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Home > Colunas > Migalhas Notariais E Registrais > A Retificação De Sexo E Nome Da Pessoa Transgênero No Registro C
Migalhas Notariais e
Registrais
A retificação de sexo e nome da pessoa
transgênero no registro civil: Harmonização
entre identificação e identidade
Caio Pacca Ferraz de Camargo e Taysa Pacca Ferraz de Camargo
Embora hoje saibamos que identificação e identidade são conceitos distintos, por
muito tempo foram tidos como sinônimos. Houve época, aliás, em que a identidade
cedeu à identificação. Isso, todavia, foi se alterando, principalmente em relação ao
nome civil, signo de primeira importância tanto à identidade quanto à identificação da
pessoa, que evoluiu no sentido de se compreender o nome como direito da
personalidade, o que entre nós atualmente está expressamente catalogado como tal
no artigo 16, do Código Civil de 2002.
Outros autores lembram ainda que a identificação tem a ver com uma perspectiva
cultural e narrativa, que nos é imposta num contexto relacional dialógico (MENEZES,
2014), ao passo que a identidade é a forma como nos vemos no mundo e como ele, em
troca, nos vê: "[...] a identidade vai além da mera nomeação, encontrando eco nas
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Identidade, portanto, parte do pressuposto
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indivíduo se reconhece e como
é reconhecido pela sociedade" (FACHIN, 2014, p. 37).
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Esse pressuposto binário e heteronormativo que colocava o sexo biológico como uma
verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir, e que exigia linearidade
sem desvios entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais (BUTLER, 2003, p.
189), era tão evidente que a identidade de gênero, quando diversa da biológica,
chegou a ser patologizada e considerada como transtorno mental pela Organização
Mundial de Saúde (OMS), na 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID).
A consequência mais penosa dessa abordagem foi justamente permitir que durante
muito tempo se buscasse um "tratamento" e "cura" a essa "patologia". A distopia, porém,
estava no pressuposto, no diagnóstico. O avanço da psicanálise, da sociologia e da
medicina, evidenciou que os conceitos de sexo e gênero não eram imbricados de
modo incontornável nem automaticamente autoimplicantes, mas que podiam existir
autonomamente.
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Em que pese tal decisão lapidar a edição do Decreto Federal nº 8.727/2016, ao impor à
administração pública a obrigação de tratar a pessoa trans por seu nome social,
definido como aquele com o qual ela se identifica e é socialmente reconhecida (arts.
10 e 20), as pessoas transgênero (definidas no art. 1º da resolução 2.265/2019, do
Conselho Federal de Medicina, como aquelas que apresentam uma não paridade entre
a identidade de gênero e o sexo do nascimento, incluindo-se transexuais, travestis e
outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero), continuaram a ter
sua dignidade negada, no tocante ao ato jurídico fundante e inaugurador da cidadania:
o registro de nascimento.
Era preciso, portanto, uma tutela institucional, estrutural e definitiva à população trans,
conforme, aliás, indicava o Parecer Consultivo OC-24/17, da Corte Interamericana de
Direitos Humanos,2 ao afirmar que os Estados têm o dever de reconhecer e oferecer
proteção legal à identidade de gênero autopercebida das pessoas, garantindo a
retificação da anotação do gênero e nome dos seus registros civis (CIDH, 2017, p. 81). O
progresso veio mais uma vez do STF que, em 2018, no julgamento do RE 670.422/RS,
com repercussão geral, e da ADI 4.275/DF, decidiu que os transgêneros poderiam
alterar seu sexo e prenome nos documentos públicos independente de realização de
cirurgia de transgenitalização, além de reconhecer a possibilidade de retificação do
seu registro civil diretamente no cartório, sem necessidade de ação judicial,
independentemente de prova de cirurgia de redesignação sexual.
Logo após a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento
CNJ nº 73/2018, que dispõe sobre a averbação3, diretamente nas serventias de
Registro Civil das Pessoas Naturais, do prenome e do gênero nos assentos de
nascimento e casamento da pessoa transgênero.
Ressalte-se que esse procedimento é sigiloso, de modo que não haverá na certidão
nenhuma menção à alteração, cuja informação constará apenas do livro preservado no
cartório. Após a averbação, o oficial deverá comunicar a alteração a todos os órgãos
expedidores de documentos e ao foro em que estiver tramitando alguma ação do
requerente, o que, todavia, não retira o dever do requerente em alterar todos os seus
documentos pessoais (art. 8º, caput e §1º, Provimento CNJ nº 73/2018),
obrigatoriedade que embora pareça óbvia revela a lógica que há até bem pouco se
resistiu: a de haver uma necessária relação de anterioridade entre identidade e
identificação. Identifica-se, ou seja, comprova-se aquilo que já é, não o contrário.
Primeiro deve haver uma identidade para depois identificá-la.
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Referências
ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG). Cartório em
números. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 73/2018. Disponível aqui. Acesso
em: 10 jul. 2021.
BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra
legal. In: Contemporânea. v. 4. nº 1. 2014.
BRANDELLI, Leonardo. O nome civil da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 2012.
MEINDRAD, Gabriella; Duarte, Fábio Rijo. Organização Mundial De Saúde (OMS): uma
análise sobre a transexualidade na CID-10 e CID-11. In: Entrementes: Anais da 15ª
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Semana Acadêmica da Fadisma. 2018.
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1 A respeito das decisões judiciais de cunho moralizador e de concepções tradicionalistas, pode-se citar
como exemplo: TJRJ, Apelação 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista, DJe 18/03/1997; TJPR,
Apelação 0030019-8, Rel. Des. Osíris Fontoura, DJe 08/11/1994; TJBA, Apelação 0368322-
64.2012.8.05.0001, Rel. Des. José Olegário Monção Caldas, DJe 15/10/2013; TJRS, Apelação 70056132376,
Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, DJe 13/11/2013, dentre outras.
2 A Corte IDH pode ser consultada pelos Estados membros sobre a interpretação da Convenção
Americana de Direitos Humanos (CADH) e outros tratados de direitos humanos (art. 64.1 da CADH).
3 Em linhas gerais, apenas para esclarecer os conceitos de averbação e de retificação: Averbar é o ato
de lançar, no registro existente, informação sobre fato que o modifique, retifique ou
cancele. Retificar é corrigir um erro existente no registro. Portanto, retificação é uma espécie de
averbação, no sentido amplo do termo.
ISSN 1983-392X
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