses
Não basta derrotar essa esquerda tural do país, sua capacidade ade- grupos específicos.
nas urnas, mas é necessário apa- rir e construir uma forte rede insti- O texto parte do pressuposto de
gar seus vestígios do cenário políti- tucional, a habilidade de se valer dos que a análise da retórica e das cliva-
co brasileiro, já que não há eleições sucessos e fracassos da esquerda gens que organizam esses autores é
democráticas com a atual situação, no Brasil e, por fim, a própria crise fundamental para um mais refinado
que artificialmente transforma mi- que o sistema partidário atravessa panorama do debate brasileiro con-
norias ineptas em maiorias. hoje no país. temporâneo, seja pela ampla influên-

B
Ao longo deste texto, procura- cia que eles desempenham ou pelo
mos analisar sociologicamente o des- uscamos também cha- que sua atuação expressa em rela-
taque na cena pública brasileira de mar a atenção para a di- ção às feições do atual estado da nos-
uma fração de intelectuais que cha- ficuldade de representar sa ordem político-social. Para além
mamos de “nova direita”. O que bus- esses intelectuais como de eventuais simpatias ideológicas
camos sustentar é que, não obstante pertencentes a um todo homogêneo ou apreciações intelectuais, não se
a presença de intelectuais de direita e monolítico, devendo-se, pelo con- pode ignorar os meandros de pers-
não seja um fenômeno novo na história trário, ser ressaltadas as diferen- pectivas que atravessam tão gran-
do Brasil, o protagonismo no debate ças, particularidades e heteroge- de parte do espectro social, sob pena
público dos autores aqui analisados neidades em suas formas de inscri- de perder elementos fundamentais
é uma novidade, quer seja quando se ção na cena pública e nos argumen- para a compreensão do país que hoje
investiga a forma de inscrição deles tos por eles esposados nos debates desponta no horizonte.
na imprensa, na internet, nas rádios, travados com os diferentes setores
no mercado editorial e nos diferentes da esquerda brasileira. Nesse sen- Jorge Chaloub é professor do IBMEC-RIO.
institutos de perfil liberal que se for- tido, ainda que seja possível identifi- jchaloub84@gmail.com
taleceram ao longo dos últimos anos, car pontos de aproximação em suas Fernando Perlatto é Professor do Departa-
quer seja quando se considera a re- agendas – crítica ao papel do Esta- mento de História e do Programa de Pós-Gra-
duação em História da Universidade Federal
tórica e os argumentos por eles mo- do na regulação do livre mercado, na de Juiz de Fora (UFJF).
bilizados no debate público que, se promoção da redistribuição de ren- fperlatto@yahoo.com.br

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NOTAS DE RODAPÉ

1. Assumimos neste texto uma concepção de “in- viram seu número e influência crescer exponen- (...) Em contrapartida, os representantes das cor-
telectual” abrangente, privilegiando uma dimen- cialmente na década de 2000. Sobre o tema ver: rentes opostas, conservadoras ou reacionárias,
são mais analítica do que normativa, encarando- THUNERT, 2003; MORAES, 2015, ROCHA, 2015. conforme fui descobrindo com ainda maior sur-
-o como uma “categoria social definida por seu presa, eram quase invariavelmente seres huma-
papel ideológico”, ou seja, como “produtores di- 6. Disponível em http://www.institutomillenium. nos de alta qualidade moral, atestada não só na
retos da esfera ideológica, os criadores de pro- org.br/institucional/parceiros/ idoneidade do seu trabalho intelectual, (...) mas
dutos ideológico-culturais”, o que engloba “es- também nas circunstâncias do cotidiano e nos
critores, artistas, poetas, filósofos, sábios, pes- 7. A crítica ao relativismo é um argumento reite- testes mais rigorosos da existência (...)” (CAR-
quisadores, publicistas, teólogos, certos tipos de rado de certo conservadorismo. Um bom exemplo VALHO, 2013, p. 137-138).
jornalistas, certos tipos de professores e estu- é a longa argumentação de Leo Strauss (2008)
dantes etc.” (LÖWY, 1976, p.1-2). contra os pressupostos historicistas e relativis- 13. “O projeto do governo mundial é originaria-
tas abraçados por Max Weber. mente comunista, e os grupos econômicos oci-
2. O termo “direita” é aqui utilizado, de maneira dentais que se deixaram seduzir pela ideia, es-
mais ampla, a designar uma perspectiva crítica 8. O relativismo não passa, segundo Olavo de perando tirar proveito dela, sempre acabaram
em relação a determinados valores e orienta- Carvalho de recente moda: “Educado nos prin- financiando movimentos comunistas ao mesmo
ções políticas comumente associadas ao chama- cípios do relativismo, (...) tive enorme dificuldade tempo que expandiam globalmente seus próprios
do campo progressista e à “esquerda”, a exemplo de admitir que no mundo há pessoas muito boas negócios. As fundações Ford e Rockefeller são os
da defesa do papel do Estado (1) na regulação do e pessoas muito más, separadas por um abismo exemplos mais notórios. (...) Uma coisa é certa:
livre mercado, (2) na promoção da redistribuição irredutível. Hoje em dia, quem quer que proclame nos anos setenta e oitenta, a globalização pare-
de renda, (3) na execução de políticas afirmativas em voz alta a existência dessa diferença, que sal- cia favorecer os EUA, mas, na década seguinte,
orientadas para a inclusão de “minorias”. Ainda ta aos olhos na vida diária, é imediatamente acu- ela tomou o rumo bem claro de uma articulação
que com perspectivas diversas, todos os intelec- sado de ‘maniqueísmo’.” (CARVALHO, 2013, p. 59) mundial antiamericana e, por tabela, anti-israe-
tuais analisados neste artigo se identificam na lense.” (CARVALHO, 2013, p. 154)
crítica a um ou a todas estas três perspectivas 9. O diagnóstico acerca da ausência do liberalis-
políticas identificadas com o campo progressis- mo no Brasil é, aliás, tema comum no discurso 14. “Não resta dúvida de que os tucanos são me-
ta. É especialmente relevante destacar o fato de dos principais think tanks da nova direita, como lhores do que os petistas, de que o PSDB é uma
que esses intelectuais não renegam, sob a pecha o Instituto Millenium e o Instituto Liberal, e jus- esquerda mais civilizada e que respeita em parte
de um arcaísmo retórico, como o faziam outrora, tificativa para a fundação do Partido Novo. Não o mercado. Mas, ainda assim, a agenda do PSDB
por exemplo, Carlos Lacerda e José Guilherme à toa Constantino está vinculado a essas insti- está muito distante do liberalismo que funcionou
Merquior, a divisão da sociedade entre direita e tuições. Em outro texto, o autor identifica as su- como alavanca para o progresso ocidental.” (CON-
esquerda, este, por sua vez, um usual mote de postas razões do nosso atraso: “Esse precon- STANTINO, Rodrigo, Quem teme o novo?”. O Globo,
intelectuais vinculados a tal campo ideológico. ceito ideológico anticapitalista tem sido o gran- 29/09/2015) “Nas próximas eleições, por exemplo,
A maior parte dos intelectuais aqui analisados de responsável por nossa incapacidade de mi- o país terá de optar novamente entre PT e PSDB,
reforça, em seus discursos, a divisão entre es- grar para o time dos países desenvolvidos (...). O isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no
querda e direita, assim como requer e mobiliza Brasil testou vários “ismos” (...) O que realmente ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou
orgulhosamente o título de direitistas, colocan- ainda não experimentamos foi mesmo o capita- como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a
do sobre a esquerda o peso dos problemas en- lismo liberal.” (CONSTANTINO, 2015b) “p... que não pariu”...” (CARVALHO, 2013, p. 576).
frentados pelo país.
10. Cabe lembrar que a ampla responsabilização 15. O tema é recorrente nos textos do acadêmi-
3. “A doutrina neoconservadora, que ao longo das forças de esquerda pelas mais diversas ma- co Pondé: “As ciências humanas se tornaram
dos anos 1970 se infiltrou no nosso cotidiano po- zelas é uma das características dos neoconser- incapazes de dialogar com a realidade. Criaram
lítico por meio da imprensa, segue um esquema vadores alemães segundo a obra acima citada um ‘mundinho bobo de teses emancipatórias’ a
simples. De acordo com ela, o mundo moderno de Jürgen Habermas. serviço da masturbação intelectual. Afirmam
se restringe ao progresso técnico e ao cresci- que tudo é ‘construção social’, mesmo que uma
mento capitalista; moderna e desejável é toda di- 11. “após a ditadura, a esquerda tinha nas mãos pedra lhes caia sobre a cabeça todo dia. O nome
nâmica social que remonta, em última instância, as universidades, as escolas, as redações de jor- disso é surto psicótico” (PONDÉ, 2015).
aos investimentos privados; carecem de proteção nal, grande parte dos tribunais e os principais
também as reservas motivacionais das quais se partidos políticos (PT e PSDB são filhotes da es- 16. Foram dois livros sobre o tema: VILLA, 2003, 2014.
nutre essa dinâmica. E, contrapartida, são imi- querda).” (PONDÉ, 2012, p. 81)
nentes os perigos provocados pelas mudanças 17. Deve-se ressaltar que Villa constrói visão bem
culturais, pelas mudanças de motivação e nas 12. “Quem quer que estude as vidas de cada um mais amena do que outros intelectuais da nova
atitudes, dos deslocamentos nos padrões valo- deles descobrirá que Voltaire, Diderot, Jean-Jac- direita, já que ele reconhece a dificuldade da di-
rativos e identitário, atribuídas a uma irrupção ques Rousseau, (...) Noam Chomsky e tutti quanti reita em lidar com a democracia de então e des-
de inovações culturais no mundo da vida, criando foram indivíduos sádicos, obsessivamente men- taca o papel relevante das forças sociais envolvi-
assim curtos-circuitos. Por isso, as reservas da tirosos, aproveitadores cínicos, vaidosos até a das no processo de redemocratização. Não é sim-
tradição deveriam ser congeladas na medida do demência, desprovidos de qualquer sentimento ples, entretanto, coordenar a produção do autor
possível.” (HABERMAS, 2015, p. 83-84) moral superior e de qualquer boa intenção por sobre o período com as ilações que ele constrói
mais mínima que fosse, exceto, talvez, no sentido sobre o período atual, que também chama de di-
4. Em obra mais recente, Jacques Rancière (2014) de usar as palavras mais nobres para nomear tadura, já que Villa muitas vezes parece sugerir,
analisa intelectuais de perfil semelhante aos abor- os atos mais torpes. Muitos cometeram assassi- com total desprezo ante a experiência democrá-
dados por Habermas, preocupados, sobretudo, natos pessoalmente, sem jamais demonstrar re- tica recente, que o cenário contemporâneo é tão
com a conjunção, em certos autores, do elogio morso. Outros foram estupradores ou explora- ou mais nefasto às liberdades individuais quanto
à expansão global autocrática de governos di- dores de mulheres, opressores vis de seus em- o período autoritário.
tos democráticos e com a recusa a qualquer ex- pregados, agressores de suas esposas e filhos.
pansão mais significativa da democracia social. Outros, orgulhosamente pedófilos. Em suma, o 18. “Tudo na vida de uma democracia depende do
panteão dos ídolos do esquerdismo universal seguinte: os cidadãos deixam-se mais facilmente
5. O modelo seguido parece ser o dos think tanks era uma galeria de deformidades morais de fa- persuadir por provas e documentos ou por um
conservadores americanos e canadenses, que zer inveja à lista de vilões da literatura universal. sorriso sarcástico de superioridade vagamen-

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te atemorizante? O sucesso de Barack Hussein portas da democracia e da participação” (CAR- 23. A demanda das classes mais pobres por um
Obama nos EUA, bem como o do Foro de São Pau- VALHO, 2013, p. 244). Estado fortemente interventor é um dos argu-
lo na América Latina, deveu-se inteiramente ao mentos esposados por SINGER, 2012. Em recen-
predomínio da segunda hipótese. Lá como cá, a 21. “O que separa da humanidade normal os te pesquisa sobre as manifestações que ocorre-
grande mídia, em massa, esquivou-se à obriga- abortistas, gayzistas, globalistas, marxistas, li- ram no dia 16 de agosto, Pablo Ortellado e Esther
ção elementar de investigar e informar, preferin- berais materialistas e outras criaturas afeta- Solano também identificaram no público, majori-
do um jogo de cena destinado a inibir, mediante a das de “mentalidade revolucionária” não é uma tariamente pertencente às faixas mais altas de
ameaça velada da humilhação e do ridículo, to- questão de opinião ou crença: é uma diferença renda, uma forte simpatia à forte presença do
das as perguntas politicamente indesejadas. (...). mais profunda, de ordem imaginativa e afetiva.” Estado nas áreas da saúde e da educação. (OR-
Leiam as atas do Foro de São Paulo. Cuba gover- (CARVALHO, 2013, p. 181) TELLADO, SOLANO, 2015)
na o continente.” (CARVALHO, 2013, p. 253-254).
22. “As feministas, por meio do politicamente cor- 24. “...a democracia brasileira é um doente em es-
19. Um bom exemplo é BILAC PINTO, 1964. reto, tentam nos convencer de que gênero é so- tado quase terminal. O jogo normal de esquerda
mente uma “construção social”, que segue uma e direita, que permite a continuidade do proces-
20. Como neste texto de 2009: “a maioria abso- criação arbitrária machista para o domínio pa- so democrático e mantém os extremismos sob
luta dos brasileiros, especialmente jovens, é um triarcal. Besteira! Meninos, desde muito cedo, rédea curta, foi substituído por um sistema de
eleitorado maciçamente conservador desprovi- mostram certas tendências diferentes das me- controle monopolístico não só do poder estatal
do de representação política, de ingresso nos de- ninas no que diz respeito às brincadeiras. Até como da cultura e da mentalidade pública; con-
bates intelectuais e de espaço na ‘grande mídia’. com outros animais isso acontece. Hormônios trole tão eficiente que já não é percebido como
É um povo marginalizado, escorraçado da cena talvez expliquem a diferença.” (CONSTANTINO, tal” (CARVALHO, 2013, p. 99-100).
pública por aqueles que prometeram abrir-lhe as 2013 p. 206)

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janeiro
aneirO • fevereiro • março 2016 41
Sistema
ELEITORAL &
FINANCIAMENTO
DE CAMPANHAS
desventuras do poder
legislativo sob um
hiperpresidencialismo
consociativo

Bruno P. W. Reis
Cientista Político

42 Nostradamus
janeirO • fevereiro • março 2016 43
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
rriscar um diagnóstico sobre a ope- te descontrole sobre o financiamento das campanhas
ração do Poder Legislativo brasileiro eleitorais, cujos malefícios ramificam-se e impregnam
ao longo dos últimos vinte anos, sob a máquina pública brasileira.
a vigência da Constituição Federal de Não pretendo aqui contestar as linhas básicas do
1988, é buscar um penoso equilíbrio entre percepções diagnóstico acadêmico predominante quanto à – diga-
agudamente contraditórias. mos – capacidade operacional de nosso sistema político
De um lado porque, à primeira vista, observando a em seu dia a dia: os governos têm conseguido maiorias
paisagem que se depreende dos meios de comunicação razoáveis, e as decisões (pelo menos as mais cruciais
de massa, o Poder Legislativo corre o sério risco de vir a para se manter a máquina operando no curto prazo) têm
ser considerado o “patinho feio” das celebrações daqui- podido ser tomadas. Temos sido, nas últimas décadas,
lo que alguns arcaicos chamariam – sugestivamente – o poupados de impasses decisórios dramáticos, de crises
Jubileu de Porcelana de nossa Constituição. A naturali- políticas com desfechos institucionais imprevisíveis, e do
zação do hábito de falar mal dos políticos talvez não seja recurso à força das armas para a arbitragem de confli-
o menor dos benefícios que a democracia terá trazido ao tos políticos. Considero esta uma conquista real, a que
mundo moderno – e é frequente que a imagem dos par- nem sempre damos a devida atenção. Não me inclino,
lamentares junto à opinião pública seja ainda pior que a portanto, por amesquinhar este feito, mas simplesmente
dos governantes. O Brasil não tem sido exceção, mas re-
ceio que, nos últimos tempos, a banalização da ideia de
que os políticos são um amontoado de bandidos tenha
chegado a um ponto que arrisca comprometer grave-
mente a autoridade (no sentido arendtiano) do sistema.
Por outro lado (e talvez, em parte, por essa mesma
razão), o Brasil assistiu nos últimos anos a uma bem-vin-
da expansão da literatura acadêmica dedicada a estudos
legislativos. Favorecida pela informatização das bases
de dados do Congresso Nacional, essa literatura conhe-
ceu rápida diversificação temática, e crescente apuro
técnico no tratamento dos dados. Tudo bem, não fosse
o fato de que a literatura corrente – liderada pelas pes-
quisas conduzidas por Argelina Figueiredo e Fernando
Limongi – tem-se inclinado por sublinhar as funcionali-
dades do sistema, em contraste com a impressão intui-
tivamente disseminada.
De fato, o sistema político que hoje opera no Brasil
reúne uma série de atributos paradoxais, e continua a
desafiar nossa capacidade de diagnóstico. Assim, este
texto, mais que se debruçar especificamente sobre os
dispositivos dedicados ao Poder Legislativo em nossa
“Constituição Cidadã”, busca alguma síntese orientada
antes por apontar aquele que talvez seja o calcanhar
de Aquiles da representação política no Brasil: o paten-

44 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tecer uma série de conjecturas relacionadas à ideia de por iniciativa da Câmara, muito mais que do Executivo.
que a crise de legitimidade difusamente percebida guar- Depois, mais fundamentalmente, argumento aqui que
da relação com nossa “conexão eleitoral” – sobretudo há razões de sobra para isso. De um lado, o descontro-
com uma aguda incapacidade das instituições vigentes le sobre o financiamento de campanhas no Brasil cons-
para coibirem, de modo eficaz, abusos de poder econô- titui ameaça permanente às carreiras políticas de nos-
mico em nossas campanhas eleitorais. sos parlamentares; do outro, a fragilidade das banca-
Ainda que de maneira largamente especulativa, que- das que emergem das urnas (cuja relação de forças é
ro também polemizar contra uma percepção, um tan- negociável no momento pós-eleitoral) aumenta o cacife
to disseminada principalmente junto aos meios de co- político do Poder Executivo junto ao Congresso em bus-
municação (colunismo incluído), que aponta os nossos ca da maioria de que precise.
congressistas como os principais beneficiários do sta- Assim, este capítulo inicia-se por uma breve con-
tus quo quanto à operação do sistema eleitoral e, con- textualização apoiada nos termos que têm orientado o
sequentemente, como o principal locus da resistência a debate acadêmico sobre o Poder Legislativo no Brasil.
mudanças. De minha parte, sou cético. Liminarmente, a Em seguida, a partir de uma descrição das linhas mes-
chamada “reforma política” tem-se mantido na agenda tras e da rationale aparente do último projeto abran-
política, e na pauta do Congresso Nacional, sobretudo gente de reforma eleitoral a tramitar na Câmara (o PL

o descontrole sobre
o financiamento de
campanhas no Brasil
constitui ameaça
permanente às carreiras
políticas de nossos
parlamentares

janeirO • fevereiro • março 2016 45


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

2.679/2003, apoiado em listas partidárias fechadas e rio na Câmara dos Deputados, eles mostraram que o go-
financiamento exclusivamente público das campanhas), verno brasileiro tem obtido, desde 1988, altíssimo grau
o texto permite-se uma digressão um tanto abstrata so- de aprovação de suas matérias no Congresso, com ta-
bre o problema geral do financiamento de campanhas xas de sucesso comparáveis às de qualquer governo de-
em democracias, com o propósito de enquadrar a dis- mocrático; que os partidos brasileiros se comportam no
cussão subsequente, rumo a um diagnóstico preliminar plenário de maneira disciplinada quanto aos encaminha-
do estado de coisas no Brasil quanto a essa matéria, e mentos dos líderes, e consistente com uma classifica-
suas presumíveis consequências, tanto para a opera- ção espacial de sua posição ideológica no eixo esquer-
ção do Legislativo quanto para a sua apreensão pela da-direita; que o plenário é, portanto, previsível – e que
opinião pública hoje. o governo brasileiro tem, tanto quanto qualquer outro
governo, conseguido aprovar aquelas matérias pelas
Do “Presidencialismo de Coalizão” a quais efetivamente se empenha.
um “Hiperpresidencialismo Consociativo” O curioso, entretanto, é que os achados de Figuei-
Com o perdão do plagiarismo filosófico, não será redo e Limongi não chegam a desautorizar, pelo menos
de todo injusto dizer que a literatura sobre a operação não em termos teóricos, o ceticismo do diagnóstico de
de nosso sistema político – especialmente no que toca Abranches. Pois a principal razão por eles apontada para
ao funcionamento da Câmara dos Deputados e sua re- a estabilidade e o sucesso dos governos brasileiros em
lação com o Poder Executivo – terá sido despertada de sua relação com o Congresso reside em dispositivos adi-
seu “sono dogmático” pelos trabalhos de Argelina Fi- cionais, específicos à ordem jurídica posterior a 1988
gueiredo e Fernando Limongi.1 Com saudável escrúpulo – e obviamente ausentes, portanto, da caracterização
empírico, eles trataram de submeter a escrutínio siste- feita por Abranches em 1988, com o propósito de des-
mático uma série de teses decorrentes de um diagnós- crever a experiência democrática brasileira até ali, en-
tico pessimista sobre o sistema político brasileiro que trecortada que fosse. Esses novos dispositivos incluem
– com variadas formulações ou ênfases – tinha ampla uma considerável centralização de prerrogativas nas
circulação antes deles: que nossos partidos eram arre- mãos tanto dos líderes partidários no Congresso quan-
medos de partidos, sem consistência organizacional ou to, sobretudo, do próprio Presidente da República, em
disciplina em plenário; que a agenda de nossos gover- parte resultantes do regime autoritário anterior. Além
nos era travada por uma rede imanejável de interesses da instituição do Colégio de Líderes, assim como de uma
particularísticos que dominavam o Congresso Nacio- série de novas competências dos mesmos líderes quan-
nal. Mais fundamentalmente, alegava-se com frequên- to à designação de membros de comissões, estes novos
cia que a mistura específica que caracterizava a nos- dispositivos incluem as prerrogativas presidenciais de
sa experiência republicana – presidencialismo, federa- editar medidas provisórias, iniciar matéria orçamentá-
lismo, multipartidarismo, bicameralismo e representa- ria e requerer urgência em matérias de seu interesse,
ção proporcional, que Sérgio Abranches (1988) batiza- assim como propor emendas constitucionais (Figueiredo
ra como “presidencialismo de coalizão” – impunha pe- & Limongi 2006: 252-7). Na prática, a presença desses
sados ônus sobre o governo, dificultando sua operação dispositivos resulta em grande concentração do poder
e tornando-o particularmente propenso a crises pelas de agenda no Executivo – contrabalançando o efeito pa-
dificuldades em produzir maiorias sólidas e estabilidade ralisante diagnosticado por Abranches na conjunção de
política. Figueiredo e Limongi argumentaram persuasi- nossos traços institucionais básicos. Mas se esses dis-
vamente que semelhantes temores não se justificavam: positivos excepcionais são de fato necessários para a
descendo à análise de dados sobre votações em plená- produção de maiorias em nosso sistema, então se pode

46 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

presumir que o diagnóstico básico se mantém, em algu- ver? Com efeito, se se trata apenas de produzir maiorias
ma medida. E que, na ausência deles, o Congresso Na- e decidir rotineiramente, evitando paralisias decisórias,
cional, tal como é hoje constituído, de fato se enredaria Figueiredo e Limongi nos mostram de maneira convin-
numa trama confusa de interesses relativamente paro- cente que nosso sistema funciona – e que portanto é
quiais, difícil de deslindar rumo à produção de maiorias possível que essas coisas todas coexistam estavelmente,
políticas minimamente estáveis e relativamente previsí- contrariamente ao que sugeria a literatura. Mas, como
veis. É como formulou verbalmente meu colega Deivison é óbvio, essa dimensão – embora incontornável – não
de Souza Cruz: “Ninguém precisa de camisa de força, a é a única pela qual se pode avaliar um sistema político.
não ser pra segurar um doido.” Particularmente um sistema que se queira democrático.
Assim, permanece um problema: se, para manter- Para mantermos a parcimônia neste ponto e evi-
mos funcionando o sistema presidencialista, multiparti- tarmos listas um tanto arbitrárias de atributos desejá-
dário, federativo, bicameral, proporcional caracterizado veis de um regime democrático, cabe reportarmo-nos
por Abranches (e com lista aberta), o preço a ser pago ao muito conhecido enquadramento que Arend Lijphart
é concentrar de maneira dramática o controle da agen- (1984, 1999) proporciona à análise política comparada.
da legislativa nas mãos de uns poucos atores estratégi- Muito fundamentalmente, Lijphart identifica dois impe-
cos (sobretudo nas do próprio Presidente da República), rativos a que podem servir as instituições políticas. De
qual é o propósito de se manter tudo isso? Para inglês um lado, um imperativo de natureza decisionística, volta-
do para a viabilização de decisões e do exercício do po-
der por uma autoridade constituída por alguma maio-
ria que a legitime: o princípio majoritarista. Do outro
lado, um imperativo de natureza consociativa, voltado
para a desconcentração do poder e a proliferação de
pontos de veto, que induzam persuasão e barganha en-
se o preço a ser tre atores-chave do processo político, de modo a evitar

pago é concentrar decisões unilaterais potencialmente tirânicas: chame-


mo-lo o princípio consensualista. Mais abstratamente
de maneira ainda, pode-se apontar nesse enquadramento a postu-
dramática o lação de uma dimensão subjacente a todas as institui-
controle da ções políticas, cujos formuladores têm de decidir sobre
agenda legislativa a concentração ou dispersão relativa de pontos de veto

nas mãos de uns no sistema.2 Dispositivos de inspiração consensual dis-


persam os pontos de veto; dispositivos de natureza ma-
poucos atores joritária os concentram. Como se pode intuitivamente
estratégicos, qual inferir, todo sistema político, considerado amplamen-
é o propósito de se te, consiste numa combinação peculiar de dispositivos
manter tudo isso? majoritários e consensuais, em busca de um desejável
equilíbrio – que lhe confira ao mesmo tempo capacida-
Para inglês ver?
de de ação e aceitação ampla.
De saída, é importante reconhecer que Figueiredo
e Limongi não afirmam pessoalmente um ponto de vista
que se possa dizer “majoritarista” no plano normativo –

janeirO • fevereiro • março 2016 47


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e com frequência os vemos a sublinhar positivamente rias para governar – e a um custo praticável, pelo me-
as eventuais derrotas e embaraços que chega a sofrer nos no curto prazo. Talvez, porém, esse custo ainda seja
o governo em sua relação com o Congresso. Mas é ine- relativamente alto, ou – dito de outra forma – talvez haja
quívoco que o foco básico da controvérsia em que eles razões para crer que ele possa ser significativamente
se veem metidos, já há uma década, consiste em afirmar reduzido: pois receio que o preço pago por nossa “go-
que o nosso governo governa – sugerindo uma polêmi- vernabilidade” nos moldes atuais seja a concentração
ca implícita contra uma tese inicial de inspiração funda- da competência legislativa na figura do Presidente da
mentalmente majoritarista: eles polemizam com autores República – a um ponto que roça o aviltamento da ativi-
que afirmavam que o governo brasileiro (com seu presi- dade parlamentar, e arrisca desmoralizar gravemente o
dencialismo multipartidário) não conseguiria as maiorias Congresso Nacional aos olhos da opinião pública. O que,
necessárias para governar – ou que somente as conse- patentemente, já está acontecendo. É sabido hoje que a
guiria a um custo impraticável (Linz 1990, 1991; Sartori iniciativa (e mesmo a primazia) legislativa, sob o regime
1993, 1994; Lamounier 1994). da Constituição de 1988, reside – em termos práticos
Figueiredo e Limongi nos mostraram de maneira – na Presidência da República. Para além da compe-
convincente que isto não necessariamente se dá: o go- tência privativa para iniciar legislação em matéria or-
verno brasileiro consegue de fato as maiorias necessá- çamentária, e do instituto da medida provisória (de fato
fortalecido a partir de 2001, quando se pretendeu miti-
gá-lo, como mostram Pereira, Power & Rennó 2008), há
também prioridade na tramitação de projetos de inicia-
tiva do Executivo, concedida pelo Regimento da Câma-
ra, além de todas as vantagens estratégicas quanto ao
controle de recursos de patronagem, próprios do Exe-
a falta de genuíno cutivo em qualquer parte do mundo. Nesse quadro, o
Poder Legislativo, em que pese o seu nome, fica reduzi-
protagonismo
do ao papel de chancela ou – ocasionalmente – veto às
legislativo iniciativas governamentais. Mas a falta de genuíno pro-
do Congresso tagonismo legislativo do Congresso torna-o, mais roti-
torna-o, mais neiramente, uma caixa de ressonância das polêmicas
rotineiramente, públicas, além de casa fiscalizadora dos atos do gover-
no – sobretudo pela infeliz banalização das CPIs, com-
uma caixa de
preensível em tal contexto.
ressonância das Mesmo sem pretender descurar da dimensão “ma-
polêmicas públicas, joritarista” do problema (pois sistemas políticos, obvia-
além de casa mente, devem ser capazes de produzir decisões), é im-
fiscalizadora dos portante buscar um enquadramento equilibrado do sis-
tema, com igual atenção a ambas as dimensões: avalian-
atos do governo
do, sim, sua capacidade de governar, de tomar decisões
tempestivas quanto à agenda pública, mas também a ca-
pacidade de fazê-lo sem prejuízo grave para o exercí-
cio do veto por minorias relevantes em pontos cruciais
do processo – que force a eventual maioria a ouvi-las.

48 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Caso contrário, corremos o risco de endossar um sis- so sistema político. Vinte anos depois, voltando a refle-
tema que, embora aparentemente operacional, aliena tir um pouco sobre essa expressão, acredito que pou-
apoio progressivamente, à medida que o tempo passa. cos de nós insistiríamos em classificar essa conjunção
Duvido que nosso sistema se saia bem nesse escru- como imprópria ou anômala (a rigor, nem mesmo Abran-
tínio: o equilíbrio que logramos alcançar nos joga rumo ches chegou a fazê-lo de fato). Mas de fato temos vivido
a extremos. De um lado, como Figueiredo e Limongi nos sob um sistema atípico, que reúne um grau extraordi-
mostram, o Regimento da Câmara e a Constituição de nário de controle da agenda política nas mãos do Pre-
1988 contêm dispositivos que asseguram extraordiná- sidente da República e uns poucos atores políticos adi-
rio poder de agenda para o Presidente da República, cionais, e − fora isso − opta sistematicamente por dis-
ele mesmo eleito por voto direto de âmbito nacional em positivos institucionais que Lijphart chamaria consocia-
dois turnos. Do outro, dispomos de um sistema eleitoral tivos, que dispersam poder: um “hiperpresidencialismo
extremamente descentralizador no preenchimento das consociativo”?...
cadeiras parlamentares: representação proporcional, Carlos Pereira e Bernardo Mueller (2003) já se refe-
em 27 distritos estaduais, com listas abertas e compe- riram em linhas análogas àquilo que Lucio Rennó (2006)
tição intensa (e crescente), fortemente pulverizada en- descreveu como “incentivos institucionais contraditó-
tre muitíssimos candidatos disputando entre si as ca- rios” presentes no sistema eleitoral brasileiro, que não
deiras de deputados por cada estado. Fabiano Santos, obstante – segundo eles – gerariam um regime político
em linha análoga, tem insistido na relevância de se reve- estável e equilibrado. Acredito que, até pela percepção
rem rumo a uma desconcentração de prerrogativas os externa das justificações normativas do regime, alcan-
instrumentos normativos que regulam a relação entre çaríamos equilíbrio mais confiável se nos dispusésse-
os poderes, a bem de uma redução da desorganização mos a dotar as eleições parlamentares de um nível mais
de nossa vida partidária. Fundamentalmente, ele suge- alto de concentração de poder, sobretudo intensifican-
re que se poderia distribuir “de maneira mais equânime do o protagonismo partidário nas campanhas eleito-
o poder alocativo entre o Executivo e comissões do Le- rais, visando a constituir um parlamento mais estrutu-
gislativo”, assim como onerar o acesso a postos minis- rado, povoado de atores coletivos mais poderosos que
teriais, talvez pela perda do mandato parlamentar (San- hoje – em condições, talvez, de dispensar os extraordi-
tos 2006: 295). Pessoalmente, como está claro, compar- nários poderes de agenda até aqui conferidos ao Exe-
tilho sua preocupação. Receio, contudo, que a conexão cutivo brasileiro. Em suma, estaríamos mais próximos
eleitoral constitua-se em variável incontornável na mu- de um regime equilibrado de concentração/dispersão
dança da relação de forças entre Executivo e Legislati- de pontos de veto se combinássemos um sistema eleito-
vo vigente no Brasil. ral que não se permitisse dispersar tanto o poder com
É improvável que a melhor forma de se equilibrar um formas de regulação interna da vida parlamentar que
sistema político representativo possa consistir na pro- não precisassem concentrar tantas prerrogativas nas
dução de uma compensação extremada entre um sis- mãos do Presidente e dos líderes.
tema eleitoral fortemente inclinado à dispersão de po-
der no preenchimento das cadeiras parlamentares, de A Crise de 2005 e a Reforma Política
um lado, e regras fortemente concentradoras na regu- O sistema político hoje vigente no Brasil porta con-
lação da operação do Congresso e de sua relação com sigo, assim, uma profunda ambivalência não apenas em
o Executivo, do outro. Depois do artigo de Sergio Abran- sua apreensão pública, mas em sua própria lógica cons-
ches (1988), banalizou-se a expressão “presidencialismo titutiva: em seus traços mais grossos, visíveis à distância,
de coalizão” para descrever o modus operandi de nos- trata-se de um sistema descentralizado e que dispersa

janeirO • fevereiro • março 2016 49


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

poder; nas suas engrenagens mais miúdas, discerníveis dos primeiros resultados de Figueiredo e Limongi, hou-
apenas por um exame mais detido, descobre-se um sis- ve um nítido reforço na atmosfera de ceticismo quanto
tema fortemente centralizado, que concentra extraor- às reformas – que talvez tenha tido o mérito de nos im-
dinárias prerrogativas no topo da hierarquia. Pior: es- pedir de embarcar às cegas em experimentos institu-
ses dispositivos microscópicos, reconhecíveis apenas cionais de consequências imprevisíveis. Somando-se a
para o especialista ou o insider, parecem ter-se consti- isso a desconfiança política com que um intelectual do
tuído até aqui em sua condição mesma de estabilidade. porte de Wanderley Guilherme dos Santos já vinha des-
Em princípio, essa ambivalência normativa pode- de antes (1994) recebendo as sugestões de mudanças
ria ser relegada a segundo plano – desde que o siste- na legislação eleitoral, produziu-se no país um clima in-
ma continuasse indefinidamente a produzir as maio- telectual muito peculiar quanto a essa matéria. De um
rias e as decisões necessárias à sua operação. Talvez lado, uma deterioração progressiva da imagem dos po-
sim, não fosse a possibilidade de vir a converter-se ela líticos e do sistema político junto à opinião pública; do
mesma num fator de corrosão e, no devido tempo, de outro, uma disseminação crescente, entre os profis-
risco para o sistema cuja operação rotineira favorece. sionais da ciência política, do referido ceticismo quanto
Suspeito que já temos testemunhado a operação desse às possibilidades de solução de nossos males por uma
efeito – com a erosão continuada da imagem dos políti- reforma política.
cos, dos partidos e do Congresso junto à opinião públi- Muito se aprendeu sobre o funcionamento de nosso
ca, revestida de tonalidades mais dramáticas ao longo sistema político ao longo desses anos, sob essa atmos-
dos últimos três anos. fera cética. Quando, porém, sobreveio a crise de 2005,
Pois receio que a bonança econômica e a excepcional a comunidade da ciência política – talvez em virtude de
popularidade desfrutada pelo Presidente Lula ao longo seu até então saudável conservadorismo na matéria –
de seu segundo mandato tenham favorecido certa miti- reagiu de maneira um tanto defensiva (foi possível ouvir
gação – ou adiamento – dos impactos potenciais da cri- colegas de profissão na televisão a alegar que a crise
se política deflagrada com a denúncia do dito “mensalão” era moral...), e falhou em dar a importância necessária
pelo ex-deputado Roberto Jefferson. De saída, parece- ao deslocamento que a crise produzia no enquadramen-
-me que esses impactos foram fundos o bastante para to da questão. Deixou-se pautar pela apropriação mais
dividir a história do debate recente sobre reforma polí- imediatamente jornalística da crise (quem sabia o quê...
tica no Brasil em dois momentos: antes e depois da cri- quem seria punido ou não... os desdobramentos para
se política de 2005. Até o escândalo, a reforma política, 2006...) e não sublinhou com a devida ênfase a face ins-
independentemente do juízo que se faça sobre sua real titucional do escândalo.
importância para o país, era um esporte cultivado por Pois um aspecto relevante da crise de 2005 diz res-
alguns intelectuais e uns poucos políticos especialmen- peito ao fato de ela ter sido uma crise com importantes
te insatisfeitos com as regras vigentes. De fato, é preci- ramificações institucionais. Mais do que, por exemplo,
so reconhecer que sua importância terá sido exagerada a crise que levou ao impeachment de Fernando Collor.
por espíritos mais inclinados a aderir com entusiasmo E isso independentemente do juízo que façamos sobre o
a fórmulas mágicas, verdadeiras panaceias que – por desempenho das instituições no episódio, ou mesmo da
encanto – resolveriam nossos males. ausência de qualquer ameaça mais palpável à norma-
Predominantemente, a comunidade de cientistas lidade institucional. Pois a crise de 1992 dizia respeito
políticos costuma reagir com louvável ceticismo a es- sobretudo a acusações de achaques, feitos por pessoas
sas especulações, e tende a participar do debate com a ligadas ao presidente, sobre fornecedores do governo,
devida sobriedade. Particularmente depois da aparição com vistas a enriquecimento pessoal. Após o dramáti-

50 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

co desfecho, o sistema político podia gabar-se de ha-


ver detectado e neutralizado a atuação da quadrilha –
mesmo ao preço do mandato do Presidente da Repúbli-
ca. As instituições pareciam robustas e sadias, portanto
– cumprindo devidamente o papel que delas se espera.
Já em 2005, embora os desdobramentos da crise O combate à
não tenham chegado ao ponto de derrubar o presiden-
corrupção não
te, as denúncias se referiam muito mais diretamente ao
cerne do sistema político – e não poderiam ser sanadas
se pode apoiar
nem mesmo se Lula caísse, ou se todos os 513 deputa- na substituição
dos fossem cassados. Pois a crise dizia respeito, afinal, de “bandidos”
a dois temas institucionais básicos: o relacionamento en- por “mocinhos”,
tre os poderes Executivo e Legislativo, e o financiamen-
mas, sim, na
to das campanhas eleitorais no Brasil. Dificilmente po-
deria haver temas mais sensíveis para a operação das
implementação
democracias modernas – e cometeremos uma grave penosa e gradual
ingenuidade se imaginarmos que vícios graves de pro- de políticas
cedimento em temas institucionais tão centrais ao sis- anticorrupção
tema podem ser resolvidos com a simples troca dos fu-
lanos encarregados.
Pois o combate à corrupção não se pode apoiar na
substituição de “bandidos” por “mocinhos”, mas, sim,
na implementação penosa e gradual de políticas anti-
corrupção. Assim também devemos ter em mente que
vícios graves de conduta disseminados em pontos tão ção comparável ao problema, talvez mais fundamental,
sensíveis de nosso mapa institucional clamam por so- do financiamento das campanhas.
luções institucionais – e que, portanto, a crise de 2005 É difícil exagerar a gravidade do que está em jogo
nos defrontou com dois imperativos: um reexame cui- nessa matéria, especialmente após a crise de 2005. A
dadoso das regras que emolduram as relações Executi- admissão pública, oficial, de que a democracia brasileira
vo-Legislativo; e uma drástica intensificação do controle é incapaz de detectar o emprego em larga escala de re-
do financiamento das campanhas eleitorais. Bem a pro- cursos “não contabilizados” nas campanhas eleitorais (e
pósito, os juízes eleitorais têm desde então manifestado de que o governo brasileiro ocasionalmente pode recor-
renovada disposição de não tolerar abusos. Todavia, na rer a esses mesmos recursos para irrigar sua influên-
falta de inovações institucionais importantes na matéria, cia junto a congressistas) implica simplesmente admitir
promessas de rigor apenas seriam críveis se pudésse- que não somos capazes de controlar o abuso do poder
mos atribuir os descalabros anteriores a eventual má econômico na política brasileira. E portanto comprome-
vontade ou leniência do Judiciário no cumprimento do te as perspectivas de isolamento democrático do siste-
dever. Por seu turno, a ciência política brasileira recente ma político frente a influências espúrias provenientes
tem dedicado louváveis e intensos esforços ao mapea- das naturais (e, em nosso caso, profundas) desigualda-
mento das relações entre os poderes Executivo e Legis- des econômicas vigentes − produzindo uma grave fissu-
lativo – mas é forçoso admitir que não tem dado aten- ra na legitimidade do regime político junto à população.

janeirO • fevereiro • março 2016 51


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O Financiamento de Campanhas Eleitorais tória da humanidade, a riqueza e o poder normalmen-


Com efeito, é difícil imaginar tema mais relevan- te estão juntos: em muitas formações políticas, a osten-
te, mais árido, menos estudado e mais central à nossa tação de riqueza pessoal chega mesmo a ser requisito
conjuntura política que o financiamento de campanhas da autoridade política. O liberalismo formula a ambição
eleitorais. Para além das nossas próprias desventuras de separá-los na medida em que afirma serem todos
nessa área, escândalos com “caixa dois” de campanha iguais perante a lei, e ao mesmo tempo admite e enco-
têm abalado governos em todo o mundo. A nós, cientis- raja a busca do sucesso e da realização pessoal na es-
tas políticos, tipicamente intelectuais acadêmicos com fera econômica – o que fatalmente reproduzirá, neste
pequena familiaridade com os tecnicismos contábeis en- âmbito, intensa desigualdade. O desafio que disso resul-
volvidos, cabe abordá-lo com a devida humildade, e mo- ta, portanto, consiste em impedir que as assimetrias de
destamente tratar pelo menos de mobilizar alguns as- recursos assim reproduzidas não resultem automatica-
pectos normativos implicados – com um olho nos efei- mente em assimetrias sistemáticas no acesso ao poder
tos práticos, é claro. político – caso em que toda promessa de igualdade pe-
A primeira coisa a ser mencionada para um enqua- rante a lei redundaria numa grande fraude. A ambição
dramento fecundo do problema geral do financiamen- da separação total entre as fontes de poder econômico
to de campanhas eleitorais diz respeito a uma peculia- e de poder político acaba sendo, assim, um dos traços
ridade do sistema democrático de governo, consistente definidores da democracia moderna.
também com o ideário liberal que modernamente o con- Deve ser dito com clareza que o cumprimento desse
forma: trata-se da ambição – talvez extravagante – de ideal é uma tremenda exigência posta sobre a máquina
isolar a política das desigualdades que provêm da eco- do estado. Pois exige que se evite todo tipo de corrupção
nomia. É importante não perdermos de vista que, na his- (sintoma mais corriqueiro de contaminação entre os dois

52 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sistemas) e que se evite todo abuso de poder econômico na escala da estratificação social pode produzir em tor-
em eleições. De forma crua, envolve a capacidade de im- no de uma pessoa, e – naquilo que nos interessa aqui
por aos mais ricos o consentimento a decisões favoreci- – ao financiamento de campanhas. Quanto mais o pla-
das por uma eventual maioria pobre. Em seus traços mais no estrutural parece se mostrar inamovível, maior é a
simples, a solução institucional formal para o problema pressão por resultados no plano operacional. Assim, é
consiste em não se permitir a ninguém comprar cargos num saudável esforço de minimização de vieses “espon-
políticos – nem as decisões deles decorrentes. Para o tâneos” (ou antes, exógenos ao sistema político estrita-
preenchimento dos cargos, fazem-se eleições; para as mente considerado) que se justificam instrumentos como
decisões, segue-se – após debate – a vontade da maio- voto – ou pelo menos alistamento – obrigatório, subsí-
ria. Contudo, mesmo fazendo caso omisso da possibilidade dios públicos a campanhas eleitorais, quotas mínimas
de compra das decisões por simples atos de corrupção, de candidaturas femininas ou de minorias variadas etc.
ou de golpes de estado que impeçam pela força o cum- No que toca ao financiamento das campanhas, a
primento de resultados eleitorais – mesmo quando tudo própria suspeição intuitiva que paira sobre o sistema
corre bem, quando eleições são feitas e seus resultados eleitoral em toda parte faz com que a existência de le-
são acatados –, o problema fundamental que perdura é: gislação contra abusos de poder econômico em eleições
como evitar que as desigualdades provenientes da com- seja parte integrante do kit institucional de qualquer de-
petição econômica transbordem rumo ao sistema polí- mocracia contemporânea, em busca da minimização de
tico, influenciando sistematicamente os resultados elei- seu viés econômico – admitidamente presente, de forma
torais e enviesando o sistema político em favor das pes- tácita. Alguns regimes conseguem de fato, mais que ou-
soas mais ricas? Como evitar abuso de poder econômico tros, isolar as decisões políticas de influência econômi-
nas campanhas eleitorais? Muito fundamentalmente, é a ca indevida. Em tese, o maior ou menor sucesso nessa
essa meta que se dedica toda legislação sobre financia- tarefa dependerá de uma combinação mais ou menos
mento de campanhas em democracias. feliz da legislação sobre financiamento de campanhas,
Nenhum regime democrático, em tempo algum, em de um lado, com as características básicas do sistema
país algum, pode se gabar de haver atingido essa meta. eleitoral adotado, do outro. De modo que a conjectura
Acho que podemos, sem problemas, considerá-la de an- avançada por nossos parlamentares no PL 2.679/2003
temão inalcançável. O poder econômico e o poder políti- – quando propuseram modificar o sistema eleitoral para
co são como sistemas de vasos comunicantes, contra os acomodar uma modificação nas regras de financiamento
quais se podem construir diques mais ou menos efica- eleitoral – não era, em princípio, descabida. Mas o fato
zes, mas nunca perfeitamente isolantes – pois esta vin- é que estamos relativamente no escuro quanto a essa
culação opera simultaneamente em vários planos. Há matéria: o controle sobre o financiamento das campa-
um plano que se poderia dizer estrutural, que envolve nhas, particularmente em suas conexões com o dese-
a dependência do próprio bom andamento da economia nho do sistema eleitoral, segue como uma das agendas
em relação à remuneração adequada do investimento mais importantes a serem ainda perseguidas satisfato-
capitalista, de modo a produzir empregos, manter a eco- riamente pela ciência política contemporânea. A despei-
nomia crescendo e induzir novos investimentos futuros. to de valorosos esforços preliminares (como uma série
E também um plano mais operacional, que diz respeito de trabalhos de David Samuels, voltada principalmente
aos inevitáveis vieses decorrentes de assimetrias na para o caso brasileiro), um campo conceitual que rela-
propensão à participação política entre diferentes gru- cione possíveis efeitos recíprocos entre sistemas elei-
pos sociais (definidos por renda, raça, idade, educação torais e fórmulas de financiamento de campanhas não
etc.), às redes que o exercício de diferentes ocupações se encontra sequer mapeado.3

janeirO • fevereiro • março 2016 53


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Na proposta de 2003, com a adoção de lista fechada a tratar com naturalidade o fato de que um bilionário tem
para viabilizar o financiamento público exclusivo, nos- maiores chances de se eleger que um boia-fria, é preci-
sos deputados nos fizeram – a nós, cientistas políticos so lembrar que não há qualquer justificativa, em princí-
– uma pergunta direta sobre as relações entre sistema pio, para que isto seja assim. Dadas as inevitáveis desi-
eleitoral e modelo de financiamento de campanhas, que gualdades econômicas, a credibilidade da democracia
nós simplesmente não sabemos responder. A justifica- política dependerá de um permanente empenho em mi-
ção que acompanhava o projeto de lei 2.679/2003, as- nimizar assimetrias quanto ao condicionamento econô-
sinada pelo presidente da Comissão Especial de Refor- mico das chances eleitorais de seus cidadãos. O que de-
ma Política (2003: 20), afirmava expressamente: “O fi- veria nos conduzir não apenas à proibição da arrecada-
nanciamento público exclusivo é (...) incompatível com a ção de recursos privados pelos candidatos, mas, antes
sistemática atual do voto em lista aberta.” É mesmo? Se de tudo, à proibição da utilização de recursos próprios
for, será que o financiamento público exclusivo é uma em campanhas – e, portanto, ao financiamento exclusi-
boa solução, ou haverá outras providências que me- vamente público das campanhas eleitorais.
lhorem o controle sobre abuso de poder econômico em Há, porém, o risco de certo “esclerosamento” dos
campanhas eleitorais sem termos de recorrer prelimi- canais de representação a partir de seu exercício roti-
narmente a ele? Mesmo fora do financiamento público, é neiro, décadas a fio, por organizações burocráticas da-
verdade (em termos empírico-comparativos) que a lista das (os partidos “estabelecidos”), destinatárias legais de
fechada favorece o controle dos gastos de campanha? recursos públicos, independentemente – em certa medi-
Infelizmente, não chegamos a nos empenhar realmen- da – dos humores do eleitorado. Cabe sempre respeitar
te em responder aos deputados. De fato, sequer pare- a sombra que Weber, por intermédio de Michels, projeta
cemos nos dar conta de que a pergunta havia sido feita. sobre nós – e dotarmo-nos de salvaguardas contra uma
Certamente não seria este capítulo o lugar adequa- eternização estritamente burocrática das organizações
do para um enquadramento frontal do problema das re- partidárias. Isso pode tornar desejável que, sob tetos
lações entre sistemas eleitorais e esquemas de finan- estritos (e baixos) de contribuições por doador (candi-
ciamento de campanhas. Mas acredito ser oportuno o dato incluído), e com absoluta transparência em “tempo
esboço de algumas considerações preliminares, à guisa real” pela internet, preserve-se um espaço para doações
de hipóteses para uma apropriação fecunda da ques- privadas. Se admitirmos as mesmas premissas no que
tão entre nós. concerne às disputas por designações partidárias, po-
Se se aceita o igualitarismo político como um valor a demos operar de modo análogo também nesses casos,
ser perseguido, então a ideia de um financiamento exclu- pelo menos quando elas envolvem consulta a eleitorado
sivamente público para as campanhas eleitorais torna- mais amplo, para além das convenções.4
-se, por princípio, atraente. De fato, uma solução quase Ademais, se quisermos preservar o necessário rea-
impositiva ante o propósito de se isolar o sistema político lismo sociológico, devemos admitir que a proibição do
das influências enviesadas provenientes das desigual- recurso a financiamento privado jamais extinguirá, por
dades econômicas. Pois se se autoriza a livre captação si só, o abuso do poder econômico em campanhas elei-
de recursos privados, contarão com claras vantagens torais, por intermédio de recursos ilegais, não declara-
quanto às perspectivas de arrecadação aqueles candi- dos – o chamado “caixa dois”. É de fato preocupante, sob
datos que agradarem aos eleitores mais ricos – a come- esse aspecto, que proibições análogas com frequência
çar pelas grandes empresas. E não só estes, mas sim- magnifiquem o problema, ao instituir um mercado negro
plesmente quaisquer candidatos que forem, eles mes- poderoso: assim, a Lei Seca alavancou o poder da Má-
mos, mais ricos que os demais. Embora nos habituemos fia nos Estados Unidos, e a criminalização do consumo

54 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de drogas criou a indústria do narcotráfico. Ninguém mente. Pois, tudo o mais mantido constante, ao proibir-
deveria, pois, iludir-se com a crença de que alguma le- mos atividades relativamente “caras”, e assim tornarmos
gislação sobre financiamento eleitoral tenha o condão o gasto médio por campanha mais baixo, expomo-nos ao
de abolir o caixa dois. Até porque o caixa dois eleitoral é risco de apenas aumentarmos a vantagem do plutocra-
proveniente do caixa dois de empresas – e existirá for- ta apto a despender grandes somas de recursos – pró-
çosamente enquanto este existir. Cabe, porém, coibi-lo, e prios ou de terceiros, “contabilizados” ou não. Compa-
reduzir assim sua importância relativa no financiamento rativamente a isso, o financiamento exclusivamente pú-
das campanhas. E é importante ter em mente que medi- blico tem pelo menos o mérito de estipular formalmente
das como as que têm sido tomadas no Brasil nos últimos um teto para os gastos legais, eventualmente cotejáveis
anos, destinadas a minimizar os custos das campanhas com “sinais exteriores de riqueza” observáveis durante
(tais como a chamada “minirreforma eleitoral”, de maio a campanha eleitoral.
de 2006, que tratou de proibir variados veículos de pro- Seja como for, no fim das contas não há alternativa:
paganda eleitoral), dificilmente lograrão reduzir o abu- se quisermos reduzir o abuso de poder econômico nas
so do poder econômico em sentido amplo, ou mesmo o eleições, o crucial é aumentar nossa capacidade insti-
peso relativo do caixa dois nas campanhas, especifica- tucional de controle eficaz sobre o financiamento das
campanhas e de sanção tempestiva – e severa – contra
abusos. Para se reduzir o caixa dois das empresas, fon-
te sempre propícia a irrigar caixas paralelos nas cam-
panhas, seria necessária a aprovação de alguma refor-
ma bancária e tributária que induzisse redução do vo-
lume de recursos ilegais em circulação na economia.
Isso, porém, está claramente fora do alcance da discus-
a proibição são de qualquer reforma eleitoral, e insistir nisso como
do recurso a pré-condição para avanços no controle sobre abusos
financiamento de poder econômico em campanhas apenas nos força-
privado jamais ria a assistir passivamente à escalada do descontrole.
Se é assim, então o reforço da capacidade fisca-
extinguirá, por lizatória e punitiva de nossos tribunais eleitorais é um
si só, o abuso do objetivo incontornável. Isso pode ser feito, em parte,
poder econômico por medidas administrativas e orçamentárias – mas
em campanhas não há porque excluir em princípio também a discus-
eleitorais, por são de eventuais modificações na legislação eleitoral
ou partidária com vistas a um aumento da eficácia dos
intermédio de tribunais no exercício desse controle. Por exemplo, uma
recursos ilegais das justificativas para a adoção da lista fechada no PL
2.679/2003 residia precisamente na maior tratabilida-
de das contas pelos tribunais, que se obteria caso pas-
sássemos da análise e julgamento de contas de cam-
panhas de centenas de candidatos individuais a depu-
tado para apenas uma dezena de chapas compostas
pelas listas partidárias.

janeirO • fevereiro • março 2016 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É possível, assim, imaginar algum sistema misto de


financiamento de campanhas, que se apoie fundamental-
mente na imposição de limites estritos para o valor má-
ximo das contribuições permitidas, a serem conjugados
com um financiamento público partidário; que obrigue
declaração de fontes e prestação de contas em “tempo não faltam
real” pela internet (em moldes análogos aos sugeridos ralos por onde
por Samuels 2006: 151-2); e que adote punições seve- escoar o dinheiro
ras para os transgressores (incluindo a eventual im-
público a partir
pugnação da lista inteira). Em princípio, esse repertó-
rio de medidas me parece preferível ao disciplinamen-
das relações
to dos gastos admissíveis, em que temos incorrido até de dependência
aqui. Além dos efeitos duvidosos que esse disciplina- entre políticos
mento produz sobre nossos vieses eleitorais, é preciso eleitos e seus
também considerar que, ao proibirmos esse ou aquele
principais
uso do dinheiro, com frequência arriscamo-nos a atra-
vessar a delicada linha que delimita e protege o direito
financiadores
à liberdade de expressão de opiniões políticas – vide a
controvérsia que se estabeleceu recentemente quanto
a restrições impostas pelo TSE a entrevistas de candi-
datos, ou ao uso de recursos próprios à internet como
blogs, grupos de discussão etc. Afinal, qual é a fronteira
que distingue propaganda e discussão política? E, se es-
tamos numa campanha, porque é que alguma forma de vantados para campanhas chega a quintuplicar o qua-
propaganda seria intrinsecamente mais ou menos jus- se um bilhão de reais do esquema de financiamento pú-
tificável que qualquer outra? Por que deveria um candi- blico previsto no PL 2.679/2003 (Samuels 2003: 386),
dato – observados os limites legais para os gastos – ser certamente é porque esses agentes esperam obter – na
proibido de recorrer ao meio de comunicação que bem outra ponta, após as eleições – esse dinheiro de volta,
lhe aprouver, para transmitir sua mensagem política? e aumentado. Os políticos levantam o dinheiro privado
Acima de tudo, é importante evitar farisaísmos ao de que precisam para ganhar seus votos; e os agentes
apreciarmos matéria relativa a financiamento de cam- privados ganham dinheiro público (maior que o investi-
panhas. A ideia corrente de que financiamento público do, é claro) com as decisões desses políticos.
de campanhas é indevido porque o estado tem de gastar Esse argumento é consistente com o achado do pró-
com educação, saúde, estradas é intoleravelmente sim- prio Samuels (2002), de que não há relação estatística
plória. Pois não faltam ralos por onde escoar o dinheiro entre o engajamento do deputado em projetos distribu-
público a partir das relações de dependência entre po- tivistas de alcance local (“pork barrel”) e os votos por ele
líticos eleitos e seus principais financiadores, que o sis- obtidos numa tentativa de reeleição. Segundo os resul-
tema atual favorece. Se agentes privados se dispõem a tados de Samuels, a votação dos deputados guarda re-
irrigar os bolsos de ocupantes de cargos públicos com lação apenas indireta com as obras que ele porventura
recursos que serão posteriormente usados em campa- consegue canalizar para suas bases. A principal variá-
nhas eleitorais, e se o valor estimado dos recursos le- vel explicativa do seu desempenho eleitoral em tenta-

56 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tivas de reeleição é o dinheiro, que ele obtém de agen- papel na crise se tivesse tratado de legislar. Outras ins-
tes privados interessados em contratos governamen- tituições da República compartilham com ele a compe-
tais para executar as obras inseridas no orçamento da tência de investigar. Mas só o Congresso Nacional po-
União pela atuação dos deputados. Dessa perspectiva, deria ter legislado na matéria. Apesar de ser justo que
a ênfase predominantemente “clientelística” da atuação se diga que, toda vez que um político falava em reforma
parlamentar no Brasil decorreria não de uma relação política durante a crise, havia sempre um jornalista no
de troca entre deputados e seus eleitores, mas antes de dia seguinte a falar em “manobra diversionista”, “pizza”,
uma relação de troca entre deputados e os financiado- que a hora era de punir os culpados etc. Agora, acaba-
res de suas campanhas (Samuels 2002: 861). mos de cometer a temeridade de preencher muitos dos
principais cargos da República numa eleição bastante
A Cena Estratégica Corrente desmoralizada, e em um contexto com forte tendência
A reeleição relativamente tranquila de Lula, segui- à polarização política em torno da figura do presiden-
da dos índices de popularidade sem precedentes que o te. Isto não é uma combinação promissora – ainda mais
presidente ostentou ao longo de todo o segundo manda- se o presidente concentra tantas prerrogativas. Oxalá a
to, terão obscurecido os problemas decorrentes desse economia internacional continue a nos poupar de turbu-
quadro. Poder-se-iam, em princípio, ignorar essas ma- lências mais graves nos próximos anos. Se não, alguma
zelas de natureza, talvez, um tanto filosófica. Se os go- conjuntura adversa poderá nos apanhar com as portas
vernos governam, se maiorias se produzem, se as vota- escancaradas para os demagogos de plantão, candidatos
ções se fazem e as decisões são tomadas – então, qual é a caudilho. Improvável que seja o cenário; de fato temos
o problema? O problema é que se nos habituamos à ro- convivido com um sistema de representação que ope-
tinização de práticas pouco justificáveis perante a opi- ra sob a clara convicção, amplamente disseminada, de
nião pública, então tenderá a disseminar-se junto ao sua incapacidade de conter abusos de poder econômi-
público a opinião de que o modus operandi do sistema co. Esse flanco exposto mina fatalmente sua legitimidade
político é vil – e com tanto mais força quanto mais a es- junto à população ­– e somente na hora dramática sabe-
tabilidade do sistema vier a depender em alguma medi- remos quanto. Não terá sido prudente esperar para ver.
da dessas práticas. Entretanto, temos insistido em esperar.
Entendo que essa dimensão do problema ganha cla- De fato, reformas eleitorais não são matéria trivial
ra preeminência a partir de 2005. Pois o rei está nu. Já – e, para além de suas ramificações em consequências
estava antes, alegar-se-á: “todo mundo” sempre soube não intencionais difíceis de se deslindar, elas são tam-
que financiamento de campanhas é um problema compli- bém presa de uma dificuldade peculiar à sua própria
cado em qualquer lugar do mundo, e de precário contro- tramitação. Pois reformas em legislação eleitoral pro-
le entre nós. Mas agora alguém já gritou, pra todo mun- põem-se modificar as regras que presidem eleições, e
do ouvir, que o rei está nu. Deu no Jornal Nacional du- portanto as regras que presidem o preenchimento de
rante meses, o próprio Presidente falou que todo mun- cargos políticos. Só que elas têm de ser aprovadas jus-
do faz, o ex-Presidente falou de joio e trigo (Reis 2005: tamente pelos vencedores da última eleição, e portanto
13). Ou seja, agora, além de todo mundo saber que o rei sua aprovação requer a formação de uma maioria favo-
está nu, todo mundo sabe que todo mundo sabe − e nin- rável à mudança das regras justamente entre os presu-
guém pode mais, portanto, fingir não ter percebido. Con- míveis beneficiários do status quo, ou seja, aqueles que
forme a circunstância, isso pode fazer toda a diferença.5 venceram a última eleição sob as regras vigentes. Este
Portanto, em vez de se refestelar no espetáculo tele- efeito se agrava quando consideramos as implicações
visivo das CPIs, o Congresso teria cumprido melhor seu lançadas sobre a matéria pelo chamado teorema de Ar-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

row.6 Se nenhum procedimento decisório pode pretender e que operaria paralelamente ao Legislativo, sob prazo
ser demonstravelmente superior segundo algum parâ- determinado. Esse tipo de malabarismo me parece reu-
metro universalmente “objetivo”, então a opção por al- nir vários ingredientes da receita do desastre perfeito.
gum desenho específico sempre haverá de estar forte- Em primeiro lugar, há a desautorização implícita do Po-
mente subordinada, em última análise, aos interesses e der Legislativo, que teria dificuldade de legislar em qual-
conveniências dos atores relevantes. quer matéria sensível até sua reconstituição. Seria ocio-
Não é tarefa fácil em nenhum lugar do mundo, por- so enumerar os riscos a que uma situação como essa
tanto, constituir maiorias rumo a reformas eleitorais. E exporia o sistema político enquanto se prolongasse. Se-
de fato esse é um argumento que costuma ser brandi- gundo, essas pessoas teriam de ser, elas mesmas, elei-
do pelos simpatizantes de iniciativas tais como uma “mi- tas. Por qual procedimento? Só poderia ser o vigente. En-
niconstituinte”, ou algum tipo (que me parece um tanto tão sobre elas também pesaria o viés em favor do sta-
aberrante) de comissão legislativa, eleita com o fim ex- tus quo, e sobre sua própria eleição pesaria a suspeita
clusivo de fazer a reforma política e depois se desfazer, quanto ao financiamento de campanhas. Ou não pode-

haverá de fato
entre nossos
deputados
uma maioria
contrária à ideia
de se reformar
o sistema
eleitoral?

58 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ria haver campanhas? Quem lançaria essas candidatu- esse primeiro requisito, preliminar, já foi vencido. Pois
ras? Partidos, cujos interesses se interceptam com os é inequívoco o protagonismo da Câmara dos Deputados
das lideranças do Congresso, ou associações civis de na tramitação das propostas mais recentes de reforma
qualquer natureza? No primeiro caso, as dificuldades política. Contrariamente a quase qualquer outra maté-
em se aprovar a reforma no Congresso estariam intei- ria recente a tramitar no Congresso, em que o protago-
ramente transplantadas para a tal “miniconstituinte”; no nismo e a iniciativa residem inequivocamente no Poder
segundo caso, ajudaríamos a desorganizar ainda mais Executivo, o governo tem-se mantido sempre em segun-
o nosso quadro partidário, com efeitos negativos que do plano na proposição e articulação de votações volta-
se prolongariam para muito além da discussão dessa das à reforma política, e os próprios deputados, sob a
reforma. Quem seriam, afinal, as pessoas que se candi- liderança da Mesa da Câmara, têm tomado as iniciati-
datariam a semelhante função? Por que é que podería- vas. Assim constituiu-se a comissão em 2003 (sob o em-
mos presumir desinteresse e desprendimento pessoal penho pessoal do presidente, João Paulo Cunha); assim
por parte delas? Uma premissa elementar de toda aná- costurou-se uma convergência, no âmbito da Comissão
lise política prudente é admitir que, qualquer que seja o de Reforma Política, entre os quatro maiores partidos,
instrumento institucional concebido, ele será estrategi- rumo a uma proposta unificada (o PL 2.679/2003); as-
camente apropriado por pessoas interessadas. Por fim, sim a matéria foi retirada do limbo e posta em votação
mesmo se aceitarmos, de maneira caridosa, todas as pela Mesa em maio de 2007, independentemente de prio-
expectativas mais otimistas envolvidas em semelhante rização pelo Executivo, resultado de uma promessa da
iniciativa, resta o fato de que os representantes eleitos, campanha de Arlindo Chinaglia pela presidência da Casa.
dali em diante, se veriam forçados a conviver com um É certo, a proposta acabou derrotada, quando a
aparato normativo que lhes teria sido imposto exogena- bancada do PSDB reavaliou, à última hora, seu apoio à
mente por um grupo de pessoas que – feito o serviço – lista fechada: pelo menos no curto prazo, pareceu que
lavariam as mãos e torceriam para que tudo desse cer- ela beneficiaria desproporcionalmente o PT. Isso suge-
to, sem terem de lidar diretamente com o sistema que re que, embora exista na Câmara dos Deputados uma
criaram. Ora, chamemos logo essa iniciativa pelo nome maioria favorável a alterações no funcionamento do sis-
adequado: ela parte de uma profunda desconfiança em tema eleitoral brasileiro, não há acordo no interior des-
relação ao sistema eleitoral em si mesmo, e imagina que sa maioria quanto ao conteúdo da mudança a ser feita.
será possível encontrar pessoas educadas, ilustradas, E aí nos deparamos, enfim, com o grande problema es-
desinteressadas, a dizer autorizadamente aos políticos tratégico da reforma política: no Brasil, habitualmente
como é que eles deveriam organizar o jogo. Uma clássi- é o Executivo o grande construtor de maiorias no Con-
ca concepção autoritária da política. gresso Nacional – principalmente na Câmara dos De-
Não adianta. Se se trata de nos dirigirmos às maze- putados; infelizmente, porém, por uma série de razões,
las de nossa “conexão eleitoral”, temos de nos debruçar não interessa ao governo federal sair a campo em favor
sobre as perspectivas de os nossos próprios represen- da aprovação de uma reforma eleitoral. Muito imediata-
tantes eleitos virem a convergir em torno de uma pro- mente, porque – sendo a reforma política matéria que
posta de sua modificação – não obstante as reconheci- inevitavelmente divide os partidos conforme suas res-
das dificuldades desse caminho. Examinemos, portanto, pectivas (e legítimas) conveniências eleitorais – qualquer
com mais vagar, nosso cenário atual. adesão ostensiva de um governo brasileiro a uma pro-
Em primeiro lugar, haverá de fato entre nossos de- posta específica de reforma arrisca estilhaçar sua base
putados uma maioria contrária à ideia de se reformar parlamentar. E, num plano mais fundamental, porque é
o sistema eleitoral? De minha parte, acredito que não: justamente o Poder Executivo o grande beneficiário es-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tratégico do estado de dispersão de poder e de fragiliza- rio político pela cobertura policial das denúncias contra
ção da conexão eleitoral do Congresso Nacional, na me- Renan Calheiros. Em vez de dar a devida atenção à dis-
dida em que isso favorece a construção de maiorias ad cussão das causas de nossos males, deixamo-nos tola-
hoc sob o patronato do governo federal. Observe-se que mente absorver – mais uma vez – pela última fofoca em
frequentemente o governo refere-se em termos gené- torno de um de seus sintomas.
ricos à necessidade ou à conveniência de uma reforma Nesse quadro, as razões pelas quais os deputados
política – mas raramente age de maneira concreta para estariam em princípio interessados em reformas me pa-
viabilizá-la, e eventualmente mesmo parece sabotá-la. recem claras. Pois o estado de coisas vigente, sob nossa
O exemplo mais claro dessa postura deu-se em mea- crônica falta de controle sobre o caixa dois eleitoral, os
dos de 2005, no calor das denúncias de Roberto Jeffer- induz fortemente a incorrer em ilegalidades no esque-
son, como pronta-resposta institucional ao escândalo. ma de financiamento de campanhas, sob pena de redu-
A primeira reação do governo foi encarregar o minis- zir fortemente suas chances de reeleição. Sem dúvida,
tro da Justiça de coordenar um grupo formado também ninguém pode alegar em sã consciência ter sido “obri-
pelo Ministério da Coordenação Política e pela Secre- gado” a incorrer em crime eleitoral. Mas é razoável ad-
taria-Geral da Presidência da República, além do Con- mitir que nosso sistema, com grandes distritos eleito-
selho de Desenvolvimento Econômico e Social (Agência rais e hiperpopulação de candidaturas individuais via-
MJ de Notícias 2005), para “analisar todas as propostas bilizada pela lista aberta, intensifica o já naturalmente
existentes sobre o tema”, e entregar em 45 dias ao Pre- forte peso do dinheiro nas perspectivas de eleição para
sidente “um diagnóstico para iniciar a reforma política a Câmara dos Deputados. Some-se a isso a incapacida-
no país”. Alguém teve notícia desse relatório? O curioso de de fiscalização eficaz, pelos tribunais eleitorais, das
é que, enquanto se fazia esse barulho todo, dormitava contas de campanha, e temos diante de nós um siste-
no Congresso, meio esquecido, o projeto de lei número ma que traz embutido um forte viés de seleção adver-
2.679/2003, de autoria da Comissão Especial de Refor- sa quanto à observância estrita da legislação eleitoral.
ma Política, que apenas dois anos antes funcionara ao Se imaginarmos os políticos segundo uma carica-
longo de 10 meses no lugar devido: a Câmara dos Depu- tura de vilões de desenho animado, a esfregar as mãos
tados. E ainda executara com vagar (26 reuniões, sete e rir sadicamente com as próprias maldades (como com
audiências públicas) a mesma tarefa que a comissão do frequência demasiada nosso colunismo político parece
Executivo se propunha fazer às pressas, em 45 dias: “es- propenso a fazer), talvez possamos acreditar que eles
tudar todos os projetos de reforma política apresenta- estejam satisfeitos com o status quo. Afinal, assim eles
dos na Casa e elaborar uma proposta ampla e unifica- poderiam manipular grandes somas de dinheiro sem
da do tema” (Soares & Rennó 2006: 14). De lá para cá, o prestar contas a ninguém, e safarem-se sistematica-
noticiário político nacional – principalmente naquilo que mente impunes... Só que um retrato minimamente realis-
toca ao Congresso Nacional – tem-se resumido a pou- ta nos leva a um cenário distinto. Se levarmos em conta
co mais que um prontuário de delegacia de polícia, com o ambiente intensamente competitivo em que se movem
mensaleiros, aloprados, Renans Calheiros, dossiês ou os políticos, veremos que o descontrole sobre as finan-
Daniéis Dantas revezando-se nas manchetes, sempre ças eleitorais eleva consideravelmente a incerteza em
às voltas com material pelo menos indiretamente rela- que operam: um deputado estabelecido há décadas por
cionado a financiamento de campanhas. A própria co- trabalho político junto a prefeitos, deputados estaduais
bertura pela imprensa da votação do PL 2.679/2003 – e outros cabos eleitorais locais pode ver-se irresistivel-
trazida à ordem do dia “na marra” pela Mesa da Câmara mente deslocado por um plutocrata que saiba irrigar en-
– foi totalmente obscurecida com a absorção do noticiá- genhosamente as finanças eleitorais dessa mesma base

60 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

política. A inexistência de controle eficaz faz com que não to presumir que a vasta maioria do plenário permane-
exista nível “seguro” de provisão financeira para campa- ça constituída por aquela maioria habitual, de pessoas
nhas futuras, fragilizando a posição estratégica do re- que em princípio prefeririam não constituir um esque-
presentante junto a eventuais financiadores potenciais. ma ilegal de financiamento de suas campanhas para
Como esperar, depois, autonomia desse representante preservar as perspectivas de sobrevivência eleitoral –
frente a esses interesses? mas que de fato se veem compelidas nessa direção se
Como em qualquer outro grupo social, haverá – querem manter-se no jogo. Sobretudo quando se con-
também entre os políticos – aquela pequena minoria sidera que essa, digamos, circunstância os tem expos-
de pessoas absolutamente incorruptíveis, incapazes to, quase todos, ao risco de degola política na eventuali-
de furar uma fila ou estacionar em local proibido, que dade de vir à tona o seu nome envolvido no próximo es-
pedem nota de cada despesa efetuada, fazem escrupu- cândalo político.
losamente sua declaração anual de renda e observam Se a probabilidade de que algum rival venha a ter
elevada compostura em todos os seus atos. E haverá seu esquema fraudulento de financiamento de campa-
igualmente, no extremo oposto, oportunistas sistemáti- nha tempestivamente desmascarado é suficientemen-
cos, pessoas que jamais perderão uma ocasião de agir te baixa, é lícito supor que a maioria dos candidatos es-
em proveito próprio, seja a que preço for. Reconheça- tará disposta a correr seu próprio risco e aderir a al-
mos: eles não existem apenas entre os políticos. Basta gum esquema – ainda que preferisse, em termos ideais,
olhar à nossa volta para reconhecermos alguns cínicos
irremediáveis, inescrupulosos prontos a justificarem to-
das as suas canalhices (e a acusarem, rápidos, as dis-
cerníveis nos atos dos demais...), aqueles tipos com que
todos ocasionalmente cruzamos ao longo da vida, e que
cuidadosamente tratamos de evitar depois. E há, entre
esses dois extremos relativamente raros, aquela imen- Como em
sa zona de penumbra. Aquela multidão de pessoas que qualquer grupo
– caso solicitada a fazê-lo – pode até ser capaz de jus- social, haverá –
tificar seus atos segundo alguma explicação publica- também entre os
mente apresentável, mas que, fundamentalmente, dan-
ça conforme a música. Pessoas que prefeririam se ater
políticos – aquela
à mais estrita legalidade em todos os seus atos, mas que pequena minoria
não está disposta a sacrificar seus interesses (ou os de absolutamente
seus filhos, ou os de seus eleitores) pela afirmação in- incorruptível,
condicional de um princípio “abstrato”. Ainda mais se os incapaz de furar
outros não o fazem – e ninguém os pune.
Se esse é o caso, num contexto como o nosso, de
uma fila ou
profundo descontrole sobre a prestação de contas das estacionar em
campanhas eleitorais, o viés de seleção adversa pre- local proibido
sente no sistema fará com que os primeiros tenham as
perspectivas de reeleição cada vez mais reduzidas, com
tendência a desaparecer; os segundos terão sua pre-
sença certamente favorecida por esse viés; mas é líci-

janeirO • fevereiro • março 2016 61


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

uma situação em que os eventuais abusos fossem todos rações recentes da Polícia Federal), mais forte é a sen-
igualmente coibidos: a posição estratégica de cada um se sação – um tanto patética – de que nós, leigos, conse-
manteria a mesma, com menos riscos, e menor incerte- guimos vislumbrar apenas a ponta de um iceberg. Uma
za. Num cenário como esse, mesmo a eventual denúncia teia que começa no caixa dois de empresas, passa por
e cassação de todos os deputados seria como enxugar fundos offshore, é repatriada pelos bastidores das cam-
gelo: a seleção adversa continuaria operando nas elei- panhas eleitorais, e ramifica-se rumo ao preenchimen-
ções futuras, e – acima de tudo – não há qualquer ra- to de postos na máquina pública – e rumo, portanto, às
zão para se presumir que os suplentes estariam menos decisões ali tomadas. Nesse quadro, se é possível falar
propensos a envolvimento com caixa dois. a sério de aumentar-se o controle sobre o financiamen-
Sob essa perspectiva, pode-se buscar um enqua- to de campanhas por intermédio de modificações no sis-
dramento mais realista (leia-se, menos maniqueísta) do tema eleitoral, não vejo porque não se admitir fazê-lo –
que se passou de fato durantes as votações, em plená- mesmo sem prejuízo de medidas complementares na
rio, dos pedidos de cassação dos onze deputados cujos área tributária e na regulação bancária.
nomes apareceram envolvidos no episódio do dito “men- Pois, a julgar pela importância hoje atribuída às prer-
salão” em 2005, como sacadores comprovados de recur- rogativas legislativas do Poder Executivo brasileiro na
sos ilegais provenientes do chamado “valerioduto”. Afora viabilização estável de nossa rotina democrática, cabe
aqueles nomes que foram identificados como protagonis- perguntar se não teremos ido longe demais na disper-
tas do episódio, Roberto Jefferson e José Dirceu, apenas são de poder envolvida na constituição eleitoral de nos-
mais um foi cassado, e todos os demais absolvidos, em- so Poder Legislativo. Queremos, sim, conter o exercício
bora frequentemente por votações apertadas. Não pre- do poder para que ele não seja arbitrariamente tirâni-
tendo aqui afirmar que essa era a decisão “acertada”, co; mas ao mesmo tempo queremos que ele seja efeti-
ou “justa”, mas apenas chamar atenção para a nature- vamente exercido, para permitir à comunidade política
za dilemática da situação: você é chamado a votar, se- que persiga com eficácia aqueles fins coletivos que ve-
cretamente, pela cassação ou não de um colega de tra- nha a decidir (democraticamente, espera-se) perseguir
balho que cometeu um ato ilícito, sim, mas um ato ilícito (Reis 1984: 11-5). De fato, não é outro o dilema subjacen-
formalmente idêntico a outros que talvez você mesmo já te aos critérios empregados por Lijphart, anteriormente
tenha cometido antes – e, até onde é possível saber, boa referidos. Se o preço da atual forma de composição da
parte dos demais colegas também. Qual é a coisa decente Câmara dos Deputados é dispersá-la e enfraquecer os
a se fazer? Não falo de moralidade, porque os kantianos partidos ao ponto de forçar a atribuição ao Presidente
de todos os dias pertencem àquela minoria incorruptível da República do status de principal legislador do país,
desde o início, cuja sobrevivência política é desfavore- desconectando em larga medida a representação legis-
cida pelas regras vigentes, e que não teria problema de lativa de sua origem eleitoral – então dificilmente pode-
consciência em votar pela cassação dos acusados. Falo ríamos imaginar algum procedimento a ser adotado em
da vasta maioria que tenta sobreviver politicamente num nossas eleições parlamentares que tivesse resultados
contexto meio bruto, equilibrando precariamente pres- mais autoritários que o nosso status quo vigente. Inde-
sões contraditórias, e que terá eventualmente admitido pendentemente de suas boas intenções, ou de suas cre-
incorrer no mesmo crime que os acusados. Esses vaci- denciais intrinsecamente democráticas. Pois o sistema
larão. E quem pode atirar a primeira pedra? em vigor, ao individualizar quase completamente a con-
Quanto mais somos expostos a fragmentos dos dução das campanhas parlamentares, compromete gra-
meandros das finanças eleitorais no Brasil (pelas confis- vemente a coesão organizacional, a identidade eleitoral
sões de um Roberto Jefferson ou os relatórios das ope- e a força política dos partidos, que serão de todo modo

62 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ba por desarticular nossa representação em Brasília,


criando um vácuo político que – menos mal... – tem sido
preenchido pelo protagonismo legislativo do Presiden-
te da República e do Colégio de Líderes. (Ou alguém se
O nosso dito atreveria a interpretar o fato de o PMDB ter consegui-
do eleger o maior número de deputados em 2006 como
“presidencialismo de
reflexo de uma migração do eleitorado rumo às teses
coalizão”, que não defendidas pelo PMDB na campanha?...).
parecia talhado Como vimos, as mazelas de nosso regime têm sua
para funcionar, razão de ser, nos ajudam a acomodar conflitos e – bem
funcionava e nos ou mal – permitiram-lhe funcionar até aqui. Agora, a ex-
posição dos seus vícios ao escrutínio público, em plena
trouxe até aqui, na
luz do dia, à vista mesmo do mais desinteressado cida-
mais duradoura dão, deixa o sistema em xeque. Mesmo que se considere
experiência de que os malfeitos estão sendo mais prontamente expos-
normalidade tos e coibidos do que era nosso costume, existe a pos-
democrática de sibilidade de que essa exposição desmoralize o regime,
minando sua autoridade independentemente do funcio-
nossa história
namento de facto das instituições.
O nosso dito “presidencialismo de coalizão”, que não
parecia talhado para funcionar, no entanto funcionava
– e nos trouxe até aqui, na mais duradoura experiência
de normalidade democrática de nossa história. Agora
os intermediários mais importantes na organização das ele se encontra sob pressão inédita para reformar-se.
relações entre o governo e o parlamento. Idealmente, na direção de um reforço relativo na posição
Se isso é assim, então torna-se flagrante a necessi- do Poder Legislativo, com a subtração de algumas das
dade de mudarmos o enquadramento institucional tan- prerrogativas excepcionais que o Executivo brasileiro
to do financiamento de campanhas quanto da própria acumula – e, acima de tudo, rumo a um aumento do con-
forma de disputa por cadeiras parlamentares. A “cone- trole sobre o financiamento das campanhas eleitorais.
xão eleitoral”, entre mandato parlamentar e eleitor, está Jairo Nicolau costuma dizer que todo cientista polí-
preocupantemente enfraquecida no Brasil, e tem na fal- tico cultiva sua reforma política de estimação. Isso pro-
ta de memória do eleitor quanto ao voto dado apenas um vavelmente é verdade, e será talvez inevitável em certa
de seus sintomas. Suas causas residem numa legisla- medida. Há um ponto, porém, em que acredito que con-
ção permissiva quanto ao financiamento de campanhas cordaremos todos ­­− e que tem sido, não obstante, rela-
e num sistema eleitoral despolitizador que dissolve a tivamente negligenciado no debate: o financiamento de
disputa num cipoal de nomes do qual ninguém pode se campanhas está totalmente fora de controle entre nós.
aproximar de maneira razoavelmente informada – a não Há vinte anos já aludia Paulo Brossard à “beatificação
ser por referências de natureza pessoal ou corporati- do ilícito” envolvida na aprovação de contas eleitorais no
va. O efeito combinado dos dois fatores é uma sensível Brasil, e a safra recente de escândalos nos tem trazido
diluição do protagonismo dos partidos na disputa pelo o tema repetidamente à baila. Quando um caso como o
preenchimento de cadeiras parlamentares, o que aca- de um Daniel Dantas traz à tona alguma ponta do ice-

janeirO • fevereiro • março 2016 63


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

berg que certamente existe abaixo da superfície visível procedimento conforme suas justificações normativas
de nossa competição eleitoral, é fácil constatar o quan- mais comezinhas.
to estamos desprovidos de instrumentos eficazes para Ou somos capazes de montar um sistema de finan-
assegurar um mínimo aceitável de fair-play nessa ma- ciamento de campanhas que − não obstante vazamentos
téria crucial. E esse é um ponto bem mais importante do ocasionais − possa apresentar-se como fundamental-
que sugere a relativa omissão da ciência política quan- mente decente aos olhos da população, ou parte subs-
to a ele. De fato, está bem no centro de todas as consi- tancial da vida de nossa democracia permanecerá, in-
derações sobre legitimidade democrática em contextos felizmente, um jogo de compadres, que não poderá as-
de normalidade institucional e competição eleitoral ro- pirar ao apreço da massa bestializada.
tinizada. Pois incide de maneira decisiva sobre a equa-
O autor é professor do Departamento de Ciência Política da Universi-
nimidade da competição, sobre as condições de elegibi- dade Federal de Minas Gerais.
lidade de todos os cidadãos – em suma, pela justiça do brunopwr@fafich@ufmg.br

NOTAS DE RODAPÉ

1. Trata-se de uma série extensa de artigos publicados em coautoria 4. De fato, é impossível pensar nesses assuntos do mesmo modo, de-
desde meados dos anos 90, por variados veículos. Uma amostra im- pois da campanha de Barack Obama. Mediante uma reorganização
portante dos trabalhos mais relevantes encontra-se reunida em Fi- drástica dos modos habituais de arrecadação de fundos, Obama não
gueiredo e Limongi (1999). Uma síntese recente do ponto de vista dos apenas viabilizou um desafio bem-sucedido a uma candidatura pro-
autores, que resulta numa vigorosa manifestação de ceticismo quan- fundamente enraizada junto ao establishment do Partido Democrata
to à necessidade ou a conveniência de uma reforma política, pode ser (Hillary Clinton), como – pelo menos temporariamente – deslocou pro-
encontrada em Limongi (2006). fundamente o centro de gravidade financeiro das campanhas eleito-
rais americanas. A propósito, pelo visto, nem mesmo o próprio Oba-
2. Uma tentativa recente de se enquadrar sistematicamente a análise ma manteve, ao final, as mesmas opiniões na matéria que professa-
política comparada a partir da dispersão relativa de pontos de veto va no início da campanha. Permanece duvidosa, porém, a viabilidade
no sistema pode-se encontrar em Tsebelis (2002). Aqui, porém, não se de semelhante movimento em contextos como o brasileiro, com maior
fará uso do aparato teórico que ele elabora. Apenas entendo que, em- concentração de renda.
bora vazada em nível mais baixo de abstração (e com uma infeliz pro-
pensão a postular “modelos” ideal-típicos nessa matéria), a dimensão 5. Essa situação em que todos sabem que todos sabem algo, até o
analítica subjacente aos critérios de classificação de Lijphart é aná- infinito − chamada “common knowledge” (“conhecimento comum”)
loga àquela de que Tsebelis se ocupa com maior elaboração formal e pela teoria dos jogos −, tem efeito crucial nas possibilidades de
ambição teórico-nomológica. ação coletiva espontaneamente coordenada, e distingue-se de ma-
neira sutil, porém importante, da outra, em que todo mundo sabe
3. Uma sinopse recente dos resultados obtidos na matéria até aqui pode de algo, mas não sabe se os outros também sabem. Ver Michael
ser encontrada em Samuels (2006). Uma busca conjunta no Google Aca- Chwe (2001) para um estudo saboroso que discute a lógica inter-
dêmico (scholar.google.com) com as chaves “electoral system” e “cam- na e os efeitos sociologicamente esperados do “conhecimento co-
paign finance” (ou variantes) nos devolve, com destaque, textos do pró- mum” assim compreendido.
prio Samuels. Encontram-se várias coisas adjacentes ao tema, como os
efeitos do sistema eleitoral sobre a perseguição de voto pessoal pelos 6. O “teorema de Arrow” (1951, 1963) prova a impossibilidade de um
candidatos, com menções de passagem ao tema do financiamento de sistema de decisão coletiva, entre pelo menos três alternativas, que
campanhas (Carey & Shugart 1995), ou então os efeitos da legislação deixe de violar pelo menos uma das seguintes condições: racionali-
norte-americana sobre financiamento público sobre a política partidá- dade coletiva, domínio irrestrito, eficiência de Pareto, independência
ria americana (Jones 1981). Por sua vez, livros dedicados a financia- frente a alternativas irrelevantes e não ditadura. Variadas formas de
mento de campanhas, encontráveis num sítio como Amazon.com (tais se demonstrar o teorema, assim como uma exposição breve do sig-
como Magleby & Nelson 1990, Samples 2006, Smith 2006), aparente- nificado de cada uma das condições mencionadas, podem ser encon-
mente não chegam a tomar o sistema eleitoral como variável relevante. tradas em Craven (1992).

64 Nostradamus
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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janeirO • fevereiro • março 2016 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

66 Calibã
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

José Guilherme
Merquior e o

ARIEL
DE
RODÓ
Kaio Felipe
Cientista político

O escritor uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917)


apoiou-se em A Tempestade, última peça escrita por
Shakespeare, para criar Ariel, um dos mais influen-
tes ensaios de interpretação da América Latina. Se na
peça o mago Próspero recorre aos poderes de Ariel,
um “espírito alado”, e Caliban, “um escravo, com com-
portamento selvagem e aparência deformada” (RICU-
PERO, 2014, pp. 24-28), no ensaio do uruguaio os dois
personagens representam a América Latina e os Es-
tados Unidos, respectivamente: “Rodó associa a cultu-
ra latino-americana ao refinamento e ao desinteres-
se, retratando a norte-americana como sendo instru-
mental e materialista.” (SOARES, 2008)

janeiro
aneirO • fevereiro • março 2016 67
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Dois foram os sentimentos que, segundo o autor, o Ao longo deste trabalho pretendo, após expor os argu-
levaram a escrever este ensaio: mentos centrais de Ariel, investigar a leitura de Rodó
pela lente de Merquior por dois caminhos: primeiro,
...meu amor veemente pela vida da arte, que me leva enquadrando o escritor uruguaio na tipologia de cor-
a combater certas tendências utilitárias e igualitá- rentes liberais apresentada por José Guilherme em O
rias; e minha paixão de raça: minha paixão de latino Liberalismo: Antigo e Moderno (1991) depois, descre-
que me impele a defender a necessidade de que nos- vendo as críticas dirigidas a Rodó em quatro de seus
sos povos mantenham o fundamental de seu caráter ensaios dos anos 1980.
coletivo contra toda aspiração absorvente e invasora.
(RODÓ, 1957 apud AROCENA, 1990, p. 93) Um “sermão laico” contra o utilitarismo
O primeiro capítulo de Ariel consiste num elogio à
Publicado em 1900, Ariel foi escrito sob o impac- juventude, a qual seria dotada de entusiasmo e “subli-
to da guerra de 1898 entre Espanha e Estados Unidos; me obstinação da esperança” (RODÓ, 1991, p. 17); Rodó
embora o pretexto do conflito tenha sido a independên- deposita na geração mais jovem o “horizonte de expec-
cia de Cuba, sua consequência foi a substituição de um tativas” da latinidade.
imperialismo pelo outro – começava ali a hegemonia Diante da crise cultural que detecta no fim do sé-
política e cultural dos EUA na América Latina. Pode- culo XIX, a qual se manifestaria até na literatura – per-
-se alegar que o conflito de 1898 serviu para conden- sonagens como o Des Esseintes, do romance Às Aves-
sar uma imagem que já existia: os EUA como Caliban. sas (Joris-Karl Huysmans), seriam marcados por uma
Diante desse cenário, este ensaio é um dos primeiros “progressiva diminuição da juventude interior” (Ibidem,
a revelar uma guinada ideológica da América Latina: p. 19) –, Rodó afirma que não está a propor um oti-
em vez de contemplar os anglo-americanos como mo- mismo ingênuo, pois a dúvida e a dor podem ser im-
delo a se seguir (postura recorrente da intelectualida- pulso da vida. Seu horizonte de expectativas é marcado
de latino-americana no século XIX), inicia-se uma re- por um otimismo paradoxal:
valorização dos laços culturais com a Espanha, a qual
evocaria valores mais graciosos, belos e “joviais”, em O que, para a humanidade, importa salvar contra toda
contraste com o Caliban bretão e suas tonalidades vul- negação pessimista é, não tanto a ideia da relativa
gares, mundanas e torpes. bondade do presente, e sim da possibilidade de che-
Ariel foi um imediato fenômeno de público e críti- gar a um melhor término com o desenvolvimento da
ca; já em 1908 ganhou uma edição na Espanha. Foi lido vida, acelerado e orientado pelos esforços dos ho-
em geral como um manifesto contundente e irrefutável mens. A fé no futuro, a confiança na eficácia do es-
de uma América Latina, representante dos valores do forço humano constituem o antecedente necessário
espírito, frente ao grotesco materialismo dos Estados de toda a ação enérgica e de todo propósito fecundo
Unidos (cf. RANGEL, 1992, pp. 137-138). (Ibidem, pp. 24-25).
A aclamação inicial não impediu críticas posterio-
res; é recorrente a acusação de que Ariel envelheceu No segundo e terceiro capítulos, Rodó explana so-
rápido. (cf. Ibidem, p. 138) José Guilherme Merquior bre o seu ideal ético e estético. Contra o utilitarismo e
(1941-1991), por exemplo, mostrou-se bastante reticente a especialização, que levam ao amesquinhamento e à
em relação à mensagem de Rodó; por exemplo, não pa- mutilação da vida interior, prega o sentimento do belo
recia convencido da dicotomia culturalista de Ariel e en- como impulso para o bom e verdadeiro; em outras pa-
contrava problemas em sua concepção de democracia. lavras, o bom gosto tem um sentido moral, permitindo

68 Calibã
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assim o desenvolvimento da plenitude do ser. Em uma quem o “triunfo universal das instituições democráti-
das (muitas) oposições binárias que povoam Ariel, o au- cas” terminará “no império de um individualismo me-
tor confronta a “atividade econômica” (isto é, o trabalho díocre” (Ibidem, pp. 51-52).
“útil”) e o “ócio nobre” (cf. Ibidem, pp. 28-48). Influencia- Inspirado no ódio à mediocridade de escritores
do por Schiller e pelo Romantismo Alemão, Rodó perce- como Baudelaire, Flaubert e Nietzsche, o autor de Ariel
be “na educação, na sensibilidade e no refinamento es- preocupa-se, portanto, com o risco de se sacrificar “o
téticos uma condição necessária para a individuação” gosto, a arte, a suavidade dos costumes” (Ibidem, p. 53)
(SOARES, 2008). aos caprichos da multidão; no entanto, tal como Toc-
É apenas no quarto capítulo de Ariel que Rodó queville, vai além do pessimismo cultural e delineia,
explicita os alvos de seu ensaio: “o espírito utilitário ainda que com um viés aristocratizante, a possibilida-
que imprime sua marca na fisionomia moral do século de de atenuar os riscos da democracia:
atual, com menosprezo pela consideração estética e
desinteressada da vida” (RODÓ, 1991, p. 50). A expres- Abandonada a si mesma, – sem a constante retifica-
são social e política desse utilitarismo é nada menos ção de uma ativa autoridade moral que a depure e
do que a democracia, sobre a qual “pesa a acusação canalize suas tendências no sentido da dignificação
de guiar a humanidade, mediocrizando-a, para um Sa- da vida –, a democracia acabará por extinguir gradu-
cro Império do Utilitarismo” (Ibidem, p. 50). Rodó cita almente qualquer ideia de superioridade que não se
vários autores críticos da democracia, entre eles Re- traduza numa maior e mais ousada aptidão para
nan (de quem retirou a metáfora de Ariel como sím- as lutas do interesse, que então constituem a for-
bolo da cultura latina e Caliban, como a entronização ma mais ignóbil das brutalidades da força (Ibidem, p.
dos valores utilitários e democráticos) e Bourget, para 52; grifos meus).

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José Enrique Rodó acredita ser inútil se rebelar tor de Ariel opera uma leitura tocquevilliana dos EUA:
contra a tendência à democratização (cf. Ibidem, p. 61); atribui à tal sociedade a ausência de vida cívica, medio-
sendo assim, não cabe pensar na destruição da igual- cridade cultural (pela falta de impulsos mais elevados)
dade democrática, mas sim na educação e reforma da e utilitarismo (Rodó vê de forma pejorativa aquilo que
democracia (cf. Ibidem, p. 62). Há aqui, portanto, uma Tocqueville considera o pragmático e “cartesiano” mé-
aposta na educação popular: “o dever do Estado consis- todo filosófico dos americanos).1 Em suma, não con-
te em colocar todos os membros da sociedade em con- segue ver como exemplo um povo em que “a confusão
dições equitativas de buscar seu aperfeiçoamento” (Ibi- cosmopolita e o atomismo de uma democracia mal-en-
dem, p. 63). Não por acaso, Tocqueville é citado como tendida impedem a formação de uma verdadeira cons-
inspiração para essa solução, pois para o nobre fran- ciência nacional” (Ibidem, p. 81). O escritor uruguaio vê
cês os dons da alma “serviram à obra da democracia, problemas em uma sociedade utilitarista “onde a única
mesmo quando se encontravam do lado de seus ad- lei moral é o êxito, o interesse, o fim imediato e prá-
versários” (Ibidem, pp. 63-64). Em sintonia com a teo- tico, produzindo-se uma nivelação da vida na medio-
ria das elites que circulava na sociologia política da cridade e na fragmentação do mundo do trabalho es-
época, Rodó acredita que a democracia pode ser uma pecializado” (AROCENA, 1990, p. 93).
forma de renovação da aristocracia dirigente; é possível Uma passagem decisiva desse capítulo é quando
afirmar que seu ideal democrático está mais próximo Rodó alega que “a fórmula Washington + Edison” (RODÓ,
dos gregos que dos modernos. Nota-se também um ele- 1991, p. 91) não basta para formar uma civilização; mes-
mento retórico: após tecer críticas duríssimas à demo- mo que os norte-americanos tenham abundância de
cracia, Rodó faz um elogio a ela, buscando preservá-la. recursos materiais, falta-lhes uma dedicação mais pro-
O quinto capítulo traz a famosa crítica de Rodó aos funda aos “interesses da alma” (Ibidem, p. 92); em ou-
Estados Unidos, simbolizados na figura do Caliban. O au- tras palavras, a riqueza (no sentido econômico) é ape-

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nas o primeiro passo para adquirir bens intelectuais e O perigo detectado por Rodó é mais interno do que
morais. Como se não bastasse a ignorância genera- externo: o que o preocupa acima de tudo é a nortema-
lizada diante da alta cultura, os norte-americanos ca- nia, a sedução que a cultura norte-americana exerce
receriam também de virtude cívica: sobre os países latino-americanos; o autor teme ver “a
América deslatinizada por vontade própria” (Ibidem, p.
Qualquer observador médio de seus costumes políti- 70). Em outras palavras, o cerne da crítica de Rodó aos
cos vos falará de como a obsessão do interesse uti- norte- americanos é “a ameaça à autonomia cultural de
litário tende progressivamente a debilitar e reduzir seu país específico e da América Latina em geral”, haja
nos corações o sentimento do direito. O valor cívico, vista que “tal fascinação pode ameaçar as identidades
a velha virtude dos Hamilton, é uma lâmina de aço culturais regionais, acabar com a diversidade do con-
que se oxida, cada dia mais esquecida, entre as teias tinente” (SOARES, 2008). E quais são as tradições às
de aranha das tradições. (...) O governo da mediocri- quais a América Latina se filia? A cultura clássica, com
dade inutiliza a emulação que engrandece os cará- seu senso de ordem e hierarquia e seu “respeito reli-
teres e que os afina pela perspectiva da efetividade gioso pelo gênio” (RODÓ, 1991, p. 68), e o cristianismo,
de seu domínio (Ibidem, p. 87). com seu sentimento de igualdade, ainda que Rodó tenha
reservas a seu “menosprezo ascético pela seleção es-
Rodó também não poupa o caráter plutocrático da piritual e pela cultura” (Ibidem, p. 68).
democracia nos EUA: os “todo- poderosos aliados os trus- Pode-se dizer, portanto, que a proposta de Ariel para
tes, monopolizadores da produção e donos da vida eco- a América Latina é surpreendentemente moderada: sua
nômica” lembram a “classe enriquecida e soberba que, crítica aos Estados Unidos é mais cultural do que política
nos últimos tempos da república romana, foi um dos an- ou econômica. Rodó não rechaça a crença no progresso
tecedentes visíveis da ruína da liberdade e da tirania dos e na civilização, apenas está preocupado em qualificá-
Césares” (Ibidem, p. 88). Além disso, é um povo “órfão de -los, dando um elemento mais humanista, espiritual. O
tradições profundas que o orientem”, portanto incapaz seu idealismo consiste em buscar construir, através da
de “substituir a idealidade inspiradora do passado por cultura, uma unidade latino- americana. Apesar da for-
uma concepção alta e desinteressada do futuro”; dessa te crítica cultural em vários trechos de Ariel, sua obra
forma, tal civilização é a encarnação do hedonismo: “vive não é pessimista; pelo contrário, há um caráter bem
para a realidade imediata do presente” (Ibidem, p. 81). propositivo, principalmente no que diz respeito ao con-
Há, contudo, momentos em que o autor de Ariel ob- ceito de democracia. Em um espírito bem tocquevillia-
serva aspectos positivos na sociedade norte-america- no, Rodó acredita que ela pode conduzir à mediocrida-
na. Entre as qualidades elencadas estão: a experiên- de, mas também à seleção dos “melhores”, dos mais bem
cia inata da liberdade, o republicanismo, o federalismo dotados. O autor crítica as tendências mais igualitárias
e a vocação para a ação; aliás, sobre este último ponto, da democracia e busca lhe fornecer um elemento aris-
Rodó compara os norte-americanos ao Fausto de Goe- tocrático – não pelo nascimento, mas pela virtude, pelo
the: “seu gênio poderia ser definido (...) como a força em mérito. Essa compreensão da democracia também passa
movimento (...), a capacidade, o entusiasmo, a ditosa vo- por um reconhecimento das tradições clássicas e cris-
cação da ação” (Ibidem, p. 78). A “grandeza titânica” e “a tãs, pois combina elementos igualitários e hierárquicos.
escola de vontade e de trabalho” que caracterizam esse
povo levam Rodó a fazer a seguinte confissão de Rodó Rodó: liberal-conservador ou liberal-social?
sobre os americanos: “ainda que não os ame, admiro- Feita essa exposição dos pontos principais de Ariel,
-os” (Ibidem, p. 77). torna-se possível operar um breve exercício classifica-

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tório: considerando que, pelo seu apelo progressista e instrumental” que o liberalismo clássico não fornecia. No
civilizatório, o liberalismo era a principal ideologia polí- final do século, porém, em países latino-americanos mais
tica (e horizonte intelectual) na América Latina entre o desenvolvidos como a Argentina e o Uruguai, a intensa
século XIX e o início do XX, em qual vertente liberal José imigração e o próprio crescimento econômico levaram
Enrique Rodó poderia ser enquadrado? à crescente pressão pela ampliação dos direitos políti-
Antes de tudo, cabe definir as três principais linha- cos; com isso a vertente liberal- conservador passou a
gens do liberalismo que, importadas da Europa, foram assumir na América Latina um papel mais parecido que
adaptadas e reinventadas no continente latino-ame- o que exercia no continente europeu.
ricano desde o período das independências (décadas Ainda no final do século XIX surgiu outro tipo de res-
de 1810-20). A primeira delas é o liberalismo clássico, posta à massificação da política: em vez de insistir nos
que inclui pensadores como Benjamin Constant (1767- dogmas antiestatistas dos liberalismos clássico e con-
1830), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e John Stuart servador, autores como Thomas Hill Green (1836-1882)
Mill (1806-1873); a ênfase principal dessa fase da ideo- e Leonard Hobhouse (1864-1929), buscaram restaurar
logia liberal foi a proteção da liberdade civil, i.e., o “livre a ideia do bem comum e, do ponto de vista prático, acei-
exercício privado de agires e fazeres conforme a incli- taram uma maior intervenção do Estado, visando a me-
nação de cada um”. (MERQUIOR, 1983, p. 89) No caso lhorar a distribuição de renda e desenvolver políticas
latino-americano, contudo, o liberalismo sendo enfati- públicas em áreas como saúde, educação e previdên-
zado menos no seu elemento econômico do que políti- cia social; dessa forma, “as velhas reivindicações de di-
co, isto é, acabou exercendo o papel de ideologia antia- reitos individuais abriram espaço para exigências mais
bsolutista, estimulando as independências nacionais. igualitárias” (Ibidem, p. 259). Com isso houve uma infle-
Na medida, contudo, que a fragmentação política e xão à esquerda do pensamento liberal, mais conhecida
as guerras civis revelaram as limitações do liberalis- como liberalismo social.
mo clássico, pois não adiantava uma crítica do Estado Em qual dessas correntes liberais Rodó pode ser
(em prol das liberdades civis e políticas) sendo que esse classificado? A hipótese mais evidente é o liberalismo
mal havia se consolidado nos países latino-americanos. conservador, em razão das críticas à democracia de
Houve, então, uma guinada à direita: ao discurso libe- massas desse escritor uruguaio. O próprio panteão in-
ral foi acoplado o elemento da ordem, da estabilidade. telectual desse autor é repleto de liberais-conservado-
Consolidou-se, então, o liberalismo conservador: res, dentre eles Ernest Renan: diante da derrota france-
mantinha-se a crença no progresso e a concepção in- sa na guerra franco- prussiana (1870) e da convulsão
dividualista de sociedade, mas agora havia uma preo- social da Comuna de Paris (1871), esse autor associou
cupação em retardar a democratização da política libe- a decadência de seu país à democracia e ao materialis-
ral, levando assim a uma “ampliação cautelosa da inclu- mo. Para Renan, “a democracia nem disciplina, nem re-
são do povo nos direitos políticos”. (Idem, 2014, p. 183). sulta em aperfeiçoamento moral” (Ibidem, p. 162). Esse
Com isso houve, segundo Merquior, “um recuo aberto tipo de posicionamento cético e anti-igualitário lembra
ou interno, manifesto ou coberto da democracia liberal” muito o tom do quarto capítulo de Ariel.
(Ibidem, p. 184). Um segundo aspecto liberal-conservador é o valor
Se na Europa o liberalismo conservador foi uma rea- que atribui à tradição, à organicidade de uma nação.
ção à política de massas, no continente latino-americano Exemplo disso é que, diante das reformas laicizantes
ele serviu inicialmente como base ideológica para a cen- realizadas no Uruguai no início do século XX, posicio-
tralização política e a contenção do poder das oligarquias nou-se contra a retirada dos crucifixos dos hospitais
locais; tinha um apelo de, por assim dizer, “autoritarismo públicos; não exatamente por um argumento religioso,

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mas porque se opunha a uma medida que considerava É na escola, por cujas mãos intentamos que passe a
“jacobina” (cf. MICHELENA, 2004). dura argila das multidões, onde se encontra a primei-
Em terceiro lugar, elitismo cultural de Rodó tam- ra e mais generosa manifestação da equidade social,
bém é típico dos liberais- conservadores. Se nos três que consagra para todos a acessibilidade do saber e
primeiros capítulos de Ariel o autor formula uma con- dos meios mais eficazes de superioridade. (...) O verda-
cepção de mundo aristocrático e idealista, de forte ins- deiro, o digno conceito de igualdade repousa na ideia
piração nos românticos alemães e franceses, o quarto de que todos os seres racionais são dotados por na-
capítulo é prolífico em temores da mediocridade cultural tureza de faculdades capazes de um desenvolvimento
que em geral caracteriza a democratização da socieda- nobre. O dever do Estado consiste em colocar todos
de; Rodó preocupa-se com a ameaça à alta cultura re- os membros da sociedade em condições equitativas
presentada pelas “hordas inevitáveis da vulgaridade” de buscar seu aperfeiçoamento (Ibidem, pp. 61-62).
(RODÓ, 1991, p. 56). Eis um exemplo desse discurso
elitista: “a oposição entre o regime da democracia e a A propósito, essa apologia da educação popular foi
alta vida do espírito é uma realidade fatal quando esse seu principal legado para o “arielismo”, muito popular
regime significa o desconhecimento das desigualdades entre os movimentos estudantis latino-americanos na
legítimas e a substituição da fé no heroísmo (...) por uma primeira metade do século XX; por exemplo, a Reforma
concepção mecânica de governo” (Ibidem, p. 55). de Córdoba de 1918:
É possível, contudo, elencar três aspectos em que
José Enrique Rodó pode ser considerado um social-li- Os estudantes atribuíram para si um destino heroico
beral. Em primeiro lugar, sua defesa enfática da edu- ao defender que todos os esforços eram para produ-
cação pública, amparado em um argumento em prol zir a “redenção espiritual das juventudes americanas”.
do aperfeiçoamento moral que se assemelha aos de um Algumas referências parecem saídas do clássico en-
Hobhouse ou de um Stuart Mill: saio do uruguaio José Enrique Rodó (...), Ariel, escrita

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em 1900. A obra percorreu a América Latina e tinha gozar das mais altas liberdades (...). O Estado nunca se
como alvo a educação dos jovens que seriam desinte- podia pôr no lugar do esforço humano para a Bildung,
ressados ante um espírito pragmático e corrompido. ou cultura pessoal, mas podia e devia “promover condi-
A premissa idealista reafirmada no Manifesto tinha, à ções favoráveis à vida moral” (MERQUIOR, 2014, p. 188).
semelhança do arielismo, uma aposta na ação do in-
divíduo na sociedade e na história (NETO, 2011, p. 66). Por fim, o conceito de liberdade do autor de Ariel
tem um viés mais positivo do que negativo; isto é, o es-
Em segundo lugar, Rodó compartilhava com o li- critor uruguaio está preocupado não só com a garantia
beralismo social o papel atribuído ao Estado na forma- dos direitos civis básicos (como a liberdade econômica),
ção moral e cultural dos indivíduos: “a igualdade demo- mas também com o potencial de autorrealização dos in-
crática, longe de se opor à seleção dos costumes e das divíduos; basta lembrar, por exemplo, da passagem em
ideias, é o instrumento mais eficaz de seleção espiritual, que afirma que a riqueza material é insuficiente para o
é o ambiente providencial da cultura” (RODÓ, 1991, p. desenvolvimento moral de uma nação, sendo necessário
63). Compare-se essa passagem o seguinte trecho de também o cultivo dos “interesses da alma”. Sobre como
O Liberalismo: Antigo e Moderno: a liberdade positiva aparece no pensamento social-libe-
ral, eis outro trecho do livro de Merquior:
[Thomas Hill] Green pensou que é boa coisa a “remo-
ção de obstáculos” mediante reformas esclarecidas Os novos liberais queriam implementar o potencial
que possibilitassem a um maior número de indivíduos para o desenvolvimento do indivíduo que fora caro a

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Mill em seguimento a Humboldt, e ao fazê-lo pensa- substituição de uma sociologia por uma mera coleção
ram no direito e no Estado como instituições habili- de clichês humanísticos (Ibidem, p. 221).
tadoras. Essa preocupação com a liberdade positiva
levou-os a ultrapassar o Estado minimalista. (MER- Merquior volta a tratar de José Enrique Rodó,
QUIOR, 2014, p. 200) ainda que de forma sucinta, no artigo O Charme de
Octavio Paz (1981); após criticar, baseando-se em Car-
As críticas de Merquior ao arielismo los Rangel (1929-198), as primeiras obras de Paz por
O primeiro comentário de José Guilherme Merquior seguirem o problemático percurso da “ideologia lati-
a Rodó ocorre no ensaio Linhas do ensaísmo de inter- no-americana” – isto é, “imaginação compensatória (...)
pretação nacional na América Latina (1981). Ao disser- de estados naturais ou eldorados messiânicos, sempre
tar sobre as diferentes reações dos intelectuais latino- colocados fora da história real, e naturalmente, fora do
-americanos à problemática do “continente enfermo” alcance da crítica racional” (Idem, 1983b, p. 54) –, José
(isto é, o estigma da mestiçagem, da “impureza” racial Guilherme não poupa Rodó de contribuir para essa “mi-
dos países de colonização ibérica), Merquior faz um co- tologia postiça”, na medida em que a retórica do uru-
mentário sobre o ensaio de José Enrique Rodó. O tom é guaio evocava a latinidade com “a volúpia ultra-artificial
levemente irônico: “Bíblia do americanismo humanísti- da espiritualidade estética” (Ibidem, p. 55).
co, Ariel declara, ou melhor, declama a supremacia da A propósito, em seu livro Do bom selvagem ao bom
espiritualidade estética dos latinos sobre o tosco utili- revolucionário (1976), o mesmo Rangel afirma que Rodó
tarismo anglo-saxão”. (Idem, 1983a, p. 220). conseguiu colocar em seu livro as angústias e os res-
José Guilherme nota duas ironias em relação a essa sentimentos das classes dirigentes latino-americanas,
mensagem de Ariel. A primeira é insistir no chavão do especialmente dos intelectuais, dando às carências des-
“utilitarismo ianque” praticamente no mesmo ano em se grupo de latino-americanos uma compensação so-
que Thorstein Veblen (1857-1929) publicou A Teoria ciológica adequada; em outras palavras, Ariel aplica um
da Classe Ociosa (1899), obra esta que “detectava, nas efeito tranquilizador na má consciência dos “letrados”
elites do Atlântico Norte, uma classe de lazer, voltada latino-americanos, existencialmente atormentados por
para o consumismo ostensivo e a competição pelo sta- sua situação privilegiada no seio de uma sociedade pau-
tus, como qualquer aristocracia versalhesca” (Ibidem, p. pérrima e marcada por formas “clássicas” de desigual-
220). A segunda é que, apesar de sua posição ambígua dade social e servidão. Nesse sentido, o ensaio de
em relação à democracia, Rodó é, no fundo, mais elitista Rodó revela menos algo sobre os norte-americanos do
que seu modelo, Renan, que se tornou mais republicano que sobre nós mesmos (cf. RANGEL, 1992, pp. 138-142).
e favorável ao princípio democrático ao longo dos anos: Em A lição de Lobato (1982), José Guilherme recha-
ça o “idealismo utópico” de Rodó ao contrapô-lo à visão
O arielismo é um elitismo político-cultural, e não admi- mais progressista e cosmopolita de Monteiro Lobato:
ra que Rodó termine entrando em choque com a mais
séria experiência democrático-reformista da América Tal como a sábia Dona Benta, Lobato enxergava na ci-
2
Latina do seu tempo: a social- democracia de Batlle. vilização americana, no progresso à americana, um
Tal foi o preço pago pela revolta “neoidealista” (o ter- vasto bem social, produtivo e emancipatório. Na au-
mo é de Rodó) do modernismo hispânico (...) contra os rora do século, o humanismo latino-americano se en-
cientificismos precedentes: o abandono da perspec- crespara contra o modelo ianque na túrgida retórica
tiva social, que Ingenieros, ou o nosso Euclides, ha- do Ariel de Rodó. Pois bem: nada menos arielista do
viam sabido encarnar tão bem; e, de cambulhada, a que a mensagem lobatiana, que contrapõe o “idealis-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mo orgânico”, objetivo e prático, dos anglo- saxões ao ensaio o calibanismo de Morse é apenas uma silhueta
“idealismo utópico”, sonhador e palavroso, dos latinos do arielismo de Rodó:
(MERQUIOR, 1983b, p. 94).
Na verdade, a simpatia de Morse por Caliban preen-
Rodó é citado, como sempre de forma negativa, che a mesma função psicológica que o panegírico
no ensaio Gilberto e depois (1987). Embora reconheça ao espírito alado, o antídoto ao anglo-materialismo,
que Ariel pode ser um antídoto ao etnopessimismo ra- cumpria em Rodó. Em ambos os casos existe a postu-
cial e racista da época positivista, Merquior prefere a lação de uma superioridade moral da cultura ibérica,
interpretação de Gilberto Freyre: primeiro, porque está supostamente mais humana e cordial, mais lúdica e
mais afinada com a sociologia da modernização, em sociável do que a sua contrapartida anglo-america-
relação à qual a retórica arielista é incompatível, com na (Ibidem, p. 71).
seu desprezo pela civilização materialista; segundo, em
razão de seu telurismo, distante das “espiritualidades O pressuposto antiutópico (ou mesmo antirromân-
neoidealistas” do escritor uruguaio: “a terra é uma mãe tico) dessa e de outras críticas de Merquior a autores
física e violenta, e disso o Renan do Prata, Rodó, de nada como Rodó, Paz e Morse aparece quando o autor alega
sabia” (Idem, 1987, p. 128). que o dever crítico dos intelectuais é de caráter mais
restritivo do que positivo: ele consiste em “questionar
A última menção do ensaísta brasileiro a José En- as visões de sociedade que se afastam demais da reali-
rique Rodó é em O Outro Ocidente (1988), sua contri- dade, ou que a interpretam de maneira demasiadamen-
buição ao debate sobre a polêmica obra O Espelho de te unilateral” (Ibidem, p. 88).
Próspero (Richard Morse) que ocupou parte da inte- No final do texto, José Guilherme recorda um epi-
lectualidade brasileira na década de 80. Diante do viés sódio envolvendo Rodó e o escritor espanhol Miguel de
frankfurtiano de Morse, para quem a “Ibero-América Unamuno (1864-1936), no qual este criticou o esteticis-
escapou do triste mundo desencantado, a Waste Land mo que permeava a visão de mundo do uruguaio:
moral da alta modernidade.” (Idem, 1990, p. 75), eis o
argumento central desse ensaio de Merquior: Quando Rodó lhe enviou seu Ariel, Miguel de Unamu-
no escreveu uma resposta curiosa. Embora tenha sido
...a América Latina é obviamente parte do Ocidente. delicado em sua réplica, sabe-se que Don Miguel não
Nós não somos uma antítese do Ocidente e muito me- poderia digerir a mensagem arielista. Esta, segundo
nos uma alternativa à sua cultura. (...) De fato, somos Unamuno, era por demais latina, católica, francesa e,
uma modificação e uma modulação original e vas- consequentemente, por demais ática e esteticista. Em
ta da cultura ocidental. (...) a América Latina [é] o ou- carta subsequente, Unamuno despedaçou o “ideocra-
tro Ocidente: mais pobre, e mais enigmático; um Oci- tismo latino”, vinculando-o à idolatria e considerou es-
dente problemático, mas não menos Ocidente, como tes dois traços como reflexos de “uma tendência a to-
o comprovam a linguagem, os valores, e as crenças mar a vida como obra de arte e não como algo formi-
de suas sociedades (Ibidem, p. 87). dável e sério” (Ibidem, p. 90).

Como Rodó foi o primeiro a utilizar os personagens Essas duras críticas de Merquior a Rodó, em parti-
de A Tempestade para interpretar a cultura latino-ame- cular a que menciona a função psicológica do arielismo,
ricana, Merquior inevitavelmente teceu mais algumas podem ser aproximadas à de um autor de uma posição
observações sobre o autor de Ariel. Logo no início do política bem diversa do autor de O Liberalismo: Antigo

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e Moderno, mas que compartilhava com este as restri- vertentes do liberalismo (tal como catalogadas por
ções em relação às perspectivas desvairadamente idea- Merquior) elas podem ser encaixadas e, por fim, apre-
listas e utópicas do Brasil e da América Latina: refiro-me sentar as críticas de Merquior a José Enrique Rodó.
a Oliveira Vianna (1883-1951). Em seu artigo O neo-mon- A primeira das conclusões é que, embora à primeira
roismo e a theoria anthropologica de Lapouge (1912), vista Rodó se enquadre no liberalismo conservador (de-
ele alega que os argumentos de autores como Manuel vido a seu elitismo político-cultural, seu tradicionalismo,
Ugarte (1875-1951), Eduardo Prado (1860-1901) e o sua desconfiança do igualitarismo e da democracia e
próprio Rodó não passam de “simulação de força, uma até mesmo sua leitura tocquevilliana da cultura norte-
simulação de grandeza, uma simulação de superiorida- -americana), há pelo menos três aspectos em que sua
de – estrepitosa, retumbante e ingênua” (VIANNA, 1912). perspectiva se aproxima do liberalismo social: sua de-
Vianna vai além e alega que o Ariel de Rodó opera um fesa da educação pública, o papel cultural e moral que
“verdadeiro trabalho de autoilusionismo: enganamo-nos atribui ao Estado e sua concepção positiva da liberdade.
a nós mesmos, afetando uma convicção de superiorida- A segunda constatação é que José Guilherme Mer-
de que não possuímos realmente, ou desdenhando nos quior tinha várias ressalvas em relação ao pensamento
nossos antagonistas essas qualidades que são para es- de Rodó: criticou-lhe o “idealismo utópico”, a verborra-
ses as mesmas garantias do triunfo” (Ibidem). gia humanista, o ressentimento cultural, o esteticismo,
a demofobia e o baixo rendimento sociológico de seu bi-
Conclusão narismo culturalista.
Procurei mostrar, ao longo deste trabalho, as te- Julguei pertinente mostrar as críticas feitas ao autor
ses centrais de Ariel para depois analisar em que de Ariel por Carlos Rangel e Oliveira Vianna para mos-

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trar que as reservas de Merquior em relação ao escri- Além disso, para recorrer a Merquior, talvez seja inte-
tor uruguaio não são idiossincráticas; pelo contrário, ressante pensar a América Latina como parte (ainda
ao longo do século XIX o arielismo não teve apenas ad- que “heterodoxa”) do Ocidente em vez de celebrar, com
miradores (como os da Reforma de Córdoba e, de certa uma lassidão romântica, suas idiossincrasias e pecu-
maneira, Morse, que também combate o materialismo e liaridades, sem considerar que os elementos não oci-
o utilitarismo da cultura e sociedade norte-americana), dentais de nossas culturas muitas vezes se combina-
mas também recebeu críticas contundentes. ram com os ocidentais para gestar interessantes “mis-
Por mais que o esforço de interpretar a identidade cigenações” como o catolicismo crioulo do México ou o
cultural latino-americana possa permitir um produtivo sincretismo brasileiro.
resgate de nossos valores e tradições (e nesse sentido
Rodó tem razão ao valorizar o legado clássico e cris-
O autor é doutorando em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais
tão), é preciso estar atento ao risco de se cair em uma e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
idealização culturalista e de reduzido valor heurístico. kaiofelipe@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. “Os americanos não leem as obras de Descartes, porque seu constituem mais que uma espécie de poeira intelectual que se agi-
estado social os desvia dos estudos especulativos, e seguem suas ta de todos os lados, sem poder se juntar e se fixar” (TOCQUEVI-
máximas, porque esse mesmo estado social dispõe naturalmen- LLE, 2014, pp. 4-7).
te seu espírito a adotá-las (...). Cada qual procura então ser au-
tossuficiente e vangloria-se de ter sobre todas as coisas cren- 2. A propósito, Merquior escreveu um interessante artigo sobre
ças próprias. Os homens passam a estar ligados apenas por in- esse ex-presidente uruguaio, intitulado Grandeza de Batlle. Vide MER-
teresses, não por ideias, e dir-se-ia que as opiniões humanas não QUIOR, 1983a, pp. 247-254.

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78 Calibã
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

janeirO • fevereiro • março 2016 79


80 Canotilho
O NOVO
Constitucionalismo
LATINO-AMERICANO
a arte de sujar as
constituições transformadoras

Gilberto Bercovici
Jurista

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

TÍTULO I Art. 3º Não por acaso, até poucos anos atrás, qual-

DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS


quer referência ao constitucionalismo latino-americano
era feita por intermédio da visão de Karl Loewenstein e
CAPÍTULO I sua célebre “classificação ontológica das constituições”.
DO MODELO EUROPEU E NORTE-AMERICANO Nessa classificação, o jurista alemão buscou compreen-
der a inserção da constituição na realidade do poder, ou
seja, se ocorria a sua efetiva realização e observância.
Art. 1º O constitucionalismo latino-americano, se- Loewenstein, então, dividiu as constituições em norma-
gundo Aguilar Rivera, foi entendido reiteradamente como tivas, nominais e semânticas. Normativas são as cons-
um “desvio” do constitucionalismo europeu e norte-ame- tituições que efetivamente se incorporam aos sistemas
ricano. Isto explicaria o sucesso teórico e o fracasso políticos, sendo observadas e cumpridas, limitando o
real do liberalismo e do constitucionalismo na Améri- poder. Semânticas são apenas constituições de facha-
ca Latina: a teoria era perfeita, mas a realidade não. A da, sem relevância jurídica ou concreta. Já as constitui-
tese dominante, defendida, entre outros, por Bravo Lira, ções nominais são juridicamente válidas, embora mui-
sempre entendeu que o fracasso do constitucionalismo tas vezes, por força das circunstâncias fáticas, care-
latino-americano se deveria exclusivamente às suas so- çam de realidade existencial. Os pressupostos sociais
ciedades patrimonialistas, autoritárias e atrasadas. Este ou econômicos existentes impedem uma concordância
constitucionalismo estaria marcado pelo conflito en- absoluta entre as normas constitucionais e a dinâmi-
tre os ideais de uma minoria ilustrada, que elaborou os ca da vida política. A América Latina, segundo o próprio
textos constitucionais, e a realidade dos seus países. A Loewenstein, seria o terreno tradicional onde se assen-
Constituição, de início, seria uma norma aparentemente taria a constituição nominal.3
estranha e sem sentido, mas que, com o tempo, segun-
do seus defensores, conseguiria ser efetivada e fazer a
realidade se enquadrar ao seu texto.1 CAPÍTULO II
Art. 2º Esta visão do “desvio”, de acordo com Agui- Das mudanças revolucionárias
lar Rivera, se esquece de alguns problemas fundamen-
tais para a compreensão do constitucionalismo latino-
-americano: para ele, foi na América Latina, no início do Art. 1º O chamado “novo constitucionalismo latino-
século XIX, que se desenvolveu, pela primeira vez, a ex- -americano” introduziu, por intermédio de assembleias
periência do estabelecimento simultâneo de governos constituintes plenamente democráticas, a vontade de
constitucionais em vários Estados. Até então, o cons- mudanças revolucionárias presentes nos povos de vá-
titucionalismo foi limitado às experiências anglo-ame- rios países do continente, gerando um constitucionalis-
ricana e francesa. Ainda não havia um modelo teórico mo comprometido com transformações estruturais pro-
constitucionalista definido, com inúmeras questões em fundas nas esferas política, social e econômica. Estaría-
aberto: soberania popular ou nacional, separação de mos diante de um novo momento na história do constitu-
poderes, representação, eleições etc. Na América Lati- cionalismo, com propostas constituintes que iriam mui-
na, firmou-se a crença na Constituição como um instru- to além do chamado “constitucionalismo do bem-estar”
mento perfeito para regenerar as novas nações. Mas o (o constitucionalismo social), que não teria conseguido
fracasso da experiência constitucional latino-america- enfrentar os desafios do neoliberalismo e das propos-
na a teria excluído da história vencedora do liberalismo tas de desmantelamento do Estado Social que se torna-
e do constitucionalismo.2 ram hegemônicas a partir da década de 1980.4 E a pro-

82 Canotilho
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

va disso seria, entre outras, a grande ênfase dos novos Art. 5º Estes meios estão consagrados nos capítulos
textos constitucionais latino-americanos em instrumen- referentes aos direitos fundamentais (Parte III da Consti-
tos de democracia participativa e direta.5 tuição de 1949) e, especialmente, aos princípios diretores
Art. 2º Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dal- da política do Estado (“Directive Principles of State Policy”
mau, embora reconheçam que o processo de reconsti- – Parte IV da Constituição, artigos 36 a 51). As influências
tucionalização latino-americana tenha se iniciado na dé- ideológicas sobre os constituintes indianos foram várias,8
cada de 1980, não entendem que processos constituin- incluindo os socialistas ingleses, como Harold Laski, mas o
tes como o brasileiro de 1987-1988 sejam marcos do texto dos Princípios Diretores da Política do Estado é dire-
“novo constitucionalismo latino-americano”. Para esses tamente inspirado no artigo 45 da Constituição da Irlanda
autores, embora a Constituição brasileira de 1988 te- de 1937, denominado Princípios Diretores da Política So-
nha antecipado muitas das pautas que caracterizariam cial (“Directive Principles of Social Policy”). Nas palavras
o “novo constitucionalismo latino-americano” (meio am- de Austin: “The Indian Constitution is first and foremost a
biente, proteção aos direitos dos indígenas etc.), o fato social document.·The majority of its provisions are either
de ter sido fruto de uma transição pactuada, elabora- directly aimed at furthering the goals of the social revo-
da por um Congresso Constituinte, não por uma Assem- lution or attempt to foster this revolution by establishing
bleia Constituinte exclusiva, não permitiria que a Consti- the conditions necessary for its achievement. Yet despite
tuição de 1988 inaugurasse o chamado “novo constitu- the permeation of the entire Constitution by the aim of na-
cionalismo latino-americano”, o que teria sido feito pela tional renascence, the core of the commitment to the so-
Constituição da Colômbia de 1991 e seguido pelas Cons- cial revolution lies in Parts III and IV, in the Fundamental
tituições da Venezuela de 1999, do Equador de 2008 e Rights and in the Directive Principles of State Policy, These
da Bolívia de 2009.6 are the conscience of the Constitution. The Fundamental
Art. 3º Discordo desse posicionamento, pois enten- Rights and Directive Principles had their roots deep in the
do que o “novo constitucionalismo latino-americano” se struggle for independence. And they were included in the
insere em um movimento mais amplo, não específico da Constitution in the hope and expectation that one day the
América Latina do final do século XX ou início do sécu- tree of true liberty would bloom in India. The Rights and
lo XXI. Esse movimento, das chamadas “constituições Principles thus connect India’s future, present, and past,
transformadoras”, tem início no século XX, com a Cons- adding greatly to the significance of their inclusion in the
tituição da Índia de 1949 e abrange países de culturas Constitution, and giving strength to the pursuit of the so-
distintas, como a África do Sul, Brasil, Portugal ou Es- cial revolution in India” .9
panha, mas todos com uma característica comum: a si-
tuação periférica na economia mundial.
Art. 4º A Constituição da Índia é entendida não ape- CAPÍTULO III
nas como marco jurídico da libertação do jugo colonial DA TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO
britânico, mas também como um documento revolucio-
nário em termos econômicos e sociais. Embora tenham
rejeitado um modelo de desenvolvimento inspirado nos Art. 1º Esta ideia da constituição como um plano
ensinamentos de Gandhi, com ênfase nas comunidades de transformações sociais e do Estado10 foi incorpora-
tradicionais locais,7 os constituintes indianos buscaram da por outros textos constitucionais, de maneira bem
dotar o novo Estado de meios para transformar as es- acentuada nas constituições de Portugal de 1976 e da
truturas sociais e econômicas nas quais vivia a imensa Espanha de 1978. A Constituição de Portugal, fruto do
maioria do povo. movimento que, em 25 de abril de 1974, derrubou o re-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

gime fascista, foi, em sua versão original, um verdadei- gislador. Já o conceito de Canotilho é muito mais amplo,
ro documento revolucionário. O texto constitucional por- pois não apenas uma parte da constituição é chamada
tuguês chegou a prever expressamente como objetivo de dirigente, mas toda ela.14 O ponto em comum de am-
da República “assegurar a transição para o socialismo” bos, no entanto, é a desconfiança do legislador: ambos
(artigo 2º). bem como determinou ser tarefa fundamen- desejam encontrar um meio de vincular, positiva ou ne-
tal do Estado socializar os meios de produção e riqueza gativamente, o legislador à constituição.
e abolir a exploração e a opressão do homem pelo ho- Art. 4º A proposta de Canotilho é bem mais ampla e
mem (artigo 9º, ‘c’), além da defesa da apropriação co- profunda que a de Peter Lerche: seu objetivo é a recons-
letiva dos principais meios de produção (artigo 10º, 2). trução da Teoria da Constituição por meio de uma Teoria
Essa versão revolucionária do texto constitucional por- Material da Constituição, concebida também como teo-
tuguês foi totalmente revista nas revisões constitucio- ria social.15 A constituição dirigente busca racionalizar
nais de 1982 e 1989, inclusive como exigência para a a política, incorporando uma dimensão materialmente
adesão de Portugal à União Europeia. O modelo ibérico legitimadora, ao estabelecer um fundamento constitu-
de “constituição transformadora”, adotado ao final da cional para a política.16 O núcleo da ideia de constituição
década de 1970, e que seria depois transplantado para dirigente é a proposta de legitimação material da cons-
a América Latina, ficou conhecido pela denominação de tituição pelos fins e tarefas previstos no texto constitu-
“constituição dirigente”. cional. Em síntese, segundo Canotilho, o problema da
Art. 2º Em 1961, ao utilizar a expressão “constituição constituição dirigente é um problema de legitimação.17
dirigente” (“dirigierende Verfassung”), o constitucionalis-
ta alemão Peter Lerche estava acrescentando um novo
domínio aos setores tradicionais existentes nas consti- TÍTULO II
tuições. Em sua opinião, todas as constituições apresen-
DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
tariam quatro partes: as linhas de direção constitucio-
nal, os dispositivos determinadores de fins, os direitos, CAPÍTULO I
garantias e repartição de competências estatais e as DA EMANCIPAÇÃO DA SOCIEDADE
normas de princípio.11 No entanto, as constituições mo-
dernas se caracterizariam por possuir, segundo Lerche,
uma série de diretrizes constitucionais que configuram Art. 1º Para a Teoria da Constituição Dirigente, a
imposições permanentes para o legislador. Essas diretri- constituição não é só garantia do existente, mas também
zes são o que ele denomina de “constituição dirigente”.12 um programa para o futuro. Ao fornecer linhas de atua-
Pelo fato de a “constituição dirigente” consistir em dire- ção para a política, sem substituí-la, destaca a interde-
trizes permanentes para o legislador, Lerche vai afirmar pendência entre Estado e sociedade: a constituição di-
que é no âmbito da “constituição dirigente” que poderia rigente é uma Constituição estatal e social.18 No fundo, a
ocorrer a discricionariedade material do legislador.13 concepção de constituição dirigente para Canotilho está
Art. 3º A diferença da concepção de “constituição ligada à defesa da mudança da realidade pelo direito. O
dirigente” de Peter Lerche para a consagrada do ju- sentido, o objetivo da constituição dirigente é o de dar for-
rista português José Joaquim Gomes Canotilho torna- ça e substrato jurídico para a mudança social. A consti-
-se evidente. Lerche está preocupado em definir quais tuição dirigente é um programa de ação para a altera-
normas vinculam o legislador e chega à conclusão de ção da sociedade.19
que as diretrizes permanentes (a “constituição dirigen- Art. 2º Esta dimensão emancipatória é ressaltada
te”) possibilitariam a discricionariedade material do le- por todas as versões de constituição dirigente.20 Seja a

84 Canotilho
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constituição dirigente “revolucionária”, como a versão está por se realizar, implicando na obrigação do Estado
original portuguesa de 1976, seja a constituição dirigen- em promover a transformação da estrutura econômi-
te “reformista”, como a espanhola de 1978 e a brasileira co-social. Os dispositivos constitucionais italiano e es-
de 1988, que, embora não proponham a transição para panhol buscam a igualdade material através da lei, vin-
o socialismo, determinam um programa vasto de políti- culando o Estado a promover meios para garantir uma
cas públicas inclusivas e distributivas. existência digna para todos. A eficácia jurídica desses
Art. 3º No caso da África do Sul, o modelo da “cons- artigos, assim como a do artigo 3º do texto constitucio-
tituição transformadora”, simbolizado na Constituição nal brasileiro ou dos “Directive Principles of State Poli-
democrática de 1996, especificamente na sua Declara- cy” da Constituição da Índia, não é incompatível com o
ção de Direitos (artigos 7º a 39), que busca romper com fato de que, por seu conteúdo, a realização desses pre-
a sociedade do apartheid, foi teorizado sob a denomina- ceitos tenha caráter progressivo e dinâmico e, de certo
ção de “transformative constitutionalism”. Os sul-africa- modo, sempre inacabado.
nos defendem uma constituição voltada para o futuro, Art. 2º Sua concretização não significa a imediata
que corrija os erros do passado e que estruture as li- exigência de prestação estatal concreta, mas uma atitu-
nhas mestras da construção de uma nova ordem econô- de positiva, constante e diligente do Estado.22 Nesse mes-
mica e social, combatendo a pobreza e a desigualdade.21 mo sentido, afirma K. C. Markandan: “Directive Principles
Art. 4º A Constituição brasileira de 1988 é uma cons- are the deliberate formulation of national policy. They
tituição dirigente. O seu artigo 3º incorpora um progra- were not formulated by any particular political party in
ma de transformações econômicas e sociais a partir a party convention or by a legislative body but by the rep-
de uma série de princípios de política social e econômi- resentatives of a nation assembled in solemn conclave
ca que devem ser realizados pelo Estado brasileiro. As to lay down the Constitution for the government of the
normas determinadoras de fins do Estado dinamizam o country. They indicate to the people of the country as to
direito constitucional, isto é, permitem uma compreen- what the State might do for them, as to what the State
são dinâmica da constituição, com a abertura do texto seeks to achieve and as to which way the State would
constitucional para desenvolvimentos futuros. Sua es- be travelling. Far from being a proclamation of Princi-
trutura normativa teleológica, com a exigência de trans- ples, the Directives constitute a pledge by the framers
formações profundas, faz com que sejam denominadas of the Constitution to the people of India and a failure to
de “cláusulas transformadoras” por Pablo Lucas Verdú. implement them would constitute not only a breach of
A ideia de “cláusula transformadora” está ligada ao ar- faith with the people but would also render a vital part
tigo 3º da Constituição italiana de 1947 e ao artigo 9º, 2 of the constitution pratically a dead letter”.23 Do mesmo
da Constituição espanhola de 1978. modo que os dispositivos italiano, espanhol e indianos
mencionados, o artigo 3º da Constituição de 1988 está
voltado para a transformação da realidade brasileira: é
CAPÍTULO II a “cláusula transformadora” que objetiva a superação
DA CLÁUSULA TRANSFORMADORA do subdesenvolvimento.24
Art. 3º A sua importância, segundo Jorge de Este-
ban Alonso, está no fato de permitir, sem romper com a
Art. 1º Em ambos os casos, a “cláusula transforma- legalidade constitucional, avançar pela concretização de
dora” explicita o contraste entre a realidade social in- determinados objetivos que visam tornar real a supre-
justa e a necessidade de eliminá-la. Desse modo, impe- macia do povo como sujeito da soberania, rechaçando
dem que a Constituição considere realizado o que ainda a manutenção dos interesses privados de uma classe

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ou grupo dirigente. O artigo 3º da Constituição de 1988 nais. Ao dirigismo constitucional foi imputada a respon-
é um instrumento normativo que transformou fins so- sabilidade maior pela “ingovernabilidade” do país.27 O
ciais e econômicos em jurídicos, atuando como linha de curioso é que são apenas os dispositivos constitucio-
desenvolvimento e de interpretação teleológica de todo nais relativos às políticas públicas e aos direitos so-
o ordenamento constitucional. Em termos de teoria da ciais que “engessariam” a política, retirando, assim, a
norma, não é uma “norma programática”, concepção liberdade de atuação do legislador e dos governantes.
conservadora e teoricamente equivocada que justifica Alguns autores, inspirados na célebre metáfora de Jon
a não vinculatividade e a não concretização dos dispo- Elster, inclusive, afirmam categoricamente que os di-
sitivos constitucionais. A norma do artigo 3º da Consti- reitos sociais “amarram as futuras gerações”28 (curio-
tuição de 1988 é uma “norma-objetivo” ou “norma-fim” samente, nunca os direitos individuais, como o direito
(“norma di scopo”), ou seja, indica os fins, os objetivos a de propriedade). E os mesmos críticos da constituição
serem perseguidos por todos os meios legais disponí- dirigente são os grandes defensores das políticas de
veis para edificar uma nova sociedade, distinta da exis- estabilização e de supremacia do orçamento monetá-
tente no momento da elaboração do texto constitucio- rio sobre as despesas sociais.
nal. O Estado, assim, retira sua legitimidade de suas ta-
refas materiais. Nesse sentido, o Estado deve ser enten-
dido como o “portador da ordem social”, o que pressu- TÍTULO III
põe uma vontade política disposta a colocar o programa
DAS AMARRAS CONSTITUCIONAIS
constitucional em andamento.25
Art. 4º Toda essa gama de textos constitucionais CAPÍTULO I
transformadores, da Índia à África do Sul, passando por DA EMANCIPAÇÃO DA SOCIEDADE
Portugal, Espanha, Brasil e pelos países do “novo cons-
titucionalismo latino-americano” enfrentaram e enfren-
tam vários desafios comuns. Por exemplo, a extensão Art. 1º Em relação à imposição, pela via da reforma
e a complexidade dos textos constitucionais do “novo constitucional e da legislação infraconstitucional, das
constitucionalismo latino-americano”, segundo Viciano políticas ortodoxas de ajuste fiscal e de liberalização
Pastor e Martínez Dalmau, teriam também como função a da economia, não houve qualquer manifestação de que
permanência da vontade do poder constituinte, que bus- se estava “amarrando” os futuros governos a uma úni-
caria ser resguardada na medida do possível para evitar ca política possível, sem qualquer alternativa. Ou seja,
seu esquecimento ou abandono por parte dos poderes a constituição dirigente das políticas públicas e dos di-
constituídos, ou seja, seria uma forma de obrigar os po- reitos sociais é entendida como prejudicial aos interes-
deres constituídos a respeitar a vontade do poder cons- ses do país, causadora última das crises econômicas,
tituinte em todas as suas dimensões e implicações, limi- do déficit público e da “ingovernabilidade”. A constitui-
tando a sua margem de discricionariedade.26 Essa dis- ção dirigente invertida, isto é, a constituição dirigente
cussão é idêntica à travada no Brasil em torno da Consti- das políticas neoliberais de ajuste fiscal é vista como
tuição de 1988 e sua suposta pretensão de “engessar” a algo positivo para a credibilidade e a confiança do país
política, limitando a discricionariedade dos governantes. junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a cons-
Art. 5º A Constituição brasileira de 1988, como tituição dirigente invertida, é a verdadeira constituição
constituição dirigente, foi acusada pelos setores con- dirigente, que vincula toda a política do Estado brasilei-
servadores de “amarrar” a política, substituindo o pro- ro à tutela estatal da renda financeira do capital, à ga-
cesso de decisão política pelas imposições constitucio- rantia da acumulação de riqueza privada.

86 Canotilho
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Art. 2º No texto constitucional transformador, a cen- mente, a condição do Estado latino-americano como Es-
tralidade do Estado na esfera econômica é evidente, sen- tado periférico, na realidade, que exige que ele seja algo
do o agente encarregado de iniciar e garantir as trans- mais do que o Estado Social tradicional. A estrutura do
formações do sistema econômico e social.29 As consti- Estado Social europeu e as intervenções keynesianas na
tuições do “novo constitucionalismo latino-americano” economia são insuficientes para a atuação do Estado na
buscam transformar a realidade, rejeitada expressa- América Latina. A teoria de Keynes valoriza, também, os
mente pelo programa constitucional que albergam em centros nacionais de decisão para a obtenção do pleno
seus textos. Nesse sentido, a planificação adquire gran- emprego. Entretanto, se a luta contra o desemprego exi-
de importância.30 O seu destaque nos textos se amplia ge a atuação do Estado, esta é muito mais necessária
no decorrer do tempo. O texto venezuelano de 1999 (ar- para promover as modificações estruturais necessá-
tigo 299) dá importância ao planejamento, obviamente, rias para a superação do subdesenvolvimento. O papel
mas o trata de modo similar ao texto brasileiro de 1988 do Estado na América Latina deve ser muito mais amplo
(artigo 174, caput e artigo 174, §1º). As Constituições do e profundo do que nos países centrais.33
Equador e da Bolívia são, por sua vez, mais enfáticas no Art. 2º O Estado latino-americano, portanto, deve
tema do planejamento (artigos 275 e 277.2 da Constitui- sempre ser entendido historicamente, vinculado às re-
ção do Equador; artigo 316.9 da Constituição da Bolívia), lações político-ideológicas e de poder, que o conformam.
inclusive com mecanismos de participação dos cidadãos Assim, especificamente em relação ao Estado brasilei-
(artigo 279 da Constituição do Equador; artigos 242.7, ro, precisamos destacar alguns pontos.
316.1 e 317 da Constituição da Bolívia).
Art. 3º A análise da constituição econômica do “novo
constitucionalismo latino-americano” não pode ser feita CAPÍTULO III
sem se partir da comparação com o modelo original do DOS INTERESSES SOCIAIS
constitucionalismo econômico do Estado Social. As no-
vas constituições latino-americanas adotam mecanis-
mos gestados no constitucionalismo social, como os di- Art. 1º A autonomia do Estado brasileiro nunca foi
reitos sociais, os serviços públicos, o planejamento, as plena, dependendo das inúmeras forças políticas hete-
relações formais entre Estado e mercado, mas trans- rogêneas e contraditórias que o sustentam. No entanto,
cendem ao modelo de construção do Estado Social eu- segundo Sônia Draibe, é justamente esta heterogenei-
ropeu tradicional, pois estão inseridas em uma realida- dade que permitiu ao Estado uma certa liberdade para
de social e econômica muito mais complexa.31 exercer o papel de árbitro e regulador das relações so-
ciais, legitimando-se por meio do caráter geral e univer-
sal atribuído à sua atuação. Embora seja uma autono-
CAPÍTULO II mia limitada a um espaço político determinado, a direção
DO PAPEL DO ESTADO do Estado brasileiro, é impulsionada não pela burocra-
cia, mas pela Presidência da República, particularmen-
te após a Revolução de 1930. O sentido da ação estatal
Art. 1º Para Francisco de Oliveira, a escola de pen- dá-se pela hierarquização dos interesses sociais, defini-
samento formada pela CEPAL (Comisión Económica para dos e articulados em suas políticas ou omissões. Não é
América Latina) foi a única corrente teórica que conse- uma direção autodeterminada, mas também não se re-
guiu, efetivamente, perceber a especificidade da perife- duz ao jogo das forças políticas, levando-se em consi-
ria latino-americana.32 A CEPAL percebeu que é, justa- deração que a atuação do Estado altera constantemen-

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te as mesmas correlações de força que constituem sua ção de poder unificado, até formas de enquadramento
base material. E foi precisamente esta direção do Esta- político-institucional do proletariado emergente, numa
do, no contexto de uma esfera de atuação autônoma li- fase que é também a da constituição do ‘capitalismo in-
mitada, que, apesar das restrições, propiciou a realiza- dustrial’. Assim, a ossatura material-institucional do Es-
ção de um projeto de desenvolvimento, fundado na in- tado, contendo no seu modo próprio de armação o con-
dustrialização e na tentativa de autonomia nacional.34 junto dessas questões, expressará, através de suas es-
Art. 2º A etapa decisiva de constituição do Estado truturas e funcionamento, as peculiaridades da nossa
brasileiro ocorre, assim, a partir da Revolução de 1930. revolução burguesa.” 36
As tarefas a serem enfrentadas eram inúmeras: a cen-
tralização e unificação do poder estatal, a “estatização
das relações sociais”, quando os vários segmentos da TÍTULO IV
sociedade passaram a buscar o Estado como locus pri-
vilegiado para garantir ou ampliar seus interesses, a in-
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
tervenção econômica minimamente planejada, a cons- CAPÍTULO ÚNICO
trução de um aparelho burocrático-administrativo, etc. DA SOBERANIA POPULAR
O destaque deve ser dado à simultaneidade de questões
colocadas em um curto espaço de tempo para o Estado
brasileiro, ligadas à construção de um Estado nacional Art. 1º O Estado brasileiro constituído após a Re-
e de um Estado intervencionista com estruturas institu- volução de 1930, portanto, é um Estado estruturalmen-
cionais típicas do capitalismo avançado. E essa simulta- te heterogêneo e contraditório. É um Estado Social sem
neidade explica, historicamente, muitos avanços e con- nunca ter conseguido instaurar uma sociedade de bem-
tinuidades na estrutura estatal brasileira:35 “Centrali- -estar: moderno e avançado em determinados setores
zação e tendência à supressão de formas duais e frag- da economia, mas tradicional e repressor em boa par-
mentadas do poder, estatização das relações sociais, te das questões sociais. Entretanto, apesar das contra-
burocratização e modernização dos aparelhos estatais, dições e limitações estruturais, é um Estado que, para
inserção profunda do Estado na atividade econômica – Celso Furtado, poderia terminar o projeto de formação
nunca será demais insistir na concomitância das ques- nacional, ultrapassando a barreira do subdesenvolvi-
tões a que teria de responder neste período o Estado ca- mento.37 A falta de integração social, econômica e polí-
pitalista em formação. A complexidade desse processo, tica das sociedades latino-americanas continua exigin-
indicada aqui pela condensação, no tempo, de um con- do uma decisiva atuação do Estado.38 O alerta que deve
junto de problemas de natureza diversa, mostra a espe- ser feito é o dos limites e possibilidades do Estado latino-
cificidade do movimento de construção do Estado bra- -americano: “Si el pensamiento de la CEPAL sobre el pa-
sileiro. À diferença de outros casos e padrões de for- pel del Estado es contrastado con las experiencias his-
mação dos Estados capitalistas – nos quais as questões tóricas de los países centrales, se arriba a una conclu-
de centralização, unificação, delimitação da soberania sión esclarecedora: los problemas que la CEPAL creyó
sobre o território, ou aquelas intimamente vinculadas que los Estados latinoamericanos debían afrontar tam-
ao processo de urbanização e industrialização (em par- bién han formado parte – excepto el vinculado al carác-
ticular a questão social) distribuíram-se e foram solu- ter periférico – de la agenda de los Estados centrales en
cionadas em tempos bastante longos –, o Estado brasi- algún momento de su evolución, con la única y gran di-
leiro no pós-30 enfrenta ainda e ao mesmo tempo des- ferencia de que éstos los fueron tratando en el prolon-
de problemas de definição de soberania e de constru- gado lapso que va del absolutismo hasta nuestros días,

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mientras aquéllos deben hacerlo al mismo tiempo y du- ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas
rante un período mucho más reducido. Por lo tanto, a la que a impedem de se manifestar em toda sua plenitude.
luz de las experiencias y teorías de los centros y de las Desse modo, e essa talvez seja a grande inovação e con-
necesidades de nuestras sociedades, la CEPAL acertó tribuição do “novo constitucionalismo latino-americano”,
en aquel momento en los puntos claves de la agenda de a constante pressão das forças políticas populares é fun-
tareas que nuestros Estados debían encarar: agenda damental para que o Estado possa atuar no sentido de le-
que la crisis de hoy há reforzado y actualizado. Empe- var a soberania popular às suas últimas consequências
ro, la CEPAL no se preguntó entonces si los Estados la- e superar a barreira do subdesenvolvimento.
tinoamericanos estaban a la altura de dichas tareas, si
podrían realizarlas con éxito”.39 Afinal, o problema cen- O autor é professor titular de Direito Econômico e Economia Política
tral, é o fato de que a soberania do Estado brasileiro, ou da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor do
Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Uni-
de qualquer Estado latino-americano, como soberania versidade Presbiteriana Mackenzie.
de um Estado periférico, é uma “soberania bloqueada”, gilberto.bercovici@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. José Antonio Aguilar RIVERA, En Pos de la Quimera: Reflexiones so- 7. Sobre o modelo “gandhiano” de constituição e sua rejeição pela As-
bre el Experimento Constitucional Atlántico, México, Fondo de Cultura sembleia Constituinte, vide Granville AUSTIN, The Indian Constitution :
Económica/Centro de Investigación y Docencia Económicas, 2000, pp. Cornerstone of a Nation, reimpr., Oxford/New York/New Delhi, Oxford
17-19 e 24-33. Vide, ainda, Bernardino Bravo LIRA, “Entre Dos Cons- University Press, 2000, pp. 27-49.
tituciones, Histórica y Escrita: Scheinkonstitutionalismus en España,
Portugal e Hispanoamérica”, Quaderni Fiorentini per la Storia del 8. Granville AUSTIN, The Indian Constitution cit., pp. 41-43, 54-55, 59-
Pensiero Giuridico Moderno nº 27, pp. 151-152, 154-155 e 157-165. 61 e 75-77; John Maurice KELLY; Gerard HOGAN & Gerry WHYTE, The
Irish Constitution, reimpr. da 3ª ed, Dublin, Butterworths, 1999, p. 1118
2. José Antonio Aguilar RIVERA, En Pos de la Quimera: Reflexiones so- e Manju VERMA, The Directive Principles of the Indian Constitution, Pa-
bre el Experimento Constitucional Atlántico cit., pp. 15, 19-24 e 55-56. tna/New Dehli, Janaki Prakashan, 1998, pp. 9-51.

3. Karl LOEWENSTEIN, “Reflections on the Value of Constitutions in Our 9. Granville AUSTIN, The Indian Constitution cit., p. 50. Sobre o debate
Revolutionary Age” in Arnold J. ZURCHER (org.), Constitutions and Cons- em torno dos “Directive Principles of State Policy” na Constituinte india-
titutional Trends since World War II, 2ª ed, New York, New York Uni- na, vide, ainda, Granville AUSTIN, The Indian Constitution cit., pp. 50-83
versity Press, 1955, pp. 203-206 e Karl LOEWENSTEIN, Verfassungs- e K. C. MARKANDAN, Directive Principles of State Policy in the Indian
lehre, 4ª ed, Tübingen, J.C.B.Mohr (Paul Siebeck), 2000, pp. 151-157. Constitution, Jalandhar, ABS Publications, 1987, pp. 55-95 e 105-146.

4. Roberto Viciano PASTOR & Rubén Martínez DALMAU, “O Processo 10. Nesse sentido da constituição como um plano de configuração
Constituinte Venezuelano no Marco do Novo Constitucionalismo Lati- social para ser atuado pelos poderes constituídos, uma espécie de
no-Americano” in Antônio Carlos WOLKMER & Milena Petters MELO “plano dos planos” (“Plan der Pläne”), vide Norbert ACHTERBERG,
(orgs.), Constitucionalismo Latino-Americano: Tendências Contempo- “Die Verfassung als Sozialgestaltungsplan” in Norbert ACHTER-
râneas, Curitiba, Juruá, 2013, pp. 44-49 e 55-56. BERG (org.), Recht und Staat im sozialen Wandel: Festschrift für
Hans Scupin zum 80. Geburstag, Berlin, Duncker & Humblot, 1983,
5. Roberto Viciano PASTOR & Rubén Martínez DALMAU, “Fundamento pp. 300-309 e 311-315.
Teórico del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano” cit., pp. 45-46
e Alberto Pérez CALVO, “Características del Nuevo Constitucionalismo 11. Cf. Peter LERCHE, Übermass und Verfassungsrecht: Zur Bindung
Latinoamericano” cit., pp. 41-46. des Gesetzgebers an die Grundsätze der Verhältnismässigkeit und
der Erforderlichkeit, 2ª ed, Goldbach, Keip Verlag, 1999, pp. 61-62.
6. Roberto Viciano PASTOR & Rubén Martínez DALMAU, “Fundamento
Teórico del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano” cit., pp. 30-36 12. Peter LERCHE, Übermass und Verfassungsrecht cit., pp. VII e 64-65.
e Roberto Viciano PASTOR & Rubén Martínez DALMAU, “O Processo
Constituinte Venezuelano no Marco do Novo Constitucionalismo Lati- 13. Peter LERCHE, Übermass und Verfassungsrecht cit., pp. 65-77,
no-Americano” cit., pp. 49-55. 86-91 e 325.

janeirO • fevereiro • março 2016 89


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

14. Vide José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vin- 26. Roberto Viciano PASTOR & Rubén Martínez DALMAU, “Funda-
culação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas mento Teórico del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano” cit.,
Constitucionais Programáticas, 2ª ed, Coimbra, Coimbra Ed., 2001, pp. 40-41.
pp. 224-225 e 313, nota 60.
27. Vide Diogo de Figueiredo MOREIRA Neto, “Desafios Institucionais
15. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vincu- Brasileiros” in Ives Gandra MARTINS (org.), Desafios do Século XXI,
lação do Legislador cit., pp. 13-14. São Paulo, Pioneira/Academia Internacional de Direito e Economia,
1997, pp. 195-198 e Manoel Gonçalves FERREIRA Filho, Constituição
16. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vincu- e Governabilidade: Ensaio sobre a (In)Governabilidade Brasileira, São
lação do Legislador cit., pp. 42-49 e 462-471. Paulo, Saraiva, 1995, pp. 5, 21-23 e 142.

17. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vincu- 28. Cf. José Eduardo FARIA, “Entre a Rigidez e a Mudança: A Constitui-
lação do Legislador cit., pp. 19-24, 157-158 e 380. ção no Tempo”, Revista Brasileira de Direito Constitucional nº 2, julho/
dezembro de 2003, pp. 199-207.
18. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vincu-
lação do Legislador cit., pp. 150-153, 166-169, 453-456. 29. Gonzalo Maestro BUELGA, “El Nuevo Constitucionalismo Económi-
co Latinoamericano” in Claudia STORINI & José Francisco Alenza GAR-
19. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vincu- CÍA (orgs.), Materiales sobre Neoconstitucionalismo y Nuevo Consti-
lação do Legislador cit., pp. 455-459. tucionalismo Latinoamericano cit., pp. 93-94.

20. Para a distinção entre constituição dirigente “revolucionária” e “re- 30. Gonzalo Maestro BUELGA, “El Nuevo Constitucionalismo Económico
formista”, vide José Joaquim Gomes CANOTILHO, “Prefácio” in Consti- Latinoamericano” cit., pp. 95-101. A título de comparação, para o caso
tuição Dirigente e Vinculação do Legislador cit., pp. XXIX-XXX. indiano, vide Granville AUSTIN, The Indian Constitution cit., pp. 235-236.

21. Karl E. KLARE, “Legal Culture and Transformative Constitutio- 31. Gonzalo Maestro BUELGA, “El Nuevo Constitucionalismo Económi-
nalism” cit., pp. 151-156 e Sandra LIEBENBERG, Socio-Economic co Latinoamericano” cit., pp. 86-93.
Rights: Adjudication under a Transformative Constitution, Clare-
mont, Juta, 2010, pp. 24-34. Para uma visão crítica do “transfor- 32. Francisco de OLIVEIRA, “O Ornitorrinco” in Crítica à Razão Dualista/O
mative constitutionalism”, vide Karin Van MARLE, “Transformative Ornitorrinco, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003, pp. 125-128.
Constitutionalism as/and Critique”, Stellenbosch Law Review, vol.
20, pp. 286-300. 33. Celso FURTADO, Pequena Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque Interdisciplinar,
2ª ed, São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1981, pp. 29-30 e Adolfo GURRIE-
22. Costantino MORTATI, Istituzioni di Diritto Pubblico, 8ª ed, Padova, RI, “Vigencia del Estado Planificador en la Crisis Actual”, Revista de la
CEDAM, 1969, vol. II, pp. 945-948 e Pablo Lucas VERDÚ, Estimativa CEPAL nº 31, abril de 1987, pp. 204-205 e 211.
y Política Constitucionales (Los Valores y los Principios Rectores del
Ordenamiento Constitucional Español), Madrid, Sección de Publica- 34. Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses: Um Estudo sobre a Cons-
ciones – Facultad de Derecho (Universidad Complutense de Madrid), tituição do Estado e as Alternativas da Industrialização no Brasil,
1984, pp. 190-198. 1930-1960, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, pp. 42-45, 83 e 98-100.

23. K. C. MARKANDAN, Directive Principles of State Policy in the Indian 35. Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses cit., pp. 60-63, 77-80, 82
Constitution cit., pp. 173-174. e 135-136.

24. Para uma análise mais detida sobre o artigo 3º da Constituição de 36. Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses cit., pp. 62-63.
1988, vide Gilberto BERCOVICI, Desigualdades Regionais, Estado e
Constituição, São Paulo, Max Limonad, 2003, pp. 291-302. 37. Cf. Francisco de OLIVEIRA, “Viagem ao Olho do Furacão: Celso Fur-
tado e o Desafio do Pensamento Autoritário Brasileiro”, Novos Estu-
25. Carlo LAVAGNA, Costituzione e Socialismo, Bologna, Il Mulino, 1977, dos nº 48, julho de 1997, pp. 15-19. Vide, neste sentido, especialmen-
pp. 52-56; Jorge de Esteban ALONSO, “La Función Transformadora te Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida, 2ª ed, Rio de
en las Constituciones Occidentales” in Luis Sánchez AGESTA (coord.), Janeiro, Paz e Terra, 1992, pp. 11-13, 24-25 e 28-35.
Constitución y Economía: La Ordenación del Sistema Económico en
las Constituciones Occidentales, Madrid, Centro de Estudios y Comu- 38. Adolfo GURRIERI, “Vigencia del Estado Planificador en la Crisis Ac-
nicación Econõmica, 1977, pp. 155-158; Pablo Lucas VERDÚ, Estimati- tual” cit., pp. 213-214.
va y Política Constitucionales cit., pp. 155-164 e 184-198; Eros Rober-
to GRAU, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, São Paulo, RT, 1988, 39. Adolfo GURRIERI, “Vigencia del Estado Planificador en la Crisis Ac-
pp. 130-153; Gilberto BERCOVICI, Desigualdades Regionais, Estado e tual” cit., p. 205.
Constituição cit., pp. 291-302 e Karl-Peter SOMMERMANN, Staatszie-
le und Staatszielbestimmungen, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck),
1997, pp. 2, 5-6, 326, 374-398, 427, 462-477 e 482-483.

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91
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
ciência
política
de
Star
Wars
Guilherme Simões Reis
cientista social

Carlos Lemos
Graduando em ciência política

Renato Barreira
Graduando em ciência política

Weslley Dias
Cientista político

92 Anakin
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A integração
da galáxia se
deu com enormes
desigualdades
regionais

S
ó se fala e se escreve sobre Star Wars em todo o dos seus problemas era a corrupção, mas, em vez de tra-
mundo. Não há, portanto, por que deixar de lado tarem o problema a sério, impedindo-se, por exemplo, o
a discussão política que suas três trilogias sus- financiamento privado das campanhas dos senadores,
citam, especialmente em uma época em que a preser- cedeu-se a uma falsa solução bonapartista, que termi-
vação da democracia não parece algo prioritário para nou por fazer ruir aquele sistema democrático. Sobre
muitos. Assim como ocorre atualmente no planeta Ter- isso, no entanto, discorreremos depois.
ra, outros temas que não a política podem chamar mais A proclamação da República nessa galáxia ocorreu
a atenção e desviar o foco, tais como coloridos duelos muito antes,2 25 mil anos antes da ascensão do Império.
com sabres de luz, triângulos amorosos e melodramas A integração da galáxia se deu com enormes desigual-
familiares. Entretanto, uma milenar e imperfeita demo- dades regionais. Os Mundos do Núcleo, como a capital
cracia cosmopolita gradualmente foi se degradando até Coruscant, possuíam maior riqueza, produtividade, de-
se tornar um regime autocrático militar. É sobre isso senvolvimento tecnológico e policiamento. Os indicadores
que trata este artigo. Quem não assistiu aos sete filmes pioravam conforme se afastava do Núcleo: eram ainda
e prefere manter a surpresa não deve, obviamente, se- razoáveis na Orla Média, enquanto que havia uma con-
guir lendo, pois o texto é repleto de spoilers. siderável ausência do Estado nos territórios da Orla Ex-
Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante... terior, onde agiam com liberdade clãs mafiosos, piratas
Consolidou-se uma república federal pacificada so- e guildas mercenárias.3 Não por acaso as tentativas de
bre a maior parte dessa galáxia (em alguns setores mais derrubada do governo ao longo da história tenderiam a
distantes de seu núcleo central, no entanto, o Estado não ter suas bases nessas áreas mais afastadas.
penetrava), que durou mil anos. Abrangia 24.372 siste- Ficou conhecido como “Velha República” aquele tur-
mas planetários com representação parlamentar.1 Era, bulento período de 24 mil anos até a República ser des-
por certo, um regime imperfeito, tal como são todos os militarizada, isto é, deixar de ter um exército próprio com
regimes existentes. A marca mais óbvia e mencionada poder centralizado, quando se iniciou, então, a época

94 Anakin
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mais comumente referida como República Galáctica. A tado o preconceito, como fica claro pela forma pejora-
despeito da desmilitarização da República, os entes fe- tiva como Leia Organa, uma liderança importante na re-
derados mantiveram autonomia para ter exércitos pró- democratização, costumava se referir ao povo wookie.
prios e, como será apresentado, o uso deles pela Fede- No nível federal, o sistema de governo era o parla-
ração do Comércio e pelo Clã Bancário viria a ser fonte mentarismo, com o primeiro-ministro, chamado chan-
de instabilidade. celer supremo, sendo escolhido pelos membros do Se-
A Velha República foi marcada por profunda vio- nado Galáctico, a única câmara legislativa da Repúbli-
lência, e a clivagem fundamental que mobilizava as dis- ca, às vezes referida como Congresso. Os senadores
putas políticas, em geral no campo extrainstitucional, representavam os entes federativos, tal como no Brasil
era a religiosa. A religião da Força, que tinha como ins- ou nos Estados Unidos. Cada parlamentar poderia con-
tituição central a Ordem Jedi, sofreu um cisma cerca de tar com assessores e conselheiros, que teriam direito
500 anos após a proclamação da República.4 Enquanto a voz, mas não a voto. As sessões na Casa eram presi-
os ortodoxos jedi acreditam que a Força deve ser sen- didas pelo vice-chanceler, que organizava as votações
tida com paz de espírito, os dissidentes, chamados sith, e dava a palavra aos parlamentares, além de trabalhar
adeptos do chamado “lado sombrio”, pregam que o con- proximamente do chanceler supremo na definição da
flito emocional deve ser a fonte da Força. Os sith foram agenda legislativa.
forçados pelos “pacíficos” jedi ao exílio na Orla Exterior, Além dos três Poderes – Executivo (representado
onde fundaram um império. Dois milênios se passaram pelo chanceler supremo), Legislativo (o Senado Galác-
e o império sith e a república de influência jedi, isolados, tico) e Judiciário (o Tribunal, que não se caracterizava
deixaram até mesmo de ter conhecimento um do outro. pela celeridade) – constituía o arcabouço institucional
O contato se restabeleceu acidentalmente, quando cida- da República o Alto Conselho Jedi, uma espécie de mi-
dãos empreendedores da República tentavam abrir uma nistério público com grande autonomia e atribuição for-
nova rota de comércio. Imperialistas, os sith atacaram mal de guardião da paz e da justiça. Está aí, no entanto,
a República, levando à Grande Guerra do Hiperespaço, outro problema da República de um ponto de vista lai-
conflito que, direta ou indiretamente, alimentou todos os co e também da democracia representativa (ainda que
posteriores.5 Desde então, ocorreram inúmeras guerras, isso seja relativizado em função do fascínio que existe
muitas com décadas de duração. A última delas, com o pelos utilizadores da “Força”): tratava-se de um grupo
massacre dos sith pelos jedi, no qual só sobreviveu Dar- religioso e militar não eletivo mas decisivo. A despeito
th Bane entre os adeptos do lado sombrio,6 permitiu que da sua função legal, portanto, a influência desse grupo
a República procedesse com a desmilitarização, dada a condicionava os rumos da galáxia a um dogma baseado
inexistência de um Estado estrangeiro hostil. na negação da curiosidade, das paixões e dos prazeres.
A posterior e estável República Galáctica, desmili- Soma-se a isso o problema de, em caso de paralisia de-
tarizada, sobre a qual se têm mais informações, era um cisória no Senado, a burocracia, também não eleita, fi-
sistema federal, em que as unidades da Federação pos- car muito fortalecida, em uma situação de delegação de
suíam ampla autonomia interna – talvez um pouco como poder com óbvio déficit de accountability, por mais que
a primeira Constituição dos Estados Unidos no século defensores de medidas como a adoção de banco cen-
XVIII ou como a Confederação Argentina do século XIX tral independente possam não se importar muito com
antes do fortalecimento de Buenos Aires –, cada qual essas coisas.
com sua forma própria de governo. Tratava-se de um De modo semelhante à identificação, no budismo
Estado plurinacional, em que as diferentes “espécies” e tibetano, pelos lamas, dos sucessores dos mestres bu-
culturas coexistiam – por mais que nunca se tenha evi- distas iluminados, como o Dalai Lama, a serem treina-

96 Anakin
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dos desde muito jovens, o mesmo ocorria com a Ordem à democracia não seria exclusiva do planeta Terra, na
Jedi. Na República, os usuários da Força eram supos- desconhecida e muito distante Via Láctea. As megacor-
tamente detectados ainda quando crianças e levados porações (não só a Federação do Comércio, mas tam-
ao templo jedi da capital, Coruscant, para treinamento. bém a Aliança Corporativa, o Banco Intergaláctico, entre
O braço jedi da religião da Força, inclusive, assemelha- outros) queriam fazer valer seus lucros e proteger seus
-se ao budismo, valorizando a paz, tanto interior quan- interesses comerciais, e para isso apoiaram movimentos
to galáctica, e a harmonia. É claro que isso não signifi- contra a República. O próprio planeta Coruscant, a cos-
ca a defesa da igualdade social: se de um lado os jedi, mopolita capital, é uma representação da profunda in-
ou “utilizadores da Força”, são uma casta poderosa, de fluência do capitalismo na galáxia, com propaganda por
outro, na sociedade tradicional budista tibetana, vigo- toda parte em meio a seus gigantescos arranha-céus.
rava uma ordem social feudal e mesmo a servidão era A postura antidemocrática da Federação do Comér-
aceita. O braço sith da religião da Força, por sua vez, é cio ficou óbvia quando o Congresso da República apro-
abertamente escravocrata e considera os “usuários da vou mudança nos impostos sobre as rotas comerciais
Força” superiores ao restante da sociedade, devendo, para os sistemas estelares exteriores, o que era preju-
por isso, concentrar todo o poder. dicial a seus interesses. Liderada por seu vice-rei Nute
Gunray, a Federação do Comércio reagiu, realizando

O
utro problema gravíssimo na República Galáctica um bloqueio de naves de guerra para interromper to-
era o extremo poder exercido pela Federação do dos os carregamentos para o planeta Naboo (o que in-
Comércio, que chegava mesmo a ter um assen- crivelmente não violava a legislação galáctica!). A inten-
to no Senado Galáctico, além de, supostamente, influen- ção era pressionar o Senado.
ciar a mencionada burocracia por meio do pagamento Naboo é outro planeta central nos eventos que de-
de propinas. Visando a controlar todas as rotas comer- sencadearam a ruptura democrática, devido ao papel
ciais, a Federação do Comércio, cujo líder era chamado exercido por seu senador Sheev Palpatine, e é a unida-
de “vice-rei”, teve papel decisivo na ruptura democráti- de da federação que teve seu sistema de governo mais
ca, o que mostra que a falta de fidelidade empresarial detalhadamente explicado no cinema. Era um planeta di-

A Velha República
foi marcada
por profunda
violência

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vidido em duas partes, que nutriam desconfianças mú- nobres, em geral tendo maiores possibilidades aquelas
tuas e pouco mantinham contato entre si: uma situada mais tradicionais e abastadas. Nas profundezas do lago
na superfície e outra na isolada cidade subaquática de Paonga, a cidade de Otoh Gunga é governada pelo Che-
Otoh Gunga, “racialmente” muito diferente, composta pela fe (“Boss”) e seu Alto Conselho (ou Rep Council), que se
espécie gungan e não por humanos. A superfície de Na- assemelham a um presidente e seus ministros. Naboo
boo tem uma monarquia eletiva em que o rei ou rainha tinha uma história recente como membro da Repúbli-
governa com o auxílio do seu Conselho Consultivo Real, ca, só rompendo seu isolamento poucas décadas antes
cujo líder é chamado de governador. do conflito aqui descrito, durante o governo do rei Bon
Se por um lado o cargo máximo do planeta, o mo- Tapalo, que havia tido apoio financeiro e logístico de in-
narca, é popularmente eleito, por outro o senador é in- vestidores estrangeiros na eleição em troca da abertu-
dicado pelo rei ou rainha. Além disso, apesar da am- ra comercial e de endividamento com o Clã Bancário e
pla possibilidade de “contestação”, o sistema era mui- a Federação do Comércio. Mesmo com a integração de
to pouco “inclusivo”, para utilizar as categorias dahlsia- Naboo, era tido como inconcebível que os gungans pu-
nas:7 só participavam dos pleitos membros das famílias dessem representar o planeta nas relações galácticas.8

98 Anakin
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

uma sessão especial do Senado para ouvir sua queixa. O


senador de Naboo, Palpatine, no entanto, em audiência
privada com Amidala, convenceu a regente de que Valo-
rum, minado por acusações infundadas de corrupção,
não teria força para guiar o Senado, que, por sua vez,
fragmentado e composto por representantes ganancio-
sos, sem interesse pelo “bem comum”, não atuaria con-
tra a invasão. A intenção de Palpatine era a de que ele
mesmo fosse o novo chanceler supremo e, para isso,
convenceu Amidala a solicitar uma moção de descon-
fiança para destituir Valorum e a eleição pelos senado-
res de um chanceler “mais forte”, que pudesse “contro-
lar os burocratas e fazer justiça”.

N
a sessão, presidida pelo vice-chanceler Mas
Amedda, Amidala seguiu o conselho de Palpa-
tine e solicitou o voto de desconfiança de Valo-
rum, insatisfeita com sua postura neutra diante do seu
relato da invasão – o chanceler havia aceitado a suges-
tão do senador Lott Dod, da Federação do Comércio, de
nomear e enviar uma comissão para ir a Naboo verifi-
car a veracidade da acusação, o que também tinha sido
apoiado por outros parlamentares e burocratas. A mo-
ção teve apoio imediato do senador Bail Antilles, do pla-
neta Alderaan, e foi aceita pelo plenário.
É importante esclarecer que esse é um processo co-
mum no parlamentarismo, sistema de governo em que a
Feita essa digressão, voltemos ao conflito: o chance- destituição do chefe de governo independe de qualquer
ler supremo Finis Valorum, membro de uma tradicional malfeito, bastando ser o desejo da maioria parlamen-
família de Coruscant que estava em seu oitavo ano no tar, o que é muito diferente do impeachment no presi-
cargo, solicitou ao Alto Conselho Jedi enviar cavaleiros dencialismo (o esclarecimento é particularmente neces-
jedi em missão secreta para desarticularem o bloqueio sário porque essa confusão tem sido muito comum na
da rota para Naboo. A Federação do Comércio reagiu de América do Sul nos últimos anos). A formação do novo
modo ilegal, invadindo militarmente Naboo sem a apro- governo, que em geral ocorre no parlamentarismo por
vação do Senado, o qual teoricamente também teria au- meio da negociação entre as bancadas partidárias para
toridade para revogar sua franquia comercial. a formação de uma coalizão que tenha a confiança da
Recentemente eleita em Naboo em substituição ao maioria dos representantes, ou seja, que não tenha re-
rei Ars Veruna (sucessor de Bon Tapalo), que havia re- jeição parlamentar maior que a metade da Casa, ocor-
nunciado,9 a rainha local, Padmé Amidala, conseguiu fu- reu na República Galáctica por meio de votação indivi-
gir para pleitear uma solução no Congresso. Simpático dual pelos pares, tal como numa escolha de presidente
à sua causa e seu principal apoiador, Valorum convocou via eleição indireta.

janeiro • fevereiro • março 2016 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Três senadores foram apresentados como candida- Naboo, era fraca em comparação com o exército agres-
tos à sucessão do chanceler supremo para serem vo- sor. A situação se inverteu quando Amidala convenceu os
tados por seus colegas de Casa: Bail Antilles, de Alde- gungans, o povo habitante da cidade subaquática, lidera-
raan; Ainlee Teem, de Malastare; além do próprio Pal- dos pelo chefe Nass, a romper seu isolamento e se aliar
patine, de Naboo. Com a vitória deste último, confirma- aos cidadãos da superfície no enfrentamento aos exérci-
ram-se a expectativa otimista do parlamentar e a supo- tos da Federação de Comércio em batalhas no pântano.
sição de Amidala de que a situação de Naboo tenderia Com a invasão do palácio e a captura do vice-rei dos
a motivar votos a favor da sua candidatura. A despeito invasores, Nute Gunray, e também a destruição da nave
da atuação conspiratória de Sheev Palpatine, ele fazia que controlava seu exército, Naboo venceu a guerra e
parte do mesmo partido de Finis Valorum e também de seus dois povos assinaram a paz. Esperava-se que Gun-
seu antecessor no cargo de chanceler supremo, Kalpa- ray teria que explicar a situação ao Senado e perderia
na,10 o que sugere que a votação possa ter sido menos sua franquia comercial. Uma década depois, no entan-
personalista do que aparenta, com a manutenção no po- to, a Federação do Comércio permanecia forte e ainda
der de uma agremiação partidária que contava com um mantinha sua cadeira no Senado Galáctico. Mesmo ten-
número expressivo de senadores. O triunfo de Palpati- do ocorrido quatro julgamentos na Corte Suprema, ele
ne o tornaria o último chanceler supremo da República, permaneceu como vice-rei da Federação do Comércio.
conseguindo concentrar cada vez mais poderes até que O fato é que Palpatine anonimamente havia incenti-
deixasse de haver uma democracia. vado a invasão de seu próprio planeta Naboo justamente
A solução para o conflito militar, no entanto, não pas- para criar a instabilidade que o levou ao cargo de chan-
sou por procedimentos institucionais. Enquanto a Fede- celer supremo. Passados dez anos, ele continuava na
ração do Comércio formou campos de concentração no chefia de governo (essa longevidade no poder é recor-
planeta para forçar a rainha Amidala a assinar um Tra- rente no parlamentarismo, a despeito de um viés anti-
tado, o que tornaria legais suas pretensões, esta retor- presidencialista de muitos analistas só deixá-los perce-
nou ao planeta para liderar uma resistência, que, con- ber o fenômeno na América Latina). Ele pretendia formar
tando com grupos formados por policiais e guardas de o Exército da República, mas enfrentava a oposição de

A solução para
o conflito militar
não passou por
procedimentos
institucionais

100 Anakin
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muitos senadores. A própria Padmé Amidala, outrora a criação do Exército da República, enquanto que o se-
sua aliada, era a líder da oposição no Senado. A despei- nador Bail Organa, sucessor de Bail Antilles como re-
to do clamor em Naboo para mudar a Constituição do presentante de Alderaan, considerava que o Senado só
planeta e permitir que ela permanecesse por mais um poderia aprovar o uso de tal força militar caso o exér-
mandato como rainha, a popular política havia deixa- cito separatista atacasse. O vice-chanceler Mas Ame-
do o trono e sido sucedida por Jamillia, que, como nova dda, que permaneceu no cargo e era leal a Palpatine, foi
monarca eleita, usou suas prerrogativas para indicá-la quem sugeriu que a solução para enfrentar a crise re-
como senadora por Naboo. O gungan Jar Jar Binks (que, sidia na ampliação pelo Senado dos poderes executivos
apesar de menos carismático, foi importante figura na do chanceler supremo, delegando a ele poder de emer-
guerra de resistência) foi escolhido como seu suplente, gência para que pudesse aprovar a criação de um exér-
o que tem enorme simbolismo, dada a anterior exclusão cito. Palpatine conseguiu que o suplente de Amidala na
do seu povo na política galáctica. cadeira de Naboo, Jar Jar Binks, fizesse a proposta, em
sessão do Senado.

A
forma que Palpatine encontrou para criar a co- Ovacionado pela maioria, o chanceler supremo fez
moção necessária para a militarização foi seme- um discurso que dissimulava sua responsabilidade na
lhante àquela que o levou ao cargo de chanceler costura de todo o processo: “É com grande relutância
supremo: dissimuladamente incentivou a formação de que concordei com este chamado. Eu amo a democracia,
um movimento separatista, que precisaria ser enfren- eu amo a República. O poder que vocês me deram eu
tado em nome da estabilidade. Esse movimento, chama- deixarei assim que a crise tiver sido debelada.” Como
do Confederação dos Sistemas Independentes, reunia primeiro ato com essa nova autoridade, Palpatine criou
milhares de sistemas solares. Era liderado pelo Conde o Grande Exército da República, “para conter as cres-
Dooku, um nobre rico e ex-membro da Ordem Jedi, que centes ameaças dos separatistas”. Não é mera coinci-
era secretamente discípulo de Palpatine no ramo da re- dência qualquer semelhança com o ocorrido na Alema-
ligião da Força chamado sith, rival dos jedi. nha em 1933, quando o parlamento (Reichstag) apro-
Amidala, como líder da oposição no Senado Galác- vou democraticamente a Lei Habilitante, que concedia
tico, trabalhou para derrubar o Ato de Criação Militar, plenos poderes ao chanceler Adolf Hitler, delegando
avaliando, corretamente, que ele levaria a uma guerra a ele o poder de legislar sem precisar de aprovação
civil. As táticas de disputa política incluíam quaisquer parlamentar.
meios necessários, de modo que houve seguidos aten- O Senado Galáctico pediria, ainda, que Palpatine per-
tados contra ela em Coruscant. Apesar de formalmen- manecesse no cargo depois de expirado o seu manda-
te alegar não estar envolvida, a Federação do Comér- to.11 Com a morte, primeiro, de seu líder Dooku e, depois,
cio mais uma vez conspirava, financiando desde o iní- do general Grievous, os separatistas foram derrotados
cio o exército separatista. O apoio tornou-se declara- no conflito, que durou três anos e ficou conhecido como
do e foi acompanhado pela adesão de outras entidades Guerras Clônicas. O Alto Conselho Jedi entendeu que,
empresariais interplanetárias, como a Associação Co- dado o fim da guerra, Palpatine deveria abdicar de seus
mercial, a Aliança Corporativa, a União Tecnológica dos poderes. Um de seus membros, Ki-Adi-Mundi, conside-
Exércitos e o Clã Bancário, além de planetas dissiden- rava que, caso ele não fizesse isso pacificamente, deve-
tes, como Mandalore. ria ser “destituído” do cargo. Mace Windu, que havia sido
O Senado Galáctico encontrava-se novamente di- escolhido por seus pares como o Mestre (líder) do Alto
vidido. O senador Ask Aak, do planeta Malastare, pró- Conselho Jedi, considerou que os jedi deveriam “assu-
ximo a Palpatine, não via motivo para não aprovar logo mir” o Senado para “assegurar uma transição pacífica”.

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A despeito das intenções autoritárias do chance- dam com o que é o interesse de todas as pessoas, e en-
ler supremo, portanto, o poderoso órgão ao mesmo tão fazem isso.
tempo religioso e militar representado pelo Alto Con- Padmé Amidala: É exatamente o que fazemos. O proble-
selho Jedi deu o primeiro passo na violação dos freios ma é que as pessoas nem sempre concordam entre si.
e contrapesos, intrometendo-se em decisão legítima Anakin Skywalker: Então, elas deveriam ser forçadas.
do Poder Legislativo. O mais experiente dos membros Padmé Amidala: Por quem? Quem vai forçá-las?
do Alto Conselho Jedi, Yoda, advertiu, enigmático, sem Anakin Skywalker: Eu não sei. Alguém.
ser compreendido: “Para o lado sombrio essa linha de Padmé Amidala: Você?
pensamento vai nos levar. Muito cuidado devemos to- Anakin Skywalker: Claro que não eu.
mar.” Se por um lado as motivações de Palpatine nun- Padmé Amidala: Mas alguém...
ca foram democráticas e ele usou de traição e dissi- Anakin Skywalker: Alguém sábio.
mulação para atingir seus fins, por outro os jedi, que o Padmé Amidala: Isso me parece bastante uma ditadura.
próprio mestre Yoda admitiu terem se tornando cada Anakin Skywalker: Bem, se é o que funciona...
vez mais arrogantes, contribuíram para que as dispu-

C
tas políticas ocorressem fora da legalidade e, portanto, iente de que o passo antidemocrático dos jedi
para que a democracia ruísse. Reproduziram o senso lhe dava a justificativa de que precisava para
comum de criminalizar a política e desrespeitaram as concentrar ainda mais poder, Palpatine defen-
instituições, com a agravante de não estarem subme- deu que eles eram inimigos da República e que se não
tidos à accountability. fossem eliminados haveria uma guerra civil sem fim,
Por diversas vezes cavaleiros jedi importantes ma- com a morte dele e dos senadores. Conseguiu cooptar
nifestaram posições que empobrecem o debate político. um dos membros do Alto Conselho Jedi, o mencionado
Obi-wan Kenobi generalizou que os políticos não são con- Anakin Skywalker, que aliás havia sido indicação sua, e
fiáveis e que os senadores só se interessam por aten- ordenou que este matasse todos os seminaristas pre-
der aos interesses de quem financia suas campanhas – sentes no Templo Jedi, chamados padawans. Palpatine
sem, no entanto, como observado no início, em momento e Windu levaram às vias de fato sua disputa, em que um
algum defender o fim desse financiamento. Ainda mais desejava dissolver o Alto Conselho Jedi e o outro pre-
emblemática, no entanto, foi a fala de Anakin Skywalker, tendia ocupar à força o Senado. Os resultados foram
em diálogo com Padmé Amidala, antes de ele passar em profundas cicatrizes no primeiro e a morte do segundo.
definitivo para o lado de Palpatine. Enquanto a senadora Era o fim da democracia. Pretendendo debelar qual-
de Naboo didaticamente explicava que a política é algo quer foco de resistência a seu poder, Palpatine ordenou
complexo, que envolve disputas legítimas, pois as pes- que Anakin Skywalker, que ele passou a chamar de Darth
soas têm opiniões e interesses diferentes (e não simples- Vader, viajasse para o planeta Mustafar e matasse tam-
mente um “bem comum”, como certa vez argumentou o bém o vice-rei Gunray, da Federação do Comércio, e os
“bonaparte” Sheev Palpatine), Skywalker reproduziu o tí- demais líderes separatistas. O capital dos planetas en-
pico simplismo do senso comum, que abre espaço para volvidos no movimento separatista foi anexado aos co-
soluções autoritárias: fres do Império.12 Foi emitido o decreto conhecido como
Ordem 66, pelo qual o Exército deveria executar, de sur-
Anakin Skywalker: Não acho que esse sistema funcione. presa, condenados por traição, todos os jedi espalhados
Padmé Amidala: Como você o faria funcionar? pela galáxia, para que fosse restaurada a “paz”. Em ses-
Anakin Skywalker: Precisamos de um sistema em que são especial no Senado, Palpatine anunciou sob aplau-
os políticos se sentam e discutem o problema, concor- sos a conversão da República no Primeiro Império Ga-

102 Anakin
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láctico, “a fim de garantir a segurança e manter a estabi- cretamente uma gigantesca estação espacial blindada,
lidade [...] para uma segura e tranquila sociedade”, após a Estrela da Morte, poderosa o suficiente para destruir
comunicar aos senadores sobre o atentado que sofreu um planeta inteiro.
e sobre a derrota da rebelião jedi, cujos membros fora- A Estrela da Morte era comandada por Wilhuff Ta-
gidos deveriam ser capturados e punidos. rkin. Este era um dos homens mais poderosos do Im-
A exemplo de outros regimes autoritários, como a pério (que, diferentemente da República, não tinha mu-
ditadura que vigorou no Brasil após o golpe civil-militar lheres nas posições mais relevantes), mas não era ób-
de 1964, o Império Galáctico manteve algum arcabou- vio se o segundo na hierarquia, abaixo apenas do Impe-
ço legal, inclusive o funcionamento do Senado, rebatiza- rador, era ele ou Darth Vader, cujas prerrogativas não
do como Senado Imperial. A casa legislativa funciona- estavam claramente delimitadas. Do mesmo modo que,
va, por exemplo, rejeitando agressões contra missões na Alemanha nazista, o poder de Heinrich Himmler au-
diplomáticas e humanitárias. Palpatine, agora chama- mentava junto com a repressão, a autoridade de Vader
do Imperador, seguiu a escalada militarista, investindo também crescia em função de ele ser considerado como
pesadamente na indústria bélica, tendo construído se- a principal “arma de terror do Império”.13 Outra figura

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ainda poderosa, mas claramente abaixo de ambos, era de: as atividades antes exercidas por grupos como a Fe-
o ex-vice-chanceler Mas Amedda. Com a transformação deração do Comércio, por exemplo, foram planificadas.
da República Galáctica em Império, este assumiu a po- Com o fim da Ordem Jedi, e apenas dois antigos ca-
sição de líder do Conselho Executivo Imperial e o título valeiros e membros do Alto Conselho tendo sobrevivido,
de grão-vizir.14 A despeito da má fama de bajuladores, os Yoda e Obi-wan Kenobi, escondidos no exílio, aquela que
membros do Conselho Executivo eram poderosos, super- ficou sendo chamada de “a antiga religião” passou a ser
visionando os assuntos cotidianos do Império, de modo vista com desdém pelos cidadãos comuns. A despeito
que os moffs (governadores regionais) precisavam pres- inclusive de esse desdém ser compartilhado pelos mili-
tar contas a eles;15 além disso, esses burocratas pode- tares, tão centrais no funcionamento do Império, curio-
riam inclusive filtrar as informações que chegavam ao samente duas das figuras mais importantes do regime,
Imperador, já que este concedia poucas audiências.16 o Imperador e o lorde Vader, eram ambos devotos da
antiga religião, em seu ramo sith – a relação de Palpati-

M
esmo com todo seu poderio militar, o Impé- ne com ela, no entanto, talvez fosse desconhecida pela
rio Galáctico enfrentou resistência da cha- maioria. De todo modo, mesmo que profundamente in-
mada Aliança Rebelde, capacitada para a es- fluente, a religião deixou de fazer parte da ideologia que
pionagem e bem armada. Adotando táticas de guerrilha, legitimava o Império,19 tal como ocorria na extinta repú-
ela precisava continuamente mudar sua base militar se- blica; ou seja, paralelamente ao horror da cassação de
creta para diferentes planetas longínquos. Darth Vader direitos civis e políticos, ocorreu também a efetivação
descobriu que uma senadora, a princesa Leia Organa do de um Estado laico, a separação entre Estado e religião.
planeta Alderaan, filha do ex-senador Bail Organa, era Essa laicidade do Império fundado por Palpatine
ligada aos revolucionários, ao detectar que ela trocava destoa dos impérios sith anteriores.20 Estes eram gover-
mensagens com eles e que os rebeldes haviam rouba- nados pelo seu chefe de governo, de Estado e religioso,
do arquivos secretos sobre a referida base militar. Va- personificado pelo imperador, e pelo seu Conselho Som-
der prendeu Leia, mas não conseguiu encontrar as in- brio, composto por doze membros, considerados como
formações vazadas. Como o Imperador Sheev Palpatine os outros “usuários da Força” mais poderosos, que ge-
soube que a rebelião ia ganhando apoio no Senado Impe- ralmente também ocupavam cargos ministeriais. Cada
rial, com a adesão da senadora Leia Organa sendo des- um deles comandava uma área de influência, tais como
coberta, e já tinha o respaldo militar da Estrela da Mor- a Esfera de Lei e Justiça e a Esfera de Estratégia Mili-
te com sua construção concluída, decidiu dissolver per- tar, podendo também ocupar cargos ministeriais; Dar-
manentemente a casa legislativa. Dezenove anos após a th Marr, por exemplo, era Ministro da Guerra e também
criação do Império Galáctico, portanto, caía aquele que controlava a esfera de Defesa do Império.21
era o último vestígio da República. A intenção daqueles impérios militaristas era a de
Para o Imperador manter o controle sem essa buro- criar uma monarquia absolutista que governasse toda a
cracia, foi dado aos vinte moffs17 o controle direto sobre galáxia, usando escravos não iniciados na Força. A socie-
seus territórios. Esses sistemas locais deveriam se man- dade inteira onde governavam era dividida entre os sith,
ter fiéis por medo, conforme explicou Wilhuff Tarkin, que que ocupavam os cargos mais altos e que comandam, e
recebeu o título ainda mais relevante de grand moff, por aqueles sem o “dom da Força”, os quais, mesmo quando
administrar a megabase militar Estrela da Morte e quase ocupassem posições elevadas, deviam sempre obediên-
toda a Orla Exterior.18 Paralelamente, houve também um cia aos sith. Rycus Kilran, por exemplo, chegou a asses-
processo conhecido como imperialização, com a exten- sor direto do ministro da Guerra, mas não há casos de
são do poder Executivo para amplas áreas da socieda- cargos mais altos do que esse ocupados por não sith.22

104 Anakin
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Além disso, como toda a sua organização social e quanto mantinha a insurgente Leia Organa, nativa de
política se baseava em uma filosofia de conflito – con- lá, como prisioneira. A Aliança Rebelde, no entanto, mu-
trária à valorização da paz e da harmonia pelos jedi –, os nida com caças velozes e as informações secretas, li-
sith se envolviam constantemente em disputas de poder, bertou a revolucionária e destruiu a base militar. A di-
notadamente em áreas de interseção das Esferas, em ficuldade de prender os rebeldes criava instabilidade
que as competências não estavam claramente delimita- no regime, levando a seguidas trocas de comando en-
das, especialmente quando impactavam na questão mi- tre os almirantes, com o ocupante anterior do cargo
litar. Consequentemente, assassinatos e traições eram sendo executado pelo próprio Vader pessoalmente em
comuns entre os sith, que dessa maneira aumentavam cada uma dessas vezes.
sua influência individual na política imperial e na religião O número de dissidentes, que poderiam apoiar os
da Força, atraindo seguidores importantes. rebeldes, aumentava em função da insatisfação com a
Mesmo representando evidente continuidade nes- violência e com outras mazelas do Estado imperial. En-
sa tradição sith, o papel histórico desempenhado por tre elas, podem ser citadas a escravidão, a criminalida-
Palpatine o torna um personagem político mais influen- de e a corrupção. Os wookies tiveram todo o seu plane-
te que todos os líderes anteriores de sua religião: como ta natal, Kashyyyk, subjugado pelo Império e foram usa-
observado, não apenas foi o primeiro a realizar a sepa- dos como escravos.23 Do mesmo modo, o povo bodach’i,
ração formal entre Estado e religião, como também foi do planeta Kerev Doi, resistiu aos regulamentos e impo-
o primeiro a atacar a democracia por dentro do próprio sições imperiais e também acabou sendo punido com
Estado, visto que anteriormente ela tinha sido desafiada a escravidão.24 Além disso, podemos citar o notório
apenas por impérios estrangeiros. apoio aos cartéis de criminosos, como os controlados
O Império Galáctico liderado com mão de ferro por por membros do povo hutt, e a corrupção em todos os
Palpatine foi particularmente violento. Como demons- cargos das cadeias de comando imperial, que pode ser
tração de força, a superbase militar Estrela da Mor- exemplificada pela condenação da mãe da oficial impe-
te cometeu um genocídio, destruindo, sob as ordens rial Ciena Ree, que era inocente, para acobertar outro
do mencionado Wilhuff Tarkin, o planeta Alderaan, en- oficial de patente superior.25

o número de
dissidentes aumentava
em função da
insatisfação com
a violência

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O Império tentou construir uma nova base militar ain- com a assinatura do acordo Concordância Galáctica.26
da maior do que a anterior, a segunda Estrela da Morte, Depois da derrota em Endor, da destruição da segunda
mas a Aliança Rebelde a descobriu e houve um recrudes- Estrela de Morte e do assassinato do imperador, o Impé-
cimento da guerra. Após alguns reveses, os revolucio- rio ainda tentou se reestruturar, mas enfrentou dificul-
nários venceram a batalha decisiva na lua Endor, com a dades, lutando, inclusive, contra moffs dissidentes, que
ajuda da população aborígene, o povo ewok. O imperador queriam mais poder do que o dos demais.27 Regimes com
foi assassinado pelo aliado Darth Vader – que também poder personalizado centralizado têm dificuldades de se
viria a falecer devido a um ferimento –, convencido por manter quando a figura do líder carismático não exis-
seu filho, Luke Skywalker, que era um dos insurgentes te mais, e com o Império de Palpatine não foi diferente.
e que havia recebido ensinamento jedi do exilado Yoda. Seguindo-se a avaliação de O’Donnell e Schmitter,28
A virtual queda do Império foi comemorada em toda pode-se supor que a manutenção, por regimes autori-
a galáxia. A derrota efetiva, no entanto, ocorreria apenas tários, de instituições do período democrático anterior,
um ano depois, terminada a batalha no planeta Jakku, ainda que em uma forma distorcida (tal como ocorreu

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no período inicial do Império Galáctico, com o Senado “O Senado Galáctico era formado apenas por repre-
Imperial), e uma menor personalização da autoridade sentantes escolhidos pelo povo, e as primeiras leis que
– com rotatividade no cargo e sem que o mandatário aprovaram corrigiram as piores injustiças do Império.
pessoalmente determinasse seu sucessor –, bem como Até as discussões nos noticiários sobre os méritos de
a abertura para um governo de transição não militar (e, cada proposta eram maravilhosas, porque significavam
no caso, não sith), permitiriam que a queda do regime se que as pessoas estavam livres para expressar suas opi-
desse em bases mais favoráveis para o grupo destituí- niões sem medo de represálias. Os recursos não eram
do, com menor antipatia e maior consideração em rela- mais direcionados apenas para a força militar; a limpe-
ção aos seus interesses. za maciça dos mundos poluídos já começara, bem como
A Nova República foi instituída. A refundação do Se- as indenizações para as espécies escravizadas durante
nado Galáctico ocorreu em Chandrilla, o planeta natal o governo imperial. [...] Mesmo que ainda fosse imperfei-
da líder da Aliança Rebelde, Mon Mohtma, que foi elei- to, o rumo da galáxia parecia seguir em direção à justi-
ta chanceler (o termo “supremo” deixou de ser usado,29 ça e, talvez, algum dia, à paz.”32
após os abusos de Sheev Palpatine), com os mesmos ple- Ao fim da Batalha de Jakku33, o Império sofreu sua
nos poderes que o falecido ditador. O restabelecimen- última grande derrota, perdendo grande parte da sua
to da democracia, portanto, foi ameaçado pelo contexto armada, com destaque para o destroier estelar Inflictor
favorável à emergência de uma nova líder autoritária – e o superdestroier estelar Ravager.34 Com a rendição das
durante o período de dominação do Império, aliás, a pro- forças imperiais, foi assinado em Coruscant o tratado
paganda imperial apresentava Mon Mohtma como pior de paz Concordância Galáctica, que, além de suspender
do que os líderes terroristas terráqueos da contempo- todas as hostilidades, limitava a área em que as naves
raneidade. A nova primeira-ministra, no entanto, abriu dos derrotados poderiam circular, proibia a construção
mão dos poderes excepcionais que datavam da época de de novas, cessava as atividades de recrutamento e mo-
Palpatine como chanceler supremo, e anunciou a inten- bilização tanto dos soldados chamados stormtroppers
ção desmilitarizar e desarmar a Nova República quando como de oficiais, proibia a prática da tortura e impunha
a Guerra Civil houvesse realmente acabado.30 compensações financeiras.35
Aqueles vinculados ao antigo Império estavam mi-

U
m mês após a Batalha de Jakku, a Nova Repú- litarmente enfraquecidos e tinham sua área de atuação
blica sofreu duas grandes mudanças: o Ato de limitada à “zona cinzenta” em que a Concordância Galác-
Desarmamento Militar e a rotatividade da ca- tica permitia que suas naves circulassem, mas ainda ti-
pital. A lei do Ato de Desarmamento Militar foi propos- nham influência ali e se percebia uma possibilidade tá-
ta pela chanceler e aprovada logo na primeira sessão cita de eles se rebelarem, o que gerava uma tensão na
do Senado Galáctico após o armistício. Estipulava que a Nova República, a ponto de se usar o termo “guerra fria”.
armada e o exército da República seriam equivalentes O referido acordo foi humilhante para eles, nos moldes
aos do período pré-Guerras Clônicas, ou 10% da força do Tratado de Versalhes imposto à Alemanha pelas po-
de então. Foi aprovada também a rotatividade da capi- tências europeias vitoriosas ao fim da Primeira Guer-
tal da Nova República entre as várias unidades da fede- ra Mundial. Alimentou, assim, um espírito revanchista
ração, por meio de eleições.31 O efeito positivo do papel entre os imperiais remanescentes, que acabaram por
estabilizador e democratizante desempenhado por Mon se retirar para os setores da galáxia mais distantes, as
Mothma é evidenciado pelo depoimento de Thane Kyrrel, chamadas Regiões Desconhecidas, onde o Estado obvia-
piloto do Esquadrão Corona, da Armada da Nova Repú- mente não estava presente, e fundaram a milícia deno-
blica, e oficial desertor do Império: minada Primeira Ordem.36

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Estabelecida nas Regiões Desconhecidas, longe dos juntamente com Hux e Kylo Ren. Enquanto isso, a Nova
olhos da Nova República, a Primeira Ordem podia violar Ordem Jedi, que havia sido fundada após a redemocra-
a Concordância Galáctica, reconstruindo sua armada, tização da República Galáctica por Luke Skywalker, foi
treinando novas unidades de infantaria e novos oficiais, desarticulada ao ser abandonada por seu próprio líder,
e produzindo uma nova geração de máquinas de tortu- desiludido por problemas familiares.
ra, como as da série IT-000 e a cadeira de interrogató- Assim, a Nova República durou apenas três décadas
rios. Os oficiais sobreviventes que aderiram à Primeira como regime efetivo, tornando-se um Estado falido, cuja
Ordem, proibidos pelo tratado de frequentar as acade- existência se arrasta à beira do precipício. Democracias
mias militares onde se formavam os oficiais da Marinha jovens levam tempo para se institucionalizar e, como sus-
Imperial, criaram novas, a bordo do destroier estelar Fi- tenta Cheibub,39 países que tiveram ditaduras militares
nalizer, construído secretamente.37 A exemplo de muitas no passado têm maior probabilidade de sofrerem golpes
guerras civis na Terra, a Primeira Ordem recruta à força militares no futuro. Em função da passividade governa-
crianças para serem treinadas e incorporadas às suas mental, a luta legalista contra os golpistas é empreendi-
tropas, ainda chamadas stormtroopers. da pela chamada Resistência, grupo paramilitar lidera-
Paralelamente, a Nova República, governada pelo do pela general Leia Organa, formalmente independente
chanceler Lanever Villecham e com a capital situada no do Senado e do chanceler, em nova guerra civil.40 Seria
planeta Hosnian Prime, subestimou a ameaça represen- possível traçar um paralelo entre esse cenário e os con-
tada pela Primeira Ordem e manteve o ato de desarma- frontos dos anos 80 e 90 entre as antissistêmicas Forças
mento, a despeito das advertências da agora general Leia Armadas Revolucionárias da Colômbia e os paramilitares
Organa, concentrando-se em assegurar novos acordos de extrema direita que lhe faziam resistência, se não fosse
comerciais, os quais monopolizaram a agenda legislati- pelo fato de os últimos serem ideologicamente mais pró-
va. Essa imprudente falta de vigilância e as violações da ximos da Primeira Ordem do que as FARC.
Concordância Galáctica fizeram com que a Primeira Or- Mil anos de estabilidade democrática na Galáxia,
dem se tornasse militarmente mais poderosa que a ar- portanto, foram trocados, em vez do seu aperfeiçoa-
mada republicana.38 Livre de fiscalização, ela foi capaz mento, com maior participação e menor poder do capi-
de construir uma base militar muito maior que as duas tal, por uma solução autoritária e bonapartista, deriva-
Estrelas da Morte, a Base Starkiller, dessa vez ocupan- da da criminalização da política, da despolitização em
do todo um planeta e com um poder de destruição pro- nome de uma cruzada contra a corrupção, e do despre-
porcionalmente superior. zo pelo debate democrático, visto como um elevado cus-
Pouco se sabe ainda sobre a Primeira Ordem, que to de transação. A solução não levou ao fim da corrup-
se tornou um governo paralelo, ultramilitarista e de es- ção ou à melhoria da sociedade, mas a meio século de
tilo fascista, voltado para derrubar a Nova República e instabilidade, rupturas democráticas, perda de direitos,
restaurar o Império. É comandada pelo Líder Supremo repressão política. Quaisquer que sejam as instituições
Snoke (será esse título semelhante ao do governante da vigentes, uma democracia só sobrevive se os atores se
Coreia do Norte mera coincidência?). Enquanto o gene- importarem em cultivá-la. Escolher o caminho rápido e
ral Hux é um dos primeiros na hierarquia militar, o bra- fácil para o poder – como pretendem alguns atores po-
ço direito de Snoke é seu discípulo religioso Kylo Ren, líticos – pode levar a efeitos nefastos duradouros, como
da ordem religioso-militar dos Cavaleiros de Ren, a qual mestre Yoda alertou.
está fora da estrutura formal de comando da Primeira
guilherme.s.reis@unirio.br
Ordem. A capitã Phasma completa o triunvirato infor- carlos.leonardo@yahoo.com.br
mal de comando da Primeira Ordem e da Base Starkiller renato.barreira@hotmail.com
weslleyaadias@gmail.com

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NOTAS DE RODAPÉ

1. RINZLER, J.W. The Making of Star Wars: The 5. Star Wars: The Old Republic. Edmonton: Elec- sith para ocupar seus altos escalões. A doutrina
Definitive Story Behind the Original Film. Nova tronic Arts, 2011; Star Wars: Knights of the Old é explicada em KARPYSHYN, Drew. Darth Bane:
York: Del Rey, 2007. Republic. São Francisco: LucasArts, 2003. Path of Destruction. Nova York: Del Rey, 2006.

2. O universo Star Wars não se restringe aos 6. BROOKS, Terry. Star Wars Episode I: The Phan- 21. Star Wars: The Old Republic. Edmonton: Elec-
sete filmes da trilogia original, da trilogia pre- tom Menace. Nova York: Del Rey, 1999. tronic Arts, 2011.
quela iniciada em 1999, e da trilogia atual, co-
meçada com “Star Wars Episódio VII: O Desper- 7. DAHL, Robert A. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 22. Ibid.
tar da força”, lançado em 2015. Antes mesmo de 2005.
“Star Wars: Uma Nova Esperança”, de 1977, foi 23. WENDIG, Chuck. Marcas da Guerra. São Pau-
publicado em 1976 um livro, de autoria de Geor- 8. LUCENO, James. Darth Plagueis. Nova York: Del lo: Aleph, 2015, p. 274.
ge Lucas e Alan Dean Foster, que era a romanti- Rey, 2012. Curiosamente, o adversário de Tapa-
zação do filme – esse procedimento se repetiria lo na eleição, candidato dos setores mais tradi- 24. GRAY, Claudia. Star Wars: Estrelas Perdidas.
nos filmes subsequentes. Em 1978 publicaram cionalistas e hostis à abertura do país, era o pai São Paulo: Seguinte, 2015, p. 174.
o primeiro livro do que viria a ser o universo ex- de Sheev Palpatine, Cosinga Palpatine, que viria
pandido de Star Wars, Splinter of the Mind’s Eye, a ser boicotado pelo próprio filho, que espalhou 25. Ibid., p. 325.
escrito por Foster. O universo expandido consis- informações sigilosas.
te, portanto, em todas as obras oficiais publica- 26. Ibid.
das sobre a saga, desde quadrinhos (a primeira 9. Ibid.
versão foi publicada pela Marvel Comics entre 27. Ibid.
1977 e 1986), livros (romances, guias visuais, en- 10. LUCENO, James. Tarkin. São Paulo: Aleph,
ciclopédias etc.), desenhos animados (“Droids”, 2015, p. 92. 28. O’DONNEL, Guillermo & SCHMITTER, Philippe.
“Ewoks” e “Clone Wars”), filmes (além das duas Transitions from authoritarian rule: Tentative
trilogias completas e do recente “Episódio VII”, 11. Em geral, não há no parlamentarismo limi- conclusions about uncertain democracies. Bal-
três filmes foram produzidos: dois sobre os ewoks, tação para a permanência de um primeiro-mi- timore: John Hopkins Press, 1986.
aproveitando o apelo infantil das personagens – nistro no poder enquanto mantiver a confiança
“Caravana da Coragem: Uma Aventura Ewok” e da maioria dos legisladores. Entretanto, a legis- 29. HIDALGO, Pablo. Star Wars: The Force Awak-
“Ewoks: A Batalha de Endor” – e “The Star Wars latura, que pode ser encurtada, não pode, em ens: The Visual Dictionary. Londres: DK, 2015, p. 66.
Holiday Special”), e videogames. A grande maio- situações normais, ser prolongada, sem a rea-
ria das obras do universo expandido nunca foi lização de novas eleições. Ainda assim, em si- 30. WENDIG, op. cit.; HIDALGO, op. cit.
traduzida para o português e, antes do advento tuações extraordinárias como as guerras, isso
da internet, o público brasileiro raramente sa- pode, sim, ocorrer. 31. HIDALGO, op. cit.
bia da existência delas. Em 2012, a Disney com-
prou a Lucasfilm e, com ela, os direitos sobre a 12. STRADLEY, Randy & WHEATLEY, Doug H. “Guer- 32. GRAY, op. cit., p. 398.
marca Star Wars, incluindo o universo expan- ra... sem esperança de vitória.” Star Wars, nº 1.
dido. Dois anos após a aquisição e o anúncio da São Paulo: On Line, 2009. 33. Além de ser mencionada em HIDALGO, op. cit.,
nova trilogia, a empresa decidiu que o universo e GRAY, op. cit., a batalha foi adicionada como ce-
expandido não faria mais parte do cânone, mas 13. LUCENO, op. cit., p. 110. nário no jogo Star Wars Battlefront. Estocolmo:
que as obras continuariam a ser publicadas sob Electronic Arts, 2015.
o título de “Legends”. Algumas das informações 14. Ibid.
utilizadas neste artigo, referentes a eventos an- 34. HIDALGO, op. cit., p. 9 e 35; GRAY, op. cit., p.
teriores aos apresentados no filme “Episódio I: A 15. Ibid., p. 122. 406-432.
Ameaça Fantasma”, não são mais tidas como ca-
nônicas. Segundo a produtora, a medida visava 16. Ibid., p. 48. 35. HIDALGO, op. cit., p. 8.
a garantir o elemento da surpresa na nova trilo-
gia. Entre as obras do novo cânone, estão a nova 17. Ibid., p. 122. Apesar de o número de apenas 36. HIDALGO, op. cit., p. 9 e 35; GRAY, op. cit.; RUC-
série animada “Star Wars: Rebels” e as obras li- 20 governadores regionais para toda a galáxia KA, Greg. Star Wars: Before the Awakening. Nova
terárias mais recentes, tais como: Marcas da parecer muito reduzido, é o que informa Luceno. York: Lucasfilm Press, 2015.
Guerra; Estrelas Perdidas; Alvo em Movimento;
A Missão do Contrabandista; A Arma de Um Jedi. 18. Ibid. 37. HIDALGO, op. cit.

3. LUCENO, James. Tarkin. São Paulo: Aleph, 2015. 19.  Por certo, no entanto, a coerção era mais uti- 38. Ibid.
lizada como meio de dominação do que a ideologia.
4. O chamado Primeiro Grande Cisma é detalhado 39. CHEIBUB, José Antônio. Presidentialism, Par-
em publicações como FRY, Jason & URQUHART, 20. Isso obviamente está relacionado à doutri- liamentarism, and Democracy. Cambridge: Cam-
Paul R. The Essential Guide to Warfare. Nova na Regra dos Dois, adotada por Darth Bane, que bridge University Press, 2007.
York: Del Rey, 2012; WALLACE, Daniel. Book of só permitia dois lordes sith por vez, um mestre e
Sith: Secrets from the Dark Side. São Francisco: um aprendiz. Os antigos impérios, nenhum deles 40. HIDALGO, op. cit., p. 67.
Chronicle Books, 2012. posterior a Bane, possuíam um grande número de

janeiro • fevereiro • março 2016 109


VOGUE “A elegância é a única beleza que nunca fenece”
Audrey Hepburn

Há exatos 124 anos, elegância e beleza têm uma só grafia: Vogue.


Nenhuma outra publicação conseguiu capturar com tamanha
maestria estas duas virtudes, tão subjetivas quanto abstratas.
Vogue jamais saiu de moda ou caiu do salto. Mais de um século e
centenas de edições depois, circula em duas dezenas de países
sem perder a pose e o estilo. O leitor de Insight-Inteligência sabe
o quanto prezamos pelo bom gosto. Desde a primeira edição, op-
tamos por um projeto gráfico que equilibrasse o apuro estético
com um conteúdo intelectual singular. Vogue sempre esteve en-
tre nossas inspirações. Nas páginas a seguir, prestamos um sin-
gelo tributo à mais chique de todas as publicações. Vogue desfila
em nossa passarela todo o refinamento de algumas de suas capas
históricas. É para se olhar degustando um champanhe.

110 bonequinha de luxo


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o SertÃo
Primordial
e o grande confronto
GUSTAVO MAIA GOMES
Economista

118 Monólito
Que povos alcançaram o futuro que eles não podiam compreender. com a hipótese única da entrada de
território brasileiro antes dos portu- Conhecida descrição dos primeiros asiáticos pelo Alasca, alguns estu-
gueses? Quando chegaram? De onde contatos de europeus com os índios diosos sustentam que essa história,
vieram? Onde viveram? Especialmen- brasileiros, aqui relida, já permite no Nordeste brasileiro, em especial,
te, quem eram os nativos que habi- ver algumas das razões mais funda- começou bem antes. Há 40 milênios,
tavam o Interior? Investigações re- mentais da derrota dos nativos fren- talvez mais. Nesse caso, os humanos
centes em Arqueologia, nas quais me te aos forasteiros. Aconteceu na via- teriam vindo da África em barcos de
apoio, têm muitas novidades a con- gem de Francisco Orellana, espanhol, pesca desencaminhados pelos ven-
tar sobre o Brasil Primordial. Trato descendo o Rio Amazonas, em 1542. tos e correntezas.
apenas dos sertões. É uma idiossin- Foi uma espécie de capítulo inicial do Os povos que se embrenharam
crasia. Os índios do Litoral ficaram Grande Confronto. pelo território futuramente brasileiro
demasiadamente conhecidos, por te- eram caçadores-coletores. Pescado-
rem sido os primeiros encontrados ECONOMIA E CULTURA res, também, onde possível. Utiliza-
pelos novos donos da terra. Embora a maioria dos arqueó- vam artefatos de pedra e, certamen-
Quem quer que tenham sido aque- logos ainda acredite terem os pri- te, de outros materiais menos resis-
les homens e mulheres, sua história meiros habitantes chegado ao con- tentes à destruição. Ao se defronta-
iria mudar completamente nos anos tinente americano apenas 12.000 rem com novos ambientes, souberam
posteriores a 1500, de uma forma anos atrás, o que seria compatível adaptar suas estratégias de sobrevi-

janeirO • fevereiro • março 2016 119


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vência: identificaram as plantas co- que poderiam ter finalidades rituais animais; e um terceiro subterrâneo,
mestíveis; modificaram a paisagem, ou de defesa; e megalitos, autênticos onde estão os mortos e os espíritos.
construindo obras de terras com que observatórios astronômicos, conjun- Expressam, portanto, uma forma de
aumentavam a oferta de alimentos; tos de grandes blocos de pedra dis- conhecimento ou crença.2
descobriram a agricultura que, en- postos de acordo com a posição do No início, esses homens e mu-
tretanto, nunca chegou a ser a base sol (Parque Arqueológico do Solstí- lheres viviam em bandos. Se a analo-
principal de seu sustento. cio, Amapá). gia com os índios encontrados pelos
Na Amazônia, em especial, al- Da cultura imaterial – costumes, portugueses no século XVI for válida,
guns grupos primitivos desenvol- crenças, mitologia, valores – dos pri- cada bando tinha entre 20 e 30 inte-
veram economias de produtividade meiros habitantes do Sertão conhe- grantes e um líder político e espiritual
comparativamente alta, baseadas na cemos pouco. Sabiam fazer fogo. Ti- com poderes limitados. Vários milê-
exploração intensiva dos recursos nham como diferenciar as plantas ve- nios mais tarde, entretanto, alguns
locais. Criaram métodos para ma- nenosas das que serviam de alimen- desses pequenos grupos humanos
nejar a floresta, facilitando o cres- to. Os hábitos de preparar os mor- se reuniram para formar unidades
cimento das árvores que lhes eram tos de um modo especial e depositar políticas maiores (tribos e “cacica-
úteis; tornaram-se sedentários; des- seus restos em urnas de cerâmica dos”), com soberania sobre territó-
cobriram a cerâmica, cujas mais an- sugerem a crença na vida sobrena- rio extenso e mais fortemente sub-
tigas evidências datam de 8.000 ap tural e uma mitologia da criação do metidas à autoridade de um chefe.
(“antes do presente”). Aprenderam a mundo. Pinturas rupestres mostran- Na Amazônia, essas “socieda-
plantar – embora só tardiamente, por do cenas de caça talvez tivessem um des complexas”, cacicados multitri-
volta do ano 4.000 ap, tenha a agri- significado mágico, ou didático; ou- bais, com populações de até 50 ou
cultura adquirido importância (mes- tras, de conteúdo sexual explícito, 60 mil pessoas, teriam começado a
mo assim, complementar) na econo- podiam indicar a aceitação social do aparecer por volta de 3.000 ap. Sua
mia dos protobrasileiros.1 puro prazer. criação está associada, em parte, à
Mas, nem todo o tempo desses Os observatórios astronômicos, descoberta da agricultura, mas, so-
povos era dedicado à economia. As cuja construção exigiu que se movi- bretudo, ao desenvolvimento de uma
suas mais antigas manifestações de mentassem grandes blocos de pedra, tecnologia de administração dos re-
cultura material incluem, além da ce- sugerem o conhecimento das esta- cursos hídricos apoiada em obras
râmica (que viria a atingir altos níveis ções do ano, um bom guia para exe- de engenharia. Foram construídos
de expressividade, especialmente, nas cutar o plantio de vegetais ou ante- aterros, barragens, viveiros de pei-
regiões de Tapajós-Santarém e Ilha cipar a época em que os rios trans- xes, passagens elevadas de terra e
do Marajó, no Pará); pinturas rupes- bordariam ou começariam a vazar, currais para aprisionamento de tar-
tres (abundantes em várias regiões, fechando ou abrindo territórios de tarugas.
como a Serra da Capivara, Piauí, os caça e de pesca. Alguns desenhos A ocupação por um longo pe-
sítios de Santa Elina e Cidade de Pe- em peças de cerâmica, por exem- ríodo de um mesmo sítio modificou
dra, no Mato Grosso, e Lagoa Santa, plo, na Amazônia Central, descre- os solos, criando manchas de “ter-
Minas Gerais); inscrições esculpidas vem o mundo dividido em três pla- ra preta de índio”, altamente férteis,
em rochas (como na Pedra do Ingá, nos, como os incas também faziam: que se formaram com a deposição
Paraíba, e no Rio Madeira, Rondô- um superior, habitado pelo sol, es- secular de restos orgânicos e sua
nia); geóglifos, grandes e extensas trelas, arco-íris; outro, no nível da queima periódica. A maioria dos ca-
movimentações de terra (no Acre), terra, onde habitam os homens e os cicados, contudo, teria desapareci-

120 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do antes da chegada dos portugue- arqueológicos amplamente reconhe- fantes), e de toxodons, parentes dos
ses, provavelmente, devido ao efei- cidos como os mais antigos incluíam rinocerontes.3
to conjunto de epidemias, guerras a Lapa do Boquete (MG), Santa Elina Há 40 anos, o lugar é objeto de
intertribais e variações climáticas (MT) e Monte Alegre (PA), todos com pesquisas arqueológicas. Numa das
duradouras. datações próximas a 12.000 anos. mais recentes, descrita em 2014, rei-
Essa primitiva história não foi É possível que, a partir de agora, a tera-se a proposição da presença
feita, apenas, de realizações. Algu- primazia de antiguidade passe para humana muito antiga no atual Piauí.
mas lacunas também são notáveis. o Vale da Pedra Furada, no Parque As escavações feitas no Vale da Pe-
Mesmo quando formaram sociedades Nacional da Serra da Capivara, em dra Furada permitiriam fixar em até
populosas e dotadas de certa sofisti- São Raimundo Nonato, Piauí, e que 24.000 anos ap os sinais de povoa-
cação, os povos que descobriram o o período de vida dos Sertões bra- mento. Não são restos de gente (os
Brasil antes dos portugueses não in- sileiros seja estendido, pelo menos, solos ácidos da região destroem os
ventaram a escrita, nem a roda, não para 24.000 ap. ossos, impedindo sua preservação
conheceram os metais, não cons- por longos períodos), mas fragmen-
truíram cidades de pedra, nem de- Pedra Furada (Serra da Capivara, Piauí) tos de quartzo e quartzito que, na vi-
senvolveram formas de organização A região onde se localiza o Par- são dos cientistas responsáveis pelas
social mais complexas que os caci- que Nacional da Serra da Capivara, descobertas, seriam artefatos pro-
cados. Sua agricultura foi rudimen- no Sertão nordestino, marca o en- duzidos pelos primitivos habitantes.4
tar, embora isso possa ter sido uma contro de duas formações geológi- Os primeiros ocupantes da Ser-
escolha, pois havia muitas possibili- cas: a bacia sedimentar Maranhão- ra da Capivara praticavam a caça
dades de sobreviver explorando, por -Piauí e a depressão periférica do aos tatus verdadeiros, tatus-bola,
exemplo, na Amazônia, os recursos Rio São Francisco. Ali coexistem ser- cutias, veados catingueiros, pássa-
da fauna e flora locais. ras, vales e planície. Tal diversidade ros e lagartos. Acredita-se que a re-
Além de tudo isso, por uma fal- de ambientes, no passado, tornou o gião chegou a ter densidade popu-
ta de sorte que explica parte de sua lugar atraente para humanos e ou- lacional maior do que tem hoje. As
história subsequente, os habitantes tros animais. A vegetação e a fauna marcas da antiga presença huma-
primordiais não encontraram nos atuais são típicas da caatinga, mas, até na são abundantes. Mais de mil sí-
futuros espaços brasileiros, fossem cerca de 10.000 anos atrás, a Mata tios arqueológicos já foram cadas-
esses no Sertão ou alhures, animais Atlântica dominava a paisagem. O cli- trados no Parque; 173 deles estão
domesticáveis que lhes pudessem ma era úmido e havia abundância de abertos à visitação pública. Além de
servir de alimento e meios de trans- alimentos, o que permitiu a sobrevi- caçar e coletar alimentos, essa gen-
porte, como aconteceu com a lhama vência de grandes animais cujas es- te desenhava e pintava nas pare-
e a alpaca, nos Andes. pécies, em geral, se extinguiram (não des rochosas dos abrigos naturais,
apenas ali) na passagem do Pleisto- pelo menos, há 12.000 anos, segun-
OS PRIMEIROS HABITANTES ceno para o Holoceno, épocas geo- do as estimativas de Niède Guidon,
A pesquisa arqueológica, ainda lógicas da Terra. No Parque, ou em arqueóloga franco-brasileira que
incipiente no Brasil, mas intensifica- áreas próximas a ele, já foram de- descobriu o lugar, nos idos de 1960.
da a partir dos anos 1980, reuniu evi- senterrados ossos de preguiça gi- De fato, uma quantidade incalculável
dências de presença humana muito gante (que podia atingir três metros de pinturas rupestres existe e pode
antiga em todos os sertões brasilei- de altura e pesar cinco toneladas), ser contemplada, em alguns casos,
ros. Até recentemente (2014), os sítios de mastodontes (semelhantes a ele- confortavelmente, pelos visitantes.

janeirO • fevereiro • março 2016 121


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Foram essas pinturas que primeiro dores teriam, então, provocado um guém tinha visto. Um mês depois do
atraíram a atenção de arqueólogos incêndio na entrada do abrigo. Sem episódio acima descrito, ele iniciou
para a Serra da Capivara.5 ter como fugir, eles morreram quei- a escavação. “O relato de sua pes-
Ainda não se sabe como pode- mados naquele lugar que, desde en- quisa transforma-se numa interes-
riam esses homens e mulheres ter tão, ficou conhecido como Gruta do sante leitura”, diz Gabriela Martin,
alcançado o Piauí sem deixar traços Padre. Até as primeiras décadas do “pois se trata da primeira escavação
pelos caminhos por onde passaram. século passado, os mais velhos ha- arqueológica realizada no Nordeste
(Ou, quem sabe, essas pistas apenas bitantes da região ainda diziam ou- com um mínimo de sistemática por
ainda não foram encontradas?) Se vir, à noite, os soluços do casal cujo parte de seu autor”. Mas isso não é,
vieram do litoral, como já foi sugeri- amor teve tão trágico fim. apenas, um episódio curioso na his-
do, muito antes de os asiáticos terem Não existem outras evidências, tória dos sertões primordiais. Trinta
penetrado a América pelo Estreito de além da tradição oral, de que o caso e dois anos depois das escavações
Bering, de que forma se deu sua che- do padre e a moça vindos do Piauí te- pioneiras de Carlos Estevão, outro
gada ao continente sul-americano? nha, realmente, acontecido. Mas, os arqueólogo, Valentin Calderón, de-
Em declarações atribuídas a Niède desdobramentos comprovados des- finiu a chamada Tradição Itaparica
Guidon, uma resposta foi oferecida: sa história não são menos interes- para designar o estilo dos artefatos
“em minha opinião”, diz a arqueólo- santes. Em 1935, um estudioso de líticos encontrados no local. Desco-
ga, “o Homo Sapiens saiu da África assuntos indígenas, Carlos Estevão, briu-se, depois, que a Tradição Ita-
faz 130 milênios. (...) Alguns deles se visitou Itaparica. Dois anos depois, parica tinha sido difundida por um
dirigiram a Ásia e Europa, enquanto ele relatou o que soube e viu por lá. território muito maior, alcançando
outros, provavelmente pescadores, Publicada no Boletim do Museu Na- até os atuais estados de Goiás e Mi-
foram arrastados pelas correntes e cional, a fala do etnólogo tornou co- nas Gerais. Também foi estabeleci-
chegaram à América do Sul”.6 nhecida de um público maior a lenda do, posteriormente, que a presença
daquele amor proibido. Contou Este- humana na região da Gruta do Pa-
A Gruta do Padre (Pernambuco) e sua lenda vão que, andando pelas margens do dre remonta a 7.000 ap.8
Uma lenda com alusões arqueo- São Francisco, próximo a Petrolân- Segundo Gabriela Martin e An-
lógicas aos primeiros habitantes une dia, deparou-se com um idoso senhor ne-Marie Pessis, a Gruta do Padre
os sertões do Piauí aos de Pernam- de nome Anselmo que trabalhava na teve duas ocupações. “No longo pe-
buco: a história do padre que raptou lavoura. O velho contou-lhe, então, a ríodo em que serviu como refúgio de
a moça por quem se apaixonara. Em- história delineada acima. “Como de- caçadores, os artefatos que corres-
bora datas não sejam nunca men- vem ter percebido”, continua Carlos pondem às ocupações mais antigas
cionadas, o contexto faz supor que Estevão, “a narrativa que acabaram (7.000 e 5.000 ap) aparecem finamen-
isso teria acontecido no século XIX. tem um sabor de lenda muitíssimo te retocados por pressão, em sílex e
Na fuga, acossados pelos truculen- acentuado. Esta circunstância au- calcedônia, principalmente na forma
tos familiares da jovem, desde o Piauí mentou-me o desejo de visitar a gru- de raspadores plano-convexos (les-
até às margens do Rio São Francis- ta”. Foi o que fez.7 mas)”. Já nas ocupações mais recen-
co, em Petrolândia (PE), os dois na- Carlos Estevão foi o primeiro tes, em contraste, entre 4.000 e 2.000
morados encontraram esconderi- cientista a entrar na Gruta do Pa- ap, “os instrumentos são menos refi-
jo numa gruta próxima à cachoeira dre. Não viu as coisas de que o rús- nados, de tamanho maior, com pou-
de Itaparica, hoje submersa. Mas, tico habitante local Anselmo falava, co ou nenhum retoque, muitos deles
foram descobertos. Seus persegui- mas viu outras que, até, então, nin- lascados sumariamente a partir de

122 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seixos procedentes do conglomera- milímetros de profundidade. A parte velmente este artigo. Pois a literatura
do da própria gruta”.9 superior do painel está enquadrada fantástica sobre os desenhos (...) di-
Desde 1989, com a constru- por uma linha de círculos gravados, vaga por alusões à presença de se-
ção do lago de Itaparica, a Gruta do de cinco centímetros de diâmetro”.10 res extraterrestres (...), a supostos
Padre se encontra sob as águas do Infelizmente, isso é quase tudo povos remanescentes dos lendários
Rio São Francisco. Pouco antes de a o que sabemos sobre o monumento. continentes submersos, a presen-
inundação ocorrer, uma equipe de Como se constata em um estudo re- ça do apóstolo São Tomé por essas
arqueólogos da Universidade Fede- cente (2014), a Pedra do Ingá “é um plagas, navegantes fenícios, sumé-
ral de Pernambuco coordenada por dos mais importantes exemplos de rios, hititas e hebreus, sagas falofó-
Gabriela Martin fez intensas pesqui- arte lítica registrados no Brasil”, lis- rias, cosmogêneses, uranoscópicas,
sas em toda a região, salvando o que tado como patrimônio nacional des- metafóricas, panegíricas e os tantos
era possível salvar e registrando o de 1944. Apesar disso, “o sítio nunca outros conceitos que a proparoxito-
que de importante ali foi encontrado. foi objeto de pesquisa arqueológica nia possa nomear os fantásticos ex-
sistemática e não se dispõe, sequer, cessos da imaginação”.12
A Pedra do Ingá (Paraíba) de uma cronologia aceita para a arte De qualquer forma, o historia-
“A Itaquatiara de Ingá, ou Pedra rupestre ali representada. Os textos dor e arqueólogo Wanderlei Brito foi
Lavrada de Ingá, na Paraíba, é sem dú- publicados apenas tentam interpre- o único a arriscar um palpite sobre a
vida a mais famosa gravura rupestre tar os sinais.”11 idade das gravuras, que teriam sido
do Brasil”, escreveu Gabriela Martin E as interpretações não têm feitas “por uma cultura extinta, entre
no seu livro sobre a pré-história do freios: “Se fossemos esmiuçar o co- 2.000 e 5.000 anos atrás”.13
Nordeste. Fica no riacho Ingá do Ba- pioso arsenal de crendices, lendas e Não se trata senão de um pal-
camarte, município de Ingá, Paraíba, mitos atribuídos à Pedra do Ingá (...) pite. A datação das gravuras na Pe-
distante 40 km de Campina Grande e teríamos que aumentar considera- dra do Ingá é dificultada por sua lo-
110 km de João Pessoa. Não é uma
pedra, mas um conjunto delas, sen-
do que uma se destaca por conter a
maior parte das gravuras. A impres-
são causada no observador é muito
forte: “um enorme bloco de 24 me-
tros de largura e três de altura divi-
de o rio em dois braços. O lado nor-
te do bloco está totalmente coberto
de grafismos, gravados até uma al-
tura de 2,5 metros”. Muitas interpre-
tações já foram propostas para as fi-
guras, mas nenhuma delas ganhou
aceitação geral. Ainda segundo Mar-
tin, “os desenhos foram realizados
seguindo uma linha contínua e uni-
forme, insculpida na rocha, de três
centímetros de largura e seis a sete

janeirO • fevereiro • março 2016 123


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

calização no meio de um curso de


água sujeito a cheias periódicas que
há muito apagaram os vestígios dei-
xados pelos autores dos desenhos.
Mas uma datação aproximada po-
deria ser conseguida, se houvesse
mais empenho. Isso porque, como
salienta Gabriela Martin, “na região
do Seridó [Rio Grande do Norte, pró-
xima à Pedra do Ingá], registram-se
meia centena de sítios com petró-
glifos gravados nas rochas do Rio
Carnaúba e seus afluentes, entre os
quais é possível identificar grafismos
muito semelhantes aos da itaquatiara
de Ingá, tanto pelos desenhos em si
como pela técnica de raspado e po-
limento utilizados.”14
Se algum desses conjuntos de do Riacho, na Serra do Cipó. Todos res, segundo Prous, “eram utilizadas
arte rupestre for datado, um parâ- estão em território da atual estado como canivetes, enquanto as maio-
metro menos arbitrário poderá ser de Minas Gerais.15 res eram retocadas numa das faces
estabelecido para a Pedra do Ingá. André Prous, que estudou aque- para obter raspadores, ou em ambas
Mas isso é, apenas, um desejo. O que la área, escreve que “um pouco ao as faces para se tornarem pontas de
é certo é que a Itaquatiara do Ingá Norte de Belo Horizonte, a região de projétil. (...) Com patas de veado fa-
representa um marcante testemu- calcário de Lagoa Santa e a encos- ziam-se espátulas e com a ponta dos
nho – com toda a aparência de ser ta da Serra do Cipó forneceram a chifres, sovelas. Foram encontrados
muito antigo – da presença humana maior coleção de esqueletos dispo- também anzóis e contas de osso para
nos sertões do Nordeste. níveis para o estudo biológico das colares”. O povo de Lagoa Santa as-
primeiras populações americanas. segurava sua subsistência, em parte,
Luzia e os povos de Lagoa Santa e Serra Muito parecidos entre si, esses po- com a ingestão de proteínas de pe-
do Cipó (Minas Gerais) vos formam a chamada ‘raça de La- quenos animais por eles caçados. A
De acordo com a revisão da li- goa Santa’. O mais antigo esqueleto, maior parte da dieta, contudo, pro-
teratura feita por Lucas Bueno e popularizado sob o nome de Luzia, vinha de fontes vegetais.17
Adriana Dias, alguns dos sítios ar- foi encontrado no abrigo IV da Lapa Pinturas e gravuras rupestres
queológicos mais antigos e notáveis, Vermelha”. Teria 11.500 anos.16 abundam nessa região de Minas Ge-
no Sul e Sudeste brasileiros, são a Em vários sítios da região, há far- rais. Elas apresentam cenas de caça,
Lapa do Boquete, no vale do Rio Pe- ta evidência da fabricação e utiliza- inclusive, com uso de arco e flechas,
ruaçu (um afluente do São Francis- ção de instrumentos de pedra, como em contraste com a Serra da Capi-
co), em Januária; a Lapa Vermelha lascas de quartzo, “muitas delas obti- vara. Também aparecem armadilhas
(em Lagoa Santa, Região Metropo- das ao se esmagarem os cristais so- para caçar animais terrestres e ce-
litana de Belo Horizonte); e Santana bre uma bigorna”. Dessas, as meno- nas de pesca com a utilização de re-

124 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

des. A ligação dessa arte com a vida cacos) e de pessoas humanas. As pin- nhos. De acordo com Adriana Sch-
cotidiana dos primitivos habitantes da turas mais antigas podem remontar midt Dias, referindo-se às pesqui-
região parece bastante clara. Consi- ao início do Holoceno. sas originalmente feitas por Anna
derando, assim como também ocor- Roosevelt, a ocupação na região da
ria na Serra da Capivara, que a ela- Taperinha e Monte Alegre (Pará) gruta de Pedra Pintada está asso-
boração das pinturas e gravuras fei- A ocupação da região em torno ciada a uma indústria lítica bifacial
tas por incisão na pedra demandava da atual cidade paraense de Santa- [ou seja, trabalhada em duas faces]
doses significativas de trabalho (al- rém, às margens do Rio Tapajós, pró- que tem muitas semelhanças com a
gumas delas se localizam até a seis ximo à confluência deste com o Ama- do sul do país, o que poderia indicar
metros de altura do piso, exigindo, zonas, remonta ao Pleistoceno tardio, “possíveis fluxos migratórios (...) ao
portanto, a montagem de estruturas ou seja, há mais de 11.000 anos. Um longo dos rios Paraguai, Paraná e
especiais para serem feitos), deduz- sambaqui fluvial (Taperinha) escava- Uruguai, na transição Pleistoceno-
-se que a produção da arte era con- do em 1987 pela arqueóloga norte- -Holoceno”.20
siderada uma atividade importante. -americana Anna Roosevelt conser-
vou abundantes vestígios de presen- A ERA DOS CACICADOS
Santa Elina e Cidade de Pedra ça humana: conchas de moluscos O primeiro e longuíssimo tempo
(Mato Grosso) que haviam sido usados como ali- da ocupação humana dos sertões
O sítio arqueológico de Santa Eli- mento, carvão remanescente de fo- brasileiros iria terminar em 3.000
na fica na Serra das Araras, municí- gueiras intencionalmente feitas, os- ap, aproximadamente, com a ocor-
pio de Jangada, Mato Grosso, 120 km sos de animais e de pessoas huma- rência de desenvolvimentos tecnoló-
a Noroeste de Cuiabá. É o mais anti- nas e, especialmente, fragmentos de gicos que aumentaram muito o pro-
go testemunho de presença humana cerâmica. Produzida entre os anos duto por trabalhador e por área eco-
na região. Segundo Águeda Vilhena 8.025 e 7.170 ap, a cerâmica de Ta- nomicamente explorada. As mudan-
Vialou, a primeira ocupação humana perinha é a mais antiga já conheci- ças se espraiariam por quase dois
no local data de 25 mil anos. (Não há, da nas três Américas.19 mil anos, entre 3.000 ap e 1.000 ap
contudo, plena aceitação dessa data.) Não muito longe de Taperinha, e aconteceram, especialmente, na
Indícios de que os sucessivos habi- na margem esquerda do Rio Ama- Amazônia. O resultado delas teria
tantes da região, mesmo em épocas zonas, pesquisadores coordenados sido o aparecimento de sociedades
mais recentes, praticassem a agri- pela mesma arqueóloga estudaram com organização econômica, tecno-
cultura não foram encontrados.18 a caverna da Pedra Pintada, no mu- lógica e política mais complexa que
A arte rupestre encontrada em nicípio de Monte Alegre, Pará. Ali, a dos pequenos bandos e tribos até
Santa Elina contém grande número há registros de presença de povos então existentes em todas as regiões
de desenhos abstratos (mais de dois caçadores-coletores desde 11.200 do Brasil. Essas sociedades foram
terços do total) que podem se apre- anos atrás. Foram encontrados ins- chamadas cacicados.
sentar nas formas de pontos, sinais trumentos de pedra lascada com Foi a combinação de achados
pontuados, barras de sinais linea- uma e duas faces trabalhadas, além arqueológicos e relatos de viajan-
res simples até formas geométricas de plantas carbonizadas, restos de tes europeus dos primeiros anos
complexas. Representações descri- pigmentos minerais usados nas pin- pós-1492 que levou os arqueólogos
tivas de objetos ou organismos reais turas, uns poucos ossos fossiliza- a proporem a existência de cacica-
se limitam a figuras de animais (cer- dos e muitas frutas carbonizadas, dos (alguns deles já extintos quando
vídeos, pássaros, antas, felinos, ma- como castanhas-do-pará e coqui- da chegada dos europeus) em várias

janeirO • fevereiro • março 2016 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

partes da Amazônia brasileira, como Ao contrário das sociedades da nise Pahl Schaan fez pesquisas de
a Ilha do Marajó, a região de Santa- Amazônia Central, de Santarém e do campo e escreveu uma tese douto-
rém (PA), a Amazônia Central, o Alto Marajó, que já estavam extintas quan- ral defendendo a existência de caci-
Xingu e vastas extensões das mar- do da invasão europeia, povos espa- cados na região do Rio Camutins, na
gens do Rio Amazonas. Recentemen- lhados pelas margens do Rio Amazo- mesma Ilha do Marajó. 23
te, porções do estado do Acre foram nas subsistiram e foram descritos Os integrantes dos cacicados na
adicionadas às regiões onde essas por observadores espanhóis e por- Ilha do Marajó se sustentavam, pre-
sociedades complexas teriam apare- tugueses, a partir da viagem pionei- dominantemente, da exploração in-
cido. Talvez, também, o litoral atlân- ra de Francisco Orellana (1542). Os tensiva de recursos aquáticos e flo-
tico do Amapá. cacicados descritos historicamente rísticos. Para aumentar a oferta de
Claide Moraes, por exemplo, es- tinham uma organização social hie- alimentos, construíram não apenas
creveu que “na Amazônia Central, rarquizada e uma economia basea- tesos, mas barragens, poços, pontes
região convencionalmente definida da na agricultura a na exploração de terra, estradas e currais para o
como o baixo curso dos rios Solimões intensiva dos recursos naturais. A aprisionamento de peixes. Provavel-
e Negro até as proximidades da foz classe dirigente cobrava tributos e mente, “administravam” (ou seja, faci-
do Rio Madeira, no estado do Ama- podia organizar compulsoriamente litavam o crescimento de) as árvores
zonas, os sítios arqueológicos apre- o trabalho coletivo. Essas socieda- e palmeiras que lhes forneciam ali-
sentam evidências de que, por vol- des complexas que testemunharam mentos, como o açaí e o buriti. O arroz
ta do ano 1000 de nossa era, gran- a chegada dos europeus, entretanto, silvestre, um dos itens de consumo,
des contingentes populacionais [ali] viriam a ser todas extintas no primeiro também pode ter recebido cuidados
se estabeleceram”. Anna Roosevelt, ou segundo século da colonização.22 especiais. A mandioca era cultivada,
que estudou, especialmente, socieda- mas não parece ter sido a principal
des ceramistas localizadas em San- Ilha do Marajó (Pará) fonte de carboidratos. Dado o am-
tarém (PA) e localidades próximas e Sociedades indígenas do tipo “ca- biente natural em que aquelas pes-
na Ilha do Marajó, relata que os do- cicados” existiram na Ilha do Marajó soas viviam, esse complexo de obras
mínios dos cacicados “eram muito nos anos 400 a 1350 da nossa era. de engenharia (aterros, poços, bar-
amplos, algumas vezes, de dezenas Isso pode ser inferido analisando a ragens, pontes, estradas) e conhe-
de milhares de quilômetros quadra- cultura material que deixaram para cimento tecnológico (pesca, mane-
dos e eles eram sociedades politica- trás, os restos de suas refeições, al- jo florístico e agricultura) deve ter
mente unificadas por chefes investi- gumas características de seus sepul- sido suficiente para gerar uma ofer-
dos de amplos poderes. As popula- tamentos. Outras evidências apontam ta estável e suficiente de alimentos,
ções eram densamente agregadas para uma ocupação densa do terri- que permitiu a aglutinação de mui-
e algumas povoações tinham muitos tório, convergindo para a conclusão tas pessoas em uma única socieda-
milhares de pessoas”. Michael He- de que ali teriam vivido populações de politicamente definida.24
ckenberger propôs a existência de muito maiores que as característi-
um cacicado do povo Kuhikugu, no cas de uma organização social me- Alto Xingu (Mato Grosso)
Alto Xingu (MT) que teria, inclusive, nos sofisticada. Anna Roosevelt, que No alto Rio Xingu, território do
construído “cidades” de até 2,5 mil investigou o Teso dos Bichos, no Ma- atual estado de Mato Grosso, desen-
habitantes e sobrevivido por várias rajó, foi a primeira a afirmar a exis- volveu-se, aproximadamente, entre
décadas à chegada dos portugue- tência de cacicados antigos, já extin- os anos 500 e 1600 DC, uma socie-
ses ao Brasil.21 tos, na ilha. Mais recentemente, De- dade indígena que construiu pontes,

126 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

estradas, praças de aldeias, barra- retângulos e quadrados, cujo perí- foram fincados no solo por uma po-
gens, açudes e estruturas defensi- metro pode passar de 300 m. Quan- pulação pré-colombiana, em torno
vas feitas de terra. Michael Hecken- do mais de um existem próximos, do ano 1000 da nossa era. O monu-
berger, antropólogo norte-america- eles são ligados por estradas de mento tem sido associado ao Sto-
no, tem estudado a região onde viveu terra protegidas por muros, obras nehenge da Inglaterra. No caso do
esse povo antigo, os kuhikugu, hoje de engenharia, igualmente, notá- Amapá, o local foi denominado Sítio
habitada pelos cuicuro, seus pos- veis, algumas com até 55 m de lar- Rego Grande, em referência ao iga-
síveis descendentes. Ele sustenta gura e 600 m de comprimento. Na rapé que o margeia, e fica a 16 km
que a população local era, no auge descrição de William Balée e cola- da sede do município. As pedras são
da ocupação primitiva, vinte vezes boradores, os geóglifos são “estru- dispostas de modo a formar uma fi-
maior que a atual. E que teria havido turas de terra como valetas e mu- gura aproximadamente circular, com
cidades (sem construções de pedra, retas, além de montículos ovais ou raio de 30 m.
é certo) com até 2,5 mil habitantes.25 lineares, assim como estradas mu- Alguns significados astronômi-
Heckenberger identificou 28 des- radas, formando diferentes morfo- cos desse conjunto já foram desco-
sas cidades e aldeias, distribuídas logias. (...) Alguns sítios são ligados bertos pelos estudiosos contempo-
por uma área de 20.000 quilômetros por estradas muradas retilíneas, as râneos. Num caso, rocha semelhante
quadrados, que podem ter abrigado, quais ocasionalmente se direcionam a um poste, ou seja, com altura mui-
em seu conjunto, 50.000 habitantes. para o rio ou a floresta”.27 to superior à largura, foi posiciona-
A maior delas era cercada por fos- As datações disponíveis (em 2014) da de forma oblíqua em relação ao
sos defensivos com até três metros indicam que os geóglifos acreanos solo, de modo a se alinhar com a tra-
de profundidade e dez metros de lar- foram construídos entre 2000 ap e jetória descrita pelo sol na tarde do
gura, reforçados por uma paliçada de 700 ap (portanto, no início e até o sé- solstício de dezembro. O alinhamen-
madeira. Os fossos são um indicativo culo 14 de nossa era). Antes oculta- to é tão preciso que o megalito fica
de que havia inimigos em torno; pos- dos pela densa floresta, alguns des- sem sombra nas suas partes late-
sivelmente, guerras se travavam com ses monumentos de terra se torna- rais, mas apenas num dia específi-
frequência. As cidades eram integra- ram visíveis no final do século 20, co do ano. Noutro caso, nesse mes-
das por várias praças, algumas delas devido ao desmatamento. Mais de mo dia, as extremidades de dois blo-
com 150 metros de largura. Os acha- 300 já foram identificados em um cos de rocha formam uma linha que
dos arqueológicos, como restos de território que se estende pelo les- indica a posição exata onde aparece
habitações e de peças de cerâmica, te do Acre, o extremo oeste de Ron- o sol ao nascer. Com os blocos maio-
indicam que os kuhikugu ocuparam dônia, o sul do estado do Amazonas res pesando até quatro toneladas, o
aquelas terras durante um milênio, e partes da Amazônia boliviana. Os trabalho exigido para transportá-los
tendo sido contemporâneas dos eu- estudiosos avaliam que, pelo menos, e posicioná-los só pode ter sido feito
ropeus no Brasil.26 dois mil deles existam, aguardando por grupos numerosos, trabalhando,
ser descobertos.28 provavelmente, sob uma liderança
Alto Purus: os geóglifos do Acre forte o bastante para convencer ou
Geóglifos (“marcas na terra”), Os megalitos do Solstício (Amapá) obrigar as pessoas a fazer o esforço.
um nome proposto pelo geógrafo e Em Calçoene, Amapá (360 km ao
paleontólogo Alceu Ranzi, são enor- norte de Macapá) cerca de 150 blo- “Sociedades complexas” ou nem tanto?
mes construções de terra, pré-co- cos de rocha, alguns com três metros O choque iniciado no século 16
lombianas, em formato de círculos, de altura apenas na parte exposta, entre as culturas (tanto as simples

janeirO • fevereiro • março 2016 127


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

como as “complexas”) preexistentes ram os metais? (v) Por que eles ja- materializaria na sucessão bando-
no futuro território do Brasil e a ci- mais construíram cidades ou gran- -tribo-cacicado-estado.
vilização europeia invasora foi de tal des monumentos de pedra? Nem eu acredito nessa filoso-
magnitude e consequências que al- Essas questões são as “princi- fia, nem tal contexto interessa es-
gumas perguntas precisam ser fei- pais”, não por que elas já foram for- sencialmente à história dos sertões
tas sobre o desenvolvimento alcan- muladas muitas vezes antes, numa brasileiros. Interessa, entretanto, e
çado no período anterior ao contato. clássica controvérsia da arqueolo- muito, identificar as condições que
Depois desse, tudo mudou. As ques- gia contemporânea (como assinalou explicam ou ajudam a explicar a vi-
tões até poderiam ser as mesmas, Eduardo Góes Neves, “Para os [ar- tória política, econômica, ideológica,
para ambos os períodos; as respos- queólogos] que trabalham nas ter- cultural dos europeus sobre os na-
tas, não. As perguntas principais, ras baixas da América do Sul, a som- tivos brasileiros, a partir de quando
penso, são essas: (i) Por que nunca bra do Estado e a do monumentalis- o confronto entre as duas culturas
se desenvolveram, nos sertões da mo se fazem projetar com um efeito se tornou inevitável. E, dentre es-
futura América portuguesa (ou em muito maior que os seis mil metros sas condições, a ausência de esta-
quaisquer outras de suas regiões), de altitude da Cordilheira dos An- dos, o precário desenvolvimento de
sociedades organizadas politicamen- des”29), pois o contexto dessa dispu- sua agricultura, o desconhecimen-
te como Estados? (ii) Por que os indí- ta acadêmica tem a ver com a oposi- to da escrita e dos metais desempe-
genas “brasileiros” jamais pratica- ção entre “história” e “processo”, ou nharam papel saliente, em desfavor
ram a agricultura em larga escala, seja, com a pressuposição (por parte dos índios. (A falta de monumentos
de modo a fazê-la a base primordial dos processualistas) de que todas as é uma consequência das outras de-
de suas economias? (iii) O que os im- sociedades devem, necessariamen- ficiências.) Não foram suas únicas
pediu de inventar a escrita? (iv) Por te, passar pela mesma sequência de desvantagens: a vulnerabilidade às
que eles não conheceram ou utiliza- etapas a qual, no campo político, se doenças contagiosas teve importân-
cia quantitativamente maior, mas fo-
ram decisivas, de qualquer modo.
As respostas às questões aci-
ma têm uma única e mesma raiz. O
que impediu os habitantes pré-colo-
niais do Brasil de atingirem formas
de organização política e níveis de
cultura material mais sofisticados
(e é possível dar uma definição in-
teiramente positiva, não valorativa,
a essa expressão) foi a insuficiência
de sua base econômica.
Os arqueólogos – alguns, a des-
peito de si mesmos – sempre soube-
ram disso. Desde os anos 1940, com
Julian Steward e, depois, em continua-
ção, com Betty Meggers, a ausência
de uma agricultura de alta produtivi-

128 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dade e larga escala tem sido aponta- Houve, sim, “cacicados”, ou “so- região dos sertões brasileiros, a Ama-
da como o impedimento intransponí- ciedades complexas”, nesse sentido, zônia, onde apareceram cacicados.
vel ao desenvolvimento, em territó- na Amazônia pré-histórica. Também Existem, pelo menos, duas explica-
rio que viria a ser brasileiro, de so- houve cultura material de pequenos ções possíveis. Os estudiosos mais
ciedades “complexas”, em especial, objetos com altos padrões artísticos antigos, especialmente, Betty Me-
aquelas politicamente constituídas e técnicos, como as cerâmicas ma- ggers, sustentaram que as condi-
em Estados e de sua corresponden- rajoara e tapajônica. Além disso, os ções ecológicas da Amazônia eram
te representação física na forma de aterros espalhados na Amazônia, os incompatíveis com a agricultura de
prédios administrativos, religiosos e geóglifos do Acre, e os megalitos do alta produtividade. Isso ainda hoje
cerimoniais com características de Amapá são importantes exemplos de parece ser parcialmente verdadeiro.
imponência e durabilidade. cultura material incorporada a gran- Reconhece-se que, nos terrenos de
Os passos tímidos que se haviam des objetos. Mas não existiram Esta- várzea, a atividade agrícola alcança
dado nesse sentido, (os “cacicados”), dos, nem cidades de pedra, nem mo- rendimentos elevados, mas somente
alguns dos quais reconhecidos pela numentos que exprimissem, de uma plantas de ciclo curto podem ser ali
primeira geração de estudiosos da feita, grandeza e arte. Por quê? Por- cultivadas, aproveitando a vazante
pré-história amazônica, foram ini- que a base material nunca o permitiu. anual dos rios. Além disso, as plan-
cialmente explicados como importa- A agricultura mais ou menos tações feitas nessas áreas inundá-
ções, ou seja, como tendo sido tra- rudimentar praticada na Amazônia veis são sujeitas a riscos climáticos
zidos de fora por destacamentos de pré-cabralina e a exploração intensi- demasiadamente grandes.
povos mais adiantados, talvez, origi- va dos recursos aquáticos geraram Em terra firme, com seus solos
nários dos Andes. Não teriam durado produção suficiente para sustentar pobres, por outro lado, a produtivi-
muito, exatamente, por não encontra- os cacicados, (que eram organiza- dade agrícola alcançável com as téc-
rem aqui a possibilidade de recriar ções “complexas” em relação aos nicas disponíveis seria incompatível
permanentemente a base econômi- bandos e tribos isoladas), mas não com a geração de grandes exceden-
ca que os viabilizava nos seus luga- para respaldar “estados”, ou seja, tes. Finalmente, as terras pretas de
res de origem. sociedades com população maior, índios, solos de alta fertilidade cria-
Uma segunda e terceira gerações divisão de trabalho mais acentuada, dos pela ação da ocupação humana
de arqueólogos, dentre os quais se estamentos dirigentes e administra- de longuíssimo prazo, seriam limita-
destacam Anna Roosevelt, Michael tivos completamente dissociados da das em extensão e apenas se torna-
Heckenberger e Denise Schaan, se produção de alimentos. Para atingir ram mais conhecidas dos arqueólo-
insurgiram contra essas posições esse estágio, a agricultura teria de gos em anos recentes, de modo que
mais radicais e conseguiram de- se desenvolver muito mais. A dispo- não entraram muito na polêmica so-
monstrar que as sociedades “com- nibilidade de animais domesticáveis bre as causas do subdesenvolvimen-
plexas” da Amazônia pré-cabralina também teria ajudado muito, mas não to agrícola da Amazônia.30
não eram sobrevivências importa- pode ser considerada condição im- A segunda resposta, aventada
das, mas se haviam desenvolvido lo- prescindível ao maior desenvolvimen- por Claide Moraes, é mais desafia-
calmente. Também parece ter sido to político e cultural, à vista das civili- dora. Ela parte de uma indagação:
comprovado que essas sociedades zações mexicanas pré-colombianas. “o que é mais interessante, praticar
tinham como base econômica não a E por que a agricultura não se agricultura, ou caçar e pescar?” Mo-
agricultura, mas a exploração inten- desenvolveu mais? A discussão so- raes favorece a segunda alternativa.
siva dos recursos aquáticos. bre o tema concentrou-se na única Se ele estiver certo, a agricultura não

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

se desenvolveu mais, no Brasil pré- estariam, apenas, dando continui- entretanto, a verdade é que a agri-
-cabralino, porque os índios eram fe- dade a hábitos e preferências muito cultura pré-cabralina na Amazônia
lizes como caçadores e coletores e antigas. Anteriores, provavelmente, nunca se tornou o principal pilar de
não houve ninguém ou nenhum gru- à própria chegada dos portugueses. sustentação daqueles povos. Acon-
po de pessoas capaz de lhes obrigar A versão anedótica desse tra- tece que os limites de produtividade
a se tornarem agricultores em tem- ço cultural põe em destaque o Ver- da economia coletora-pescadora-ca-
po integral. -o-Peso, famoso mercado, principal çadora, embora muito mais elásticos
“No passado, o acúmulo de ter- fonte de abastecimento de Belém. do que o supunham Steward ou Me-
ra preta nas proximidades de áreas Como sempre tem grande quanti- ggers, são estreitos em comparação
domésticas certamente favoreceu dade de restos alimentares, o lugar aos alcançáveis por uma agricultu-
os variados cultivos de frutas, plan- atrai muitos urubus. Tantos, que cada ra mais desenvolvida. Disso sabemos
tas medicinais e plantas mágicas, um apenas consegue uma pequena pela história de outros povos pré-co-
padrão que, inclusive, ainda pode ração diária sendo, invariavelmen- lombianos, especialmente, no Méxi-
ser observado nas comunidades te, magro. Em compensação, o am- co, América Central e Andes.
amazônicas em áreas de terra pre- biente é de festa. Certo dia, visita o Dessa maneira, a insuficiência
ta. Porém, parece que, ao contrário mercado um urubu gordo, boa pinta, da base econômica impediu o apare-
do modelo determinista de escassez lustroso. Rico. Ele descobre, dentre cimento, no futuro Brasil, de socieda-
que previu que o inferno verde teria todas aquelas aves, um velho amigo. des mais complexas (em número de
levado o homem à decadência (Me- Conta-lhe que mora na Ilha do Mara- integrantes, grau de divisão de tra-
ggers, 1971), a abundância de recur- jó, onde há muita comida, embora dê balho, desenvolvimento artístico e ar-
sos disponíveis na Amazônia liberou trabalho obtê-la, pois é preciso voar quitetônico) que aquelas descober-
as populações do castigo da laborio- todo o tempo, de uma fazenda a outra. tas e estudadas pelos arqueólogos.
sa agricultura.”31 Com dois minutos de conversa, Não apenas isso. Outros desenvolvi-
O argumento de Claide Moraes convence o amigo. Então, o urubu mentos culturais foram, igualmen-
é perfeitamente plausível, porém, magro se muda para lá, onde engor- te, abortados. Por exemplo: cacica-
como sou casado com uma paraen- da e vive bem, mas sozinho e sempre dos não precisam de escrita. E, as-
se bem informada, sei que o profes- voando de um lado para o outro. Ter- sim, não a tiveram os nossos índios.
sor apenas deu roupagem acadêmi- mina cansando daquilo. Comunica ao Assim como não tiveram metais, que
ca ao que constitui, ainda hoje, par- amigo que vai voltar. – Não acredi- não estavam à vista de todos e nem
te da sabedoria convencional dos to, espanta-se o urubu marajoara. poderiam ser trabalhados por povos
amazônidas. Ali, corre a interpre- – Não lembra como você era pobre? como os habitantes do Brasil pré-co-
tação de que a economia nunca se Esquecido, o urubu ex-magro não es- lonial. Nem mesmo por aqueles que
desenvolveu – exceto na fase áurea tava; decidido a voltar, sim. – Aqui é haviam atingido os níveis localmen-
da borracha – devido à facilidade de bom, amigo, nunca comi tanto, mas te máximos de desenvolvimento eco-
os “caboclos” (moradores das áreas dá muito trabalho. Eu gosto mesmo nômico e tecnológico.
ribeirinhas, quase sempre índios ou é daquela sacanagem do Ver-o-Peso. Claide Moraes pode estar cer-
mestiços) obterem seu sustento por Seja por uma razão – as limita- ta: ir atrás de animais terrestres ou
conta própria, sem maior esforço, ções de um ambiente desfavorável à de peixes é atividade mais prazero-
na mata, caçando e colhendo açaí agricultura – ou por outra – a pre- sa que fazer agricultura. Se podiam
ou castanha; no rio, pescando. Nis- ferência pela vida mais livre dos que apenas caçar e pescar, passeando li-
so, os atuais habitantes do interior caçam, pescam e coletam frutos –, vres pela floresta, não tinham os ín-

130 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dios razão para procurar outro meio


de vida. Ninguém lhes obrigou a isso.
Tudo bem. No longo prazo, entretan-
to, a escolha teria consequências de-
sastrosas para eles. Uma delas, tal-
vez a de menor relevância, é que, por
desconhecerem a escrita, os índios
não preservaram para a posteridade
(a não ser por meio de depoimentos
recolhidos e interpretados pelos co-
lonizadores) sua própria visão acer-
ca do que lhes aconteceu nos anos e
séculos posteriores a 1500, quando
tiveram de enfrentar os portugueses
e quase foram exterminados. Inevi-
tavelmente, portanto, a história dos
sertões, assim como a do Brasil em
seu todo, será sempre contada pelos
vencedores do Grande Confronto.32 tório, tão ao gosto do modismo poli- bárbaros contra Roma. Até o sécu-
ticamente correto, são uma excres- lo X da nossa época, eram constan-
COMEÇA O CONFRONTO cência histórica. A vida de todos os tes os assaltos vikings e magiares a
Uma coisa os índios brasileiros povos sempre foi recheada de con- territórios de outros povos também
não poderiam prever: acontecimen- quistas, invasões, vitórias e derrotas. europeus; em 1066, ocorreu a con-
tos havidos em 1492, no Caribe, e em Muito antes da chegada dos portu- quista normanda da Inglaterra; na
1500, no futuro estado da Bahia, iriam gueses, cacicados amazônicos cons- China, os manchus da dinastia Qin
desencadear processos que quase truíram muros e fossos para se de- (um povo estrangeiro) governaram de
levam à sua aniquilação, num curto fender dos inimigos. Havia guerras 1644 a 1912, até serem derrubados
espaço de dois séculos. Com efeito, entre eles. Uma história recorrente pela revolução que instituiu a Repú-
a história dos sertões brasileiros (e sustenta que os índios tupis encon- blica. E a lista poderia ser estendida
a das zonas litorâneas, igualmente), trados pelos portugueses ao longo quase indefinidamente.
daquele tempo em diante, nada mais de quase todo o Litoral brasileiro Quando Colombo aportou pela
é que a longuíssima crônica de como eram recém-egressos ali, tendo se primeira vez na América, em 12 de
uma civilização vinda de longe tomou, estabelecido à custa dos habitantes outubro de 1492, fazia menos de um
paulatinamente, o espaço territorial, mais antigos, expulsos para o Ser- ano que os cristãos de Castela e Ara-
econômico, político, cultural e ideoló- tão. Quem deveria indenizar quem, gão – aqueles mesmos que agora de-
gico dos povos que aqui haviam che- nesse caso?33 sembarcavam no Novo Mundo – ha-
gado 12 mil, talvez, 40 mil anos antes. Nem foi diferente com a Euro- viam conquistado Granada (em 2 de
Isso é apenas um registro fac- pa e a Ásia, palco de guerras du- janeiro), último baluarte dos muçul-
tual. As alegações contemporâneas rante milênios. Ali, impérios foram manos na Península Ibérica. Do co-
de que os índios deveriam ser “in- feitos e desfeitos: Alexandre contra meço (711) ao fim, os mouros per-
denizados” pela perda de seu terri- os persas, Roma contra Cartago, os maneceram em terras da Espanha

janeirO • fevereiro • março 2016 131


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e Portugal durante quase 800 anos. Nesses tempos iniciais da Co- A entrada ao Sertão de Gar-
Deveriam, também, ser indenizados lônia, houve outros portugueses, cia d’Ávila podia ter a função sim-
por terem sido, afinal, expulsos? Se- além de João Ramalho, que vive- bólica de punir os tupinambás, mas
guir por essa trilha é inventar pro- ram no Sertão. Evidências disso es- seu objetivo principal era a conquis-
blemas que o tempo já solucionou e tão nas cartas jesuíticas. Em 1550, ta de território para o gado bovino,
pressupor legitimidades que a His- por exemplo, o padre Leonardo Nu- de que ele já estava se tornando um
tória não reconhece. nes escreveu de São Vicente: “Aqui grande criador. Coerentemente, em
me disseram que no campo, 14 ou 1552, o sertanista reivindicou e ob-
Presença portuguesa no Sertão 15 léguas daqui, entre os índios es- teve uma segunda grande sesmaria
Os primeiros portugueses, ou tava alguma gente cristã derrama- (na primeira, havia edificado sua for-
seus descendentes diretos, a morar da e passava-se o ano sem ouvirem taleza e moradia, depois conhecida
longe da costa, nos interiores da Co- missa e sem se confessarem e anda- como Casa da Torre), que adentra-
lônia, assim o fizeram em circunstân- vam em uma vida de selvagens”. Ou va duas léguas para o interior. Co-
cias peculiares. Deles, o mais conhe- Nóbrega, em carta enviada de Olin- meçava, dessa maneira, a formar o
cido foi João Ramalho (1493-1580), da, Pernambuco, um ano depois: “O latifúndio que, no ápice e como obra
que se presume tenha desembarca- Sertão está cheio de filhos de cris- também de seus descendentes, che-
do (ou naufragado) no Brasil em um tãos, grandes e pequenos, machos gou a constituir um território contí-
ponto próximo à futura vila e cidade e fêmeas, com viverem e se criarem nuo desde o litoral baiano até o atual
de São Vicente, SP, em 1512 ou 1513, nos costumes do gentio”. Eram filhos estado do Maranhão, seguindo o Rio
sendo acolhido pelos índios guaia- de portugueses e índias, em alguns São Francisco e indo além, na dire-
nases que habitavam o local. Habili- casos; ou, em outros, gente envolvi- ção do Parnaíba.36
doso, ganhou prestígio entre os na- da em crimes ou transgressões me- Em seguida à guerra de Garcia
tivos da terra, chegando a casar-se nores, que se sentia mais segura no d’Ávila, merece registro uma expedi-
com Bartira (ou Isabel Dias, na ver- Interior, onde o braço do Estado não ção aos sertões da Bahia e das fu-
são cristã), filha do cacique Tibiriçá. chegava, do que nas vilas ou fazen- turas Minas Gerais para reconhe-
Morando longe do litoral, andan- das do Litoral.34 cimento do terreno e busca de ouro
do nu como os índios e adotando ou- Garcia d’Ávila (c.1528-1609) – e minerais preciosos. Em 1551, Ma-
tros de seus costumes, Ramalho viria cuja família viria a erguer o maior noel da Nóbrega escreveu de Olinda
suscitar críticas dos padres jesuítas, império pecuarista do Sertão colo- a D. João III: “O governador Tomé
mas sua intermediação foi decisiva nial – desembarcou no Brasil com de Souza me pediu um padre para
para possibilitar a Martim Afonso de Tomé de Souza. Apenas sete meses ir com certa gente que Vossa Alte-
Souza (c.1500-1571) fundar a vila e depois, em novembro de 1549, ele za manda a descobrir ouro: eu lhe o
Capitania de São Vicente, em 1532 formou uma tropa de portugueses e prometi, porque também nos releva
(há quem diga que ele não fez isso, “índios mansos” e adentrou o Sertão descobri-lo para o tesouro de Jesus
mas essa é outra história), sem ser baiano. Fora escalado para a missão Cristo Nosso Senhor”.37
muito molestado pelos nativos; e a pelo governador, cujas ordens, da- A entrada, contudo, somente
Manoel da Nóbrega (1517-1570) e das pelo rei João III, incluíam casti- se iniciou em 1553, quando Duarte
José de Anchieta (1534-1597) a se gar com muito rigor aqueles índios da Costa (? -1560) já havia sucedi-
estabeleceram em São Paulo de Pi- tupinambás que haviam atacado a do Tomé de Souza. Seu chefe seria
ratininga e ali fazerem a maior par- antiga Capitania de Francisco Perei- Francisco Bruza Espinosa, um ser-
te de sua pregação cristã. ra Coutinho, em 1545.35 tanista espanhol sobre quem não

132 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

parece existir quase nenhuma ou- vos como perros; cada um trazia na Um pouco depois, incorporou-se ao
tra informação. O padre designado, mão uma cabaça pintada”. As caba- grupo Francisco Orellana, que veio a
João de Azpilcueta Navarro (1522- ças “eram os seus santos, os quais ser a segunda pessoa no comando.
57), fora companheiro de Nóbrega mandavam aos índios que não traba- O objetivo da empreitada era encon-
na viagem de Lisboa ao Brasil. Doze lhassem porque os mantimentos nas- trar o País da Canela, uma espécie
europeus (entre portugueses e es- ceriam por si e que as flechas iriam de pimenta, então, levada do Oriente
panhóis), incluindo o jesuíta, compu- ao campo matar a caça. Estas e ou- para a Europa, onde era vendida por
nham o grupo. Eles saíram de Por- tras muitas coisas que eram para altos preços. Também havia a espe-
to Seguro e, durante um ano e meio, chorar muitas lágrimas, vi”.38 rança de chegar ao Eldorado, lugar
percorreram cerca de 2.300 km nos A descrição dos Sertões que onde se acreditava haver abundân-
Sertões da Bahia e Norte de Minas, o padre jesuíta forneceu não é das cia de ouro e cuja localização ficaria
onde teriam conhecido os rios Je- mais auspiciosas. Certamente, a ex- em algum ponto da grande floresta.
quitinhonha e São Francisco, além pedição nada encontrou que lhe pa- A expedição de Gonzalo Pizarro
de muitos outros. (Hoje, existe uma recesse “uma nação de mais qualida- foi um fracasso. A canela das matas
cidade com o nome de Espinosa, em de”. Nenhuma notícia, tampouco, de amazônicas tinha qualidade inferior, e
Minas Gerais.) metais ou pedras preciosas. Consta as árvores produtoras ficavam mui-
João de Azpilcueta Navarro foi que descobriram minas de sal (em- to distantes umas das outras, invia-
o cronista da expedição comandada bora Azpilcueta não toque no assun- bilizando a exploração. Incapazes
por Espinosa. Na carta que escre- to), o que viria a ser imprescindível de obter alimento naquele ambiente
veu em Porto Seguro (24/6/1555), à futura expansão da pecuária bovi- hostil, os espanhóis devoraram não
endereçada aos seus irmãos jesuí- na. Na verdade, o que os portugue- apenas os porcos e lhamas, mas tam-
tas, ele informa ter passado um ano ses e espanhóis mais viram foram bém os cavalos e cachorros, até que
e meio andando “em companhia de coisas de meter medo. Era, sem dú- nenhuma provisão fosse mais dispo-
doze homens cristãos que (...) entra- vida, o Sertão das “solidões vastas e nível. Os índios que os acompanha-
ram pela terra dentro a descobrir se assustadoras”.39 vam morreram de fome ou escapa-
havia alguma nação de mais qualida- ram para a floresta.
de”. Conta, em seguida, ter percor- Francisco Orellana, ou o descobrimento Próximo ao final de 1541, o gru-
rido 350 léguas, “sempre por cami- dos sertões brasileiros pelos espanhóis po encontrava-se à beira da inani-
nhos pouco descobertos” e, nos pri- Em fevereiro de 1541, bem an- ção em algum ponto da Amazônia,
meiros três meses, despovoados, al- tes, portanto, da entrada de Bruza em território equatoriano. Tinham
guns; habitados por gente inamisto- Espinosa nos sertões da Bahia e Mi- decidido continuar, mesmo após a
sa, outros. Esses “índios contrários, nas Gerais, Gonzalo Pizarro, irmão do frustração da canela, em busca do
algumas vezes determinavam matar- conquistador do Peru, organizou uma Eldorado. Haviam roubado canoas
-nos; principalmente em uma aldeia grande expedição que deveria pene- indígenas e construído um bergan-
grande onde estavam seus feiticei- trar na selva amazônica partindo de tim (barco de médio porte, movido a
ros fazendo feitiçarias”. Quito, no Equador. Eram cerca de 200 remos), na própria selva, para cru-
Os índios, ainda segundo o relato, espanhóis, com igual número de ca- zar um grande rio, à cata de comida.
“andavam pintados com tintas e em- valos, quatro mil índios encarrega- Nada encontraram. Deu-se, então,
plumados de penas de diversas co- dos de transportar a carga, e milha- um acontecimento decisivo: Orella-
res, bailando e fazendo muitos ges- res de lhamas e porcos para alimen- na convenceu Pizarro a lhe destacar
tos, torcendo as bocas e dando ui- tação. Também cães foram levados. 56 homens, todos espanhóis, e a lhe

janeirO • fevereiro • março 2016 133


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do Rio Amazonas, em 1542. É, prova-


velmente, o mais antigo documento
europeu que fala sobre o ambiente
e os habitantes dos sertões brasilei-
ros, escrito treze anos antes da carta
de Azpilcueta Navarro. O homem era
dado a exageros, e nisso ele não es-
tava sozinho entre os europeus que
vieram à América nos tempos mais
difíceis, mas de seu relato somos le-
vados a crer que escassez de gen-
te e de alimentos não eram proble-
mas para as tribos que habitavam
as margens do grande rio.
Duas coisas mais o documen-
to de Carvajal revela, dentre muitas
outras. A primeira é o total despre-
paro daquele particular grupo de es-
permitir descer o rio (provavelmen- llana encontrou muitos índios reu- panhóis para enfrentar o desafio a
te, o Coca, que desagua no Napo e, nidos em grandes aglomerações e que se propôs. A segunda, em con-
esse, no Solimões-Amazonas) com a com chefes por todos reconheci- traste, é a absoluta autoconfiança de
missão de localizar alguma tribo de dos. Eram cacicados, enfim. Algu- Orellana e sua gente não apenas no
índios que pudesse fornecer comida, mas das tribos nativas receberam seu direito de estar ali, mas, sobre-
mesmo que à força, e de trazer o ali- os espanhóis como amigos, forne- tudo, na superioridade e universali-
mento encontrado para Pizarro e os cendo-lhes comida e abrigo; outras dade de suas crenças e instituições.
que permaneceriam com ele. atacaram as embarcações estran- O despreparo é comprovado
A continuação da história tem geiras e foram saqueadas pelos es- por uma observação simples: os es-
mais interesse do que os episódios panhóis. A epopeia terminou na Ve- panhóis se embrenharam pela selva
iniciais. Orellana e seus companhei- nezuela, alcançada por um segun- amazônica e, em seguida, navegaram
ros desceram o rio à margem do qual do e maior barco construído pelos em seu principal rio sem saber como
estacionara a expedição, alcança- espanhóis em uma das paradas em obter comida naquele ambiente. Flu-
ram o hoje chamado Solimões-Ama- meio a índios amigáveis. tuaram sobre e ao lado de pirarucus,
zonas, continuaram a navegar, atra- O frade Gaspar de Carvajal foi jacarés, tartarugas, peixes-boi, mo-
vessando regiões inabitadas, pas- o cronista da viagem de Francisco luscos; caminharam sob castanhei-
sando, eles próprios, muita fome – Orellana, que teve de se defender, ras, açaizeiros, pés de cacau. Tudo
e jamais retornaram ao ponto onde na Espanha, da acusação de traição, isso era ou continha alimento e os
tinham deixado os demais expedicio- por jamais ter voltado em socorro de índios sabiam muito bem como co-
nários. No longo percurso até a foz Gonzalo Pizarro e seus companheiros. letá-lo e consumi-lo.
do Rio Amazonas, o primeiro feito Carvajal descreveu grandes concen- Os espanhóis de Gonzalo Pizarro
por um europeu (e, provavelmente, trações de índios nas notas que to- e, em seguida, de Orellana, não sabiam.
por qualquer pessoa humana), Ore- mou por ocasião do “descobrimento” Passaram fome em meio à abundân-

134 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cia. Sua única estratégia alimentícia número que o deles próprios, espa- reinar, sequer, sobre o Alto do Céu;
era encontrar tribos indígenas que nhóis, seu comandante Orellana já ao passo que, dando respaldo longín-
lhes fornecessem os gêneros ou às passou a dar ordens e a deixar cla- quo ao aventureiro espanhol, havia
quais pudessem saquear. No começo ra sua autoatribuída ascendência um imperador cujos súditos estavam
da viagem, entretanto, não havia tri- sobre aquela gente. na América há meio século, já tendo
bos a serem pilhadas. Como resulta- “Outro dia, à hora de vésperas, conquistado dois grandes impérios.
do, “chegamos a tal necessidade que veio o dito cacique e trouxe consi- A segunda, talvez, ainda mais impor-
não comíamos senão couros, cintas go outros três ou quatro senhores, tante, é que, enquanto a professora
e solas de sapatos cozidos com algu- pois os demais não puderam vir por e seu marido (para não falar do poli-
mas ervas, de maneira que era tan- estarem longe, outro dia viriam. O cial) veriam a declaração de posse de
ta nossa fraqueza que não podíamos capitão [Orellana] lhes recebeu da Nova York como um gesto treslouca-
nos sustentar sobre os pés”. Então, mesma forma que havia recebido o do, Orellana não tinha nenhuma dú-
“uns engatinhando, outros com ca- primeiro e lhes falou muito extensa- vida de que, ao transferir a proprie-
jados, se meteram nas montanhas a mente da parte de Sua Majestade e dade da selva amazônica para o rei
buscar algumas raízes para comer em seu nome [do rei] tomou posse de Espanha, ele apenas corrigia o
e alguns houve que comeram ervas da dita terra e assim fez com todos que tinha estado errado até aquele
desconhecidas e estiveram a ponto os demais que depois vieram porque momento. Pouco lhe interessava se
de morrer, ficaram como loucos e como disse eram treze e em todos to- essa era, também, a opinião do ca-
sem juízo, mas, como Nosso Senhor mou posse em nome de Sua Majesta- cique e de seus índios.42
era servido que seguíssemos viagem, de. Vendo o capitão que toda a gen- Com efeito, muitas léguas rio
ninguém morreu.”40 te e os senhores da terra estavam abaixo, em outro encontro com che-
Cinquenta e sete estrangeiros de paz consigo, que convinha tratá- fes indígenas, “vendo o capitão [Ore-
famintos amontoados numa nau im- -los bem. Todos folgavam em vir em llana] o bom comedimento do senhor
provisada ou em pequenas canoas, paz e assim tomou posse neles e de [cacique], lhe fez entender que éra-
navegando no maior rio dentre todos sua dita terra em nome de Sua Ma- mos cristãos e adorávamos um só
os que jamais haviam visto, imersos jestade”.41 Deus, o qual era criador de todas
em uma floresta mais extensa do que O equivalente contemporâneo des- as coisas criadas, e que não éra-
podiam imaginar, sem ter exata no- se episódio seria a professora Maria mos como eles, que andavam erra-
ção de onde estavam ou para onde de Lourdes Barbosa, da Universida- dos adorando pedras e vultos cons-
seguiam, menos ainda de quantos ín- de Federal de Pernambuco, desem- truídos e sobre esse caso lhes disse
dios viviam naqueles lugares, ou de barcando em Manhattan, Nova York, muitas outras coisas e também lhes
como seriam recebidos quando es- dirigir-se ao policial na calçada e lhe disse como éramos criados e vassa-
ses aparecessem em seu caminho, comunicar que, em nome de seu ma- los do Imperador dos cristãos, gran-
poderiam compor o retrato perfeito rido, estava tomando posse de tudo de rei de Espanha, que se chamava
de uma gente assustada, insegura, aquilo, rua, ilha, cidade, país. A ana- Carlos, nosso senhor, a quem per-
sentindo-se inferior, sobrepujada por logia só não é perfeita porque duas tencia o império de todas as Índias
tudo aquilo. Nem um pouco. Pouco grandes diferenças separam Lour- e muitos outros senhorios e reinos
depois de serem achados (e de se- des Barbosa, em 2015, de Francis- que há no mundo e que por sua or-
rem bem tratados, como se fossem co Orellana, em 1492. dem tínhamos ido àquela terra e que
deuses em visita à selva) pelo primei- A primeira é que, por trás da pro- lhes íamos dar conta do que ali ha-
ro grupo de nativos, muito maior em fessora, estaria alguém incapaz de víamos visto.”43

janeirO • fevereiro • março 2016 135


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“Os cristãos de Espanha não so- comando político (e, em larga medida, Gaspar de Carvajal em 1542. Mas foi
mos como vocês. Nós adoramos o militar) único, desde o México até a suplantada não pelos caciques ama-
Deus verdadeiro e temos um impera- Amazônia, dificilmente perderia uma zônicos, e, sim, por outra potência eu-
dor poderoso”, repetia Orellana a si guerra que, naquele momento, esta- ropeia que adorava o mesmo “deus
mesmo. Quem trazia essa mentalidade va apenas sendo anunciada aos ca- verdadeiro”, embora seu imperador
– criada e continuamente reafirma- ciques do Sertão brasileiro. A Espa- fosse um pouco menos poderoso.
da pela ideologia religiosa e a filoso- nha, é verdade, nunca chegou a ter o
fia absolutista – e podia agir sob um controle da região vista e descrita por gustavomaiagomes@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. Para a informação sobre a origem e a im- bre remanescentes indígenas do Nordes- 15. Lucas Bueno e Adriana Dias. “Povoamen-
portância da agricultura (na Amazônia), mi- te. Boletim do Museu Nacional, vols. XIV a to inicial da América do Sul: contribuições do
nha fonte foi Charles R. Clement et alii. The XVII, 1938-41. contexto brasileiro”. Estudos Avançados 29
domestication of Amazonia before European (83) 2015. Pág. 122
conquest. Proceedings Royal Society B 282. 8. Gabriela Martin. Pré-história do Nordeste
July 2015, section 2. do Brasil. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 16. André Prous. O Brasil antes dos brasileiros:
2008, págs. 39 e 170. O espanhol Valentin A pré-história em nosso país. 2ª Ed. Revista.
2. Cf. Claide de Paula Moraes. Amazônia Ano Calderón (?-1980), desde cedo, radicado no Rio de Janeiro, Zahar, 2007. Cap. 3, págs. 25-6.
1000: Territorialidade e Conflito no Tempo das Brasil, foi professor da Universidade Federal
Chefias Regionais. (Tese apresentada ao Pro- da Bahia e diretor do Museu de Arte Sacra 17. André Prous. O Brasil antes dos brasilei-
grama de Pós-Graduação em Arqueologia do do mesmo estado. ros, citado, pág. 27.
Museu de Arqueologia e Etnologia da Univer-
sidade de São Paulo, para obtenção do título 9. Gabriela Martin e Anne-Marie Pessis, Bre- 18. Agueda Vilhena Vialou (Org.). Pré-história
de Doutor em Arqueologia). São Paulo, 2013, ve panorama da pré-história do Vale do São do Mato Grosso (Vol. 1: Santa Elina). São Pau-
págs. 218 e ss. Francisco no Nordeste do Brasil. Fundha- lo, Edusp, 2005, pág. 10.
mentos, vol. 1, n. 10, ano 2013. Fundação do
3. “Ossadas de animais gigantescos são Homem Americano, São Raimundo Nonato, 19. Sambaquis são montículos construídos
descobertas no Sertão do Piauí” (vídeo). Piauí, págs. 20-1. por povos primitivos pela intencional acumu-
TV Globo, em https://www.youtube.com/ lação, sobretudo, de conchas. Alguns têm al-
watch?v=MwnwhvX7XK0, 24/12/2010. 10. Gabriela Martin. Pré-história do Nordes- tura e dimensões consideráveis. O de Tape-
Pleistoceno e Holoceno são idades da Terra te do Brasil. Recife, Ed. Universitária da UFPE, rinha alcança seis metros de altura e vários
definidas em relação aos períodos de glaciação. 2008, pág. 293. hectares de superfície. A maioria dos sam-
O Pleistoceno começou há 1,8 milhão de anos baquis brasileiros está localizada no litoral
e terminou há 11 mil anos; o Holoceno, que o 11. Timothy Darvill e António Pedro Batarda dos atuais estados de Santa Catarina e Rio
sucedeu, se estende até os dias atuais. Fernandes, eds., Open-Air Rock-Art Conser- Grande do Sul, mas eles também existem ao
vation and Management. Routledge Studies longo de rios.
4. Eric Boëda et alii. A new late Pleistocene ar- in Archeology. New York, Routledge, 2014,
chaeological sequence in South America: the pág. 210. 20. Adriana Schmidt Dias. Diversificar para
Vale da Pedra Furada (Piauí, Brazil). Antiqui- poblar: El contexto arqueológico brasileño
ty, 88 (341), Sept. 2014. 12. Vanderlei de Brito. A Pedra do Ingá sob uma en la transición Pleistoceno-Holoceno. En Ru-
perspectiva amerindiológica. Tarairiú, Revis- pestreweb, 2005.
5. O episódio de “descoberta” da Serra da Ca- ta Eletrônica do Laboratório de Arqueologia
pivara pelos arqueólogos é contado em Niè- e Paleontologia da UEPB. Campina Grande, 21. Claide de Paula Moraes. “O determinis-
de Guidon, Peintures préhistoriques du Bré- ano I, vol. 1, n. 1, setembro de 2010, pág. 83. mo agrícola na arqueologia amazônica”. Es-
sil, (ERC, Évreux, 1991), pág. 7. tudos Avançados, vol. 29, n. 83, São Paulo,
13. Elaine Kawabe. Pedra do Ingá, na Paraíba, jan/abr 2015, pág. 25. Anna Curtenius Roo-
6. Niède Guidon, em entrevista a Yuri Leverat- guarda enigmas sobre os primeiros habitan- sevelt. The Rise and Fall of the Amazon Chief-
to. Portal de História e Meio Ambiente, 2009, tes do Brasil. UOL, 14/02/2013. doms. L’Homme, 1993, tome 33 n° 126-128.
em http://yurileveratto.com/po/articolo. La remontée de l’Amazone, pág. 259. Michael
php?Id=154 acesso em 27/9/15. 14. Gabriela Martin. Pré-história do Nordes- J. Heckenberger, The Ecology of Power: Cul-
te do Brasil. Recife, Ed. Universitária da UFPE, ture, Place, and Personhood in the Southern
7. Carlos Estevão, O ossuário da Gruta do 2008, pág. 298. Amazon, A.D. 1000-2000, New York and Lon-
Padre, em Itaparica, e algumas notícias so- don, Routledge, 2005.

136 Monólito
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

22. Anna C. Roosevelt. The Rise and Fall of the Clement et alii. The domestication of Amazo- 36. Luiz Alberto Moniz Bandeira. O feudo: A
Amazon Chiefdoms. L’Homme, 1993, tome 33 nia before European conquest. Proceedings Casa da Torre de Garcia d’Ávila, da conquista
n° 126-128. La remontée de l’Amazone. Royal Economic Society B 282, June 2015. dos Sertões à independência do Brasil. Civili-
zação Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, pág. 95.
23. Anna C. Roosevelt. Moundbuilders of 31. Claide de Paula Moraes. Amazônia Ano
the Amazon: Geophysical Archaeology on 1000: Territorialidade e Conflito no Tempo das 37. Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil, 1549-
Marajo Island, Brazil. Academic Press, 1991, Chefias Regionais. (Tese apresentada ao Pro- 60. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora
495 págs. Denise Pahl Schaan. The Camu- grama de Pós-Graduação em Arqueologia do da Universidade de São Paulo, 1988, pág. 126.
tins Chiefdom: rise and development of so- Museu de Arqueologia e Etnologia da Univer-
cial complexity on Marajó Island, Brazilian sidade de São Paulo, para obtenção do título 38. Carta de Azpilcueta Navarro. Porto Segu-
Amazon. Ph. D. Thesis, University of Pittsbur- de Doutor em Arqueologia). São Paulo, 2013. ro, 24/6/1553, em Azpilcueta Navarro e ou-
gh, 2004. “Teso” é o nome dado aos aterros (Pág. 317). O livro citado é Betty Meggers. Ama- tros, Cartas Avulsas, 1550-68. Belo Horizon-
construídos por povos antigos para criar zonia: Man and Culture in a Counterfeit Para- te, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universida-
áreas de habitação e de convívio social não dise. Chicago: Aldine. Atherton, 1971. de de São Paulo, 1988, pág. 173.
sujeitas a alagamento por ocasião das chu-
vas ou cheias dos rios. 32. Conforme realçado acima, as hipóteses 39. Tirei a expressão do título de um livro:
“inadequação do meio” e “preferência pela Kalina Wanderlei Silva. Nas Solidões Vastas
24. Denise Pahl Schaan. The Camutins Chief- caça e pesca”, como explicações para o sub- e Assustadoras – A conquista do Sertão de
dom: rise and development of social complexity desenvolvimento da agricultura, foram for- Pernambuco pelas vilas açucareiras nos sé-
on Marajó Island, Brazilian Amazon. Ph. D. The- muladas tendo a Amazônia como referência culos XVII e XVIII. Recife, Companhia Editora
sis, University of Pittsburgh, 2004, pp. 53 e ss. geográfica. Com respeito aos outros Sertões, de Pernambuco, 2010.
a pergunta relevante talvez seja por que neles
25. Michael J. Heckenberger, A. Kuikuro, U. a organização social dos índios não chegou, 40. Gaspar de Carvajal. Descubrimiento del
T. Kuikuro, J. C. Russel, M. Schmidt, C. Fausto sequer, aos cacicados. Para os atuais Centro- río de las Amazonas (Agosto de 1542). Docu-
and B. Franchetto 2003. Amazonia 1492: Pris- -Oeste e Nordeste semiárido, eu creio que o mento regalado a la Sección de Manuscritos
tine Forest or Cultural Parkland? Science meio ambiente desfavorável explica a ausên- de la Biblioteca Nacional de España por el Du-
301:1710-1713. cia de uma agricultura de maior produtivida- que de T’Serclaes el 5 de mayo de 1961. Se-
de. No caso do interior dos atuais estados de gún la edición y notas de Maria de las Nieves
26. Cf. David Biello (Ancient Amazon Actually São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Gran- Pinillos Iglesias. Babelia, Madrid, agosto de
Highly Urbanized, Scientific American, August de do Sul e parte de Minas Gerais, entretanto, 2011, pág. 13.
28, 2008), descrevendo os resultados das pes- é difícil sustentar essa posição. O problema,
quisas de Michael Heckenberger. ali, pode ter sido a chegada tardia do povoa- 41. Gaspar de Carvajal. Descubrimiento del
mento e da agricultura. Há necessidade, po- río de las Amazonas (Agosto de 1542). Docu-
27. William Balée, Denise P. Schaan, James rém, de mais pesquisas a respeito do assunto. mento regalado a la Sección de Manuscritos
Andrew Whitaker, Rosângela Holanda. Flores- de la Biblioteca Nacional de España por el Du-
tas antrópicas no Acre: Inventário florestal no 33. John Hemming, Ouro Vermelho: A Conquis- que de T’Serclaes el 5 de mayo de 1961. Se-
geóglifo Três Vertentes, Acrelândia. Amazôni- ta dos Índios Brasileiros. Tradução de Car- gún la edición y notas de Maria de las Nieves
ca - Revista de Antropologia, online, vol. 6, n. los Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo, Pinillos Iglesias. Babelia, Madrid, agosto de
1 (2014), pág. 147. Editora da Universidade Federal de São Pau- 2011, págs. 16-7.
lo, 2007, pág. 67. (A edição original é 1978).
28. Sanna Saunaluoma. Geometric earthworks 42. Mais do que isso. A declaração de posse
in the state of Acre, Brazil: excavations at the 34. Leonardo Nunes, carta escrita em São Vi- (em favor do rei de Espanha) de Orellana não
Fazenda Atlântica and Quinauá sites. Latin cente, em 24 de agosto de 1550. In Azpilcueta se dirigia, precipuamente, aos chefes indíge-
American Antiquity. Vol. 23, No. 4 (December Navarro e outros. Cartas Avulsas, 1550-68. nas que ele encontrou nas terras que mar-
2012), pp. 565-583, pág. 565. Sanna Sau- Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da geavam o grande rio. Dirigia-se, na verdade,
naluoma e Denise Schaan. Monumentality in Universidade de São Paulo, 1988, pág. 87. Ma- aos demais reis europeus! Eram apenas Por-
Western Amazonian formative societies: Geo- noel da Nóbrega. Cartas do Brasil, 1549-60. tugal e França, sobretudo, que podiam com-
metric ditched enclosures in the Brazilian state Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da petir com os espanhóis pela posse da Ama-
of Acre. Antiqua, vol 2, n. 1 (2012). Universidade de São Paulo, 1988, pág. 124. zônia. Aquela gente que estava ali, bem, ela
apenas “estava ali”.
29. Eduardo Góes Neves. Existe algo que se 35. Luiz Alberto Moniz Bandeira. O feudo: A
possa chamar de “arqueologia brasileira”? Casa da Torre de Garcia d’Ávila, da conquis- 43. Gaspar de Carvajal. Descubrimiento del
Estudos Avançados, 29 (83), jan-abr 2015. ta dos Sertões à independência do Brasil. Ci- río de las Amazonas (Agosto de 1542). Docu-
vilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, pág. mento regalado a la Sección de Manuscritos
30. Contrariando hipóteses antigas, que as 94. Donatário original da Capitania da Bahia de la Biblioteca Nacional de España por el Du-
limitavam às margens do Amazonas, pesqui- de Todos os Santos, Francisco Pereira Couti- que de T’Serclaes el 5 de mayo de 1961. Se-
sas recentes têm demonstrado que as terras nho (? – 1547) fracassou na colonização, en- gún la edición y notas de Maria de las Nieves
pretas de índio são abundantes também nos trando em conflito com os índios e com o go- Pinillos Iglesias. Babelia, Madrid, agosto de
rios tributários. Ver, por exemplo, Charles R. verno português. 2011, pág. 23.

janeirO • fevereiro • março 2016 137


2 contos

138 CONTOS
na
contramão
aneirO • fevereiro • março 2016 139
janeiro
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Rose Marie Lynch


Escritora

vestido de
organdi e outras histórias

antigas memórias
Dizem que antigas memórias irrompem das regiões – De mangueiras em flor, claro.
mais profundas da mente, instigadas por impressões Meu marido, reputado farejador, para fazer jus à
poderosas. São cheiros, sabores e sons que de repente fama fungou o ar repetidas vezes. Com irritante senso
nos transportam no tempo e no espaço. Em “O caminho de humor arrancou risadinhas das duas viajantes no
de Swann”, a propósito de um chá com bolinhos, Proust banco de trás.
descreveu essa sensação com toda a mestria de que – A imaginação dela é mais forte que meu olfato.
era capaz. Com isso, não pretendo nenhuma compara- Só então percebi que impressões associativas pre-
ção; simplesmente invoco seu testemunho em socorro senteavam meus sentidos. Relembrei o som de abelhas
de minhas ideias. Sucedeu-me algum tempo atrás, a ca- e besouros zumbindo inebriados e um brilho morno de
minho da casa de uma amiga, na Região Serrana, avistar sol em folhas de mangueiras frondosas. Revi sombras
da janela do carro um mangueiral em plena floração. In- bailarinas indo e vindo pelo chão. Ah! Que precioso mo-
timamente associado à esplêndida florada, um dulcíssi- mento fugazmente recuperado do breve espaço-tem-
mo e quente perfume misturado ao cheiro de terra fofa po de minha memória inconfidente! Subjugada por tão
e úmida penetrou minhas narinas. formosas lembranças, deixei-me levar por distantes
– Que perfume maravilhoso! paragens e anos longínquos, aos intangíveis dias de
– Perfume de quê? – quiseram saber. minha infância, em que crianças eram crianças e ho-

140 madeleine
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

janeirO • fevereiro • março 2016 141


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mens e mulheres confundiam-se com seres míticos e O mundo era


majestosos.
O lugar era a casa de uma de minhas tias, um casa-
um profundo
rão de cidade do interior já antigo naquele tempo. Várias reservatório
janelas muito altas, com venezianas e vitrais coloridos, de inesgotáveis
enfileiravam-se na fachada. A porta da frente, sempre surpresas.
fechada, dava direto na calçada. O telhado espichava- Mistério e magia,
-se amplamente sinuoso. Telhas com as pontas revira-
das para cima arrebitavam-se nas quinas. Sob tempes-
curiosidade
tuosos aguaceiros de verão, a água descia em catadupas e admiração,
e escoava com grosso ruído por calhas que jamais dei- algumas vezes,
xaram de dar conta do recado. Serviço de branco, ouvia espanto e dor
comentar. Mas naquela época o significado implícito na
frase, assim como em outras pronunciadas por adultos
na presença de crianças, escapava completamente à mi- das. À sua volta, o mundo girava ordenado e obediente
nha compreensão. Eu não estranhava, já percebera que como um relógio bem acertado.
uma língua viva e completa palpitava escondida dentro da O quintal daquela casa era um paraíso encontrado.
outra. Conhecer o significado de palavras não garantia a Jamais perdido. Um misto de pomar e jardim generosa-
compreensão das conversas de gente grande. No entan- mente perfumado e sombreado por mangueiras, jabu-
to, decifrar a natureza semioculta das coisas era apenas ticabeiras, goiabeiras e outras “eiras” e “eiros” que se-
questão de tempo. Um belo dia, sem aviso prévio, uma ria longo demais enumerar. Uma variedade infinita de
chave girava em minha mente, escaninhos se abriam e a frutas deliciosas pendia ao alcance das mãos. Nos ga-
luz inundava a escuridão. O mundo era um profundo re- lhos mais altos, bem-vindos ao banquete da vida, sabiás
servatório de inesgotáveis surpresas. Mistério e magia, e sanhaços fartavam-se esbanjadores. Também ali vivia
curiosidade e admiração, algumas vezes, espanto e dor. contente e ramalhudo o mais formoso pé de carambolas
Tia Ceci era a irmã mais velha de minha mãe. Lem- que jamais vi. Vergados ao peso dos frutos luminescen-
bro-me dela, miúda e linda, uma bonequinha de porcela- tes, seus ramos desciam em cascatas e rastejavam pelo
na penteada como estrela de cinema. Vestia tailleurs de chão. Formavam sombrias cavernas verdejantes, refu-
saias curtas, ombros armados e lapelas onde frequen- gio seguro contra tarefas escolares, purgantes amar-
temente brilhava alguma joia. Suas blusas eram alvas gos e palmadas prometidas.
como as nuvens mais alvas ou espumantes de rendas Enfiada debaixo da densa ramagem, sentindo os
como a fímbria de ondas desfeitas na areia. bracinhos de minha prima ao redor de meus ombros,
Apesar da aparência, fragilidade não fazia parte ouvia os chamados de Leontina nos procurando. Quan-
de seu rol. Era professora, daquelas que se faziam res- do via suas pernas escuras passarem rente em firmes
peitar. Firme nos saltos muito altos de seus sapatos di- passadas, meu coração batia disparado. Assim que se
minutos, falava baixinho, sorria com seus meigos olhos distanciavam, meus priminhos espremiam risadinhas
cor de mel e mandava e mandava em todo mundo, sem endiabradas. Leontina jamais nos descobriu.
jamais erguer a voz ou franzir as sobrancelhas delica- Tia Ceci reclamava:

142 madeleine
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

– Umas boas palmadas é o que bem mereciam! chas de graxa, fechava a cara em tromba descomunal.
Vovó, mansa como um cordeiro, acudia com pa- Quando Leontina ficava trombuda era um corre-corre
nos quentes. geral com mimos e prendas destinados a aplacar agra-
– Deixe as crianças, Ceci. Ainda são muito pequenas. vos e abrandar mau humor. Mais tarde fiquei sabendo
– É de pequenino que se torce o pepino. que Leontina era cria especialmente querida da casa do
Embora ignorasse o significado do aforismo, eu não Doutor Barcellos, finado sogro de tia Ceci.
ignorava o óbvio destino da citada hortaliça e vagamen- Durante os sete primeiros anos de minha vida, con-
te receosa intuía a inquietante existência de outros ti- vivi estreitamente com a família de minha mãe. Naquele
pos de pepinos. tempo, os homens desfrutavam de privilégios quase di-
Escadas de pedra com belas grades de ferro ba- vinos, mas na ausência da assomante figura de um pa-
tido desciam das varandas para o jardim. Era um pra- triarca, tanto do lado materno quanto do paterno, meu
zer aprontar estripulia por ali também e depois gritar universo era aparentemente feminino. Quando nasci, mi-
e chorar com os joelhos ralados ardendo no fogo dos nhas duas avós já eram viúvas. Carregavam no corpo e
terríveis curativos de tintura de iodo com que nos me- na alma a marca deixada por aqueles machos de anti-
dicava a querida tia Ceci. Ainda me recordo arrepiada gamente, heroicos senhores da vida e da morte, homens
de horror de que, secundada por minha mãe, adotava de uma só palavra, guardiães da honra e mestres de vir-
com inabalável firmeza outras atrocidades de uso me- tudes incontestes. Tão completamente extintos quanto
dicinal na época, como pincelar a garganta inflamada e tenebrosos espécimes de antediluvianas eras, suas gló-
nos aplicar no peito cataplasmas ferventes que nos ma- rias são passadas. Um poder funéreo e difuso despren-
tavam de medo e dor. dia-se ainda do tênue deslizar de suas sombras sobre
No fundo do quintal havia um velho barracão cober- nós. Antigos valores, velhos costumes repassados de
to por trepadeiras bravias, melões de São Caetano e ra- uma geração para a outra persistiam ainda, mantidos
mas de maracujá que nos atraía como um ímã. Por re- sem muito alarde pela geração de meus pais. A diferen-
ceio de cobras e escorpiões acaso ali domiciliados, éra- ça de tratamento entre os sexos muito cedo chamou mi-
mos constantemente advertidos contra qualquer apro- nha atenção. Era todo um conjunto de regras patriarcais
ximação. No entanto, não conseguíamos resistir ao ape- imutáveis, direitos e restrições. Jogando sozinha o jogo
lo de caixotes cheios de quinquilharias, louças antigas, das palavras, encontrei interessantes analogias. Tudo
baús do tempo das bisavós, fotografias e só Deus sabe parecia se reduzir a simples questões de luminosidade.
mais o quê. Dois Fordinhos, tão antigos que o fundo ain- O sol, o dia, o homem. A lua, a noite, a mulher.
da era de madeira, também ali se encontravam. O ma- À luz mediana do espaço próprio das mulheres apren-
rido de minha tia era aficionado de carros velhos. Pas- di a proteger-me do brilho excessivo do sol, a cerrar os
sava as tardes de sábado futucando as duas relíquias olhos para ver melhor. Completamente abertos não en-
até que os motores roncassem e outros milagres acon- xergavam o mundo dentro do mundo, nem encontravam
tecessem. Tal gosto em nada contribuía para a harmo- caminhos buscados na obscuridade sublunar.
nia conjugal. Com suas brancas blusas impecavelmente Desvendar o enigma das palavras, decifrar seus se-
passadas, tia Ceci fugia dele como o diabo da cruz. Todos gredos, traduzir a língua escondida dentro da outra des-
se divertiam com o jocoso espetáculo, menos Leontina. cerraria o véu que toldava o horizonte da vida?
Eternamente atormentada por nódoas de frutas e man- Ingenuamente, eu pensava que sim.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

iniciação
Um dia, mal cheguei ao casarão do Portão Verme- com grande devoção.
lho, ainda segura pela mão de minha mãe, Lucinha cha- Com Menina e filhotes devolvidos ao ninho, Fernan-
mou-me para brincar. Com ares misteriosos, puxou-me do segurou um dos recém-nascidos e indicou o cordão
para o quintal. Longe dos ouvidos apurados de Leontina umbilical.
fez-me jurar segredo de vida e de morte. Jurei por Deus, – Tio Milton disse que em três ou quatro dias isto
por minha mãe, meu pai, meu irmãozinho e até pelo fi- vai secar e cair.
lhote de capivara criado com muitos agrados em nossa Fiquei olhando para aquela tripinha sem saber o
casa na fazenda. Um grito de Leontina, vindo da janela que o pensar. Notando minha perplexidade Vera Lucia
da copa, perturbou a solenidade. veio ao meu auxílio.
– Nada de brincadeiras no barracão, entenderam? – É por aí que eles se prendem dentro da barriga
Minha priminha limitou-se a um muxoxo de desdém. da mãe.
Agarrou com força minha mão. Fernando resolveu explicar melhor. Os esclareci-
– Vamos logo para o barracão. mentos que se seguiram foram tão difíceis de dar quan-
Ao ver-me hesitar intimidada pela advertência, deu- to de receber.
-me um forte puxão. – Tinha uma espécie de pelanca. Era a coisa que
– Depressa, sua medrosa. grudava dentro da mãe. Quando tudo saía, Menina lam-
No barracão mostrou-me Menina, gata das vizinhan- bia o filhote e comia a pelanca. Sobrava essa tripinha.
ças, com seus gatinhos recém-nascidos. De tão embe- Fiquei boquiaberta. O menino quis saber qual era
vecida nem vi meu primo chegar. a dificuldade.
Lucinha mandou-me sentar. Com hábeis mãozinhas – A prima estava pensando que a cegonha trazia
alisou a saia de meu vestido para com muito cuidado ali, os gatinhos?
sobre meus joelhos, acomodar os recém-nascidos. Se- – Eu não.
gurando Menina nos braços enquanto o irmão ajeita- – E os bebês?
va o ninho, sorria para mim, dentinhos de leite à vista e – Também não.
olhos radiantes de meiguice. – Então, qual é o problema?
Foi sentindo o calor e a vibração dos corpinhos – É que eu não sei por onde eles nascem.
amontoados em meu colo que pela primeira vez me Com masculina segurança, Fernando deu ordens à
transportei ao espaço obscuro dos antigos saberes fe- Vera Lucia. Afinal, aquilo era mesmo assunto de mulheres.
mininos. Perdida entre as sombras da Terra e as som- – Mostre a ela.
bras da Lua, precocemente intuindo o emaranhado de Naquele tempo, eu ainda não ouvira falar na Santís-
fios forjados na transparência da invisibilidade, perce- sima Trindade, nem na transubstanciação do pão e do vi-
bendo quão frágil era o tecido e quão tênue a trama da nho. Portanto, quando minha priminha afastou o rabo da
vida, acatei no coração o exemplo modesto de velhas fian- gata e apontou o local exato, o estranho fato de objetos
deiras. O esgarçado véu da vida, cerzindo, remendando, maiores conseguirem transitar por orifícios diminutos
com nós invisíveis arrematando, teceria para sempre, configurou-se no mais insofismável de todos os mistérios.

144 madeleine
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

– Não acredito. Só uma formiga passaria espremi- – Vamos apanhar umas goiabas.
da por ali. Pegou minha mão e saiu puxando sem olhar para
Os dois desataram a rir. Preocupados com Leonti- trás. Ainda usando seus casquinhos de bode, o projeti-
na, tapavam a boca com as mãos e quase sufocavam de nho de diabo nos seguiu chutando frutas caídas no chão.
tanto riso. Eu olhava para o chão, mortificada. Depois de Lembrando-se dos gatinhos, apenas com o olhar,
um momento que durou uma eternidade, meu primo no- Fernando indicou o barracão.
tou meu sofrimento. – Não conte para ninguém.
– Que bobinha. Está quase chorando. O filhotinho de demônio também parecia saber de
Pegou-me pela mão. Longe do barracão, mordis- coisas que eu ignorava. Apontou o dedinho para meu na-
cando carambolas meio verdes, voltou a compartilhar riz e, quando falou, fez o sangue gelar em minhas veias.
seus conhecimentos. – Nem um pio, ouviu? Se minha mãe descobrir man-
– É uma coisa perfeita. O buraquinho se alarga para da o Berilo jogar no rio.
o filhote passar. Depois torna a fechar. Entendeu agora? Por coincidência, no mesmo dia em que fui iniciada
Eu fazia que sim, mas, insistia impressionada com nos mistérios da vida, travei conhecimento com a am-
a espécie de pelanca. biguidade que permeia o caráter cambiante da menti-
– E a pelanca? ra e a plasticidade indefinida da verdade. Para ajustar
– Menina comeu a pelanca. É da natureza. É coi- minha projeção do mundo a outras tantas realidades,
sa natural. compreendi a importância do silencio e aprendi a calar.
A bizarra informação só fazia por aguçar minha
curiosidade.
– Então, é assim que acontece sempre?
A paciência de meu primo não tinha limites. Já en-
saiava uma resposta quando as risadinhas da irmã o in-
terromperam. Estranhando a oportunidade da súbita ma-
nifestação de bom humor ele a reprimiu imediatamente.
– Está rindo de quê?
– Dela.
– Posso saber por quê? No barracão
– A burrinha está achando que a mãe da gente tam-
mostrou-me
bém engoliu aquelas porcarias todas!
Ao invés de admitir a analogia comecei a chorar.
Menina, gata das
– É mentira, é mentira. vizinhanças, com
Lucinha arremedou o meu choro. seus gatinhos
– É verdade, é verdade. recém-nascidos.
Parecia um diabinho. Eu quase enxergava os chifri-
De tão embevecida
nhos pontudos e o rabinho comprido balançando a pon-
ta de flecha. Antes que a situação piorasse Fernando op-
nem vi meu primo
tou por um recuo estratégico. chegar

janeirO • fevereiro • março 2016 145


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

gataria
Não me recordo se algum dia minha tia ficou saben- Também aplicava corretivos cuja eficácia jamais
do da existência dos gatos no barracão. Mas lembro-me comprovei.
bem da ocasião em que, já firmes nas perninhas, se es- – Matou, mas não vai comer.
gueiraram para o quintal. A princípio, cautelosos com o Tirava à força o pássaro morto dos maxilares for-
mundo novo a explorar, assustavam-se com tudo e fu- temente cerradas e ia enterrar bem longe. Menina cor-
giam para os canteiros da horta com os rabinhos arre- ria atrás de seus direitos, mas Lucinha não era páreo
piados de pavor. Aos poucos, foram ganhando coragem para ela. Eu observava aquilo tudo e admirava as deci-
e finalmente, com grande atrevimento, corriam e salta- sões de minha priminha, mas nem sempre as entendia.
vam por toda parte, numa folia sem fim. Hoje sei que me solidarizava com Menina, porque tanto
Ao ver Berilo munido de suas ameaçadoras enxadas quanto ela, dentro de meu pequeno coração selvagem,
ou manejando aquela foice que zunia de tão afiada, meu co- era completamente incapaz de formar qualquer juízo
ração quase parava. Mas o preto velho de fala aveludada de valor entre a colorida vida de um sanhaço e a furtiva
acompanhava com olhos mansos as travessuras dos ga- existência de ratos e cuícas.
tinhos. Tanto parecia divertir-se com elas quanto admira- Conforme cresciam, os filhotes começaram a de-
va as valentes virtudes da caçadora Menina. Com poucas monstrar interesse pelo resultado das caçadas mater-
palavras, mas muita clareza, Lucinha explicou a situação. nas. Menina entregava-lhes o bicho já abatido e, deita-
– Minha mãe manda. Ele só obedece. da feito uma esfinge, assistia sem interferir à disputa
Eu sentia calafrios. Porém, exceto pelos episódios que se seguia. Era um tal de puxar pra lá, puxar pra cá
de iodo e cataplasmas nunca fui capaz de estabelecer e uma rosnação infernal. Os gatinhos não ignoravam
qualquer ligação entre a terrível mãe à qual Lucinha fre- que o negócio era fincar os dentes, mas ainda não sa-
quentemente aludia e minha querida titia. biam direito por onde começar. Na dúvida, distribuíam
Ao cair da tarde, Menina sumia. Voltava sempre ca- patadas entre si e ferravam mordidas nas cabeças uns
minhando ligeiro com algum pequeno animal trincado dos outros. Meu primo dava risadas.
entre os dentes. Quando eram coelhos, ela mantinha a – Olhem só as ferinhas!
cabeça erguida e os arrastava entre as patas, por de- Quando se cansavam daquilo, Menina pegava a
baixo do corpo. Eu ficava dividida entre a pena que sen- carcaça e em poucos minutos a devorava. Depois de
tia por aqueles bichinhos, vítimas inocentes dos instin- cuidadosa toalete, deitava-se para amamentar. Exaus-
tos de Menina, e a admiração por sua habilidade em ta da peleja com a caça, a família inteira tirava uma
descobrir tamanha quantidade de caça absolutamente boa soneca.
invisível enquanto viva. Eram preás, ratazanas e enor- Com o passar dos dias, os filhotes aprenderam a de-
mes cuícas as suas presas favoritas. Uma vez ou outra, vorar também. Preocupados com Menina exaurida pela
aparecia com um sanhaço, e minha prima fazia cara de amamentação e as caçadas para sustentar aquele bando
zanga. De testa franzida, ralhava com Menina. de esfomeados, Nando e Lucinha começaram a escamo-
– Passarinhos não, sua malvada. Se minha mãe sou- tear dentro de casa coisas boas de comer. Os gatinhos
ber manda meter você no saco e jogar no rio. gostavam de tudo. Engoliam na mesma hora, com ape-

146 madeleine
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tite exemplar, qualquer coisa oferecida. Adoravam pe- reboliço. Ávidos em arrebatar-lhe o camundongo, seus
lancas de carne, entranhas de peixe, restos de comida, irmãozinhos uniram-se em esforço bem orquestrado.
pão com leite e até miolo de abóbora crua. Não recusa- Atropelando couves e alfaces, aos trambolhões de en-
vam nada. Roíam espigas de milho com imenso prazer. contro a repolhos duros que nem pedras derrubaram
Cresciam a olhos vistos, nada lhes fazia mal. Eram gatos pimentas malaguetas, destroçaram moitas de hortelã,
de antigamente, dos bons, muito diferentes desses re- esmagaram agrião e ervas de cheiro. Um apetitoso aro-
melentos de hoje em dia que vomitam charutos de pelo ma de salada temperada com salsinhas e cebolinhas en-
na cama da gente e a cada troca da marca da ração nos cheu o ar morno da tarde.
agridem vingativamente com vômitos, diarreia e amea- Atraídos por nossa algazarra, os adultos da casa
ça de desidratação. acudiram curiosos. Berilo largou o café fresco na cozi-
Embora os filhotes de Menina fossem todos gati- nha e saiu às pressas em socorro das hortaliças. Vovó
nhos encantadores, um se destacava e cedo atraiu to- e tia Ceci apareceram na varanda. Mamãe e tia Joana –
das as preferências. Era um pimpolho irresistível. Sabia que só tinha dezessete anos – em menos de um minuto
virar as cambalhotas mais engraçadas, e sua imagina- já estavam no quintal. Jovens como eram, começaram
ção transformava qualquer graveto em brinquedo. Não a rir e a gritar como nós.
por acaso foi o primeiro a aparecer rosnando diante de Com tanta gente gritando e correndo, era de se es-
Menina com um minúsculo camundongo apertado en- perar que os gatos esquecessem o camundongo. Qual
tre os dentinhos de leite. A façanha provocou enorme nada! Enxotados por Berilo, retomaram a correria lon-
ge dos canteiros. Iam e vinham em galope desenfreado,
fechavam curvas entre nossas pernas e quase nos der-
rubavam no chão.
Afinal, cansado daquilo, sem afrouxar o arrocho em
que mantinha o camundongo, nosso bravo gatinho grim-
pou até aos últimos talos do mamoeiro. Empoleirado na
junção das frágeis hastes, rosnando furioso agarrado
ao seu troféu, dardejou olhares ameaçadores para bai-
xo. Só então, convencido de sua invulnerabilidade, deli-
ciou-se com o microscópico resultado de sua primeira
Não por acaso
caçada. Foi assunto rápido.
foi o primeiro Tão intrépido filhote, mais tarde metamorfoseado
a aparecer em tremendo e aventureiro gatão, reinou soberano ab-
rosnando diante soluto pelas vizinhanças e no quintal. Briguento, cria-
de Menina com dor de casos, incorrigível marcador de território, exímio
abridor de portas e de latas de biscoito, são seus feitos
um minúsculo
e malfeitos bem reconhecidos, mas sempre muito queri-
camundongo do, meigamente atendia pelo doce nome de Catitolindo.
apertado entre os
dentinhos de leite lynchdelynch@gmail.com

janeirO • fevereiro • março 2016 147


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

adalberto cardoso
Sociólogo

igualdade
– Vamo descê maluco! Tô te falano, vamo descê! Aqui com um bosta de gente que nem tu, mané? Teu piru num
secô geral! Esses azul aí, esses cara aí, valeu? Os cara faz nem cosquinha nas cachorra, tá ligado? Minha mana
puzero um garrote no morro que num passa nada, num tá reservada pra gente de bem, pra bacana. Ali maluco
passa nem gelo derretido, nem palito de fósforo, tá ligado? num põe a mão.
– Descê nada, maluco. Tu tá é loco... – Ela me olha, ué! Vô fingi que num gosto?
– Loco o quê, vacilão!? Vai fazê o quê? Vai mendigá – Ó, já falei, cala essa matraca senão eu calo ela! Tô
trocado da mamãe, é? Vai lambê a bunda do Senegal? aqui pra descê, num tô aqui pra ouvi papagaio. E se con-
Aquele criolo te enche a boca de chumbo, tá ligado? Tu tinuá rindo vai acordá no micro-ondas, tá ligado?
vai ficá que nem lataria de camburão depois de tiroteio. –…
– Manera aí, mané! Manera aí! A máquina aqui cospe – E aí, vai descê ou vai ficá aí com essa cara de ca-
chumbo, tá ligado? Tu tá correndo risco! Lambê a bunda chorro cagano?
do Senegal, o caralho! Aquele porra num é de nada, fa- – Num quero descê.
lei? E num quero descê e pronto! Tu num manda em mim, – Porra, ma que porra é essa, caralho! Vô tê que te
ninguém manda em mim! levá amarrado? Preciso de ajuda, moleque! E em dois é
– Ma tu é um mané mesmo. Quê que vai fazer com mais manêro, é terror puro! Moleza! Tu chega nas ma-
esse berro na mão? Senegal te deu essa parada praquê? dame com essa cara de anjo e eu aperto elas, morô? Se
Pra enfeitá essa tua mãozinha de mané? Vamo furá uns a puta reagir tu queima ela. Puf, puf, pronto, a gente cas-
cara lá em baixo, maluco! Só de faroeste! Rir da cara dos ca fora, tá ligado?
vacilão! – Mas eu num sei como é…
– Num quero. Num tô afim. – Num sabe cumé o quê? Que papo é esse, agora?
– Num quero, num tô afim. Parece minha irmã falano… Cumé que tu conseguiu esse treco aí se tu num sabe cumé
– Vai botá ela na roda? que é? Senegal num põe arma na mão de flosô!
– Ó! Tá correndo perigo, moleque! – Flosô é a tua mãe, falei? Já quemei doze alemão
– Ela fica toda vermelha quando eu tô por perto. e um azul, tá ligado? Esse buraco aqui, ó! Tá veno? Tiro
– Ma tu é um mané mesmo! E minha irmã vai se abalá de fusil, malandro. De fusil! No meu teste fui escudo pra

148 Tudo azul


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descida do Senegal naquele dia que queimaro o Leleco – E se ela confirmá?


e a cachorra dele, aquela… Cumé que era o nome dela? – E se ela confirmá, e se ela confirmá! Ela não vai
– Aquela Suzane? confirmá porra nenhuma, tá ligado? Tu vai cumê porra
– Suzane, essa puta aí. Cachorra gostosa, aquela e bebê mijo hoje!
puta. Puta metida. Nunca olhô na minha cara, aquela fi- – Se ela confirmá eu encho tua cara de chumbo, fa-
lha da puta. lei? E depois cago na tua cara furada e corto teu pau pra
– Tu precisa crescê, moleque. Se tu crescê as ca- dá pro cachorro dela.
chorra vão chegá. É só num vacilá, num caí em tocaia, – Pô, moleque, agora tu exagerô…
num dá mole pros cara aí. – Exagerô o caralho! Tu vem com esse papo de porra
– Sua irmã olha pra mim… na minha boca! Porra é o caralho, valeu? Porra é o cara-
– Porra, vai começá? Tu qué morrê, é? Tá vacilano! lho! Tu vai te fudê, porque a Saba gosta da minha língua
Tô avisano, tu tá vacilano! na racha dela, tá ligado?
–… – Mas tu num tem nem 13 ano, seu bosta! A Saba é
– Quem deu o tiro? coroaça, o Senegal já cumeu, o Maneta já cumeu, todo
– Esse? O furo? Foi fuzil do Comando. A bala tá na ge- mundo já cumeu! Cumé que ela gosta que tu lambe ela?
ladêra lá da oficina nossa. O Zilão que tirô. Me deu éter – Ela tem 15…
pra cherá e tirô ela. Porra, o tal do éter é bom pra cara- – Então, velhona, daqui a pouco tá embuxada. E não
lho, maluco! Melhor que cola, tu entra numas que tu acha vai sê com esse teu piru nanico de bosta!
que é deus, morô? Tu vai sei lá pra onde, fica tudo durmi- – Piru nanico de bosta é o teu, seu mané, e tu para
no, num senti nada. Tu já cherô éter, maluco? com isso que agora é tu que tá vacilano! Num tô aqui pra
– Tu tá doido, maluco? O Pinha num deixa nem chegá ouvi merda de mané que nem tu, tá ligado? Tu tá atrapa-
perto daqueles troço do refino! Cortô dois dedo da Saba lhano minha atividade aqui.
porque ela pegô aquela acetona lá… Um porra dum al- – Atividade! Tu falô atividade? Atividade é coisa de
godãozinho de nada, muleque! A cachorra num merecia, boiola, tá ligado? Tua função aqui é avisá a gente se apa-
aquela bundinha preparada! Num vai podê mais casá, a
filha da puta. Num tem mais dedo pra aliança…
– Filha da puta do Pinha. A Saba é uma cachorrona.
Já me chamô pra lambê ela…
– Ah, sai dessa, mané? Aquela cachorra? Tu lamben-
do ela? Tu tá é zuano…
– Pergunta pra ela…
– Vô perguntá! Taí, vô perguntá. E sabe o que vai acon-
Caralho, por que
tecê se tu tivé mentino? Tu vai tê que chupá meu pau, valeu? tu fez isso, seu
Chupá até eu esporrá e mijá nessa tua boca mentirosa. filho da puta? Tu
– Então pergunta, ué…
atirô no meu pé!
– Vô perguntá. Depois que a gente voltar. Vô pergun-
tá. E tu vem comigo, tá ligado! Quero só vê essa tua cara Caralho, tu vai te
suja quando eu perguntá pra ela. Tu tá ferrado, mané! fudê, filho da puta

150 Tudo azul


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

recê os azul e os preto. Num é atividade. É função, morô? – E a escola? Tua mãe não pôs tu pra estudar?
E os home num sobe hoje, tá todo mundo liberado pra des- – Num tenho mãe.
cê, fazê o que quisé. – Ah, tu tá de caô. E tu nasceu como?
– Tu num falô que os home fecharo o morro? – Nasci do teu cu, vacilão. Anda, te manda! Dois tiro
– Fecharo pra bacana. Num sobe ninguém, num des- pro alto e o Senegal tá aqui pra cortar teu pau e enchê
ce mula, num acontece nada. teu cu de chumbo.
– E tu vai arriscá? Tu com essa tua cara de maluco? – Puta que pariu, muleque… Caraca… Essa foi de-
– E eu lá tenho medo desses filha da puta, vacilão? mais… Tu nunca desceu mesmo?
Boto meu uniforme da escola, os cara num olha nem na – Nasci e cresci no morro, vô morrê no morro.
mochila. Moleza. Mamãezinha me deu essa cara de anjo – Pô, maluco… Pô, a cidade é irada, aí! Tu vai se amar-
pra quê? rá se tu descê. Ó só, vamo dexá as bacana protro dia, vamo
– Já falei que num quero descê. Prefiro ficá aqui e pra praia, levo tu no Leme, tu precisa pisá na areia, en-
lambê a Saba. trá no mar, vê as mina tomando sol, as cachorra com o
– Porra de moleque teimoso, puta que pariu. cu pra cima. Tu vai aloprá, maluco!
– Te manda, vacilão, tu tá melando minha função. – Tem cu de cachorra nas lage daqui.
– Vô tê que convocá o Senegal pra te obrigá? – Mas é otro papo, as cachorra lá é lôra, é…
– Ó só, tu escuta porque num vô repeti. Se tu movê – A Saba é lôra…
com o Senegal ele vai te enchê de porrada, falei? Ele pe- – Lôra sarará, vacilão. Ela num…
diu preu ficá aqui, pra num deixá o posto, ele confia nimim. – E tem a buceta mais cherosa do morro, pode crê.
– O Senegal? Confiá em tu? Essa é demais, tu me mata Desce lá pras tuas lôra, mané, me deixa queto na minha
de ri muleque. E o maluco vai confiá em um mané feito tu? função.
– Ele sabe que eu num vô descê. – Mas tu precisa conhecê… Caralho, por que tu fez
– E cumé que ele sabe? isso, seu filho da puta? Tu atirô no meu pé! Caralho, tu vai
– Porque eu nunca desci. te fudê, filho da puta, vô mandá cortá tuas oreia e dá pros
– Como assim nunca desceu? Tu tá de sacanagem cachorro, anda, vira essa máquina pra lá seu porra, cor-
comigo? Que papo é esse de nunca desceu? no filho duma égua, tu… Não faz…
– Num desci, ué! Nunca desci, nunca saí do morro, – Corno é tu, seu bosta. Falei que enchia tua boca de
nunca pisei no asfalto. Num quero descê, tá ligado? chumbo, macaco. Quero vê furá madame agora… Vacilão.
– E essa agora… –…
– Tá rindo do quê, mané? – Porra, gastei as bala tudo… Senegal vai chiá. Tu
–… era um mané chato pra caralho, hein, seu corno filho de
– Qué pará? Tu ri que nem macaco! Vai virá macaco uma égua. Tô queto no meu canto… Porra, tô queto aqui e
furado se num pará de ri! tu… Seu vacilão… Caralho, vô tê que limpá essa sanguêra
– Porra… Porra mermão! Tu há de concordá que é hi- toda. Porra de vacilão do caralho.
lário. Que mané que tu é, maluco! Tu nunca queimou uma
bacana? Nunca cortô o rosto duma mina com caco de vi-
O autor é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uni-
dro? Nunca robô uma bicicleta na Lagoa?
versidade do estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
– Nunca desci, seu porra! Já falei! acardoso@iesp.uerj.br

janeirO • fevereiro • março 2016 151


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