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INTELIGêNCIA

ANO Xix • Nº 73 • abril/maio/junho de 2016

ANO Xix • Nº 73 • abril/maio/junho de 2016 issn 1517-6940

brasilianas
do
golpe
Por José Murilo de Carvalho, à pág. 28.
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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ISSN 1517-6940
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Wang Zhi Hong assina sua própria revolução cultural. Ao contrário do que pregava
o companheiro Mao, seu traço não faz distinção entre a velha e a nova cultura,
entre antigos e recentes costumes. Tudo é China. Nas páginas a seguir, Insight
Inteligência convida seus parceiros para a grande marcha por uma das mais
recentes obras do incensado artista gráfico de Taiwan: “Album of Figure Painting”.
Um golpe é um golpe é um
golpe é um golpe (ou não)
José Murilo de Carvalho
A natureza do assalto ao poder
Giordano
28 Bruno,
submisso
Wanderley
Guilherme dos
Santos
Submissão não é
rendição

36

Entrevista
com o General
Newton Cruz? Walter Pires?

42

Déficit atômico
– O buraco
nuclear
na balança
comercial do
Brasil
Julia M. Zordan e
Sergio A. da S. Jordão
Um ponto de fissura nas
contas externas

52

A lira obscena

sumário
Marcus Fabiano
Versos úmidos, rígidos e eretos

70

24 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 73 abril/maio/junho 2016

Quando eu era vivo


Medeiros e Albuquerque
Pegando geral na Paris da
Grande Guerra

87

O Deus ambíguo
de Mordecai
Kaplan
O que é arte? Fernando Cardoso
Prostituição. Cotelo
Polêmica no judaísmo
Ensaio fotográfico
Tem francesinha no salão
112
72

Ogni promessa
A ideologia è un debito –
concurseira Cosa Nostra
– quando revisitada
falta mérito à Cesar Caldeira
meritocracia Material didático a
Fernando Fontainha, quem de direito
Pedro Heitor Geraldo,
Alexandre Veronese e 136
Camila Sousa Alves
Minha teta minha vida

122

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Um golpe
é um golpe
é um golpe
é um golpe (OU NÃO)

28 Vai ter golpe


José Murilo de Carvalho
Cientista político e historiador

N
o Brasil, do ponto de vista jurídico, golpe é a ca na Espanha em 1873 que afetaram a Abdicação, a Re-
destituição, ou prolongamento de mandato volta Praieira e o nascente Partido Republicano, funda-
de um governante por meios não previstos do em 1870. A Revolução Soviética e o putsch nazista de
nos dispositivos constitucionais. A palavra Hitler inspiraram a Revolta Comunista de 1935 e a Inte-
tem origem francesa, coup d´État. Começou gralista de 1938, respectivamente. Na segunda metade
a ser empregada em seu sentido moderno do século XX, foi grande o impacto da Revolução Cuba-
após a Revolução de 1789. Napoleão III te- na em alguns movimentos de guerrilha. A influência de
ria dado um coup d’État em 1851 ao dissolver a Assem- golpes propriamente ditos deu-se apenas a partir dos
bleia e restaurar a Monarquia no ano seguinte. Que eu anos 1960, quando as intervenções militares se influen-
saiba, ainda não se estabeleceu quando a palavra come- ciaram mutuamente na América Ibérica, culminando
çou a ser usada no Brasil com esse sentido. Otávio Tar- com a criação da Operação Condor. O que é certo é que
quínio de Sousa, por exemplo, deu o título de Três gol- golpe de Estado não é jabuticaba: é fenômeno endêmi-
pes de Estado a um livro sobre a dissolução da Consti- co na América Ibérica, na África e na Ásia. Na primeira,
tuinte, em 1823; a tentativa de mudar irregularmente a houve cerca de 90 a partir de 1900. Só na Bolívia foram
Constituição, em 1832; e a Maioridade, em 1840. Mas, 13, no Haiti foram 15. Na África, da segunda metade do
na época, a palavra não foi usada a propósito de nenhum século XX para cá, eles passaram de 110. Nesse cená-
dos três eventos. Nem mesmo os monarquistas chama- rio, o Brasil até que não se sai tão mal.
ram, mais tarde, a proclamação da República de golpe. Na história brasileira, e considerando apenas a ca-
Com ou sem a palavra, revoluções e golpes na Euro- racterização legal, poderíamos listar como golpes os se-
pa e América repercutiram por aqui. Para ficar só com guintes episódios: a dissolução da Constituinte (1823), a
o período pós-independência, foi o caso das revoluções Maioridade (1840), a proclamação da República (1889),
francesas de 1830 e 1848 e a proclamação da Repúbli- o golpe de Floriano (1891), o movimento de 1930 (dois

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O “golpe” de 1868,
que não foi, é
exemplo do que se
pode chamar de
“retórica do golpe”
golpes seguidos), o Estado Novo (1937), a derrubada do teve a conivência do monarca e o apoio das ruas. Apa-
Estado Novo (1945), 1954, os dois “golpes preventivos” receram cartazes com os dizeres: “Queremos Pedro Se-
de 1955, o de 1964 e o golpe dentro do golpe de 1968. gundo / Embora não tenha idade / A Nação dispensa a
Cada um deles teve suas especificidades, mas a pre- lei / E viva a Maioridade!” Os liberais maioristas triun-
sença militar foi constante em todos os golpes republi- faram, atropelando Câmara e Senado, e lhes foi entre-
canos. No que se refere ao seu conteúdo, uma carac- gue o governo do país.
terização simples dos golpes seria colocar de um lado Em 1930, houve dois golpes em sequência. Diante do
aqueles voltados para a ampliação da participação po- avanço da rebelião iniciada no Rio Grande do Sul, Minas
lítica (1889, 1930) e, do outro, os que tiveram por obje- Gerais e Paraíba contra o presidente Washington Luís,
tivo cerceá-la (o resto). formou-se na Capital um autodenominado Movimento
Três merecem destaque: o golpe liberal de 1842, o Pacificador, chefiado por uma junta militar composta
golpe dentro de uma revolução em 1930 e o golpe du- de dois generais e um contra-almirante. A junta depôs
plo preventivo de 1955. o presidente: golpe número um. Os revoltosos não acei-
O primeiro foi o chamado “golpe da maioridade”. taram o arreglo e exigiram que se lhes entregasse o po-
Como já lembrado, a palavra golpe não foi usada na épo- der, demanda aceita pela junta: golpe número dois. O pri-
ca, mas é adequada para definir o evento, uma vez que se meiro foi preventivo, o segundo, propositivo; o primeiro
deu à margem da Constituição. Em 1837, o liberal Feijó foi feito para frear, o segundo para avançar.
renunciara ao cargo de Regente e fora substituído por O terceiro caso, talvez único, foi o de 11 de novem-
Araújo Lima, dando início a um processo, apoiado pela bro de 1955, comandado pelo ministro da Guerra, ge-
maioria da Câmara, chamado de Regresso conserva- neral Henrique Teixeira Lott. Havia movimentação civil-
dor, caracterizado pela tentativa de reformar as leis li- -militar (da Marinha, sobretudo) visando impedir a pos-
berais da Regência. Para deter o Regresso, os liberais se do presidente e do vice-presidente eleitos, Juscelino
recorreram à tática de antecipar a maioridade do Im- Kubitschek e João Goulart. Lott depôs o presidente in-
perador. Dom Pedro tinha 15 anos incompletos, faltan- terino, Carlos Luz, cúmplice do movimento, e conseguiu
do três para a maioridade constitucional. O movimento seu impeachment relâmpago no Congresso, votado no

30 Vai ter golpe


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mesmo dia. No dia 21 seguinte, o general repetiu a dose sistema coronelista. Sua eficácia permitiu até mesmo o
depondo o presidente efetivo, Café Filho, que tentou vol- controle da agitação militar despertada desde a procla-
tar ao governo. Lott chamou o movimento de “Retorno mação da República e voltada, em sua maioria, para o
aos quadros constitucionais vigentes”. Na história, fi- combate às oligarquias civis. A entrada massiva e rápi-
cou conhecido como contragolpe ou golpe preventivo. da, inclusive eleitoral (esta a partir de 1945), de povo na
Nosso histórico de golpes concentra-se no período política, em cenário de grande e persistente desigualda-
republicano. O Segundo Reinado começou com um gol- de social, tornou-se, de um modo ou de outro, o pano de
pe, mas não viveu outro durante seu quase meio século fundo de todos os golpes pós-1930.
de existência, uma exceção absoluta na América Ibéri- Retornando ao conceito de golpe, o que o caracte-
ca. Mesmo na República, fora a instabilidade inicial dos riza é a inconstitucionalidade. Mas, pelo lado social, po-
dois governos militares, passaram-se 39 anos sem der- dem distinguir-se vários tipos de golpe, ou mesmo não
rubada ilegal de governante. Pode-se perguntar, então, considerar golpe uma derrubada ilegal de governo. Isto
o que mudou na sociedade e na política após 1930 que é, todo golpe é ilegal, mas nem toda derrubada ilegal de
levou à sequência de golpes que durou até 1964. A tí- governo é golpe. Entre nós, por exemplo, a deposição da
tulo de especulação, anoto duas mudanças: a primeira junta militar que derrubara Washington Luís em 1930
foi a emergência da política das ruas, ou da política nas não ficou conhecida como golpe porque veio como co-
ruas, no embalo da formação de movimentos ideológi- roamento de uma guerra civil. No limite, a participação
cos à esquerda e à direita (Aliança Nacional Libertado- de amplos setores da população em derrubadas de go-
ra e Ação Integralista Brasileira), ambas de inspiração vernos transforma o golpe em revolução. O apoio popu-
internacional; a segunda foi a politização das Forças Ar- lar, em sistemas políticos que se pretendem democráti-
madas, sobretudo do Exército, que as transformou em cos, introduz um ingrediente de legitimação na derruba-
importantes atores políticos. Tão importantes que se ar- da de governantes. Neste sentido, é preciso acrescen-
rogaram, arbitrariamente, o papel de Poder Moderador, tar à definição de golpe que, além da ilegalidade, ele se
num pastiche do arranjo político imperial. caracteriza pelo fato de ser promovido por minorias de
dentro ou fora do Estado.

P
Inversamente, há eventos tidos politicamente como
ode-se verificar que houve correlação entre golpes que legalmente não o foram. Em 1868, por exem-
aumento de participação e instabilidade po- plo, em plena guerra contra o Paraguai, D. Pedro II cha-
lítica. Até 1930, praticamente não havia povo mou ao governo o Partido Conservador, que não tinha
na política. Votantes eram 5% da população, maioria na Câmara. Ao fazê-lo, obedeceu à Constituição
e levantes populares, como Canudos e Con- que lhe dava o poder de escolher livremente os ministros,
testado, passavam à margem da política ins- como num sistema presidencialista. No entanto, a deci-
titucional. O problema político consistia, en- são provocou enorme reação de liberais e radicais, que
tão, em arbitrar os conflitos entre frações da elite. No se uniram na oposição, esquecendo as violentas dispu-
Império, o arbitramento se dera graças à introdução de tas anteriores. O moderado Nabuco de Araújo exaltou-
um corpo estranho à dinâmica política, o Poder Modera- -se reconhecendo a legalidade do ato, mas negando-lhe
dor do rei. A Primeira República resolveu o problema in- legitimidade. Multiplicaram-se as críticas ao chefe de Es-
ternalizando esse corpo no arranjo inventado por Cam- tado, que passou a ser acusado de despotismo e de ser
pos Sales, conhecido como política dos governadores ou, responsável por todas as mazelas do sistema, mesmo
melhor dito, dos estados. O arranjo conseguiu arbitrar daquelas contra as quais lutava. Dois anos depois, no im-
os conflitos dentro do que Vítor Nunes Leal chamou de pulso dos protestos, formou-se o Partido Republicano.

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O “golpe” de 1868, que não foi, é exemplo do que se de afastamento da governante tem sido constitucional
pode chamar de “retórica do golpe”, ou seja, a instru- e dificilmente o deixará de ser, uma vez que a fase atual
mentalização partidária do termo. Somos, por tradição, é supervisionada pelo Supremo.
um povo de retóricos, sobretudo nas crises políticas. A Os defensores da presidente afastada tendem a
retórica caracteriza-se pela valorização da forma em ver o impeachment como se fosse apenas um processo
detrimento do conteúdo, do modo de dizer em prejuízo por crime comum a ser julgado pelo judiciário, ignoran-
da substância do dito. O discurso de Nabuco de Araújo do o fato de se tratar de crime de responsabilidade com
contra o ato do Imperador em 1868, por exemplo, não julgamento político. Não era esta, seguramente, a con-
ficou conhecido pelo conteúdo, mas pela forma do ar- cepção de impeachment que os que acusam o proces-
gumento principal: o “discurso do sorites”. Mesmo nos so atual de golpe usavam, quando, na oposição, prega-
debates de hoje, com frequência o conteúdo, a evidên- vam com frequência a aplicação da medida aos gover-
cia, desaparecem afogados em maledicência verborrá- nantes do momento. São jogos políticos que se podem
gica. É também típico do discurso retórico a prática do até entender, mas que se tornam empecilho à convivên-
argumento ad hominem e mesmo ad personam, que con- cia democrática quando transformados em crenças. Por
siste em atacar a pessoa de quem fala em vez do con- contraste, o impeachment de Collor foi muito mais sim-
teúdo daquilo que fala. Isso tem sido prática comum en- ples. Havia acusações muito concretas, algumas delas
tre nós, na imprensa e no Parlamento, desde os tempos reveladas pelo próprio irmão do presidente. Não havia
da Independência, sobretudo por ocasião de crises po- polarização, o presidente não tinha apoio nem no Con-
líticas. Hoje a prática se multiplica e se transforma em gresso nem nas ruas. Ele próprio decidiu renunciar an-
verdadeira guerra verbal nas redes sociais da internet. tes da votação do impeachment no Senado.

S
São coxinhas versus petralhas, neoliberais versus cor-
ruptos etc. O debate político reduz-se a um improdutivo obre a polarização de hoje, há os que a jul-
bate-boca entre surdos. gam a maior que o país já experimentou.
No caso atual, discute-se se o processo de impeach- Não é tanto assim. Já tivemos momentos de
ment contra a presidente configuraria ou não um golpe maior radicalização. A primeira década re-
de Estado. A Lei 1079/50, que regulamentou o impeach- publicana, por exemplo, presenciou duas
ment e foi acolhida pela Constituição de 1988, conferiu guerras civis, uma grande rebelião serta-
ao processo um caráter ao mesmo tempo legal e políti- neja, uma tentativa de assassinato do Pre-
co. Há que haver crime de responsabilidade, mas o jul- sidente. Morreu muita gente. Entre 1930 e 1932, houve
gamento é político, feito pelo Congresso. Não é simples mais duas guerras civis com muitos mortos. Em 1932,
caracterizar inequivocamente o que seja crime de res- a intolerância chegou ao ponto de se distribuírem em
ponsabilidade e, mais difícil ainda, dosar os componen- São Paulo folhetos que exortavam os paulistas a tro-
tes legal e político do processo. Quanto a esta última di- carem de calçada para evitar cruzar nas ruas com um
ficuldade, ficou claro que na votação da Câmara predo- “brasileiro”. Quase toda a década, até 1938, foi marca-
minou o componente político, embora a parte criminal da por rebeliões sangrentas, civis e militares. Em 1954,
tivesse sido a base da acusação. No Senado, até agora, um presidente foi levado ao suicídio pelo radicalismo
a argumentação tem sido mais jurídica. Mas em cená- da oposição. Em 1964, a polarização foi também mui-
rio de forte polarização como é o de hoje, é inevitável to grande. A impressão do ineditismo da polarização de
haver uma batalha sem fim entre as partes, que conti- hoje deve-se em parte ao desconhecimento do passado,
nuará, mesmo após a decisão final, seja ela qual for. De mas pode advir também da presença das redes sociais.
qualquer modo, nos termos da lei de 1950, o processo Graças a elas, muito mais gente se envolve no bate-bo-

32 Vai ter golpe


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na votação da Câmara
predominou o componente
político, embora a parte
criminal tivesse sido a
base da acusação
ca virtual sem precisar sair às ruas. A internet, a ágora o Congresso paralisa o Executivo se não atendido em
moderna, tornou-se o grande campo de batalha. A luta suas demandas, a maioria delas de natureza fisiológi-
virtual não mata gente, o que não significa que não cau- ca. Na crise atual, alguns têm se voltado para o Supre-
se grandes danos à convivência social, destruindo re- mo Tribunal Federal na busca por um árbitro entre os
putações, rompendo laços familiares, de amizades e de dois poderes. De fato, o Supremo tem sido forçado pe-
companheirismo. las circunstâncias a exercer essa mediação. Sem dúvi-
As crises têm feito com que a ideia de um Poder da, trata-se de uma instituição muito mais qualificada
Moderador persiga a República desde 1930 como pos- para exercer o arbitramento do que as Forças Arma-
sível instrumento de resolução de conflitos entre Exe- das, embora não seja esta sua tarefa constitucional. A
cutivo e Legislativo. Em 1933, como contribuição ao de- judicialização da política é, no entanto, muleta institu-
bate em torno da nova constituição que se elaborava, cional. Embora melhor com ela do que sem ela, o fenô-
Borges de Medeiros propôs explicitamente sua res- meno apenas aponta para a necessidade de reforma
suscitação na pessoa do presidente da República que em nosso sistema presidencial. Algumas reformas têm
não poderia ser chefe de partido e governaria com um sido propostas, como as que visam os sistemas eleito-
gabinete ao estilo parlamentarista. Mas quem se ar- ral e partidário, as eleições, o próprio modelo de presi-
rogou de fato o exercício desse poder foram as For- dencialismo. A dificuldade é que quase todas elas atin-
ças Armadas, na linha do pensamento do general Góis gem interesses arraigados dos congressistas, que são
Monteiro. A pretensão era inconstitucional, mas pren- os que têm o mandato legal para aprová-las.
dia-se à dificuldade real que tinha o sistema político No que se refere às propostas de alteração no sis-
de processar os novos conflitos surgidos após 1930. tema presidencialista, é preciso levar em conta que mu-
Uma vez afastadas as Forças Armadas do jogo políti- dança simples para o parlamentarismo não seria viável.
co, nosso presidencialismo continuou enfrentando di- Há clara preferência pelo presidencialismo, confirma-
ficuldades em garantir a governabilidade. O que se vê da em dois plebiscitos. Ela pode ser em parte explicada
hoje, e é de conhecimento geral, é que ou o Executivo pela tradição personalista do exercício do poder, desde
compra por meios escusos o apoio do Congresso, ou o Poder Moderador imperial até as presidências impe-

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riais da República. Além disso, a concentração da che- da abolição da escravidão civil. Só assim poderemos ter
fia do Estado e do governo em uma só pessoa, seja ela uma república de cidadãos.
um caudilho, um líder carismático, ou um grande esta- Termino pedindo ao leitor que me permita uma re-
dista, é arma poderosa para introduzir mudanças, para ferência pessoal. Nasci durante a ditadura do Estado
o bem ou para o mal. E, como observou uma vez Celso Novo, vivi a redemocratização de 1945, os golpes de
Furtado, no Brasil presidentes são mais progressistas 1954, 1955, 1964, 1968, toda a ditatura dos militares,
do que o Congresso. Daí a atração irresistível da ideia a abertura de 1985, a Constituição de 1988, o impeach-
de conquista do Estado pelas eleições ou pelo assalto ment de 1992. Nesse já longo percurso, vi o humor do
ao poder. O parlamentarismo fornece maior estabilida- país alternar entre a esperança e a frustração, entre a
de, mas é mais lento nas decisões e mais conservador. euforia e o desencanto. Desde o governo de Fernando
Desde os anos 30, nossas esquerdas priorizaram a con- Henrique Cardoso, que colocou a máquina do governo
quista do Estado como instrumento de reforma. Um dos para funcionar e, sobretudo, desde a eleição de Lula, que
dramas atuais é que elas, na valorização do Estado, dei- centrou os esforços na redução da pobreza, pareceu-
xou-se contaminar pela velha tradição estatista do pa- -me que o país enveredava, afinal, em rota segura para
trimonialismo e do clientelismo. O resultado foi o Men- a promoção da igualdade social em regime de liberdade
salão e a Lava Jato. política. Ledo engano. Nos últimos anos ficou claro que

R
a política social naufragava no mau governo, a inclu-
esumindo, parece-me que nosso grande pro- são democrática frustrava-se pelo déficit de república.
blema político após 1930 foi a incapacidade A nova débâcle coloca-nos de volta à alternância es-
dos governos de processar democraticamen- perança/frustração, à confirmação de que nossa repú-
te os conflitos sociais gerados pela desigual- blica continua não sendo aquela dos sonhos dos funda-
dade, imprensados que ficaram entre a pres- dores e de nenhum outro republicano e democrata dig-
são de baixo e a resistência de cima. A saída no do nome. Nesta altura, supostamente por efeito da
dos militares da cena política evitou a repe- idade, passo a desconfiar de que o sonho talvez nunca
tição de golpes, não eliminou as crises. Não tenho re- se realize ou, no mínimo, de que ainda esteja muito lon-
ceitas de reformas políticas para resolver o problema. ge. Quem sabe no século XXII?
Creio, no entanto, que só construiremos uma república
democrática se completarmos duas revoluções: liber-
O autor é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janei-
tação de todos os brasileiros da pobreza e da ignorân- ro e membro da Academia Brasileira de Letras
cia, duas escravidões que persistem, passados 128 anos josemurilodecarvalho@gmail.com

34 Vai ter golpe


36 É fogo!
wanderley
guilherme dos
santos

giordano
Cientista político

bruno,
submisso
Giordano Bruno, nascido Filippo, dominicano, calvinista, vagabundo europeu. Dis-
putou com doutores por toda Itália, França, Inglaterra e Alemanha. Alquimista apren-
diz, iniciado em cabala, intuiu a sabedoria e tudo experimentou. Ameaçado de expia-
ção várias vezes, excomungado algumas, professor semiclandestino a vida inteira.
Convidado pelo Santo Ofício a retratar-se, jamais em sete anos atinou como que devia
abjurar. Em 17 de fevereiro de 1600, Giordano Bruno, nascido Filippo, foi arrastado
pela língua ao Campo di Fiori, em Roma, e atado a uma estaca exposto solarmente a
arder. Contava 52 anos de idade.
Eis a angústia que o perdeu:
“Compreendei, Sereníssima, a humilde ignorância de que são tecidos heroicos
furores. Ofende aos simples chuvas que não regam, silvas que não olem, partos abis-
sais. Escalofria aos brutos temerários a finitude cósmica de Deus. Pois, Dulcíssima,
que divindade assim austera exaure tanto poder sem nada que a limite? Se mesmo
vós, Boníssima, oca matéria perecível, oca, fazeis metalurgia apócrifa ao dispensar
com generosidade condenações raiadas, relâmpagos sintáticos, não mais, enquanto
um eco de igual pseudossom não torne contra vós a vossa própria voz! Quem, Preca-
vida, precavidíssima, se me perdoais, contida a cupidez, estiolaria os números e as re-
gras, e não faria de dez vezes dez o infinito cardinal de mundo vários, exponenciais?

abril • maio • junho 2016 37


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Quem, inventando-a, evitaria transmutar a mágica adição multiplicada em posse inumerá-


vel? É este mundo nosso o solitário gozo Daquele que lascívias autoriza? E de onde então,
análogo imperfeito, Lázaro ornado de ouropéis e odores, retiraríeis, parla Frugalíssima, o
exemplo acero, o lábaro que ostentas, para tal apetite, enorme, sem fastígio? Cento e ses-
senta artigos formulei, confesso, em busca de outro cento e mais sessenta, que houves-
sem minha angústia adormecido – sim, que só do verbo reconheço império. Peço a pala-
vra, digo, para ouvi-la, sobre o tlim-tlim dos ferros, Sapientíssimo, peço a palavra, a vossa,
pela ordem, pela razão e a fé, o que quiserdes. Mas põe cuidado, imunda, rameira transi-
tória, neste inferno perene que é teu dote: não é democrático o Estado que emudece aque-
les que disputam o que é democracia.”

thomas
morus,
insubmisso
Consta que Henrique VII investiu-se da autoridade suprema na igreja da Inglaterra e
pediu a adesão de seu chanceler, e teólogo católico, Thomas More. Este calou-se. O rei in-
sistiu em saber se o aprovava ou desaprovava. More recusou-se a declarar uma ou ou-
tra coisa. Manteve-se em silêncio por quatro anos. Foi decapitado por deslealdade e, qua-
tro séculos depois, canonizado. Momentaneamente, decidiu-se uma disputa entre o poder
dogmático temporal e o poder dogmático eclesiástico. Em essência, mais do que entre san-
tidade ou traição escreveu-se outro capítulo do eterno embate entre o poder arbitrário e
a liberdade de espírito.
Sabe-se hoje, a ocorrência registrada pela crônica é falsa. Transcrevo a versão fidedigna.
Eis como começou:
“Horas de caráter são aquelas em que as coisas passam a ser designadas por seus
nomes próprios. Por exemplo, a proposta de negociação dos poderosos chama-se ultima-
to; a eleição que se quer fazer chama-se farsa; a lei, a ordem e a constituição evocadas pe-
los proclamos militares são na verdade tanques, bombas e petardos. Nas horas de caráter
todas as hipocrisias se diluem, e as pessoas são levadas a ocupar seus devidos lugares.
Durante anos fui como se fora um cidadão dotado de direitos e obediente a leis iníquas
por autônoma opção. Tudo falso. Tenho sido um virtual prisioneiro a cumprir regulamentos
carcerários sob a ameaça de espadas pressentidas. Basta. Não mais sustentarei a enor-
me mentira ajudando a eximir de culpa àqueles que são beneficiários de meu encarcera-
mento anônimo e conformado. Que apareçam as baionetas e que cada qual assuma a res-
ponsabilidade pela coação explícita.

38 É fogo!
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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40 É fogo!
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Não me considerarei um cidadão enquanto minha liberdade depender da vontade de


hierarcas militares. Não é minha obrigação cívica refletir sobre o compromisso democrá-
tico deste ou daquele comandante. Não estou à espera de generais de boa índole para tor-
nar-me livre. Todo oficial que empenhe sua farda e armas em qualquer atividade além da
manutenção da soberania de meu país é, por essa mesma razão, meu carcereiro.
Não mais chamarei de constitucional a autoridade imposta. Não mais obedecerei às
leis senão adiante da ameaça de violência. Não mais pagarei impostos que contribuam para
alimentar a formidável corrupção que contaminou a República senão quando cobrado ju-
dicialmente e face a prisão iminente. Não deixarei de frequentar lugares interditos senão
quando impedido por constrangimento físico. Não me submeto senão à força revelada.
Creio ser minha responsabilidade comunicar esta determinação a meus compatrio-
tas. Peço que não cessem de trabalhar e que não patrocinem a violência. Sobretudo, peço-
-lhes que não se submetam senão à força. Desobediência pacífica – é o que recomendo.”
Eis como terminou:
“– O senhor fez circular um documento induzindo os cidadãos deste País à desobediência!
– Não existem leis no País, senhor, e sugeri a meus compatriotas que se submetes-
sem à força.
– O senhor afirma que não existem leis. Isto equivale a desobedecê-las!
– Eu me submeto à força, senhor.
– O senhor terá que obedecer às leis!
– Submeto-me a seu comando, senhor.
– Não, o senhor submete-se a leis!
– Se assim o preferir, senhor. Admito que existem leis, reconheço que as transgredi e
confesso que estimulei outros a também fazê-lo. Declaro ainda que tudo livremente admi-
to, reconheço e confesso. Como afirmei, submeto-me à força.”

um
homem
Cometeu o crime imprescindível de enamorar-se da vida. Estudou filosofia, botânica
e palavras. Recusou o desencanto do mundo e viveu contrafactualmente o que poderia ter
sido. Conheceu o fracasso sem desesperar-se. Torturado por desfastio de verdugos, in-
gressou lentamente no universo dos símbolos de máxima coerência. Ao final, enforcou-se.
Foi declarado inocente póstumo.

wanderleyguilhermedossantos@gmail.com

abril • maio • junho 2016 41


entrevista com o

Diante de todos esses episódios, Lava Jato, Zelotes, im- dade mundial, o que nos dá uma capacidade de inter-
peachment, como está o ambiente nos quartéis? pretação do mundo extraordinária. Evidentemente, um
O panorama nos quartéis mudou muito no século XXI. homem com visão do mundo e do seu país assume de-
Não são mais os quartéis da década de 50. São outras terminadas condições políticas. O ranço do anticomu-
camadas sociais que hoje fazem parte do oficialato. É nismo é muito forte. Os governos de esquerda no Brasil
curioso: a maioria dos oficiais que se manifestam são fi- não foram bem sucedidos e nós, militares, não tolera-
lhos de oficiais que tiveram desempenho político no sé- mos alguns dos princípios básicos em que a esquerda
culo passado. O militar de hoje tem um perfil muito mais brasileira tocou. O PT teve alguns pontos convergentes
tecnocrático. Para além disso, é fundamental destacar com os militares, como o fortalecimento da defesa na-
que nós, oficiais, sempre tivemos uma grande visão de cional, a criação da indústria de base e defesa, mas ha-
Brasil. Nós passamos por um curso de política estraté- via questões divergentes, como a declaração do presi-
gica na Escola Superior de Guerra, estudando a reali- dente do PT, Rui Falcão, de que o governo falhou ao não

42 Sentido
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interferir no currículo das escolas. Depois disso, quem seio da sociedade. A seleção é pátria de chuteira e o mi-
estava neutro montou guarda. litar é a pátria de coturno. Na Argentina, no Uruguai, no
  Chile, ele vem da alta burguesia. Aqui é muito diferente.
O senhor quer dizer que esse posicionamento das For- Se tivermos de colocar num sociograma mais simples,
ças Armadas agora é menos simpático ao PT e à esquer- o modelo brasileiro é o tenente casando com a profes-
da de uma forma mais ampla? sora que ele conheceu no trem da Central. Esse Exér-
Com relação ao PT, sempre foi pouco simpático e agora cito não é contra o povo. Ele vem do povo. O Brasil hoje
é extremamente pouco simpático, apesar das Forças Ar- tem a sociedade com outras demandas que não as da
madas estarem cada vez menos radicais e os três minis- década de 50. Não é um Brasil do PTB, UDN e PSD. É um
tros militares considerarem Aldo Rebelo, um homem da Brasil com a multiplicidade e grandes aspirações, que
esquerda, um dos melhores ministros da Defesa que o vão desde discutir a questão do gênero, da sexualidade,
Brasil teve. Agora, a bem da verdade, há de se dizer que até a economia. E há uma crise de representatividade
o PT não é e nunca foi comunista, assim como o próprio no país e, eu diria até, no mundo. Nós nunca vimos um
Lula nunca foi comunista. O PT nasceu nos sindicatos doido como o Trump na presidência dos Estados Unidos.
e depois recebeu o apoio das comunidades eclesiásti- Poderemos ver. Nunca vimos um presidente francês tão
cas de base. Ele aproveitou aquele momento da teolo- escrachado quanto o Sarkozy, casado com uma vedete.
gia da libertação. O problema é que o PT desmoralizou Nunca vimos um primeiro-ministro da Inglaterra tam-
a esquerda. Lembro de um general que morava na mi- pouco um membro da Família Real espanhola acusado
nha rua quando eu era criança. Ele costumava dizer de corrupção. Então, nós estamos vivendo uma crise da
que era fácil conhecer um comunista: “Ele é inteligente, democracia representativa muito grande. Isso está mui-
preparado e honesto”. O PT desfez isso. Sujou a história to claro para os militares.
da esquerda. O Golbery, aliás, previu isso. Ele conhecia
o Brasil muito bem, tanto quanto o Marques de Pombal, Uma crise de democracia é quase um convite para que
embora este jamais tenha pisado aqui. Esse PT, confor- as Forças Armadas entre em cena, não? O senhor en-
me anteviu Golbery, dizimou a esquerda e despertou a tende que há esse anseio na sociedade?
ira da classe média. Toda essa massa do estrato médio Nós não queremos meter a mão nessa cumbuca, por-
da sociedade, altamente conservadora, obviamente tem que vai sujar. São tempos e circunstâncias diferentes.
grande influência sobre as Forças Armadas. Em 1964, toda classe média pediu a presença das For-
ças Armadas. Ela tinha pavor do Leonel Brizola, das Li-
A classe média está mais conservadora? gas Camponesas de Francisco Julião. Hoje, não há qual-
A classe média conservadora que hoje bate panela é a quer movimento no sentido de os militares assumirem
mesma que saiu à rua para participar da Marcha da um protagonismo político-administrativo. Absolutamen-
Família Com Deus pela Liberdade. O Exército Brasileiro te nada. Estamos vendo o país mal, mas dentro de uma
nunca foi um ente isolado, como determinados Exércitos normalidade institucional. Na história nacional, as For-
sul-americanos que dão o golpe pelo golpe. Ele sempre ças Armadas só entraram quando houve quebra institu-
agiu em reboque da classe média, ou convocado pelo an- cional. A bactéria só cresce quando é caldo de cultura.

abril • maio • junho 2016 43


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O comandante do Exército, General Villas Boas, localizou a forma, tudo está muito bem mapeado pelas Forças Ar-
muito bem a meta militar: apesar de toda a crise social, madas. O serviço de inteligência conhece muito bem os
econômica e moral, a fronteira é o caos social. Se hou- atores que estão nas ruas...
ver uma situação de caos social, passa a ser um proble-
ma das Forças Armadas. Mas e essa sensação latente em certos de que o poder
mudou de mãos no grito?
Mas no atual cenário de polarização política, há muita A transferência de poder se deu de forma legítima. Todo
raiva de parte a parte, não? O Exército não teme, no li- o rito estabelecido pela corte constitucional foi seguido e
mite, um cenário de convulsão social? respeitado. Até onde eu sei, não houve qualquer quebra.
Nada aponta nesta direção. Há, sim, polarização, um con- Agora o julgamento do impeachment de um presidente é
fronto muito claro e definido no campo ideológico, mas político. A corte do impeachment é o Senado, um órgão
tudo dentro de um limite de responsabilidade e respeito político. Todo o processo é conduzido por um membro da
às instituições. Que isso fique absolutamente claro: não corte constitucional, uma instância política no mais alto
houve ruptura institucional, nada que justifique uma in- sentido da palavra. Portanto, o argumento do golpe não
tervenção militar. Eu não gosto dessa frase, mas o bra- procede. A presidente da República não tinha condição
sileiro é um povo pacífico. Não se viu qualquer grande de governabilidade e ponto. É isso que derruba um che-
confronto que sequer resvalasse na linha do aceitável. fe de governo. Desde os primórdios da nossa República,
O povo amadureceu e se tornou cioso dos seus deveres. todos os presidentes derrubados caíram porque não ti-
Vejo uma responsabilidade: ninguém quer estragar esse nham apoio do Congresso e condições de comandar o
grande ativo que temos, a democracia. país. E, como exercício, se quisermos nos distanciar do
aspecto político e nos deter ao mérito, houve crime res-
Há uma expectativa de que essas manifestações de rua ponsabilidade, apontado e caracterizado por uma série
– ou seja, Sem Terra ali, CUT aqui, funcionalismo cá e de juristas de renome. Não foi um estudante de Direito
acolá – permaneçam durante muito tempo porque não no fórum que falou que a presidente Dilma cometeu cri-
há motivos pra elas pararem. A situação do país é ruim me de responsabilidade. Portanto, por onde quer que se
e, para muitos, prevalece a percepção de que houve uma olhe, pelo ângulo político, jurídico, mas, sobretudo, cons-
usurpação de poder: o governo não teria sido transferi- titucional, todo o processo de mudança de governo se
do de uma forma e legítima. O senhor acha que o povo deu de forma legítima. As Forças Armadas não podem
tem essa percepção? cair nessa esparrela de usurpação de poder ou golpe.
Depende do que a gente considerar como povo. A classe Aliás, as Forças Armadas não podem, não devem e não
média não tem essa percepção. Ela está razoavelmen- irão cair na esparrela de lado algum.
te satisfeita, digamos assim, com o que ocorreu. Cum-
priu o objetivo: bateu panela, a Dilma caiu e fim de con- Há uma demanda pela entrada dos militares na segu-
versa. Determinados organismos da sociedade civil or- rança pública. Isso não é um chamamento às Forças
ganizada obviamente não estão satisfeitos. Esses não Armadas? As coisas não se misturam no imaginário
voltaram para casa. Mas as Forças Armadas não vi- da sociedade?
ram nada até agora capaz de desestabilizar o país: não Não! Isso não é um chamamento! É a demanda do dia
há nada sequer próximo de confronto armado, não há a dia, sobretudo nos grandes centros. É um anseio por
ameaça de greve geral, não há risco iminente de para- segurança pública, nada além disso. E os militares tam-
lisação de rodovias. Ou seja: não há nada que a Polícia bém não querem cumprir o papel das polícias. O envol-
Militar não resolva dentro de suas atribuições. De toda vimento das Forças Armadas com a segurança pública

44 Sentido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

é muito perigoso, aqui e em qualquer lugar do mundo. tanto, em 1870, os oficiais militares voltam da Guerra
Já é um erro termos a Polícia Militar e a Polícia Civil... do Paraguai com a alta estima bastante elevada e com
a pretensão de começar a desempenhar um papel re-
Quando isso aconteceu? levante na sociedade. O Imperador e a Corte eram rela-
Vem das Guardas Nacionais, dos Voluntários da Pátria, tivamente contra. D. Pedro II tenta de uma forma ou de
que formaram aqueles batalhões. Esse modelo não exis- outra amordaçar as Forças Armadas, à época Exército
te em nenhum país evoluído do mundo. Essa mistura não e Marinha especificamente. Passam-se duas décadas
é boa para nenhum dos lados. Polícia não pode ser mili- e os militares começam a ser fortemente influenciados
tar. Polícia é polícia e militar é militar. São duas ativida- por um dos jovens de meia-idade, oficial, tenente-coro-
des nobres, porém distintas. nel formado na Escola Militar, Benjamin Constant Bote-
lho de Magalhães. Benjamin Constant era um estudioso
Um fato interessante é a imagem das Forças Armadas do positivismo, um homem que conhecia Augusto Comte
junto à sociedade. Em qualquer pesquisa, ela entra sem- com profundidade e começa a contaminar a escola mili-
pre entre as primeiras colocadas em termos de confian- tar com os ideais positivistas. Esse fim do Império é um
ça. A que se atribui essa reputação? momento de vários paradoxos: a questão militar, a ques-
A sociedade percebe a retidão de postura das Forças tão religiosa, a abolição, entre outros. Há uma frase que
Armadas. Isso dá a nós militares um ativo que não pode considero extraordinária: o Brasil teve quatro ou cinco
ser banalizado. Até porque essa imagem demorou a ser Repúblicas e a República mais estável que o Brasil teve
conquistada. Sob certo ângulo, pagamos um preço alto foi o Segundo Império, por conta do sabre de Caxias e
demais por 64. O desgaste reputacional foi muito gran- da lança de Osório...
de. Penso que chegou a hora de revermos 64 com mui-
ta clareza. Repito: qualquer regime só alcança o poder Mas esse foi um período de vários conflitos regionais...
com apoio popular. As Forças Armadas responderam a Sim, mas nenhum deles vingou ou teve impacto nacional.
uma convocação da sociedade. De todo o modo, tenho Caxias e Osório suportaram a Balaiada, a Praieira, a Far-
orgulho de pertencer a uma instituição que tem mais de roupilha, uma série de movimentos indiciosos visando a
80% de aprovação do povo. Integridade Nacional Brasileira. Este é um momento da
  História que marca a ascensão militar no Brasil. D. Pedro
Historicamente, sempre foi assim? Os militares sem- II era um homem esclarecido e tinha relativamente pre-
pre desfrutaram dessa reputação? conceito contra os militares e os militares, por sua vez,
Não sempre. O Exército não gozava de prestígio na épo- adquiriram preconceito contra ele também. Com a Pro-
ca do Império porque havia a Guarda Nacional. No en- clamação da República, o Exército surge como um gran-

rela de
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abril • maio • junho 2016 45
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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de ator político, com notórios intelectuais como Quintino tos. Em 64, o primeiro passo para afastar a oficialida-
Bocaiuva e Lopes Trovão. Os dois primeiros presidentes, de da política é dado pelo Marechal Humberto de Alen-
os marechais Deodoro e Floriano, são militares. Poste- car Castelo Branco. Ele limita a permanência de oficiais
riormente, temos Hermes da Fonseca e toda essa oficiali- e generais a 12 anos no serviço ativo. Até então o Exér-
dade jovem adere ao positivismo e começa a fervilhar na cito tinha os seus donos, os seus líderes: Lott, Cordeiro
Escola Militar. Anos depois, nasce o tenentismo. Juarez de Farias, Juarez Távora. Eles tinham seguidores, como
Távora, Cordeiro de Farias e João Alberto tendem para Zenóbio da Costa e Canrobert Pereira da Costa. Houve
a política de direita, mas não uma direita nazista. Isso é várias tentativas de tomada de poder, desde Vargas, até
uma marca muito importante do Exército brasileiro, ele que chegamos a 1964. A queda de Goulart decorre de
nunca foi um Exército nazista, ainda que com influência um movimento militar e civil.
alemã. A influência francesa falou mais alto, muito por
conta da missão chefiada pelo General Gamelin, herói da Voltando à origem do militar brasileiro, que, como o se-
Primeira Guerra. De toda a forma, não há qualquer ins- nhor disse, vem do povo e não da elite. Como os quar-
tituição mais nacionalista do que o Exército. téis encaram hoje a questão salarial? Isso é um fator
de incômodo ou mesmo de combustão da tropa?
O ápice dessa influência e do poder militar vem com Esta é uma questão importante. Aliás, sempre foi. Quan-
64, não? do três militares se juntam, a primeira coisa que um per-
O ano de 1964 não pode ser visto de maneira isolada. gunta aos demais é quando será o próximo aumento. A
É um erro histórico. Ali há uma conjugação de fatores defasagem salarial é grande e, sem dúvida, motivo de in-
políticos e sociais guiados pelo desejo da sociedade de cômodo. Mas eu posso dizer que tão ou mais importan-
que uma força legítima restaurasse o equilíbrio institu- te é a fragilização da atividade pela redução dos investi-
cional. A revolução, golpe ou seja o nome que se queira mentos na área de defesa. Fragilização em termos, que
dar a 64 não eclode por si só. Como estava dizendo, o fique bem claro, porque temos uma capacidade opera-
prestígio conquistado pelas Forças Armadas é um pro- cional muito boa. O Brasil pode fazer frente a qualquer
cesso gradual, que leva à proclamação da República e país da América Latina. As Forças Armadas Brasileiras
segue adiante na história. Mais à frente, temos os tenen- têm a pronta resposta em qualquer momento. Ainda as-
tes instrumentalizados ou instrumentalizando Vargas. sim, o adiamento de projetos, a redução de investimen-
Ali estavam o Capitão Ernesto Geisel, o Capitão Gusta- tos, as dívidas com fornecedores são, sim, um fator de
vo Cordeiro de Farias, o Capitão Juarez Távora... A par- incômodo, com os quais teremos de lidar.
tir desse momento, é como se as Forças Armadas as-
sumissem o poder moderador que cabia ao imperador. Como um militar, para quem o orgulho nacional é atá-
Em 64, esses tenentes da era Vargas assumiram o po- vico, reage diante da percepção generalizada de que o
der com um grande projeto. Um projeto que transformou Brasil está desmontando pela roubalheira?
um país de 45a em nona maior economia do mundo, um Tudo tem seu limite, seu ponto de saturação. Esse esta-
projeto em desenvolvimento com muitos erros e acer- do de degradação ética e moral nos causa a mais pro-

46 Sentido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

funda indignação. Contudo, serei enfático mais uma vez: Institucional reconstruiu esta ponte. Essa parte pare-
as instituições estão funcionando perfeitamente. Nada ce bem equacionada. Mas como é hoje a interlocução
saiu do controle. Portanto, não queiram que façamos o entre as Forças Armadas e a sociedade civil? Ou, mais
que não queremos ou o que julgamos não ser necessá- precisamente, com o empresariado?
rio fazer. As Forças Armadas brasileiras são legalistas. Muito boa! A Fiesp tem dois oficiais generais recém pas-
Ninguém fará loucuras. Ninguém! A época das quartela- sados para a reserva. A interlocução com o empresa-
das acabou. Estamos atentos. Os serviços de inteligên- riado é permanente. O mesmo com a Igreja. As Forças
cia seguem vigilantes. Sabemos quem é quem. O Exército Armadas sempre tiveram uma boa capacidade de inter-
não se deixa manipular, nem por um lado nem pelo outro. locução com a sociedade de um modo geral, o que deu
origem aos movimentos civis e militares, chamados por
Mas o governo Michel Temer fez um sinal de aproxima- muitos de “golpes”.
ção ao levar um general da ativa e o Estado Maior para
dentro do Planalto, não? E internamente? Como são as relações hoje entre os di-
Fez, porque precisava. Qualquer presidente, nessa cir- ferentes estratos das Forças Armadas? Há um distan-
cunstância, faria. De fato, convidar o General Sergio ciamento entre o Alto Comando e a tropa?
Etchegoyen, chefe do Estado Maior do Exército, para co- Em hipótese alguma, principalmente no Exército. Atual-
mandar a chefia do Gabinete de Segurança Institucio- mente, somos comandados por três tropeiros. No Exér-
nal foi um movimento estratégico e, acima de tudo, pro- cito, temos o Villas Boas, que, além de tropeiro, é ho-
filático. Ao tomar tal decisão, o presidente Michel Temer mem intelectual, um conhecedor profundo da questão
anuncia nas entrelinhas: “As Forças Armadas estão ao Amazônica, sua paixão de vida. Na Força Aérea, o Luiz
meu lado”. Claro que se trata de uma medida preventi- Rossato é um piloto de caça. Cheira a motor e gasolina
va. Este é um governo que já começa fragilizado e, logo de aviação. A Marinha é comanda pelo Eduardo Bace-
na partida, é obrigado a demitir três ministros. llar, elegante como todos os almirantes são, mas, ainda
assim, próximo da tropa. As Forças Armadas são uma
O presidente interino Michel Temer já anunciou que das instituições mais democráticas que o país tem. O
montou um gabinete com o objetivo de voltar às priva- meu contracheque líquido é de R$ 16 mil. Meu motoris-
tizações, como Fernando Henrique. Os militares sem- ta, um sargento apenas com curso ginasial, ganha R$ 3
pre tiveram um certo incômodo com esses modelos mil. Uma razão de cinco para um. No próximo aumento,
de governança e de desmobilização de ativos. Privati- eu terei um reajuste de 5,9%; os sargentos, de 20%. Não
zação é quase um anátema. Isso é uma coisa que ain- há empresa ou instituição no país com um distributivo
da permanece?  nesse nível, para não falarmos dos alojamentos, da ali-
Em certa medida, permanece. O caso mais sensível é a mentação. Não conheço regime mais socialista do que
Petrobras. A companhia tem origem militar, sempre foi o das nossas Forças Armadas. Nós temos uma igualda-
a jóia da coroa do Exército. Mas não é momento para de muito grande de oportunidades. Mesmo com relação
se pensar em privatizar a empresa. Não se falou nessa às promoções: os critérios de avaliação, que são até an-
hipótese. Para privatizar a Petrobras, o governo tem de tiquados, funcionam para todos: além do cumprimento
ter muita força política. E muito voto. das funções, são observados quesitos como comporta-
mento familiar, casamento, valores.
Se havia um distanciamento entre as Forças Armadas
e o Executivo, tudo indica que o gesto de Michel Temer Como as Forças Armadas veem hoje essa hegemonia
de nomear o General Etchegoyen para a Segurança do Judiciário, esse poder de ditar o andamento do país?

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Ouvi na Escola Superior de Guerra muitos comentários Mas o governo do PT permitiu que o Ministério Públi-
de que o Judiciário aproveitou um vácuo do Poder do Le- co e a PF trabalhassem com autonomia e fizessem o
gislativo e do Executivo. A gente tem um Judiciário que que fizeram...
governa, um Executivo que não faz nada e um Legisla- Sem dúvida, Isso é um mérito do Lula e da Dilma. Sem-
tivo que não legisla, que só faz conchavo. A relação dos pre dá para atrapalhar. Assim como não podemos dei-
militares com o Judiciário é muito boa. O Judiciário sabe xar de reconhecer o mérito que os governos do PT ti-
até onde vai com os militares. A comissão da verdade, o veram para o surgimento de um cenário de maior jus-
julgamento do STF, isso é bem nítido ele sabe até onde tiça social. Houve uma política de transferência de ren-
pisa e os militares sabem até onde pisam com o Judiciá- da, ou redistribuição, lá como queiram chamar. Houve
rio. E muito se fala do poder do Judiciário, mas não se muitas falhas, muitos insucessos, mas com muito mais
viu até agora, em todo esse episódio gerado com a Lava sucesso do que insucesso. Mas, ao mesmo tempo, o
Jato, o Supremo tomar qualquer atitude escandalosa. Eu preço disso foi muito alto. A pessoa quer colocar o fi-
desafio qualquer um a apontar um descalabro jurídico lho no colégio mais caro, na melhor escola de Judô, no
cometido pelo STF. Pode ser que um ou outro juiz tenha melhor curso de inglês. Então, o governo começa a ti-
cometido deslizes, mas o Supremo, não. Creio, aliás, que rar algumas coisas... E, claramente, houve uma mani-
um dos grandes avanços da carta de 1988 foi o artigo pulação eleitoral enorme. A campanha da Dilma para
129, sobre o Ministério Público... o segundo mandato foi um estelionato eleitoral, uma
fraude como o Sarney fez na esteira do Plano Cruza-
Mas muita gente critica esse Ministério Público... do. Eu pergunto: por que o mensalão não deu em nada?
Tem de ser um quarto poder. O Ministério Público são Porque a economia estava ótima. A Lava Jato encon-
os olhos da sociedade. trou um cenário econômico em franca deterioração. A
barriga determina quase tudo.
Mas não pode, em função de terem assumido esse pa-
pel de quarto poder, extrapolar... Este, portanto, não é um momento propício para as
Eles vão amadurecer. São todos muitos jovens. Forças Armadas, ao menos, buscarem um protagonis-
mo político?
E o papel do Sergio Moro? Não! O militar não está envolvido com política, isso é mui-
Esse extrapola. Ele se considera o único juiz honesto do to claro. Recentemente, em uma aula na Escola de Aper-
Brasil. Mas é preciso analisar o caldo de cultura que ge- feiçoamento de Oficiais, o General Vilas Boas disse: “Será
rou o Sergio Moro. Ele não pode se investir de um poder que não tem um capitão que vai me perguntar se essa
messiânico. Sergio Moro não vai moralizar o Brasil. Mas não é a hora de voltarmos ao Poder? Já que ninguém
vai dar uma bela sacudida. perguntou, eu respondo mesmo assim: Não! A socieda-
de não quer mais um tutor.”. Esse é o pensamento, repi-
Há quem diga, ainda assim, que houve um golpe dentro to. Agora, é claro que os militares desejam maior repre-
da democracia e que as investigações foram dirigidas sentação, querem ter um assento próximo ao presiden-
para uma prioridade determinada anteriormente. Há, te da República. Eu acho que o Temer tem essa visão. E
inclusive, uma compreensão internacional de que este é o que ele quer ter e o que qualquer presidente quer ter
um processo estranho, manipulado. O senhor concorda? ao seu lado: o poder armado é o poder. As Forças Arma-
Nesse aspecto, sim. É um processo estranho. O grupo das, por sua vez, não podem se sentir desprestigiadas.
vencedor, ou até o momento vencedor, é tão ou mais cor- Não queremos nada além do que ocupar o espaço que
rupto quanto o que foi destituído. é nosso por direito e por dever.

48 Sentido
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déficit tô
mi
O buraco
nuclear na

co
balança
comercial
do Brasil

52 Bomba
abril • maio • junho 2016 53
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O
comércio internacional de ma- bro de 1953, o qual foi intitulado “Átomos para a Paz”. Ao
teriais nucleares teve início longo da sua fala, o presidente Eisenhower desenvolve a
na década de 1950, e desde sua ideia de que a energia nuclear não poderia ser ape-
então uma série de regimes nas associada a armas de destruição em massa, já que
foram criados com o intuito ela possui características que a tornam benéfica para o
de impedir que eles fossem mundo. Com isso, o presidente norte-americano afirma
usados para o desenvolvi- que os EUA estariam dispostos a ajudar os seus países
mento de armas nucleares, aliados, que assim desejassem, a desenvolver progra-
garantindo seu uso apenas mas nucleares para fins pacíficos. A partir de 1953, os
para fins pacíficos. Esse foi o EUA começaram a vender reatores nucleares e a trei-
caso do Tratado de Não Pro- nar especialistas para manuseá-los corretamente para
liferação de Armas Nuclea- quase 24 países. (LAVOY, 2003).
res (TNP), de 1968, e da Convention on Nuclear Safety, O Brasil e o Irã foram dois Estados que se benefi-
de 1994, dado que se trata de uma questão tão relevan- ciaram com essa política, tendo iniciado os seus progra-
te para a segurança global. A partir desse histórico, o mas a partir da cooperação americana na década de
presente artigo propõe-se a traçar uma análise dos da- 1950. Além disso, outra consequência direta desse dis-
dos do comércio exterior brasileiro de reatores nuclea- curso foi a criação, em 1957, da Agência Internacional
res e de suas partes, bem como o histórico da criação de Energia Atômica (AIEA), como uma agência especiali-
dos regimes de não proliferação e da postura brasilei- zada da ONU. O programa “Átomos para a Paz” é impor-
ra frente a eles. Assim, objetiva-se responder se o fluxo tante para este trabalho porque ele marcou o início do
do comércio brasileiro de reatores e das suas partes comércio de materiais nucleares no mundo. Hoje, ape-
foi, historicamente, influenciado pela adesão brasileira sar de o programa ter sido encerrado, a comercializa-
aos regimes internacionais de não proliferação e pelos ção de reatores nucleares e de materiais físseis conti-
principais eventos mundiais. nua a existir. Diferentemente da década de 1950, essa
tecnologia pode ser encontrada hoje em diversos países.
Introdução Assim sendo, tal tema mostra-se relevante para os
The more important responsibility of this Atomic Energy estudos de Relações Internacionais, na medida em que
Agency would be to device methods whereby this fission- toca diretamente na questão de segurança internacio-
able material would be allocated to serve the peaceful nal, já que os reatores nucleares podem ser usados não
pursuits of mankind. Experts would be mobilized to apply somente para a fabricação de energia elétrica e para
atomic energy to the needs of the agriculture, medicine, pesquisa, mas também para o enriquecimento de urâ-
and other peaceful activities. A special purpose would nio necessário para uma arma nuclear. Dessa forma, o
be to provide abundant electrical energy on the power- estudo do comércio de tais produtos mostra-se ponto
starved areas of the world. Thus the contributing pow- importante para os estudos de segurança.
ers world be dedicating some of their strength to serve Os objetivos do presente estudo são, então, analisar
the needs rather than the fears of the world. (EISENHO- o comércio internacional de reatores nucleares e das
WER, 1953, p. 8). suas partes, mais especificamente examinando o histó-
rico do regime de não proliferação, a fim de responder
Essa citação é parte do famoso discurso do presi- a seguinte pergunta da pesquisa: como o regime de não
dente dos EUA Dwight D. Eisenhower perante a Assem- proliferação alterou o comércio de reatores nucleares
bleia Geral das Nações Unidas (AGNU), no dia 8 de dezem- e de partes de reatores entre o Brasil e o resto do mun-

54 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O PROGRAMA
mércio de reatores nucleares e de partes de reatores,
bem como uma análise de tais dados. Na quarta seção
será feito um cruzamento da análise dos dados apre-

‘ÁTOMOS
sentados na segunda seção com o histórico traçado na
primeira seção. Finalmente, apresentaremos algumas
considerações finais.

PARA A PAZ’
MARCOU O INÍCIO DO
Metodologia
Neste trabalho, usamos como principal base de da-
dos o World Integrated Trade System (WITS), uma vez
que ele é administrado por diversas organizações inter-

COMÉRCIO DE MATERIAIS nacionais respeitadas na área de comércio, entre elas


a Organização Mundial do Comércio (OMC). Além disso,
NUCLEARES NO MUNDO para nossa pesquisa, escolhemos utilizar a nomenclatura
do Sistema Harmonizado (SH) revisão 1988/92 por ser
mantida pela Organização Mundial das Alfândegas (WCO,
em inglês) e por possibilitar uma análise histórica desde
1991. Essa nomenclatura de comércio é uma tentativa de
padronizar as trocas comerciais, associando números
para cada tipo de produto. No SH, os produtos são divi-
didos entre 01 e 99, que seriam níveis com pouco deta-
lhamento. Quantos mais dígitos são adicionados, maior o
nível de detalhamento. Assim, em nossas pesquisas, ana-
do? Dessa forma, pretendemos testar a hipótese de que lisamos dados com SH a 6 dígitos para poder tratar de
a venda de reatores nucleares e das suas partes comer- reatores nucleares (SH 840110) e das suas partes (SH
cializados pelo Brasil segue um padrão de acordo com 840140). Não será, portanto, considerado o comércio de
a construção de normas internacionais e dos principais materiais físseis e combustíveis. Além disso, temos co-
eventos mundiais. nhecimento de que existe uma diferenciação entre rea-
Assim, o artigo está dividido da seguinte forma: na tores de potência, para produção de energia elétrica, e
primeira seção será traçado um histórico do regime de reatores de pesquisa. Contudo, a nomenclatura SH – e
não proliferação. Também falaremos brevemente sobre nenhuma das outras nomenclaturas de comércio inter-
o Nuclear Suppliers Group (NSG). A segunda seção tra- nacional consultadas, e.g. SITC, CPC e ISIC – faz tal dis-
tará do posicionamento e das ações tomadas por parte tinção. Desse modo, não é possível que nós a façamos.
do Brasil em relação à questão nuclear enquanto os re- Dado que se trata do comércio entre Brasil e o res-
gimes estão sendo criados. Assim, na primeira e na se- to do mundo, foi opção dos autores limitar a análise en-
gunda seção, serão utilizadas fontes primárias, como o tre o período de 1991 e 2014, já que a criação do MER-
Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América COSUL no primeiro ano representa uma mudança de
Latina, conhecido como Tratado de Tlatelolco, de feve- paradigma para as diretrizes seguidas pelo comércio
reiro de 1967, o Tratado de Não Proliferação de Armas brasileiro. Por fim, é muito importante ressaltar que a
Nucleares (TNP), de 1968, e a Convention on Nuclear área nuclear ainda é considerada como altamente sen-
Safety, de 1994. A terceira seção trará os dados do co- sível para os países, fazendo com que as suas informa-

abril • maio • junho 2016 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ções por vezes sejam sigilosas ou feitas sem alardes. de para uma série de países, por permitir que, utilizan-
A Lei nº 9.112, de 10 de outubro de 1995, regula o co- do-se deles, seja produzida energia elétrica e partícu-
mércio brasileiro de tais materiais, que por ela são con- las para pesquisa.
siderados bens sensíveis. Segundo essa norma jurídica: A energia nuclear é considerada muito vantajosa, na
medida em que é renovável, é considerada como “verde”
§ 1º Consideram-se bens sensíveis os bens de uso duplo – ou seja, não libera gases de efeito estufa –, sua produ-
e os bens de uso na área nuclear, química e biológica: ção não depende de fatores climáticos e libera poucos
II – consideram-se bens de uso duplo os de aplicação resíduos. Nesse sentido, “[o] [c]rescimento da demanda
generalizada, desde que relevantes para aplicação béli- energética e a necessidade do cumprimento do Protocolo
ca; III – consideram-se bens de uso na área nuclear os de Quioto provocaram na última década uma retomada
materiais que contenham elementos de interesse para o mundial do debate sobre as contribuições da tecnologia
desenvolvimento da energia nuclear, bem como as insta- nuclear para a geração de energia” (CARPES, 2006, p.
lações e equipamentos utilizados para o seu desenvolvi- 140). Há, porém, um debate no sentido de suas desvan-
mento ou para as inúmeras aplicações pacíficas da ener- tagens, como a dificuldade em lidar com a questão do
gia nuclear. (BRASIL, 1995). armazenamento do lixo nuclear produzido, seu preço –
mais elevado, se comparado a outras formas de ener-
Desse modo, os SH’s utilizados nesta pesquisa, gia – e o risco de acidentes, como os de Chernobyl, na
840110 e 840140, estão incluídos na categoria mais Ucrânia, em 1986, e em Fukushima, no Japão, em 2011.
ampla de “materiais sensíveis”, de forma a serem regu- No entanto, a complicação maior referente ao co-
lados pela mesma lei. mércio de reatores nucleares e de suas partes não diz
Por fim, em nossa pesquisa, não conseguimos obter respeito ao debate energético, mas sim ao debate com
dados de comércio em determinados anos com relação relação à segurança (security) dos países, já que estes
ao comércio entre o Brasil e o mundo nessa área, por reatores e suas partes podem ser utilizados para outros
conta da sensibilidade do tema. Isso é curioso uma vez fins além de produção de energia elétrica. Um destes fins
que o governo brasileiro possui uma extensa legislação é a produção de urânio altamente enriquecido. Quando
sobre acesso à informação, mas mesmo assim alguns um dos isótopos do urânio, o Urânio-235, é enriqueci-
dados estão indisponíveis e/ou o que é declarado como do a mais de 90%, é possível utilizá-lo para a produção
comercializado pelo país não condiz com o que é decla- de armas nucleares. Essas armas nucleares são con-
rado pelos demais governos. Isso mostra o quão “cin- sideradas uma ameaça à segurança mundial. Por con-
zento” o campo nuclear ainda é para todos os Estados. ta disso, em 1968 foi aberto para assinaturas o Tratado
de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), o qual
Histórico dos regimes de não proliferação entrou em vigor em 1970. (WHEELER, 2002).
Quando falamos de reatores nucleares e de suas Essa data é muito importante, já que os EUA e a
partes, estamos falando de materiais radioativos, ou União Soviética criam esse regime para conter a pro-
seja, de materiais que precisam ser manuseados com liferação de armas nucleares. As duas superpotências
muito cuidado por oferecerem riscos à saúde de quem estavam vivendo o auge da chamada détente, ou dissua-
lida com eles, bem como ao meio ambiente. Porém, mais são nuclear, quando ambos atingiram uma relativa pari-
do que os riscos associados à manipulação de tais ma- dade no número de ogivas nucleares e eles perceberam
teriais, a fabricação e o comércio de reatores nuclea- que precisavam cooperar nesse campo para impedir a
res e suas partes mostra-se um tema ainda mais com- destruição mundial. Na verdade, medidas como essa já
plicado. Tais produtos têm uma importância muito gran- vinham sendo adotadas desde 1963, com a criação do

56 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tratado sobre Proibição Parcial de Testes Nucleares en- cialmente por 11 países. Esse projeto foi o pioneiro em
tre os dois países, o qual depois foi aberto para diver- limitar a corrida armamentista nuclear em uma região
sos signatários. Esse ano também é emblemático já que densamente povoada. (BRASIL, s.d.). Internacionalmente,
no ano anterior as duas potências quase iniciaram uma as duas superpotências perceberam a necessidade de
guerra nuclear por conta da Crise dos Mísseis de Cuba. criar um regime universal que, a princípio, impedisse a
Assim, a possibilidade da destruição mundial e a as- proliferação nuclear. (WHEELER, 2002). Nesse contexto,
censão de novos “polos nucleares”1 elevaram a apreen- o TNP é criado em 1968. Assim, fica evidente a preocu-
são internacional. Em consequência direta disso, foram pação internacional logo no preâmbulo do TNP (1968),
criados regimes internacionais para tentar conter a pro- em que é colocado que:
liferação de armas nucleares. Regionalmente, em 1964,
foi proposta a criação da primeira Zona Livre de Armas Recalling that, in accordance with the Charter of the Uni-
Nucleares, a qual abrangeria toda a América Latina e o ted Nations, States must refrain in their international rela-
Caribe. Esse projeto, proposto pelo Brasil naquele ano tions from the threat or use of force against the territorial
(JESUS, 2012a), mas levado à frente pelo México, deu integrity or political independence of any State, or in any
origem ao Tratado de Tlatelolco em 1967, formado ini- other manner inconsistent with the Purposes of the Uni-
ted Nations, and that the establishment and maintenan-
ce of international peace and security are to be promo-
ted with the least diversion for armaments of the world’s
human and economic resources.

O TNP entra em vigor em 1970 e é sustentado por


três pilares: não proliferação, desarmamento nuclear e
uso pacífico da energia nuclear. Além disso, ele divide os
países em duas categorias: os nuclearmente armados,

a possibi-
que seriam apenas aqueles que já possuíam armas nu-
cleares, ou seja, EUA, URSS, Reino Unido, França e Chi-
na; e os não nuclearmente armados, que seriam todos

lidade da
os outros países. Assim, esse regime trouxe obrigações
e direitos tanto para os países detentores de armas nu-
cleares quanto para aqueles que não as possuíam. As

destruição
ações principais do TNP são descritas por Fonseca (2013,
p. 2-3), da seguinte forma:

mundial
O TNP proíbe os Estados nucleares de transferirem ar-
mas atômicas ou de prestarem assistência para a sua
obtenção. Proíbe, também, aos Estados não nucleares de
receber, desenvolver, produzir ou adquirir armas nucle-

e a ascensão de novos ares e os obriga a assinar, com a Agência Internacional


de Energia Atômica – AIEA (International Atomic Energy
“polos nucleares” elevaram Agency – IAEA) um acordo de salvaguardas sobre insta-
a apreensão internacional lações e materiais nucleares por eles utilizados.

abril • maio • junho 2016 57


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Muito pode ser criticado sobre esses pontos, prin- nuclear, já que, por conta de seus vários aspectos e ele-
cipalmente o segundo pilar, mas temos que apontar que mentos, fechar uma definição para tal ideia é algo extre-
nenhum país dentro do regime do TNP “proliferou” nu- mamente complicado (PTASEKAITE, 2011). Porém, Rasa
clearmente.2 Além disso, o TNP é hoje um dos regimes Ptasekaite (2011, p. 4), nos dá uma definição que, segun-
mais abrangentes que existem, já que inclui todos os paí- do ela, é a mais comumente usada:
ses da AGNU, com exceção de Israel, Paquistão, Índia,
Coreia do Norte e Sudão do Sul. Nuclear safety is commonly defined as the achievement
Depois do TNP, uma série de tratados foram assina- of proper operating conditions, prevention of accidents,
dos entre as duas superpotências nas décadas de 1970 or mitigation of accident consequences, resulting in pro-
e 1980 com o intuito de limitar e reduzir os seus arse- tection of workers, the public and the environment from
nais nucleares. (WHEELER, 2002). Além disso, em 1975, undue radiation hazards. This definition covers the un-
Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido, França, derstanding of nuclear safety as freedom from physi-
Alemanha, Japão e Canadá se reuniram para estabele- cal harm, meaning both acute and latent health effects
cer o Grupo de Supridores Nucleares (NSG, em inglês). from exposure to radiation, as well as unreasonable
Esse Grupo foi criado como uma resposta à explosão nu- risk and environmental damage due to the operation of
clear indiana em 1974 e ao empenho de vários países nuclear facilities.
para tentar dominar o ciclo completo do combustível nu-
clear. (MOURA, 2001, p. 135). Ele ainda existe, contando Além dessa Convenção, a AIEA também ampliou os
atualmente com 49 membros,3 e tem como objetivo es- seus instrumentos de salvaguarda na década de 90, prin-
tabelecer regras básicas para a exportação de reato- cipalmente depois das várias acusações de violação do
res e materiais nucleares para impedir que esses pro- TNP por parte da Coreia do Norte e Iraque. Assim, em
dutos sejam usados novamente para o desenvolvimen- 1997 foi então criado o Protocolo Adicional ao Acordo
to de armas nucleares. de Salvaguardas do TNP, o qual aumenta os poderes de
Porém, com o fim da Guerra Fria no final da década monitoramento dos programas nucleares por parte da
de 1980 e início de 1990, a corrida armamentista foi de- AIEA nos países signatários desse protocolo.
sacelerada, e o mundo se modificou. No âmbito da segu-
rança, novos temas passaram a fazer parte das agen- O Posicionamento Brasileiro
das dos Estados, entre eles a questão da nuclear safe- A política nuclear brasileira data desde a década
ty. Tendo Chernobyl ocorrido em 1986, o debate sobre de 1950, quando, por meio do programa “Átomos para
segurança nuclear começou a crescer na comunidade a Paz” do governo Eisenhower, o Brasil adquiriu seu pri-
internacional. Como resultado, em 1994 foi aberto para meiro reator nuclear. (CNEN, s.d.). A mentalidade da épo-
assinaturas a Convenção sobre Segurança Nuclear, que ca era que dominar a energia nuclear significaria ter
entrou em vigor em 1996. De acordo com o seu Art. 1º, controle sobre a tecnologia mais avançada que existia
inciso II, a Convenção se propõe a “establish and main- e, assim, colocaria o Brasil no mesmo patamar tecno-
tain effective defences in nuclear installations against lógico dos países desenvolvidos. Porém, a ascensão do
potential radiological hazards in order to protect indi- regime militar em 1964, elevou a questão nuclear para
viduals, society and the environment from harmful ef- o âmbito da segurança nacional.
fects of ionizing radiation from such installations safe- Assim, quando o TNP foi proposto, o Brasil recusou-
ty.” (CONVENTION ON NUCLEAR SAFETY, 1994). -se a assiná-lo sob a acusação de que tal regime seria
Não há por parte da Convenção sobre Segurança uma violação da soberania nacional, pois restringiria o
Nuclear uma definição sobre o conceito de segurança programa nuclear brasileiro, o qual era considerado vi-

58 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tal para a segurança e para o desenvolvimento nacional. mente, a formação de uma sociedade civil organizada e
(JESUS, 2012a). Além disso, o tratado também era visto a promulgação da Constituição de 1988, a política ex-
como injusto, pois “desarmava os desarmados”. O pri- terna brasileira precisou de adaptações para poder li-
meiro argumento também foi usado pelo Brasil para não dar com esses novos desafios e atores internacionais e
aderir ao Tratado de Tlatelolco em 1967. É importante nacionais. Assim, a partir do final da década de 1980, o
perceber que essa característica soberanista brasileira governo brasileiro modifica a estratégia de inserção in-
não se aplicou apenas à questão nuclear. Nesse período, o ternacional do país, fazendo com que o país passasse a
país também se recusou a assinar os principais tratados integrar os principais regimes internacionais. O pensa-
sobre meio ambiente e direitos humanos, por exemplo, mento da época, diferentemente do adotado no período
sob o mesmo argumento de que tais regimes limitariam anterior, era que, ao aderir a tais tratados, o Brasil con-
a sua autonomia e soberania. Assim, esse período da po- seguiria se aproximar dos principais atores internacio-
lítica externa brasileira ficou conhecido como busca da nais, melhorando assim a sua imagem internacional e a
“autonomia pela distância”. (FONSECA JR., 1998). sua posição frente às potências. (FONSECA JR., 1998).
Contudo, com o fim da Guerra Fria, o surgimen- Além disso, o país também conseguiria influenciar es-
to de novos polos de poder no mundo, a globalização, a ses fóruns ao colocar a posição e os interesses nacio-
redemocratização brasileira em 1985 e, consequente- nais nas suas pautas de discussão. Essa nova estraté-

A política
nuclear
brasileira
data desde a década de 1950,
quando o Brasil adquiriu seu
primeiro reator nuclear

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

gia brasileira foi então apelidada de busca da “autono- O Brasil tem participado ativamente das Conferências de
mia pela participação”. Exame do TNP e de outros foros multilaterais acerca des-
No caso específico da questão nuclear, certas me- se tema, como a I Comissão da Assembleia Geral das Na-
didas contribuíram para a participação do Brasil nesses ções Unidas e a Conferência do Desarmamento. Nessas
regimes internacionais. Internamente, a Constituição de discussões, o Brasil atua no âmbito da Coalizão da Nova
1988 determina, em seu Art. 21, inciso XXIII, alínea a, que Agenda, integrada por seis países não nuclearmente ar-
“toda atividade nuclear em território nacional somente mados com forte atuação na defesa do desarmamento nu-
será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação clear (Brasil, África do Sul, Egito, Irlanda, México e Nova
do Congresso Nacional”. (BRASIL, 1998). Ao mesmo tem- Zelândia) (BRASIL, s.d.).
po, no plano regional, o Brasil resolveu as suas questões
de caráter estratégico e fronteiriço com a Argentina du- Comércio brasileiro
rante a década de 80, o que permitiu a ambos os países, Segundo dados do WITS, em 2014 os quatro Estados
por meio de um processo de confidence building, iniciar que mais exportaram reatores nucleares, em termos de
uma cooperação na área nuclear, pondo fim à corrida valor total, foram Coreia do Sul (99,1%), Canadá (0,6%),
armamentista entre eles (JESUS, 2012b). Seu ápice está África do Sul (0,1%) e Estados Unidos (0,1%), e, no mesmo
na criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabi- ano, os quatro maiores importadores foram Indonésia
lidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), em (64,6%), Tailândia (8,1%), Serra Leoa (7,5%) e EUA (6,4%).
1991, que tem como principal função monitorar a pro- (Ver Tabela I). Já no mercado de partes de reatores, os
dução nuclear em ambos os países. maiores exportadores em 2014, também em termos de
Como consequência, em 1994, o país assinou e valor total, foram: Japão (19,6%), França (12,5%), Rússia
ratificou o Tratado de Tlatelolco e, em 1998, o mesmo (11,6%) e Coreia do Sul (11,3%). Nesse mesmo ano, os
foi feito para o TNP. Com relação à Convenção sobre maiores importadores foram: China (31,1%), África do
Segurança Nuclear, o Brasil aderiu rapidamente ao Sul (12,1%), Paquistão (9,8%) e EUA (9,2%). (Ver Tabela II).
regime de segurança nuclear em 1997, antes mesmo Por meio desses dados, verificamos que os princi-
dos EUA, que só entraram em 1999. Por fim, o país tam- pais exportadores de reatores nucleares para o Brasil
bém adere ao NSG em 1996. (HERZ; LAGE, 2013). são: Bélgica (27,9%), EUA (25,8%), Reino Unido (18,2%) e
A supracitada Lei nº 9.112, de 10 de outubro de Índia (9,6%). Dessa forma, esses quatro países repre-
1995, não confere apenas uma definição jurídica do ter- sentam, juntos, 81,5% do total das exportações de rea-
mo “materiais sensíveis”, mas também foi responsável tores nucleares do mundo para o Brasil no período en-
pela criação da Comissão Interministerial de Controle tre 1991 e 2014, como podemos ver no Gráfico I. Desses
de Exportação de Bens Sensíveis (Cibes), que regula esse quatro países, EUA, Reino Unido e Índia são reconheci-
comércio sensível. Tal órgão é composto hoje4 pelos Mi- damente detentores de tecnologia e de conhecimento na
nistérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Re- área nuclear. Por outro lado, a configuração da Bélgica
lações Exteriores (MRE), Defesa (MD), Justiça (MJ), Fa- nessa lista não é tão óbvia. Porém, 51% da sua energia
zenda (MF) e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Ex- elétrica é proveniente de fontes nucleares, mostrando
terior (MDIC), de forma que a exportação de tais bens a sua expertise nessa área (WNA, 2015).
está atrelada a uma licença especial, obtida previamen- Nesse mesmo período, de acordo com os dados in-
te, por parte do MCTI. (BRASIL, 2002). formados pelos demais países e retirados do WITS, o
Atualmente, é visto um forte comprometimento do Brasil exportou, em valor, US$ 1,64 bilhão em reatores
Brasil em relação à não proliferação. Segundo o seu Mi- nucleares, dos quais 98,3% foram destinados para Ar-
nistério das Relações Exteriores (MRE): gélia (82%), Indonésia (10,6%), Itália (4,1%) e Paraguai

60 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tabela I

Exportação e Importação Totais de reatores nucleares dos 4 principais países em US$ bilhões
em 2014 e a sua participação no comércio mundial em porcentagem

Exportação Reatores Nucleares Importação Reatores Nucleares

Total Participação Total Participação


(US$ bilhões) (%) (US$ bilhões) (%)

Mundo 60,99 100,0% Mundo 5,67 100,00%


Coreia do Sul 60,41 99,1% Indonésia 3,66 64,6%
Canadá 0,36 0,6% Tailândia 0,46 8,1%
África do Sul 0,05 0,1% Serra Leoa 0,42 7,5%
EUA 0,04 0,1% EUA 0,36 6,4%

Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>.

Tabela II

Exportação e Importação Totais de partes de reatores nucleares dos 4 principais países em US$ bilhões
em 2014 e a sua participação no comércio mundial em porcentagem

Exportação de Partes de Reatores Nucleares Importação de Partes de Reatores Nucleares

Total Participação Total Participação


(US$ bilhões) (%) (US$ bilhões) (%)

Mundo 564,33 100,0% Mundo 437,87 100,0%


Japão 110,37 19,6% China 136,01 31,1%
França 70,57 12,5% África do Sul 52,87 12,1%
Rússia 65,63 11,6% Paquistão 42,92 9,8%
Coreia do Sul 63,82 11,3% EUA 40,08 9,2%

Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>.

(1,6%). (Ver Gráfico II). Essas informações são curiosas vitário em US$ 1,344 milhão. (Ver Gráfico III). A principal
na medida em que elas apontam a preponderância de razão desse pico, foi o grande volume exportado para a
países que não configuram entre os principais parcei- Argélia, como pode ser observado, novamente, no Grá-
ros comerciais, em termos gerais, do Brasil – à exce- fico II. À exceção desse outlier, é importante ressaltar
ção do Paraguai que, por conta do MERCOSUL, acaba que os dados são relativamente constantes e que a sua
tendo um grande fluxo comercial com o país analisado. balança comercial é majoritariamente deficitária para
Em relação à balança comercial brasileira do pe- o comércio de reatores nucleares. No entanto, é impor-
ríodo em análise, relativamente ao comércio de reato- tante observar que nos anos em que o saldo é zero não
res nucleares, é possível perceber a presença de um significa que não houve comércio ou que a importação
outlier no ano de 1996, quando o comércio foi supera- foi igual à exportação, mas que não há dados disponíveis

abril • maio • junho 2016 61


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

para os anos de 1991, 1992, 2000,


Gráfico I
2008, 2012 e 2014. (Ver Gráfico III).
Total dos 4 principais exportadores de reatores nucleares para o Brasil
Ao analisar o comércio de par-
em US$ bilhões (esquerda) e participação percentual (direita) tes de reatores nucleares, por outro
lado, é possível observar que tanto
300 27,9% 30%
os principais parceiros comerciais
25,8% quanto o volume de comércio são
250 25%
diferentes. Desde 1991, o Brasil im-
200 20% portou no total US$ 58,2 bilhões e, só
18,2%
no ano de 2014, o valor foi de US$ 7
150 15% bilhões. Desse total de importações
255,6
236,3 9,6% de partes de reatores nucleares, a
100 10%
166,6 maior parte vem principalmente do
50 5% Japão (33,2%), da Alemanha (27,1%),
88,3
da França (12,1%) e da Áustria (9,4%).
0 0% (Ver Gráfico IV). Vale lembrar que Ja-
Bélgica Estados Unidos Reino Unido Índia
pão e França, em 2014, também fo-
Total exp. em valor Participação percentual ram os principais exportadores des-
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>.
ses materiais para o mundo.
Já do lado das exportações, os
valores são, assim como os de rea-
Gráfico II tores, muito inferiores. Durante a
Total dos 4 principais importadores de reatores nucleares do Brasil série histórica analisada, o Brasil
em US$ milhões (esquerda) e participação percentual (direita) exportou no total US$ 11,8 bilhões.
Desse valor, apenas US$ 152,4 mi-
1.600 90%
82,0%
lhões representam o total exporta-
1.400 80%
do em 2014. Nesse ano, os maiores
70%
1.200 destinos para a venda de partes fo-
60% ram: Alemanha (80,7%), Coreia do Sul
1.000
50% (12,7%), Egito (3,7%) e Espanha (1,9%).
800
1.343,2 40% (Ver Gráfico V). Assim como na ven-
600
30% da de reatores, é interessante notar
400 que nenhum dos outros integrantes
20%
10,6% do MERCOSUL, ou da América do Sul,
200 67,6 10%
4,1% 26,2
173,5 1,6% estão entre os principais destinos
0 0%
Argélia Indonésia Itália Paraguai das partes de reatores brasileiras.
Assim, ao analisar o saldo da ba-
Total imp. em valor Participação percentual
lança comercial brasileira, no caso
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>. de partes de reatores nucleares, é
possível perceber que ela foi defici-
tária em todos os anos desde 1991,

62 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

com exceção de 2001. (Ver Gráfico


Gráfico IIi
VI). Porém, mesmo o volume de co-
Evolução do saldo da balança comercial brasileira em US$ milhões (1991-2014)
mércio sendo menor que o de rea-
tores, há uma maior disponibilidade
1.600 de dados se comparado àqueles do
1.400 comércio dos reatores, sendo 1991
1.344
1.200 o único ano em que não há dados.
1.000 Isso influencia nos valores da balan-
800 ça comercial, que também são maio-
600 res que os anteriores.
400
200
18 0 59 Relação entre o comércio
0 0 0 0 0
0 internacional
-3
- 19 - 4 - 40 - 14 -5 - 52 - 9 - 9 - 37
e os regimes nucleares
— 200 - 97 - 53 - 74 - 82
- 202
- 400 Como visto na primeira seção,
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
o Brasil se inseriu a partir de 1991
nos regimes internacionais de não
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>. proliferação. A partir dos esforços
dos governos Raul Alfonsín (Argen-
tina, 1983-1989) e José Sarney (Bra-
sil, 1985-1990), a questão nuclear
Gráfico IV entre os dois países começou a ser
Total dos 4 principais exportadores de partes de reatores nucleares para resolvida com a Declaração de Igua-
o Brasil em US$ bilhões (esquerda) e participação percentual (direita) çu (1985) com as visitas dos presi-
dentes a instalações nucleares dos
25 35%
33,2%
respectivos países. (JESUS, 2012b).
30% Em 1991, já nos governos dos pre-
20
27,1%
25% sidentes Fernando Collor (Brasil,
1990-1992) e Carlos Menem (Argen-
15 20%
tina, 1989-1999), a cooperação entre
15% os países foi intensificada tanto nos
10 19,3 12,1%
âmbitos econômico e político, com a
15,7 10%
9,4%
criação do MERCOSUL, quanto nu-
5
7,0 5% clear, com a criação da ABACC, am-
5,5
bos em 1991. Com a resolução das
0 0%
Japão Alemanha França Áustria disputas regionais, tanto Brasil quan-
to Argentina, aos poucos, passaram
Total exp. em valor Participação percentual
a integrar os demais regimes inter-
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>. nacionais. Do lado brasileiro, o país
aderiu a Tlatelolco em 1994, ao NSG
em 1996 e ao TNP em 1998.

abril • maio • junho 2016 63


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Já na segunda seção, foi pos-


Gráfico v
sível observar que os principais ex-
Total dos 4 principais importadores de partes de reatores nucleares do Brasil
portadores de reatores nucleares
em US$ milhões (esquerda) e participação percentual (direita) para o Brasil são: Bélgica (27,9%),
EUA (25,8%), Reino Unido (18,2%) e
10.000 90%
80,7% Índia (9,6%). As vendas brasileiras,
9.000 80% por outro lado, tiveram como princi-
8.000 70% pais destinos Argélia (82%), Indoné-
7.000 sia (10,6%), Itália (4,1%) e Paraguai
60%
6.000 (1,6%). (Ver Gráfico II). Dessa forma,
50%
5.000 nota-se que a balança comercial do
9.506,0 40%
4.000 país, à exceção de um outlier no ano
30%
3.000 de 1996, manteve-se relativamente
2.000 12,7% 20%
constante, na maioria do período em
1.000 430,6 3,7% 10% seu quadrante deficitário. Com rela-
1.497,3 224,8 1,9%
0 0% ção ao comércio de partes de rea-
Alemanha Coreia do Sul Egito Espanha
tores, o Brasil importou principal-
Total imp. em valor Participação percentual mente do Japão (33,2%), da Alema-
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>.
nha (27,1%), da França (12,1%) e da
Áustria (9,4%). Enquanto que as ex-
portações brasileiras foram princi-
palmente para Alemanha (80,7%), Co-
reia do Sul (12,7%), Egito (3,7%) e Es-
Gráfico VI
panha (1,9%). Nesse caso, a balança
Evolução do saldo da balança comercial brasileira em US$ milhões (1991-2014) comercial brasileira foi, desde 1991,
deficitária, com exceção de 2001.
10.000
8.870,7 Assim, a partir dos dados e do
5.000
histórico apresentados, é possível
inferir que a entrada do Brasil em
0,0 - 23,3 - 45,4 - 50,3 - 122,7 - 299,2 - 71,1 - 580,7
0 - 2.025,4 - 1.200,3 diversos regimes de comércio de
- 139,4 - 601,4
- 181,8 - 1.506,8 - 1.204,0 reatores nucleares criou confian-
- 2.766,2 - 5.226,1
- 5.000 - 2.945,6 - 2.354,5
ça da comunidade internacional no
- 7.876,3 - 6.891,2 país analisado. Com isso, notamos
- 10.000
- 8.932,1
- 10.206,5 que até 1994, com a ratificação de
- 15.000 Tlatelolco, o comércio do Brasil de
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014

reatores nucleares e das suas par-


tes era consideravelmente baixo. Em
Fonte: Elaboração própria, com base em WITS, <http://wits.worldbank.org/>.
1995, o país apresentou um déficit
de US$ 40 milhões em reatores, va-
lor maior que os quatro anos ante-
riores somados, e de US$ 7,9 bilhões

64 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

em partes de reatores, valor também superior à soma cativa de sua matriz energética tanto de um único país
dos anos anteriores. Ao mesmo tempo, a adesão brasi- como da necessidade de precisar transportar uma por-
leira ao Grupo de Supridores Nucleares pode ter indu- centagem tão alta desses recursos quase que por todo
zido a um aumento do seu fluxo comercial, tendo leva- o território europeu, então o país investiu em alternati-
do à formação do outlier em 1996 na balança de reato- vas energéticas ao longo do tempo. Em 2001, tal inves-
res e à crescente importação de partes de reatores a timento era direcionado fortemente para a energia nu-
partir desse ano, que teve 1998 como ano que o Brasil clear, o que refletiu na balança comercial positiva bra-
mais importou até 2002. sileira desse ano.
Tanto 1997 quanto 1998 foram anos de déficit na Porém, esse superávit foi transformado em um dé-
Balança Comercial em reatores e nas suas partes, isso ficit de US$ 2,9 bilhões no ano seguinte, e, bem como as
segue a mesma lógica de 1995. O Brasil, que já era con- vendas de reatores, as vendas de partes de reatores
siderado um país confiável internacionalmente por par- apresentaram sucessivos déficits nos anos subsequen-
ticipar de uma série de regimes de não proliferação e tes. Atribuímos tais dados a um aumento dos investimen-
por desejar desenvolver a sua indústria e infraestrutu- tos feitos em ciência e tecnologia (C&T), devido ao fato
ra, voltou a importar em grande escala reatores nuclea- de que o Brasil, a partir dos anos Lula, passa a seguir a
res e partes, chegando a um déficit de US$ 97 milhões de ideia de que a detenção de conhecimento figura como
reatores e US$ 2 bilhões em partes de reatores em 1997. fonte de poder estrutural, de forma que a posição inter-
Já em 1999, o país volta a exportar reatores. É possível nacional do país passa a ser valorizada. Assim, o inves-
afirmar que isso ocorreu por o Brasil ter entrado para timento em C&T passa pelo investimento em tecnologia
o maior regime de não proliferação, o TNP, no ano ante- nuclear como fonte alternativa de energia, visando su-
rior. A consequência desse ato foi um crescimento mo- prir a cada vez maior demanda por energia. (CARPES,
mentâneo das exportações. Assim, a decisão brasileira 2006, p. 213-214).
de aderir aos tratados internacionais teve um possível A ênfase dada ao setor de ciência, tecnologia e in-
impacto no fluxo de comércio de reatores nucleares do formação são reflexos do objetivo de redução da depen-
país. Já no ano de 2002, pode-se perceber um aumento dência externa do país no setor. Assim, a ideia é tornar
nas vendas de reatores nucleares por parte do Brasil – o setor de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) do Bra-
a balança comercial foi de um déficit de 14 milhões de sil competitivo internacionalmente. O investimento nes-
dólares em 2001 para um superávit de 59 milhões em se setor para atingir tal objetivo é justificado pelo fato
2002 –, com reversão dessa situação a partir do ano de que, historicamente, as nações com maior poder de
seguinte, voltando a apresentar déficits, uma tendência liderança internacional foram as que ofereceram inova-
que foi mantida, ainda que suscetível a variações, até o ções no setor de CT&I, dado que essas foram convertidas
final da série histórica analisada. Já em relação às par- em vantagens competitivas econômicas – que, por sua
tes de reatores, estas apresentaram em 2001 um su- vez, foram convertidas em poder político. Dessa forma,
perávit de US$ 8,9 bilhões. mais do que mero investimento na área, o governo Lula
Esses números superavitários são reflexos do co- transformou esse objetivo em política de Estado – não
mércio com a Alemanha e podem ser explicados pelo de governo – na forma da Política Nacional de Ciência,
alto investimento que esse país fez, ao longo do tempo, Tecnologia e Inovação (PNCT&I). (CARPES, 2006).
em energia nuclear. Isso acontece porque cerca de um Dessa forma, foi criado pela Comissão Nacional de
terço do petróleo e gás consumidos na Alemanha são Energia Nuclear (CNEN) o Programa Nacional de Ativi-
provenientes da Rússia (NYT, 2014; IEA, 2012), de forma dades Nucleares (PNAN), que está inserido no escopo
que a Alemanha quer evitar a dependência tão signifi- dos Objetivos Estratégicos Nacionais. O PNAN engloba

abril • maio • junho 2016 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

os investi-
[...] [e]m conjunto, os aspectos observados demonstram
o interesse do governo em criar uma estrutura de sus-
tentação para um projeto nacional de desenvolvimento

mentos na
econômico sustentável que se converta no “carro abre-
-alas” do país no sistema internacional. Para tanto, o foco
dos investimentos esteve na qualificação de mão de obra,
projetos estratégicos, programas que transformam C&T

agenda em agenda para a inclusão social, e articulações com o


setor privado para a inovação e qualificação da produ-
ção nacional. (CARPES, 2006, p. 128-129).

nuclear A partir desse programa federal, as importações


tanto de reatores quanto das suas partes foram relati-

brasileira
vamente constantes. Porém, a compra de partes de rea-
tores nucleares cresceu muito em 2010, 2012 e 2014.
É possível atribuir ao Programa de Desenvolvimento de
Submarinos (PROSUB) do Estado brasileiro esse aumen-
aumentaram to repentino. Esse programa iniciou oficialmente com a
assinatura de um acordo com a França em 2008 para
substancialmente, saltando a construção de cinco submarinos, sendo quatro con-
de R$ 417 milhões em 2002, vencionais e um com propulsão nuclear com transferên-
para R$ 511 milhões em 2006 cia de tecnologia, à exceção do reator nuclear que será
utilizado pelo submarino, o qual será totalmente produ-
zido com tecnologia brasileira. (CAPOZZOLI, 2013). Po-
rém, foi apenas em 2010 que parte do orçamento para
a construção dos submarinos foi liberado pela França
(MB, s.d.), o que explica o boom na compra de partes de
reatores para abastecer o submarino. O PROSUB possui
o mesmo objetivo que o PNCT&I, desenvolver a tecnolo-
gia nacional como forma de desenvolver o país.
boa parte das atividades brasileiras que dizem respeito
à área nuclear, tendo por objetivos principais “garantir Considerações Finais
o uso seguro e pacífico da energia nuclear, desenvolver A energia nuclear é conhecida por ser utilizada na
tecnologia nuclear e correlatas para a medicina, indús- produção de armas nucleares, ou seja, é reconhecida
tria, agricultura e meio ambiente e geração de energia pelo perigo que oferece à segurança do mundo. Assim,
elétrica e atender ao mercado de equipamentos, com- possuí-la é uma forma de aumentar o poder relativo de
ponentes e insumos para indústria nuclear e de alta tec- uma nação, valorizando sua posição geopolítica. No entan-
nologia”. (CNEN, 2007, p. 7). Assim, os investimentos na to, não é só de questões de segurança que vive a energia
agenda nuclear brasileira aumentaram substancialmen- nuclear: esse tipo de energia é uma alternativa susten-
te, saltando de R$ 417 milhões em 2002, para R$ 511 mi- tável para a produção de energia elétrica, o que é muito
lhões em 2006 (CARPES, 2006, p. 130). Assim, interessante em tempos de mudanças climáticas tão se-

66 Bomba
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

veras – e de previsões ainda mais pessimistas para o fu- do mundo, é possível afirmar que foi corroborada a hi-
turo. Porém, ainda existem certas controvérsias, como é pótese de que a venda de reatores nucleares e das suas
o caso do risco de acidentes nucleares severos, como os partes comercializados pelo Brasil segue um padrão de
vistos em Chernobyl, em 1986, e em Fukushima, em 2011. acordo com a construção de normas internacionais das
Dessa forma, o estudo do comércio de reatores nuclea- políticas nacionais. Tal afirmação pode ser feita a par-
res e de suas partes mostra-se relevante. tir do que foi apresentado na quarta seção. Nesta, vimos
Ao longo do presente artigo, foi traçado um histó- que o comércio de reatores nucleares e de suas partes
rico dos regimes de não proliferação, em que vimos os entre o Brasil e o resto do mundo passou a ser signifi-
princípios, objetivos e consequências de ambos os re- cativo a partir de 1995, ano subsequente ao da adesão
gimes. Além disso, vimos sua aplicação no Brasil, bem do país do Tratado de Tlatelolco. De forma similar, a en-
como as medidas tomadas pelo país, tanto em termos de trada do Brasil no Grupo de Supridores Nucleares coin-
legislação interna, visando à não proliferação e à garan- cide com o registro de um pico na balança comercial de
tia dos objetivos pacíficos do programa nuclear brasi- reatores, do outlier, em 1996, e da crescente importa-
leiro, quanto em termos de tratados regionais, como o ção de partes de reatores a partir desse mesmo ano. Já
Tratado de Tlatelolco. Em seguida, foram apresentados o crescimento do número de exportações de reatores
os dados do comércio de reatores nucleares e de suas em 1999 concorda com a adesão, no ano anterior, do
partes entre o Brasil e o restante do mundo, em que vi- país ao TNP. Nos anos a partir de 2002, ou seja, a par-
mos os principais parceiros comerciais do Brasil no se- tir do governo Lula, são registrados déficits na balança
tor, e onde percebemos que, na maior parte do tempo comercial, os quais podem ser atribuído ao crescimen-
e quando os dados estavam disponíveis, a balança co- to do investimento que foi feito a partir desse governo
mercial do país manteve-se deficitária. Finalmente, na na área de CT&I. Seu objetivo era a transformação do
quarta seção houve o cruzamento dos dados do comér- poder econômico em projeção internacional, de forma
cio entre o Brasil e o resto do mundo e o histórico dos que tal investimento foi transformado em política de Es-
tratados da área nuclear. tado, na forma do PNCT&I e do PROSUB.
Dessa forma, após análise do histórico dos trata-
dos da área nuclear e dos dados do comércio de reato- julia@zordan.com.br
res nucleares e de suas partes entre o Brasil e o resto sasjordao@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. China detona sua primeira bomba em 1964, e Índia e África do Sul 3. Atualmente, os países que compõem o Grupo são: África do Sul, Ale-
o fazem na década de 1970. manha, Argentina, Austrália, Áustria, Belarus, Bélgica, Brasil, Bulgá-
ria, Canadá, Cazaquistão, China, Chipre, Coreia do Sul, Croácia, Dina-
2. Coreia do Norte denunciou o Tratado em 2003; Israel, Índia e Pa- marca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, EUA, Finlândia, Fran-
quistão nunca fizeram parte do regime; a África do Sul desmantelou o ça, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Letônia, Lituânia,
seu programa com o fim do governo do apartheid e depois entrou no Luxemburgo, Malta, México, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos,
TNP; e Ucrânia, Cazaquistão e Belarus, que possuíam armamento nu- Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Romênia, Rússia,
clear em seu território do período soviético, concordaram em trans- Sérvia, Suécia, Suíça, Turquia e Ucrânia.
ferir tal material bélico para a Rússia em 1992, quando os três países
e Moscou assinaram o Protocolo de Lisboa (com a ajuda dos EUA), e 4. Já que o Decreto nº 4.214, de 30 de abril de 2002, regulou a sua
então aderiram ao regime de não proliferação. composição.

abril • maio • junho 2016 67


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68 Bomba
junto
é bem
melhor.
Acreditamos no poder da interação.
Sabemos que as trocas geram mudanças
positivas que nos motivam, levam mais
longe e fazem bem. É por isso que a gente
se dedica tanto a ampliar as possibilidades
de conexão entre as pessoas. Porque coisas
incríveis acontecem quando a gente interage.

oi.com.br
a lira
obscena
marcus
fabiano
Advogado

70 Sátiro
O CRÍTICO
DE ARTE
aplausos eram – ele dizia OS NOVOS
BROQUÉIS
uma sagração pelo construtivo
dos eletrônicos, os mais antigos
transístores sobre biscoitos finos
afanados entre os mais molambos dito um certo oblíquo
de um esperto Malaquias de requintes despojado
habilidoso paneleiro sem as maneiras finas
e fabricante de virtuoses do nu e do calvo
pela fala doce mais verbosa libidinoso e dissoluto
feito um fauno
(a trapeira do seu parangoléxico ou antes mesmo um tarado
ali lhe conferia ares de graça que se apresenta inconveniente
de profeta vaticinando que (de pau duro & pelado)
em sua memória uma mortidão que atinge de través
de grãfinos impronunciáveis como a cilada inevitável
envergaria black ties obrigatórios que não é de quina perfeita
ao som de diáfanas taças tchecas como o canto do esquadro
e obscuras teorias francesas) que chega bicudo e hostil
como o cotovelo do gaiato
no equinócio de um ano sabático que alvoroça e aterroriza
aquela anunciação dos nervos a sentinela em sobressalto
crispava o seu cenho porejado: que brandindo seu escudo
ele era tramas, todo dedos enfim revida o atentado
delicadíssimo e multicerticado
nos mais mínimos milímetros mas não um escudo muro
de que desacordos não feririam dos de imenso anteparo
sua alteza o presidente e sim um bem pequeno
do alto patronato da míngua a bem dizer discoide ou ovalado
(um tipo Calígula de Quintino) um escudo então redondo
faraó das cifras e alíquotas (sem as coberturas do biombo)
o grão mecenas da lavanderia que para se exprimir corretamente
que mascando seu charuto remove o pó da palavra broquel
suspirava por putinhas. – a mesma dos Broquéis de Cruz e Sousa:
um escudo ágil e de estreita loisa
que traz no centro de sua calota
uma ponta muito aguda
(por isso dita broca?)
recurso derradeiro de quem
surpreendido sem seu gládio
conserva na própria defesa
o rechaço do adversário.

O autor é professor de Hermenêutica da UFF


marcusfabiano@terra.com.br

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Jean Béraud,
The Proposition,
1885

Gustave Boulanger,
Phryne, 1850

Annonymous,
Brothel Scenes,
1910

72 Por amor ou por dinheiro


Charles Baudelaire

Sífilis, absinto e visco corpóreo escor-


rem de pinturas e fotogramas na exposição
“Esplendores e misérias - Imagens da prosti-
tuição, 1850-1910”, em realização no Museu
Van Gogh de Amsterdã.
A imensa galeria de desejos lúbricos re-
tratados em centenas de obras nos impele
para os bordéis e as prostitutas que inunda-
vam a Paris do século XIX e serviam de inspi-
ração para os artistas da Belle Époque.
“Paris é uma puta”, já dizia Henry Miller.
E a arte, uma transgressão devassa.
Insight Inteligência convida os leitores para
um breve passeio entre meretrizes e ambien-
tes que recendem a lascívia.
Conforme os dizeres de Toulouse-Lautrec,
la prostitution est une bougie demon ne sort.

Walter Richard Sickert, Reclining Nude, 1906

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Virginia Oldoini,
Countess Verasis
de Castiglione and
Pierre-Louis Pierson,
One Sunday, 1861

Jean Béraud, The Brasserie, 1882

74 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Edvard Munch, The Fat


Whore, 1899

Félicien Rops, For Sale,


1880-90

Annonymous,
Brothel Scenes,
1910

Henri de Toulouse-Lautrec,
Poor Streetwalker, 1893

abril • maio • junho 2016 75


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Félicien Rops,
La Toilette, 1878

Félicien Rops, The Review


Committee, 1879

Jean-Louis Forain,
Les Satisfaits, 1891

76 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Register. Austine Guy,


Known as Débureau

Henri de Toulouse-Lautrec, In the Bed, 1892

abril • maio • junho 2016 77


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Félicien Rops, The Perineal


Shower, 1878

Henri-Gabriel Ibels,
Le 27, 1893

78 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Pablo Picasso,
Erotic Scenes,
1902

Léopold Reutlinger,
The Beautiful Otero

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Jan Sluijters, Women Kissing,


1906

Maurice de Vlaminck,
At the Bar, 1900

80 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Henri de Toulouse-Lautrec,
At Saint-Lazare, 1886

Henri de Toulouse-Lautrec,
The Sofa, 1894

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Vincent Van Vogh,


Study for Reclining
Female Nude, 1887

Annonymous,
Brothel Scenes,
1910

Louis Legrand, The Sucker


for Salons

82 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Theóphile Alexandre
Steinlen, At Saint-Lazare,
1891

Félicien Rops, The Sailor’s


Den, 1875

Louis Legrand, The Apache’s


Supper, 1904

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Giovanni Boldini,
Crossing the Street,
1873

Register of Kept Women,


Blanche d’Antigny, 1873

Annonymous, Brothel
Scenes, 1910

84 Por amor ou por dinheiro


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

James Tissot, The Stop Girl, 1883

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O deus ambíguo de

Mordecai
Kaplan
Fernando Cardoso Cotelo
Advogado

A
página oficial do Reconstructionist Rabini- tência de Deus com a modernidade já foi tornado ope-
cal College, situado em Wincote, Pensylva- racional.
nia, nos Estados Unidos, indica, em sua se- Originado a partir de uma facção radical de esquer-
ção de temas educacionais, um texto cha- da dentro do Movimento Conservador liderada pelo ra-
mado Quem é um judeu reconstrucionista?1 bino e filósofo Mordecai Kaplan, o Movimento Recons-
Esse texto, uma espécie de declaração de origens trucionista desenvolveu-se do final da década de 1920
e intenções do Movimento Reconstrucionista, expõe em até a década de 1940 e estabeleceu um colégio rabínico
poucas palavras o que o judeu reconstrucionista tem de em 1968. Kaplan nunca desejou que sua doutrina des-
diferente dos outros judeus, situa-o dentro de sua co- se origem a uma nova denominação dentro do judaís-
munidade e mostra a relação de sua comunidade com o mo liberal, sempre advogando a favor de sua perma-
judaísmo e com o mundo. Também é uma espécie de ca- nência como uma ala “à esquerda” dentro do Movimen-
tálogo de consulta rápida para questões contenciosas to Conservador. Os Reconstrucionistas acreditam que
nas várias dimensões da civilização judaica. as visões teísticas tradicionais são incompatíveis com o
É doutrinário, mas, de forma alguma, apologético. E pensamento moderno e propõem como substituto uma
nem precisava ser, pois o projeto de viabilizar a coexis- concepção naturalística.2 A Halacha3 não é considera-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da vinculante, mas é tratada como uma herança cultu- te-americano conhecida por Movimento Reconstrucio-
ral valiosa que deve ser mantida a não ser que haja uma nista. Além dessa seção biográfica, o texto explora com
boa razão para o contrário, por exemplo, quando a tra- maior atenção o método reconstrucionista e sua rela-
dição entra em conflito com os padrões éticos contem- ção com o pragmatismo norte-americano clássico de-
porâneos. O movimento enfatiza uma visão positiva em senvolvido nas primeiras décadas do século 20.
relação à modernidade e considera que o costume reli-
gioso deve ser subordinado à autonomia pessoal. Uma breve biografia de Mordecai Kaplan
Mordecai Kaplan foi um dos mais importantes pen- Esta biografia é baseada num ensaio de Mel Scult4
sadores do judaísmo moderno. Seus interesses intelec- (Goldsmith e Scult, 1991): Mordecai Kaplan teve uma lon-
tuais eram muito variados, e ele escreveu sobre uma ga vida de 102 anos. Nasceu em 11 de junho de 1881 em
gama extensa de assuntos. Sua vida se confunde com um vilarejo nos arredores de Vilna, na Lituânia, em uma
a própria história do surgimento do movimento que se família tradicional de judeus ortodoxos mitnagdim (não
tornou a denominação dentro do judaísmo liberal nor- chassídicos),5 tendo como pai o rabino Israel Kaplan. Em

114
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

1888 o rabino Israel foi chamado para servir em uma Ao longo dos anos, seu discurso foi-se tornando cada
corte rabínica em Nova York e por lá ficou, trazendo toda vez mais radical em relação à necessidade de acomodar
a família no ano de 1889 para o Lower East Side. lado a lado religião e modernidade. Entre 1915 e 1916
Mordecai, durante sua infância e adolescência, re- escreveu artigos no The Menorah Journal em que dizia
cebeu do próprio pai uma educação judaica tradicional, que as religiões em geral e o judaísmo em particular de-
estudando o talmude e outros textos rabínicos, bem como veriam ser analisadas do ponto de vista das novas ciên-
frequentando uma yeshiva. Segundo consta, o rabino cias sociais, especialmente a sociologia.
Israel Kaplan era muito tolerante e estimulava discus- Numa época em que o povo judeu passava por um
sões que transcendiam o pensamento tradicional orto- momento de baixa autoestima e os judeus estavam se
doxo, como as obras de Arnold Ehrlich, um dos primei- tornando cada vez mais seculares, Kaplan acreditava
ros a expor o estudo crítico da bíblia e os problemas le- firmemente na causa sionista e achava que o judaísmo
vantados pelo estudo científico da bíblia. não poderia sobreviver se fosse percebido apenas como
um conjunto de crenças. Em vez disso, o judaísmo tinha

P
ouco antes de seu bar mitzvah, foi admitido que ser entendido como a “energia vital” do povo judeu.
no Jewish Theological Seminary (JTS), o prin- Quando ele teve a oportunidade de trabalhar com
cipal centro de estudos do Judaísmo Conser- o Young Men’s Hebrew Association (YMHA), um equiva-
vador nos Estados Unidos. O currículo do JTS lente judaico do YMCA, percebeu que algo novo tinha
era bem diferente do currículo regular de uma yeshiva, que ser feito para que o sentimento judaico e o desejo
com cadeiras em história do judaísmo, livros da bíblia, de uma vida comunitária fizessem sentido na América
gramática do hebraico, arqueologia, talmude e filosofia moderna. Uma dimensão religiosa teria que ser introdu-
medieval judaica. Os professores de Kaplan, ainda que zida nas atividades esportivas, teatrais e artísticas, que
muito observantes, eram todos bem versados em edu- tanto interessavam aos jovens do YMHA.
cação secular. A oportunidade surgiu quando, em 1915, uma co-
Ao mesmo tempo em que Kaplan estudava no JTS, munidade do Upper West Side resolveu criar uma sina-
cursava sua graduação no City College of New York, onde goga que, além de funções religiosas também seria um
estudou um currículo clássico. Ele terminou sua gra- centro de atividades esportivas e artísticas: o Jewish
duação no ano 1900 e logo em seguida entrou no mes- Center; e pediu sua colaboração.
trado em Columbia, onde cursou filosofia e sociologia. Kaplan determinou que seu salário fosse doado in-
Nessa época o Departamento de Filosofia de Columbia tegralmente ao Teacher’s Institute para que pudesse
era bastante influenciado pelos filósofos pragmatistas seguir sua orientação liberal sem pressões da direto-
William James e John Dewey. Como veremos, o pragma- ria do Jewish Center. Ele ficou lá até 1921.
tismo norte-americano clássico é uma influência funda- Ao longo da década de 1920, Kaplan criou condições
mental do sistema filosófico-religioso de Kaplan. para reunir rabinos favoráveis às suas ideias na Socie-
Durante seu tempo em Columbia, serviu na comu- ty for Jewish Renascence, cujo objetivo era:
nidade Kehilat Jerushun, uma das comunidades ortodo-
xas mais importantes de Nova York. Ele obteve sua gra- interpretar, nos termos do pensamento contemporâneo,
duação no JTS em 1902, na época em que o seminário os conceitos do judaísmo e o conteúdo da literatura judai-
passou a ser dirigido por Salomon Schechter, que gos- ca com status de autoridade. Para revitalizar as práticas
tava dele e o convidou para ser o diretor do recém-cria- judaicas tradicionais, dentro e fora da sinagoga. Para fa-
do Teacher’s Institute, do qual se manteve à frente até zer delas a expressão da experiência espiritual do nosso
sua aposentadoria na década de 40. povo no presente (...).6

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A partir dessa época, Kaplan passou a expor suas de Pesach e, em 1945, um novo Siddur, nos quais sua
ideias mais controversas. Em um artigo em The Meno- principal preocupação era a de reconstruir as rezas e
rah Journal chamado A Program for the Reconstruction fórmulas tradicionais de modo a substituir elementos
of Judaism,7 escreve: que fizessem referência a, entre outros, distinções en-
tre homens e mulheres e à “eleição de Israel”. Por exem-
Nada pode ser mais repugnante para o pensamento do plo, em seus livros de oração foram retiradas da lingua-
homem contemporâneo do que a doutrina fundamental gem do kiddush referências à eleição (chosenness – na
da Ortodoxia, que é a tradição ser infalível (...)”. terminologia de Kaplan).
Em nossos dias de “bíblias da mulher” podemos não
O artigo dizia que a única forma de revitalizar o ju- nos dar conta de como essas atitudes representaram um
daísmo era dispensar ideias mitológicas sobre Deus, choque na comunidade judaica americana. A União dos
criar um código dinâmico que seria um guia para o com- Rabinos Ortodoxos dos Estados Unidos e sua irmã Cana-
portamento judaico e estabelecer um centro para a cul- dense expediram conjuntamente em junho de 1945 um
tura judaica na Terra de Israel. Cherem, análogo judaico à bula de excomunhão papal,
A partir daí, alguns dos membros mais tradicionais contra Kaplan. Durante a cerimônia, os rabinos queima-
do Jewish Center retiraram seu apoio a Kaplan. Junta- ram! exemplares de sua Haggadah e Siddur.
mente com uma parcela da comunidade, Kaplan deixou

O
o Jewish Center e fundou um novo grupo chamado So- pensamento de Kaplan evoluiu sempre ao
ciety for the Advancement of Judaism, onde encontrou longo de sua vida. Ele publicou suas obras
terreno livre para desenvolver suas ideias. Em 1922 ele clássicas já em idade madura e foi um pen-
celebrou o primeiro bat mitzvah da história, para sua fi- sador e escritor ativo e interessado em to-
lha Judith. dos os aspectos do judaísmo, em especial sua relação
Hoje em dia, entre os judeus liberais, o bat mitzvah com a cultura secular e sua condição de minoria entre
é prática incentivada. Naquela época a maioria das co- os povos. Seu último livro foi publicado em 1973, com 92
munidades não estava preparada para aceitar uma sé- anos, e ele ainda viveria mais 10.
rie de inovações que ele propunha. A ideia centrava-se O Movimento Reconstrucionista só se tornou uma
em seu desejo de deixar de lado formas que considera- denominação independente no final da década de 1960,
va incompatíveis com a modernidade. Kaplan já queria, quando em 1968 o Reconstructionist Rabinical College
por exemplo, proporcionar igualdade total entre homens foi fundado, depois de muito esforço de seu primeiro
e mulheres no serviço religioso. presidente, Ira Eisenstein. Eisenstein tinha uma relação
Durante a década de 1920 foi muito ativo tanto como íntima com Kaplan; foi seu genro e o mais leal discípu-
estudioso acadêmico quanto como rabino. Mas foi só lo, mas, apesar de sua lealdade ao sogro e contra sua
na década de 1930, com 53 anos de idade, que Kaplan orientação, nunca ocultou seu desejo de que o movimen-
publicou suas obras clássicas que até hoje funcionam to tivesse uma identidade distinta e separada.
como textos centrais para o Movimento Reconstrucio-
nista: Judaism as Civilization, de 1934; e The Meaning Método reconstrucionista
of God in Modern Jewish Religion, de 1937. Kaplan concebia o judaísmo como “civilização reli-
Em 1941, por acreditar que as orações tradicio- giosa em permanente evolução” (Kaplan, 1934, cap. 14).
nais não refletiam as preocupações mais profundas dos Para ele, a religião judaica é o núcleo dessa civilização
judeus modernos, Kaplan, junto com os rabinos Ira Ei- e, durante as primeiras décadas do século 20, queria
senstein e Eugene Kohn, publicou uma nova Haggadah trazer de volta para a prática religiosa a grande maio-

116 shalon
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ria de judeus americanos que se tinham secularizado. que de outra forma poderiam ser intermináveis”.10 A es-
Como “manter a continuidade da religião judaica em um sência do método é:11
mundo em transformação”8 se “a religião judaica tradi-
cional pertence a um universo de discurso diferente da- Nesses casos [de disputas intermináveis] o método prag-
quele do homem moderno.”9 mático consiste em procurar interpretar cada noção vis-
Kaplan sofreu uma profunda influência daquilo que lumbrando suas respectivas consequências práticas. Que
de mais interessante se produzia nos meios acadêmicos diferença prática faria para qualquer pessoa se tal noção,
seculares americanos em termos de pensamento filosó- e não alguma outra, fosse verdadeira? Se nenhuma dife-
fico original, o pragmatismo americano de Charles Peir- rença prática pode ser vislumbrada, então as alternati-
ce, William James e John Dewey. De acordo com James, vas significam praticamente a mesma coisa, e a disputa
o método pragmático “é primariamente um método para é inócua. Sempre que uma disputa é séria, devemos ser
apaziguar disputas metafísicas [como se o mundo é um capazes de mostrar alguma diferença prática que segue
ou muitos, livre ou predestinado, material ou espiritual] do fato de uma posição ou outra ser verdadeira.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Dessa forma, o método reconstrucionista de Ka- era utilizado para negar a permissão para cultuar em
plan é uma tentativa de reinterpretar o significado do santuários locais, em sintonia com a teocracia dos sa-
discurso, dos símbolos e elementos sagrados do judaís- cerdotes do templo. Essa evolução do significado é feita
mo a fim de esvaziar debates metafísicos que, segundo a partir do que Kaplan chama de transvaluação.
seu entendimento, afastavam os judeus americanos da
religião e das práticas religiosas. Para que fosse possí- A transvaluação consiste em imputar significados ao con-
vel manter uma continuidade da civilização judaica no teúdo tradicional de uma religião ou herança social que
mundo moderno, com a religião judaica em seu núcleo, não poderia ter sido contemplada nem implicada pelos
era necessário buscar uma nova “concepção de Deus” autores desse conteúdo. (...) Os estudiosos e sábios de
(God idea) que fosse compatível com uma percepção da um período posterior não hesitaram em ler suas pró-
realidade mais científica do que aquela baseada na au- prias crenças e aspirações nos escritos de estudiosos e
toridade da tradição. sábios de outro período. Tanto o sentido de continuidade

C
nacional como a fé na origem divina da tradição religio-
omo se busca uma “nova concepção de Deus”? sa faziam a transvaluação ser perfeitamente plausível.13
O ponto de partida é o reconhecimento de
que a civilização judaica não é estática, e Ao longo da transformação do judaísmo bíblico em
sua relação com Deus tampouco pode sê- judaísmo rabínico, registra-se a ocorrência de trans-
-lo. Kaplan cria uma tipologia da evolução das religiões valuação no período em que, durante a segunda Com-
— que ele aplica ao judaísmo, mas poderia servir para monwealth, a religião teocrática se transformou em uma
a análise de qualquer tradição religiosa. religião baseada na noção de “outro mundo” ou olam haba,
Um exemplo de aplicação desse método para o en- O que observamos é uma transvaluação necessá-
tendimento da evolução do significado das escrituras sa- ria para que a religião se adaptasse a um novo padrão
gradas é o seguinte: durante a primeira Commonweal- ético sem abrir mão da autoridade do texto sagrado. Ve-
th, a religião judaica era henoteísta, tinha devoção por jamos a versão bíblica da chamada “Regra de Talião” em
apenas um deus e ao mesmo tempo aceitava a existên- Êxodo 21:22 – 25:
cia ou a possibilidade da existência de outros deuses. A
partir daí, a religião se transformou em uma religião mo- Quando homens brigarem e ferirem uma mulher grávi-
noteísta, com uma concepção universalista de Deus e a da, e se saírem suas crianças e não houver desastre (de
consequência de se tornar teocrática, durante o perío- morte na mulher) – (o culpado) será multado se o marido
do da segunda Commonwealth. Kaplan dá um exemplo da mulher lhe reclamar, e pagará (pelo) aborto como os
de como a exegese das Escrituras evolui. juízes determinarem. Mas se houver desastre (de mor-
Em Êxodo12 20:21 lê-se: te na mulher) – darás (indenização de) alma por alma,
olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,
Um altar de terra farás para mim e sacrificarás sobre ele queimadura por queimadura, ferida por ferida, contu-
tuas ofertas de elevação e tuas ofertas de paz, teu reba- são por contusão.
nho e teu gado. Em todo lugar em que Eu fizer recordar
Meu Nome, virei a ti e te abençoarei. Já em Avot14 1:1A lê-se:

O versículo pertence à legislação da era pré-profé- Moisés recebeu a Torá do Sinai, transmitiu-a a Josué, Jo-
tica, quando era permitido o culto em santuários locais. sué aos anciãos, os anciãos aos profetas, e os profetas
Durante a segunda Commonwealth, o mesmo versículo a transmitiram aos homens da Grande Assembleia. Es-

118 shalon
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tes proclamaram três coisas: sede ponderados no jul- a transvaluação não teria sido possível a passagem do
gamento, formai muitos discípulos e construí uma cerca judaísmo bíblico para o judaísmo rabínico, e esse pro-
protegendo a Torá. cesso deve ser reconhecido como parte legítima do es-
pírito judaico.
Essa mishná é uma das mais conhecidas e trans- Entretanto, como Kaplan rejeita a concepção de
mite basicamente as seguintes recomendações (por or- Deus como agente externo todo-poderoso e perfeito, não
dem de importância, como a exegese tradicional inter- pode concordar com a ideia de que todo o processo de
preta): sede ponderados no julgamento – sinal de um transvaluação seja, como os antigos acreditavam, parte
processo civilizatório, indica a necessidade de abran- de uma revelação de Deus a Israel. Para Kaplan, a única
dar a arbitrariedade e a violência da lei recebida. For- forma de manter a autoridade das escrituras e sua po-
mai muitos discípulos – isto é, convençam outros de sição central dentro da religião para o homem moder-
que essa é uma recomendação razoável para perpe- no é pelo processo de revaluação.
tuá-la na forma de ideologia. A terceira: “construí uma Para que a revaluação faça sentido em um mundo
cerca protegendo a Torá” é deveras metafórica e co- onde os avanços científicos não mais permitem que Deus
nheço algumas interpretações possíveis. Uma que po- seja entendido como uma entidade separada e diluir seu
deria ser compatível com o pensamento de Kaplan se- conteúdo metafísico, Kaplan propõe uma reconstrução
ria “proteja a tradição recebida, mas guarde uma dis- da concepção de Deus como um “processo”.
tância prudente dela”.

S
É suficiente que Deus deva significar para nós a soma de
egundo Kaplan, o que a transvaluação fez no todas as forças que animam e organizam e as relações
passado para promover a continuidade da re- que sempre transformam o caos em cosmos.16
ligião judaica não serve mais para os dias de Pensar em Deus como um processo em vez de uma en-
hoje, pois não é compatível com o desenvol- tidade de forma alguma tende a torná-Lo menos real.17
vimento da ciência e dos valores democráticos. A tran-
sição do judaísmo tradicional para o judaísmo do futu- Deus seria como uma força ou processo que im-
ro só pode ser realizada com a total consciência e con- pele a fazer o melhor uso de nossas vidas. A “salvação”
vicção de que a continuidade é legítima. Para isso é ne- deve ser buscada nesta vida e não no olam haba. A cren-
cessário deixar a transvaluação de lado e lançar mão ça em Deus concebida dessa forma pode funcionar em
da revaluação. nossos dias exatamente como sempre funcionou, como
uma afirmação de que a vida tem muito valor.
A revaluação consiste em desvincular do conteúdo tra-
dicional aqueles elementos que respondem a postulados Afinal vale a pena deixar de ser místico?
permanentes da natureza humana e em integrá-los em A contemporaneidade ainda conviverá com a ideia
nossa própria ideologia. Quando revaluamos, analisamos de Deus como entidade separada por muito tempo, e
e decompomos os valores tradicionais em suas implica- a ideia de processo pode parecer a alguns simples-
ções e escolhemos aceitar aquelas implicações que nos mente frustrante. Será que o reconstrucionista teria
ajudam a encontrar nossos próprios valores morais e es- que abrir mão totalmente do conteúdo místico da fé
pirituais; o resto pode ser deixado para a arqueologia.15 em Deus?
Tome-se, por exemplo, a seguinte questão: Se a hu-
A primeira parte do texto de Avot 1:1A deixa clara manidade toda perecer em uma catástrofe nuclear (tema
a intenção de legitimizar a origem divina do relato. Sem recorrente no pós-guerra), Deus morre também?

abril • maio • junho 2016 119


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em seu ensaio Kaplan’s Approach to Metaphysics,18 e sua essência. Para Maimônides só havia dois predi-
William Kaufman explica como o fator místico permane- cados que poderiam ser pensados a respeito de Deus:
ce latente no pensamento de Kaplan. atributos negativos e atributos de ação. A essência de
Kaplan alterna entre dois substantivos quando fala Deus não pode ser conhecida. Também para ele, a co-
de Deus: “poder” como criatividade potencial e “proces- nexão entre a ontologia de Deus e a salvação do ho-
so”. A crença em Deus é a crença na “existência de um mem tem sempre que permanecer um mistério. Para
poder no mundo que impulsiona o homem em direção ele não está clara a conexão entre Deus como proces-
à salvação”. O significado “correlativo” de Deus é aque- so criativo e Deus como força que prepara a salvação
le que diz respeito à salvação do homem. O significado humana. Na teologia de Kaplan o status de Deus é al-
substantivo de Deus é aquele que diz respeito ao Cos- tamente ambíguo.
mos independentemente de sua relação com o homem.
O autor é consultor de desenvolvimento urbano das Prefeituras de
O autor enxerga aí um paralelo entre a distinção São Paulo e do Rio de Janeiro
proposta por Maimônides entre os atributos de Deus fcotelo@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. http://www.jewishrecon.org/resource/who-reconstructionist-jew 9. ibid. p. 1.

2. Mais sobre o conceito de concepções teísticas naturalísticas se- 10. James. Pragmatism, p. 18.
gue em breve.
11. ibid. p. 18.
3. Glossário de termos judaicos a ser compilado em breve.
12. A bíblia utilizada aqui foi a versão de David Godorovits e Jairo Fridlin.
4. Scult, Mel. Mordecai Kaplan: his life, em Goldsmith, Emanuel S e
Scult, Mel (eds.) Dynamic Judaism: The Essential Writings of Morde- 13. Meaning of God in Modern Jewish Religion, p. 3.
cai Kaplan. New York: Fordham University Press/The Reconstructio-
nist Press, 1985. 14. Da tradução brasileira de Bunim, Irving. A É tica do Sinai: ensina-
mentos dos sábios do Talmud.
5. A distinção chassidim – mitnagdim remonta ao pré-iluminismo judaico.
15. Meaning of God in Modern Jewish Religion, p. 7.
6. Do manifesto de fundação The Society for Jewish Advancement.
16. ibid. p. 76.
7. Kaplan, Mordecai M. A Program for the Reconstruction of Judaism.
Em The Menorah Journal 6:4, Agosto de 1920. 17. ibid. p. 183.

8. The Meaning of God in Modern Jewish Religion, p. 1. 18. Em Goldsmith et. al, 1992.

BIBLIOGRAFIA

BUNIM, I. M. A Ética Do Sinai. Ensinamentos Dos Sabios Do Talmud. São Paulo: Sêfer, 2007. ISBN 9788585583125.

FRIDLIN, J.; GORODOVITS, D. Bíblia Hebraica. [S.l.]: Editora Sêfer, 2012.

GOLDSMITH, E.; SCULT, M. Dynamic Judaism: The Essential Writings of Mordecai M. Kaplan. New York: Fordham University Press, 1991. ISBN
9780823213108.

GOLDSMITH, E.; SCULT, M.; SELTZER, R. (Ed.). The American Judaism.of Mordecai M. Kaplan. [S.l.]: NYU Press, 1992. ISBN 9780814730522.

JAMES, W. Pragmatism. New York: Dover Publications, 1995. ISBN 9780486282701.

KAPLAN, M. M.; SCULT, M. The Meaning of God in Modern Jewish Religion. Detroit: Wayne State University Press, 1995. ISBN 9780814325520.

KAPLAN, R. M. M. Judaism as a Civilization: Toward a Reconstruction of American-Jewish Life. Reprint edition. Philadelphia: The Jewish Publi-
cation Society, 2010. ISBN 9780827609181.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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AdvogadA

A ideologia
Concurseira
Quando falta mérito
à meritocracia

122 Colocação
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

abril • maio • junho 2016 123


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E
stima-se que hoje no mobilizam comumente mais de dez debate, é apontar que o grau de au-
Brasil mais de dez mi- mil candidatos por poucas dezenas tonomização da forma concurso al-
lhões de pessoas este- de vagas. cançou patamares absolutamente
jam “estudando para Podemos imaginar uma série de incompatíveis com a postulada utili-
concursos”. Elas não es- causas para o advento de um país de zação do método como agregador de
tão desejosas de redirecionar suas concurseiros: (1) a memória de infla- valor para o serviço público.
competências profissionais do se- ção e crises econômicas que torna Se por um lado os concursos
tor privado para o público. Tampou- o emprego estável ainda mais atra- não servem para avaliar o aprovei-
co estão reforçando a finalização tivo; (2) a crescente valorização sa- tamento acadêmico escolar ou uni-
do nível médio ou da universidade larial e das prerrogativas dos servi- versitário, também não são voltados
para ingressar no serviço público dores públicos; (3) a expectativa de para a aferição de competências e
levando conhecimentos escolares boa remuneração e pouca contra- habilidades profissionais essenciais
ou universitários. Elas estão “estu- partida; (4) uma simbólica associa- para o exercício do cargo a prover.
dando para concursos”. A expressão ção entre a seleção por concurso e Isso porque, da forma como estão
nativa que designa essas pessoas é a “meritocracia”, ou ainda (5) uma organizados, os concursos no Bra-
“concurseiro”. escassez de oportunidades de rea- sil medem efetivamente a capaci-
Em regra, o concurseiro “mode- lização profissional qualificada no dade dos candidatos de realizarem
lo” se dedica exclusivamente à pre- setor privado. suas provas.
paração para concursos. Define es- Diferentemente do que se pode- Muitos são os fatores que nos
trategicamente uma gama de concur- ria pensar à princípio, não é fora dos fizeram chegar a esse ponto. No en-
sos acessíveis ao seu perfil, e quase processos de seleção em si que se tanto, eles são tão irrelevantes quan-
todo domingo ele passa realizando encontra a chave para a explicação to o estudo das motivações indivi-
provas. Está muito pouco interes- – e quiçá a reversão – do fenômeno. duais dos concurseiros, se está em
sado no trabalho ou função que irá Dinâmicas próprias e restritas aos pauta uma crítica – e quiçá uma su-
desempenhar, seu foco é um empre- processos de avaliação explicam por- peração – do atual modelo. Fato é
go estável, de baixa contrapartida e que temos hoje um modelo de recru- que ele se sustenta em alguns pila-
de remuneração sensivelmente su- tamento que seleciona aqueles que res fundamentais: (1) a permissão da
perior à praticada no setor privado. melhor a si se adaptam. À autorre- realização ilimitada de provas, (2) a
Essa estranha figura desafia ca- ferencialidade hoje encontrada nos cobrança de taxas de inscrição, (3) a
tegorias fundamentais sem as quais concursos públicos chamamos “ideo- existência de um mercado privado de
temos dificuldade de pensar o mundo logia concurseira”. serviços de elaboração e correção
do trabalho: vocação, competência, A bibliografia sobre o tema não de provas em larga escala.
habilidade, aptidão, atribuição etc. É chega a ser escassa,1 mas sem dú- Neste artigo pretendemos reto-
igualmente muito estranho imaginar vida não acompanha sua importân- mar propostas lançadas em um pro-
concursos comumente mobilizado- cia e impacto na atualidade. Em di- jeto de pesquisas realizado nos anos
res de mais de um milhão de candi- versas ciências humanas e sociais 2012 e 2013. Inicialmente pensadas
datos para pouco mais de mil vagas, aplicadas é crescente a comunida- como um dos produtos contratados
como para Técnico do INSS ou Car- de de pesquisadores que tem se de- pelo Ministério da Justiça (a propo-
teiro. Não é muito diferente no “topo dicado a análise de dimensões mais situra de um novo marco normativo),
da cadeia alimentar”: os concursos complexas deste objeto de estudo. decidimos encaminhá-las como ex-
de magistratura, sempre regionais, Nossa contribuição, neste ponto do pressão das principais tensões que

124 Colocação
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

consideramos advir do atual mode- pretende “melhor” do que as posi- o debate público que é equivalente a
lo de seleção de funcionários públi- ções políticas existentes em função qualquer outra que vise a orientar
cos no Brasil. do lugar de onde as elaboramos, ou políticas públicas, uma vez que parte
seja, a academia. Nossa autorida- de nossas crenças a respeito do que
1. Propor mudanças: propor debate! de acadêmica repousa unicamente é e deve ser a sociedade e o Estado.
As propostas a seguir não são sobre a produção da pesquisa e de Nesse tocante, é necessário
um resultado lógico ou evidente de suas conclusões e, de modo algum, mencionar o caráter inovador e pro-
um projeto de pesquisas,2 elas par- sobre estas propostas. Acreditamos fundamente progressista do projeto
tem do nosso ponto de vista da reali- ser esta mais uma contribuição para “Pensando o Direito”, uma parceria
dade descrita naquele trabalho. Essa
observação tem uma consequência
importante, pois as propostas contêm
intencionalidades que só existem en-
quanto discurso e não estão presen-
tes na realidade empírica descrita.
Nosso compromisso profissional
enquanto pesquisadores é com a co-
munidade acadêmica, e com aquilo
que anunciamos enquanto pesquisa-
dores. Por isso, acreditamos que este
artigo não é um desdobramento lógi-
co, ou uma consequência da pesqui-
sa, mas nosso ponto de vista a res-
peito das políticas que deveriam or-
ganizar os certames em nosso país.
Isso significa que nós não acre-
ditamos que nosso ponto de vista seja
mais informado ou privilegiado para
a consecução dessas eventuais políti-
cas. As políticas de Estado são orien-
tadas por posições expressadas por
representantes das pessoas que os
elegeram. Não fomos submetidos a
nenhum tipo de escrutínio popular.
Assim, não nos vemos autorizados
a falar por ninguém, a não ser por
nós mesmos.
Numa democracia, as posições
políticas são frutos de discussões
públicas a respeito dos problemas
públicos. Nossa intervenção não se

abril • maio • junho 2016 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da SAL/MJ e do PNUD, que nesta te- vés de um conjunto de propostas que de fevereiro de 2013 na Fundação
mática contou com o apoio e colabo- seguirão abaixo, expor nosso leitor Getulio Vargas de Brasília. Na inten-
ração em profundo interesse do Mi- ao choque que acomete todo o et- ção de divulgar o evento, enviamos
nistério do Planejamento, Orçamento nólogo que compara “seu” universo um resumido release de imprensa
e Gestão. Financiar equipes de insti- com um “outro”, tentando descrever, para o periódico Correio Braziliense,
tuições de ensino e pesquisa, por meio desnaturalizando cada um dos dois de grande circulação local. A matéria
de chamada pública e ampla, para a por meio dos contrastes encontrados que divulgava nosso evento desen-
elaboração de pesquisas preferen- entre eles. Assim, é expondo os evi- cadeou uma série de pedidos de in-
cialmente de cunho empírico e apli- dentes contrastes entre a realidade formações e entrevistas. No mês que
cado é contribuir para a profissiona- brasileira e (no nosso caso) a fran- se seguiu, nossa pesquisa foi notícia
lização da área de Direito no Brasil. cesa – nitidamente de tradição pu- nos seguintes veículos de imprensa:
Um dos desafios que a então cha- blicista, onde prima o interesse geral jornal O Globo (nota na coluna de An-
mada de propostas nos colocou foi sobre o particular – que decidimos celmo Góis), revista IstoÉ, portal G1,
o de elaborar proposta de um novo estruturar um conjunto de proposi- jornal O Estado de S. Paulo (matéria
marco normativo. Retomando o de- ções que reverteria drasticamente e editorial), jornal Extra, jornal O Dia,
bate de alguns parágrafos acima, nos o que chamamos aqui de efeitos da rádio CBN, TV Rede Brasil, jornal Fo-
colocamos a seguinte questão: como ideologia concurseira. lha Dirigida (matéria e dois editoriais),
fazer isso no quadro de uma pesqui- Esta abordagem já passou por jornal Correio Braziliense (duas ma-
sa? Como fazer de forma a não tornar um importante teste de impacto. Uma térias e um editorial), portal Conjur
nosso trabalho uma consultoria ins- primeira versão deste trabalho foi (três colunas), entre outros.
titucional? Resolvemos, assim, atra- apresentada publicamente no dia 22 Esse primeiro teste de impacto
não evidencia apenas o interesse da
imprensa pelo debate sobre esta te-
mática. Em uma série de fóruns vir-
tuais em que ela é debatida por can-
didatos a concursos públicos, tais
como sosconcurseiro.com, tempo-
deconcursos.com.br, papodeconcur-
seiro.com.br, questoesdeconcursos.
com, forumconcurseiros.com.br e
blogdosconcursos.com.br, entre ou-
tros. Nesses espaços de debate, per-
cebemos uma fortíssima resistência
por parte de uma imensa maioria dos
que se manifestaram.
No entanto, sejam nos veículos
tradicionais de mídia, sejam nos fó-
runs virtuais, uma percepção se des-
tacou: o foco nas nossas propostas.
Se elas servirem para chamar aten-
ção para a importância de se por em

126
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pauta esta temática e mais, se ainda Feitas essas considerações ini- I, sempre mencionava que o termo
conseguirem provocar um choque ciais, cabe dividir as recomenda- “administrado” é muito elucidativo do
reflexivo – cuja reação primeira é ções normativas em três campos. papel que a tradição administrativa
invariavelmente a rejeição – nos lei- O primeiro campo está relacionado atribui ao cidadão: a forma passiva
tores, já cremos ter se cumprido um ao aperfeiçoamento imediato do De- de um verbo, ou seja, como algo sem
importantíssimo papel. Se, além dis- creto nº 6.944/2009, com recomen- direitos com o qual a Administração
so elas puderem também servir de dações simples e de fácil efetivação. Pública lida. O cidadão é a razão para
subsídio para quaisquer agentes po- O segundo campo está relacionado a funcionalidade da administração;
líticos brasileiros num eventual intui- ao estudo da relação jurídica entre mas, não há a consolidação de que
to de transformar democraticamen- o candidato e o certame. É evidente tal função exija a garantia de direi-
te a nossa realidade, tanto melhor! que tal relação outorga direitos aos tos, senão vejamos:
Uma última advertência: as pro- candidatos, que são gerais, como a
postas que se seguem devem ser li- observância da isonomia. Porém, a “O serviço público revela a dimen-
das em bloco, pois cada uma delas história judicial recente demonstra são social e coletiva da ação admi-
dá sentido à outra, de maneira que que os candidatos vêm sendo aqui- nistrativa. O indivíduo não aparece
sua defesa só faz sentido se for fei- nhoados com direitos em relação ao diretamente, senão como benefici-
ta conjuntamente. objeto do certame (provimento em va- ário final das prestações forneci-
gas), bem como no tocante aos proce- das. Contudo, seu posicionamento
Uma necessária mudança de cultura dimentos dos certames (objetividade no sistema administrativo não foi
jurídica em relação aos concursos nas avaliações e direito aos recur- claramente definido. A determina-
Apesar de existir um debate le- sos). Por fim, no terceiro campo será ção de seu lugar é eminentemente
gislativo e judicial acerca dos con- indicada a necessidade de se firmar problemática. Um retorno às fontes
cursos públicos, pode-se identificar modelos gerais de certames. Resta impõe constatar, com a Declaração
que a maior necessidade de altera- claro que os dois projetos de lei ava- de 1789, que a pessoa humana se
ção está dirigida às práticas e não liados trazem essa consideração ao apresenta na dupla figura do ho-
às leis vigentes. O modelo que vem debate. Todavia, eles incorrem no tipo mem nas suas relações privadas
sendo majoritariamente praticado de insuficiência presente no Decreto e do cidadão na esfera pública. Ou,
é baseado em um tipo ideal que – a nº 6.944/2009. O certame é sempre se a cidadania é apreciada no pris-
partir do nosso diagnóstico compa- pensado como um agregado de pro- ma de dois elementos – a filiação ao
rado – esgotou a sua capacidade de vas. Ele nunca é apreciado no escopo grupo e a participação na definição
produzir o fim ao qual se destina: se- que está sendo traçado neste projeto da ordem jurídica – ela se expri-
lecionar os candidatos mais aptos ao de pesquisa: um meio completo para me plenamente em meio a comuni-
desempenho de determinadas fun- seleção de pessoal. dade política. O homem não trans-
ções públicas. Em síntese, o proble- O ponto mais complexo em rela- parece como cidadão no universo
ma da seleção e do recrutamento de ção ao que foi exposto neste diagnós- administrativo mesmo que a parti-
servidores não será resolvido pelo tico jurídico diz respeito aos direitos cipação seja aceita. (...) O cidadão
melhor detalhamento normativo do dos candidatos. É evidente que a Ad- é uma ordem familiar no universo
que seja uma prova de múltipla es- ministração Pública não foi fundada político, porém ausente na ordem
colha. Serão novas práticas de cer- com base na tradição da garantia de administrativa. Outras figuras são
tame, compatíveis com o marco jurí- direitos. O professor Jean-Louis Au- utilizadas para qualificar a situação
dico que poderão alterar a situação. tin, da Universidade de Montpellier jurídica da pessoa na sua relação

abril • maio • junho 2016 127


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

com a Administração que não esta- são observados no âmbito da União denominamos de modalidade acadê-
vam no horizonte da Declaração de e nas práticas administrativas, bem mica e de modalidade profissional.
1789; elas excluem a expressão da como para divulgá-los e transformá- Eles servem para selecionar ou re-
cidadania – no duplo sentido da fi- -los em práticas correntes nos es- crutar pessoal com objetivos diver-
liação e da participação previamen- tados, Distrito Federal e municípios. sos. Assim, acreditamos que o mo-
te mencionadas –, mais elas podem Dessa forma, consideramos ne- delo brasileiro se tornou muito au-
ser colocadas como condições fun- cessário incluir alguns direitos sub- torreferenciado e autônomo. Dessa
damentais do direito administrativo. jetivos dos candidatos em futuro pro- forma, o certame transformou-se em
Enquanto a figura do administrado jeto de lei – em especial aqueles já uma finalidade em si mesma, tendo
inerente à função pública for antité- consolidados nas súmulas do Su- perdido a característica central de
tica à figura do cidadão, a imagem premo Tribunal Federal e do Supe- meio para alcançar um fim: a sele-
do usuário de serviço público nos rior Tribunal de Justiça – listados no ção da pessoa mais adequada à fun-
remeterá a uma imagem deformada relatório, tal como a garantia contra ção. A última parte será dedicada a
da cidadania. (...) Confrontada tal si- preterição. este tema, que é a conclusão princi-
tuação, o administrado se encontra Acreditamos ser muito relevan- pal da pesquisa e o argumento pros-
desamparado em face da Adminis- te explicitar os direitos dos candida- pectivo central.
tração; porém, ele poderá agir judi- tos aprovados à nomeação, além de
cialmente se a ação pública descon- frisar como se procederá, caso haja Das mudanças gerenciais:
sidera os seus interesses legítimos necessidade de aplicação de algum um recrutamento plural
ou ignora seus direitos fundamen- dos critérios de exceção previstos Após todo o desenvolvimento
tais. O administrado se metamor- no Recurso Extraordinário 598.099/ previamente realizado aqui, cum-
foseia em jurisdicionado, contudo MS. As hipóteses excepcionais pre- pre uma melhor sistematização dos
com poucas chances de sucesso, cisam estar indicadas, como o atin- tipos de ideologia a que fazemos re-
pois em decorrência da era de ouro gir dos limites da lei de responsa- ferência, pois eles serão de funda-
do poder público, no século XIX, as bilidade fiscal (Lei Complementar mental importância para a propos-
garantias jurisdicionais contra Es- nº 101/2002). ta que se seguirá. A tabela I cumpre
tado pouco se desenvolveram” (AU- É de bom tom firmar algumas dis- essa função.
TIN; RIBOT: 2004, 237-238) . posições acerca de como são os varia- Dessa forma, o primeiro con-
dos tipos de provas, em termos pró- junto de reformas no atual marco
Com a Constituição Federal de ximos aos fixados no PLS 525/2003. legislativo diz respeito à reorganiza-
1988 e os seus intérpretes, tal cená- Além de tais temas, considera- ção do sistema de ingresso no servi-
rio vem sendo alterado. A jurispru- mos imperioso repensar gerencial- ço público como um todo. Transfor-
dência nos concursos públicos é elu- mente o modelo geral dos concursos mações institucionais devem dar a
cidativa nesse sentido. O candidato públicos no Brasil contemporâneo. um novo sistema de recrutamento
vem sendo percebido como um cida- Para tanto, consideramos que é re- a flexibilidade necessária para que
dão portador de direitos em face da levante entender os vários tipos de o mesmo se liberte do engessamen-
Administração Pública e das entida- provas como móbiles que devem ser to da ideologia concurseira e, quem
des organizadoras de certames. Pa- manejados com finalidades específi- sabe, possa se reorientar ao encon-
rece razoável que esse rol de direitos cas. Identificamos que existem dois tro de outras ideologias mais adap-
seja regrado e definido, não somen- tipos ideais de concursos públicos tadas à realização dos interesses da
te para universalizar direitos que já em desenvolvimento no mundo que Administração.

128 Colocação
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essa pluralidade deve se mate- o interno e o profissional. Salienta- da administração de buscar jovens
rializar na possibilidade de a adminis- -se que o mesmo certame possuiria egressos no sistema de ensino que
tração pública realizar, seleção por até três fileiras, e a cada uma delas aprenderiam e desenvolveriam das
seleção, um recrutamento dividido haveria um número de vagas fixo e bases as competências necessárias
por perfis de candidatos diferentes, os candidatos inscritos para cada para o exercício da função. As condi-
tendo em vista as necessidades do uma concorreriam apenas entre si. ções de participação seriam focadas
contexto. Cremos que um novo mar- Vamos à nossa proposta: no diploma e demais títulos acadêmi-
co normativo deve estabelecer três cos, as provas emulariam o ambien-
possibilidades de recrutamento por FILEIRA 1 – Recrutamento acadêmico te escolar/universitário e a forma-
fileiras: o recrutamento acadêmico, Seria a expressão da vontade ção inicial seria obrigatória.

Tabela I

TIPOS DE IDEOLOGIA

IDEOLOGIA ACADÊMICA IDEOLOGIA PROFISSIONAL IDEOLOGIA CONCURSEIRA

Egressos do sistema de ensino


Recém-egressos do sistema
Perfil do “candidato Profissionais com experiência e/ou de outra carreira, com tempo
de ensino (escolar ou
modelo” em sua área, pública ou privada de dedicação à preparação para
universitário)
concursos

Realização de provas e exames Realização de provas e exames Realização de testes desvinculados


Habilidades testadas
similares aos do sistema de similares ao exercício da do sistema de ensino ou do
no processo
ensino atividade profissional cotidiano da futura carreira

Composta majoritariamente
Composta majoritariamente Composta majoritariamente por
por membros da carreira
Banca examinadora por professores universitários profissionais com experiência em
e/ou profissionais experientes
e/ou escolares seleção por concurso
na área de atuação

Provas práticas, mesclando


Provas escritas discursivas, Podendo muito variar, mas entre
a simulação da atividade
Tipos de prova orais, de línguas (estrangeira e modalidades não encontradas fora
profissional e as necessidades
materna) e dissertação das seleções por concurso
do cargo

Combina os requisitos das


Idade mínima, elevado tempo de
Idade máxima, diplomação duas anteriores, tendendo a
Requisitos experiência profissional, quiçá
mínima e curso de formação simplesmente reduzir o universo
inscrição no órgão de classe
de inscritos no processo seletivo

Varia de acordo com a posição


Varia de acordo com a faixa Varia de acordo com as
simbólica que cada carreira
Faixa salarial de titulação acadêmica exigida atribuições e responsabilidades
consegue ocupar no sistema de
na seleção exigidas na seleção
profissões públicas

Selecionar os potencialmente Fiscalizar a boa aplicação dos


Absorver para a administração
melhores, garantindo a princípios de Direito no certame,
pública aqueles que já possuem
Papel do Estado formação tendo em vista tratar a questão das habilidades
as habilidades necessárias ao
as atribuições do cargo em ou atribuições como questão de
exercício do cargo em questão
questão “gestão de pessoas”

O mérito é fruto de uma O mérito é fruto de uma


O mérito é fruto da aprovação e
Legitimidade trajetória acadêmica e/ou trajetória profissional de
da colocação no certame
escolar de excelência sucesso e realização

abril • maio • junho 2016 129


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

FILEIRA 2 – Recrutamento burocrático zação salarial que obedeça a crité- regulatório que extinguisse definiti-
Seria a expressão da vontade rios objetivos, desvinculados da “com- vamente a taxa de inscrição, como
da administração de buscar profis- plexidade” do certame ou “relação ocorre na França.
sionais já inseridos na Administra- candidato/vaga”. Nossa sugestão é
ção Pública, desejosos de melhor fo- a de que se tome por critério a titu- Forma de inscrição
car suas habilidades no exercício de lação mínima exigida para o exercí- É imperioso um marco norma-
outra função. As condições de par- cio, bem como – à exceção das ati- tivo que estipule a inscrição via in-
ticipação seriam focadas no tempo vidades profissionais exclusivas de ternet como a forma por excelência
de serviço público efetivo (recomen- determinado profissional autoriza- de inscrição em concursos públicos.
damos não menos que 5 anos) e as do – seja vedada a especificação da Por razões evidentes, recomenda-
provas emulariam o ambiente pro- área de diplomação para participar mos que seja facultado ao candidato
fissional da Administração Pública. do certame. O impacto negativo dos a possibilidade de efetivação da sua
certames concurseiros na organi- inscrição em uma das agências dos
FILEIRA 3 – Recrutamento profissional zação do mundo socioprofissional correios em formulário padroniza-
Seria a expressão da vontade brasileiro não pode ser revertido se do. Nossos dados já apontam para
da administração de buscar profis- a pluralidade não começar pelas ba- esta tendência.
sionais no mercado para oxigenar ses do recrutamento.
e refrear o potencial autorreferen- Condições de inscrição
cial do serviço público. As condições Das mudanças propostas Consideramos imperioso um
de participação seriam focadas no ao marco vigente marco normativo que vede expres-
tempo de experiência no mercado As diretrizes apresentadas pelo samente a participação no certame
(recomendamos não menos que 10 PLS 74/2010 são um bom indicati- dos candidatos que não apresenta-
anos), as provas emulariam o am- vo que, contudo merece ser aperfei- rem as condições exigidas no edital
biente profissional externo à Admi- çoado. Elencaremos abaixo, ponto a no momento da inscrição, e não no
nistração Pública. ponto, mudanças que consideramos momento da posse. Igualmente, pro-
de impacto profundo no sistema de pomos um marco normativo que vede
Além da pluralidade e do poten- recrutamento: expressamente que o mesmo can-
cial de oxigenação dos grandes cor- didato se apresente para o mesmo
pos de Estado, essa abertura em re- Taxa de inscrição certame mais que três vezes. Ambas
lação ao dogma do certame concur- É relevante fixar critérios para as medidas visariam um incremen-
seiro seria de fundamental importân- taxas de inscrição que não permi- to qualitativo na população de can-
cia para a instauração de uma nova tam a distorção indicada na pesqui- didatos, concomitante a uma crucial
cultura institucional para além da re- sa (FONTAINHA et al: 2014, 52), ou diminuição quantitativa. A reconhe-
produção dos funcionários, no pró- seja, que concursos públicos para cida prática do “concurso por expe-
prio seio do Serviço Público. cargos com menor remuneração riência”, extremamente custosa para
Antes de avançarmos em dire- prevista custem mais caro, percen- a Administração Pública, tende a di-
ção a propostas mais concretas, deve tualmente, do que outros. Mais ain- minuir drasticamente com ambas
ser mencionado que a plena efetiva- da, é necessário um processo cla- as medidas. Não ignoramos que as
ção de nossa proposta também pas- ro de concessão de isenção de taxa duas medidas propostas estão fron-
sa pela questão da remuneração dos seja estabelecido como padrão. Ain- talmente contrárias aos entendimen-
servidores. É imperiosa uma equali- da que o ideal seja pensar um marco tos jurisprudenciais firmes e conso-

130 Colocação
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lidados nos tribunais superiores. No bém o ambiente profissional, públi- rio e (2) anterior ao certame em si,
caso da primeira, há a Súmula 266/ co e privado. Isso não pode ser efe- jamais sua etapa única.
STJ: “O diploma ou habilitação legal tivado sem que o dogma concurseiro
para o exercício do cargo deve ser do domínio de um conteúdo progra- Provas dircusivas
exigido na posse e não na inscrição mático seja superado objetivamente É necessário um marco regula-
para o concurso público”. No caso da pela noção de habilidades e compe- tório que determine a elaboração de
segunda, a interpretação acerca do tências. Evidentemente, isso implica- provas discursivas em relativa emu-
“amplo acesso aos cargos, empre- rá na reformulação dos tradicionais lação com as competências e habi-
gos e funções públicas”, previsto no instrumentos de avaliação. lidades esperadas do profissional
art. 37, I, da Constituição Federal, se que se quer recrutar. Mais próxima
transformou no “amplo acesso aos Provas de múltipla escolha da forma acadêmica de avaliação
concursos públicos”. Todavia, esses Cremos imprescindível que o de performance, todas devem com-
dois casos se afiguram como exce- novo marco normativo proíba expres- preender uma reação do candidato
lentes exemplos de como a ideologia samente o uso de provas de múltipla a um problema fictício mas apresen-
concurseira tem dominado os pro- escolha como instrumento de medi- tado na forma de emulação da con-
cessos de recrutamento também na ção de performance no recrutamen- cretude e não de sua hipótese. Por
jurisprudência pátria. A reflexão que to de funcionários públicos. Provas exemplo: uma prova escrita de Direi-
essa medida induz é a seguinte: não dessa natureza possuem o condão de to Constitucional da AGU, em vez das
seria mais racional que o paradig- facilitar a correção e gerir os colos- tradicionais questões curtas de so-
ma de candidatura fosse a expecta- sais contingentes de candidatos. Por lução de problemas hipotéticos, de-
tiva de sucesso, baseado numa au- outro lado, elas representam um ele- veria consistir na leitura prévia de
toavaliação do candidato em termos mento que contribui em muito para documentos contextualizando um
de chances de sucesso? alimentar a ideologia concurseira: as problema, seguida da redação de um
habilidades necessárias para realizá- parecer ou de uma petição.
Habilidades e competências -las em nada se assemelham às prá-
Para além das atribuições, toda ticas de avaliação escolares/univer- Provas práticas
carreira do serviço público deve ela- sitárias, e muito menos com práticas Inexistentes hoje – ou não de-
borar em sucinta ementa o rol de ha- profissionais inerentes ao cargo em tectadas na nossa coleta – elas de-
bilidades, aptidões e competências (e disputa. Ou seja, o esforço de prepa- vem, ao lado das provas discursivas,
não conhecimentos ou atribuições) ração, de organização, e de realiza- estar necessariamente presentes
necessárias ao seu pleno exercício. ção prática de competências em tor- em todos os recrutamentos de fun-
Essas habilidades devem, por for- no das provas de múltipla escolha é cionários públicos. Por provas prá-
ça do marco normativo (1) ser par- integralmente inútil e inutilizável fora ticas entendemos a emulação dire-
te integrante do edital de abertura do contexto do certame. Admitimos a ta de uma competência ou habilida-
de todos os certames, sob pena de hipótese da manutenção dessa for- de necessária ao exercício do car-
nulidade dos mesmos e (2) ser a re- ma de avaliação, pelas evidentes van- go. Por exemplo: numa prova para
ferência objetiva para a elaboração tagens de gestão de contingentes de Técnico do INSS seriam passados
e correção das provas do certame. candidatos, na forma de um teste de aos candidatos os dados de um se-
É fundamental inserir nos certames pré-seleção, muito diferente do que gurado ficcional e lhes seria pedido
lógicas de seleção que emulem o am- se pratica atualmente, pois esse tes- para enquadrar sua situação junto
biente escolar/universitário e tam- te deveria ser: (1) apenas eliminató- ao órgão, seus direitos de seguri-

abril • maio • junho 2016 131


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dade etc. Cremos que uma tal medi- minadoras sejam professores e/ou me. Recomendamos, ainda, que seja
da aproximaria as práticas de pre- pesquisadores EXTERNOS à car- elevada à condição de infração ad-
paração para certames às necessi- reira e em regime de dedicação ex- ministrativa estar envolvido, conco-
dades profissionais da Administra- clusiva à atividades de ensino e/ou mitantemente, em bancas examina-
ção Pública. pesquisa, e que os outros 50% dos doras e preparação de candidatos
membros da banca sejam servido- para certames. Esse conjunto de
Bancas examinadoras res INTERNOS e experimentados na medidas visa garantir (1) a plurali-
Os responsáveis pela reprodu- carreira. Recomendamos, igualmen- dade ideológica e corporativa, (2) o
ção de lógicas acadêmicas, burocrá- te, que todos os membros da banca encontro de duas expertises – aca-
ticas e profissionais no trabalho de tenham ao menos dez anos de efeti- dêmica e burocrática – no tocante às
elaboração e correção das provas vo exercício profissional (na carrei- práticas de avaliação e (3) que não
são os membros da banca examina- ra em questão ou no ensino/pesqui- se reproduza a figura do avaliador
dora. Dessa forma, o que os legitima sa), que após uma participação em profissional. Ser membro de banca
para a tarefa é a pluralidade profis- banca lhe seja imposta uma quaren- é extensão de uma competência ex-
sional – acadêmica e burocrática – tena de ao menos 12 meses e que os terna ao concurso, e não um fim em
e a experiência. Nesse sentido, pro- professores sejam preferencialmen- si mesmo.
pomos que o novo marco normativo te recrutados no setor público, vin-
determine expressamente que 50% culando seus deveres funcionais de Formação profissional inicial
dos membros de tidas bancas exa- zelo às regras e princípios do certa- Uma das medidas mais efetivas
para transformar o Serviço Público
brasileiro é a simbiose entre uma das
fases do concurso, o Estágio Proba-
tório, e a Formação Inicial. Com isso,
queremos que o Estágio Probatório
se torne efetivamente um estágio, e
se torne efetivamente probatório.
Recomendamos, assim, que todo ór-
gão da administração pública crie
uma escola profissional focada na
formação inicial, que é ministrada
como última fase do certame, mas
que ao mesmo tempo, uma vez con-
firmada a adequação entre as com-
petências do candidato e as neces-
sidades da administração, o efeti-
ve em definitivo no serviço público.
Recomendamos, ainda, que nos 36
meses de formação, 12 sejam dedi-
cados ao aprendizado por meio de
aulas com futuros colegas mais ex-
perientes, e os outros 24 sejam efe-

132 Colocação
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tivamente um estágio, em que o can- sa empresa atuem como membros mica, a burocrática e a profissional
didato já exercerá as atividades do de bancas examinadoras (vide pro- – as quais consideramos mais adap-
cargo, porém sob a supervisão e tu- posta relativa à formação de ban- tadas à finalidade de recrutar para a
toria de um futuro colega mais expe- cas supra). Esta proposta visa mi- Administração Pública quadros mais
riente. Consideramos, certamente, a tigar os efeitos mercadológicos en- capazes de exercer a função pública
possibilidade de uma grande escola contrados hoje na oferta de serviços com mais qualidade. Não queremos,
de Estado formar profissionais de di- dessa natureza. É evidente que o im- assim, aperfeiçoar nosso sistema de
versos órgãos ou ministérios. O cer- portante é manter essa atividade no recrutamento, queremos outro. Um
ne de nossa proposta é essa adap- seio do Estado, devendo assumir um que articule preparação, realiza-
tação da vida funcional, somada à papel mais proativo no processo de ção prática, avaliação, organização
obrigatoriedade de uma formação formulação e definição das provas, e formação em torno de um proces-
em uma instituição no seio do Esta- por se tratar fundamentalmente de so que não seja mais completamen-
do. Esta proposta é baseada no po- perfil do futuro servidor. Atividades te desvinculado da noção de carrei-
tencial incremento qualitativo que o meio, como aplicação e gestão lo- ra. Sem dúvida, o concurso público
serviço público poderia ganhar uni- gística, estas sim poderiam ser ter- é um grande avanço gerencial, re-
ficando seleção, formação inicial e ceirizadas. Nesse sentido, cada ór- publicano e democrático, um avan-
estágio probatório, o que daria mais gão poderia organizar sua seleção, ço que veio para ficar, embora ca-
densidade para a carreira. como alguns já fazem. Igualmente, reça de uma radical reformulação.
outras formas institucionais podem
Organização dos concursos ser pensadas em substituição à su- Fernando Fontainha é professor do Instituto de
Por derradeiro, recomendamos gerida Empresa Pública. Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), dire-
tor da Associação Brasileira de Ensino do Di-
que o novo marco normativo deter- Este conjunto de mudanças in- reito (ABEDi) e pesquisador do Centro de Jus-
mine a criação de uma Empresa Pú- terrelacionadas não visam superar tiça e Sociedade (CJUS) da FGV DIREITO RIO
blica cuja atividade fim seja exclusi- alguns problemas pontuais que se fernando.fontainha@iesp.uerj.br

vamente a de gerir a logística dos percebem nos processos de sele- Pedro Heitor Geraldo é professor do Institu-
to de Estudos Comparados em Administração
processos de seleção por concurso ção dos funcionários públicos. Elas
Institucional de Conflitos (INEAC/UFF)
no serviço público federal e confira visam frear radicalmente a ideolo- pedroheitorbg@yahoo.com.br
a ela o monopólio sobre essa ativi- gia concurseira pela fragmentação Alexandre Veronese é professor da Faculdade
dade no país. Recomendamos igual- de grandes pontos de apoio institu- de Direito da Universidade de Brasília
veronese@matrix.com.br
mente uma separação radical entre cional que permitem sua reprodu-
gestão logística e elaboração/corre- ção maciça no nosso quadro atual. Camila Sousa Alves é pesquisadora da Escola de
Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Var-
ção das provas dos certames. Assim, Isso se faz por meio da inserção de gas (Direito GV) e doutoranda em Direito/USP
deve ser vedado que quadros des- outras ideologias – no caso a acadê- camila.alves@fgv.br

NOTAS DE RODAPÉ

1. V. Descardeci: 1992, Gomes: 1998, Rutkowsk: 1998, Cunha: 1999, Mancini: 1999, Schirmer: 2001, Meirelles: 2002, Paula: 2005, Spilki; Titto-
ni: 2005, Vasconcelos: 2006, Machado Junior: 2006, Oliveira: 2006, Carro: 2007, Martino: 2008, Flauzino; Borges-Andrade: 2008, Puppo; Luz;
Del; Silva: 2008, Santana Junior et al.: 2008, Amancio: 2009, Nunes: 2010, Castelar et al: 2010, Costa: 2010, Albrecht; Krawulsky: 2011, Batis-
ta: 2011, e Carneiro: 2011, Sousa: 2011.

2. Extraídas do relatório final do projeto (FONTAINHA et al: 2014: 129-142).

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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134 Colocação
ANÚNCIO NEXTEL
135
136 famiglia
Cesar Caldeira
Advogado

Cosa Nostra
RevisitadA

reconhecimento judicial da existência da seu território? Por que a política antimáfia foi, e continua
organização Cosa Nostra ocorreu apenas a ser, episódica e reativa a rumorosos assassinatos ou
em 1992. A criação de um tipo penal au- escândalos políticos que mobilizam a mídia e a opinião
tônomo para combater a máfia surge em pública? Quais obstáculos políticos foram usados e com
1982, e, nos dez anos sequentes, 114 no- quais efeitos para evitar a implementação da política an-
vas leis trataram da matéria de maneira timáfia? Essas perguntas são foco tradicional da crimi-
direta ou indireta. O sucesso do filme “O Poderoso Che- nologia quando indaga sobre as causas do crime e sobre
fão”, em 1972, chamara a atenção mundial para a Máfia respostas institucionais por sanções penais que ocorre-
siciliana que atuava há mais de um século. ram. Essas indagações dizem também respeito à atuação
Por que o Estado italiano e a sociedade civil siciliana do sistema de justiça que implementa, ou não, a política
levaram tanto tempo para tentar impor a legalidade em criminal antimáfia em relação a criminosos poderosos.1

abril • maio • junho 2016 137


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O contexto histórico europeu condicionou mudan- a situação na qual ocorreu se torna difícil identificar o
ças na Itália. Em 1992, a globalização econômica e fi- responsável pelo crime praticado; d) ocultar o fato cri-
nanceira estava consolidada. O estado italiano prepara- minoso: situação na qual o criminoso oculta aspectos do
va-se, então, para integrar a União Europeia. A Guerra crime disfarçando-o como atividade normal e legítima.
Fria terminava com a desintegração da União Soviética Na primeira seção, apresenta-se a Cosa Nostra como
e a queda do murro de Berlim. O anticomunismo deixa- uma organização criminosa, socialmente enraizada na
ria de ser um elemento estruturante do jogo partidário. Sicília após a unificação da Itália em 1861. Um aspecto
Por outro lado, o combate ao tráfico de drogas estava que merece destaque é sua participação nas negocia-
na agenda política internacional, e a colaboração inter- ções políticas e na manutenção da “ordem” sustentada
nacional se intensificava devido ao caráter transnacio- por extorsões e o recurso à violência privada. Mencio-
nal da criminalidade dos “poderosos”, que envolvia la- nam-se ainda perspectivas criminológicas desenvolvidas
vagem de dinheiro, evasão de taxas, corrupção política- para analisar o crime organizado e seu impacto na per-
-administrativa etc. secução penal em Palermo. Na segunda seção, aborda-
No foco deste estudo estão a dinâmica da política -se a cultura do silêncio imposta na Sicília e o julgamento
antimáfia e o persistente uso por criminosos poderosos dos mafiosos em 1968 e o maxiprocesso de 1986-87. O
de recursos, em diferentes situações, com o fim de obs- foco está nas chamadas “guerras da máfia” e nas mudan-
truir a justiça criminal e assegurar a impunidade. É in- ças legais e institucionais que surgiram em reação aos
dispensável ser considerado o tipo de crime que supos- acontecimentos. No centro da discussão está um exame
tamente ocorreu e a complexidade das provas exigidas do chamado, na Itália, de “método mafioso”. Na terceira
para se obter condenações. E ainda, as dificuldades em parte, analisa-se a impunidade criminal com relação à
encontrar os supostos autores e os recursos financei- corrupção política-administrativa e ao uso da chanta-
ros, políticos e militares
que os delinquentes
têm para evitarem as
prisões e a persecu-
A Célula dE Base dA Cosa
ção penal.
Lea (2005) propõe uma classificação para auxiliar gem à violência. Destaca-se a máfia política e sua atua-
o mapeamento de como “criminosos poderosos” podem ção na construção imobiliária e o julgamento de Giulio
intervir: a) obstruir testemunhos: circunstâncias em que Andreotti.2 Por último, apresenta-se o inconcluso “pro-
os delinquentes têm capacidade de tomar providências cesso da trattativa” que visa julgar o suposto pacto en-
diretas para impedir que informações ou pistas che- tre a Cosa Nostra e autoridades públicas para acabar
guem aos investigadores de indivíduos ou grupos que com a estratégia do massacre (strategia stragista) e ob-
têm informações ou pistas importantes e que as comu- ter afinal a pax mafiosa. Na conclusão, avalia-se política
nicariam às autoridades, não fossem devido às fortes antimáfia em relação ao uso da violência criminal visí-
privações que os criminosos podem impor; b) obstruir a vel e a contenção da máfia siciliana em suas atividades
atuação do sistema de justiça criminal: situação em que empresariais ilícitas e na política italiana.
o criminoso é capaz de tomar providências que impos-
sibilitem os investigadores de usar as informações que Reconhecimento do problema: La mafia è politica
possuem ou tomam outras medidas que efetivamente A máfia é política, no sentido de que está envolvida
levam ao fim das investigações ou inquéritos; c) ocultar nos esquemas políticos dominantes, pelo menos des-
o autor do crime: caso em que o crime é conhecido, mas de a unificação do Estado. Em 1871, o procurador ge-

138 famiglia
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ral de Palermo, Diego Tajani, afirmou: “A máfia na Sicí- ma causa (racketeering), extorque empresários com o
lia não é perigosa e invencível em si mesma. É perigosa pizzo (uma percentagem do negócio)3 e usa violência e
e invencível porque é um instrumento de governo local” até assassinatos para se impor.
(DICKIE, 2004, p.73). Desde o século XIX a máfia siciliana é considerada
A organização não tem programa político ideológico, uma associação de malfeitores (malfattori) pelo enqua-
mas assume uma postura conservadora de viés tradicio- dramento penal da época. Existe um contrato de frater-
nalista. Participa dos negócios políticos para assegurar nidade, com iniciação e adesão cerimonial.
sua sobrevivência, impunidade e prosperidade. A partir
de seus interesses, corrompe qualquer autoridade ou A célula de base da Cosa Nostra é, assim, a família, com
partido político nos âmbitos local, regional ou nacional. seus valores tradicionais: a honra, o respeito pelos laços
Diogo Gambeta, no seu livro The Sicilian Mafia: The de sangue, a fidelidade, a amizade. Ela pode contar de du-
Business of Private Protection (1996), apresenta uma zentas a trezentas pessoas, sendo a média cinquenta. Cada
interpretação em que a organização fornece um servi- família tem o controle de uma porção do território sobre
ço (proteção privada) que não é garantido pelo Estado o qual nada pode acontecer sem o conhecimento prévio
italiano. Seria uma empresa econômica específica que do chefe (PADOVANI, FALCONE,1993, p.84).
produz, promove e vende proteção privada e protege os
direitos de propriedade e transações econômicas, tan- Também existiu ao longo do tempo um grupo gover-
to legais como ilegais. nante independente que regula as atividades das fami-
Essa visão leva em conta o efetivo controle territo- glie4 associadas. Portanto, um dos seus traços carac-
rial pela máfia e visa explicar porque o domínio da or- terísticos é a hierarquização.
ganização só poderia ser obtido com o explícito ou im- Em 1957, numa reunião realizada em Palermo, mem-
bros enviados da Cosa Nostra americana acon-

Nostra é a Família selharam aos sicilianos a adotarem uma Comis-


são centralizada, onde teriam assento os repre-
sentantes das famiglie, que ajudaria a resolver
os problemas internos e unificar a organização.
plícito apoio de segmentos da população, do governo e Na discussão norte-americana sobre a máfia na dé-
atores econômicos. cada de sessenta do século passado, feita a partir dos
Essa é uma explicação “benigna” para sua longevi- Comitês do Senado que interrogaram ex-mafiosos como
dade na medida em que a máfia estaria respondendo a Joe Valachi, surgiu o modelo “burocrático”. Donald Cres-
uma necessidade de proteção em vez de aproveitar-se sey, em seu livro Theft of the Nation (1969), descreve o
das oportunidades para praticar extorsões e abuso de crime organizado mais ou menos como uma burocracia
poder. A organização seria uma espécie de governo al- formal: com se tivesse a forma de uma pirâmide, uma
ternativo que imporia taxas e violência – dois tradicio- hierarquia estável, clara divisão de tarefas, códigos de
nais monopólios do Estado. conduta e sanções internas e externas. Essa visão é ain-
A analogia da organização mafiosa com um “estado da encontrada na mídia e entre operadores da justiça
paralelo” não é adequada em dois pontos. Primeiro, por- criminal. Na literatura criminológica, foi alvo de críticas
que em regra o Estado não garante transações ilegais pelos que postulavam o modelo de “empresa ilícita” na
com mercadorias ilícitas ou operações ilegais em mer- década de setenta e as pesquisas empíricas realizadas.
cados lícitos. Segundo, na prática cotidiana a organiza- Na criminologia, uma alternativa teórica surge ao se
ção cobra “proteção” em relação a danos que ela mes- mudar a pergunta-chave do modelo burocrático: quem

abril • maio • junho 2016 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

manda? Passa-se a indagar: quem é dependente de ou- policiais e prenderam cerca de 2 mil pessoas.6 Chefes
tro? E por que razão? Volta-se a atenção para a relação mafiosos se esconderam ou fugiram para outros países.
entre os delinquentes e seus recursos, tais como conta- Uma comissão de inquérito parlamentar que havia sido
tos, dinheiro e conhecimento. Nessa perspectiva busca- formada em 1962, passou a funcionar em 1963 em me-
-se desvelar a estrutura organizacional em vez de supô- nos de uma semana após o “massacre”. Porém somente
-la ser predeterminada ou conhecida. concluiu suas investigações, um relatório de quarenta
A análise de redes criminais baseada em “contatos” volumes, em 1976. Em 1965 foi aprovada a Lei 575, que
entre supostos criminosos tem avançado muito. Porém, estipulava que suspeitos de pertencerem à máfia pode-
do ponto de vista da prática da justiça criminal, é indis- riam ser forçados a viverem longe de suas casas e cida-
pensável chegar ao conteúdo real das transações, o que des. Essa medida era justificada por supostamente que-
se faz, por exemplo, com as “colaborações premiadas” brar o contato entre os mafiosos e a sociedade siciliana.
(collaboratori di giustizia). Dúzias de mafiosos foram realocadas em “residências
No “maxiprocesso” criminal em Palermo (1986-87) obrigatórias” na península. O efeito perverso dessa me-
a promotoria, a partir do depoimento de Tommaso Bus- dida de exílio interno foi o estabelecimento de novas ba-
cetta, argumentou que a Cosa Nostra existia e consistia ses de operações da máfia pela Itália.7
numa estrutura piramidal unificada, chefiada pela Co- Em 1968 houve o julgamento em Catanzaro, na Ca-
missão, cujas ordens eram cumpridas pelos “soldados”. lábria, de 117 acusados de pertenceram à máfia e par-
Consequentemente, a denúncia dos promotores foi fei- ticiparem da “primeira guerra”. Somente alguns chefes
ta contra toda a Cosa Nostra, inclusive os mais impor-

Chefes mafiosos
tantes chefes e a Comissão. Na primeira decisão o Tri-
bunal de Palermo aceitou esta argumentação, que fi-
cou conhecida como o “teorema de Buscetta”: numa or-
ganização criminosa unificada, guiada pela Comissão,
seus participantes eram legalmente responsáveis pe- mafiosos receberam penas longas, como Pietro Tor-
las ações executadas pelos soldados e outros mafiosi reta – condenado por dois homicídios em sua cidade e
sob seu comando. Angelo La Barbera, que recebeu uma pena de 22 anos
e meio. Dois mafiosos foram julgados in abstentia: Gre-
A cultura do silêncio e implementação da política antimáfia co e Tommaso Buscetta. Porém, o resto dos acusados
A omissão de informações por parte de amplos seg- foi absolvido ou recebeu penas curtas por serem mem-
mentos da sociedade civil inviabiliza a efetiva investiga- bros de uma associação criminosa. Por terem espera-
ção e controle policial de crimes. E assegura, por con- do o julgamento na prisão, a vasta maioria foi imedia-
sequência, o não reconhecimento de padrões de crimi- tamente liberada por ter cumprido a pena. Neste julga-
nalidade. Na Itália negou-se a existência da máfia sici- mento histórico não houve suspeita de conluio entre o
liana por bem mais de um século. Judiciário e a máfia.8
Em dezembro de 1962, iniciou-se em Palermo a cha- Três observações são importantes nessa tentati-
mada “primeira guerra da máfia” – uma disputa entre va de implementar a política antimáfia. Primeiro, era
duas famiglie sobre perdas de heroína em um embar- raro obter-se condenações antes do chamado “teore-
que para Nova York e a morte do mafioso Calcedonio de ma de Buscetta”, elaborado pelo procurador Giovan-
Pisa.5 Mortes aconteceram entre as partes em Palermo ni Falcone a partir de colaboração premiada obtida do
e seus subúrbios, até que uma bomba em Caiculli matou mafioso. Segundo, a intimidação de testemunhas pela
sete policiais. As autoridades passaram a intervir com Cosa Nostra levou a retratações perante o Tribunal de

140 famiglia
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depoentes que haviam trazido provas, previamente, às A associação será de tipo mafioso quando os que dela fa-
investigações. Terceiro, o juiz que avaliou inicialmente zem parte utilizarem-se da força ou intimidação do vín-
as provas e o juiz julgador não aceitaram a argumen- culo associativo, e das resultantes condições de submis-
tação de que a Cosa Nostra era uma organização cen- são e de omertà que derivam dela para o cometimento
tralizada e hierárquica. O juiz na sentença final admi- de delitos, para aquisição direta ou indireta do contro-
tiu apenas que a máfia pudesse ser considerada “uma le das atividades econômicas, de concessão de autoriza-
atitude psicológica ou a típica expressão de um indivi- ção, empreitadas e serviços públicos, ou para consegui-
dualismo exagerado”.9 rem lucro ou vantagens injustas para si ou para outros,
A década de setenta foi marcada por lutas sociais e ou para impedir ou colocar obstáculos ao livre exercício
por atentados terroristas de direita (Ordine Nuevo, Or- do voto, ou de buscarem votos, para si ou para outros,
dine Nero etc.) e esquerda (Brigadas Vermelhas e Pri- em caso de pleitos eleitorais.13
ma Linea). Entre 1969 e 1980 aconteceram 4.298 inci-
dentes terroristas durante um período que é chamado Quais foram as inovações trazidas pelo novo tipo penal?
de “estratégia da tensão”.10 São três acréscimos em relação ao artigo 416 do Código
Em resposta à violência terrorista foram feitas mu- Penal de 1930, que já indicava a necessária presença de
danças legislativas. O Decreto 99, de 1974, modifica o três elementos: o vínculo associativo, a estrutura organi-
artigo 272 do Código de Processo Penal e passa a du- zada e o programa criminoso. No artigo 416 bis, o vínculo
ração máxima da prisão preventiva para 4 anos, se a associativo torna-se qualificado porque precisa ser esta-
belecido atra-

se esconderam ou fugiram
vés da inti-
midação,
que causa
a submis-
ordem de prisão for opcional e 20 anos se a ordem for são e gera a omertà (código de silêncio) derivada do po-
compulsória. A Lei Bartolomei, de 14/10/1974, prevê a der da intimidação.
investigação sumária e reintroduz o interrogatório de Anteriormente esses elementos não eram puníveis
polícia, com a presença do advogado. Em 22 de maio de pela legislação penal. Consequentemente, “a acumula-
1975 é adotada a Legge Reale,11 que estabelece: no ar- ção de uma série e fatos e sinais, que tomados separa-
tigo 4º, a revista corporal pela polícia sem autorização damente não constituem crime, pode levar à acusação
judicial; no artigo 5º, a proibição de uso de vestimentas de associação criminal de tipo mafioso” (PADOVANI, FAL-
que não permitam a identificação da pessoa; artigo 6º, a CONE, 1993, p. 126). Estas são as características do “mé-
ampliação da definição de “armas impróprias”, que per- todo mafioso”: intimidazione; assoggettamento; omertà.
mite a prisão de pessoas que as carreguem. E, por fim, É uma forma de criminalidade.
a ampliação da faculdade dos agentes de polícia, para A intimidação opera interna e difusamente: ou seja,
que possam disparar armas, quando se depararem com funciona desde dentro da organização até a população
uma situação que possa resultar em crime. do território. Exemplo esclarecedor: o proprietário de
A tipificação penal específica ocorreu apenas em valioso imóvel sucumbe pelo medo da organização e o
1982 com a Lei Rognoni-La Torre, que introduziu a “as- vende a um chefe mafioso por preço muito abaixo do va-
sociação de tipo mafioso”, moldada principalmente na lor de mercado. Devido ao efetivo controle do espaço ter-
experiência da Cosa Nostra siciliana.12 No artigo 416 bis ritorial, o proprietário e outros moradores, já submis-
do Código Penal Italiano lê-se: sos, recusam-se a colaborar com as autoridades em in-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vestigações de quaisquer crimes: é a solidariedade pelo no julgamento de 1968. Depois de sete anos como parla-
medo, ou omertà (lei do silêncio).14 Ainda mais, agora o mentar em Roma, Terranova voltou a Palermo para ocu-
programa criminal pode incluir crimes relacionados com par o cargo de chefe de investigações em junho de 1979.
a área econômica e também com os setores públicos e Meses depois, em 29 de setembro de 1979, foi assassi-
políticos. Assim, as atividades “mafiosas” variam de um nado no seu carro junto com seu motorista e guarda-
grande elenco de atividades criminosas a negócios su- -costas. A ordem para o homicídio veio supostamente do
postamente legais. Nos quatro anos seguintes aproxi- mafioso Luciano Leggio, que foi submetido a julgamento
madamente 15 indivíduos foram indiciados por serem por esse crime duas vezes, em 1983 e 1986, e absolvido
membros da máfia. por falta de provas nas duas instâncias.
A interpretação e aplicação judicial do artigo 416 bis O sucessor de Terranova foi Rocco Cinnici que no-
foi alvo de muitos questionamentos e de polêmicas. Os meou Falcone para investigar o tráfico de heroína en-
investigadores precisavam de evidência da associação, tre a Sicília e Nova York no Ufficio Instruzione de Paler-
ou seja, provar a conexão entre o método mafioso de ob- mo. O procurador chefe Gaetano Costa, que assinou os
ter lucro e os tipos de atividades ilegais que os membros mandados de prisão de 53 mafiosos, foi morto em 6 de
da máfia conduziam. Testemunhas não seriam necessá- agosto de 198016. Dois policiais17 que investigavam o
rias, e a persecução penal seria provada com base na caso de tráfico de heroína haviam sido anteriormente
documentação das operações econômicas e financei- assassinados.
ras conduzidas pelos membros da associação mafiosa.15 Em maio de 1982, o governo italiano enviou o gene-
Entre os documentos usados como evidência de ral dos carabiniere Carlos Alberto Dalla Cheisa para re-
associação mafiosa estavam cadernos de endereços primir a violência mafiosa, mas sem efetivos recursos
de pessoas já condenadas por serem mafiosos e car- para fazê-lo. O Prefeito Dalla Chiesa foi morto no centro
tas de mafiosos notáveis. A fragilidade dessas provas da cidade em 3 de setembro de 1982. Chiesa estava com
foi algumas vezes demonstrada. E os promotores co- sua jovem esposa e o motorista, porém sem escolta poli-
meçaram cada vez mais a usar a colaboração proces- cial. Após o atentado surgiram protestos populares con-
sual dos pentiti (arrependidos) para comprovar o víncu- tra a Cosa Nostra dirigidos aos políticos como o demo-
lo associativo mafioso. crata cristão Salvo Lima, da corrente de Giulio Andreotti.
A trajetória das investigações conduzidas pelo pro- As investigações de Falcone18 e Chinnici resultaram
curador da república (juiz de instrução, no sistema ita- em 14 ordens de prisão, assinadas por ambos no dia 9
liano) Giovanni Falcone ilustra o contexto de violência e de julho de 1983, tendo à frente o chefe Michele Greco
as mudanças da época em Palermo. (conhecido como o Papa), que até pouco tempo atrás não
O procurador Cesare Terranova foi protagonista nas era reconhecido pela polícia e estava foragido. No dia
acusações aos mafiosos da primeira guerra da máfia e 21 de julho, Rocco Chinnici foi morto em seu carro por

No início de 1982 havia


uma morte a cada três dias
em Palermo
142 famiglia
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uma explosão de bomba junto com dois guarda-costas.19 nos processos. A opção por buscar os collaboratori di
Essas mortes ilustram a força de intimidação da giustizia vinha da estratégia usada anteriormente para
Cosa Nostra em Palermo e resulta na submissão e no combater o terrorismo político (Decreto 625/1979).24 O
silêncio que impõe a todos. dispositivo oferecia uma redução substancial da pena
O procurador chefe Rocco Chinnici incentivou a cria- para quem fosse acusado de terrorismo ou subversão
ção de uma pequena equipe para conduzir as investiga- e entregasse evidências ao Estado. Era necessário para
ções, partilhar informações, discutir estratégias e as- obter o benefício uma confissão completa, inequívoca
sinar em conjunto as peças das ações (pool antimáfia). ruptura de todos os contatos com as organizações ter-
Inicialmente, Falcone examinou manualmente milhares roristas e colaboração ativa para identificar compar-
de cheques bancários para entender a dinâmica interna sas anteriores e evitar mais violência. Se a colabora-
e os objetivos da rede de pessoas envolvidas no tráfico ção auxiliasse a polícia e os procuradores a consegui-
de heroína e compilava os resultados em cadernetas.20 rem “prova definitiva”, o autor poderia obter a redução
Não dispunha de computador, o espaço do escritório era da pena de um terço à metade. A pena de homicídio po-
pequeno, poucos telefones estavam disponíveis e a pro- dia ser reduzida de prisão perpétua para uma pena de
teção individual era inadequada. Em 1981 cerca de 120 reclusão de doze a vinte anos.
indiciamentos estavam prontos, mas os acusados esta- Colaboração de mafiosos não estava prevista na Lei
vam sendo assassinados sistematicamente. 15/1980. Mas o aumento da violência da Cosa Nostra
A “segunda guerra da máfia” estava começando em suscitou a oportunidade de usar a colaboração premia-
1981, com uma disputa sangrenta entre os membros da da. Somente em 1991 a lei foi modificada para contem-
organização em Corleone (liderados por Salvatore [Totò] plar a colaboração dos mafiosos com a Justiça. No iní-
Riina) e chefes de Palermo sobre o tráfico de heroína in- cio de 1992 a Corte de Cassação confirmou a validade
ternacional. Foram assassinados Stephane Bontade e, dos depoimentos de Tommaso Buscetta.25
três semanas depois, Salvatore Inzerillo, ambos mem- No caso da Cosa Nostra, significava a quebra da omertà
bros da Comissão (Cúpula) em Palermo. O terceiro che- – o código do silêncio –, principalmente em relação a não
fe Gaetano Baldamenti fugiu. cooperar nunca com as autoridades policiais em investiga-
No início de 1982 havia uma morte a cada três dias ções. Falcone já cooperava com o Departamento de Justiça
em Palermo: estava em andamento uma operação de ex- americano, que estava conduzindo as investigações sobre
termínio (mattanza) comandada por Totò Riima.21 No ve- o tráfico de heroína para Nova York, e ficou conhecida
rão de 1982, o investigador policial Antonino (Ninni) Cas- como a “conexão Pizza”. As autoridades americanas usa-
sará concluiu um relatório abrangente, indicando 162 ram o Programa de Proteção a testemunhas para prote-
protagonistas nessa guerra.22 É nessa mesma época ger e também dar asilo a Tommaso Buscetta e Salvatore
que Falcone inicia investigações sobre os primos Anto- Contorno, evitando que fossem mortos pelos mafiosos de
nio e Ignacio Salvo – importantes empresários na Sicí- Corleone, dentro ou fora das prisões. As duas testemu-
lia, que também controlavam a arrecadação de taxas23 nhas foram muito importantes. Sobre Buscetta,26 o pro-
de Palermo. O parceiro político deles era o político Sal- curador Falcone (1993, p. 36) afirmou:
vo Lima, ex-prefeito do Partido da Democracia Cristã.
A violência a amigos e parentes de mafiosos enfra- Trouxe-nos uma enorme quantidade de confirmações so-
queceu os laços sociais entre mafiosos, e as autoridades bre a estrutura, sobre o recrutamento, sobre as funções
buscaram os colaboradores da Justiça. Anteriormente, a da Cosa Nostra. Mas, sobretudo, deu-nos uma visão glo-
polícia conseguia no máximo informantes (confidenti) que bal, larga, extensiva, do fenômeno. Confiou-nos uma in-
não queriam ou não se esperava que testemunhassem terpretação essencial, uma linguagem, um código.

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A denúncia escrita por Falcone e Paolo Borsellino dados” esclareceram que casos de pessoas que “desa-
tinha 8.607 páginas e apêndices com mais de 4 mil pá- pareceram” eram, na verdade, homicídios, em geral por
ginas que incluíam documentos e fotografias. Na fase estrangulamento, em que se jogava o corpo num latão
final da redação da acusação, ambos foram com suas de ácido para liquefazê-lo e jogá-lo em alguma vala ou
famílias se refugiarem na prisão de segurança máxima poço (lupara bianca).
na ilha de Asinara.27 Ao término do trabalho foram acu- Sentenças condenatórias foram obtidas29 para 360
sados 475 supostos membros da máfia, dos quais 460 mafiosos,30 entre eles o chefe Michele Greco, de Ciaculli,
estavam presos. e o assassino Giuseppe Marchese. Totó Riina e Bernar-
O maxiprocesso foi realizado entre fevereiro de 1986 e do Provenzano foram condenados in absentia. Dezeno-
dezembro de 1987, num bunker, capaz de resistir a ataques ve acusados foram condenados a penas perpétuas. Ou-
de mísseis, construído

Começa a mobilizar-se um
especialmente para o
julgamento, dentro da
área cercada da pri-
são de Ucciardoni. Ha-
via tanques e helicópteros em Palermo; segurança visí- tros 114 acusados foram liberados por insuficiência de
vel 24 horas por dia de 3 mil soldados armados. Foi uma provas, inclusive Luciano Liggio, da família de Corleone,
exibição de força do Estado e houve enorme cobertura que fora acusado de comandar operações de dentro da
da mídia com cerca de 600 jornalistas. prisão. Absolvições como essa sugerem que houve cau-
Os advogados da Cosa Nostra usaram todos os re- tela no exame das provas e dos depoimentos dos cola-
cursos possíveis para retardar o andamento do proces- boradores da Justiça durante o julgamento.
so. Entre outras manobras forenses, os advogados peti- A observância do devido processo legal e o come-
cionaram para que o inteiro teor de todos os documen- dimento no uso dos depoimentos dos colaboradores da
tos relacionados à acusação de todos os réus fosse lido Justiça são sempre crucial em qualquer investigação e
com a finalidade de informar ao júri de todas as contro- no julgamento dos casos. É indispensável verificar qual-
vérsias e detalhes do processo. O objetivo dos advoga- quer suspeita de falsa imputação de crime às pessoas
dos era esgotar o tempo destinado à prisão preventiva ou informações inverídicas sobre a estrutura da orga-
para inúmeros acusados. Essa procrastinação só foi su- nização criminosa. Nesse sentido, os advogados da Cosa
perada quando, num excepcional acordo entre partidos Nostra regularmente questionaram os depoimentos e
políticos, conseguiu-se alterar a legislação processual lançaram suspeitas sobre os colaboradores, como ocor-
penal sobre prisão preventiva em fevereiro de 1987. reu no maxiprocesso em Palermo.
A lei passou também a limitar a obrigação de pro- Lamentavelmente, na época, estava também em an-
dução de documentos em juízo enquanto o processo damento um processo que envolvia um apresentador de
está em andamento. Essas regras passaram a vigorar um programa nacional de televisão: Enzo Tortora. Em ju-
imediatamente.28 nho de 1983, Enzo foi preso sob a alegação de que parti-
Mais de mil depoimentos foram dados no julgamen- cipava de tráfico de heroína com a Nuova Camorra Or-
to, inclusive o de Tommaso Buscetta, que durou uma se- ganizzata de Nápoles. As informações sobre o apresen-
mana e foi transmitido ao vivo pela televisão. Mas pou- tador de TV vieram de depoimentos de pentiti. Objetiva-
cas vítimas da Cosa Nostra tiveram coragem de prestar mente havia apenas a anotação de um nome e telefone
depoimentos, mesmo mães se recusaram a falar sobre numa caderneta. Em 1985, no primeiro julgamento, foi
as mortes de seus filhos. Porém, depoimentos de “sol- condenado a dez anos de prisão. Cumpriu sete meses de

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pena. O Partido Radical iniciou uma campanha de apoio bilizar-se na sociedade de Palermo um movimento an-
a Enzo que obteve repercussão.31 Enzo Tortora foi ab- timáfia, mais orientado pela ética e civismo do que pela
solvido no Tribunal de Apelação e na Corte de Cassa- política. É uma tentativa social de afirmar o princípio da
ção. A investigação criminal tinha sido precária e equi- legalidade republicana. São criados grupos nas escolas,
vocada. Não se quebrou o sigilo telefônico do acusado, universidades e centros culturais. Nas eleições de Pa-
nem suas movimentações bancárias foram verificadas. lermo vence Leoluca Orlando, do Partido da Democracia
Quando a perícia examinou a caderneta constatou que Cristã, que apresentava uma posição antimáfia. Por sua
o nome era Tortona. Os pentiti pareciam ter decorado iniciativa, o Conselho da cidade foi representado como
uma narrativa e não respondiam a várias perguntas na apoiador no maxiprocesso. Entre 1984 e 1986, o período
ocasião dos julgamentos dos recursos.32 ficou conhecido como a “Primavera de Palermo”. A insti-
tucionalização desses apoios antimáfia em

movimento antimáfia
associações, centros, coalizões e mobili-
zações em campanhas constituem com-
ponentes que fortalecem a política públi-
ca de combate a violência e corrupção.36
Apesar desse avanço na implementação da política Por outro lado, após o julgamento, novos obstáculos
antimáfia no maxiprocesso de Palermo, o desafio conti- surgiram à continuidade das investigações sobre a Cosa
nuava enorme. Em 1986 estimava-se que cerca de 12% Nostra. Antonio Caponnetto, procurador chefe durante
do Produto Nacional Bruto italiano era resultado de ati- o maxiprocesso, decide se aposentar e voltar para Flo-
vidades criminosas. Aproximadamente metade vinha do rença com sua sua família, depois de quatro anos e meio
tráfico de drogas e o restante, de extorsão, furtos, se- em Palermo. Tudo parecia acertado para que Falcone o
questros e pagamentos ilegais em troca de favores.33 sucedesse como procurador chefe em 1987. Manobras
Em 1989, a Comissão Antimáfia do Parlamento italia- políticas foram feitas, e o resultado da eleição no Con-
no contratou o instituto de pesquisa Censis para avaliar selho Superior da Magistratura foi desfavorável: Anto-
o alcance do controle territorial mafioso. Foram usadas nino Meli obteve 14 votos, Falcone, 10 e as abstenções
estatísticas criminais para identificar as áreas urbanas foram 5. A justificativa para a decisão foi o vencedor ter
e rurais em que os grupos atuavam no sul do país. Em mais anos de serviço. Paolo Borsellino protestou publi-
Palermo, o relatório afirma que 80% das empresas pa- camente contra o resultado.37
gavam proteção à Cosa Nostra. Considerando-se a iden- Antonino Meli iniciou o processo de desmonte do
tificação de 610 distritos sob a dominação das organiza- pool antimafia. O novo procurador chefe Meli negou o
ções criminosas, estimou-se que 9 milhões de habitantes princípio norteador das acusações de Falcone – a natu-
tinham suas vidas cotidianas condicionadas ou submis- reza unitária da Cosa Nostra – e acolheu a tese de que
sas a esses poderes efetivos porém ilegais.34 era um agrupamento de bandos. A partir dessa pers-
As estatísticas oficiais sobre o número de conde- pectiva, Meli fragmentou o processo e o distribuiu para
nações na Sicília no período 1982-2001 por associação vários uffici, levando à perda de um fio condutor nas in-
criminal do tipo mafioso são crescentes:35 vestigações.38 Publicamente, Falcone passa a ser acu-
• De 1982 a 1991: 229 condenações sado de “culto à personalidade” e de ter “intenções po-
• De 1992 a 1996: 681 condenações líticas” inconfessáveis.
• De 1997 a 2001: 1.214 condenações Durante 1988, Falcone colaborou com Rudolph
• Total (de 1982 a 2001): 2.124 condenações. Giuliani, na época promotor, para o Distrito do Sul de
Por um lado, a partir dos anos oitenta, começa a mo- Nova York, nas operações Iron Tower contra as fami-

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Em 1990, apenas 60
dos 360 condenados
ainda estavam presos
glie Gambino e Inzerillo envolvidas com tráfico interna- liberados com base em tecnicalidades processuais.
cional de heroína. Em 1990, apenas 60 dos 360 condenados inicialmen-
Em 1989 uma campanha é posta em marcha para te ainda estavam presos, vários em hospitais por ale-
desprestigiar Falcone a partir de uma carta anônima de garem doenças.
alguém que assinou como Corvo – um episódio que não Giovanni Falcone afirmava que o novo Código de
foi inteiramente esclarecido. Em 20 de julho de 1989, Processo Penal italiano, que passou a vigorar em 1989,
Falcone e sua mulher escapam de um atentado na vila tornou mais difícil a persecução da “associação crimi-
de Addura, que não teve investigações conclusivas. Um nal de tipo mafioso” porque passa a exigir a procura de
clima hostil se mantém no Palácio da Justiça de Palermo “delitos específicos”.
nesse período, principalmente devido a confrontos com
o Procuratore Capo Piero Giammanco. Decepcionado, Agora a prova, como nos processos anglo-saxões, deve
isolado e vulnerável Falcone aceita uma transferência ser apresentada no curso do julgamento; se um arrepen-
para Roma, em 1991, onde passa a diretor de assuntos dido, por exemplo, acusa um réu de ser membro da Cosa
penais do Ministério da Justiça. Neste período ajuda a Nostra, será necessário provar, durante o mesmo julga-
criar a Divisão Nacional Antimáfia e um regime discipli- mento, a existência de uma organização chamada Cosa
nar carcerário diferenciado (cárcere duro) para mafio- Nostra. Essa exigência torna particularmente difícil per-
sos e terroristas (41 bis). Falcone pressiona ainda pela seguir, daqui para frente, acusados de associação ma-
criação de uma lei de proteção às testemunhas, confor- fiosa (PADOVANI, FALCONE, 1993, p. 127).
me o modelo norte-americano.
Os processos de apelação do maxiprocesso conti- Ou seja, para ser obtida a condenação criminal, deve
nuaram por quatro anos, devido à morosidade do siste- ser provada a participação individual no programa cri-
ma judicial italiano, a complexidade dos casos e a violên- minoso da organização.39 Em 1990, o Tribunal de Ape-
cia da Cosa Nostra. Em setembro de 1988, o desembar- lação em Palermo recusa-se a acolher o chamado “teo-
gador Antonio Saetta do Tribunal Criminal de Apelação rema de Buscetta”. Em janeiro a situação política muda-
foi assassinado quando voltava de carro para Palermo ra: Leoluca Orlando – o prefeito antimáfia – é substituí-
com seu filho deficiente; a polícia encontrou 40 balas de do pela Democracia Cristã em Roma, que o considerava
armas automáticas no local. Nesse período, foi aprova- muito independente.
da uma lei para evitar que presos ficassem longos pe- A violência da Cosa Nostra continua. Antonio Scope-
ríodos em custódia esperando o resultado final de seus litti, procurador na Corte de Cassação, que estava tra-
casos. Mafiosos foram beneficiados. balhando na apelação antimáfia, é morto pela Cosa Nos-
Entre 25 de setembro e 12 de novembro de 1989 tra em 9 de agosto de 1991, quando passava um feriado
foram julgados os casos de apelação e muitos foram com a família na Calábria. Estava sem escolta policial.

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Em 30 de janeiro de 1992, o Tribunal de Cassação explosão de um carro, estacionado perto do condomí-


em Roma reconhece como válido o conjunto de argu- nio onde morava sua mãe, causou a morte do procura-
mentos acusatórios do maxiprocesso e reverte a decisão dor e cinco guarda-costas.
de segundo grau que havia atenuado as penas. A Cor- Em Roma, o Gabinete de Ministros se reuniu e de-
te restaura as 19 prisões perpétuas e as condenações cidiu enviar 7 mil membros das Forças Armadas para
impostas aos “chefes” mafiosos, aos “soldados” e afilia- guardar instalações “estratégicas” como tribunais, vias
dos (gregari) pelo tribunal de Palermo. A tese da orga- expressas, estações rodoviárias e aeroportos.42 De fato,
nização “unitária e hierárquica” que gera a responsa- esse reforço militar ajudou a liberar as forças policiais
bilização criminal coletiva da “cúpula” da Cosa Nostra de Palermo para conduzirem investigações e prenderem
é acolhida pelo mais elevado tribunal italiano. O “teore- mafiosos. No entanto, em 17 de setembro dá-se mais um
ma de Buscetta” é validado neste leading case sobre a vendeta: Ignazio Salvo, preso como mafioso em 1984 e
Cosa Nostra. condenado no maxiprocesso, é assassinado em Paler-
A partir desse momento haverá uma grande polê- mo, supostamente por não ter conseguido reverter o ve-
mica sobre o alcance do art. 416 bis do Código Penal – o redicto da Corte de Cassação.
método mafioso – que se estende até hoje. Discute-se na Em reação à morte de Falcone, foi alterado o “regi-
jurisprudência e, em cada caso concreto, os limites entre me do cárcere duro” (41 bis) no dia 8 de junho de 1992.
“participação” na organização e “cumplicidade externa” Novo artigo foi incluído para que medidas restritivas
no esquema do art. 416 bis do Código Penal italiano.40 fossem aplicadas quando houvesse “séria preocupação
Após a decisão da Corte de Cassação em Roma, sobre a manutenção da ordem e segurança”. O objetivo
acontecimentos violentos e dramáticos se encadearam era evitar a continuidade de associações por meio da
na Sicília: uma campanha terrorista da Cosa Nostra. Em troca de mensagens entre prisioneiros mafiosos e que-
12 de março de 1992, Salvo Lima – um dos mais influen- brar a linha de comando entre os chefes e os seus su-
tes políticos da ilha e visto como associado da máfia – bordinados. Essas medidas tornaram-se na Lei 365, de
foi morto, supostamente por não ter conseguido alte- 7 de agosto de 1992, portanto, logo após o assassinato
rar o resultado da Corte de Cassação. Giovanni Falcone, de Borsellino. Em 2002, a lei foi incorporada ao Código
sua esposa Francesca e sete policiais, que faziam sua Penal. A Anistia Internacional protestou afirmando que
proteção em três carros, foram alvo de um atentado – em algumas circunstâncias poderia configurar trata-
uma bomba de 500 quilos posta em um tubo sob a rodo- mento cruel, degradante e desumano de prisioneiros.
via em Cappaci no dia 23 de maio de 1992. A cerimônia Em junho de 2002 a Cosa Nostra organizou uma greve
do funeral na Basílica de São Domenico foi transmitida nacional de fome nos presídios para marcar sua rejei-
ao vivo nacionalmente pela TV. Houve comoção social e ção à medida. Esta controvérsia sobre o necessário e
muitos cobertores apareceram nas janelas pela cidade razoável equilíbrio entre a eficácia no desmantelamen-
em sinal de protesto. to das organizações criminosas e o garantismo liberal
Paolo Borsellino não participou das investigações permanece até o momento.
sobre a morte de seu amigo Falcone. Seu impedimento Outro antigo projeto dos promotores antimáfia foi
foi justificado por ainda continuar a ter atribuições em aprovado: um Programa de Proteção de Testemunhas,
Marsala, e não – como já pedira – em Palermo. Borselli- assemelhado ao existente nos Estados Unidos – Lei 356
no trabalhava com três “colaboradores da Justiça” nesse de 7 de Agosto de 1992 (Ley Gozzini). Esta, reivindica-
período; entre eles, Leonardo Messina, que começara a ção que vinha da época em que o “colaborador da Justi-
dar informações preciosas sobre os contratos públicos ça”, Tommaso Buscetta, precisou ser protegido pelo FBI
e a Cosa Nostra.41 Em 19 de julho de 1992, uma enorme devido à ausência de um programa italiano adequado.

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Esse programa, custoso e complexo, era indispensável dade legítima, a obtenção de vultosos recursos financei-
para a sobrevivência física das testemunhas e suas fa- ros, a disponibilidade de um exército clandestino e bem
mílias, para superar a cultura do silêncio e instrumen- armado. Tudo isso são elementos que se aplicam segun-
to crucial para avançar no desmantelamento das orga- do a lógica do poder e da conveniência, sem qualquer re-
nizações criminosas.43 Em 2001, a legislação foi revis- gra senão a que ela própria impõe. A estratégia política
ta. Criou-se a distinção entre “testemunha ameaçada” e da Cosa Nostra não é mudada pelos outros mas imposta
“colaborador da Justiça” com benefícios reduzidos em aos outros pela corrupção ou pela violência.46
relação ao passado.
Segundo a análise de operadores em Palermo, com Esse relatório é um marco histórico. Mesmo assim,
benefícios menores, os riscos de colaboração com o Es- não discute, por exemplo, a relação entre Salvo Lima e
tado, ficaram muito elevados, e a quantidade de pentiti Giulio Andreotti. Aliás, o maxiprocesso não focalizou as
(arrependidos) diminuiu.44 Atualmente, a possibilidade de relações políticas entre a máfia siciliana e os políticos.47 A
morte ou isolamento total é maior. A Cosa Nostra apren- decisão foi tomada porque não havia evidência suficien-
deu também a ser extremamente cautelosa no uso de te- te, e, portanto, alegações poderiam desnortear as acusa-
lefones, celulares ou mesmo fazer reuniões em lugares ções. No entanto, vale a pena citar o que estava escrito
públicos ou residências particulares para evitar o ris- no diário privado de Rocco Chinnici, Promotor Geral do
co de interceptação. Por tudo isso, um eficaz programa Palácio da Justiça em Palermo:48 “Existe uma máfia que
de proteção estatal a testemunhas é simultaneamente atira, a máfia que trafica drogas e lava dinheiro e ainda

Tommaso Buscetta precisou ser


indispensável para as investigações e alvo persistente a máfia política. Nossas investigações estão chegando
de ataques políticos, jurídicos e públicos dos poderosos. aos mais altos níveis do poder político”.
A condenação explícita da Cosa Nostra pela Igre- O sul da Itália foi alvo de programas públicos de de-
ja Católica se dá pela primeira vez no sermão de João senvolvimento econômico e social, como o Cassa del Me-
Paulo II na catedral de Agrigento, Sicília, em 9 de maio zzogiorno, iniciado em 1950 para construção de obras
de 1993, quando o Papa convoca os mafiosos a se arre- públicas, prover infraestrutura e também dar crédito
penderem. A resposta veio em 27 de julho: bombas ex- subsidiado, incentivos fiscais e financeiros a investimen-
plodiram nas igrejas de San Giovanni, em Laterano e San tos, a empreendimentos que se instalassem na região.49
Giorgio, em Roma. Em 15 de setembro, em Palermo, Pino Além desse fundo, foram carreados recursos do Plano
Puglisi o padre antimáfia mais conhecido é assassinado. Marshall para a reconstrução no após guerra em Pa-
lermo.50 Esse era um período de fluxo rural em direção
Impunidade, negócios ilícitos, partido político às cidades, o que criava demanda por moradias.
e pax mafiosa:45 Cosa Nostra e política A trajetória de Salvo Lima e de seu parceiro Vito
Está escrito no relatório do Parlamento italiano di- Ciancimino ilustram o que aconteceu à época, que ficou
vulgado em 1993: conhecido como o “saque de Palermo”: a destruição de
áreas verdes para a construção de moradias precárias
A Cosa Nostra tem uma estratégia política própria. A ocu- e lucrativas para os construtores. O cargo político es-
pação e o governo do território em disputa com a autori- tratégico no período do boom imobiliário era na asses-

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soria de obras públicas. Salvo esteve no cargo principal Falcone destacou um aspecto crucial das empre-
entre 1956 e 1958, e a seguir foi eleito prefeito de Pa- sas mafiosas:
lermo. Vito ascendeu ao que planejava as obras públi-
cas em julho de 1959 e permaneceu até julho de 1964. Elas dispõem de um trunfo incomparável: a capacidade
Entre 1959 e 1963, o conselho municipal aprovou de desencorajar toda concorrência pela violência e pela
80% de 4.205 permissões para construir para apenas intimidação; a possibilidade, sempre pela violência, de não
cinco pessoas, que eram “laranjas” da Cosa Nostra. A re- aplicar as convenções coletivas da construção nem leis
gulamentação aprovada permitiu – ao aumentar a den- sobre a segurança do trabalho; a faculdade de ter aces-
sidade de obras no espaço – que fosse erigida uma sel- so ao crédito em boas condições ou de não ter de todo
va de pedra. A economia de Palermo dependia da cons- que recorrer a ele, investindo em seus trabalhos parte
trução desses imóveis financiados por fundos que fo- do dinheiro sujo da droga (PADOVANI, FALCONE, 1993,
ram canalizados para a organização por meio dos es- pp. 118-119).
quemas políticos desses membros da Democracia Cris-
tã, da facção Fanfani.51 Face ao “método mafioso”, as intervenções econômi-
Esse método mafioso de gestão que “coabita”52 com cas do Estado e contribuições a fundo perdido correm sé-
o sistema político, tem apoio de setores importantes da rio risco de serem capturadas sem benefício ao cidadão.
sociedade em Palermo. Por exemplo, proprietários de Em 1964 Vito Ciancimino foi forçado a renunciar a
terra que vendem terrenos ou tem suas propriedades seu cargo devido a acusações feitas à Comissão Nacio-
nal Antimáfia. Porém, em 1970, retorna e,

protegido pelo FBI


durante dois meses, é o prefeito de Paler-
mo. Somente em 1975 é que a Democra-
cia Cristã o mantém fora da competição
eleitoral. Nove anos depois é acusado por
valorizadas. Corretores de imóveis e empreiteiras que Tommaso Buscetta de ser um dos principais políticos em
cooperam com os governantes da cidade. E mais: as em- conluio com a Cosa Nostra.
presas que trabalham na venda de móveis domésticos, O “saque de Palermo” gerou conflito entre fami-
cozinhas, banheiros modernos e materiais de constru- glie: no verão de 1963 uma bomba num carro – que era
ção. Todos que operam com trabalhos públicos na Sicília supostamente para matar um chefe mafioso – elimina
e no Sul em geral atuam de maneira condicionada: de- sete carabinere. Há escândalo e repressão. O prefeito
vem comprar de certos fornecedores e não de outros. na época era o Salvo Lima, do partido da Democracia
Essa bolha imobiliária, patrocinada por fundos desvia- Cristã Italiana (DCI).53 Na investigação de 1964, Lima re-
dos politicamente, favorece arquitetos, engenheiros, em- conheceu que conhecia Angelo La Barbera, o chefe de
presas de encanamento e transporte de cargas. E, ain- uma das mais importantes famiglia de Palermo. Um ne-
da, acarreta ocupação para milhares de trabalhadores gociante local afirmou que havia pago ao chefe mafio-
com pouca ou nenhuma qualificação nas construções. so Tommaso Buscetta uma quantia vultosa para obter
Por fim, politicamente, gera a expectativa de apartamen- uma permissão para construção.
tos próprios para setores de classe média baixa e mo- Relatos da época afirmam que quando Salvo Lima
radia nos projetos de morada popular para setores ca- entrava num café local os presentes se levantavam em
rentes. Enquanto os fundos encaminham os recursos, a respeito a um “homem de honra”. Esse reconhecimento
especulação imobiliária se alimenta, apesar de ser um parecia vantajoso eleitoralmente. Em 1968, Lima foi eleito
modelo mafioso, de “desenvolvimento social urbano”. triunfalmente para o Parlamento Italiano, com uma vo-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tação que superou políticos estabelecidos na


Sicília. Em Roma, ele adere à facção de Giulio O maxiprocesso
em Palermo
Andreotti, que detinha considerável eleitora-
do em Roma e arredores. Era uma aliança en-
tre poderosos: Lima controlava cerca de 25%
de todos os membros da DCI na Sicília. A partir
desse momento, a facção Andreotti passa ter
expressão nacional.
marca uma
A parceria foi politicamente proveitosa.
Andreotti torna-se primeiro-ministro pela pri- mudança no
apoio eleitoral
meira vez em 1972, e Lima obtém um posto no
Gabinete. Em 1974, Lima é colocado no Minis-
tério do Orçamento, como sub-secretário, por

da Cosa Nostra
Andreotti. Ocorrem protestos. Mas Lima per-
manece no cargo. Em 1978 ele é eleito para o
Parlamento Europeu. Em 1981, a violência da
“segunda guerra da máfia” em Palermo traz di-
ficuldades políticas para Andreotti, que precisa
manobrar para não ser identificado com a Cosa Nostra. brado. Com a distribuição feita por sorteio, outra tur-
O maxiprocesso em Palermo marca uma mudança ma do Tribunal de Cassação recebeu o processo para
no apoio eleitoral da Cosa Nostra, que passa a orientar julgamento. A decisão ordenada e esperada pela Cosa
votos para o Partido Socialista (PS). Esse partido esta- Nostra não ocorreu. Salvo foi executado em Palermo.
va apoiando a legislação que restringiria os poderes da Um resumo do “método mafioso” em relação ao Judi-
magistratura depois do caso Enzo Tortora. A principal ciário consta do depoimento do mafioso Leonardo “Nar-
proposta era responsabilizar os promotores que acu- duzzo” Messina perante a Comissão Parlamentar Anti-
sassem erroneamente pessoas a pagar indenizações.54 máfia, em 11 de dezembro de 1992.
Nas eleições de 1987 o PS recebe grande apoio eleitoral
da máfia. Conforme Nando Dalla Chiesa (2016) enfatiza, Por que a Cosa Nostra não deu a mínima importância
a organização detinha o poder “de financiar a campa- quando começaram os maxijulgamentos? Porque sabía-
nha eleitoral, e não somente obter votos contados e se- mos que iriam terminar numa bolha de sabão; eram es-
guros”. 55Salvo Lima foi o político que deveria conseguir sas as palavras que circulavam para tranquilizar nos-
uma decisão judicial favorável à Cosa Nostra em 1992 sos homens.
no Tribunal de Cassação em Roma. Supostamente o ma- Espalhou-se que aquele julgamento, como todos os ou-
gistrado Corrado Carnavale descobriria alguma tecni- tros, prosseguiria até certo ponto nos tribunais inferio-
calidade processual – como erro em formas ou data da res... mas todos sabiam que na Corte di Cassazione, tudo
ação protocolada56 – para anular as sentenças. Esta era teria de dar certo...
a expectativa. De fato, apesar da Corte de Cassação ter Por que assassinamos o juiz Scopelliti, que ia ser promo-
várias turmas, havia uma tendência clara para as ques- tor na Corte di Cassazione? Porque ele foi conversado, e
tões relativas às organizações criminosas serem distri- não prometeu seguir a orientação certa.
buída para a Primeira Seção, presidida por Carnavale. Quando um Homem de Honra tem que ir a julgamento, to-
Porém, no julgamento de 1992, este monopólio foi que- dos na bancada dos juízes e os jurados são “conversa-

150 famiglia
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dos”. Falamos diretamente com o juiz. Alguns juízes que Lima), que tal pacto era intencional e durável, e que con-
foram procurados pela Cosa Nostra e não quiseram nos tribuía para fortalecer a organização criminosa. A exis-
prometer que nos deixariam em liberdade. Foram assas- tência do pacto para obter vantagens recíprocas seria
sinados na rua... suficiente para estabelecer a culpa do acusado. Andreot-
Quando não conseguimos controlar os juízes, eles os ma- ti ganharia mais poder para sua facção dentro do par-
tam. Vejam quantos foram mortos – conte-os.57 tido da DCI e dentro das instituições do Estado – como
tornar-se primeiro-ministro – lucrando, portanto, com
Leonardo Messina foi o primeiro pentito que no- os votos e apoio eleitoral da máfia siciliana. Mais ainda,
meou Giulio Andreotti como o mais elevado ponto de re- poderia contar com outros serviços mafiosos como a in-
ferência num esquema de trocas corruptas que muda- timidação de adversários, controle de conflitos de ma-
ria a decisão judicial do maxiprocesso de Palermo na neira oficiosa etc. Do outro lado, a Cosa Nostra conta-
Corte di Cassazione. ria com políticos sicilianos que fossem da facção de An-
Em 27 de março de 1993, o Ministério Público em dreotti para defender seus interesses econômicos, ob-
Palermo58 solicitou ao Senado que fosse suspensa a imu- ter subvenções e contratos públicos, participar de espe-
nidade parlamentar do senador vitalício Giulio Andreotti culação imobiliária, “combinar” sentenças judiciais etc.
para dar prosseguimento às investigações sobre seus Segundo aspecto, o conjunto de provas trazido pe-
presumidos vínculos com a Cosa Nostra.59 Andreotti foi los procuradores consistia: 1) provas materiais diretas,
acusado de concurso externo60 em associação mafiosa. fundamentalmente depoimentos de colaboradores da
A autorização do Senado foi concedida em maio de Justiça (pentiti) que haviam sido julgados no maxipro-
1993. As investigações sobre Andreotti foram complexas cesso, relatos que foram acolhidos e ratificados pelo
e lentas; além disso, a defesa de Andreotti tentou afas- Tribunal de Cassação. Nesses depoimentos afirmava-
tar o julgamento da jurisdição de primeira instância em -se que Andreotti foi visto em encontros com importan-
Palermo. Em setembro de 1995 começou o julgamento tes líderes mafiosos,61 negociando sentenças em proces-
no Tribunal de Palermo (Corte d´assisse – primeira ins- sos judiciais e aspectos da política siciliana. 2) provas
tância). A decisão judicial foi emitida em 23 de outubro indiretas ou contextuais, que confirmariam os vínculos
de 1999: Andreotti foi absolvido por insuficiência de pro- de Andreotti com os interesses mafiosos. Entre outros
vas. A sentença motivada é publicada em maio de 2000. exemplos, está o caso do banqueiro siciliano Michele Sin-
Os procuradores recorrem ao Tribunal de Apelação de dona,62 relacionado a financiamento ao partido da DCI e
Palermo (Corte d´assisse d´appello), que procede com o lavagem de dinheiro vindo de tráfico de drogas da Cosa
julgamento entre abril de 2001 e maio de 2003. Andreotti Nostra.63 Supostamente Andreotti teria defendido – en-
é outra vez absolvido. Por fim, esse veredito é confirma- quanto presidente do Conselho – interesses econômi-
do pelo Tribunal de Cassação (Corte de Cassation) em co e judiciais dos mafiosos. De fato, esses relatos sobre
15 de outubro de 2004. os “poderes ocultos” dependiam, em parte, da credibili-
O Caso Andreotti, que tramitou nas três instâncias dade dos depoentes, da coerência das declarações, da
em mais de onze anos, é um marco histórico em relação reconstrução plausível do contexto do “pacto de trocas”
à máfia política, assim como o maxiprocesso foi para a e do caráter criminal dos atos e condutas do acusado.
máfia militar. O primeiro aspecto a destacar são os ar- A defesa de Andreotti apresentou três argumentos
gumentos da Procuradoria de Palermo na acusação. A principais. Primeiro, foi atacado o que chamaram de silo-
tese da acusação é que Andreotti fez um “pacto de tro- gismo da acusação: atribuir ao réu as malversações de
cas” com a Cosa Nostra, direta ou indiretamente (por in- seus aliados políticos na Sicília, sem que fossem apre-
termédio de seus aliados políticos, principalmente Salvo sentados fatos específicos que gerassem um liame in-

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dividualizado de “trocas” ilegais com a máfia. Argumen- inteiramente inocentado. Até 1992, as imunidades pro-
tou-se que Salvo Lima tinha um poder enorme na Sicília cessuais penais dos parlamentares foram garantias qua-
e influenciava na distribuição de empregos, por exemplo. se seguras para a ausência de persecuções penais. No
No entanto, essa seria uma conduta de Lima, desvincu- período da crise política aguda – 1992-1994 – esta blin-
lada de Andreotti. Segundo, o réu negou vigorosamente dagem não foi mais possível: o sistema partidário estava
as acusações, e a defesa questionou sistematicamente a se desmantelando sob o impacto da crescente percep-
credibilidade dos pentiti – insistindo que as declarações ção pública sobre a corrupção de políticos e de parti-
eram discutíveis, contraditórias ou sem base em fatos. dos. A “operação mãos limpas” (Mani Pulite)68 veio expor
Terceiro, Andreotti e seus advogados repetiram diversas a corrupção política dos poderosos cuja existência so-
vezes que seu governo, entre 1989 e 1992 – período em mente, então, foi provada judicialmente para os italianos.
que Giovani Falcone estava em Roma –, adotou políticas Em 2016, prossegue o julgamento sobre o pacto Es-
antimáfia. Entre essas políticas estariam medidas para tado/máfia, que supostamente encerrou a violência da
proteção dos pentiti mafiosos, coordenação da ação po- Cosa Nostra sob o comando de Totò Riina e o levou a se
licial, transparência nas licitações de obras públicas etc. entregar às autoridades em Palermo.
A sentença do Tribunal de Palermo absolveu Andreotti Voltando a 1992: interpretaram-se como uma ven-
da acusação com base no art. 416 bis “porque o fato não detta os assassinatos do deputado Salvo Lima e dos juízes
existe”.64 Porém, a sen-
tença confirmou vários
elementos da acusa-
ção. Primeiro, a estrei-
O princípio da legalidade
ta aliança política en-
tre Lima e Andreotti afirmando: “o deputado Lima mante- de instrução Falcone e Borsellino. Os atentados à bom-
ve, tanto antes quanto depois de sua adesão à corrente ba pela Cosa Nostra continuaram em Roma, Florença e
favorável à Andreotti, uma estável relação com a Cosa Milão, em 1993, provocando mais 12 mortes. O objetivo
Nostra”.65 Segundo, a sentença aceitou como provadas seria conseguir a abolição do regime prisional de alta
um conjunto de iniciativas de Andreotti em relação ao segurança (41 bis) para 300 mafiosos e anulação de leis
financista Michele Sindona. que propiciaram o maxiprocesso. Após a prisão de Totò
A sentença do Tribunal de Apelação de Palermo Riina, em 1993, sucedeu-o Bernardo Provenzano à fren-
trouxe uma modificação parcial da sentença de primei- te da Cosa Nostra. Os atentados pararam abruptamente
ra instância ao declarar que: “não se deve instaurar no outono de 1993. A suposição é que houve um acordo
processo contra Andreotti Giulio nos termos do crime de não agressão (La Trattativa Stato/Mafia),69 ou seja,
de associação para formação de quadrilha a ele impu- a pax mafiosa negociada por Provenzano e autoridades
tado no Capítulo A do processo, cometido até a primave- públicas. Desde 1993, várias das supostas exigências da
ra de 1980, por ser extinto por prescrição”.66 O Tribunal máfia foram atendidas, como o fechamento de prisões
de Apelação acolheu a tese central da acusação para o de segurança máxima nas ilhas de Pianosa e Asinara,
período anterior a 1980. Porém, decidiu que após esta onde “homens de honra” cumpriam pena.
época – com o começo da Mattanza conduzida por Totò As ligações entre a máfia e as altas esferas do
Riina – Andreotti teria encerrado seus contatos com a poder italiano foram evocadas em tribunal por Massimo
Cosa Nostra.67 Ciancimino, em 2010. Ciancimino confessou que o próprio
Do ponto de vista judiciário, o réu foi absolvido. Na pai, Vito Ciancimino, antigo presidente da Câmara de Pa-
história política pós-guerra até 1993, Andreotti não foi lermo e amigo de Provenzano, fez a ligação entre a má-

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fia e os políticos no poder para acabar com a campanha máfia.75 Porém, a procuradora Maria Teresa Principato,
de bombas, nos anos 1992-93. Vários outros pentiti, in- de Palermo, que o investiga há dez anos, declarou que
clusive o que detonou a bomba que executou Falcone, Denaro viajava para concluir negócios importantes, ha-
prestaram depoimentos afirmando que o pacto ocorreu. vendo confirmação de sua presença no Brasil, Espanha,
Em 27 de maio de 2013, o processo começou no Tri- Inglaterra, Espanha e Áustria.
bunal de Palermo, porque os novos fatos teriam conexão Adicionou o fato de o chefão permanecer tanto tem-
com as mortes de Falcone e Borsellino, que estavam na- po foragido “significa que ele se beneficia de proteção
quela jurisdição. Salvatore Borsellino, desde 1992, pro- de nível muito alto”.76 Esse assunto ainda é objeto de in-
cura o inseparável diário vermelho que seu irmão usa- vestigações muito confidenciais.
va e não permitia acesso a ninguém. Salvatore e o pool
antimafia sustentam que o diário conteria detalhes da Conclusões
investigação sobre a trattativa e que Paolo iria denun- A política antimáfia não possuiu até hoje o apoio das
ciar esse suposto pacto. elites políticas e econômico-financeiras da Itália. A pesqui-
Inicialmente a Procura di Palermo denunciou70 dez sa tentou evidenciar que os avanços foram, e continuam
supostos participantes da Trattativa, entre os quais es- a ser, episódicos e reativos a rumorosos assassinatos
tão: o ex-ministro do Interior Nicola Mancino, três al- (cadaveri eccellenti77), ou escândalos políticos que mo-
bilizam a mídia e a opinião pública. Os retrocessos

ainda não triunfou legislativos e institucionais foram frequentes após


as crises que surgiram com as “duas guerras da
máfia”. O texto buscou esclarecer como e com que
recursos legais, políticos e militares a Cosa Nostra
tos oficiais dos Carabiniere e quatro mafiosos, inclu- assegurou a impunidade de suas práticas criminosas.78
sive Totò Riina.71 Cerca de duzentos depoimentos fo- Os atores mais consistentes na promoção de legis-
ram previstos. lação e na implementação da política antimáfia foram
Em 27 de outubro de 2014, o presidente italiano membros do Ministério Público e seus aliados interna-
Giorgio Napolitano testemunhou no Palácio em Roma; cionais. Os promotores têm o dever de atuar. No entan-
ele não era acusado, porém poderia ter informações so- to, a cultura do silêncio continua a prevalecer, mesmo
bre a questão. O chefe de Estado negou que soubesse com campanhas de conscientização cidadã republica-
da existência de negociações secretas entre o Estado e na e anticorrupção, como, entre outras, Addio Pizzo,79 e
a máfia.72 O pedido inédito de testemunho de um chefe os centros culturais antimáfia.
de Estado em exercício no caso da trattativa gerou con- O medo da Cosa Nostra e de seus parceiros que es-
trovérsia jurídica e pública, na época.73 Uma vez satisfei- tão acima da lei e de suspeitas – como empresários e
ta a demanda judicial do Tribunal de Primeira Instância políticos80 – continuam a manter a submissão e o silên-
de Palermo não houve qualquer crise de governabilida- cio forçado na Sicília.
de. Em março de 2016 o processo trattativa continuava O princípio da legalidade ainda não triunfou, e a cor-
em andamento.74 rupção política e econômica e o abuso de poder conti-
nuam sendo práticas correntes. Esse é o tempo da pax
Epílogo em Palermo mafiosa.
A prisão do mais procurado chefe da Cosa Nostra –
Matteo Messina Denaro – em 3 de agosto de 2015, de- O autor é professor universitário
pois de 23 anos foragido, é uma marco na política anti- cesarcaldeira@globo.com

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notas de rodap[e

1. Nesta pesquisa o termo “criminosos poderosos” é usado para indicar os 20. Como não se podia seguir a droga, acompanhava-se os cheques, iden-
delinquentes ou ofensores que são dificilmente condenados devido aos re- tificando os envolvidos na rede de tráfico de heroína.
cursos que dispõem para evitar que as informações sobre suas atividades
cheguem às agências do sistema criminal para que possam então serem 21. Cerca de 300 membros das famiglie de Palermo foram assassinados.
usadas como provas para suas condenações. É nesse sentido que o crim-
inólogo britânico John Lea propõe o emprego do termo: “For the purpos- 22. Esse documento ficou conhecido como “Relatório dos 162”. Ninni Cas-
es of this discussion we shall define powerful offenders as those whom it sará comandava um grupo responsável por prender fugitivos (squadra
is difficult to convict because of the resources at their disposal to prevent mobile). Foi assassinado pela Cosa Nostra em 1985, quando era chefe de
information about their activity reaching the criminal justice agencies and polícia de Palermo. Outros policiais encarregados de prender fugitivos fo-
which could then be used as a basis for their prosecution” (LEA, 2005). ram mortos, como Beppe Montana (chefe de polícia de Palermo) que havia
prendido um parceiro empresarial de Michele Greco. Devido a brutalidade
2. Líder do Partido Democrata-Cristão italiano (DCI), Andreotti foi primei- policial e violação de direitos de dois suspeitos, as autoridades de Palermo
ro-ministro nos períodos de 1972-1973, 1976-1979 e 1989-1992. Foi um extinguiram a equipe que capturava fugitivos mafiosos.
dos protagonistas da política italiana no pós-guerra. Teve uma trajetória
política que até hoje desperta polêmicas. Chamavam-lhe “divino” – Divo 23. O governo contratava com particulares para arrecadarem as taxas –
Giulio (do latim Divus Iulius, usado para César) –, mas também “Príncipe um mecanismo antigo e lucrativo.
das Trevas” ou “O Papa Negro”.
24. Esse decreto de dezembro de 1979 foi transformado na Lei 15, em
3. Estima-se que a Cosa Nostra obtenha cerca de 160 milhões de euros fevereiro de 1980. É importante destacar o assassinato do ex-primeiro
por ano com extorsões em Palermo. ministro Aldo Moro em 9 de maio de 1978 pelas Brigadas Vermelhas,
que marca a crise do terrorismo italiano. É o momento em que o uso da
4. PAOLI, 2004, p. 20. Essas “famílias” (famiglie ou cosche) não se confun- violência política perde praticamente toda legitimidade ou apoio na Itá-
dem com as famílias biológicas dos membros. lia. Em 1978, as Brigadas Vermelhas e outros grupos armados de es-
querda mataram 28 pessoas; 22 em 1979; e 30 em 1980 (GINSBORG,
5. DICKIE, 2004, p. 245. 2003, pp. 385-386).

6. Ibid, p. 250. 25. MOSS, 2001, pp. 297-321.

7. DICKIE, 2004, p. 252. 26. Trinta e sete parentes de Buscetta foram assassinados pela Cosa Nos-
tra em retaliação a sua colaboração com Falcone.
8. Ibid. p. 255.
27. O Procurador Chefe Caponnetto recebeu a informação de que desde a
9. DICKIE, 2004, p. 256. prisão de Ucciardone vieram ordens para o imediato assassinato de Fal-
cone e Borsellino e resolveu colocá-los no “seguro”.
10. Somente em 1977, cerca de 2.400 atos de violência ocorreram. (LAN-
GFORD, 1985). 28. JAMIESON, 1999, p. 3.

11. Disposizioni a tutela dell’ordine pubblico. 29. Os procuradores Falcone e Borsellino atuaram na investigação e pre-
paração do maxiprocesso. No julgamento em Palermo atuaram os promo-
12. Essa lei foi aprovada dez dias após o assassinato do general Carlos Al- tores do Ministério Público Giuseppe Pignatone e Gaetano Priulla.
berto Della Chiesa, em Palermo, pela Cosa Nostra. Pio La Torre era líder
comunista na Sicília e deputado em Roma. Foi assassinado pela Cosa Nos- 30. Foram condenações por 120 homicídios, por 346 casos de associa-
tra no dia 30 de abril de 1982 em Palermo. ção criminosa de tipo mafioso (art. 416 bis do CP) e, ainda, extorsão e trá-
fico de drogas.
13. Aqueles que fazem parte de uma associação de tipo mafioso, formada
por três ou mais pessoas, são punidos com uma pena de reclusão de três 31. Enzo Tortora foi eleito pelo Partido Radical para o Parlamento Europeu,
a seis anos. Os que promovem, dirigem ou organizam a associação são o que propiciou imunidade à prisão.
punidos por esse fato com uma pena de reclusão de quatro a nove anos.
32. MAIEROVICH (2015) alerta seus leitores para o caso em seu artigo O
14. Exemplo adaptado, originariamente citado em MAIEROVITCH, 1997. efeito Tortora, na revista Carta Capital.

15. ENCICLOPEDIA GARZANTI DEL DIRITTO, 1997, nota 125, pp. 737-739. 33. GINSBORG, 2003, p. 424.

16. Foi morto à luz do dia, por dois mafiosos em uma vespa. Como sempre, 34. KINGTON, 1989.
a polícia não conseguiu testemunhas. Falcone já começara a entrevistar
mafiosos na prisão de Ucciardoni em busca de informações sobre o tráfi- 35. ACCONCIA, IMMORDINO, PICCOLO, REY, 2009, p. 5.
co de heroína. Não teve qualquer sucesso. Com a morte de Gaetano Costa,
é obrigado a ser acompanhado por um guarda-costas, que o protege de 36. SCHNEIDER, SCHNEIDER, 2001, p .427.
atentados e começa a usar trajetos diferentes diariamente.
37. Desde dezembro de 1986, Borsellino torna-se chefe da Procuradoria
17. Boris Juliano e Emanuelle Basile. na importante cidade de Marsala, na província de Trapani, onde continuou
a investigar as atividades da Cosa Nostra.
18. Nessa época, Falcone já recebia mensagens para gerar desconfiança
na equipe, escritas em papel do próprio Ministério Público. Ou seja, existiam 38. Vide: http://www.fondazionefalcone.it/page.php?id_area=19&id_
inimigos do lado de fora e adversários “íntimos”. archivio=34#sthash.16pi0lib.dpuf

19. Antonio Caponnetto, magistrado de Florença, assume o cargo de Chin- 39. TURONE, 2008, p. 15.
nici e chefiará a equipe de procuradores durante o “maxiprocesso” de Pa-
lermo. A equipe chamada de pool antimafia era composta por Giuseppe Di 40. MITSILEGAS, 2003, p. 59.
Lello, Leonardo Guarnotta, Paolo Borsellino e Giovanni Falcone –os qua-
tro, juízes de instrução. 41. STILLE, 1995, p. 364.

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42. COWELL, 1992. Este reforço na segurança pública continuou até 1998. Palermo, em 1987, com Totò Riina. Afirmou também que os dois trocaram
beijos, o que é entendido como um sinal de respeito.
43. Segundo o jornal Le Parisien (2014), na matéria intitulada “Na Itália, a
arma fatal contra a Cosa Nostra” lê-se: Aujourd’hui, le programme de pro- 62. Sindona foi condenado à prisão perpétua por ter ordenado o assassinato
tection des témoins italien protège près de 5000 personnes, fort d’un bud- de Giorgio Ambrosoli, advogado italiano, morto enquanto investigava as práti-
get annuel d’environ 70 M€. cas irregulares do banqueiro. Sindona faleceu por envenenamento na prisão.

44. SAVONA, 2012, pp. 19-20. 63. STERLING, 1997, pp. 228-229. No final da década de setenta, a Cosa
Nostra estava ganhando cerca de um bilhão de dólares líquidos nos EUA, a
45. PATERNOSTRO, 2007. É o tempo em que a Cosa Nostra domina sem maior parte dos quais era enviada para Sindona para lavagem e investimento.
grande derrame de sangue. Em regra, os homicídios são reduzidos.
64. Nos termos do art. 530, § 2° do CPP italiano segundo o qual “o juiz pro-
46.Tradução do Autor. Commissione Parlamentare d’inchiesta sul feno- nuncia sentença de absolvição, inclusive, quando falta, é insuficiente ou
meno della mafia e sulle altre associazioni criminali similari (Commissio- contraditória a prova de que o fato existe”.
ne Parlamentare Antimafia), Relazione sui rapporti tra mafia e politica,
Roma, 1993, p. 40. 65. PEPINO, 2010, p.245.

47.Buscetta hesitou muito em falar sobre as relações entre a Cosa Nostra 66. Idem, p. 244
e os políticos. No seu depoimento à Falcone consta: “Se eu falar da política,
não sei quem morre primeiro, você ou eu”. Só no final de 1984 se iniciaram 67. Id., pp. 247-48.
as revelações sobre o assunto.
68. Essa operação ajudou a desmantelar diversos esquemas envolvendo
48.Planejou a equipe de promotores (Mafia pool). Foi morto em 29 de ju- o pagamento de propina por empresas privadas, interessadas em garan-
lho de 1983 por atentado da máfia, que colocou uma bomba em seu car- tir contratos com estatais e, ainda, órgãos públicos no desvio de recursos
ro em Palermo. para o financiamento de campanhas políticas. Essa época da história judi-
cial e política é matéria de um artigo que complementa este.
49. BOHLEN, 1996. O programa foi encerrado em 1993, depois de muitos
escândalos de corrupção. Os empregos criados anteriormente não foram 69. La cosiddetta “ trattativa”, 2014.
preservados com o fim do apoio governamental.
70. “A denúncia pretende enquadrar os acusados no art. 338 do Código
50.A cidade de Palermo foi severamente atingida por bombardeios em 1943, Penal italiano. Essa é uma norma penal raramente aplicada devido à difi-
principalmente nos distritos mais antigos e no centro storico. culdade, do ponto de vista processual, de obter provas adequadas para os
elementos do tipo penal. Eis o art. 338. Chiunque usa violenza o minaccia
51. DICKIE, 2004, pp. 224-226. ad un Corpo politico amministrativo o giudiziario o ad una rappresentanza
di esso, o ad una qualsiasi pubblica Autorità costituita in collegio per impe-
52. A “coabitação” é uma expressão usada por magistrados e pesquisa- dirne, in tutto o in parte, anche temporaneamente, o per turbarne comun-
dores italianos para indicar um pacto persistente entre a Casa Nostra e o que l’attività, è punito con la reclusione da uno a sette anni”.. (ZARBA, 2015).
sistema político. O conluio e o acerto são a base da pax mafiosa – que ao
longo do tempo predomina na Sicília. O período de “massacres” (stragi) é 71. MOODY, 1913.
o liderado por Totò Riina.
72. Italy President Napolitano denies knowing of Mafia deal, 2014.
53. A DCI manteve-se no poder entre 1948 e 1993.
73. PIANIGIANI, 2014.
54. O resultado do referendo foi favorável à revogação de regras anteriores
que limitavam a responsabilidade civil e criminal da magistratura. Atual- 74. Processo trattativa, depone Ciancimino: “Mio padre dopo via d’Amelio
mente, a matéria é regulada pela Lei 117, de 13/04/1988. disse: la colpa è nostra”, 2016.

55. No original: “ (...) di finanziare le campagne elettorali, non più solo di 75. LOURO, 2015. “Foi apanhado através de escutas. A polícia disse que De-
portare voti contati e sicuri”. naro se comunicava através de bilhetes (pizzini – a maneira mais tradicional
de contatos) que deixava numa quinta da Sicília onde a polícia conseguiu co-
56. WHITTON, 1998, pp. 199-200. locar câmaras ocultas em árvores para filmar os encontros dos mafiosos.”

57. STERLING,1997, pp. 66-67 . “Temos que mostrar que todo aquele que 76. MAFIA godfather who visited Britain protected at high level, 2015.
não cumpre a palavra morre. A Cosa Nostra é assim”, afirma Messina em
relação a Salvo Lima. 77. Cadáveres ilustres.

58. O pedido foi assinado pelos procuradores Guido Lo Forte, Roberto Scar- 78. “A essência do método mafioso, de fato, consiste em ser prepotência or-
pinato, Gioacchino Napoli, e o Chefe dos procuradores Gian Carlo Caselli. ganizada, ou seja, abuso de poder pessoal por parte de minorias organiza-
das que, valendo-se do poder intimidador decorrente dos poderes político,
59. BRIQUET, 2007. econômico e militar de que dispõem, criam um estado de sujeição difuso
dos indivíduos, dobrando-os à sua vontade” (SCARPINATO, 2010, p. 102).
60. Concurso externo é uma participação eventual em conluio com Cosa Nos-
tra. Alguns mencionam uma contiguidade complacente com a organização, 79. Movimento que começou em 2004. Pizzo é o sistema com o qual a mafia
como, por exemplo, envolver-se em campanhas eleitorais em território domi- taxa os comerciantes e controla o território. Um dos motes do movimento
nado pela Máfia, com seu apoio. Outro exemplo: empresários que, ainda que é “um povo inteiro que paga o pizzo é um povo sem dignidade”.
não façam diretamente parte da organização criminal por várias razões (te-
mor, desejo de agradar pessoas influentes no contexto social local etc.), mas 80. Feito pelo “concurso externo em associação mafiosa” (concorso esterno
oferecem sala para reunião para membros da máfia (BERNARDI, 2010, p. 91). in associazione mafiosa) consagrado na jurisprudência iniciada com as de-
cisões do maxiprocesso de Palermo e, especialmente, na decisão da Corte
61. Baldassere di Maggio, uma das testemunhas-chave da acusação, ale- de Cassação em 1994 (Cass. Pen., Sez. Un., 5 octobre 1994, Demitry, in Foro
gou que Andreotti – quando era primeiro-ministro – teve um encontro em It., 1995, II, 422). SAINT VICTOR , 2008, pp. 151-159.

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