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Rosaura, a Enjeitada

BERNARDO GUIMARÃES

Compilação e edição digital: Georgette Heyer fan-club

"ROSAURA, A ENJEITADA" é o ultimo romance escrito por Bernardo Guimarães.


Nele é narrada a desventura de Rosaura filha de uma sinhazinha com um ex-escravo
alforro que acabou sendo criada como escrava, pois por um equivoco e a deliberada
maldade alheia, sua mãe pensou que tivesse morrido ao nascer. Doze anos mais tarde, a
jovem Rosaura é comprada para servir de mucama para a própria irmã, na casa
da nova família de sua mãe. Reza a lenda que ao escrever esse romance
Bernardo Guimarães retratou a sí próprio e seus companheiros do Curso de Direito da
Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo: Aureliano Lessa e Alvares de
Azevedo, também escritor. É possível reconhece-los no texto pois são respectivamente:
Belmiro (Bernanrdo Guimarães), Aurelio (Aureliano Lessa) e Azevedo (Alvares de
Azevedo).

Tomo I
A Mãe

Capítulo I

Uma Cena Entre Estudantes de S. Paulo.

– Que fazes aí, Aurélio, que estás a bocejar como quem está a morrer de sono?
... Quando todos aqui estão a tagarelar como um bando de maritacas, ficas amuado a um
canto, tu que de ordinários a garrulice em pessoa?

– Na verdade, Aurélio!... Estás tão calado, que até já me esquecia de que estás
aí. Anda lá chupa mais um cálice de conhaque, e diverte-nos com algumas de tuas
costumadas asneiras.

– Asneiras!... Cala-te daí, Belmiro... Só peço que não embaracem comigo;


conversem e deixem-me em paz.

– Já estás bêbedo, decerto; nesse caso, vai deitar.

– Bêbedo eu! ... oh! quem dera! ... estou meditando, e neste momento procuro
resolver um dos mais graves e árduos problemas que se tem suscitado ante o espírito
humano...

– Oh! oh! um problema de geometria, ou álgebra?...

– Nada disso; um espírito sério não se ocupa com essas frivolidades.

– A quadratura do círculo?...

– Não; coisa melhor, ou pior ainda.

– Aposto que não é direito civil.

– Por certo; o direito civil é um problema eterno e insolúvel.


– Será o moto contínuo? – Ora!... esse está resolvido e posto em prática, desde
que o mundo é mundo. – Onde?

– Em todo o universo.

– Ah! Já sei; é a pedra filosofal, o modo de fabricar ouro, o tormento de


Cagliostro.

– Qual ouro! Quem fala em ouro nestes tempos em que o dinheiro se fabrica de
papel!

– Ah! agora atinei – exclamou o Belmiro – não é um problema do espírito, nada


tem com a cabeça...

– Será então de barriga?

– Então, além da cabeça e da barriga nada mais há?

– São os dois órgãos principais do corpo humano; Menênio Agripa que o diga.

– Pois o teu problema não é nem da cabeça, nem da barriga.

– Sim? Deveras? Então, faça-nos o favor de dizer o que é, meu grande Édipo,
decifrador de enigmas.

– É do coração.

– Ah! ah! ah! – retorquiu Aurélio, desatando uma grande gargalhada - A força
de poetizar, dizes cada asneirão!... Ah! ah! ah!...

A gargalhada de Aurélio foi acompanhada em coro pelos outros interlocutores,


e o pobre Belmiro, completamente desafinado, enfiou e emudeceu.

– Mas então – continuou Aurélio no seu tom entre sério e galhofeiro – não nos
explicará o que é esse problema do coração?

– Nada mais fácil – respondeu Belmiro – O problema do coração nada mais é


que uma paixão...

– Amorosa, não é assim?

– Está visto.

– E como se resolve este problema?


– Procurando modos de satisfazer ou extinguir essa paixão.

– Onde leste isto, meu palerma? Estás enganado; tais problemas quem os
resolve é o objeto da paixão, dizendo simplesmente: sim ou não.

– Deixemo-nos dessas parvoíces – interrompeu o outro. – Vamos ao teu


problema, Aurélio.

– O problema! O problema! – exclamaram todos.

– Já que vocês, com a mais impertinente curiosidade, o querem saber por força,
escutem-me com atenção. O problema, de cuja a solução me ocupo, é dos mais
momentosos e graves, o mais cheio de corolários importantes, que se pode suscitar na
presente fase de nossa vida escolástica. Dele depende o nosso porvir de amanhã, e
talvez mesmo o depois de amanhã...

– Ah! então não vai muito longe...

– Ó Aurélio, desculpe-me se interrompo o teu belo discurso, você é quem nos


dá de comer amanhã?

– Não, felizmente; quem está de bolsa ali é o Silva, creio eu.

– Ainda bem. Já estava com medo que o problema da nossa alimentação,


amanhã, estivesse sem solução. Mas visto que o teu problema não compromete o futuro
de nossos estômagos, podes continuar.

– E esta! – prosseguiu Aurélio. – Que interrupção impertinente! Todos aqui


sabem que o estômago é coisa que nunca me passou pela cabeça...

– Por certo! Assim como a cabeça nunca te passou pelo estômago.

Neste ponto, uma trovoada de apartes, risadas, aplausos, e mil disparates a


propósito de cabeça, estômago, intestinos e mais órgãos do corpo humano perturbou por
largo tempo o diálogo, até ali entabulado entre Aurélio e os mais interlocutores.

– Com mil diabos! Vociferou com impaciência um dos comparsas, dando um


forte murro sobre a mesa.

– Que algazarra infernal é esta? Deixem o Aurélio dizer qual é esse maldito
problema, que lhe serve não sei se na cabeça, se no coração ou nas tripas...
– É preciso que ele o desembuche, senão vou deitar-me, que por isto já está me
cheirando a maçada.

– Pois bem! vamos ao problema. Aurélio! Nada de preâmbulos! Vamos com


isso, Aurélio.

– O problema, meus senhores – começou Aurélio com toda a gravidade – é do


mais palpitante interesse e cheio de atualidade para nós todos que aqui no achamos.
Mas, como não querem permitir-me a menor explanação prévia a respeito do assunto de
tanta magnitude, vou já tocar com o dedo no âmago da questão. É incontestável que...
amanhã é quinta-feira...

– Que dúvida, logo que hoje é quarta!

– É dia feriado, por conseqüência, não é assim, meus senhores?

– Está claro, uma vez que não há outro feriado na semana.

– Pois bem. Que havemos de fazer no dia de amanhã? Eis aí o problema que me
preocupa, meus senhores, e para cuja solução requeiro o concurso de vosso espírito
esclarecido e de vossas reconhecida ilustração.

Ditas estas palavras, Aurélio sentou-se e, cravando os cotovelos sobre a mesa,


pousou gravemente o rosto entre as mãos.

Sinais estrondosos de aplausos e reprovação, gargalhadas, pragas, murros sobre


a mesa, discursos a duo e a trio, e enfim uma algazarra indefinível atroaram por alguns
minutos a pequena sala de jantar, onde envolta de uma mesa cheia de garrafas e copos,
bules e xícaras, pedaços de pão e carne, entre os quais figuravam também alguns livros
e papéis, falavam e bebiam, liam e comiam uns nove ou dez estudantes do curso
jurídico de S. Paulo.

Era isto em tempos já idos, na Paulicéia antiga e patriarcal de 1845, nessa


Paulicéia, que conservava ainda quentes as cinzas de Diogo Antônio Feijó, que ainda
escutava os ecos das vozes patrióticas e eloqüentes de Antônio Carlos e Martim
Francisco, e que ainda não pranteava sobre o túmulo de dois ilustres cidadãos, modelos
venerandos de patriotismo e virtudes cívicas: Vergueiro e Paula Souza.

Ainda então a cidade de S. Paulo conservava certos laivos de sua primitiva


simplicidade, e posto que fosse já, relativamente à época, uma cidade assaz populosa, e
o núcleo de um grande movimento intelectual, parecia respirar-se ali ainda a aura
tradicional dos tempos de Amador Bueno.

A classe acadêmica harmonizando-se com o meio em que vivia, passava vida


simples, folgazã e descuidosa, ainda mais do que é ordinário entre essa extravagante
variedade do gênero humano. Divididos em grupos, os estudantes derramavam por
todos os bairros da cidade, e chamavam-se repúblicas, como até hoje, as casas ocupadas
por esses grupos, e onde viviam na mais admirável igualdade e fraternidade. Nessa
época havia entre os estudantes um certo espírito de classe tão fortemente pronunciado,
que formava deles uma corporação, não só respeitada, como temida dos futricas, nome
que se dava a todo cidadão estranho ao corpo acadêmico.

A reunião, a que assistimos, tinha lugar em uma rua que, se bem nos
lembramos, tinha o nome de Rua da Constituição, a qual, partindo do largo, onde ficam
o mosteiro e a igreja de S. Bento, dirige-se para o risonho e pitoresco arrabalde da Luz.
A casa ocupada pelos estudantes fronteava justamente com o lado da igreja, que faz face
à rua.

Eram cerca de nove horas da noite. Em uma cidade pouco mais populosa e de
pouco movimento comercial, como era então S. Paulo, já o remanso e o silêncio
reinavam por toda a parte; a rua era um deserto. As janelas da sala de jantar, onde se
dava o colóquio, abriam-se para as extensas vargens alagadiças cortadas pelo
Tamanduateí que separam a cidade propriamente dita do arrabalde de S. Brás. Essas
vargens, banhadas então por um brando luar, formavam outro deserto, mas vasto e
aprazível e pelas janelas abertas os estudantes podiam expandir as vistas e aspirar as
auras frescas e balsâmicas que se elevavam dos vargedos. Portanto, tagarelavam, riam e
gritavam à vontade, sem se importarem com as maldições e pragas dos vizinhos.

Apenas acalmou-se um pouco a algazarra provocada pelo incidente da cabeça e


do estômago, Aurélio, que até ali se conservara impassível e silencioso no meio daquele
infernal alarido, levantou-se e prosseguiu dando à sua voz uma entonação enfática e
solene:

– Que havemos de fazer do dia de amanhã, meus senhores? Eis a interrogação


que continuo a fazer-vos, e a que não sabeis dar resposta. Eis o problema incandescente
que me tortura o cérebro, e a que não sabeis dar uma solução!
– Ora, o que havemos de fazer do dia de amanhã! – respondeu uma voz. –
Deixá-lo passar.

– Deixá-lo passar! – exclamou Aurélio. – Quem proferiu semelhante blasfêmia?


Deixá-lo passar! Isso nunca! Eu não quero que o dia de amanhã passe sobre nós; quero,
sim, que nós passemos sobre o dia de amanhã. Porventura estamos mortos? As ondas do
tempo correm sobre o túmulo dos morto, mas nós os vivos devemos vogar sobre as
ondas do tempo.

– Bravo! Bravo! Muito bem! – exclamaram diversas vozes.

– Portanto – prosseguiu Aurélio -, continuo a perguntar-vos: que havemos de


fazer do dia de amanhã?...

– Voto por um passeio à Ponte-Grande – bradou um dos comparsas.

– Um passeio à Ponte-Grande! – prosseguiu Aurélio com um irônico sorriso. –


Excelente recurso, admirável antídoto contra o tédio! Iremos talvez pela centésima vez,
depois de uma caminhada de estafar, pôr-nos em êxtase a ver correrem as sombrias
águas do Tietê, lúgubres e sonolentas como as do Letes, que lá vão, como jibóia
preguiçosa, lambendo as margens tão monótonas como ele, e apenas sombreadas aqui e
acolá por umas restingas de mato enfezado! Esse modo de passar-se sobre uma quinta-
feira, além de já muito gasto, é de todos o mais enfadonho.

– Seja assim como queres. Embirras com esse Letes, mas bem sabes que junto a
ele estão os campos Elíseos. Se achas longe a jornada, passaremos sòmente pelo bairro
da Luz. Há nada mais aprazível e pitoresco que esse bairro?

– Depois de termos atravessado essas taipas denegridas, duras como granito,


que se diz terem sido socadas por mãos de condenados de ilustre hierarquia e alta
posição.

– Que mais parecem ruínas – interrompeu Aurélio – ruínas sinistras de uma


construção que nunca se acabou ... Oh! nem falar em semelhantes taipas, abomináveis
relíquias da estúpida e grosseira tirania de nossos antepassados! Ah! pudesse eu arrasá-
las de um golpe!
– Bem, Aurélio. Passaremos aí sem olhar para elas, e entraremos no Jardim
Botânico. Não é lindo aquele sitiozinho? Aquele lago? Aquelas palmeiras? A
encantadora perspectiva que se estende pela margem do Tietê?

Basta! Não falemos mais nisso! Até onde irás com tuas encantadoras
perspectivas? Elas só existem na tua imaginação. Com que cores queres tu pintar aquele
acanhado recinto? E para iludir a quem? A nós todos, e a ti mesmo, que lá temos ido
tantas vezes? Belmiro, pelo amor de Deus! Não entremos no jardim; deixemos esse
recanto, que não inspira prazer, nem melancolia, saudade, nem esperança; deixemos
esse lodoso e pútrido, essa mísera aléia de oliveiras, que não dão flor nem fruto, essas
palmeiras raquíticas...

– Com mil diabos! Nada há que te satisfaça! Pois bem, deixemos o jardim!
Vamos para o lado fronteiro, e entremos nesse silencioso e plácido recinto, cercado de
altas muralhas, que quase o escondem aos olhos do mundo. É ali o pitoresco
conventinho de N. S. da Luz. Paz angélica e olímpica serenidade parecem descer da
abóbada da pequena capela, onde infelizmente ressoam mais os cânticos piedosos das
virgens votadas ao Senhor... E aquele silêncio é tão melodioso! Faz a alma embeber-se
em contemplações místicas! Quantas flores de formosura e mocidade ali se fanaram
lentamente, à sombra do altar, para irem abrir-se de novo em primavera eterna nos
jardins da bem-aventurança!

– Ai! Meu Deus! Que carola está hoje este Frei Belmiro! – exclamou um dos
comparsas, bocejando e estirando os braços. – Se continuas com a tua maçante homilia,
vou deitar-me...

– Na verdade , meu caro Belmiro – atalhou o Aurélio – ias entrando por um


sermão bastante enjoativo a respeito desse conventinho em miniatura, resto de um
passado odioso, fantasma hediondo do claustro, em que o fanatismo sepultava em vida,
sem dó nem piedade, as mais mimosas flores da juventude e da beleza, flores que meu
Deus criou para os prazeres e carinhos do amor, e não estúpidas macerações do
monarquismo, para se espanejarem ao sol da primavera, ao sopro livre das virações do
céu, e não para murcharem tristemente na sombra lúgubre de perpétua e mefítica
reclusão...

– Basta, Aurélio! Não esperdices mais tua eloqüência - interrompeu Belmiro já


um tanto enfadado. Se assim o queres, deixemos ainda esse convento, e passemos
adiante. Há nada mais risonho e pitoresco do que esses vargedos no Tietê, que no tempo
das águas se convertem em labirinto de lagos e canais, do seio dos quais emergem ilhas
cobertas de verdejantes balsas com suas casinhas meio sumidas entre moitas...

– Basta por tua vez também! – exclamou Aurélio. – Toma fôlego, meu amigo,
que esse período, em que vais, é capaz de te estafar. É melhor que digas simplesmente: -
Aquilo é uma Veneza! Ali está a Ponte dos Suspiros; acolá o palácio dos Doges; além o
Adriático... As gôndolas são cascas de palmito, as princesas, que vão dentro caipiras
papudas... Os gondoleiros alguns sapos, dos quais vai um à popa, tocando guitarra...

– Arre lá! Retrucou Belmiro, - És capaz de despoetizar até o próprio empíreo!


Pois bem, tu serás o Lord Byron dessa nova Veneza, atravessando a nado o canal com
uma lanterna entre os dentes, para evitar bordoadas dos gondoleiros.

– Por certo, e para chamar, por um modo mais original, a atenção da bela
Condessa Guicciolini...

– A qual será uma sapa papuda...

– As...pa...pa...puda!... Irra!

– Mas... se és incontentável...

– Talvez não. Vamos adiante.

– Pois bem, mudemos de rumo, e vamos ao arrabalde do Brás. Queres mais


bonito passeio? Que vasta e formosa perspectiva nos oferece esse bairro, visto do
terraço do convento do Carmo! É a mais deliciosa e encantadora que se pode imaginar.
A capela de S. Brás, com seu campanário branco, e aquelas casas dispersas pela planície
exalam como um perfume idílico, que enleva a imaginação...

– Basta! Basta! Por S. Brás te peço! E aquele comprido e monótono caminho do


aterrado ente os charcos de Tamanduateí, exalando infectos miasmas de maresia,
transposto o qual, essas planícies, que de longe parecem vastas e aprazíveis, vistas de
perto não são mais que áridas e acanhadas charnecas entre rincões estéreis onde não
murmura um regato, não sussurra um arvoredo, não canta um passarinho... Terra de
águas mortas e de formiga saúva, campos sem selvas e sem flores...
– Irra! Gritou, de um canto, um dos comparsas. – Vocês dois, a borbotarem
poesia pró e contra S. Paulo, já nos estão moendo a paciência. Nunca mais acabarão
com isso?

– Que queres? – acudiu Belmiro. – Não vês como este Aurélio é difícil de
contentar? Eu, da minha parte, acho esta Paulicéia um céu aberto, um jardim de delícias.

– E eu cá entendo – retrucou Aurélio – que ela não passa de um purgatório, se é


que não é um inferno. Desejara que os lentes agora me acenassem ao menos com dois
RR, só para ter um pretexto de deixar esta monotonia, passar-me para Pernambuco e ir
visitar essa Veneza do norte, a ver se é menos enfadonha do que esta.

– Tens um bom par de asas, andorinha peregrina, e podes voar para onde
quiserdes em demanda de outros climas. Mas eu, ai de mim, pobre frango nuelo! Se os
lentes embirrarem comigo, aqui mesmo serei depenado e sacrificado sem piedade...

Nisto estavam, quando entra, brusca e inopinadamente pela casa, um novo


colega. Era um belo mocinho moreno, de pequena estatura, de fisionomia radiante e
prazenteira, e fronte larga, onde fulgurava o gênio como na do Aurélio.

– Boa noite, rapaziada! Então, que se faz por aqui? – disse ele entrando.

– Oh, boa noite, Azevedo! – acudiram todos, voltando-se para o recém-chegado


com um alegre sobressalto. - Aqui fuma-se, bebe-se e conversa-se. Vem sentar-te e
fazer o mesmo...

– Não; vim com pressa sòmente para fazer um convite.

– Um convite, e a quem?

– A todos desta república, e a mais alguém, se quiserem, contanto que não


passem de oito a dez.

– Decerto. Nós somos seis, e com você sete; é quanto basta. É número
simbólico, e até apocalíptico – observou Aurélio. – Mas da parte de quem o convite, e
para quê?

– Creio que conhecem o Major Damásio?

– Oh! se conhecemos! Esse tipo singular é conhecido em toda a cidade. Não é


pai daquela linda menina chamada Adelaide?
– Justamente. É muito meu amigo, e fêz-me a honra de convidar a um passeio à
sua chácara de Ó, para comer jabuticabas. Ora as jabuticabas do Major Damásio gozam
de justa celebridade, assim como a beleza de sua filha. O major autorizou-me a convidar
alguns amigos. Partimos ao meio-dia, jantamos lá, e voltaremos à hora que quisermos.
Querem ir?

– Eureka! Eureka! Está resolvido o problema! – foi a resposta que em altos


brados deram todos à pergunta de Azevedo.

– Que diabo de problema é esse! – exclamou, espantado, o Azevedo. – Vocês,


pelo que vejo, ou estão malucos, ou beberam demais.

– Nem uma, nem outra coisa – replicou o Aurélio. – Estávamos aqui a discutir o
seguinte problema, que eu mesmo havia proposto: Que fazer do dia de amanhã? E ainda
não tínhamos achado uma solução que prestasse. O teu convite veio a resolvê-lo. Por
conseguinte, um brinde ao Major Damásio. Viva o Major Damásio!

– Viva! ... Viva!... – bradaram todas as bocas.

E assim se terminou e dispersou aquele clube escolástico

Capítulo II O Major e sua Chácara

Agora, meu bravo leitor, não há remédio senão irmos com os estudantes até a
chácara do Major Damásio. A comitiva é alegre e numerosa; consta de uma troça de
sete acadêmicos de anos superiores, todos inteligentes, espirituosos e galhofeiros, e cada
qual mais desmiolado. A companhia é excelente, e nos servirá para disfarçar o enfado
do caminho através de um dos mais solitários e menos poéticos bairros da antiga
Paulicéia.

Transponhamos depressa a ponte sobre o Anhangabaú, triste nome, que bem


corresponde ao miserável regato que aí corre, separando a freguesia central da cidade de
Sta. Efigênia. Se o nome é dissonante e lúgubre como o piar do mocho, não o é menos o
ribeiro turvo e lodoso, que parece esconder-se, envergonhado, no fundo de seu imundo
leito. Temos ainda de atravessar uma espécie de largo, no meio do qual há um charco,
que se intitula Tanque dos Zunegas, fecundo viveiro de rãs e sapos de toda qualidade.
Mais uma esporada ou uma chicotada em nossas cavalgaduras, e teremos deixado atrás
esse arrabalde, formado de quintais sem dono, cercados de taipas velhas e arruinadas e
abandonadas às formigas e aos tatus.

Depois de termos saído da cidade e andado cerca de dois quilômetros pela


estrada que conduz à freguesia de N. S. do Ó, caminho insípido entre áridos rincões
entremeados de moitas de mato rasteiro, entremos por uma vereda à direita, procurando
as margens do Tietê. É o caminho que leva à chácara do Major Damásio.

Apenas se tem avançado uns quinhentos metros por entre os matagais, abre-se
sùbitamente um largo horizonte, onde a vista, até ali encarcerada entre estéreis e
tristonhas charnecas, expande-se livremente pelas extensas e risonhas lesírias alagadas
pelos transbordamentos do Tietê campeando ao longe, no fundo do vasto painel, o
imenso cordão da serra da Cantareira.

Na falda de uma colina, que se eleva sobre esses grandes vargedos alagadiços,
está situada a chácara do major, com sua casa térra, mas bonita, alegre e asseada. Por
detrás dela, estende-se o vasto pomar de jabuticabeiras, laranjeiras, bananais, enfim uma
floresta profunda de árvores frutíferas indígenas e exóticas, que vai terminar na orla dos
vargedos, sendo deles separada por uma sebe de espessos espinheiros.

Apenas avistaram a casa, os estudantes, dando gritos de alegria e agitando


lenços brancos, puseram a meio galope suas magras cavalgaduras pelo suave lançante
que descia para lá. Um negrinho de libré agaloado veio depressa abrir a cancela de
madeira oleada dando entrada para um pátio, que fechava a frente da casa, e pelo qual
os estudantes entraram de tropel. O major, que já de longe os avistara, esperava-os em
pé, em um alpendre construído bem no meio da risonha vivenda, servindo-lhe de
peristilo, e sustentado por duas colunas de madeira, em volta das quais se enrolavam
trepadeiras cobertas de folhagem e flores de diversas formas e matizes. A figura do
velho major sobressaía de modo pitoresco e quase poético no seio daquele nicho de
verdura e flores. Os estudantes o compararam, um a São José no presépio de Belém,
outros ao deus Pã no seio de sua gruta.

– Entrem, entrem, meus amigos! – exclamou ele, esfregando alegremente as


mãos. – Já me tardavam... passa de uma hora... Moleque, recolhe os animais destes
senhores... Dr. Azevedo, então? Como vai essa flor? Já estava receando que me roessem
a corda... Em estudantes não há muito o que fiar.
Estas últimas palavras eram dirigidas ao Azevedo, com quem já tinha antiga
familiaridade, e cuja destra apertava afetuosamente entre ambas as mãos.

– Pelo contrário, major... replicou Azevedo, com sua habitual e risonha


afabilidade – Estamos afeitos à disciplina acadêmica e somos mais pontuais que os
ingleses.

Entretanto, os estudantes subiram rapidamente os quatro ou cinco degraus do


pequeno alpendre, que mal os podia conter, e portanto o major deu-se pressa em
conduzi-los para uma sala de espera imediata, bem clara, fresca e arejada.

– Descansem aqui, alguns momentos – disse-lhes – enquanto vou mandar vir


algum refresco.

Dito isto, retirou-se e os deixou discretamente em liberdade.

Enquanto os estudantes descansam um pouco, tratemos nós de esboçar em


traços leves e rápidos o todo moral e material do Major Damásio, assim como também
de falar em alguns pontos de sua vida passada, bem entendido; porque da futura
ficaremos cientes pelo decurso desta história.

Era ele um homem maior de cinqüenta anos, de estatura regular, magro, porém
de compleição robusta, refeito e espadaúdo. Apesar da idade, tinha dentes alvos e sãos,
e os cabelos ainda negros, luzentes e corredios, como os dos indígenas. Tinha feições
regulares e fisionomia agradável, onde todavia ressumbrava, por vezes, certo ar de feroz
desconfiança.

Por este pequeno esboço, bem se vê que devia circular-lhe nas veias não
pequena dose de sangue tibiriçá.

Era político exaltado, e como compadre e amigo do notável cidadão Brigadeiro


Rafael Tobias de Aguiar, militara com ardor sob as bandeiras do partido liberal exaltado
daquela época. Tomou parte na memoranda revolução de 1842, que conflagrou por
alguns meses as províncias de S. Paulo e Minas. Por essa ocasião, assistiu ao famoso
combate de Ponche-Verde, no qual consta que se distinguira como tenente de uma
companhia, embora reze a história que aí não se disparou um só tiro, não se
desembainhou uma espada. Não obstante, foi posteriormente promovido ao posto de
major de guardas-nacionais e condecorado com o hábito da Rosa. Muladeiro desde os
verdes anos, com essa profissão, graças ao amparo e proteção que lhe barateava o
compadre Tobias, conseguiu adquirir não pequena fortuna e posição respeitável na
sociedade.

Era viúvo de uma mulher pobre e de baixa extração, que dizem fora mui linda, e
com quem se casara por amor. Dizia-se também, pela boca pequena, que a sogra do
major fora cativa, e que a esposa tinha sido libertada na pia batismal.

Não o podemos asseverar, e nem tampouco provar com documentos, mas como
este boato muito influi no desenvolvimento da presente história, força é consigná-lo
aqui. A mulher do major morrera ainda jovem, deixando ao inconsolável esposo um par
de filhos, dos quais o varão morreu em tenra idade.

Na época em que nos achamos, o bravo paulista já havia renunciado à vida


ativa, e repousava à sombra de seus louros marciais, desfrutando em paz a fortuna que à
custa de suores e fadigas, havia honrosamente adquirido. Ufano de seus haveres, e
inculcando-se parente das mais ilustres e antigas famílias de S. Paulo, folgava de
relacionar-se com as pessoas altamente colocadas, e não poucas vezes jactava-se da
nobre influência de que gozava, em razão dos relevantes serviços prestados ao seu
partido. Não era, contudo, um fanfarrão vulgar; sabia guardar as conveniências e
aparentar modéstia, quando lhe teciam elogios à queima-roupa; baixava os olhos e
corava um pouco por baixo da tez bronzeada, embora sorrisse a furto com íntimo
contentamento.

Sua filha e sua chácara, porém, absorviam quase toda a sua atenção, constituíam
seus principais cuidados, e cumpre notar que ambos mereciam bem esses desvelos. O
jardim era notável, não só pela profusão e imensa variedade de flores raras e formosas
que o cobriam, como principalmente pela aprazível posição em que se achava colocado,
como um belvedere, dominando o pomar, por cima do qual a vista se estendia ao longe
por vastos horizontes.

Consistia ele em uma área quadrada de cerca de dez metros de face, dividida em
canteiros dispostos com arte e agradável simetria. Dois bonitos caramanchões cobertos
de trepadeiras ornavam-lhe os ângulos, como dois torreões de verdura e flores.

Era esse jardim como um gigantesco ramalhete, ou como um tabuleiro de flores,


onde mal se divisavam as estreitas ruelas, que os separavam; tão escondidas se achavam
debaixo das ondas de moitas perfumadas e floridas, que as abafavam.
Era ali que o major, nas lindas e frescas manhãs, ou nas tardes calmosas e
serenas, vinha espairecer as vistas, tomar o fresco e respirar o perfume das auras
embalsamadas, alardeando nos trajos e no modo de viver em certa indolência
voluptuosa à moda oriental.

Na ocasião em que o encontramos, traja, como de costume, uma ampla robe de


chambre de chita adamascada, e cobre a cabeça com um gorro de seda cor de viola,
bordado de garridas cores. No Pescoço, à guisa de gravata, traz um grande lenço
vermelho de pura seda da Índia, preso por um alfinete de brilhantes.

Quando ali se achava em seu jardim, ao lado de sua filha, contemplando suas
flores e seu vasto pomar, julgava-se tão feliz e poderoso, como um sultão nos palácios
de Estambul ou Bagdá.

É quanto basta por agora saber a respeito do major e de sua chácara. Quanto à
filha, em breve trataremos de esboçar o seu retrato, pois o major não tarda a chegar, e já
sabemos quanto o velho paulista é desconfiado. Portanto, sobre este particular, por ora
chiton!...

Alguns minutos depois que o major se retirara, entrou um escravo trazendo uma
ampla bandeja carregada de copos, facas, colheres, açúcar, limões azedos e uma garrafa
de aguardente, preparos indispensáveis para um ponche frio, e tudo depositou sobre a
mesa. Depois retirou-se sem dizer palavra, como quem diz: arranjem-se. Isso mesmo é
que os estudantes queriam.

– Vamos, rapaziada, vamos ao ponche! – exclamou o Aurélio, levantando-se de


um salto do banco em que se achava reclinado.

– Vamos a ele – acudiu prontamente Belmiro. – Com o calor que faz, nada
podia vir mais a propósito.

Imediatamente puseram mãos à obra, prepararam seu copo de ponche e


começaram a saboreá-lo lentamente (exceto o Azevedo, que apenas tomou um cálice de
aguardente pura e acendeu um charuto).

Assim passaram cerca de meia hora, a beber, fumar e conversar, enquanto


esperavam pelo major para conduzi-los ao pomar.
– Com mil diabos! – exclamou o Aurélio já impacientado com a demora do
dono da casa. – Azevedo, tu que tens mais liberdade na casa, manda dizer ao nosso
anfitrião que nós aqui viemos para passear, percorrer a chácara, admirar a beleza de sua
filha, e não para ficarmos encerrados nesta sala e tomar ponche eternamente.

– Tem paciência – replicou o Azevedo – O major não pode tardar. Sem dúvida
está a dar algumas providências para nosso tratamento, e foi avisar a filha, a fim de que
nos seja apresentada de um modo condigno e próprio de sua alta hierarquia.

– Ora essa! – interveio Belmiro – Que tenho eu com a chácara, com as


jabuticabas e mesmo com a filha do major? Da minha parte, preferia ficar aqui mesmo
nesta liberdade a tomar ponche, e, se houvesse violão, a tocar e cantar...

– Cala-te daí, pateta! – interrompeu o Azevedo. – É porque não sabes quanto é


encantadora a filha do major. Também a mim pouco me importam as jabuticabas; mas
dera de bom grado metade da minha vida para passar a outra metade nos braços de
Adelaide à sombra do jabuticabal...

– Oh! Bravo! Pelo que vejo, há muito que andas apaixonado?...

A palestra foi interrompida neste momento pela voz estridente do major, que já
de longe vinha bradando no interior da casa.

– Vamos, meus senhores, vamos às frutas, que já vai ficando tarde.

– Prontos, major! Prontos! – acudiram todos com entusiasmo.

– E D. Adelaide? Ainda não nos apareceu! Não vai conosco? – ousou perguntar
o Azevedo.

– Oh! vai sem dúvida – respondeu o major. – Lá está no jardim à nossa espera.

– É justo – replicou galantemente Azevedo – o jardim é o lugar das flores.

Guiados pelo major, os estudantes atravessaram diversos corredores e


compartimentos, e passando pela sala de jantar e por perto da cozinha, pressentiram
com íntima satisfação, pela vista e pelo olfato, que à volta do pomar os esperava uma
suculenta e opípara refeição. Sem mostrarem, todavia, prestar atenção a esta
circunstância, passaram além, desceram a um espaçoso pátio cheio de galinhas, perus,
patos e toda a casta de aves domésticas, e por um largo portão, que o major lhes abriu,
fizeram sua entrada no jardim.

Capítulo III

Adelaide no Jardim

Do lado oposto ao portão, na extremidade do jardim, para o qual se desce


também por alguns degraus de pedra, Adelaide, sentada em um banco à sombra de uma
pequena latada do jasmineiro, se apavona negligentemente em toda a plenitude de sua
formosura. Parece uma dríade entre as moitas florescidas... Mas não; não é a exata
comparação. O traje de Adelaide nada tem de comum com a ligeira e indecente
roupagem das ninfas da mitologia grega. Traz um vestido de seda furta-cores, cuja
ampla roda, um pouco arregaçada sobre a alva e rendada saia, se desdobra a um lado e
outro, dando-lhe antes a semelhança de gigantesca borboleta, com as asas de brilhante
matiz abertas sobre a florente ramagem do jasmineiro.

Quando o portão se abriu, parecia distraída, passeando pelo horizonte vagos e


melancólicos olhares; mas a garrulice alegre e ruidosa em que vinham os estudantes não
lhe permitiu conservar por mais tempo aquela atitude cismadora, que aliás não deixava
de ter seu tanto ou quanto de estudada. Levantou-se, fingindo-se um pouco
surpreendida, e deu alguns passos para estender a mão ao Azevedo, que por uma das
ruazinhas do jardim, por entre as ondas de verdura e flores, avançava direita e
intrèpitadamente a cumprimentá-la. Colhendo elegantemente com uma das mãos os
amplos tufos da saia, Adelaide dirigiu-se, lesta e risonha, para o estudante e, em breve
as duas destras se encontraram em afetuoso aperto.

– D. Adelaide – disse Azevedo – por muito favor lhe peço, deixe-me ficar onde
estava. A senhora, neste jardim, é a rainha das flores; aquele assento é um trono, que lhe
convém divinamente, e dele não deve levantar-se para ninguém.

– Aí vem o senhor com suas costumadas lisonjas – replicou Adelaide com um


requebro e um sorriso.
– O que diz o Azevedo é pura verdade – acudiu Aurélio, animado pelo exemplo
do colega. – Ao vê-la, minha senhora, julgo ter diante de meus olhos a Primavera
fazendo com seu sorriso desabrocharem todas estas flores.

E assim vieram chegando uns após outros a apresentar seus cumprimentos à


formosa fada daquele jardim, obsequiando-a cada qual com um galanteio mais ou
menos espirituoso. Belmiro foi o último. A beleza de Adelaide tinha produzido em seu
espírito, mais no de que seus colegas, viva e profunda impressão. Achava-se perturbado
e como que deslumbrado pelos fulgores daquele astro radiante da mocidade, graça e
formosura. Por isso nada lhe soube dizer, mas, ao apertar-lhe a mão, cravou-lhe um
olhar tão penetrante e significativo que não deixou de fazer impressão no ânimo da
moça. Se essa impressão foi agradável ou desagradável, é o que não sei dizer por hora.

– Agora – disse Azevedo alçando bem a voz – A Sra. D. Adelaide há de


permitir-nos que cada um de nós vá colher em seu jardim uma flor, que for mais do seu
agrado, para termos a honra de ofertar-lha.

– Oh! Sr. Azevedo, que quer dizer isto? O senhor me confunde; não mereço
tantas honras – murmurou Adelaide , baixando os olhos, constrangida.

– Merece muito mais – bradaram os outros – há de aceitar as nossas flores.

Adelaide, com um sorriso e um gracioso aceno, anuiu à proposta dos estudantes.

– Bravo! Andem lá com isso! Quero ver qual tem melhor gosto – exclamou o
major que, algum tanto afastado, assistia todo risonho a este tiroteio de galanteria.

Imediatamente os rapazes se espalharam pelo jardim, e daí a instantes cada um


veio depor nas mãos de Adelaide uma flor de sua escolha. Azevedo ofertou-lhe um
jasmim do Cabo, rico de viço e fragrância e alvo como neve, que ela colocou sobre o
seio. Belmiro trouxe-lhe um lindo cravo caboclo, que ela recebeu quase sem olhar para
a pobre flor, e entrançou negligentemente nos cabelos.

O major, mui ancho e satisfeito, assistia de parte a estas inocentes homenagens


tributadas à formosura de sua filha, e predizia-lhe lá de si para si o mais esplêndido
destino.

Depois o grupo se dispersou pelo jardim, e houve então tal colheita e oferta
recíproca de flores, que era um nunca acabar. Adelaide de sua parte não se cansava na
faina, e verdadeira borboleta esvoaçando de canteiro em canteiro, ela só fazia face aos
sete, oferecendo a este um botão de rosa, àquele uma não-me-deixes, a outro um suspiro
ou uma saudade, e assim por diante, de uma maneira que, no fim de alguns minutos os
pobres rapazes já não sabendo onde acomodar tantas flores as iam tirando fora às
escondidas.

Como Adelaide em compensação recebia outras tantas dos sete comparsas, já


tinha na mão, não um ramalhete, mas um feixe de flores de tal sorte avultado, que
forçoso lhe foi alijar a carga sobre o banco em que estivera sentada. Conservava,
todavia, com cuidado as primícias daquelas oferendas: o alvo jasmim de Azevedo a
balouçar-lhe sobre os seios ofegantes; o cravo caboclo de Belmiro ostentando-se
vaidoso entre as negras e luzidas tranças; e as outras cinco flores juntas cuidadosamente
em sua mão esquerda.

Enquanto eles se enlevam em tão frívola ocupação, vamos nós, caro leitor, tratar
de conhecer mais de perto e de modo mais íntimo aquela que é alvo de tantas
homenagens e adorações.

Não era Adelaide uma beleza completa e sem senão, mas tinha um rosto tão
gentil e fisionomia tão sedutora, que a custo o mais hábil e delicado pincel poderia
apanhar-lhe os traços e a expressão. Era um desses tipo singulares, que atraem e
fascinam por sua encantadora originalidade. Era de porte alto, bem feita e garbosa; de
feições era engraçada e bonita, como bem raras se encontram. Grandes olhos, de uma
negridão e brilho incomparáveis, abriam-se suavemente entre longos cílios da mesma
cor, como dois lagos, onde se espelhavam o amor e a voluptuosidade. A tez tinha a cor,
que o leitor pode imaginar seria a da filha de uma gentil mulata e de um belo e robusto
descendente dos Tibiriçás; era morena, mas de uma matiz suave e transparente, através
do qual se via animar e colorir-lhe as faces o sangue ardente das duas raças de que
procedia.

A farta madeixa, que ela deixava em parte cair como uma cascada espadanando
pelas nédias e bem torneadas espáduas, nem era por demais encaracolada, nem lisa e
corredia, mas debruçava-se em largas e graciosas ondulações, que lhe desciam até
abaixo da cintura. A boca, não mui pequena mas admiravelmente delineada, era
formada por dois lábios rubros e carnudos do mais voluptuoso relevo. Um tênue e quase
imperceptível buço, que lhe sombreava o lábio superior, dava-lhe ainda um realce
indefinível.

Um sorriso dessa boca era um presente do céu; um beijo... oh! isso seria uma
ventura, com que nem mesmo ousaria sonhar o mais audaz de seus adoradores.

Na bem proporcionada e delicada conformação das mãos e dos pés, bem como
na finura do talhe e na elegância do porte, era ela também representante dos mais belos
e genuínos tipos europeus. Dessa tríplice aliança de raças tão diferentes resultou esse
misto singular e encantador, que teve o nome de Adelaide.

Sua natureza moral era também um composto inexplicável de qualidades


opostas, que deveriam excluir-se umas às outras, ou andar em perpétua colisão. Fosse
por índole ou por defeito de educação, era ela um misto incompreensível de
desenvoltura e recato, de meiguice e esquivança, de ingenuidade e malícia. Nas
maneiras, nos ademanes, nas palavras era às vezes de tal desembaraço, que generava em
estouvamento; e outras vezes de tal timidez e acanhamento, que roçava pela
imbecilidade. Rica, tendo consciência de sua formosura, e persuadida de que lhe corria
nas veias o sangue da mais pura e antiga fidalguia paulistana em virtude dos
preconceitos, que desde a infância o pai lhe imbuíra no espírito, não podia faltar-lhe
altivez e vaidade em alta pose. O amor ideal, alimentado pela leitura de romances e
poesias, que sem escolha e sem critério lhe eram fornecidos, com todas as suas
exaltações febris, e romanescas aberrações escaldava-lhe a imaginação já de si mesma
viva e apaixonada, ao passo que os instintos sensuais se desenvolviam com não menos
energia naquela organização exuberante de viço e cheia de ardente e vigorosa seiva.

A má direção dada à educação intelectual de Adelaide, que o major, ignorante e


filaucioso como era, deixava correr à mercê das fantasias da filha, estragava os
excelentes dotes daquele espírito vivaz e expansivo, e a falta absoluta de educação
moral deixava adormecidos alguns instintos, que a natureza havia plantado no coração.

Assim o bom major, parte por ignorância e inexperiência, parte por um descuido
e condescendência indesculpáveis, deixava desenvolver-se no seio daquela tenra e
melindrosa planta, fecundo gérmen para muitos transvios, decepções e amarguras pelo
decurso da vida.
Adelaide tinha mestres de francês, de música, de desenho e de italiano, e de
tudo isso já sabia alguma coisa pela rama.

Nunca porém tivera uma aia, ou uma parenta velha, a quem consagrasse afeição
e respeito, e que lhe dirigisse os passos nesse quadra crítica e delicada em que a mulher
passa da infância para a puberdade, e entra, por assim dizer, em um mundo novo e
desconhecido, cheio de atrativos e miragens enlevadoras, onde os abismos ocultam por
entre flores.

Entretanto, já lia sofrivelmente o francês, dedilhava com agilidade e


desembaraço o seu teclado, e cantava sem gaguejar sua àriazinha italiana; era porém
mais forte em modinhas e lundus, de que possuía um interminável repertório.

Quanto ao desenho, já sabia fazer dois corações traspassados por uma flecha,
duas pombas beijando-se, e debuxava e coloria uma rosa com suas folhas e botões de
modo a não confundir-se com outra qualquer flor.

Tinha então Adelaide dezesseis anos. Estava nessa época da vida em que a
imaginação de uma moça rica e desocupada paira por mundos ideais, só enxergando
ouro e rosas no horizonte encantado do porvir, e em que o físico, tanto atingido à
plenitude de seu desenvolvimento, entrega-se indolente às vagas impressões de mórbido
e voluptuoso sensualismo.

Enfim, Adelaide é como essa mimosa flor, que inconscientemente traz


entrançada em seus cabelos, ofertada por Belmiro. É um lindo e viçoso cravo caboclo a
espreguiçar-se voluptuosamente sobre a haste flexível, apresentando as macias e
cheirosas pétalas ao sol da primavera. Essa flor faceira e peregrina se requebra sobre sua
fronte, dobrando-se indolente ao sopro de todas as virações, é a sua viva e fiel imagem.

Adelaide estava nessa interessante e encantadora quadra da existência, quando


seu pai entendeu que devia abrir as salas de sua linda chácara, seu jardim e seu pomares,
à freqüência dos estudantes. O diamante, em sua opinião, estava suficientemente
lapidado, e podia exibi-lo sem receio na boa sociedade, certo de que produziria o mais
completo e deslumbrante efeito.

Seria bom o seu cálculo? Andaria ele bem avisado com tal procedimento?

Não sei; a continuação desta história se encarregará de dar uma resposta a essa
pergunta.
Capítulo IV Entre as Jabuticabeiras

O major, grande e apaixonado cultor de Flora, também contribuía com seu


contingente para entreter os estudantes, porém de um modo que não deixava de ser
bastante desagradável e enfadonho para eles. A cada passo colhia um botão, uma flor,
uma semente, que apresentava a qualquer deles, contando por miúdo donde lhe viera a
semente, os cuidados que exige, em que tempo se deve plantar, etc., etc., não se
esquecendo do nome científico que leva no catálogo, não lhes deixando tempo para se
entreterem com a moça. Vendo essa importuna mania do velho, os estudantes, que até
ali tinham suportado com impaciência a defensiva, resolveram tomar a ofensiva, e,
colhendo de sua parte também aqui e acolá botões, folhas e flores a granel, as iam
apresentar ao major, a quem não deixaram mais respirar, aturdindo-o com as mais
cerebrinas e esdrúxulas explicações botânicas. O estratagema surtiu o desejado efeito.

– Enfim, meus amigos – exclamou afinal o major, já atordoado com tanta


ciência – basta de flores! Vamos aos frutos, que já é tempo.

– Apoiado, major! – bradou o Silva. – A elas, às jabuticabas!

– É justo – acudiu Aurélio. – As flores voam nas asas do vento, e são sòmente
cor e perfume; mas os frutos têm também a polpa e o sabor. As flores duram um
momento, e são como a beleza, de que fala o poeta:

Et rose, elle a vécu ce que vivent les roses, L’espace d’un matin. E Rosa ela viveu da
rosa a vida, O espaço de uma aurora.

– Outro tanto se pode dizer dos frutos – replicou Belmiro – e a estrofe de


Malherbe pode também se traduzir pela seguinte maneira:

Jabuticaba, ela viveu sòmente Como a jabuticaba; Foi comida e deixou só a semente;
Assim tudo se acaba.
Esta paródia, que foi aplaudida com estrondosas gargalhadas, não agradou
muito a Adelaide e nem ao Azevedo.

– Ora Belmiro! – disse enfadado. Para que estragardes com tua tradução
sacrílega e picaresca a linda estrofe do poeta! Lembra-te que há também flores
perpétuas e sempre vivas; e aqui mesmo neste jardim posso mostrar-te uma –
acrescentou, olhando significativamente para Adelaide –

E não é como a rosa, que, de vida, Só tem uma manhã; De dia em dia surge mais
crescida, Mais bela e mais louçã

– Bravo, Azevedo! Bonito madrigal! – exclamou o Oliveira. – Mas, em fim das


contas, depois das flores do jardim de Arminda vêm as flores da poesia, e nunca chega a
vez dos frutos! Soldados! – continuou ele em tom solene, parodiando Bonaparte no
Egito. – Do alto daquelas jabuticabeiras quarenta mil jabuticabas nos contemplam! A
elas, meus bravos!...

– A elas! – bradou o major, abrindo uma cancela, de onde por alguns degraus se
descia para o quintal de legumes e hortaliças, no fim do qual se estendiam densas e
copadas filas de jabuticabeiras, pelas quais os estudantes se enfiaram de tropel.

– Venham cá, meus amigos – gritou o major, procurando arrebanhá-los. –


Agora, sentemo-nos aqui à sombra, enquanto o moleque nos vai apanhar as frutas que
estão caindo de maduras.

– Oh! meu major! – exclamou o Oliveira. – Nisso não consentimos nós; seria
privar-nos do melhor da festa.

– Não, senhor! – acrescentou o Aurélio. – Nada de cerimônias, meu major; nós


mesmos queremos colher as jabuticabas, que havemos de comer; queremos chupá-las,
como fazem os passarinhos, em cima da árvore, gorjeando e saltando de ramo em ramo;
aí é que está todo o chiste e poesia do negócio.

– Mas isso não pode ser – interveio Adelaide, que, nesse momento, entrava no
pomar, acompanhada pelo Azevedo. – Os senhores vão se pisar, amarrotar e rasgar a
roupa, e mesmo podem cair... Nada! É melhor que o moleque vá apanhar as frutas; ele
já está acostumado.

– E nós também, minha senhora – atalhou Belmiro. – Qual de nós aqui que não
terá trepado em uma jabuticabeira?

– Eu que aqui estou – acudiu Azevedo. – Nunca trepei e nem quero trepar; não
sou macaco.

– Não és dos grimpantes, e antes queres pertencer à família dos répteis! Tanto
pior para ti; não podes elevar-te como nós, que vamos nos avizinhar das regiões
celestes. Se o Senhor major nos dá licença, tiramos as sobrecasacas, e vamos acima.

– Façam como entenderem, meus caros, todo este pomar hoje lhes pertence.
Estejam em plena liberdade. Mas olhem cá! Reservei para os senhores aquela
jabuticabeira que ali está; ainda ninguém apanhou nela uma só fruta; está carregadinha,
e são doces como favo de mel.

– Obrigado pela fineza, meu caro major; mas há de permitir-nos que ofereçamos
à senhora sua filha as primícias desses frutos deliciosos.

Dito isto, desembaraçaram-se lestamente de suas sobrecasacas, e dirigiram-se


para a árvore indicada, exceto o Azevedo, que deixou ficar sentado sobre a relva, à
sombra de uma laranjeira, em companhia do major e sua filha.

– Pior está o caso – murmurou o Azevedo, depois que os outros se afastaram.

– É Qual caso? – perguntou Adelaide, surpreendida.

– Que a senhora está aqui como que representando o papel de Eva no Paraíso, e
está me parecendo que aquela é a árvore do fruto proibido.

– Ora! Ora esta, homem! – exclamou o major, rindo-se muito. – Esta nem ao
diabo lembrava. Mas, meu doutor, acho que nenhum daqueles bons moços se parece
com a serpente que enganou Eva.

– Pois eu acho-lhes toda a semelhança; conheço bem aqueles maganões,


principalmente o tal Sr. Belmiro; debaixo daquele ar apalermado esconde-se um
verdadeiro Mefistófeles.
– Mefistó... Como se diz... Quem é esse sujeito? - perguntou Adelaide, sorrindo-
se.

– É uma das personalidades do Diabo, minha senhora; foi nessa figura que ele
tentou Fausto, para que este tentasse Margarida, como tentou a Eva na figura da
serpente. É uma galante história; se a senhora quiser lê-la...

– Oh! pois não; gosto muito de ler romances... Foi o senhor mesmo que compôs
isso?

– Não, minha senhora. Quem me dera! Foi um famoso pândego alemão,


chamado Goethe.

– Goethe!... Que nome extravagante!... Mas o senhor fala muito mal dos seus
camaradas...

– Oh! D. Adelaide, é pura brincadeira. São excelentes rapazes; muito folgazões


e nada mais...

– Sim, minha filha – disse o major – está claro que o Sr. Azevedo não podia
trazer à nossa casa senão pessoas de distinção.

De distinção bem podiam ser eles; mas à exceção talvez desse pobre Belmiro,
contra o qual tanto se assanhava o humor satírico de Azevedo, não podemos asseverar
que tivessem a consciência muito escrupulosa, e devemos antes crer que se não eram
dos mais devassos e libertinos, qualquer deles era bem capaz de levar um namoro ou
uma intriga amorosa até as últimas conseqüências.

Entretanto, o major se havia retirado de junto de sua filha e de Azevedo, e sem


perdê-los de vista tinha ido percorrer o quintal de hortaliças e dar algumas ordens aos
escravos que nele trabalhavam. Enquanto Adelaide e Azevedo se entretinham na frívola
conversação que acabamos de ouvir, os outros estudantes grimpavam pelos galhos da
jabuticabeira como verdadeiros sagüis, e enchiam a copa dos chapéus dos mais doces e
sazonados frutos.

Dentro em cinco minutos estavam de volta, e rodeavam Adelaide, trazendo-lhe


em oferenda as primícias dos deliciosos frutos que acabavam de colher. A moça viu-se
em sérios embaraços diante de seis chapéus, que eles, cada qual mais sôfrego e
pressuroso, lhe apresentavam ao nariz. Para tirar-se de dificuldades, foi metendo
indistintamente ambas as mãos em todos os chapéus e tirando punhados de frutos até
encher um grande alguidar com água, que uma escrava tinha colocado ao pé dela. Foi
Belmiro o último que se apresentou, depois que viu Adelaide inteiramente
desembaraçada de obsessão de seus companheiros. Esta, ou fosse por não ter mais onde
acomodar as frutas, ou por um mero capricho de moça, escolheu uma dúzia no chapéu
de Belmiro, e depois de as ter limpado apenas com o seu lenço de fina cambraia, ali
mesmo as estalou entre os alvos dentes, saboreando-as com certo arzinho faceiro de
satisfação, que fez sofrer todas as torturas de inveja a seus companheiros,
principalmente ao Azevedo, cujas as faces naturalmente pálidas se fizeram
esverdinhadas de desapontamento e despeito.

Belmiro com efeito parecia triunfar, e cheio de prazer, esperança e ufania,


pondo de lado seu natural acanhamento, pôs-se a chasquear com Azevedo.

– Então, Azevedo, que quer dizer isto? – dizia-lhe ele em pé, de braços cruzados
diante do colega, que se achava reclinado sobre a relva ao lado de Adelaide. Que viste
cá fazer? Ou és um grande preguiçoso, ou um moleirão sem préstimo algum. Se não
fosses tu quem nos veio abrir as portas deste paraíso, não provarias uma só fruta;
quando muito te daríamos as cascas. Ora, não faltava mais nada! Nós a esfolarmos as
mãos e a torcermos o pé nos galhos da jabuticabeira, e tu estendido aí à sombra sobre a
fresca relva ao lado da Senhora...

Tu, Tytire, lentus in umbra..., -Formosam resonare doceo Adelaida silvas.

Respondeu prontamente Azevedo.

– Adelaide da Silva não senhor – atalhou a filha do major – esse não é meu
nome, Sr. Azevedo; chamo-me Adelaide Celestina Bueno de Aguiar.

– Oh! esplêndido nome! – murmurou Azevedo, voltando a rosto para abafar ou


exalar o riso, que lhe inchava as bochechas e ameaçava fazer explosão. E começou a
tossir, fingindo-se engasgado com a fumaça do charuto.

Os outros estudantes também de sua parte faziam supremos esforços para não se
rirem abertamente da ingênua e singular interpretação, que a moça havia dado ao verso
de Virgílio, onde Azevedo com tanta habilidade soubera encaixar de improviso o nome
de Adelaide. Nada disseram, mas Adelaide, pelos olhares maliciosos que trocaram entre
si, logo compreendeu que havia dito alguma tolice; corou muito, mas não se enfadou,
nem se mostrou desapontada.

– Oh! meus senhores! – exclamou ela entre risonha e enfadada – se continuam a


falar francês, eu não sou mais da companhia, e peço licença para me retirar.

Foi Belmiro quem primeiro acudiu em seu auxílio.

– Desculpe-nos, minha senhora – disse. – Fomos eu e o Azevedo que tivemos a


lembrança de citar uns versos de Virgílio, que parecem ter sido feitos de propósito para
a senhora na presente situação. A única diferença é que aqui o meu amigo habilmente
substituiu o nome de Amarílis pelo de Adelaide.

– É verdade, minha senhora – replicou Azevedo, olhando de revés para Belmiro


– e por sinal que esses versos diziam respeito a certo invejoso, que levava a mal que o
amante de Amarílis repousasse à sombra, ensinando aos ecos o nome de sua amada.

– Ah! já compreendo – replicou Adelaide. – Agora o que peço aos senhores é


que, daqui em diante, se quiserem fazer ou recitar versos, seja em língua que eu possa
entender.

– Muito bem! D. Adelaide tem toda a razão – acudiu Aurélio – e daqui em


diante juramos que não havemos de proferir em sua presença uma só palavra francesa
nem latina. O diabo que consuma essas duas línguas; uma, porque mora a alguns
milhares de léguas distantes de nós; outra, porque já morreu há mais de mil anos.

– Pois seja assim, que lhes ficarei obrigada... Mas olhem! As frutas vão se
acabando; é preciso novo sortimento.

E tinha razão a moça, pois não se pense que aquele grupo se ocupava só em
falar; ao passo que engoliam a polpa da jabuticaba, deitavam fora também cascas e
caroços de mistura com toda essa torrente de toleimas e disparates que acabamos de
ouvir, além de outros muitos, que omito por brevidade. Em vista daquele pedido, ou
antes ordem da filha do major, parte do grupo, que a rodeava, se afastou, ficando junto
dela somente o Azevedo e mais dois colegas.
Belmiro não podia tolerar de sangue-frio que Azevedo continuasse a ficar a sós
com a filha do major; achava isso revoltante e escandaloso. O pequeno sinal de
predileção que ela lhe havia dado, provando em primeiro lugar das jabuticabas que tinha
colhido,

Lhe enchera com grande abundâncias O peito de desejos e esperanças

como acontecera com Adamastor de Camões, e em conseqüência tinha-lhe


superexcitado o ciúme, que já nutria contra o Azevedo. Logo que se distanciou algum
tanto, com os três companheiros, que o seguiram, parou e, formando com eles uma
espécie de conselho deliberativo:

– Antes de tornarmos a subir à jabuticabeira, vamos conversar aqui um pouco –


disse-lhes em meia voz. – Não acham vocês que é um desaforo da parte de Azevedo, e
da nossa uma toleima inqualificável, deixarmos ali ficar tranqüilamente aquele maganão
a sós com a moça, enquanto nos estamos a amofinar para regatá-los a um e à outra?

– Tens razão, Belmiro – replicou Oliveira. – E como lá fica ele tão ancho e
cheio de si e dar boas gargalhadas, talvez zombando de nós, e fazendo-a rir a nossa
custa? Isto com efeito é custoso de aturar-se.

– Também a culpa é mais do velho – ponderou judiciosamente o Silva. – Por


que deixa ele assim a filha sozinha em companhia de um Mefistófeles daquela ordem?
Ah! se ele soubesse de que têmpera é aquele!

– Ora, deixem-se disso, meus caros! - interrompeu o Dias com um fleugma, que
fez raivar a Belmiro. – Para que essas ciumadas? E que temos nós com o namoro do
Azevedo? Deixá-los; já são conhecidos antigos, e se ela lhe dá preferência é fortuna
dele. Viemos nós aqui para nos divertir, passear e comer jabuticabas, ou para namorar a
filha do major e disputá-la com Azevedo?

– Ora bravo, meu Dias! Essa é impagável! – exclamou Belmiro, com azedume.
– Pelo que vejo, viemos aqui como cortesões de um rei para os servir e render
homenagem a ele e à sua dama?... De certo cá não viemos para requestar a filha do
major, mas também hás-de compreender que não nos fica muito airoso dar azo e
proteção ao namoro do Azevedo.

– E o que queres que façamos, não me dirás? – redargüiu vivamente o Dias.

– Impedir esse namoro.

– Como?...

– Ora como!... Nada mais fácil. Somos seis contra ele, e nada custa dividirmo-
nos em dois grupos, que se revezem de maneira que ele nunca tenha ocasião de achar-se
a sós com ela. Assim, uns ficarão fazendo-lhes companhia, enquanto outros trepam às
jabuticabeiras...

– Pois eu cá – disso o Oliveira – quero ser um dos que ficam; a falar com
franqueza, prefiro mil vezes ficar conversando com a menina, do que ir apanhar, e
mesmo comer, as mais doces jabuticabas do mundo.

– E eu também – retrucou o Dias. – Não porque me importe o namoro do


Azevedo, nem com os encantos e faceirices da menina, mas porque já estou com as
mãos esfoladas e as botinas encravadas.

– Mas isto não ode ser, meus amigos! – exclamou Belmiro, com impaciência. –
D. Adelaide está à espera de frutas, e nós aqui a turrar como crianças por uma
ninharia!...

Ah! já achas uma ninharia! – murmurou o Dias. – Ainda há pouco sustentavas o


contrário.

– Vamos nós, Oliveira – continuou Belmiro. – Vamos trepar à jabuticabeira, e


deixemos estes bobos, estes Hércules ridículos aos pés da sua Ônfale...

– Também não vou, visto que todos ficam – respondeu secamente o Oliveira. –
Não sei qual será mais bobo, se quem lá sobre, ou quem cá fica embaixo. Já cumprimos
para com a filha do major o dever de cavalheiros delicados. Agora, os moleques do
major que apanhem frutas para nós todos.

Assim o pobre Belmiro se achou isolado em seus planos de embaraçar o namoro


de seu rival. Os dois outros companheiros, que tinham ficado com Azevedo, também
não se arredavam de junto de Adelaide, e deste modo ou ele só iria apanhar jabuticabas
para ela e para todos aqueles malandros, ou deixaria de obsequiá-la com os saborosos
frutos, de que ela tanto havia gostado. Horrível conjuntura!

Cumpre reconhecer que era mui natural e justificável o procedimento dos outros
estudantes para com Belmiro. Este, bem como Azevedo, já tinha merecido de Adelaide
sinais de predileção, próprios para inspirar-lhes sonhos fagueiros e esperanças cor de
rosa. O mesmo não acontecia aos outros, os quais, à exceção talvez Silva, que tanto na
figura como no temperamento parecia um batavo pouco sensível aos encantos da beleza,
e do Dias, filósofo pachorrento, para quem o mais simples galanteio era coisa
incompreensível, os outros todos sentiam também a magnética influência dos sedutores
atrativos da gentil paulista. Não era, pois, de esperar que se prestassem de bom grado a
favorecer aqueles a quem a sorte já se ia mostrando tão propícia e risonha.

Este estado de colisão e perplexidade não durou muito tempo, veio pôr-lhe
termo o incidente inesperado que vamos ler no capítulo seguinte.

Capítulo V

Nova companhia vinda muito a propósito

– Adelaide! Adelaide! ó lá! – ouviu-se bradar de longe a voz estridente do


major.

– O que é lá, papai? – acudiu levantando-se rapidamente a moça, que, achando-


se empenhada em uma interessante conversação com o Azevedo e os outros dois
estudantes, que estavam ao pé dela, não deixou de sobressaltar-se com tão brusco e
altissonante chamamento.

– Olha cá não vês? – continuou o major no mesmo tom. – O nosso vizinho


tenente André com suas filhas; temor reforço de boa companhia.

– Oh! que belo, as filhas do Tenente André! – exclamou Adelaide, batendo


palmas, e correndo ao encontro de suas amigas e vizinhas, que vinham lentamente pelo
quintal, escoltadas pelo major e o tenente, que marchavam gravemente na retaguarda.
Eram três nédias viçosas raparigas, alegres, desembaraçadas e folgazonas, orçando a
idade delas, da mais moça à mais velha, entre os dezoito e vinte dois anos. Posto que
muito inferiores em beleza e elegância à filha do major, eram bem feitas, bonitas, e
tinham maneiras e ademanes inocentemente provocadores.

O pai era um tenente do exército, reformado, baixo e algum tanto bojudo, e que
só pelos formidáveis bigodes grisalhos revelava a classe a que pertencia. Como
representa um papel quase nulo nas cenas, que vamos descrevendo, pouco no
ocuparemos com sua pessoa; entretanto, sempre diremos que era viúvo, que sabia muito
bem comer, beber, dormir e ir pontualmente receber à boca do cofre o seu soldo de
tenente que – diga-se em abono a verdade – despendia honestamente com a manutenção
de sua família, a qual constava unicamente dele e suas três filhas. Na sociedade quase
nada dizia, contentava-se com prestar atenção e aplaudir, com seu riso alvar, a tudo que
se dizia.

As duas famílias tinham entre si essa intimidade que provém da vizinhança em


um lugar isolado, e portanto o tenente, com sua pequena mas vistosa companhia,
entrava pelo quartel-general do major à hora que lhe parecia, sem formalidades nem
continências, visto que ambos estavam em quartéis de inverno. Todavia, rezam as
crônicas do tempo que naquele dia o batalhão do tenente tinha visto desfilar em direção
ao acampamento do major um forte esquadrão de cavalaria, e por isso, dando o alarma,
se tinham posto em marcha sob o comando de seu chefe a fim de socorrer o major, o
qual, como sabemos, dispunha apenas de uma praça, se bem que essa valesse por dez.
Os quatro estudantes, que se achavam no conciliatório, a que assistimos no precedente
capítulo, ouviram também o brado do major, e, pondo-se alerta, encaminharam-se
curiosos para junto da laranjeira, ponto central daquela expedição ao pomar do Major
Damásio.

Dando as mãos uma às outras, as quatro moças correndo, rindo, tagarelando,


tropeçando, escorregando, e às vezes quase caindo umas sobre as outras, desceram
através dos canteiros do quintal e, redemoinhando como uma guirlanda arrebatada pelo
vento, vieram parar no sítio em que Azevedo e seus seis companheiros estavam em pé e
imóveis as esperavam para cumprimentá-las. Aí sentaram-se , ou antes, deixaram-se cair
em círculo sobre o tapete de relva, que circundava a laranjeira, sem mostrarem prestar
grande atenção aos estudantes, que as contemplavam e continuaram sua interminável
tagarelice.

Isso irritava cruelmente os nervos ao Azevedo, que em vão procurava uma


brecha para introduzir um dito qualquer, um monossílabo que fosse naquele espesso
chuveiro de perguntas e respostas, de ditérios, risos e gargalhadas, e dava aos diabos o
tenente com toda a sua gárrula descendência, que vinha roubar-lhe a posse tranqüila e
quase exclusiva, em que até ali estivera, da companhia de Adelaide. O que, porém, para
ele era uma contrariedade foi para seus companheiros uma verdadeira redenção. O
Belmiro principalmente exultou no íntimo d’alma, porque o aparecimento das três
recém-chegadas veio produzir eclipse total entre Adelaide e o Azevedo.

Enfim, esse novo reforço de gente veio muito a propósito para animar a
companhia, cujo contentamento e bom-humor se ia arrefecendo consideravelmente por
falta de moças, como se extingue o lume no fogão por falta de lenha, ou na candeia à
míngua de óleo. Em verdade uma só moça e um velho, aliás um folgazão, afável e
obsequiador, mas excessivamente preocupado com os cuidados de sua quinta, não
podiam distrair os sete estudantes, a maior parte dos quais começavam a sentir-se
bastante aborrecidos e contrariados. Adelaide, de sua parte, fazia boa cara a todos eles,
mas temos visto sua companhia e conversação quase monopolizados pelo Azevedo, e
ardentemente cobiçada pelo Belmiro, enquanto os outros nenhum interesse nem vontade
tinham para disputar aos dois contendores os sorrisos e boas graças da gentil dona da
casa.

Assim estiveram por alguns minutos os sete estudantes, em pé, em roda das
quatro moças sentadas sobre a relva; eles mudos quase imóveis, e elas rindo-se,
mexendo-se e tagarelando com amável garridice e desembaraço; eles tolhidos e
acanhados sem ousarem interromper aquela orquestra de passarinhos; elas trêfegas e
descuidosas sem mostrarem perceber que quatorze olhos e quatorze ouvidos as
escutavam e contemplavam.

A chegada do major, que se tinha demorado em caminho, mostrando alguns


enxertos ao amigo tenente André, veio mudar repentinamente a cena.

– Então, não se come frutas?! – bradou ele, parando a dez passos de distância. –
Antes querem conversar e brincar do que comer jabuticabas! Ora! ora!... Isso é uma
vergonha!... Meus amigos, aqui estão estas moças, minhas vizinhas, que também
gostam de frutas.

Quando o major terminou essa palavra, já as quatro moças estavam em pé, e os


sete estudantes, alargando o círculo, esperavam o resto da alocução.

– Meus amigos – continuou ele, chegando-se ao grupo – a árvore, que lhes


destinei, ainda ali está carregadinha como a deixei. A ela! Não quero que ali fique uma
só fruta. São estas senhoras que lhes pedem.

O efeito da eloqüente proclamação do major foi imediato. As posições se


mudaram com presteza e exatidão quase militar, de um modo favorável em geral, mas
que desconcertou a alguns em particular. Adelaide já não era a única deusa daquela
festa; Oliveira, Araújo e Aurélio já tinham cada um escolhido entre as três irmãs o
objeto de seus cultos e tinham entre si segredado a sua escolha, para que não houvesse
entre eles motivo de ciúmes e conflitos ridículos, como se iam dando entre Azevedo e
Belmiro. O Dias e o Silva, jovens fleumáticos e sisudos, como se achavam saciados de
jabuticabas, de ouvir frioleiras e de assistir a cenas de frívolos namoricos, tomaram de
novo as sobrecasacas, abandonaram a companhia e de braço dado, como dois
verdadeiros peripatéticos, puseram-se a passear e a conversar serenamente por entre as
sombrias aléias do pomar. Sem dúvida, como jurisconsultos quase abalizados que já
eram, tratavam da próxima sabatina, a última do ano, assunto este tão importante e
ponderoso para um estudante de direito, como é para um general a última batalha, que
se tem de ferir para decidir da sorte de uma longa campanha.

Aurélio, Oliveira, Araújo e Belmiro correram para a jabuticabeira, os três


primeiros para obsequiarem às escolhidas de seu coração e o último por amor de
Adelaide, contando que as três recém-chegadas continuariam a fazer companhia à filha
do major. Este, apenas viu o efeito elétrico que haviam produzido suas palavras, se
voltou para o tenente e, tomando-lhe o braço:

– Meu tenente – disse-lhe – estes moços são verdadeiros quatis para treparem às
árvores; ainda há pouco os vi fazendo proezas lá por cima. Eles nos hão de trazer fruta
com fartura. Enquanto isso, vamos acabar de ver nossos enxertos.

E ambos foram se retirando pachorrentamente.


Quando Belmiro, de envolta com seus três companheiros, chegou quase ao pé
da jabuticabeira, voltou-se rapidamente, curioso e ofegante, para o lado donde tinha
partido. Mas... oh! desgraça! Qual não foi seu desapontamento quando se encontrou
face a face com as três ninfas, que, se não eram as três graças, eram ao menos três
alegres e encantadoras diabinhas. Parece que vinham tão de jabuticabas como de travar
relações com seus guapos e diligentes servidores, sobre os quais relanceavam chispas
abrasadoras de seus olhos, tão negros como as frutas que cobiçavam. Vendo diante de si
aqueles três rostinhos faceiros e risonhos, Belmiro cambaleou, e foi-lhe mister agarrar-
se a um galho da jabuticabeira para manter-se convenientemente aprumado. Quando,
porém, antes de dizer nada às moças, que o encaravam entre atônitas e risonhas,
olhando por sobre as três cabecinhas, avistou o Azevedo de novo reclinado
negligentemente sobre a relva, com o infalível charuto na boca, a contemplá-lo de longe
com certo arzinho insolentemente galhofeiro e provocador, Belmiro, que até então
estivera rubro como um cravo, empalideceu subitamente.

– Os senhor está sofrendo? – perguntou uma das moças, assustada com essa
repentina mudança de cor.

– Não, senhora – balbuciou o pobre moço – mas... mas... as senhoras por que
não... não se deixaram ficar lá com... D. Adelaide? Nós lhes levaremos as frutas...

– Oh! não, não, não... interromperam quase a um tempo as três gárrulas


mocinhas. – Era boa estarem a subir e a descer com tanto incômodo por nossa causa!...
Não consentimos em tal, não senhores! Subam, atirem as frutas ao chão, que nós a
iremos apanhando e ajuntando, para depois as comermos juntos. D. Adelaide já mandou
vir as cestas.

– Como quiserem, minhas senhoras – murmurou surdamente Belmiro, e,


voltando-se para a árvore, começou a grimpar pelos galhos mui lentamente e de muito
má vontade, mais para ir esconde entre a espessa ramagem seu despeito e
desapontamento, do que pelo desejo de colher jabuticabas para quem quer que fosse.

Imediatamente, começou a chover sobre as moças uma incessante metralhada


de jabuticabas, que elas rindo, galhofando, saltando daqui para acolá, iam apanhando e
ajuntando em balaios, que Adelaide mandara trazer. Com as jabuticabas choviam
também chalaças, quolibets e galanteios, que se cruzavam de parte a parte com
infatigável ardor.
– Ai! estou ferida no peito por uma bala! – gritou uma das moças. – Quem foi
que atirou?

– Fui eu, minha senhora – respondeu uma voz de cima.

– Pois perdeu o seu tempo; não penetrou.

– Pois eu vou fazer um tiro tão normal e certeiro, que por força há de penetrar –
bradou o Aurélio. – Lá vai!...

Ai! quase veio-me na boca.

– Pois é somente por aí, minha senhora, que estas balas podem penetrar. Perdoe-
me se errei o ponto.

– Belmiro!... – vociferou um dos estudantes. – Que estás aí a fazer,


resmungando como um possesso? Olhem que marralheiro! Deu-lhe a preguiça, e em vez
de apanhar frutas está a derriçar sem piedades os galhos da jabuticabeira!... Que mal te
fez a pobre árvore, meu sonso?

De feito, Belmiro com a mão trêmula e frenética estava a escorchar


desapiedadamente os galhos da jabuticabeira, lançando em terra indistintamente frutos
verdes e maduros, brotos e folhas, e enfiando olhares ardentes através da miúda e
embastida folhagem do arvoredo, não perdia de vista o grupo de Adelaide e Azevedo;
mas fazendo-se surdo a esta e outras interpelações de seus colegas, nada respondia e
continuava em sua faina.

Azevedo, por um desses caprichos românticos à Byron ou à Musset, comprazia-


se em contemplaras formas elegantes e voluptuosas da filha do major, e em seus delírios
de poeta pálido forjava, talvez, na lívida fantasia algum desses poemas sinistros, em que
a pobre Adelaide fosse a heroína, ou antes a vítima de algum Fausto ou de algum Rolla.

Belmiro, pelo contrário, temperamento sangüíneo, ardente e impressionável,


abandonando a alma às emoções do momento, nada idealizava, porque se sentia com a
imaginação aniquilada sob a realidade sedutora e deslumbrante da beleza de Adelaide.

É verdade que era ele, entre todos os seus companheiros, talvez o menos
favorecido pela sorte e pela natureza, para atrair a atenção de uma donzela formosa e
rica, elegante e pretensiosa. Posto que não disforme, não era bonito; como estudante
pobre que era, não podia trajar-se com a elegância e primor de seus companheiros; de
mais a mais era sumamente ingênuo e acanhado, e mui pouco afeito a esses jogos do
espírito, a esses galanteios delicados e lisonjeiras frivolidades, que tanto agradam às
moças. Todavia, mereceu e atraiu a atenção de Adelaide. Perspicaz como ela era, e só
desejando adorações, tinha percebido nos olhos do mancebo a profunda impressão que
sua beleza lhe deixara no espírito. O Azevedo já era conhecido antigo, e posto que ela,
já como por hábito, prestasse ouvidos complacentes a suas homenagens e galanteios
alambicados, parecia contudo entrever no fundo deles um não se que de malicioso e
sardônico, que não deixava de incomodá-la. Entretanto, cuidava soletrar no olhar
profundo e luminoso de Belmiro os indícios de uma paixão sincera, ardente e
impetuosa. E não se enganava totalmente; ao vê-la, o pobre rapaz sentira nalma uma
dessas perturbações que atordoam, e que constituem os pródromos de um verdadeiro
amor. Cônscio porém de sua fraqueza para tão alta conquista, jurou de si para si que
faria tudo quanto estivesse a seu alcance por estorvar os colegas, que ousassem render
homenagens por demais significativas à formosa filha do major. Ora, Adelaide, que
aceitava indistintamente o culto de todos eles, e só desejava ver-se rodeada de
adoradores, vendo que os outros estudantes, à exceção de Azevedo, não se mostravam lá
mui solícitos e assíduos em fazer-lhe a corte, não quis cortar o vôo às nascentes
esperanças de Belmiro. Já a vimos entrançar no cabelo o cravo caboclo, que ele lhe
ofertara. Esse pequeno sinal de predileção fez subir a um grau elevadíssimo a febre
amorosa do pobre moço, dando-lhe certa audácia e desembaraço, que lhe não era
natural.

Ouçamos agora a conversação, que tiveram entre si Adelaide e Azevedo, logo


que se acharam a sós, conversação que Belmiro via e desesperava por não poder ouvir.

– Sr. Azevedo! – disse Adelaide, zombeteando. – O senhor é um moleirão! Não


tem inveja de seus companheiros, que já andam a esfolar-se nos ramos, e a fazer proezas
só para agradar às moças?

– Ah! – replicou Azevedo, fingindo-se enfadado – já vejo que minha companhia


lhe desagrada. Pois bem, minha senhora; não farei o que eles estão fazendo; não estou
acostumado a isso, mas irei...

– Para onde?

– Para casa.
– Nessa não consinto eu... Não lhe estou mandando apanhar frutas; pelo
contrário, quero que fique aqui. Se não fosse o senhor, eu nem teria com quem
conversar. Não vê como aquelas caipiras lá se foram também como umas tontas?

– Em boa hora! – murmurou consigo o Azevedo. – Deus as conserve por lá. D.


Adelaide – continuou em voz alta, - esses meus colegas são uns lorpas; pensam que a
felicidade consiste em come jabuticabas, e o único meio de que sabem lançar mão para
se tornarem agradáveis às damas é trazer-lhes uma jacá cheio delas.

– Oh! Sr. Azevedo, nem tanto! Acho que é uma delicadeza da parte deles...

– Se a delicadeza consiste em comer, vá! – interrompeu Azevedo com um


momo. – Eu cá entendo que ela consiste em aspirar o perfume das flores, e por isso
prefiro ficar sempre ao pé da senhora.

– Oh! diz que sou uma flor! – replicou Adelaide, encarando o Azevedo com
adorável sorriso, e mostrando na graciosa boca um lírio entre rosas. – É muita lisonja, a
que flor me compara então?

– A todas e a nenhuma.

– Como assim? Não entendo.

– É que a senhora a todas se assemelha e reúne em si os encantos de todas, e por


isso a todas é superior.

– Mas sempre há de haver alguma com que eu tenha mais presença.

–Talvez, e é essa... Permite que lhe diga?

– Por que não?

– É essa que está em seus cabelos; é ela que melhor simboliza, não na cor, mas
na graça e no perfume.

– Ah! qual é? - inquiriu Adelaide, levando rapidamente a mão à cabeça, e dela


arrancando o cravo caboclo. – Ah, meu Deus! um cravo caboclo! Quem foi que me deu
isto? Nem tinha reparado... Que mau gosto! Se bem me lembro, foi aquele seus
companheiro alto, corado, de cabelos pretos...

– E cara de lobisomem. Justamente, o Belmiro. Não foi, minha senhora?


– Esse mesmo; creio que tem esse nome.

– Mas, minha senhora, essa flor é bem linda, e demais é tão americana...

– Isso pouco me importa; não gosto dela – replicou Adelaide com um momo
desdenhoso.

– Ah! minha senhora... perdão. Nunca pensei que uma flor quisesse mal a outra
flor a não ser por ciúme. Entretanto, se a senhora quisesse dar-me essa desgraçada flor,
que incorreu em seu ódio, eu a guardaria eternamente sobre o coração, só porque
pousou em sua cabeça.

– Está às suas ordens: dê-lhe o destino que quiser – disse Adelaide, entregando
a flor a Azevedo e voltando o rosto com o mais expressivo desdém

Azevedo escondeu rapidamente a flor na algibeira da sobrecasaca.

Entretanto, Belmiro do alto da jabuticabeira espreitava com os olhos ardentes,


por entre o fino crivo da folhagem, toda essa cena, e dava-se ao diabo por não poder
ouvir as palavras que a acompanhavam.

Belmiro ignorava que Adelaide, por um preconceito, que desde a infância lhe
fora imbuído por seu pai, menosprezando seu encantador morenismo, tinha fumos de
branquidade e fidalguia, a ponto de tomar como injúria a mais leve e involuntária
alusão, que pusesse em dúvida a pureza imaculada de sua árvore genealógica.

Mas o Azevedo, que, como nós, já conhecia a balda da família, maligno como
era, aproveitou-se habilmente do incidente do cravo caboclo para irritar o amor-próprio
da moça contra seu pobre colega.

Capítulo VI

Uma queda feliz

Eram mais de duas horas da tarde.

O sol estava ardente, e o mormaço abafador.


– Adelaide! Olá!... – gritou o major de longe. – Chama tuas amigas, e convida
esses moços para se recolherem, que já vão chegando horas de jantar.

Adelaide levantou-se imediatamente e encaminhou-se apressada para junto da


jabuticabeira. Azevedo acompanhou-a.

– Abaixo, meu povo – gritou Azevedo, com voz esganiçada. – O major nos
chama... São horas de jantar.

– Ora vejam lá quem quer nos acompanhar! – bradou Belmiro com mau-humor,
de cima da jabuticabeira. – Espera, Azevedo; espera que lá vamos já neste momento.

E de feito, mal acabava de pronunciar essas palavras, Belmiro despencou-se do


alto da jabuticabeira, e caindo de galho em galho, agarrando-se a uma, resvalando entre
outros, derriçando folhas e frutos, veio tombar no chão a fio comprido aos pés de
Adelaide e Azevedo, que recuaram espavoridos. Foi um esplêndido tombo,
normalmente executado, e com tal tão estrepitoso fracasso, que arrancou a toda a
companhia um grito de susto e de terror. No mesmo instante, todos rodearam a vítima,
que, fazendo caretas e contorções, procurava levantar-se.

– Bem feito! – murmurou Azevedo a meia voz ao ouvido de Adelaide – para


evitar uma destas é que cá me deixei ficar embaixo.

– Que tombo, meu Deus! Coitado!... – exclamou a moça, toda consternada sem
dar atenção às palavras de Azevedo. – Deve se ter pisado bastante, não, Sr. Belmiro?

Adelaide estendeu-lhe a linda mão para ajudá-lo a levantar-se, e o estudante,


apoderando-se dela com sofreguidão, a tocou levemente com os lábios como que
involuntariamente.

– Não muito, minha senhora – replicou ele, levantando-se com dificuldade. –


Creio que apenas apanhei mau jeito no tornozelo do pé esquerdo; isso passa com o
tempo... Apre! Quase não posso andar.

Dizendo isso, o pobre rapaz tentou em vão dar alguns passos, mas o pé
magoado não lho permitia, e ele se viu obrigado a encostar-se ao tronco da
jabuticabeira.

– Ora, valha-me Deus!... Que foi isso? Santa Virgem! – bradou o major,
chegando todo aflito e consternado ao lugar do sinistro. – Eu bem lhes tinha dito que
deixassem o moleque ir apanhar as fruta e se deixassem de estripulias... Mas... o que
querem? É isso... Imprudência de rapaziada...

– Major, por quem é, não se aflija tanto! – disse Belmiro. – Foi um tombinho
insignificante. Apenas parece-me que tenho o pé esquerdo algum tanto magoado.

– Não creia, papai – atalhou Adelaide. – Olhe como está pálido; ele que ainda
agora estava corado!

– Não se incomode, minha senhora; é efeito do susto – disse Belmiro.

– Nada! Não creio. O senhor pisou-se muito; vamos já levá-lo para casa. Eu o
ajudo a caminhar. Vamos.

Dizendo isso, a moça oferecia o braço ao estudante.Com que prazer não ia ele
aceitar tão grata e carinhosa oferta... Mas não o consentiu o casmurro do major.

– Anda daí, menina! - disse, afastando brandamente a filha e chegando-se a


Belmiro. – Tu não tens força. Dá-me um dos braços, moço, e o outro a qualquer dos
seus colegas. Vamos! Encoste-se bem em mim; pode largar o peso, que aqui vai pulso
de homem. Deus nos livre de que um desastre venha aguar a festa em um dia de reunião
em minha casa! Vai adiante, menina, e manda preparar uma boa sangria de vinho com
açúcar.

– Diabos me carreguem, se esse marralheiro não se deixou cair de propósito


para se tornar objeto dos cuidados e solicitudes da família, e pernoitar aqui em casa do
major! Mas deixe-o estar, que em vez de achar lã há de sair tosquiado. Mas – continuou
ele em voz alta, dirigindo-se ao major no intuito de despoetizar completamente a queda
de Belmiro -, meu caro major, perdoe-me; o vinho não convém de modo algum neste
caso; é muito excitante e vai agravar a inflamação; ainda uma vinagrada, vá feito. O que
é porém de rigor em todos os casos de queda, é um laxante de óleo de rícino.

– Está enganado, meu caro. Já fui muladeiro, como sabe; já levei muito tombo,
e tenho tratado um sem-número deles em meus camaradas e peões, e sei o que faço.
Deixe o moço por minha conta; mas há de me ficar em casa hoje, e amanhã está pronto
para ir à aula.

– Tem carradas de razão, meu caro major – replicou Belmiro. – Deixe lá o


Azevedo com seus laxantes, e vamos à sangria de vinho.
– Pois lá se arrumem – tornou o Azevedo. – Com o estômago cheio de
jabuticabas, teremos uma boa carraspana seguida de uma tremenda indigestão; além de
queda, coice. Esse Belmiro, com suas extravagâncias, é sempre um terrível desmancha-
prazeres.

– Não se assuste com as agoureiras predições do Azevedo, senhor major. Ele


tem a imaginação sempre sinistra e propensa ao lívido e ao fúnebre; é a mania. Apenas
chupei o caldo de uma dúzia de frutas, e apesar da queda, sinto-me com excelente
disposição para jantar.

– E há de jantar – disse o major. – A dieta, nestes casos, não tem o menor


cabimento.

Nessas conversas Belmiro, dependurado ao braço do major e do Silva, chegou,


coxeando, à casa, onde imediatamente foi instalado em uma boa cama.

Daí a instantes Adelaide entrou, trazendo, com suas próprias mãos, a Belmiro
um copo de vinho com água e açúcar.

– Mil graças, minha senhora – disse Belmiro depois de ter empinado o copo de
sangria. – Júpiter nunca bebeu mais delicioso néctar, e nem por mãos de mais
encantadora Hebe.

– Deveras! Como está poético e mitológico o nosso Belmiro! – exclamou


Azevedo, a quem esta cena não estava agradando muito. – Querer comparar-te a Júpiter,
quando não passas de um Vulcano coxo e estropiado?!

– E isso que te importa, Azevedo? Estás com inveja? Não tens razão; a cada um
a sua vez, meu amigo. Ainda há pouco, eu também tinha bastante inveja de ti, quando lá
no pomar comias as frutas colhidas por nós, e escolhidas, lavadas e oferecidas, pelas
mãos delicadas de D. Adelaide. Bem sei que não passo de um pobre diabo; mas tem
paciência, meu caro! Não posso deixar de considerar-me um deus, quando tenho a
fortuna de ser servido pelas mãos de um anjo.

Esta réplica de Belmiro foi muito festejada e aplaudida pelos estudantes, menos
por Azevedo, que mordeu os beiços, e pelo major e as moças, menos por Adelaide, que
corou e baixou os olhos.
– Meus senhores – disse o major – nada de galhofas com doentes! Deixemos o
Sr. Belmiro em sossego, enquanto nós vamos jantar. Ele também deve jantar; mas vou
mandar trazer para aqui mesmo sua comida.

– Oh! major, para que tanto incômodo? Encostado ao braço de qualquer posso
ainda pôr-me em pé e ir até à sala de jantar.

– Estás doido, meu amigo? Não deve hoje mexer-se daí, se quer sarar depressa;
é o que lhe digo, vamo-nos, meus senhores!

Retiraram-se todos alegremente, deixando Belmiro a sós no quarto a espera de


sua refeição, e fazendo mil reflexões sobre sua singular situação.

– Oh! - pensava o pobre rapaz, riscando castelos no ar. – Se fosse a própria


Adelaide que me viesse trazer o jantar!... Oh! que gosto, que glória para mim, e que
motivo mais para fazer o Azevedo estalar de inveja!... Mas... é impossível!... Não devo
esperar tanta honra... Este meu tombo foi providencial; pode ainda produzir melhor
efeito do que eu espero. Ela... ela... depois de minha abençoada queda, tem para comigo
tais atenções e cuidados!... Não posso crer que seja só por mera compaixão e espírito de
caridade. Encontrei às vezes os olhos dela fitos em mim de um modo! Mas o diabo do
cravo caboclo, que eu dei a ela, e ela deu ao Azevedo!... Aqui há um mistério qualquer,
que me faz arder o miolo, e que hei de decifrar seja como for. Aquele Azevedo é um
refinadíssimo velhaco, um embusteiro sem parelha... Mas hei de dar-lhe um vomitório
em paga do laxante que quis aplicar-me... Indiscreto e gabola como é, sempre há de
revelar alguma coisa.

Neste ponto de suas graves meditações, foi Belmiro interrompido pela chegada
de sua refeição, que com grande pesar seu, em vez de lhe ser apresentada por sua
encantadora Hebe, lhe foi trazida em uma grande bandeja por uma preta velha, que se
retirou sem dizer palavra.

O jantar esteve alegre e folgazão, como era de esperar entre convivas de tão
excelente humor, sentados em frente de quatro lindas raparigas, tendo ao lado o major,
que as animava com as palavras e o exemplo, fazendo desaparecer qualquer sombra de
acanhamento. A conversação foi-se animando ao tinido dos copos e da baixela de prata
e porcelana; os motejos, as pilhérias, as gargalhadas expandiam-se folgadamente em
derredor da mesa recheada de saborosas iguarias e vinhos preciosos. Vieram depois os
versos, as anedotas, e por fim fizeram-se numerosos brindes ao som de coretos, que os
estudantes entoavam à goela solta em honra do major, do tenente André e da formosura
das náiades presentes.

Mastigando automaticamente em seu quarto solitário as iguarias que lhe


trouxeram, Belmiro escutava a algazarra do festim, e ouvia muitas vezes o seu nome
pronunciado no meio de galhofas e pilhérias de companhia, que à sua custa soltava
longas e gostosas gargalhadas.

– Quando eu vi o Belmiro despencar-se do alto da jabuticabeira e tombar de rijo


no chão, com as crinas desgrenhadas e todo desengonçado, pensei ver um mono baleado
pelo caçador.

– E eu pensei que era um galho arrancado pelo furacão.

– Aquilo é um original muito esquisito – acrescentou desdenhosamente o


Azevedo. – Nunca vai à função alguma, que não faça uma dessas falcatruas.

– Eu a princípio – disse uma das filhas do Tenente André – fiquei muito


assustada quando o vi estendido no chão. Mas depois que se foi erguendo todo
sarapantado, com a roupa toda suja e amarrotada, me deu uma vontade de rir, meu
Deus!...

E abafou com o lenço uma risadinha chocha.

– E eu também, mana – disse outra - quase rebentei para não soltar uma risada.
Ele fez uma cara mesmo de cachorro que quebrou panela!!...

– Com efeito! – interrompeu Adelaide, em tom de risonha e fagueira


repreensão. – Não sei por que se acha graça de um tombo por menos perigoso que seja.

– Uma queda sempre é ridícula, minha senhora – disse Azevedo.

– Ah! Sr. Azevedo! – continuou Adelaide - o senhor é bem mal agradecido; e as


senhoras também, minhas amigas. Perdoem-me se lho digo; não se enfadem comigo.
Foi em meu serviço, das senhoras, e do seu também , Sr. Azevedo, que o pobre moço
levou tamanha queda. E ainda por cima estão a escarnecê-lo!?...
– Oh! oh! lá por isso não, minha senhora – exclamou a maioria dos estudantes –
lá estávamos nós também para servi-las com o mesmo zelo e diligência, e para isso não
nos foi preciso destroncar o pé. Se era um moleirão, não se metesse em cavalarias altas.

– Ora!... senhores!... – interrompeu Adelaide. – Eu o vi subir e descer com tanta


agilidade!... Foi um desastre, que poderia acontecer a qualquer outro.

Lá de seu quarto, Belmiro, ainda que não pudesse ouvir tudo distintamente,
compreendeu maravilhosamente o sentido da altercação.

– Bravo! – exclamou ele consigo. – Adelaide é por mim!... Seja embora o


mundo inteiro contra mim!... Que me importa!... Sou feliz, ao menos hoje!...

Adelaide, não obstante mostrar-se sempre risonha e acessível a todos os outros


estudantes, e em particular a Azevedo, ao menos naquele dia pensava muito em
Belmiro, pobre provinciano simples e negligentemente trajado, que mais parecia um
caipira, que um estudante. Adelaide, não sei porque, achava-lhe um não sei o que, que
revelava uma adoração íntima, sincera e profunda.

Viera-lhe à mente a caprichosa idéia de conversar a sós com Belmiro, e ela era
moça de têmpera a não deixar de satisfazer a um dos seus menores caprichos.
Conversara a sós tanto tempo com Azevedo, que muito era que conversasse também
com Belmiro! Ente o primeiro serviço e a sobremesa achou o pretexto para retirar-se da
mesa, e disfarçadamente dirigir-se ao quarto do enfermo. Se dissimulou seus passos,
não foi com receio do pai, que cheio de complacência e confiança não lhe tolhia o
menor movimento em casa, mas para furtar-se às vistas maliciosas e escrutadoras dos
estudantes, e principalmente de Azevedo, que a não perdia de vista.

Belmiro estava no melhor de suas cismas amorosas, quando ouviu rugir um


vestido de seda pelos corredores, e após instantes entrar-lhe pelo quarto a figura
deslumbrante e arrebatadora de Adelaide. Foi como uma aparição sobrenatural, que o
teria feito cair fulminado, se não estivesse estendido na cama com o braço acotovelado
sobre o travesseiro. Abriu bem os olhos, passou a mão pela testa para convencer-se que
não estava sonhando ou delirando, e com olhar radiante de beatitude ficou embasbacado
a olhar para a moça. É verdade que não deixava de ter um ar algum tanto apalermado;
mas a moça nem reparou nisso, e foi logo lhe dirigindo a palavra.

– Então, como vai o pé, Sr. Belmiro? – disse ela.


– Do pé, minha senhora, vou melhor... mas... muito mal do coração.

– Como assim?... Pois o tombo também lhe ofendeu o coração?

– Oh! minha senhora, não quer entender-me?

– Pois que quer o senhor que eu entenda?

– Ah!... não tenho ânimo de lhe dizer.

– Diga, diga; não faça cerimônia... se lhe falta alguma coisa...

– Não; nada me falta.

– Pois então o que é que o aflige?...

– Permite que lhe diga uma coisa?...

– Diga, e já, pois bem vê que não posso demorar-me...

– Pois bem, a senhora foi a causa, inocente, é verdade, do tombo que levei!

– Que me diz! Eu? Eu, a causa do seu tombo? Exclamou Adelaide, recuando um
passo.

– Sim, a senhora! Mas não se enfade comigo, e não se aflija com tão pouco.
Esse tombo foi para mim uma fortuna.

– Oh! cada vez o entendo menos.

– Eu lhe explico tudo, minha senhora. Quando a senhora ficou a ouvir as prosas
de Azevedo, enquanto eu e meus companheiros subíamos às jabuticabeiras, eu não os
perdia de vista, e ficava a morder-me de inveja do meu companheiro. Mas quando a
senhora, tirando dos seus cabelos a flor, que eu lhe tinha dado, a entregou ao Azevedo,
não fui mais senhor de mim, perdi a cabeça, não sabia onde punha o pé, e querendo
desde, pises em falso e dei comigo em terra!...

– Ah! meu Deus! mas eu não podia adivinhar, e nem eu me lembrava que foi o
senhor que me deu semelhante flor.

– Deveras? Isso por um lado me entristece, mas por outro me consola.


– Eram os senhores todos a oferecer-me flores. Eu as ia pondo sem reparar, uma
no peito, outra na boca, à guisa de palito, outra no seio, outra no cabelo... Fiquei com
medo de morrer abafada debaixo de tantas flores.

– Oh! minha senhora!...

– Escute ainda. O Sr. Azevedo pediu-me a flor que eu trazia no cabelo. Quando
eu a tirei da cabeça, e vi que era... que era...

– Um cravo caboclo?

– Sim, senhor. Por que razão o senhor escolheu para mim uma flor tão feia?

– Feia, minha senhora? Não lhe acho razão. Na cor, na forma e no perfume me
parece uma das mais mimosas.

– Pode ser; mas eu não gosto dela.

Ah! queira perdoar-me; mas eu também não adivinhava...

– Pois bem! – disse Adelaide, apresentando a Belmiro um vaso de flores, que


estava sobre uma mesa. – Escolha aqui uma flor qualquer, e me de para por na cabeça
em lugar da outra, e me perdoe se sem querer fui a causa do seu tombo.

– Perdoar eu, minha senhora? Perdoar o que, se só tenho motivo para render-lhe
infinitos agradecimentos? Se não fosse esse tombo, teria eu a ventura de estar aqui com
a senhora recebendo tantas provas de interesse e de... de... compaixão?

Dizendo isto, o estudante tirou do vaso uma rosa, que entreabria com todo o
viço e frescor, e a entregou a Adelaide, depois de ter deposto nas pétalas da flor uma
beijo soberanamente bucólico. Adelaide prendeu-a cuidadosamente nas tranças, e
despediu-se com um sorriso, que até hoje não sabemos que expressão tinha.

– Bendito tombo! – exclamou Belmiro no mais lírico e entusiástico arroubo,


levantando as mãos ao céu, logo que se esvaíram o som das passadas e o rugir das sedas
de Adelaide. – Tombo imortal! tombo Homérico! tombo digno de uma epopéia! Graças
a ti eu, o terceiranista mal amanhado, meto hoje em um chinelo meus guapos e vaidosos
companheiros. Não, tu não foste uma queda; foste uma verdadeira ascensão para as
regiões olímpicas! Tu me ergueste ao empíreo nas asas do amor e da esperança. Tomara
já ver as caras de asno com que hão de ficar meus colegas!... Como já me estou rindo
interiormente à custa deles!... Com seus ditinhos, lisonjas, galanteios e namoros
delambidos, não conseguirão o que eu consegui com um simples tombo! Mas não quero
por modo algum que saibam do meu triunfo. Nem por sombras comprometer o nome
puro da minha suave e encantadora Adelaide! Nosso amor deve ser misterioso e puro
como a lâmpada de um santuário. Revelá-lo a estes devassos seria até uma profanação.

Nestes beatíficos devaneios, veio interrompe-lo o Azevedo, que lhe entrou pelo
quarto com ar zombeteiro e triunfante.

Capítulo VII

Sem Título

– Olé! meu sonso!... Então, como vais desse pé? – disse Azevedo, sentando-se à
beira da cama. Anda lá! bem feito!... Quiseste ficar assim uma espécie de acrobata para
agradar às meninas, e eis o que te aconteceu! Objeto de riso e compaixão... Deves
reconhecer que estás fazendo uma triste figura!...

– É verdade, Azevedo, bem triste... ai! meu pé...

– Manhoso!...

– Oh! não! Está doendo deveras...

– Não dói nada, maganão... Pensa que não te compreendo? Tu te deixaste cair
para te tornares objeto de atenção, visto que a tua figura não é – aqui entre nós, não te
agastes comigo – não é das mais atrativas.

– Ah! meu Deus, eu deixar-me cair! E esta!... Que lembrança!... Só tu poderias


ter idéia tão mefistofélica. Mas juro-te que, se essa idéia me viesse ao espírito, e eu
adivinhasse que produziria tão bons resultados, eu era capaz de pô-la em prática.

– Resultados... Que resultados pateta? Inspiraste compaixão, e nada mais. Se


visses como na mesa nos divertimos todos à tua custa!... E na verdade, sem o episódio
de tua queda, a função não teria corrido tão divertida. Ela veio dar-lhe uma sainete
admirável...
– Deveras? Muito estimo... Ao menos a minha queda serviu para alguma coisa.

– Quando te levantaste todo sarapantado, vermelho como um camarão e cheio


de folhiço, não fazer idéia da figura que fizeste... Parecias um jacaré. Uma das moças
disse que ficaste com cara de laranja azeda...

– Ora! que me importam as sandices daquelas saloias! Uma vez que D.


Adelaide...

– Oh! D. Adelaide... Essa foi quem mais se riu...

– Que me importa! Essa pode rir-se de mim, ou para mim. Em que tudo me dá
gosto. Adoro-a, porque é uma divindade. Só a presença dela é para mim um gozo
inefável. Mereço-lhe compaixão? É quanto me basta.

– Ah!... e por isso caíste! Mas não penses que cá hás de pernoitar sozinho, para
te entreteres a teu gosto com a tua divindade. Já tomei minhas medidas. Cá fico para te
fazer companhia. Já falei ao major, que aprovou a minha idéia. E assim ficas tu, e eu
também fico; tu aleijado e desprezado, e eu querido, são e idolatrado...

– Ficar? Que bom!... Rendo-te também da minha parte infinitos agradecimentos.


Que noite terrível eu teria de passar sozinho neste quarto... Mas, dize-me cá uma coisa:
se, como dizes, ela me despreza e nenhum caso faz de mim, por que é que assim te
mostras meu rival, e rival enraivado e ciumento?

– Ciumento? Eu ter ciúmes de ti? Que fatuidade! Não compreendes que tua
enfermidade é apenas um pretexto, de que me prevaleço, para ficar também junto dela?
À noite, terás ainda o prazer de presenciar nosso namoro, como já presenciaste de dia. O
primeiro foi talvez a causa de perderes o equilíbrio e destroncares o pé. O segundo te há
de curar; é cura homeopática.

– E tens certeza de que ela corresponde sinceramente, Azevedo?

– Oh! se tenho... Pois não viste? E se queres uma prova, aqui está – disse
Azevedo, tirando do bolso um cravo caboclo, que apresentou bem perto dos olhos de
Belmiro.

– Conheces esta flor?


– Oh! se conheço – respondeu Belmiro desorientado e querendo orientar-se.
Ofereci à D. Adelaide um cravo semelhante a este, quando estivemos no jardim. Será o
mesmo?

– O mesmíssimo, meu palerma. Como tiveste a imbecilidade de oferecer à D.


Adelaide semelhante flor?

– Pois que tem de mau essa flor? É tão bonita, e parece-se tanto com ela!...

– Pois é por isso mesmo, pateta! Fizeste-lhe um terrível epigrama.

– Epigrama! Como assim? – replicou Belmiro, embasbacado.

– Fica sabendo, meu simplório, já que não tens penetração para coisa alguma,
que D. Adelaide, a despeito de sua cor sofrivelmente tisnada, tem fumos de branquidade
e fidalguia; acredita piamente que seu sangue não tem mescla alguma de africano nem
caboclo... Se não és de todo idiota, bem podes compreender que só a palavra – caboclo
– lhe dói mais nos ouvidos do que te dói esse pé...

– Ah!... não sabia disso.

– Não sabias, mas bem o sei eu, e não há em S. Paulo quem o ignore. Vou agora
pôr-te ao fato da linhagem do nosso anfitrião. O major é caboclo quase puro-sangue,
como bem está revelando o seu todo. A respeito de sua procedência, só se sabe que é
natural de Curitiba e filho de um cigano, e nada mais. Quanto ao lado materno, a estirpe
de D. Adelaide procede ainda de mais baixa estopa. A mãe dela, de que o major há
muito tempo é viúvo, segundo a voz geral, não passava de uma linda mulata, filha de
uma negra mina, e foi alforriada na pia batismal.

– O que estás a dizer, Azevedo, não é possível. Tudo isso pode ser mera
invenção de alguns desafeiçoados.

– É a pura verdade. Todo o povo de S. Paulo sabe muito bem disso, só o major
não quer que isso assim seja. Quanto à filha, é bem possível que realmente ignore sua
ilustre genealogia, que o pai terá tido todo o cuidado de ocultar-lhe. O major pretende
ser descendente de Bartolomeu Bueno e parente chegado dos Andradas. Hás de reparar
que não fala neles sem dizer – o primo José Bonifácio, o primo Antônio Carlos, etc.
Essa balda de fidalguia é nele de tal melindre, que ai! daquele que com a mais ligeira
alusão, mesmo sem querer, a tenha ofendido!...
A estas palavras, Belmiro a principio ficou aterrado; mas imediatamente
lembrou-se que Adelaide, com delicada generosidade, já lhe tinha perdoado a
involuntária ofensa, e recobrou toda sua seguridade.

– Esta balda – continuou Azevedo – ele a comunicou, ou antes a inoculou no


espírito de sua filha, quer pelo sangue, quer pela educação. Eis aí por que, com o teu
desastrado cravo caboclo, sem querer vibraste contra ela o mais acerado epigrama.

– Ora esta!... E eu pensava em lisonjeá-la!... Se tivesse de fazer-lhe uma poesia,


infalivelmente havia de compará-la ao jambo, e à rola dos pomares, e colocá-la a par de
Moema ou de Lindóia.

– Pois eu que lhe conheço a balda a comparo sempre ao lírio, à neve, ao marfim,
e creio que, se lhe desse mesmo beiços e olhos brancos, não se enfadaria tanto, como
com essas tuas cores amorenadas.

Belmiro sacudiu os ombros como quem diz - que me importa.

– Mas escuta, Azevedo – disse ele, olhando de esgoela para seu interlocutor –
ainda há pouco vi de relance D. Adelaide passar por ali rapidamente, e pareceu-me que
trazia na cabeça uma outra flor... uma rosa, se não me enganei.

– Justamente! uma rosa mal aberta; é símbolo, que escolhi para ela, e dei-lhe em
troco do teu mal-aventurado cravo caboclo.

Aqui Belmiro, a muito custo, pode conter o riso, e contentou-se com rir-se
mentalmente à custa da mentira do Azevedo.

– Bem - disse ele - quem me avisa meu amigo é; daqui em diante, serei mais
acautelado.

– Perdes teu tempo – replicou Azevedo. Uma paulista, e sobretudo uma paulista
da têmpera de D. Adelaide, nunca perdoa um desacato destes.

– Mau é isto! – murmurou Belmiro, fazendo ainda extremos esforços para não
rir-se, e teria desatado uma gargalhada às bochechas de Azevedo, se subitamente o
quarto não fosse invadido pelo resto da companhia, que ali se instalou alegre e
folgadamente em uma tagarelice nunca interrompida até o pôr do sol, hora em que os
estudantes se despediram, ficando o Belmiro e o Azevedo. O major fez-lhes os mais
obsequiosos oferecimentos, e disse-lhes modestamente que quando quisessem passar
mal uma tarde, viessem à sua casa, que lhe dariam muito prazer. A família do Tenente
André, como era da vizinhança, ficou ainda.

Capítulo VIII Influência de um violão

A rivalidade, nascida nessa tarde entre os dois estudantes, era efêmera e frívola,
como de ordinário são todas as idéias e sentimentos que se geram no cérebro escaldado
e no coração bandoleiro dessa espécie de gente. Fundava-se ela por um lado a
caprichosa veleidade de Azevedo, que, mais por vaidade do que por amor, e em razão
de suas antigas relações na casa, se julgava com uma espécie de direito adquirido à
predileção da moça; e por outro, na imaginação impressionável e mórbida sensibilidade
de Belmiro. Este – natureza ardente e apaixonada, nutrida na solidão entre sonhos de
volúpia infinda, ficara profundamente impressionado pela provocadora beleza de
Adelaide, e julgava ter encontrado nela a encarnação ideal de seus sonhos. Acoroçoado
pelas provas de afeição que ela lhe dera, já ousava alimentar na fantasia as mais rosadas
esperanças. Adelaide era formosa, rica e filha única, e parecia disposta a amá-lo; a idéia
de casamento lhe esvoaçava já pela mente com suas asas de ouro e azul, e o fazia
entontecer de contentamento.

Oh! era um sonho brilhante!... Se tal sonho se realizasse, a poesia, de mãos


dadas com o amor feliz, as artes, as letras, as ciências, lhe iam abrir de par em par as
portas de ouro de seus templos magníficos, e então, adeus pobreza, adeus Academia,
adeus enfadonhos e empoados livros de direito! Que importava que, na genealogia de
sua amada houvesse, como dizia o Azevedo, mescla de sangue caboclo e africano? Se
realmente ela participava das duas raças, era evidente que deixara com seus ascendentes
o que nelas há de ruim, grosseiro e imperfeito, e só herdara o que porventura nelas há de
bom, de belo e de perfeito. Por fim, que significava aos olhos de um jovem poeta e
filósofo sectário de J. J. Rousseau, alguma gota de sangue servil que circulasse nas veias
de Adelaide? A divisa do filósofo de Genebra – liberdade, igualdade, fraternidade, não
admite tal mácula.
Azevedo, que já há muito entretinha relações com o major e fazia a corte à filha,
que sempre acolhera com fagueira amabilidade suas homenagens, não tinha hesitado em
levar seus amigos a casa deste sem o menor receio de encontrar em nenhum deles um
rival que lhe pudesse fazer sombra. Foi portanto com bastante descontentamento e
despeito, e mesmo com ciúme, que notou o interesse e atenção que começava a merecer
da moça aquele de seus colegas, de cuja concorrência menos tinha que recear.

Por isso, procurava por todos os meios expor ao ridículo a pessoa e a queda de
Belmiro, a qual com grande desgosto seu o ia tornando cada vez mais o objeto da
atenção e solicitude de Adelaide. Foi pois com esse fim que o maligno estudante,
pungido pelo despeito e pelo ciúme, teve a satânica idéia de não deixá-lo pernoitar só
em casa do major.

O feitiço porém ia saindo contra o feiticeiro. Retirados os mais estudantes, e


depois de noite fechada, reuniram-se de novo as famílias do major e do Tenente André
no quarto em que se achavam Azevedo e Belmiro. Depois de muita palestra banal,
aconteceu cair a conversação sobre a música.

– Adelaide toca piano e canta sofrivelmente – disse o major. – Se não fosse a


doença do pé aqui do amigo poderíamos ir à sala, para ouvirmos um pouco...

– Qual piano, papai! – atalhou Adelaide com modéstia. – Há que tempo eu nem
abro o meu piano!... Nem sei mais como se toca. Cantar?... Nem falar nisso! Há quinze
dias tão endefluxada, que me não é possível levar de vencida dois compassos sem
tossir...

Aqui ela provocou uma tossezinha manhosa para justificar-se.

– Mas – prosseguiu ela – o Sr. Azevedo, que é da corte, deve de certo saber
bastante música, e talvez queira tocar alguma coisa.

A estas palavras Azevedo, que, não obstante sua brilhante imaginação e


inteligência superior, nada petiscava de música prática nem teórica, mudou de cor, e
apesar de seu grande desembaraço e presença de espírito, sentiu-se algum tanto
desapontado. Quanto não daria ele naquele instante para saber dois dedos de música e
piano!... Com que prazer não deixaria Belmiro sozinho no quarto com o seu pé
destroncado, enquanto ele iria para a sala divertir-se com a companhia. Mas não tinha
ainda perdido as esperanças; contava ainda, a poder de instâncias e rogos, seduzir
Adelaide a ir para a sala sentar-se ao piano.

– Eu, minha senhora – respondeu ele com alguma hesitação - não deixo de
apreciar música, mas nunca me apliquei a esse estudo, nem tenho jeito algum para
semelhante arte. Gosto muito da música dramática nos teatros da Corte. Isso é bom aqui
para o amigo Belmiro, que é o menestrel obrigado e indefectível em todos os pagodes e
serenatas de estudantes. Canta que nem um besouro, mas infelizmente não sabe tocar
senão o clássico violão.

– Bravo! que bom! – exclamou Adelaide, batendo palmas de contentamento. –


Então, o senhor toca violão?

– Algum tanto, minha senhora – respondeu Belmiro.

– Pois temos aí um muito bom e novo, que papai comprou para mim... Gosto
muito do violão; acho mais bonito do que o piano. Tenho também o método; só me falta
um mestre. O senhor toca por música?...

– Sim senhora.

– Oh!... eu também desejo aprender por música... Lucinda, vai buscar meu
violão. Que belo! É escusado irmos à aula, para tocar violão; não é preciso o senhor
mover-se daí... Não é assim, sr. Belmiro?

– Às mil maravilhas! – exclamou o major também contentíssimo. – A Adelaide


já me tem quebrado os ouvidos com tanto piano, que já ando aborrecido. Vamos lá!
tragam já o violão! O senhor, decerto, canta também suas modinhas... Estas moças
também cantam, e o senhor pode acompanhá-las.

O Azevedo foi pelos ares com essa nova fase, por que ia passar – por culpa sua!
– aquela reunião. Dava a mil diabos o momento em que se lembrara de falar em violão.
Ia ficar esquecido a um canto, ao passo que seu rival, que já era alvo de tantas atenções,
ia se tornar com mais esta exibição o verdadeiro herói de festa, pois bem sabia que
Belmiro tocava magistralmente o violão e possuía excelente voz, sonora e apaixonada.

Oh! mas ele não adivinhava que na casa havia um violão. Assim, querendo
deprimir o seu rival, pôs-lhe nas mãos uma arma com que iria acabar de suplantá-lo.
A escrava apareceu, trazendo um rico violão, encordoado de novo, que Adelaide
tomou e foi pessoalmente entregar a Belmiro, que o recebeu com ares de um verdadeiro
trovador. Daí a momentos o quarto retumbou ao som dos mais harmônicos e maviosos
acordes. O major, Adelaide, o Tenente André e suas filhas vieram logo em frente da
cama, onde Belmiro, como um Apolo em seu carro triunfal, empunhava o melódico
instrumento. Os próprios escravos vieram apinhar-se à porta do quarto para escutarem.
Azevedo sentia calafrios e procurava, em vão provocando conversações banais, distrair
a atenção das moças dos magníficos e melodiosos arpejos, enquanto Belmiro deixava os
dedos errarem como a descuido pelas cordas do instrumento.

– Não nos há de dar o gosto de cantar também alguma coisa? – perguntou


Adelaide.

– Oh! minha senhora, tenho uma péssima voz: o Azevedo, quando lhe disse que
canto como um besouro, disse a pura verdade.

– Não acredito, perdoe-me; apesar de o dizer o Sr. Azevedo, que bem sei como
gosta de caçoar. Cante sempre; do contrário nenhuma destas minhas amigas terá ânimo
de cantar.

– Pois bem, não me farei de rogado. Obedeço, porque enfim de contas o


zumbido de um besouro não é lá das coisas mais desagradáveis de se ouvir. Espero que
as senhoras com suas vozes suaves destruirão depois o mau efeito do meu canto.

Belmiro limpou a goela, harpejou um pouco com os olhos fitos no teto, baixou-
os depois, e com voz sonora, expressiva e apaixonada, cantou uma dessas modinhas
lagrimosas, repassadas de queixas, ais de suspiros, que então, como até hoje, estavam
em voga.

Ao terminar, bravos e palmas acolheram o cantor. Adelaide ficou enlevada, e


depois, dirigindo-se a Azevedo:

– Então? que tal acha? Confesse que, se os besouros cantam assim, vale bem a
pena tê-los na gaiola à nossa janela.

– Decerto, minha senhora – respondeu Azevedo algum tanto desconcertado –


principalmente esse, que é já um besouro domesticado. Eu já sabia que o Belmiro não
canta mal; mas se a senhora ouvisse um meu patrício e colega, chamado Couto... Oh!
que rapaz prodigioso!... Aí é que era ver o que é perícia, habilidade e perfeição. Se eu
soubesse que a senhora é tão apaixonada pela música, e especialmente pelo violão, já o
tinha trazido aqui. Mesmo no Rio passa por uma notabilidade. Se o major permite...

– Por que não? – atalhou o major. – Pode estar certo que todo aquele que aqui
for apresentado pelo senhor, será sempre bem recebido.

– Não duvido – disse Adelaide – que esse Sr. Couto seja o que o senhor diz;
mas enquanto cá não vem vamos ouvindo aqui o Sr. Belmiro. Que dizem, minhas
amigas?

– É exato – respondeu uma delas. – O Sr. Belmiro tem uma voz bem bonita.
Cante mais uma modinha agora sou eu quem lhe peço.

O Belmiro não teve mais descanso, cantou até às dez horas da noite, e quase
esgotou seu repertório de modinhas e lundus. Azevedo, para quem aquele sarau musical
se ia tornando o mais abominável dos suplícios, colocado entre Adelaide e as filhas do
Tenente André, não cessava de importuná-las com chacotas e epigramas contra o pobre
Belmiro, procurando distrair-lhes a atenção.

– Se ao menos ele não fizesse aqueles trejeitos de mono velho – ia ele


cochichando à direita e à esquerda. – Minha senhora, por quem é, não lhe olhe para a
cara, porque assim se destrói todo o efeito da audição. Eu achava mais prudente que o
tivessem feito cantar atrás de alguma porta... Que berro desentoado deu ele agora!...
Nem um touro a bramir... E agora.... ouçam que melúria! Eu me derreteria em pranto, se
não fosse a figura do cantor.

As filhas do tenente, que não tinham o mesmo espírito, nem nutriam os mesmos
sentimentos da filha do major, não deixavam de aplaudir o Azevedo com risotas
abafadas e momos mofadores. Como não seria assim? Desejavam captar as atenções do
estudante, decerto para indenizá-lo da indiferença de Adelaide, que lhe respondia umas
vezes com o silêncio, e outras com um – “Ora!... deixe-me ouvir”.

– E então?... É chegada ou não a sua vez minhas ricas? – disse o major,


dirigindo-se às filhas do Tenente André. – Também queremos ouvi-las. O Sr. Belmiro,
além de doente, já deve estar cansado.

As filhas do tenente, depois de muito instadas e rogadas, foram-se como que


deixando arrastar para junto de Belmiro entre momos e caídos, e cada uma esgoelou
como pode a modinha, que graças à desafinação e falta de compasso, puseram os
ouvintes em debandada e o acompanhador em torturas. Todavia, obtiveram de Azevedo
entusiásticos aplausos, que por cortesia foram confirmados por todos.

Chegou a vez de Adelaide.

– Agora – disse Azevedo, dirigindo-se a ela – compete à senhora fechar esta


filarmônica com chave de ouro.

– Nesse caso, deve ser com a mesma com que foi aberta. – retorquiu ela,
olhando para Belmiro.

– Não, senhora – acudiu este. – já é tarde, e ser-nos-ia muito agradável


adormecer aos acentos da voz de um anjo.

Adelaide não podia recusar-se; foi sentar-se no leito ao pé de Belmiro. O pudor


virginal radiava encantador em toda sua figura; os olhos baixos nadavam em luz meiga;
as faces ardiam em rubor; os seios empolavam-se a ofegarem de enleio e timidez.
Quando, sentada bem junto de Belmiro, lhe falava em voz baixa, quando seus hálitos se
confundiam, e suas faces quase se tocavam, enquanto Belmiro apalpava de leve as
cordas do instrumento, ensaiando e cantarolando com ela à meia voz a canção, que ia
executar, Azevedo quase estourando de inveja e de ciúme não pode conter um de seus
costumados remoques.

– Deixe-te de charlatanices musicais, meu Belmiro! – exclamou ele. – Faze a


senhora cantar. Se não te atreves a acompanhá-la, fica aí em paz, e nós iremos ouvi-la
ao piano.

– Não, senhor – redargüiu Adelaide. – Há de ser aqui mesmo. Não estou


acostumada a acompanhar-me ao piano, e o Sr. Belmiro acompanha maravilhosamente
no violão.

Azevedo amuou-se e não disse mais palavra. Adelaide cantou uma linda
cançoneta, em que brilhou mais pela beleza de sua figura que pelo timbre fresco e
argentino de sua voz, do que pelo bom gosto e mestria da execução.

– Naturalmente – disse ela a Azevedo, apenas terminou – o senhor, que


comparou o Sr. Belmiro a um besouro, agora lá em sua mente me está comparando a
uma cigarra.
– Oh! pelo amor de Deus, minha senhora, não profira mais tal blasfêmia! Não
há o menor paralelo. A senhora dispõe de uma voz deliciosa; o que lhe falta é escola. Se
a senhora quisesse tomar algumas lições de canto com o meu amigo Couto, de quem há
pouco lhe falei, em pouco tempo estaria cantando de modo a fazer inveja a qualquer
prima-dona...

– Oh! obrigada! – interrompeu Adelaide. – Não tenho essas pretensões. Se meu


pai consentisse que o Sr. Belmiro me desse algumas lições de violão...

– E por que não, minha filha?A dúvida é o senhor querer tomar esse incômodo.

– Com muito prazer – acudiu Belmiro. – Não tardamos a entrar em férias, e


como não vou à província, pouco me custa vir cá algumas vezes.

– Aceitamos – disse o major com mostras de satisfação. – Toda vez que quiser
dar um passeio a esta casa, o receberemos com muito prazer.

Não é preciso dizer em que deplorável estado esse ajuste final deixou a nobre
alma de Azevedo. Se Belmiro adormeceu entre visões de ouro e rosas, Azevedo apenas
dormiu sono agitado, com o peito comprimido pela pesada manopla do despeito e do
ciúme, meditando torvas e sinistras vinganças.

Capítulo IX

Conspiração

No dia seguinte, Belmiro apresentou-se na Academia coxeando e quase


arrastando a perna, dependurado ao braço do Silva, um de seus companheiros de casa.
Estava-se no fim do ano letivo, e, crivado de pontos como ele se achava, o pobre jogral
não podia dar mais falta sem arriscar-se muito a uma reprovação. Eis a razão por que,
apesar da viva oposição do major e sua filha, viera ao romper do dia para a cidade em
companhia de Azevedo, e resignara-se a apresentar-se na Academia naquele lastimoso
estado, atraindo a atenção de seus colegas e de toda a classe acadêmica. Bem desejava
ocultar os acontecimentos, pretextando algum reumatismo, calo, pereba ou qualquer
outro incômodo; mas ali estavam o Azevedo e os mais companheiros de pagode, que
não deixariam de divulgar todo o acontecido e com todas as minudências.
Imediatamente Belmiro e o seu Cirineu se viram rodeados de uma turba curiosa e
investigadora.

Azevedo, ao voltar da chácara do major, depois de ter levado seus companheiro


até a porta de sua casa na Rua da Constituição, dirigiu-se para a sua, depois de lhe ter
aconselhado e recomendado muito que não faltasse à aula. Nesse dia Azevedo foi para a
Academia mais cedo do que lhe era mister; ia de ânimo a por em prática a vingança que
de noite havia premeditado. Consistia ela em arrebanhar e prevenir uma súcia de garotos
seus conhecidos a fim de expor o Belmiro em plena Academia a mais solene e cruel das
caçoadas. Pretendia assim tomar cabal desforra da derrota, por que passara na véspera, e
burlar para sempre o recente namoro de seu colega.

Logo que viu Belmiro entrar no largo da Academia, adiantou-se a ir oferecer-


lhe também o seu braço, aparentemente com mostras de cuidado e interesse, mas
realmente tomá-lo a sua conta, e levar a efeito seus satânicos desígnios.

Para logo uma nuvem de estudantes, que cada vez mais ia se condensando,
formou-se em derredor deles, e quase os abafavam debaixo de um chuveiro de
exclamações, chufas e perguntas.

– Que diabo tem o Belmiro no pé? Levou alguma trepada?...

– Ah! coitado! Não vá ser algum reumatismo.

– Ora! qual reumatismo! Isso há de ser algum coice hein, Belmiro?

– Nada! dá cá o pé, deixa ver. Quem sabe se é algum bicho apostemado.

A tantas perguntas, que se atropelavam sem dar tempo à resposta, Belmiro


conservava-se silencioso, e Azevedo, com um riso sardônico e certo piscar de olhos,
dava a entender que ali andava qualquer coisa de misterioso. Conservou-se de propósito
calado por muito tempo, até que se aumentasse consideravelmente a roda dos curiosos.
Então, como para se ver livre de tantas importunações, começou a desenrolar a história
da função da véspera e do tombo de Belmiro.

– Cá o managão – dizia ele – quis se fazer de menino para dar nas vistas e
agradar às belas, e tentando trepar aos últimos galhos de uma jabuticabeira, ai! coitado!
pobre cavaleiro da triste figura! no melhor da festa, faltaram-lhe as pernas, e desabou lá
de cima como um pedaço de céu velho, ou antes como um mono mal atirado, e veio cair
redondamente a meus pés e de D. Adelaide, que quase morreu de susto com tal
brincadeira.

Entre estrondosas gargalhadas, o Azevedo foi continuando nesse gosto a narrar


e comentar os acontecimentos da véspera.

Belmiro, que quando se achava entre seus íntimos sempre tinha algum espírito e
desembaraço, achava-se completamente tolhido no meio daquela saraivada de ditos e
apupadas de tanta gente, que mal conhecia. Debalde invocava a imagem da formosa
Adelaide, lembrando-se da preferência com que, no dia antecedente, o havia
distinguido; debalde forcejava por mostrar-se calmo e sobranceiro às chufas e motejos
dos acadêmicos. Cada vez mais perturbado, suando e rubro como lacre, não sabia
articular a mínima réplica. Para cúmulo de males, seu pé doente não lhe permitia efetuar
uma pronta fuga, único meio de esquivar-se ao fogo cruzado de tantos olhares
petulantes, de tantos risos galhofeiros: forçoso lhe era suportar a pé firme toda essa
mortificante metralhada.

– Mas isto ainda não é tudo – continuou Azevedo, cujo despeito não se limitava
só à pessoa de Belmiro, e estava talvez ainda mais íntimo e profundo contra a inocente
Adelaide. – Há ainda mais uma coisa; coisa assombrosa, a que decerto vocês não
quererão dar crédito...

– Mas que coisa? Fala, Azevedo!

– Coisa que a mim mesmo custa acreditar, posto que meus olhos vissem, meus
ouvidos ouvissem...

– Mas que coisa? Fala com mil diabos, Azevedo!

– Eu já lhes digo; tenham paciência. O caso é que a pobre da moça, mordida não
sei de que gosto depravado, mostrou-se toda apaixonada por este mono, que aqui vedes!

– Deveras? Não é possível! Ou tu estás caçoando conosco, ou então ela o


debicava.

– Não é caçoada, sou eu que vos afianço e juro...

– Qual! qual! não é possível, queres nos debicar também, Azevedo.


– É a pura verdade. Tratou-o com todo o mimo, e à noite, como lá havia um
violão, o pôs a cantar, o que acabou de embasbacá-la.

– Não, não, não é possível; não posso acreditar – insistiram quase todos.

– E por que não? – exclamou do meio da turba um segundanista quase imberbe,


puxando as pontas de uns bigodinhos ainda em embrião. – Nisso nada há que admirar.
Conheço perfeitamente a tal D. Adelaide e a sua procedência. É na verdade uma bonita
mocetona; mas tem os instintos da raça. O sangue africano, que lhe gira nas veias, faz
com que não tenha lá muito bom gosto na escolha dos amantes. O ano passado, entrei
em relações com o Major Damásio, pai da sobredita, e um dos mais extravagantes
originais, que tenho conhecido, e comecei a apaixonar-me realmente pela filha. Mas
logo percebi que com ela perdia meu tempo e minhas finezas. Talvez vocês visse por lá
um sujeitinho vivo, esbelto, um caboclo de olhos cintilantes, assim à maneira do
gaúcho...

Azevedo e Belmiro olharam um para o outro de um modo significativo, e de


feito se lembraram que viram por vezes, de relance, girando pela casa do major, um
caipira, ainda moço, esbelto e de bonita presença, a que não deram muita atenção, e
julgaram ser algum hóspede de pouca importância, ou algum arrieiro do major.
Entretanto, não deixaram de refletir que durante sua estada na chácara, o tal moço
aparecia e desaparecia a miúdo com certo ar desconfiado e sombrio.

– E é verdade – disse Belmiro. – Não te lembras, Azevedo, de ter visto lá esse


sujeito?

– Perfeitamente e por sinal que nos não olhava com bons olhos. Mas que tem
esse sujeito, capataz ou arrieiro, como me parece, com D. Adelaide? – continuou
Azevedo, dirigindo-se ao supramencionado segundanista.

– O que tem? – respondeu este. – Nada; é simplesmente o seu amante.

– Não creias tal – replicou visivelmente molestado por essa revelação o


Azevedo, que ao menos, até à véspera daquele dia, se julgara na posse exclusiva da
afeição de Adelaide, e não podia acreditar na existência de um rival de tão baixa
extração. – Quem te disse isso?
– Ninguém, meus olhos viram. Não sou tão asno, que não perceba o amor onde
ele existe. Afirmo-lhes; esse capataz é o amante de Adelaide, e o que mais é amante
amado.

– Mas quem é ele? Será algum primo?

– Qual primo! É um domador de burros, que o major trouxe de Curitiba. Mas


isso que importa? Se o rapaz é caboclo, o major também o é, e demais disso é cigano de
pura raça, como todo mundo sabe: lé com lé, cré com cré.

– Cuidado com tua pele, meu Belmiro! – exclamou um da turba. – Repara quem
pretendes tirar do lance... Tens um valentão pela proa; esses curitibanos não são para
graças.

Assim continuaram por algum tempo os motejos daquela turba desalmada à


custa do major, de sua filha e do curitibano; motejos de que o próprio Azevedo já não
estava gostando muito. Quanto a Belmiro, esse, com o coração ainda a palpitar com a
terna recordação dos mimos de Adelaide, sentia revoltarem-se as entranhas, e estava a
ponto de sair em campo para desafrontar a reputação de gentil paulista, tão pública e
atrozmente atassalhada por aquela horda de maldizentes. Conteve-se porém nos
recantos de seu natural acanhamento, refletindo que aquilo bem podia ser o começo de
uma aventura em que, sem o pensar e sem o querer, iria representar uma das principais
figuras, e envolver-se talvez em bem maus lençóis. Obedecendo, pois, não só à inflexão
como à sua própria índole, entendeu que melhor seria não tomar parte alguma na
discussão, e nem sair a campo qual novo D. Quixote a romper lanças por uma
Dulcinéia, que apenas conhecia da véspera.

Uma palavra de Azevedo, palavra calculada e adrede insinuada nos ouvidos de


Belmiro para os devidos efeitos, o fez subitamente mudar de deliberação.

– Covarde – disse-lhe ele, ao ouvido. – Pois deixas assim ser profanado e


atassalhado por esta corja de biltres o nome daquela que ainda ontem, vendo-te pela
primeira vez, te tratou com tanta distinção e carinho? Ah! se ela o souber!...

Belmiro corou até os olhos; compreendeu que era mesmo desairoso e até ignóbil
da sua parte não dizer uma só palavra em desafronta daquela que lhe havia
testemunhado tanto afeto e predileção, e chamando em seu auxílio a pouca presença de
espírito, que ainda lhe restava:
– Meus amigos – disse – não devemos fazer juízos temerários...

– Aí temos moralidade! Fora o pregador! fora o namorado sermonista... Por aí


não vai bem!

Com estas e outras exclamações abafaram a voz de Belmiro.

– Deixem-no falar, com mil diabos! – gritou o Azevedo, zangado. – Atendam,


que até agora ainda não proferiu palavra.

– Pois bem, meus senhores – exclamou Belmiro um pouco animado com o


auxílio que Azevedo parecia prestar-lhe. – Posso afiançar-lhes que todos esses ditérios,
que andam assoalhando contra o major e sua filha, não passam de miseráveis e indignos
aleives. Se o senhor duvida – acrescentou, dirigindo-se ao moço de bigodinho – pode ir
conosco lá no domingo. O major autorizou-nos a convidarmos quem quisermos; e terá
ocasião de reconhecer que tudo isso não passa de um desprezível embuste, filho talvez
do despeito de alguém que tomou tábua.

Oh! oh! como está arrogante o malandro! – retorquiu o mocinho do bigode,


tomando para si a carapuça. – Havemos de ir sem dúvida, e para isso não preciso de sua
apresentação; eu também conheço o major, e não é de ontem. Juro que hei de disputar
palmo a palmo o terreno não só aqui ao amigo Belmiro, como também ao tal mequetrefe
de capataz. Meu Belmiro, emprazo-te para domingo! – terminou, batendo-lhe no ombro.

Nesse momento, a sineta da Academia batia um quarto depois de dez horas; era
tempo de Belmiro, Azevedo e muitos outros que ali se achavam entrarem para as aulas,
pelo que dissolveu-se naturalmente aquele ajuntamento, que já ia tomando um caráter
tumultuário.

Terminadas as aulas, enquanto Belmiro se retirava lentamente para casa, ao


braço de seu companheiro, o infatigável e maligno Azevedo, contentíssimo com o
resultado da sua trama, que excedera mesmo à sua expectativa, deixou-se ficar na
Academia, combinando com alguns companheiros os meios de pregar outra caçoada,
ainda mais que cruel, ao Belmiro no domingo próximo, na própria casa do major.

Cumpre notar que o despeito de Azevedo não tinha só por alvo o seu colega,
estendia-se também a Adelaide, ao major, ao curitibano e a todos aqueles que tivessem
concorrido para perturbar os horizontes, até ali tão serenos, de seu tranqüilo namoro.
Projetava promover, senão um escândalo, na casa do major, ao menos tal desaguisado,
que havia de perturbar todas as suas relações e desarranjar por muito tempo todos os
namoros presentes, passados e futuros de Adelaide. Para esse fim, não podia contar
muito com a cooperação dos companheiros de casa de Belmiro, quase todos amigos e
comprovincianos deste, e demais pouco próprios para empresas dessa ordem. Convidou,
portanto, outros companheiros mais apropriados, entre os quais figuravam o Couto – o
violonista notabilidade – e o moço dos bigodinhos. Não se esqueceu também de
recomendar muito ao Belmiro que por maneira alguma faltasse à função de domingo.

Capítulo X

Nova Provocação

Posto que sejamos inimigos mortais de todo o gênero de maledicência, forçoso


nos é gozar ainda um pouco na pele do Major Damásio. Se bem que não deixasse ele de
ter alguns bons instintos, e certo fundo de honradez e cavalheirismo, todavia sua nímia
filáucia, unida a muita ignorância, o tornava um personagem algum tanto ridículo, e às
vezes até mesmo odioso, próprio para servir de joguete entre as mãos de estudantes não
pouco desenfreados e libertinos. Sua balda de fidalgo e branco sem mescla se revelava a
cada instante nos modos, nas palavras e nas ações, tratando com revoltante desdém a
todas as pessoas de cor e de condição humilde. Parecia ignorar que em S. Paulo todo o
povo conhecia sua baixa linhagem, que o público maligno e desapiedado ainda mais
procurava rebaixar como para puni-lo de sua estólida presunção. Talvez mesmo que, à
força de mentir à sua própria consciência, se lhe encasquetara nos miolos a convicção
íntima e profunda de que era realmente fidalgo, em conseqüência de uma dessas
monomanias quixotescas, de que se dão não raros exemplos. Se esse fraco se limitasse
somente à sua pessoa, o mal não seria tão sensível; ele porém se refletiu na educação de
sua filha e veio a influir de modo lastimoso em seus ulteriores destinos.

Imbuída em todos os preconceitos e parvoíces do pai, não tendo tido outro


mestre senão ele e alguns preceptores lisonjeiros e fáceis, que lhe deram algumas lições
superficiais de música, dança e desenho e algumas noções de francês, faltou
inteiramente à Adelaide a educação moral e religiosa. Formosa e dotada de bastante
espírito e inteligência, teria sido uma das mais perfeitas criaturas, se não fosse a falsa e
má educação que lhe perverteu consideravelmente a excelente índole de que a dotara a
natureza. Para cúmulo de males, ainda no berço havia perdido sua mãe, e a única
mulher, a que ficara confiada a guarda da pobre menina, era uma velha tia celibatária,
irmã do major, mulher ignorante e quase idiota, que passara a vida a rezar e criar
galinhas, e da qual Adelaide fazia tanto caso como de suas escravas.

O major – não sem bastante fundamento – fazia de sua filha o mais elevado
conceito não só como formosura, mas também como um modelo de elegância, graça e
inteligência, e a colocava muito acima de todas as celebridades do mundo elegante
daquele tempo em S. Paulo. Como Adelaide já tinha completado os seus dezesseis anos,
o major não podia deixar de pensar em casa-la; tão ilustre raça não devia extinguir-se
em sua filha e era preciso escolher um noivo digno dela. Ora, o corpo acadêmico era
justamente um viveiro de noivos na altura de suas aspirações. Uma mocidade brilhante e
esperançosa freqüentava a Academia; uns ricos, outros fidalgos de sangue azul, outros
com a aristocracia do talento tinham suspensa sobre a fronte a auréola de um esplendido
futuro. O major não ignorava que era especialmente dessa classe que saíam os
deputados, senadores, ministros, barões, condes e marqueses. Estava também
intimamente convencido de que era bastante mostrar-lhes a filha, para ficarem todos
morrendo por ela e a disputarem com encarniçamento a posse de tão inapreciável
tesouro. Portanto, e nesse intuito, tratava de relacionar-se com o que havia de mais
ilustre e prestigioso nessa classe, procurando especialmente os da Corte, e evitando com
a maior cautela pessoas de cor equívoca. Entretanto, de envolta com esses jovens de
famílias distintas, não deixavam de ser admitidos em sua casa alguns estudantes pobres
e obscuros, mas notáveis pelo talento, principalmente se se distinguiam por alguma
aptidão artística ou se eram poetas, pois o major e sua filha eram apaixonados pela
poesia: Adelaide, sobretudo, era muito lida em romances.

O que todos não podiam suportar era a intimidade de mulatos ou caboclos.

Belmiro pouco mais ou menos já adivinhava qual o motivo por que Azevedo
havia convidado novos companheiros, e instava tanto com ele para que não faltasse ao
passeio de domingo; desconfiava que outra não podia ser a sua intenção, senão, de mãos
dadas com seus diabólicos companheiros, promover todos os meios de expô-lo à mais
solene irrisão em presença de Adelaide. Na companhia de seus amigos e comensais,
dispunha ainda de alguma presença de espírito para fazer face às caçoadas; mas com
gente estranha, perdia-se de todo, e sua perturbação bastaria para que fizesse o mais
triste papel. Quanto mais refletia, mais se convencia que lhe não era possível resistir à
conspiração que contra ele se armava. Por outro lado, atormentava-o irresistível desejo
de tornar a ver aquela que lhe havia roubado o coração. Toda a noite, passara a cismar
com ela. Fora tão meiga para com ele; testemunhara-lhe tanto interesse e simpatia! Não
seria grande a indelicadeza de sua parte deixar de comparecer ao primeiro convite? Mas
como arrostar a petulância daquela legião de garotos, que o Azevedo havia arrebanhado
para o acabrunharem ao peso de motejos e caçoadas?

Nesse estado de indecisão, adormeceu e acordou o irresoluto Belmiro na noite


de sábado para domingo. Acordou e levantou-se muito cedo, e a primeira resolução, que
as auras matinais lhe inspiravam, foi que não devia comparecer. Antes uma retirada
honrosa, do que uma derrota vergonhosa – pensou ele.

E para se esquivar às importunações do Azevedo e mais companheiros, logo


que se levantou, foi amoitar-se em casa de um estudante, seu amigo, que morava nas
vizinhanças. Era deserção algum tanto vergonhosa; mas antes isso, do que ser vítima de
caçoadas e pilhérias pesadas em presença de uma mulher amada.

Na hora aprazada – onze para meio-dia – em vão procuraram Belmiro; ninguém


sabia onde se alapardara. Azevedo deu a mil diabos a fuga de sua vítima; a vingança
escapava-lhe das mãos de um modo lastimoso.

– Ah! raposa matreira – exclamava ele. – Mas deixa-te estar que mesmo sem a
tua presença, hei de preparar-te uma cama, com que não te hás de dar mal. Olhem o
sonso!... Tem convite de um homem de importância e de uma menina bonita, e esconde-
se como um urso bravio! Mas pela falta de um companheiro não devemos perder o
pagode, de ele no que der. Vamos, meus amigos!

Azevedo levava o seu menestrel, o Couto, grande violonista e cantor de


primeira ordem, e com ele e os mais companheiros contava passar um dia cheio de
regalado, e portanto, rogando mil pragas a Belmiro, puseram-se alegremente a caminho
para a casa do major.

Belmiro, entretanto, não ficou tranqüilo, e logo que soube que a comitiva de
Azevedo tinha partido, começou a achar feio e ridículo o seu procedimento. Demais a
mais, gravemente namorado, como realmente se achava, começava a sentir fisgar-se-lhe
ao coração a farpa do ciúme.

– Não! – dizia consigo. – Não devo deixar de comparecer. Adelaide, com minha
ausência, ficará fazendo fraca idéia de mim; pensará que fiz pouco caso de suas
atenções, ela que as merece tanto, e me entregará ao desprezo, que realmente merecerei,
se lá não for... Sou deveras um amante bem frio, tosco e pusilânime!... Ter medo de
meia dúzia de peralvilhos, só porque se trajam com algum primor e sabem dizer a
moças meia dúzia de banalidades e parvoíces adocicadas?!... Ora!... Também o
Azevedo é um dandy de primeira ordem, e anteontem, sem no menor esforço e quase
sem querer, o pus fora de combate!... Vamos! vamos!... Ao menos ficarei sabendo se a
deferência, que teve comigo, foi um capricho de momento ou dó por causa da minha
queda, ou se é mesmo coisa mais séria.

Nessa resolução, dirigiu-se a casa, vestiu-se à pressa e o melhor que pode, e


encontrando ainda encilhado o animal que lhe tinham preparado, enforquilhou-se nele, e
dirigiu-se para a chácara do major.

Ao avistar a casa de Adelaide, o coração lhe palpitou com violência, como o do


soldado que vai entrar em renhido combate, do qual não sabe se sairá vivo ou morto,
vencido ou vencedor. Ia se expor a um terrível tiroteio, do qual para sair vitorioso só
esperava o auxílio de uma pessoa, e essa pessoa era Adelaide.

Achou a companhia instalada no salão em animada e alegre conversação. O


Azevedo levara, além de dois ou três companheiros de Belmiro, mais seis ou sete novos
amigos, jovens elegantes, primorosamente trajados, afeitos às maneiras cerimoniosas
dos salões. Um deles, se bem que igual aos outros na elegância e no trajo, era de cor
bastantemente fusca e tisnada, e no rosto e no cabelo apresentava o tipo o mais
pronunciado de um verdadeiro tupi. Era este o grande cantor, excelente músico, que o
Azevedo tinha inculcado no intuito de eclipsar a Belmiro.

Azevedo e seus companheiros receberam Belmiro com uma explosão de


cumprimentos irônicos, que atordoaram.

– Ainda bem vieste, meu caro Belmiro. Que falta nos ia fazer!...

– Por que razão eclipsaste na hora da partida? Mas vais melhor do pé?...

– Oh! felizmente cá o temos!... Oh! insigne trovador!...


– Bem-vindo sejas, meu Belmiro!... disse por sua vez o Azevedo, tocando-lhe
no ombro – Se faltasses, faltava-nos o ar, a luz, a vida... Mas olha que daqui em diante
não é mais permitido destroncar o pé.

Belmiro nada respondia; notou, porém, que o major naquele dia tratava seus
hóspedes com mais reserva e cortesia, e mesmo com certa frieza, que não condizia com
as maneiras francas e familiares com que os recebera da primeira vez; mas não podia
atinar com o motivo de semelhante procedimento.

Adelaide foi a última que se dirigiu ao recém-chegado.

– Pensava que não vinhas mais – disse ela depois de cumprimentá-lo – e já


estava ficando com raiva do senhor.

– Eu não podia deixar de vir, minha senhora; um transtorno insignificante me


fez demorar um pouco; espero que me desculpe.

– Uma vez que apareceu, está desculpado. Meu pai havia de ficar bem
aborrecido, se o senhor não viesse.

– Oh! decerto – acudiu o major – muito apreciamos a sua companhia, e


havemos de apreciá-lo também hoje no violão.

– Lá por isso não, meu caro major; nenhuma falta eu faria; aí está o nosso
amigo Couto, que o vai fazer esquecer-se.

– Oh! o senhor! – replicou o major, inclinando-se com cerimoniosa gravidade


para o Couto. – Havemos de ter o gosto de ouvi-lo também.

– Toco alguma coisa, senhor major – retorquiu o Couto – senão admiravelmente


como o nosso incomparável Belmiro, sempre sirvo e não me faço de rogado. Mas creio
que seria para todos nós muito mais agradável ouvir a Sra. Adelaide que, segundo
dizem meus amigos, possui uma voz maravilhosa.

– Não é tanto assim – replicou Adelaide. – Canto alguma coisa; mas não sou
mestra. Tenho muito pouco estudo.

– Isso nada importa – disse o Couto, levando a sua cadeira para bem junto da
moça e assentando-se com grande familiaridade ao pé dela. – O que mais se aprecia são
os dons naturais que a senhora pode aperfeiçoar com o exercício e a direção de um bom
mestre.

Adelaide corou toda perturbada, e procurou disfarçadamente afastar algum tanto


sua cadeira da de seu interlocutor. O major, por seu lado, enfiou e mordeu os beiços
com impaciência ao ver aquele fusco trovador chegar-se com tal desembaraço e bafejar
tão de perto a sua idolatrada Adelaide.

– Não duvido – disse esta, respondendo ao Couto – mas não tenho pretensões a
ser grande cantora; canto para distrair-me.

– Ah! mas isso é ser muito egoísta; quem dispõe de uma bela voz tem o dever
de cantar também para distrair e encantar aos outros.

– Perdão, meus senhores – interveio o major impacientando. – Deixemos a


música para depois; são horas de irmos às frutas. Vamos, senhores, vamos para o
pomar.

– Prontos! – responderam os estudantes levantando-se. E todos, precedidos pelo


major e sua filha, se dirigiram ao pomar pelo caminho que já conhecemos.

Aí nada ocorreu de interessante; somente o major, escarmentado com o que


acontecera a Belmiro, não consentiu mais que os estudantes subissem às jabuticabeiras,
e mandou servir as frutas já colhidas por seus escravos. Este fato, além de mostrar-se o
major nessa ocasião muito mais frio e cerimonioso em seu trato, concorreu grandemente
para tornar a função pouco animada, e bastantemente desenxabida. Azevedo e seus
apaniguados em vão procuraram divertir a companhia, chasqueando à custa de Belmiro.
Adelaide pouco apreço dava a suas pilhérias, não as aplaudia, mostrava não entende-las,
e às vezes até parecia desaprova-las. Muito ao contrário do que pretendiam, ela como
que de propósito mostrava-se solícita e bondosa para com Belmiro, dirigindo-lhe muitas
vezes a palavra e oferecendo jabuticabas, que ela mesma colhia.

Isso desconcertava completamente o Azevedo, que via ir-se malogrado de modo


deplorável todo o plano de sua conspiração. Seus companheiros, igualmente, foram-se
sentindo cada vez mais desanimados e até mesmo despeitados, principalmente o Couto,
a quem Adelaide tratava com uma indiferença, que às vezes cheirava a desdém.

Ao jantar, por efeito das libações, os espíritos se animaram, e a conversação


tomou algum calor. Os ditérios e epigramas choveram ainda contra Belmiro, que os
recebia impassível à sombra do olhar benigno e protetor de Adelaide. Ufano com a
vitória, que sem o mínimo esforço o ia alcançando contra seus companheiros, ia
cobrando sangue-frio e audácia, que lhe não eram naturais.

– Estás amuado hoje, Belmiro! – disse-lhe um deles – Falas tão pouco!... Será
ainda efeito do tombo que levaste?

– Nem disso me lembro mais – retorquiu Belmiro. – Mas é que quando vocês
falam não fica tempo a ninguém para dizer uma palavra.

– Oh!... oh!... Podes falar, podes soltar alguma das tuas sandices; prometemos
presta-te toda atenção.

– Obrigado!... Podem continuar a desfiar suas pérolas; no meio delas minhas


sandices vão produzir muito mau efeito.

– Não sei que o Sr. Belmiro diga sandices – acudiu Adelaide com adorável
ingenuidade – mas se as diz, é com tal graça, que não parecem tais.

Com um olhar expressivo, Belmiro manifestou a Adelaide a sua gratidão.

– Meus senhores! – bradou o dono da casa, de copo em punho. – Já temos feito


muitos brindes; agora peço-lhes que façamos um especial ao meu amigo, insigne
violonista, o Sr. Belmiro!

Esse brinde foi correspondido com sinceridade por Adelaide e alguns poucos
amigos do estudante, mas pelo resto dos convivas com atordoadores hurras, misturados
com gargalhadas, que não podiam exprimir nem prazer, nem entusiasmo.

Está bem claro que ele foi levantado pelo major mui de propósito para humilhar
o Couto, cuja cor lhe fazia arrepiar os cabelos.

Azevedo desesperava ao ver irem-se malogrando uma por uma todas as suas
tentativas para ridicularizar e por fora de combate o seu rival. Adelaide o amparava com
sua égide não era possível atingi-lo. Só lhe restava uma esperança na ocasião de se tocar
e cantar. Sabia quanto Belmiro era acanhado, e se bem que soubesse tocar violão e
cantar com algum gosto e perfeição, só o fazia raras vezes e entre pessoas com quem já
tivesse contraído alguma familiaridade. Portanto, expô-lo a cantar em pleno dia, de
violão em punho, no meio de uma sala cheia de pessoas, que ele bem sabia estarem mais
dispostas e debicá-lo do que a apreciá-lo, era o maior dos suplícios que podiam infligir-
lhe. De feito, mesmo para os mais desembaraçados, haverá provocação mais cruel do
que ser condenado a cantar de dia bem claro, em uma pequena sala cheia, de face para
todos, que, com os olhos fitos na cara do cantor, lhe observam todos os movimentos e
de ouvidos atentos estão à espera que ele abra a boca? E principalmente quando no
auditório há uma pessoa, diante da qual nos seria dolorosíssimo fazer um mau papel?
Isso é para fazer suar sangue e por em torturas o mais delambido cômico de profissão.
Era nessa terrível arena que Azevedo e seus comparsas esperavam ver o pobre Belmiro
completamente aniquilado sob o peso do ridículo.

Depois de uma breve passeio pelo jardim, onde se serviu o café, os convivas se
reuniram na sala de visitas. Era chegada a hora dos entretenimentos musicais. Por
instigação de Azevedo, o Couto lançou logo mão do violão, e com notável perícia e
agilidade executou lindas peças, que encheram o auditório de prazer e admiração. O
major, porém, e sua filha apenas o aplaudiram com muita frieza; reproduzisse ele as
harmonias dos coros angélicos, a sua cor tisnada lhes fazia parecerem ásperas e
desentoadas as mais suaves notas, que extraía das cordas do instrumento.

Senhores – disse o Couto – eu estou tocando somente para preludiar; é o bom


que se cante alguma coisa. Quem principiará?

– O Belmiro! o Belmiro! – exclamaram todos os estudantes, que para isso já se


tinham combinado.

– É verdade; nada mais justo, mesmo para corresponder ao brinde com que
ainda há pouco o honrou o senhor major. É preciso que cante. Ande, vamos a isso! dizia
o Couto, entregando o violão a Belmiro.

Esse enfiou e enrubesceu até a raiz dos cabelos; mas tinha formado firme e
inabalável propósito de não cantar, e por esse fim já tinha estudado em escusa, que aliás
parecia ser muito atendível.

Tinha tido febre e insônia em conseqüência da lesão no pé. Sentia vertigens a


toda vez que falava mais alto e com alguma vivacidade, e por conseguinte muito menos
lhe era possível cantar.

– É manha! é manha! – exclamaram os estudantes. – Não admitimos desculpa.


Não acredite, minha senhora; podemos afiançar-lhe que está de perfeita saúde. A
senhora não reparou como ele comeu e bebeu com invejável sede e apetite?
– Pode-se estar de saúde para comer e beber, e para muitas outras coisas mais, e
não se estar de saúde para cantar – replicou tranqüilamente Belmiro.

– Ora! Não se faça rogado! Vamos, tome o violão e cante! – retrucaram os


estudantes, acercando-se de Belmiro e apresentando-lhe o violão com um ar quase
ameaçador.

– Não, decididamente não; não posso. Peço desculpa ao senhor major e à Sra.
D. Adelaide – disse Belmiro, lançando a esta um olhar de súplica.

– De nossa parte, Sr. Belmiro – respondeu ela – está dispensado; não queremos
agravar seus incômodos só para nos dar prazer.

– Oh! sem dúvida! – confirmou o major. – Guarde-se para quando estiver de


todo restabelecido. Então, sim, não havemos de poupá-lo.

O Azevedo naquele instante teve ímpetos de arrojar-se ao gasnete do major e de


Belmiro e esganá-los ali mesmo, e de passar pelo menos uma furiosa descompostura em
Adelaide a despeito de toda a sua formosura.

O Couto esperava que, visto o Belmiro ter sido dispensado, o major ou sua filha
lhe rogassem para cantar. Mas nem um nem outra se lembraram ao menos de dirigir-lhe
a palavra. Com este desencanto, que era quase um desacato, o Azevedo foi às nuvens.
Nunca pensou que o menestrel, a quem tanto havia preconizado, fosse tão cruelmente
menosprezado. Entretanto, ele e seus companheiros, mesmo para dar uma diversão ao
desapontamento e despeito que os molestavam, tomaram a seu cargo o instar com o
Couto para que cantasse alguma coisa. Este, que mais que ninguém se achava enfadado
e de mau humor, acedeu de má vontade à súplica dos companheiros, e entoou uma
cançoneta e alguns lundus chulos e bem pouco próprios da boa companhia. Isso acabou
de indispô-lo com o major, que dava a perros a lembrança, que teve seu amigo Azevedo,
de trazer-lhe à casa semelhante tapuia, como lá de si para si o qualificava.

Por fim os estudantes, menos o tapuia, que não podia nem queria disfarçar o seu
despeito, rodearam Adelaide e rogaram-lhe com muita instância para que cantasse
qualquer coisa. Não lhe foi possível recusar-se. –A senhora decerto vai acompanhar-se
ao piano, não é assim, D. Adelaide? – perguntou-lhe Azevedo. –Não, senhor; prefiro o
violão. O Sr. Belmiro me fará o favor de acompanhar.
Esta última bomba atordoou e fez perder toda a esperança ao Azevedo e a todos
os seus companheiros.

Adelaide cantou, e Belmiro acompanhou uma modinha, que só eles dois


ouviram, mas que afinal todos aplaudiram ex-officio.

Já o sol se inclinava rúbido sobre a serra das Cantareiras, e desmaiava seu vivo
fulgor, engolfando-se nos diáfanos vapores da tarde. O sol estava a despedir-se do nosso
hemisfério, os convivas do Major Damásio ansiosos por despedir-se de seu hóspede, e
este também não menos aflito por vê-los de costas.

O major, entretanto, não quis despedir os seus convivas sem dar-lhes uma
satisfação, e como não podia dá-la à face de todos, chamou de parte para esse fim o
Azevedo, com quem tinha mais antigas relações e maior familiaridade.

– Desculpem-me – disse-lhe ele – se hoje não os tratei no mesmo tom de


familiaridade. Veio gente nova, e além disso o senhor trouxe consigo um sujeito que,
perdoe-me lhe dizer, não condizia muito com o resto da companhia. Que necessidade
tinha o senhor de fazer cá aquele tapuia? –É do Couto que V. S. quer falar? – perguntou
Azevedo, formalizando-se. –Sim, senhor, o tal tocador de violão.

–Oh! senhor major, que susceptibilidade a sua! É um quartanista, um moço


muito distinto, bem educado e inteligente... Quanto à cor é talvez tão branco...

Azevedo ia talvez dizer – como V. S. – mas conteve-se a tempo.

– Como muita gente que anda por aí campando de branca e de fidalga... –


continuou, concluindo a frase. Demais, senhor major, a cor é um acidente.

– Será um acidente – interrompeu o major – não duvido, mas há certas misturas


que repugnam.

– Ah!... – murmurou Azevedo, completamente atônito e desafinado.

– É preciso haver mais cuidado na escolha dos companheiros, meu amigo.

– Eu o trouxe apenas como um insigne músico, que poderia dar algumas lições
à senhora sua filha.

– Nesse caso o meu capataz também toca e canta menos mal; e eu havia de pô-
lo a ensinar minha filha?...
–Oh! não há o menor paralelo... Mas desculpe-me, senhor major; não sabia que
os seus melindres aristocráticos chegavam a tal ponto.

– Se há melindre, não é para com o senhor, meu caro amigo; esta casa está
sempre às suas ordens, e de seus amigos, contando que...

– Muito obrigado! – atalhou Azevedo. E despediu-se do major, ficando um


pouco abaladas as suas relações de amizade.

Capítulo XI

Uma revolução dentro de um pedacinho de papel

Os estudantes se retiraram descontentíssimos com o resultado do passeio. O


Azevedo principalmente levava na alma o mais entranhado rancor, tanto contra
Belmiro, como contra o major e sua filha. Em conseqüência, Belmiro teve de agüentar
pelo caminho todos os efeitos do mau humor de seus companheiros. Foi bode
expiatório, sobre o qual iam descarregando sem cessar os desapiedados golpes da
cólera, que lhes atearam na alma os desdéns de Adelaide e as impertinências do major.
Teve de ouvir as mais terríveis imprecações contra o pai, e as mais cruas e desbragadas
apreciações a respeito da filha. Analisando-a detalhadamente, emprestavam-lhe todos os
defeitos imagináveis e não reconheciam nela nem graça, nem beleza, nem espírito.

Azevedo, logo ao sair, tinha contato aos companheiros, menos a Belmiro, toda a
conversação, algum tanto misteriosa, que tivera com o major ao despedir-se; mas fê-lo
com cuidado e segredo, para que não chegasse aos ouvidos da vítima. Isso reunido à
frieza e cerimoniosa com que foram tratados, levou ao cúmulo o despeito e indignação
dos rapazes. Estimavam muito ao colega, e a desfeita, que lhe foi irrogada, doeu-lhes
como se fosse feita a todos, e juraram castigar a filáucia e petulância do major do modo
o mais cruel que pudessem.
Vamos a escutar um pouco a edificante conversação, com que a trote largo se
iam entretendo pelo caminho.

– Que saloia desenxabida, meu Deus!... Eu pensei que a tal Adelaide tão
decantada fosse outra coisa. No corpo é uma almanjarra desengonçada, cheia de
requebros desengraçados.

– E no espírito... Oh! no espírito ainda é pior: é uma lesma!

– É uma foca.

–E que bigodes de granadeiro tem ela! Não repararam?

–Lá quanto aos bigodes, passe; mas que ventas! Parecem duas trombetas! Bem
se lhe esta vendo a raça.

–E que gosto aprimorado!... Namorar-se aqui do nosso Belmiro!

–De certo assim devia ser, por achar nele um outro palerma, que não despregava
dela os olhos, como um cão a namorar um pedaço de carne.

– Que dois!... Deus os fez e o diabo os ajuntará talvez.

– Mas nós os separaremos; é uma obra de misericórdia, não devemos consentir


em semelhante namoro.

– Qual namoro! – acudiu o moço de bigodinhos, que já conhecemos – Vocês


deveras tem a simplicidade de acreditar que ela esteja realmente namorada do Belmiro?

– No menos as aparências...

– Pois são aparências e nada mais. Não viram por lá rondando o tal biltre do
arrieiro ou o capataz? Não repararam, quando ele passava por perto de nós, como fitava
nela uns olhos de fogo, e como abaixava ela os seus, cheia de confusão?

– Oh! isso é verdade. Uma vez que o tal maganão se achou em nossa presença,
ela se mostrou por tal sorte inquieta e perturbada, que parecia estar sentada em uma
cadeira de espinhos.

– E o mais é que o rapazola não deixa de ter uma bonita figura; vale cem vezes
mais do que o Belmiro. Que olhos negros cintilantes! Que fisionomia expressiva! Que
talhe esbelto e vigoroso! É um Cacambo, um Adônis americano.
– E é mesmo. No seu gênero, é um dos mais lindos e vistosos rapazes que tenho
visto. Cuidado, Belmiro! Tem pela frente um guapo competidor.

– Querem saber uma coisa, meus amigos? Creio que já percebi a tática da moça.
Ah! que raposa matreira não é a tal Sra. Adelaide!

– Então o que é?

– Vocês ainda não atinaram com a razão por que, no meio de toda a rapaziada
luzida que lhe faz a corte, escolheu o sorna do Belmiro para objeto de suas
predileções?...

– Ainda não.Qual é?

– É porque é ele o menos próprio para inspirar ciúmes ao namorado de casa.

– Oh! deve ser isso mesmo. Pobre Belmiro! Não és mais que um pau de
cabeleira!

–É isto, podem ter toda a certeza. Quando o sujeitinho se mostrar agoniado com
a menina, esta lhe dirá ingenuamente: tenho dó e simpatia por aquele pobre moço. Ele
facilmente acreditará, e eis aí tudo explicado...

Foi por esta maneira que os estudantes vieram por todo o caminho, retalhando o
coração de seu infeliz colega com alfinetadas de ciúme, que lhe doíam mais que todas as
outras caçoadas. De feito, ele também havia notado certos sintomas, que faziam crer que
as observações de seus companheiros não eram totalmente destituídas de fundamento, e
por isso, pensativo e silencioso, marchava como uma sombra entre seus gárrulos
companheiros, levando para a casa as mais desencontradas impressões. Por um lado
afagavam-lhe a imaginação, como um bando de borboletas matizadas de azul e ouro, as
lembranças das demonstrações inequívocas de afeição que lhe dera Adelaide; por outro,
lhe fazia horrendas esgares a petulante e desalmada caterva dos colegas, que lhe
moviam mil dificuldades. Não eram porém ainda estes que mais o aterravam; já por
duas vezes os tinha suplantado sem grande dificuldade; e o que mais dolorosa impressão
lhe causava era a existência do rival doméstico, sem dúvida o mais formidável de todos,
e que bem via não ser pura invenção de seus colegas. É verdade que também
compreendia otimamente o major, todo enfatuado de fidalguia como era, não podia
consentir em tal amor. Mas que importava isso se tal amor existia, e existiria deveras?
Assim oscilava perplexo o espírito de Belmiro, mas inclinando-se sempre a crer
que semelhante amor era uma quimera, a que a inveja maliciosa de seus colegas e a
nímia susceptibilidade de seus próprio ciúme davam algum vulto. Esse jovem curitibano
era um pobre rapaz estimado na casa e nada mais. Nesta convicção, ainda que mal
baseada, entendeu que devia continuar a freqüentar a casa do major, esperando que os
acontecimentos viessem a desenlear tão intrincada situação.

Encerradas as aulas e durante o tempo dos atos acadêmicos, Azevedo e seus


comparsas tiveram tempo de sobra para combinar e realizar seu plano de vingança. O
Couto, a quem não foi possível conservar-se por muito tempo oculta e singular
prevenção do major contra ele, em razão da cor, posto que afetasse ignorar ou desprezar
esse incidente, foi mais encarniçado em promover a mais terrível cruzada contra o
pretendido fidalgo. É verdade que nunca mais pôs os pés na casa deste, mas por fora
preparava os elementos e açulava os companheiros com atividade incansável e satânica
habilidade. Com repreensível espírito de libertinagem, continuaram eles a freqüentar,
em grupos de quatro, cinco e mais, a casa do major, de cujo fraco achavam-se
bastantemente inteirados, acatando-lhe sempre a alta linhagem e rodeando a filha de
todo gênero de lisonjas e seduções, próprias, senão para perverter-lhe o coração, ao
menos para lhe estontear a cabeça. Não digo que quisessem arrasta-la à perdição; mas
desejavam leva-la a ponto de cair em alguma indiscrição ou fraqueza – por exemplo
uma carta, uma entrevista – para dar mote a maledicência, coisa que também nada tem
de louvável.

Com a repetição dessas reuniões escolásticas em sua casa, Adelaide foi-se


habituando e mesmo tomando certo prazer em receber homenagem a tantos e tão guapos
adoradores. Como porém a todos prestasse igual atenção e tratasse com a mesma
amabilidade, nenhum deles ganhava terreno de modo que fizesse desanimar aos outros.
Nenhum deles podia jactar-se de receber dela a mais leve demonstração de preferência,
à exceção de um só, e esse era Belmiro. Este, entretanto, pobre e obscuro provinciano,
era o que menos convinha às ambiciosas e aristocráticas vistas do major. Por sua parte
também Adelaide, conhecedora das baldas do pai, e nelas profundamente imbuída, bem
compreendia que ele jamais acharia de bom gosto a escolha de semelhante noivo.

E qual será a razão perguntará o leitor – porque, a despeito disso, o distinguia


ela entre os seus companheiros, mostrando-lhe, sem reserva, especial simpatia e
predileção?...
É tempo já de destruir o engano, que porventura ainda exista, a respeito da
natureza da afeição que Adelaide consagrava a Belmiro. Mesmo em abono da honra e
reputação da moça, cumpre-nos aqui declarar que a afeição tão francamente revelada
não era nem um capricho de loureira, nem tampouco resultado de uma paixão amorosa;
era simples sentimento de benevolência, que lhe inspirava o provinciano e suas
maneiras lhanas e despretensiosas, e por sua índole um pouco menos maligna que a de
seus colegas. A infeliz moça fora fadada a amar uma só vez, e já amava; mas tinha a
triste convicção de que esse amor nunca poderia ser feliz. Ela mesma iludida, como
vivia, a respeito da procedência de sua linhagem, esforçava-se em vão por arranca-lo do
coração. Em razão da pouca idade e da educação negligente que ia tendo, não podia
deixar de ser faceira e leviana; mas não o era a ponto de desconhecer que a sociedade
tem exigências, a que ninguém pode eximir-se, e que seu pai jamais consentiria que ela
desposasse pessoa abaixo de sua categoria. Vendo-o franquear sua casa aos estudantes,
logo atinou que ele pensava em deparar-lhes um noivo digno dela. Com o coração
ocupado desde a infância com a imagem de um só, não sabia nem queria escolher entre
tantos e tão elegantes mancebos, que todos os dias lhe eram apresentados.

Estava convencida que, tarde ou cedo, teria de aceitar um noivo de alta


hierarquia, fosse qual fosse, e seria arrastada ao altar de himeneu como vitima de
obediência filial e das conveniências sociais. Era um sacrifício doloroso, mas, à força de
considera-lo como inevitável, já se tinha resignado a ele.

Portanto, não podendo apaixonar-se por nenhum dos pretendentes, que com
boas ou más intenções a cercavam de homenagens, Adelaide, talvez mesmo para
procurar uma diversão à posição difícil em que se achava, entregava-se, ingênua e
francamente, ao sentimento de simpatia que Belmiro lhe havia inspirado, sentimento
que, mal interpretado, fazia arder a cabeça a este e raivar aos outros de inveja e de
ciúme.

Assim, nesse negócio quase todos andavam mais ou menos enganados. Belmiro
julgava ser amado, e apenas merecia alguma simpatia e consideração, e seus
companheiros, quando em ar de chacota lhe diziam isso em caminho, bem longe
estavam de pensar que diziam a pura verdade. O major e sua filha estavam intimamente
convencidos de que os estudantes disputavam com ardor a posse do coração da rica e
formosa herdeira daquele nobre solar, quando estes, pela maior parte, desde o dia em
que o major se desouve até certo ponto com Azevedo e seu séqüito, só tinham em vista
desmoronar aquele castelo imaginário, e com bárbara malignidade expor ao ridículo não
só o pai, como também o nome de sua infeliz filha, que por certo não merecia
semelhantes desacatos. Alguns deles tiveram a audácia de fazer chegar às mãos de
Adelaide cartas amorosas, que ela teve a prudência e a discrição de queimar sem dar
resposta alguma. Havia contudo um ou outro que, sinceramente apaixonado pela beleza
e atrativos da moça, empregava de boa-fé seus esforços para ganhar-lhe o coração, e
que, fechando os olhos à sua genealogia, estava disposto a pedir-lhe a mão de esposa;
mas esse mesmo não era mais bem sucedido.

A Adelaide, a Adelaide – eis o nome que mil vezes se ouvia repetir nos círculos
nos dandys acadêmicos de S. Paulo. Era um namoro espantoso; Adelaide era um astro
rodeado de miríades de satélites. Quanto verso da mais vaporosa e requintada, quanta
carta da mais acrisolada, ardente, profunda e frenética paixão tinha de ler, e que lhe
eram entregues como por encanto!... A moça via-se atarantada;acreditou-se uma deusa,
que tinha por dever aceitar o culto e adoração universal. Assim o fez, e foi isso talvez
sua salvação. Divindade sobranceira e sem caprichos, não quis em seus altares
sacerdotes privilegiados, aceitando com igual benignidade as oblações e o incenso de
todos.

Desgostosos por fim e desanimados, os falsos adoradores de Adelaide, por não


terem conseguido, depois de dois meses de inúteis tentativas, que ela – servindo-nos de
uma expressiva alocução popular – pusesse o pé em ramo verde, deliberavam tomar
vingança por outro meio mais cruel e mais positivo. Suprimiram completamente as
visitas a casa do major, mas faziam lá chegar alguns números de jornais contendo
epigramas ferinos, cuja alusão era bem manifesta. O major os lia com prazer, porque
lhes não compreendia o alcance; mas Adelaide bem lhes compreendia a ponta acerada.
Entre eles foi uma poesia intitulada – A rosa e o cravo caboclo – em que se aludia de
modo bem claro, mas com delicadeza, ao incidente, que conhecemos, dado entre
Azevedo e Belmiro. O major achou-a lindíssima, e riu-se; mas Adelaide arrepiou-se e
estremeceu. Como porém era concebida em termos delicados e ornada de imagens
graciosas, Adelaide calou-se e abafou dentro dalma certas apreensões, que não
deixavam de inquieta-la.

Um belo dia, porém, Adelaide recebeu das mãos de uma velha escrava um
mimoso e perfumado papelzinho, e julgando ser uma dessas missivas apaixonadas, com
que seus inúmeros amantes costumavam importuna-la, abriu-o sem escrúpulo, e
começou a lê-lo, para depois consumi-lo, como era seu costume, na pira ardente, não
direi do seu desprezo, mas de sua indiferença. Essa missiva, que era anônima, não pode
ter o mesmo destino. Dentro desse papelzinho perfumoso e acetinado estava contida
uma terrível bomba, que devia estourar com grande estrondo, e, fazendo horrível
conflagração, produzir completa mudança nos destinos de Adelaide. Era uma poesia em
forma de lundu, na qual se punha em público e raso a genealogia de Adelaide, tendo por
guizo o seguinte estribilho:

Mas por essa desventura Não chores, linda menina; Nasce a pérola da lama, Nasce do
esterco a bonina.

Bem se vê que esse modo de consolar não podia agradar muito à Adelaide. A princípio,
enrubesceu até à raiz dos cabelos, e pouco depois sua linda tez morena ficou pálida
como a cera de uma tocha funérea; suas pupilas negras se incendiaram, lançando
chispas como as da cainana ofendida; seus seios ofegaram violentos como mar
tempestuoso. Ela, acostumada a ser o alvo de todos os mimos e adorações, nunca
pensara nem mesmo na possibilidade de tão feroz ultraje.

– Lucinda! – gritou ela, chamando pela escrava, que lhe entregara o papel, a qual
imediatamente apareceu. – Toma esta carta... tu te enganaste... Quem foi que a trouxe?
Isso seguramente não é para mim.

– É mesmo para sinhazinha – respondeu a escrava. O moleque, que trouxe esse papel,
falou assim: - É para sinhá Adelaide, filha do Sr. Major Damásio.

– Ah! meus Deus, será possível! – exclamou a moça, levando as mãos aos cabelos. –
Meu pai!... Chama depressa meu pai... ele há de vingar-me!

– Que é isso, sinhazinha?! O que é que mecê tem, que está zangada?

– Não é nada, Lucinda – respondeu secamente a moça. – Anda!... Vai chamar meu pai.

Daí a instantes apareceu o major.

– Que temos de novo, minha querida?


– Olhe, meu pai; olhe o que se atrevem a escrever para sua filha – disse ela,
apresentando, com mão convulsa, o papel, que o pai tomou e começou a ler com avidez.
À medida que ia lendo, os olhos do major se injetavam, convertendo-se em duas poças
de sangue, e as cordoveias do pescoço batiam-lhe como bordões de rabecão feridos em
valente pizicato.

– Há de morrer como um perro vil!... – bradou, dando um furioso murro sobre a mesa,
junto à qual Adelaide se achava sentada. – Há de morrer o insolente, que teve o
atrevimento de... Olá! – quem foi que te trouxe este papel, minha filha?

– Foi Lucinda.

– Ó lá, Lucinda!...

Lucinda imediatamente apareceu, espavorida.

– Crioula, quem foi que entregou este papel à sinhazinha?

– Fui eu, sim senhor.

– Quem trouxe?

– Foi um moleque.

– Que moleque?

– Não sei, não, senhor.

– Como se chama?

– Não sei, não senhor.

– De quem é?

–Não sei, não senhor.

–Não, não, não, não sei, não sei, não sei! E esta! Pois é preciso saber, maldita! Vai,
corre já atrás do moleque que aqui trouxe este maldito papel. Anda... Não percas tempo;
traze-o já aqui agarrado. Senão... anda, cachorra tinhosa! Anda, demônio dos meus
pecados!...

O major berrava estas palavras espumando em fúria, e espescoceando


desapiedadamente a pobre rapariga. Enquanto ele continuava a vociferar feito um
possesso, Adelaide escondeu a cabeça sobre a mesa entre os braços e desatou a chorar, e
Lucinda, toda atarantada pelos berros e pescoções do major, foi-se escorregando dali
para fora sem compreender nada do que se passava, e tratou logo de esconder-se no
mais recôndito canto da cozinha. Houve silêncio de alguns instantes, enquanto a filha
soluçava e o pai bufava como um boi no laço.

– Meu pai! – disse por fim Adelaide, levantando o rosto banhado em copioso pranto.
Estava encantadora então. A raiva tinha-se desafogado em lágrimas, e achava-se
restabelecida a harmonia de suas graciosas feições, que a cólera por momentos havia
transtornado. Se a vissem naquele instante os estudantes, que a tinham levada a tal
extremo, ter-se-iam prostrado aos pés dela, atassalhados de remorsos e implorando
perdão. – Meu pai, bem me estava agourando o coração que essa corja de estudantes
malcriados havia de nos pregar alguma; eu não gostava nada de semelhantes reuniões.

– Nem todos, minha filha; isso não vem senão de gente ruim e de baixa ralé; e não pode
ser doutro senão daquele cão tinhoso, daquele esconjurado tapuia que o Azevedo aqui
nos trouxe um dia.

– Não duvido; mas seja de quem for, meu pai, isso não deve ficar sem castigo. Ah! meu
Deus! meu Deus ! que desaforo... Pelo amor de Deus, meu pai, não abra mais sua porta
a semelhante canalha.

– Eu, minha filha! ... Deus me ofenda!... Não quero vê-los mais nem pintados.

– Mas não basta só isso, meu pai; uma afronta destas não pode ficar sem vingança...

– Sim, não pode; dizes bem, minha filha. O maroto há de pagar ao menos com uma boa
sova de pau... Já se viu maior desaforo! Esses estudantinhos cuidam que podem zombar
do mundo inteiro!... Hão de conhecer se o Major Damásio Augusto de Aguiar e
Andrada é da laia deles... Há de se descobrir quem foi o brejeiro infame... Hei de falar
ao compadre Tobias... A polícia há de indagar... Hei de falar também aos lentes... Há de
haver congregação... reprovação... expulsão mesmo!... Arre! Não se insulta assim uma
família distinta!...

– Não, não meu pai - interrompeu a moça. – Com esse espalhafato vamos de mal a pior.
Então é que vamos virar peteca na mão desses biltres. Não diga nada ao padrinho, nem
aos lentes, nem a ninguém. Eu mesma hei de descobrir quem foi o desaforado que me
mandou esses versos, e hei de vingar-me.
– Tu, menina?

– Eu mesma.

– Cala-te aí, criança!... Mas como?...

– Deixe por minha conta.

– Pois sim... Vê lá se descobres, e conta certo que a mão, que escreveu essas sandices,
nunca mais pegará na pena para escrever coisa nenhuma desta vida.

Capítulo XII Conrado

Agora nos é indispensável dar ao leitor mais intimo e completo conhecimento


de um personagem, de quem até aqui só nos temos ocupado acidentalmente, mas que
tem de representar um dos mais importantes papéis no desenvolvimento dos sucessos
que temos de historiar. Queremos falar do jovem capataz ou camarada do Major
Damásio, a quem os estudantes, aliás sem fundamento algum sólido, mas só por pura
malícia, atribuíam relações amorosas com a filha do patrão. Conrado – tal era o seu
nome – era natural de Curitiba. Uma feita, em que Damásio ali fora comprar mulatas,
encontrou o pobre menino na idade de onze a doze anos, órfão e desvalido, mas já
traquejado na escabrosa lida de camarada muladeiro. Ágil e vigoroso, já sabia atirar um
laço com toda a destreza, pegar um burro xucro, passar-lhe os arreios e doma-lo como o
mais destemido peão. Era o tipo de um lindo e genuíno gaúcho.

Damásio teve ocasião de apreciar o préstimo e atividade do adolescente, e


encantado de sua extraordinária habilidade e desembaraço, como tinha precisão de um
camarada, o chamou a seu serviço. Além de sua habilidade profissional, Conrado se
tornava recomendável por sua índole dócil e bondosa, e ainda mais por sua dedicação e
zelo no serviço do patrão, cuja afeição com o andar dos tempos foi captando de mais a
mais.

Chegado em S. Paulo e instalado em casa do major, Conrado era considerado


em conta algum tanto menos que um filho, porém bastante acima de simples camarada.
Colocado debaixo do mesmo teto com a filha do major, a formosa e interessante
Adelaide, viva e mútua inclinação para logo os ligou, concorrendo todas as
circunstancias para cimentar entre eles uma dessas afeições intimas e profundas que
jamais se extinguem, laços que não se podem romper sem o mais doloroso sacrifício; é
assim que, de tênues e quase imperceptíveis filamentos, aglomerados durante séculos,
se forma o amianto, que nem o fogo pode consumir. Conrado era companheiro, o
guarda, ou antes o aio, que sempre acompanhava a menina, quando esta ia à escola ou a
qualquer passeio. Por esse tempo ainda o Major Damásio não tinha feito da chácara sua
residência favorita, e morava no centro da cidade, onde tinha o negócio de fazenda seca.
Quando, ao voltar da escola, Adelaide se sentia fatigada, Conrado dava-lhe o braço, e às
vezes o mesmo, quando fazia mau tempo, a carregava aos ombros já bastantemente
vigorosos. Em todos os passeios, espetáculos e divertimentos de qualquer espécie, o
pequeno gaúcho fazia parte da limitada família, que se compunha do major e sua filha,
uma mucama e um moleque fardado de pajem, figurante que ele, a bem do decoro de
sua alta linhagem, nunca dispensava. Essa vida em comum e a imprevidente tolerância
do major, que quase os equiparava deixando-lhes ampla liberdade de brincarem e
passarem juntos, fomentaram em breve tempo a mais afetuosa intimidade entre os dois
meninos, que passavam os dias rindo e folgando no suave abandono dessa quase
fraternal união.

Conrado não sabia ler nem escrever. O major, que no pequeno curitibano só
queria ter um bom capataz, ignorante e egoísta como era, não curou de cultivar-lhe a
inteligência, e só ambicionando aproveitar seus bons serviços, nem mesmo se lembrou
de faze-lo freqüentar a escola. Entretanto, o rapazote sentia-se mordido de inveja,
quando via sua gentil patroazinha abrir um livro qualquer e lê-lo com desembaraço, ou
tomando uma pena entre os dedinhos rosados passear a mão delicada por sobre o papel,
deixando nele gravado o pensamento. Sendo mais velho do que ela, ficava sumamente
envergonhado, e ardia em desejos de tornar-se nesse particular igual àquela a quem
tanto bem queria. Um dia, manifestou a Adelaide o pesar que o acompanhava por não
poder aprender a ler e a escrever.

–Ora! é tão fácil! – disse-lhe a menina. – Se você quer, eu te ensino, e você fica
sabendo tudo o que eu já sei e o que eu for aprendendo daqui por diante.

Conrado aceitou o oferecimento como um presente do céu. Aprender alguma


coisa, e aprender com aquela linda criaturinha, a quem tanto idolatrava, era o mesmo
que ser introduzido no paraíso pelas mãos de um anjo. Inteligente e ávido de saber, o
curitibano em pouco tempo fez progressos que admiraram sua pequena mestra, que
além do ensino lhe ministrava também o papel, tinta, penas, exemplares, etc. Conrado
aproveitava-se com avidez de todos estes favores, e não perdia tempo. Pelo caminho da
escola, em casa nas horas vagas, a sós ou junto com Adelaide aplicou-se por tal modo,
quem em poucos meses igualou-se e veio a tornar-se superior à mestra. Para isso
contribuiu o ser ele homem, mais velho dois anos, de inteligência mais robusta, e
entregar-se ao estudo com muito mais ardor do que a jovem mestra, a qual, como quase
todas meninas, apenas considerava como um passatempo entre as bonecas e os doces.
Em aritmética principalmente, Conrado ganhou logo grande superioridade sobre
Adelaide, de modo que trocaram-se daí em diante os papéis, vindo o discípulo a ser
mestre, e isso com grande contentamento de ambos, sem a menor sombra de inveja nem
rivalidade.

Passaram-se assim dois anos, durante os quais Conrado deslizou vida serena e
inocência e felicidade em companhia de sua gentil patroazinha, sem inquietações no
presente e com os olhos fechados ao futuro. Passou-se mais um ano. Conrado havia
completado os dezesseis anos, e Adelaide achava-se entre os treze e os quatorze. O véu
da inocência começava a adelgaçar-se ante os olhos dos dois adolescentes; através das
flores do presente já começavam a entrever vagamente os espinhos do futuro. Conrado
principalmente já não desconhecia a natureza do afeto que o ligava à sua gentil mestra e
patroa, e compreendia vagamente que aquelas doces relações até ali entretidas não
poderiam continuar por muito tempo; que uma grande distância na ordem social
separava o órfão desvalido, camarada ou capataz da rica e ilustre herdeira de uma
família distinta. Já previa uma dolorosa e inevitável separação, e uma nuvem
melancólica lhe pairava sobre a fronte, evolvendo-a em cismas de desalento e amargura.
Adelaide, mais nova ainda, não sentia bem o peso de sua situação; mas o sentimento
instintivo do recato ia por si mesmo impondo um freio às infantis e ingênuas expansões
que costumava ter com seu companheiro de infância. Já ela não freqüentava mais a
escola, e o major havia definitivamente fixado a sua residência na chácara. Conrado, já
tendo entrado no período da puberdade, era com mais freqüência empregado por seu
patrão, que nele tinha toda a confiança, apesar de sua pouca idade, em serviço de
muladeiro, negócio em que ainda continuava, mais por inclinação do que por interesse.
Desejava também que o seu jovem capataz empreendesse algum negócio por sua
própria conta a fim de ir começando algum pecúlio que lhe garantisse o futuro, e para
esse fim já o tinha abonado com certo número de bestas.
Esses afazeres motivaram freqüentes ausências, e os dois meninos já não se
viam tanto a miúdo, e bem raras ocasiões tinham de se falarem. A sala do major abria-se
às vezes a famílias distintas, e a nobres cavalheiros, que o iam visitar e fazer a corte à
formosa e interessante Adelaide. O infeliz Contado, simples e humilde camarada, não
podia tomar lugar no meio de tão ilustre companhia, e tinha de morder aos beiços de
raiva e de despeito, quando o major às vezes o chamava para trazer um copo de água a
algum jovem elegante, que se repoltreava ufano junto de sua jovem patroa. Além disso,
Adelaide tinha mestres de música, dança, desenho e francês, cujas lições lhe consumiam
largas horas, e Conrado, que não podia tomar parte delas, amaldiçoava do fundo dalma
todos esses professores, e bem quisera manda-los a todos os diabos.

Este afastamento inevitável em que novas circunstancias vieram coloca-los,


enchia de angustias e amarguras o coração do pobre rapaz. Adelaide, de índole mais
leviana e volúvel, se bem que não perdesse o afeto que consagrava ao seu camarada de
infância, achava todavia distração bastante no piano, no estudo e nas homenagens e
gabos, que recebia na sala de visitas. A vaidade afagada lhe enchia a imaginação de
sonhos dourados e fazia com que adormecesse algum tanto o sentimento íntimo e
profundo, que desde a infância lhe germinara no coração. O mancebo, a quem não
escapava essa modificação no procedimento de Adelaide, sentia apertar-se-lhe o
coração entre as garras da mais cruel angústia.

Um dia, estavam ambos no jardim. Adelaide, sentada em um banco de pedra,


aspirava negligentemente o aroma de algumas flores, que Conrado colhera para ela,
passeando olhares vagos pela imensa perspectiva, que se desdobrava a seus olhos,
envolta nos diáfanos vapores de uma tépida e serena tarde de agosto. As vastas lesírias,
que se estendem pelas margens do Tietê, verdejavam além, ampla e viçosa tapeçaria,
marchetada aqui e acolá por moita de coqueiros e bananeiras, no meio das quais
alvejava sorrindo uma casinha, como branca pomba atufada em ninho de musgo.
Adelaide, com o pensamento absorto em vagas cismas, parecia comprazer-se em
acompanhar com as vistas as voltas da corrente preguiçosa do rio através das balsas
verdejantes. Conrado, em pé, colocado em respeitosa distância alguns passos atrás dela,
a contemplava com um olhar repassado de melancolia, que exprimia a um tempo o mais
terno enlevo e o mais amargurado desalento. Ela estava resplendente de beleza; surgia-
lhe o busto por entre as moitas de flores, que a circundavam, como o de uma
hamadríade nos bosques da Arcádia, ou como fada que sai do seio das flores para alar-
se às regiões etéreas. Os raios do sol poente, amortecidos pelos vapores da atmosfera
resvalando-lhe pelo rosto, matizavam sua tez morena e acetinada com uns reflexos
dourados.

Conrado, contemplando-a, cuidava estar vendo um anjo que, abrindo as asas, ia


içar o vôo para o céu e desaparecer para sempre a seus olhos, e, todo embebido naquela
visão que o fascinava, não via, não ouvia mais nada. Adelaide, também profundamente
distraída, não olhava para ele. Um suspiro mal abafado a despertou; volveu de súbito as
vistas para o mancebo, que não teve tempo de enxugar suas grossas lágrimas que lhe
rolavam silenciosas pelas faces.

– Que tens, Conrado? – exclamou Adelaide, consternada e comovida. – Que


tens, que estás assim a chorar?!...

– Eu?... É verdade!... – balbuciou, perturbado, o pobre moço. – Sim, eu estava


mesmo a chorar.

–Mas por que, meu Deus?...

– Ah! nem eu sei... Uma coisa, que eu mesmo não sei explicar, uma idéia triste
veio me apertar o coração. Eu estava olhando para a patroa, bonita como está, mas tão
calada e pensativa, e estava me parecendo que era o meu anjo da guarda, que estendia as
asas para o céu, e me ia abandonar para sempre; fiquei triste, e as lágrima me acudiram
aos olhos.

– Eu também nada tinha de alegre em meu coração, Conrado. Meus olhos se


estendiam por essas várzeas e nada viam; não sei que pensamento sinistro me passava
pela mente.

Dizendo isso, à moça tirou de seu ramalhete uma perpétua, levou-a aos lábios,
e, entregando-a a Conrado, retirou-se precipitadamente.

Ela também tinha necessidade de chorar.

Capítulo XIII

Começa a desilusão
Conrado e Adelaide continuaram a amar-se, mas com essa paixão triste,
reservada e resignada que não amortece, mas antes pelo contrário se fortifica e afervora
com as contrariedades; que estremece, mas não desalenta, com as apreensões do futuro.
Não podiam e nem se animavam a dar franca expansão a um amor, cujas funestas
conseqüências entreviam vagamente. Posto que jovens, eram inteligentes e tinham tino
bastante para calcular as contrariedades e desgraças, que os aguardavam no futuro. Eis
por que os encontramos acabrunhados de tristeza na cena do jardim. Vagos
pressentimentos começavam a enturvar com uma ligeira nuvem de melancolia essas
frontes juvenis, até ali tão serenas e radiantes de felicidade.

Depois que o major teve a desastrada mania de atrair à sua casa uma chusma de
estudantes, bem se pode compreender em quantas novas torturas as inquietações e
ciúmes fariam estorcer-se o agitado coração do mancebo.

Não podia escapar à sua penetração o motivo que levava seu patrão a promover
essas freqüentes reuniões de estudantes de classes elevadas; para ele era evidente que o
major tinha em vistas ajeitar entre eles um bom marido para a menina. Para cúmulo de
angústia ele bem percebia que sua vaidosa patroa se deixava inebriar nos turbilhões de
incenso que a envolviam, e ao menos na aparência abandonava-se de bom grado ao
enlevo das sedutoras homenagens, que todos os dias lhe eram depostas aos pés. Contar
os dias de tribulação que passou, e as noites de angustiosa insônia, que levou nessa
quadra fatal, seria uma jeremíada sem fim.

No dia em que Adelaide recebera a carta fatal, que conhecemos, Conrado estava
em seu quarto, solitário, dando livre curso às suas mágoa e cuidados, quando ela entrou
rápida e inesperadamente com a fisionomia alterada e mais rubra que de ordinário,
trazendo na mão um papel, que amarrotava entre os dedos convulsos. O simples fato de
apresentar-se ela sozinha em seu quarto já era um motivo de surpresa para Conrado,
onde Adelaide depois que se tornara moça, entrava raras vezes, e sempre acompanhada
por alguém. A singular expressão do gesto arrebatado e a fisionomia transtornada da
moça fizeram subir de ponto sua estranheza.

– Que é isso, patroa?... O que há de novo?! – exclamou, levantando-se


bruscamente da cama, onde se achava meio reclinado com a face encostada sobre a
mão.
– O que há, o senhor vai ver já, se quiser ler esse papel – respondeu com um
acento áspero e convulso, entregando o papel a Conrado – Leia, mas só para si; poupe a
meus ouvidos semelhantes infâmias. Que insolência, meu amigo!... Que ultraje!...

Estas palavras – meu amigo – que na expansão de sua cólera escaparam aos
lábios de Adelaide, soaram como um hino mavioso aos ouvidos de Conrado. Travou do
papel e começou a ler com ávida curiosidade os versos injuriosos, de que fizemos
menção. É difícil explicar as impressões múltiplas e encontradas, que semelhante leitura
suscitou de chofre no espírito do mancebo. Por um lado, não podia deixar de indignar-se
contra a audaciosa petulância do perverso, que não hesitara em insultar a uma linda,
inofensiva e cândida donzela, arrancando lágrimas de despeito e vergonha àqueles olhos
formosos, pelos quais era capaz de dar a vida. Conhecesse ele o autor de tão miserável
procedimento, que iria sem hesitar, naquele primeiro ímpeto de cólera , cravar-lhe uma
bala na cabeça.

Por outro lado, porém lhe parecia que aquele injurioso papel era o prenúncio de
inevitável ruptura entre o major e os estudantes, que dali em diante achariam sempre
trancadas as portas da casa e não poderiam mais requestar sua querida patroa. Era um
peso que lhe tiravam de cima do coração, e quase bendizia o maligno estudante, que
teve a satânica lembrança de endereçar a Adelaide tão insultuoso pasquim. O pobre
moço, portanto, depois da leitura, que fez lentamente para dar tempo à reflexão, viu-se
em supremo embaraço, e ficou longo tempo silencioso sem saber o que devia dizer a sua
jovem patroa.

– Então, que me diz a isto?... – perguntou, impaciente, a moça, que esperava da


parte de Conrado uma explosão de invectivas e ameaças ferozes – Não acha um
desaforo inqualificável, um atentado, que não pode passar sem castigo?...

––É verdade, minha bela patroa; isto é revoltante, e no meu entender não pode
partir senão dessa corja de estudantes, que o patrão velho tinha a imprudência de
chamar para a casa.

– Disso estou eu certa; não me diz nada de novo – atalhou Adelaide, com
enfado. – O que eu desejava saber era qual deles foi que teve a petulância...

– Isso há de ser custoso – replicou o mancebo. – Eram tantos, e cada qual mais
insolente...
– Não creia nisso. A nenhum deles maltratei, para dar-lhes o direito de me
desfeitearem assim. Suponho que isso não pode proceder senão daquele maldito bugre,
muito feio e muito fusco, que queria a todo transe ser meu mestre de música. Como o
tratei com o desprezo, que merece, assentou de vingar-se por esse modo infame.

– Pode ser que sim e pode ser que não. A patroa não podia fazer igual agrado a
todos eles; bastava mostrar mais agrado a um, para que os outros ficassem despeitados.
A patroa não sabe com que gente perversa lidava!...

– Mas eu nunca mostrei preferência a nenhum – retorquiu a moça, erguendo a


fronte com altivez.

– Não diga isso; perdão, minha bela patroa, mas às vezes, mesmo sem se querer,
conversa-se mais com um do que com outro. Eu penso que o autor destes versos tanto
podia ser o bugre, de que a patroa falou, como o tal Sr. Azevedo, esse antigo amigo do
patrão, que ultimamente também andava emburrado em razão do... da amizade, que a
patroa mostrava ao sonso do sr. Belmiro.

Até Conrado iludia-se e tinha ciúmes do pobre Belmiro!

– Não sei, mas é preciso saber – respondeu Adelaide, com precipitação. – Fosse
lá qual fosse, é-me absolutamente necessário saber quem foi.

– Isso há de ser bem difícil, minha bela patroa, porque entendo cá para mim que
foi toda essa corja, que de comum acordo dirigiu-lhe essa desfeita.

– Não; isso não é possível... Diga-me uma coisa: o senhor não tem relações com
algum desses estudantes? Não costuma ir a casa deles?...

– Por desgraça minha tenho ido, quando o patrão tem a maldita lembrança de
mandar-me com algum recado ou carta de convite.

– Pois bem, é quanto basta. Nada lhe custa ir a casa de um ou outro, escutar o
que se diz, puxar um ou outra conversa... Por este meio por força havemos de saber
quem foi, e ... ah!...

Adelaide interrompeu-se, exalando um suspiro de indignação.

– E depois, patroa? – perguntou respeitosamente Conrado.

– E depois... eu julgo que o senhor me tem bastante afeição, não é assim?


– Oh! muita! muita! – exclamou o mancebo, quase caindo aos pés de Adelaide.

– Portanto, não consentirá que fique sem vingança semelhante ultraje feito à sua
patroa, não é assim?

–Sim, sem dúvida; mas o que quer a patroa que eu faça?...

– Que me vingue.

– Bem! estou pronto... Mas como e de quem hei de vinga-la?... Se ao menos eu


conhecesse o autor desse miserável papel, eu iria procurar até o fim do mundo; tenho
um bom cavalo, um clavinote e um par de garruchas, que nunca negaram fogo, nem
erraram o alvo...

– Não, não; não é preciso que mate, basta uma sova de chicote, ou umas
bofetadas, em lugar bem público, na cara do insolente.

– Oh! senhora, eu preferiria dar um tiro, ou uma estocada!... Mas se eu nem sei
qual é o insolente...

– Ah!... hesita, não tem ânimo!... – replicou Adelaide, com melancólico desdém.
– Eu julgava que o senhor me tinha algum afeto, que se doía de minhas afrontas; mas
agora vejo o contrário. Adeus!

E Adelaide, voltando as costas com um gesto desdenhoso, ia retirar-se.

–Perdão, minha querida patroa; escute-me ainda um instante. Eu quero, eu devo


mesmo dizer-lhe certas coisas, que talvez lhe esfriem esses desejos de vingança; mas
tenho tanto medo de enfadá-la! – disse Conrado, embargando-lhe a saída.

– Certas coisas!... Que certas coisas são essas? Ficarei enfadada se, se não me
disser.

Antes de ouvir a resposta de Conrado, cumpre-nos interromper aqui o diálogo


entre os dois jovens, para dar certas explicações necessárias para compreender o
seguimento do mesmo.

Conrado há muito tempo, e sem o querer, já sabia que a pretendida fidalguia do


Major Damásio não passava de fumo, que só existia em sua cabeça, fatuidade que se lhe
encasquetara nos miolos e aderira a eles por modo tal, que com o andar dos tempos se
transformara em conscienciosa e profunda convicção. Talvez alguém, para lisonjeá-lo
ou zombar com ele, aproveitando-se da fraqueza de seu espírito, tomara o trabalho de
persuadi-lo, que ele era descendente genuíno do tronco dos Buenos e dos Andradas. Um
dia, nas ruas de S. Paulo, um homem vendo passar o jovem curitibano, e atraído por sua
bonita figura, querendo talvez toma-lo a seu serviço, travou com ele conversação e
perguntou-lhe com bom modo quem e donde era, e em que se ocupava. O adolescente
respondeu franca e lisamente a todas as perguntas, e declarou que estava empregado
como camarada em casa do Major Damásio.

– Oh! muito bem! está otimamente arranjado – disso o tal homem. – O major é
excelente pessoa; só tem o defeito de ser um fanfarrão muito tolo, que tem fumaças de
branquidade e fidalguia, que nunca teve; mas lá isso é uma sandice, que a ninguém
prejudica...

– Como! – exclamou o rapaz muito surpreendido. – Pois ele não é mesmo


branco e fidalgo, como diz?

– Não creia tal – respondeu o homem. – Que é aqui em S. Paulo que não sabe
que ele é filho de um cigano e de uma índia guarani, que foi peão ou domador de burros,
e que se casou com uma mulata da casa de um figurão, que foi quem o fez gente, e que
teve dela uma filha, que... essa, sim, é fazenda fina.

Conrado não contestou, mais a princípio não quis dar inteiro crédito ao dito
desse homem, e daí em diante, em vez de ser interrogado, era ele quem interrogava com
jeitosa precaução a uns e a outros, procurando esclarecer-se sobre a verdadeira
genealogia do patrão. De todos em geral ouviu a confirmação do que lhe dissera seus
primeiro interlocutor, e ficou plenamente convencido que a aristocrática estirpe de sua
idolatrada Adelaide tinha um dos seus troncos imediatos na senzala do cativo e outro na
barraca ambulante do cigano e na taba do selvagem. Essas revelações a princípio não
deixaram de molesta-lo, não porque antevia com mágoa extrema e cruel humilhação por
que teria de passar o coração da pobre moça, quando chegasse ao conhecimento de sua
verdadeira origem, como tarde ou cedo teria de acontecer.

Entretanto, também não podia deixar de comprazer-se no íntimo da alma por


ver sua querida patroa apeada desse aristocrático pedestal, em que a fanfarronice do pai
pretendia coloca-la, vendo assim destruída em seu espírito a barreira que parecia separá-
los.
– Somos iguais – refletia ele – se é que não sou superior, pois não me consta
que meu berço resvalasse pela senzala. A superioridade, que existe, é portanto só da
riqueza; mas eu sei trabalhar, e um dia posso também tornar-me rico.

Essas reflexões vinham dar mais azo e mais livre expansão à paixão do
mancebo, até ali tão tímida e concentrada; sentia porém que Adelaide estivesse ainda
em tão completo engano a respeito de sua genealogia, e como não tivesse ânimo para
desiludi-la, esperava que algum feliz acaso viesse fazer cair-lhe a venda dos olhos.
Quando a viu rodeada dessa turba de moços elegantes que o major costumava reunir em
casa, mil vezes teve ímpetos de ir declarar-lhe tudo; mas continha-se imediatamente;
receava com todo o fundamento não ser acreditado; semelhante revelação podia ser
tomada até como um insulto, e o menos, que lhe poderia acontecer, seria ser enxotado
ignominiosamente da casa. O caso, portanto, nesta ocasião, fazendo chegar às mãos de
Adelaide o horrível pasquim dos estudantes, vinha servi-lo de um modo que
ultrapassava todos os seus desejos e esperanças.

Agora que o leitor já se acha inteirado de quais eram essas certas coisas, que
Conrado tinha tanto medo de revelar à patroa, prossigamos no diálogo, que deixamos
interrompido.

–Certas coisas! – exclamou Adelaide. – Por que não as diz? Pode falar sem
rebuço.

– Não sei se devo dizer... A patroa promete que não se enfadará?

– Pior é tanto rodeio; isto mata-me a paciência. Agora quero absolutamente que
me diga que coisas são essas.

– Mas a patroa promete...

– Prometo tudo; tudo que quiser – atalhou Adelaide, impaciente. – Vamos ao


caso.

– O caso, minha bela e querida patroa, perdoe-me se lhe falo com franqueza, o
caso é este... é que...

Conrado hesitou ainda; a cruel revelação ficava-lhe entalada na garganta sem


ousar querer aos lábios.
– É o que, meu Deus? – gritou a moça, batendo o pé, e mordendo os beiços de
impaciência. – Acabe com isso, senão vou-me embora, e nunca mais falo com o senhor.

Essa terrível ameaça acabou com toda a hesitação de Conrado!

– O caso é – disse ele resolutamente, que isto que dizem os versos não deixa de
ser verdade.

– Verdade!... Isso verdade!... Até o senhor... O senhor também atreve-se a... a


insultar-me!... Ah! – exclamou Adelaide, empalidecendo com os olhos fuzilantes de
cólera.

– Bem sabia eu que ia magoá-la – replicou o mancebo, consternado – mas


perdoe-me, minha boa e linda patroa; não sou eu que o digo; é o povo todo desta cidade.

– O povo todo... E como o senhor sabe?

– Sem o querer, minha senhora; não me leve isso a mal; todos por aí dizem a
quem quer ou não quer ouvir que a fidalguia do patrão não passa de ridícula
fanfarronada, e atestam tudo quanto está escrito nesse maldito papel.

– Basta, basta Sr. Conrado! Faltava-me ainda esta triste vergonha para tornar-
me a mais infeliz das criaturas!

Dizendo isso, Adelaide deixou-se cair sobre um tamborete, que ali estava junto
a uma mesa, e escondendo o rosto entre os braços, desatou a chorar.

– Não chore, minha patroa. Que é isso!... Ah! meu Deus, quanto me arrependo
de lhe ter contado semelhantes mexericos!... Quem dá importância a tais falatórios?!
Tudo isso sem duvida não passa de pura invenção de alguns maldizentes e invejosos,
que não gostam do patrão, por ser possuidor de uma boa fortuna e pai da moça mais
bonita que pisa nas ruas de S. Paulo. E que importa que o seu sangue não seja de
Fidalga? Nem por isso a patroa deixa de ser quem é, a mais bela, a mais nobre, a mais
encantadora das moças... Ah! por quem é! não continue a chorar assim! Desastrado que
eu fui!... Perdoai-me, minha linda patroa; essas lágrimas, que está chorando, me parece
que são espremidas do meu coração.

Estas palavras que Conrado proferia, todo consternado e confundido,


procurando consolar Adelaide, não produziam sobre ela a menor impressão, e parecia
mesmo que ela nem as ouvia. Levantou-se, pálida e trêmula, e sem dizer mais nada ia
retirar-se.

– Está mal comigo? – perguntou timidamente o mancebo.

– Não, - respondeu Adelaide com tristeza – mas bem vê que a notícia que me traz nada
tem de agradável. Quero saber, se sou isso mesmo que o senhor diz.

– Perdão, patroa; não sou eu que digo; é o povo.

– Pois bem, seja assim. Quero e hei de saber se é verdade o que diz o povo. É bom que
cada um conheça o seu lugar.

– Ah! minha senhora, não há motivo para se afligir tanto – continuou Conrado, tentando
ainda um esforço para atenuar o efeito do golpe doloroso, com que acabava de fulminar
a vaidade da moça – O nascimento nobre ou obscuro é coisa que nada significa em
nosso país. Se formos apurar a geração de muita gente graúda que por aí anda
blasonando fidalguia, há de se ver que os troncos, de que descendem, não são em nada
melhores do que o da patroa. Em nossa terra é uma sandice querer a gente gloriar-se de
ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: - no Brasil ninguém
pode gabar-se de que entre seus avós não haja algum que não tenha puxado flecha ou
tocado marimba. O talento, a bondade, e principalmente a riqueza, é que dão
importância às pessoas. A patroa, além de rica, é boa, pura e bela como um anjo, e por
isso há de sempre ocupar na sociedade uma posição brilhante...

–Brilhante!... Ah! sim! servindo de chacota ao povo e de joguete aos estudantes!... Ditas
essas palavras, Adelaide retirou-se bruscamente, deixando Conrado entregue à mais
ansiosa inquietação.

– Que irá ela fazer? – ficou ele pensando – cheio de arrependimento e tremendo pelas
conseqüências da revelação que acabava de fazer. – Se vai levar tudo aos ouvidos do
patrão, estou perdido! Desarrozoado como é ele, principalmente neste particular, vai
fazer uma estralada de mil demônios, e por certo não serei eu o poupado, eu que lhe
machuquei o melindre, que pisei em cheio no rabo da cainana!... Ah! permita Deus que
tal idéia não passe pela cabeça de Adelaide!

Capítulo XIV
Cai de todo a venda

Eram de todo infundados por este lado os receios de Conrado. Adelaide, saindo
do quarto de seu jovem camarada, correu imediatamente para seu aposento a fim de
coordenar seus idéias agitadas, cobrar alguma calma e refletir sobre o meio que
empregaria para ter pleno conhecimento da verdade a respeito da sua genealogia, que
agora via ameaçada de ser de súbito arrojada do solar da mais alta fidalguia à pocilga
das senzalas. Tinha toda confiança em Conrado, e dava inteiro crédito às suas palavras;
mas, no caso melindroso de que se tratava, teve certos motivos para desconfiar e tornar-
se incrédula. Cismou que o moço, não podendo elevar-se até ela pelo lado da geração,
levado talvez também por ciúme e despeito, queria rebaixa-la até a si.

Adelaide não levou muito tempo a refletir; veio-lhe logo à lembrança a preta
Lucinda, a escrava mais antiga do major, cozinheira, copeira e quase mordoma da casa
desde tempos imemoriais, e que impreterivelmente devia saber a genealogia dos
progenitores de sua sinhá moça. Foi logo procura-la e, depois de uma breve conversação
e rodeios preliminares, começou o interrogatório.

–Você conheceu bem mamãe, não é assim, Lucinda?

– Como não, sinhá? Por sinal que era uma mocetona bonita mesmo, sinhazinha
é o retrato dela.

– E minha avó, a mãe de mamãe, você também conheceu?...

– Ah! essa conheci também... era...

A preta hesitou e calou-se.

– Quem era? Fala! Não sabes de que família era? – insistiu Adelaide.

– Não sei, não, sinhazinha; branco é que sabe dessas coisas.

– Nem sabes me dizer se era de boa gente?

– Ah! sinhazinha, pois o sinhô velho havia de casar com gente ruim?...
– Pois escuta, Lucinda; eu já ouvi dizer que papai é filho de um cigano, e que a
defunta mamãe foi forra na pia.

– Cruz! Ave Maria! – exclamou a preta, arrepiando-se toda, mas com certo
risozinho expressivo, que a seu despeito significava muito. – Quem é que anda contando
essas candongas a sinhazinha?... Não sei disso não; cruz!

– Você bem sabe, Lucinda; é porque não quer me contar.

– Qual, sinhazinha; isto é mexerico de gente que não tem que fazer. E
sinhazinha que importa com isso agora?... Deixa a boca do mundo falar. Sinhô é rico,
não é assim? Sinhazinha é bonita, prendada, e eu não vejo aí na cidade moça nenhuma
que lhe chegue aos pés. Tira isso da imaginação, sinhazinha.

Adelaide era de espírito fino e atilado; compreendeu perfeitamente as respostas


evasivas e o riso ligeiramente sardônico da velha escrava; para ela não existia mais
dúvida alguma; o que o povo assoalhava a respeito de sua ascendência era a pura
verdade. Foi violento e profundo o desgosto que sentiu ao ter a certeza da humildade de
sua procedência, mas não foi de muita duração. O major também ficou sumamente
acabrunhado com a chacota dos estudantes e jurou pelas cinzas de seus antepassados
nunca mais abrir sua porta a nenhum deles, nem mesmo que viesse recomendado pelo
compadre Tobias. O pobre Conrado estava como esmagado sob o peso da nova e
tormentosa crise, por que passara a casa do patrão, crise ocasionada a princípio pelo
pasquim dos estudantes, e agravada depois pelas indiscretas revelações que fizera à
patroa. Ouvia os passos do major, a passear de um para outro lado pelas salas e
corredores da casa e a resmungar com voz carregada frases de indignação, que não
podia bem ouvir, e esperava, aterrado, as conseqüências do despeito e da cólera do pai e
da filha. Adelaide também deixava de aparecer, e se havia recolhido, triste e amuada, a
seu aposento a fim de chorar a sós a injúria e humilhação por que passara. Tudo isso
vinha avivar a inquietação do mancebo, que, apesar de lhe ter Adelaide asseverado que
não estava mal com ele, nem por isso deixava de nutrir as mais aflitivas apreensões.

Os leitores notaram por certo o desplante e seguridade com que Adelaide pedira
a seu pai que deixasse por sua conta o negócio dos estudantes; viram também como esse
espírito de vingança achou-se desapontado e encolheu as asas com as revelações de
Conrado e as respostas evasivas de Lucinda.
– Então, minha filha, que fizeste? – perguntou o major, no dia seguinte, à sua
filha, vendo que ela nem tocava em semelhante assunto. – Não me pediste que deixasse
por tua conta o castigo dos biltres que te insultaram?

– É verdade, papai! – respondeu a moça, com ar constrangido – mas depois


refleti que mexer nessa porcaria era dar-lhe vulto e importância, que ela não merece.
Tranquemos a porta a essa canalha, fiquemos em nosso canto e deixemos o mundo falar.
Tudo o mais é desafiar escândalos, que nos virão encher de maior vergonha ainda.

– Como?! – replicou o major, empertigando-se. – Eu amuar-me a um canto e


consentir que vivas também sepultada na obscuridade, a ti que, por teu nascimento, tua
formosura e tuas prendas, nasceste para brilhar no mundo! Não faltam homens de todas
as classes e de todas as condições, que até se darão por muito honrados em freqüentar
nossa casa; homens sisudos, doutores, médicos, militares, e não essa corja de
farroupilhas e pelintras, libertinos sem moral nem religião. Não! nunca! nunca!... E tudo
isso só por causa de um biltre insolente, que nos mimoseou com um papel sujo!... Oh!
não, não, mil vezes não!... Que não conhece o major Damásio Augusto Bueno de
Aguiar e Andrada?

– Sim, meu pai; não duvido do que diz; mas todos esses figurões serão também
capazes de nos atirar lama à cara no dia em que eu não quiser corresponder à... Oh! meu
pai, deixemos de nos intrometer nem com estudantes, nem com fidalgos; fiquemos
sossegados em nossa casa, e deixemo-nos de bazófias. Cada um deve conhecer o seu
lugar; não há coisa pior do que andar alardeando fidalguia, mesmo para quem a tem.

Estas palavras penetraram como lâminas de gelo no coração do major, que


encarou a filha de alto a baixo, cheio de espanto e confusão. Era a primeira vez que a
ouvia falar com tanto desembaraço, tendo em pouca conta e como que pondo em dúvida
a nobreza de sua linhagem. Quem teria transtornado assim as idéias da menina? Não
podia capacitar-se de que a simples leitura de um miserável pasquim a levasse a descrer
da alta procedência de sua genealogia. Entretanto, percebeu que a ilusão, em que
pretendia mantê-la, tendia evidentemente a desvanecer-se, e isso era a mais horrível das
provações por que podia passar a fatuidade do major.

– Então, desconheces a nobreza do teu nascimento? – perguntou ele, querendo


sondar o espírito da filha.
– Não desconheço, e nem conheço, meu pai; e o melhor seria mesmo nada
saber.

A esta réplica, curta e incisiva, o major nada ousou objetar, e embuchou todo
amuado e de mau humor.

Desde esses dia, a casa do major mudou completamente de aspecto; a alegria, o


movimento e a vida que até então ali reinavam foram substituídos por um silêncio
monástico, por uma solidão quase absoluta. A porta da entrada estava sempre trancada,
e não se via mais, às tardes, o bom do major emoldurado em seu alpendre de
trepadeiras, fumando tranqüilamente o seu havana, esperando a chegada de algumas
dessas visitas, que com sua conversação costumavam suavizar-lhe as horas do quilo.

Assim passou-se cerca de um mês, durante o qual a chácara do major parecia


jazer em muda e apática inação, e quem por ali passasse pensaria que os habitantes dela
estavam de nojo pela morte de algum dos membros da família.

O autor e os cúmplices do insolente e horrível atentado, que pôs por terra a


aristocrática prosápia do major, nunca mais lhe puseram os pés em casa; outros
estudantes, porém, alheios a essa trama satânica, ma adoradores apaixonados de
Adelaide e pretendentes às suas graças, lá lhe foram bater nos ferrolhos. Mas Adelaide
não lhes apareceu, e o major os tratou com tão cerimoniosa frieza, que saíram com a
firme resolução de nunca mais lá voltarem.

Belmiro também, que seduzido por falazes aparências ainda nutria algumas
lisonjeiras ilusões, lembrando-se do convite, que tivera para dar lições de violão à
menina, animou-se a ir um dia à casa do major. Não foi bem mais sucedido que os
outros, Adelaide foi também invisível para ele, e o pai só apareceu para declarar-lhe
positivamente que a filha não queria mais estudar violão, e que de mais a mais estava
resolvido a cortar todas as suas relações com estudantes. Belmiro, que estava ao fato das
ocorrências, mas que realmente não tomara parte nelas, antes reprovara alta e
categoricamente o procedimento de seus colegas, começou a balbuciar algumas frases,
tentando em vão justificar-se; seu discurso foi atalhado in limine, e teve de retirar-se
como os outros, inteiramente desapontado e desencantado. No dia seguinte, compôs e
atirou às auras da publicidade algumas estrofes descabeladas, repassadas de fel e
desespero, em que prometia suicidar-se. Mas não consta que cumprisse a promessa, nem
tampouco que seus versos fossem lidos por Adelaide.
Antes de terminar este capitulo, não é indispensável declarar que, assim como
Belmiro, nenhum dos outros seus companheiros, que no começo desta história achamos
reunidos na casa da Rua da Constituição, teve parte na cruel vindita, com que alguns
desalmados procuraram desforçar-se dos desdéns da filha do major.

O Azevedo também não foi entrado nessa trama, pois quando ela se deu, já se
achava ausente em férias.

– Então, como vai a tua Adelaide? – perguntou ele, em março do ano seguinte, a
Belmiro, com quem se encontrou na Academia.

– A minha Adelaide!... Tão minha quanto tua.

– Sim?! Então não prosseguiste com o teu namoro?... Pois é pena; ia tão bem
encaminhado...

– Ora, deixe-te disso, Azevedo? Se foste tu mesmo que atrapalhaste tudo!...

– Como! Eu?...

– Ora, como!... Apresentando lá o Couto.

– Pois que tinha o Couto?

– Que tinha?!... Não te faças assim desentendido.

– Ah!... é verdade!... Agora me lembro; o major, que é todo afidalgado, não


gostou...

– Pois bem, hás de também estar lembrado que, no primeiro dia que lá fui, dei a
D. Adelaide um cravo caboclo, caso de que muito te aproveitaste para manter-me à
bulha.

– Isso é verdade.

– Pois sim; tu fizeste pior. Eu dei-lhe flor cabocla, mas mui linda e mui
cheirosa, e tu lhe ofereceste um verdadeiro caboclo de carne e osso, que a dizer-te a
verdade, não é dos mais lindos, e para que? Para seu mestre de música!... Confessa que
fizeste aquilo por despeito e de propósito para achincalhar a moça.
– Não, meu Belmiro, acredita-me; como vi que ela gostava muito de música, foi
só para tirar-te essa vantagem que apresentei o Couto, compreendes?... Eu queria
reconquistar a posição de que ias me desalojando.

– E com isto produziste a mais temível das crises. O meu cravo caboclo foi o
prólogo desse drama; o teu violonista caboclo produziu o entrecho; o pasquim dos
estudantes trouxe o terrível desenlace.

– Qual pasquim?... Conta-me isso.

Belmiro contou então a historia do abominável epigrama e da ruptura completa


de relações, que produziu entre a família do major e os estudantes.

– Agora é escusado lá ires mais – terminou. – nem o major nem Adelaide


querem ver mais estudantes nem pintados.

– Melhor! – disse friamente Azevedo. – Também aquelas viagens já me iam


enfadando, e roubavam-se muito tempo.

Assim pois, tanto o major e sua filha como eu e o leitor, daqui em diante, ao
menos por muito tempo, vamos nos ver livres de estudantes.

Capítulo XV

Mudança completa de situação

Grave e profunda modificação começou a operar-se desde essa época no


espírito e no coração de Adelaide. Com o cruel desencanto que sofreu, tendo a certeza
que seu berço, longe de ter sido embalado entre as galas da aristocracia, se escondia na
mais humilde obscuridade, ela, acostumada a ser sempre idolatrada, recebendo
quotidianamente as lisonjeiras homenagens de gentis e ilustres cavalheiros, não fez
pequeno sacrifício para acomodar-se com o novo gênero de vida de recolhimento e
solidão, que a si própria tinha imposto, contrariando as vistas paternas. Mas não durou
muito tempo esse estado de angústia e prostração; seu espírito vivaz e feliz e vigorosa
organização não eram feitos para sucumbir ao peso de qualquer desgosto.
Tinha ela inteligência bastante clara, e sabia filosofar maravilhosamente, e bem
depressa compreendeu que lhe não era mais possível contraria a sorte, boa ou má, a que
nascera destinada.

A consciência humana é como um tanque cujo fundo não se pode ver, quando a
água está turvada e revolta, mas sim quando, em estado de perfeita inquietação, se
mostra em toda a sua serenidade e limpidez. É assim que Adelaide, depois que se
recolheu à vida do silêncio e do repouso, livre das distrações, que lhe arrebatavam o
tempo, e das inquietações, que lhe alvoroçavam o espírito, pôde ler distintamente, no
fundo do seu coração, o que realmente ai se achava gravado em caracteres indeléveis.
Reconheceu que amava muito a seu companheiro de infância, que fora esse amor que a
tinha preservado de ligar-se por laços mais íntimos a algum dos amantes que até ali a
tinham galanteado, e que somente a consideração da pretendida desigualdade de posição
social fizera com que até ali ela, procurando iludir-se a si mesma, tentasse em vão
esquivar-se à influência desse sentimento, que desde a infância havia germinado e pelo
decurso do tempo lançado raízes profundas em seu coração. Agora que as revelações de
Conrado acabavam de nivelar as condições de ambos, não tinha mais de que corar,
consagrando os afetos de sua alma a um homem que era seu igual. A esperança de um
amor feliz a bafejava, e parecia-lhe possível conseguir que se pai, desistindo de suas
loucas pretensões aristocráticas, firmasse enfim a felicidade de ambos consentindo em
seu casamento. Em conseqüência, suas relações com o jovem camarada foram se
tornando menos tímidas, e mais assíduas e afetuosas. Adelaide tinha o coração propenso
ao amor e à ternura, e um temperamento vigoroso e ardente, sobre o qual a sensualidade
exercia naturalmente grande domínio. No isolamento, a que se viu condenada, parte por
forças das circunstâncias, parte por sua própria deliberação, essas qualidade ou defeitos,
em vez de se refrearem, desenvolveram-se em toda a sua plenitude, porque acharam
para isso já predispostos condições e elementos os mais favoráveis.

As freqüentes reuniões, que se davam em casa do major, de uma sociedade


espirituosa e alegre, faziam profícua diversão às tendências do organismo de Adelaide;
mas logo que elas faltaram, sua natureza ardente, sanguínea e exuberante de seiva
juvenil, entregue a si mesma, teve de ir cedendo à imperiosa influência das seduções do
sensualismo e dos sonhos inebriantes do coração.
Tinha um coração sequioso de amor; o objeto desse amor já há muito estava
escolhido, vivia junto dela, e fora embalado em sua imaginação desde os sonhos
inocentes da puerícia.

–Há males que vem para o bem – disse ela um dia ingenuamente a Conrado.

– É verdade; mas a que vem isso agora? – perguntou este.

– Pois não compreende?...

– Não.

– No tempo em que eu me julgava fidalga, lhe queria bem, é verdade; mas tinha
não sei que receio ou vergonha de lhe falar nisso. Isso, pode acreditar que era muito
contra a minha vontade; eu vivia constrangida, e era bem infeliz, porque julgava que
estava condenada a casar-me com quem meu pai quisesse; estudante, doutor ou fidalgo.
Isso para mim era um suplício, se bem que não deixasse de divertir-me à custa dessa
gente que se reunia aqui em casa. Hoje não; sou outra; já sei quem sou. O senhor me
entende, creio eu.

– Oh! sim, sim, creio que sim! – exclamou o mancebo em uma efusão de júbilo
que mal podia comprimir. Se não estou enganado no modo de entender suas palavras,
minha querida patroa, sou a criatura mais feliz deste mundo.

– Não se engana; é isso mesmo que o senhor pensa – respondeu corando


Adelaide, e ia retirar-se; mas Conrado a deteve, e, travando-lhe da mão, beijou-a com
ardor.

– Oh! mil graças! – dizia o mancebo, apertando com indizível emoção entre as
suas a mão que Adelaide lhe abandonava. – Mil graças!... Não faz idéia do quanto me
torna feliz.

Depois desta singela e ingênua declaração de amor, feita por meias palavras, os
dois jovens se entregaram sem constrangimento à expansão de um sentimento que, de
dia em dia, se tornava mais intimo e extremoso, conquanto procurassem
cuidadosamente ocultá-lo aos olhos do major, que, entretanto, não era muito perspicaz
para surpreender os segredos do coração.

Adelaide era como o leitor já sabe, de uma beleza plástica e mais provocadora.
O seio túrgido, sempre arfando em mórbida ondulação, parecia o ninho da ternura e dos
prazeres; o olhar, a um tempo cheio de meiguice e de fogo, como que derramava
fulgores divinos sobre toda a sua figura; as faces róseas os lábios purpurinos eram como
esses pomos vedados, que no paraíso seduziram os progenitores da humanidade e
ocasionaram sua primeira culpa; e o porte dotado de elegância natural, com suas
voluptuosas ondulações e meneios graciosos pareciam estar cantando eternamente o
hino de amor e de volúpia; as feições, não muito corretas, eram animadas por uma
fisionomia de tão encantadora expressão, que impunha a adoração, sem dar tempo à
observação.

Conrado, também dotado pela natureza de um porte esbelto e vigoroso, de uma


fisionomia simpática e expressiva, de maneiras lhanas e atrativas, com sua tez de um
moreno delicado, seus olhos negros e cheios de fulgor, havia-se tornado um dos mais
belos e amáveis mancebos, um tipo acabado desses ágeis e garbosos gaúchos, que
vagueiam pelos descampados pampas das regiões argentinas. Era enfim, como bem o
havia dito um estudante, um verdadeiro Adônis americano.

O major, ora trancado em seu gabinete, ora na quinta dirigindo o trabalho dos
escravos, parecia esquecido que tinha em casa uma filha de dezesseis anos em
companhia de um bem apessoado rapaz de dezenove a vinte, e ou porque tivesse nela
absoluta e cega confiança, ou porque não compreendesse quão melindroso e frágil vaso
é a honestidade de uma donzela, não nutria a menor apreensão. A tia Eulália, irmã do
major, essa era de todo incapaz de compreender o que se passava em torno dela, e só
cuidava em dar milho às galinhas e em rezar. A velha escrava Lucinda, a única que
talvez já maliciava alguma coisa a respeito das relações entre os dois jovens, nenhum
interesse nem obrigação tinha de embaraça-las... Debaixo de tão felizes auspícios e com
tantas facilidades, os amores de Adelaide e Conrado deram em resultado o que deixo o
leitor adivinhar.

Conrado, moço dotado pela natureza dos mais nobres sentimentos, cheios de
honra e pundonor, tinha até então adiado o pedido, que pretendia fazer ao major, da mão
de sua filha, e isso de acordo com ela. Pretendiam, antes de dar esse passo, preparar o
terreno, procurando desvanecer as bazófias e prejuízos aristocráticos do velho, e por
meios brandos e suasivos reduzi-lo a sentimentos mais cordatos e razoáveis. Coitados!
quanto se enganavam!... Mal pensavam que era isso uma empresa absurda e quase
impossível. Mas nutriam essa esperança, e isso os desculpa.
Depois de sua falta, porém, Conrado compreendeu e fez sentir à sua amante
que não convinha haver mais dilatação, e que era forçoso resolver quanto antes, de um
modo franco e expedito, as dificuldades de sua situação. O que mais afligia ao mancebo
era seu estado de pobreza; pouco possuía para abalançar-se e pedir a mão da filha de tão
opulento negociante. Era isso só o que o humilhava, porque só nisso consistia sua
inferioridade; quando ao mais, estava pronto a apresentar-se ao major como igual a
igual, embora com isso tivesse de ofender as estólidas veleidades aristocráticas do
patrão. Refletindo nisso, tomou uma resolução inspirada por seus nobres sentimentos.

Muitos negociantes e muladeiros, simpatizando com o seu modo de proceder,


sua honradez e atividade, tinham-lhe por diversas vezes oferecido a bolsa, para que
negociasse por sua própria conta. O rapaz porém tudo havia rejeitado até ali,
pretextando diversos motivos, mas realmente pelo simples motivo que ele não
declarava, de não querer abandonar a casa do pai de sua querida patroa. As
circunstancias agora eram outras; tinha chegado a ocasião de aproveitar-se dos
generosos oferecimentos de seus amigos.

Depois de ter comunicado todos os seus planos a Adelaide, que os aprovou,


apresentou-se ao Major Damásio.

- Patrão – disse ele – eu já estou homem feito; preciso tratar do meu futuro; o
patrão quase que não trata mais de negócios; a minha estada aqui não lhe é mais de
utilidade alguma; e bem vejo que só por pura afeição e generosidade que me conserva
em sua companhia. O patrão tem sido para mim um verdadeiro pai, e portanto é meu
dever pedir sua licença para me deixar sair em negócio por minha própria conta.

– Sim!?... Não acho mau isso – replicou o major, com ar verdadeiramente


paternal – mas o que vai fazer? Onde pretendes ir?

– A Sorocaba ou Curitiba comprar uma boa mulada.

– Deveras!... Mas com que dinheiro?

– O patrão não se embarace com isso; tenho quem me abone.

– E por que não me vieste pedir? Ou em dinheiro ou em abono, bem sabes que
eu não era capaz de negar-te.
– Sei disso, patrão, e beijo-lhe as mãos, mas já lhe tenho sido bastante pesado, e
não tive ânimo de importuna-lo.

– Vá feito; porém se precisardes de mim em qualquer ocasião, conta comigo,


Conrado. Bastante falta me vais fazer; mas não quero atrapalhar a tua carreira. És rapaz
esperto, e tenho esperança de que bem depressa hás de fazer fortuna.

– Deus o ouça, patrão; mas não pense que me despeço por uma vez de sua casa;
apenas der conta de meus negócios, bem ou mal sucedido, é aqui mesmo que hei de vir
apear-me.

– Serás sempre bem recebido. Quando te vais?...

– Hoje; agora mesmo.

– Que pressa!... Pois bem!... Deus te ajude. Adeus!...

– Até à volta, patrão.

Um momento depois, Conrado e Adelaide se abraçavam, despedindo-se às


escondidas, e vertiam no seio um do outro lágrimas amargas entre vagas esperanças e
pungentes receios no futuro. Amavam-se como sempre, mas já não eram felizes como
dantes. A verdadeira felicidade consiste na serenidade da alma, que resulta da inocência
; só quem não vê nas sendas do passado nem um só ponto escuro pode encarar com
tranqüilidade e confiança os horizontes do futuro. Todavia, a esperança ainda os não
havia abandonado e bafejava-lhes a mente com lisonjeiros sonhos de felicidade.

Capítulo XVI

O Hóspede

Passaram-se uns meses de cruel angustia para Adelaide, e de fragueira e


incansável atividade para Conrado. A desditosa moça sentia agitar em seu seio o fruto
da fraqueza que caíra, fatal circunstância que vinha agravar muito sua precária e
melindrosa situação.
Desde que a casa do major se fechou à sociedade, Adelaide se foi habituando a
certo gênero de vida de reclusão e isolamento, que a triste circunstância, que acabamos
de declarar, veio tornar não só cômoda e agradável, como mesmo necessária. Seu trajo
já não lhe merecia os mesmo cuidados e preocupações de outrora. Seus enfeites, rendas,
flores e fitas há muito jaziam esquecidos no fundo do guarda-roupa. O piano, esse
alegre e gárrulo intérprete das alegrias e emoções de outros tempos, tinha emudecido
para sempre. Somente o jardim lhe merecia ainda alguns cuidados e atenções. Ali descia
ela às vezes pela manhã ou pela tarde, envolvida em uma longa mantilha, o rosto e toda
a parte anterior do corpo cobertos com um véu, trajo pitoresco, de que mesmo algumas
paulistas de distinção usavam ainda naquele tempo, e ali passava algumas horas de
saudade e melancolia entre suas flores queridas, únicas companheiras de sua solidão.

O major, homem que só tinha a susceptibilidade da fidalguia, e que


desconhecia completamente a delicadeza dos outros sentimentos e paixões do coração
humano, nem de leve suspeitava o verdadeiro motivo desse melancólico recolhimento, a
que a filha se condenava, e julgando ser ainda o despeito e ressentimento em razão dos
apodos e pasquins dos estudantes, esperava que o tempo viesse por termo a esse triste
estado de misantropia e displicência.

Vendo porém que, com o decurso do tempo, longe de minorar agravava-se de


mais em mais esse estado de tristeza e retraimento, começou a inquietar-se com justa
razão, e com o fim dar-lhe alguma diversão, propôs passeios e distrações, a que
Adelaide obstinadamente se recusou.

Desanimado e desgostoso com tanta relutância o major, cedendo às sugestões


de seu gênio bronco e atrabiliário, que nada compreendia das fraquezas e
suscetibilidades do coração feminino, intimou um dia a sua filha, em tom brusco e
terminante, que escolhesse de duas uma, ou casar-se com um bom marido, que ele não
teria muito trabalho em encontrar, ou recolher-se a um convento. A este novo golpe,
Adelaide ainda resistiu, e a muito custo pôde obter de seu pai que lhe desse tempo para
refletir e dar-lhe uma resposta definitiva.

Passado um mês, pouco mais ou menos, depois desta solene intimativa, em que
uma bela tarde de setembro, apeava-se à porta do major Damásio um garboso mancebo
que, pelos trajos e pela comitiva que o acompanhava, parecia um rico viajante, que
vinha visitá-lo ou pedir-lhe hospedagem. Vinha montado em um lindo cavalo pampa,
ricamente arreado à moda curitibana, com um socadinho e todos os mais jaezes cobertos
de prataria. O jovem viandante trazia também à moda dos guascas um pala listrado
atirado ao ombro, botas de mateiro e chilenas de prata, chapéu preto de feltro, e
pendente ao punho um desses bonitos chicotes com o cabo coberto de um lindo e
delicado tecido de prata, admirável industria dos habitantes de Sorocaba, Curitiba e Rio
Grande do Sul; um cinturão de marroquim apertava-lhe o talhe esbelto. O mancebo era
gentil figura, e envergava com natural elegância e desembaraço todo esse trajo pitoresco
e original. Acompanhavam-no um pajem preto, trajando vistosa libré, e dois camaradas
rebarbativos, com suas garruchas pendentes ao arção, laço à garupa e comprida faca
presa ao cinturão. Logo se via que era um rico muladeiro.

Apenas anunciou-se a chegada do rico hóspede, o major, segundo seu costume


afável e hospitaleiro, fê-lo entrar para o seu gabinete, onde não se achava. Foi grande a
sua surpresa, quando, no belo e elegante mancebo, que com tanto aparato se apeava à
sua porta, reconhecendo o seu jovem capataz, o bom e fiel Conrado. Deu-lhe mil
parabéns, fê-lo sentar com toda a delicadeza e cortesia, felicitando-o do fundo da alma
pelo rápido e prospero sucesso de suas especulações.

– Ao que parece, disse-lhe o major, em tom de benévola zombaria, medindo-o


com os olhos de alto a baixo – fizeste dentro de seis meses, o que muitos não
conseguem fazer em seis anos.

– É verdade, meu caro patrão; comprei uma bonita mulada de mil cabeças, que
andei vendendo pelas províncias de Minas e do Rio de Janeiro. A monção era excelente;
havia muita falta de animais; vendi quase tudo à vista e a bom dinheiro, de modo que
realizei de lucro líquido uns vinte e tantos contos de réis.

– Bravo! Em tão pouco tempo! Bonito negócio! – exclamou o major,


entusiasmado. – Daqui por diante, quero ser teu sócio... Se continuas nesse andar, em
pouco tempo estás milionário.

– Foi Deus e o meu bom anjo que me favoreceram.

– E não pretendes continuar com o negócio?

– Por certo; mas antes de tudo tenho de fazer um pedido muito sério e muito
importante ao patrão. Se nesse pedido eu não for atendido, não sei o que hei de fazer,
porque nesse caso também pouco me importa ser rico ou pobre.
– Pois fala, rapaz, não te acanhes; bem sabes que no meu possível estou sempre
pronto a te servir- disse o major, repoltreando-se em seu assento, com ar protetor, sem
nem de leve desconfiar em que delicada tecla o mancebo ia tocar.

Conrado, no auge do embaraço, não ousava fazer de chofre uma declaração, da


qual dependia todo o sossego e felicidade de sua vida, e procurava em vão proferir
algumas frases preliminares, que prevenissem e preparassem o ânimo do major, o qual
nenhum motivo tinha para julgar favorável à sua pretensão. Mas a emoção e o receio
naquela melindrosa conjuntura, por tal forma lhe perturbavam o espírito, que, nada
podendo fazer, se resolveu a prescindir de preâmbulos e rodeios, articulando seu pedido
nua e simplesmente.

– O pedido que desejo fazer-lhe, senhor major, é a mão de sua filha – disse com
voz trêmula de emoção. – Bem sei que, por minha humilde posição, a não mereço; mas
desde pequenos eu e ela nos queremos, e eu da minha parte farei por alcançar posição
honrosa na sociedade e tornar-me digno...

– Basta! – interrompeu o major, com um brado horrível, pondo-se de pé num


salto, hirto, ofegante, e de viseira carregada, mudando subitamente de tom e de
maneiras. – Basta! É acusado dizer-me mais nada. Não quero passar pelo desgosto de
dar a resposta que merece esse seu pedido. Faça-me de conta que o senhor nada me
disse a esse respeito, e mudemos de conversa.

– Não é possível, senhor major – replicou o mancebo, levantando-se também e


tomando um tom e atitude resoluta. Não é possível; eu preciso absolutamente de uma
resposta qualquer. Não lhe fiz há mais tempo esse pedido por muitas razoes, e
principalmente porque ainda muito moço não podia ter posição nem fortuna, que
compensasse a humildade do meu nascimento; mas hoje, que pouco mais ou menos dou
provas do que valho, julgo-me com algum direito a pedir a mão de sua filha, e desejo
saber se ma concede ou não.

– Não! não! mil vezes não! – bradou o major, em um violento acesso de cólera.
– Que outra resposta poderia esperar de mim o Sr. Conrado?

O mancebo estremeceu como se ouvisse o estalar de um raio. Ninguém melhor


do que ele conhecia a balda de fidalguia do patrão, essa singular monomania que lhe
obcecava o espírito e neutralizava completamente alguns bons instintos de seu coração;
mas ignorava ainda a que extremos ela podia chegar. Bem sabia ele que o Major
Damásio, por efeito de uma cegueira quase voluntária, se julgava descendente das mais
ilustres e antigas famílias paulistanas; mas notando também o extremoso amor que
consagrava à sua filha única, tinha esperanças de que não quereria, contrariando suas
afeições, sacrificar a um vão caprichoso a sua felicidade.

Depôs de alguns instantes de silencio, Conrado procurando dominar seu


despeito e agitação, perguntou ainda com tom civil e respeitoso:

– O patrão não me poderá dizer qual o motivo por que de maneira alguma quer
consentir em meu casamento com a senhora sua filha?...

– Ainda pergunta? – disse o major fitando no mancebo um olhar arrogante e


furibundo.

– Pergunto, sim senhor, porque desejo saber – respondeu Conrado, com toda a
calma.

– Pois deveras não sabe?

– Não, senhor.

– Pois fique sabendo de hoje em diante que um pobre peão, a quem por
misericórdia estendi a mão em Curitiba, só porque hoje possui algumas patacas, não
pode, nunca poderá ser pretendente à mão da filha do Major Damásio Augusto Bueno
de Aguiar e Andrada!...

– Mas senhor major, atenda que não sou eu só que quero e desejo esse
casamento; ela também o quer, e disso depende a sua felicidade.

– Ela o quer!... quem lhe disse isso? Duvido que a filha do Major Damásio
queira se casar com o ex-capataz de seu pai.

– Se duvida, pode perguntar a ela mesma.

– Bem; é o que vou fazer, e se ela disse que sim, não é mais minha filha.

O major com movimento frenético, tocou uma campainha; apareceu uma


escrava, que por sua ordem foi chamar Adelaide, a qual daí a instantes compareceu.
Vinha ela embuçada em sua longa mantilha com o competente véu pela frente, traje que
ela constantemente trazia não só para encobrir o seu estado de gravidez, como também
para não devassar a olhos estranhos a tristeza e abatimento de sua fisionomia. Já sabia
da chegada de Conrado; seu coração batia com violência; em tão críticas conjunturas,
era extrema a sua emoção; ia-se jogar uma cartada, em que se tinha de decidir de todo o
seu destino e fruto de seus furtivos amores se lhe agitava extraordinariamente no seio,
como se pressentisse também toda a angústia da terrível catástrofe que se preparava.
Cumprimentou a Conrado com um triste mas gracioso sorriso; quando porém fitou seu
pai, e notou a torva e ameaçadora expressão de sua fisionomia, todo o seu sangue
refluiu ao coração, seus olhos se turvaram, empalideceu de um modo assustador, e para
não cair viu-se obrigada a sentar-se na primeira cadeira que encontrou. Estes sintomas
de aflição e angústia não puderam ser notados em toda a sua intensidade por Conrado e
muito menos pelo major, não só porque era escassa a luz que reinava no gabinete como
também porque o véu de Adelaide não deixava bem parecer as alterações de sua
fisionomia. Em razão também dessas circunstâncias e da ansiosa agitação em que se
achava o espírito de Conrado, este nem suspeitou o estado melindroso em que se achava
sua adorada patroa.

– Adelaide – disse o major sem dar atenção ao estado de perturbação em que se


achava a filha – o Sr. Conrado, que neste momento diz que pretende a sua mão, vem
pedi-la. Consentes nisso?

– Se não é do desagrado de meu pai – respondeu a moça com voz trêmula e


alquebrada -, com muito gosto...

O major não permitiu que a filha continuasse, e interrompeu-a com o seu


terrível e fulminante – basta!

– Não é e nunca será do meu agrado – continuou ele com voz sacudida. –
Nunca esperei que minha filha desprezasse as homenagens de tantas pessoas de alta
hierarquia para abaixar sua vista sobre um criado da casa! Oh! isto é uma vergonha!
Pensa bem no que dizer e no que pretendes fazer, minha filha!... Queres encher de
desgosto e de vergonha os últimos dias de teu velho pai!?

Adelaide nada ousou responder; escondeu o rosto na matilha, soluçando e


chorando amargamente. Conrado a custo podia conter sua indignação, mas querendo
tentar ainda meios prudentes e conciliadores:
– Senhor major – disse ele, em tom ainda um tanto submisso e respeitoso - não
vejo motivo algum poderoso para que V. S. se oponha por esse modo ao nosso
casamento. Sou de humilde nascimento, é verdade; infelizmente não conheci nem pai
nem mãe; só sei que eram pobres, mas não me consta que tivessem nódoa alguma em
sua vida. Mas o homem faz-se a si mesmo, e eu, pelo que o senhor major tem visto,
posso ainda e tenho boas esperanças de alcançar na sociedade uma posição tão
vantajosa quanto a sua, senhor major.

– Deixemo-nos de vãos palavrórios, Sr. Conrado – replicou o major, num tom


áspero e seco. – Acho até indigno de mim e de minha filha estar discutindo semelhante
assunto. Minha filha nunca se há de casar com um capataz. O que eu disse, disse.

A indignação de Conrado tocava ao seu auge, sua paciência estava quase


exausta; todavia, ainda uma vez conseguiu sopear a sua cólera, e procurou tocar as
fibras daquele coração selvagem e endurecido pela mania de fidalguismo, e acordar nele
sentimentos de amor paterno, falando na mútua afeição que desde a infância os ligara, e
fazendo ver que com sua recusa ia condenar ao mais cruel infortúnio dois corações, que
a natureza e as circunstâncias tinham unido estreitamente com laços que jamais se
poderiam quebrar. O major porém, impacientado e colérico, mal prestava ouvidos às
palavras do mancebo, interrompendo-o a cada passo com expressões ásperas e
grosseiras.

–Que vergonha, meu Deus! – exclamava ele a espaços, passeando frenético e


agitado de um para outro lado do gabinete. – Lamúrias de namorados!... Que infâmia!...
Só esta me faltava!... Guardei a víbora no seio!... Procure noiva de sua ralé.

– A este último doesto, Conrado não pode mais conter-se

– É o que estou fazendo, senhor major, pedindo a mão de sua filha – bradou
ele, com resolução e altivez. – Não vejo entre nós desigualdade alguma, senão talvez em
meu favor.

– O que está a dizer?... Repita, se é capaz! – gritou por seu turno o major,
chegando-se a Conrado com gesto ameaçador.

– Estou dizendo a verdade – replicou o mancebo, sem mexer-se nem pestanejar


– e estou pronto a repeti-la uma e mil vezes, se o senhor quiser. Meus pais eram pobres,
porém livres e honrados, e não consta que nenhum deles fosse escravo, nem cigano.
Em má hora teve Conrado a idéia de proferir tão imprudentes palavras. O
major, que até ali conservara sempre rubra de indignação a sua tez morena, tornou-se
subitamente fulo de cólera concentrada. Quando a cainana assanhada recebe um golpe,
que a mortifica, não se arroja logo sobre o agressor, mas enrosca-se de súbito, alça o
colo e brandindo a língua bipartida o encara com os olhos em brasa, como querendo
devora-lo. Assim o major ferido dolorosamente na mais melindrosa corda de seu
coração, sem nada responder, deixou-se cair sobre uma cadeira, e aí ficou por alguns
instantes, encarando seu interlocutor com olhos sombrios e como petrificado pelo efeito
dessa alusão feroz, com a qual estava longe de contar. Bem conhecia ele a baixa
linhagem, de que procedia sua filha, mas sua estólida vaidade havia produzido em seu
espírito um certo estado de alucinação, que o cegava completamente a esse respeito, e
acreditava o pobre homem que para o povo também a sua verdadeira genealogia andava
escondida nas trevas do passado. As palavras esmagadoras de Conrado, cujo alcance
logo compreendeu, o fulminaram; o suor lhe corria em bagas pela testa, o peito lhe
arquejava convulso, e os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Durou apenas
alguns instantes aquele acesso de cólera abafada; reagiu logo contra ele o orgulho
ofendido.

Capítulo XVII

A explosão

– Então, de mais a mais o senhor – disse o major por fim, com voz rouca e
estridente – veio à minha casa também com o propósito de insultar-me? Bem pouco me
importa, Sr. Conrado, que seus pais tenham sido pobres ou ricos, honrados ou não; o
que sei é que nunca hei de fazer de um simples camarada o marido de minha filha. Com
que cara se apresentaria ela diante dos nobres personagens, que me honram com sua
amizade!... Houvesse o que houvesse entre os dois –tomem bem sentido no que vou
dizer – houvesse o que houvesse entre os dois, enquanto eu vivo for, juro por Nossa
Senhora da Lapa, e dou minha palavra de paulista, Adelaide nunca será mulher de
Conrado! Pode, pois, meu rico senhor, montar em seu cavalo, e dizer adeus para sempre
a esta casa. O que eu disse uma vez, está dito, e não gosto de repetir.

Estas palavras – houvesse o que houvesse – sobre as quais o major carregou


fortemente o acento, como querendo sublinha-la, aterraram os dois amantes, que
trocaram entre si um olhar angustiado. Com efeito nelas o major parecia insinuar que já
sabia a que extremos haviam chegado às relações amorosas dos dois jovens, pelo menos
assim ambos entenderam, e esvaíram-se toda as suas esperanças. Conrado contava em
último recurso, para reduzir o velho a conceder-lhe a mão da filha, revelar-lhe com
franqueza a falta em que haviam incorrido, e esperava que, atentas às circunstancias, o
major, ainda que muito se exasperasse, acabaria por conceder-lhes o perdão, e
consentiria em sanar essa falta pelo casamento, único meio de salvar a honra da filha.
Quando porém ouviu aquelas terríveis palavras pronunciadas de modo sinistro e
inexorável, seu coração esfriou, não teve ânimo de tocar no melindroso assunto com
medo de agravar ainda mais a sorte de ambos.

– Meu pai! meu pai! – exclamou Adelaide, com voz pungente, estendendo
mãos suplicantes.

– Senhor – disse Conrado – que crueldade é esta!... tenha piedade, senão de


mim, ao menos de sua filha!

– Nada de súplicas, nem de lágrimas, que é tempo perdido – replicou


rispidamente o major, estendendo a mão espalmada e voltando o rosto. – Percam as
esperanças e não me falem mais nesses namoricos, que depressa se esquecem. E se não
se podem esquecer, ainda há conventos para ocultar a vergonha de uma, e ainda há
justiça para castigar a audácia de outro. Portanto, recolha-se Sr. Adelaide; deixe-me, Sr.
Conrado; não quero ouvir nem mais uma palavra a tal respeito.

– Perdão, senhor major; há de escutar-me ainda por alguns instantes – disse


firmemente Conrado, colocando=-se em frente do major, que se levantara como
querendo retirar-se. – Visto que sabe que há lei e justiça no país, não deve ignorar
também que sua filha já completou dezessete anos e o que o código dispõe a esse
respeito.

– Ah! – disse o major, recuando um passo e cruzando os braços. – Não sabia


que estava tão adiantado a respeito de idade e do que diz a lei! E é isso que lhe dá
tamanha audácia! Está enganado!... Em primeiro lugar, não quero que minha filha tenha
ainda dezessete anos; e depois, vamos que tenha; quer tirá-la por justiça?

– Sem dúvida, já que não há outro recurso, e estou em meu direito.

– Pois bem! – disse o major dando dois largos passos para um lado e
empunhando duas pistolas, que estavam sobre uma mesa. Sobressaltando com esse
movimento, Conrado levou a mão ao seio e apertou o cabo de uma faca, que trazia presa
à cava do colete.

– Pois bem! – continuou o major, com voz trêmula e sinistra. – Vá; traga os
seus agentes da justiça para tirar-me a filha. Em vez dela, hão de levar-me a mim, salvo
se quiserem levar o seu cadáver.

Dizendo isto, o major apontava as duas pistolas para o peito de Adelaide.

Estas palavras e esta mímica horrível gelaram de pavor o coração dos dois
mancebos. Nada mais havia a esperar. Adelaide, aterrada, levantou-se a custo, lançou
um olhar consternado sobre seu amante, e quase a desmaiar precipitou-se, cambaleando,
para o interior da casa. Conrado tomou o chapéu e o chicote, e, inclinando-se, à porta do
gabinete:

– Senhor major – disse com voz solene – eu parto, com o coração despedaçado;
mas o senhor espere, cedo ou tarde, o castigo do seu indigno e brutal procedimento.

E saiu arrebatadamente.

Tudo parecia estar perdido sem remissão para Adelaide e Conrado. Tanto um
como outro, posto que sabedores da balda do major, estavam longe de prever que ela
pudesse chegar a tal auge de cegueira e de alucinação e degenerar assim na mais feroz
insensatez. Casar Adelaide com um marido de ilustre família e de alta posição na
sociedade fora sempre o sonho dourado da vida do Major Damásio, o remate de sua
felicidade na terra; e esse sonho, que ele sempre afagara na louca fantasia, e para cuja
realização eram todos os cuidados, todas as atenções de espírito, via-o agora esvaecer-se
como fumo, desmanchado pela veleidade, para ele inconcebível, de um mero capataz e
pelo louco capricho e leviandade da filha! Isso vinha esmagar-lhe o coração com todo o
peso de uma tremenda catástrofe, e ainda mais entenebrecer-lhe a inteligência, já de si
acanhada e de pouca elevação, e mais endurecer-lhe o coração, já por natureza pouco
propenso à ternura.
O pasquim dos estudantes apenas fizera passageira mossa em seu ânimo, e não
conseguira senão agitar de leve, mas não dissipar, as fumaças de fidalguia que lhe
toldavam o cérebro. Essa maldita monomania do major já por si só era bastante para
constituir uma barreira de separação, talvez insuperável, entre Adelaide e o jovem
camarada. Depois porém que este, em má hora, levado pela indignação do pundonor
ofendido, teve a desastrada idéia de rememorar-lhe a obscuridade de sua íntima
procedência, e de rasgar-lhe na face o pergaminho de sua imaginária fidalguia, toda a
possibilidade de acordo e conciliação entre eles desapareceu. Ao despeito da fatuidade
ofendida veio juntar-se o mais violento rancor.

As palavras do mancebo foram como farpões envenenados, que se cravaram no


coração do major e nele destilaram o fel peçonhento do mais implacável e profundo
ódio

Em sua violenta exasperação parecia-lhe que semelhante afronta só podia ser


lavada com o sangue do ofensor, e concebeu em seu cérebro escaldado planos atrozes
de perseguição e vingança contra o infeliz mancebo.

Sua infeliz filha também, se não incorreu em seu ódio, teve de sofrer as
terríveis conseqüências de seu vivo e profundo ressentimento. Tendo perdido a
esperança de leva-la a bom caminho segundo as suas vistas, tomou a peito castigar-lhe a
rebeldia embargando-lhe o caminho de tranqüilidade e ventura, que o destino para ela
tinha preparado.

Capítulo XVIII

Conrado, como se pode imaginar, saiu da casa do major com a cabeça em brasa
e com o coração em torturas. Á vista da ferrenha e feroz obstinação do velho, nenhum
outro recurso lhe restava para apossar-se do objeto de seu amor, não um rapto. Conrado
concebeu esse plano, e combinou todas as medidas necessárias para arrancar
furtivamente Adelaide ao poder de seu pai. Para logo, porém, opuseram-se à realização
de seu projeto dificuldades insuperáveis.

Em primeiro lugar, tinha-se tornado impossível toda e qualquer comunicação


com sua amante. O major, com um espírito de previsão e desconfiança, qual não teria o
mais ciumento dos maridos, receando alguma tentativa de Conrado, havia tomado as
mais severas precauções. Adelaide era vigiada de perto, dia e noite, por duas escravas, a
quem o senhor tinha feito restritas recomendações debaixo das terríveis ameaças, e não
podia dar nem receber a menor carta, nem o mais insignificante recado. Quatro
capangas de aspecto feroz e repulsivo, armados até os dentes, haviam sido instalados em
casa, e, noite e dia, faziam boa guarda à chácara, como a um castelo ameaçado pelo
inimigo. Além disso, dois atrevidos e truculentos cães de fila estavam sempre alerta e
prontos a dar rebate ao menor rumor que se desse em torno da casa. Um ou outro dos
capangas rondava continuamente em toda a extensão do caminho, que medeava entre a
chácara e a cidade.

Antes que pudesse empreender qualquer tentativa, chegaram ao conhecimento


de Conrado todas essas formidáveis precauções. Viu que sua segurança e mesmo a sua
vida andavam expostas a grandes perigos. Todavia, durante quinze dias, por si e por
meio de agentes fiéis e dedicados, baldou esforços e diligências a ver se podia entrar em
comunicações com Adelaide, e informa-la do seu intento, sem o que nada poderia
empreender com esperança de sucesso.

Adelaide, vítima da tirania e loucura paterna, vivia em uma reclusão mais triste
e apertada do que uma freira em sua cela, ou uma odalisca no harém. Lucinda, sua
escrava favorita, que mais receio e desconfiança podia inspirar não só pelo afeto e
dedicação que votava a sua senhora como também por sua sagacidade e atilamento,
tinha sido arredada para bem longe.

A tia Eulália, mulher quase idiota, sem alma e sem coração, essa nem mesmo
parecia dar fé do que se passava, e mal notava o estado de tristeza e batimento em que
vivia a sobrinha. Por essa sorte, a mísera moça nem mesmo tinha com quem abrir seu
coração e desabafar suas mágoas.

Conrado desanimou: em desespero de causa, só lhe restava um último, mas


perigosíssimo expediente; era assaltar a chácara a mão armada e tomar Adelaide a viva
força. Não lhe faltavam coragem, disposição nem recursos para tão arriscada empresa, e
moço, no cúmulo da raiva e da impaciência, chegou a afagar o espírito esse temerário
projeto. Refletindo, porém, com mais calma, lembrou-se das terríveis ameaças do
major; ponderou que talvez não fosse possível por em prática, sem efusão de sangue, a
tentativa que poderia custar a vida a ele, ao major e a muitos outros, e recuou
horrorizado, principalmente diante da consideração de que Adelaide poderia ser vítima
da cólera insensata e brutal do pai.

Ainda quinze dias, da mais pungente angústia e ansiedade, se passaram para o


desditoso mancebo, durante os quais seu espírito atribulado não sabia, nem podia tomar
deliberação alguma. Entretanto, chegou aviso a seus ouvidos de que o major, ciente de
suas tentativas para roubar-lhe a filha, estava disposto a mandar quebrar-lhe os ossos, e
mesmo tirar-lhe a vida a fim de faze-lo desistir, de uma vez para sempre, de suas
prevenções. A crônica do major, que corria pela boca pequena, não era muito para
tranqüilizar, sobre este particular; ainda não estavam esquecidas certas façanhas de sua
mocidade, e contava-se com ar de mistério, que para obter a mão da defunta mulher, não
tinha hesitado em mandar para o outro mundo certo rival que lhe fazia sombra. Conrado
não era homem que se arreceasse de perigos e recusasse diante da sanha de facínoras;
mas nada valem a coragem e a valentia contra as insidias de sicários traiçoeiros, e
demais, afrontar o perigo nas circunstâncias em que se achava, era vã temeridade, da
qual nada de bom podia lhe resultar. Assentou, portanto, que o melhor alvitre, que podia
tomar, era ausentar-se de S. Paulo, esperando que o tempo e as circunstâncias, a
reflexão e os impulsos do amor paterno, acalmando as fúrias do major, pusessem termo
às contrariedades, que o assoberbavam.

Uma coisa porém lhe torturava o coração, e quase lhe tirava o ânimo para pôr
em prática essa resolução extrema; era ter de partir sem poder ver a sua idolatrada
amante, sem poder dizer-lhe um adeus de despedida, confirmar-lhe seu eterno amor,
pedir-lhe que o não esquecesse, conforta-lo a sofrer com resignação as adversidades do
presente, esperando que no futuro o céu lhes deparasse quadra mais favorável. Mas
refletindo que, enquanto permanecessem em S. Paulo, jamais cessariam a triste reclusão
e a incomunicabilidade em que vivia Adelaide, e que assim se prolongariam
indefinidamente os sofrimentos dela, sem que ele em nada pudesse valer-lhe, e por esse
modo tanto valia ficar ali como a cem léguas de distância, confirmou-se no propósito
inabalável de ausentar-se.

Antes de partir, escreveu uma longa carta dirigida a Adelaide, em que lhe dava
conta do que pretendera e não pudera fazer depois da cena terrível, em que pela última
vez se viram; confirmava-lhe seu ardente e inextinguível amor, exortava-a a não
desesperar do futuro, e participando-lhe que ia ausentar-se para bem longe, esperando
que o céu se amerceasse deles, acalmando as iras do major e inspirando-lhe sentimentos
mais humanos e razoáveis.

Como era de esperar que, com sua ausência, se relaxasse o rigor da reclusão
incomunicável em que vivia Adelaide, confiou essa carta a um amigo, para que, quando
se oferecesse oportunidade, a fizesse chegas às mãos de Adelaide sua amante.

Conrado desapareceu de S. Paulo sem ter comunicado à pessoa alguma sua


viagem, nem o destino que levava, à exceção do discreto amigo com quem deixara a
carta para Adelaide. Mesmo fora da capital, receava ainda as ciladas do major, cuja
sanha contra ele mais recrudescera, depois que soube de que suas tentativas para roubar
Adelaide. O major, que tinha na cidade e seus arredores uma polícia ativa de
apaniguados e capangas, teve logo informações de seu desaparecimento, mas nunca
pode saber em que direção se havia retirado. Se bem que um pouco tranqüilizado,
todavia, por espírito de desconfiança e precaução, não deixou de manter ainda por
algum tempo certa vigilância e cuidado em torno de sua habitação. Foi só no fim de
quinze a vinte dias, depois de bem verificada a ausência do mancebo, que ele resolveu
afrouxar a rigorosa vigilância exercida sobre a pessoa de Adelaide, e dispensar os
serviços dos capangas, que faziam guarnição à sua casa.

– Minha filha – disse ele, dirigindo-se então a Adelaide pela primeira vez,
desde o dia em que Conrado, pela última vez, lhe aparecera – espero que já estejas
curada da loucura que te passou pela cabeça, de te casares com o ex-capataz de teu pai.
Entretanto, é tempo de tomares estado; se aceitas o marido que eu te escolher, – e a
dificuldade está na escolha –, irei imediatamente tratar disso. Se não, apronta-te e
dispõe-te para entrares no recolhimento de Nossa Senhora da Luz ou de Santa Teresa.
Não quero mais que me faças passar pelo desgosto de te ver dar cabeçadas como essa
que querias dar, casando-te com um camarada, um pé-de-poeira.

– Meu pai – disse tristemente a moça – não tenha o menor receio de que meu
coração se entregue a novos afetos. Sou bem infeliz com o meu primeiro para poder
pensar em outros. O meu desejo é mesmo recolher-me à solidão de um convento,
embora não possa professar, como desejo. Já estou acostumada ao retiro e ao
isolamento. Só peço a meu pai que aguarde isso para daqui a mais alguns meses.
O pai anuiu não de muito bom grado aos desejos da filha, e sem indagar os
motivos que levavam a adiar o cumprimento de sua resolução, desta vez, comovido pelo
estado de melancolia e abatimento em que a via, não ousou contrariá-la.

Entretanto, avizinhava-se o tempo em que Adelaide devia ser mãe; sua situação
tornava-se cada vez mais apertada e melindrosa, e já nem sabia como ocultar à gente de
casa as aparências de sua falta, já muito manifesta a olhos mais perspicazes e
escrutadores do que os do major.

A pobrezinha não tinha com quem se entender, nem a quem confiar seu
coração e os cruéis apuros em que se achava. A reclusão e isolamento, a que seu pai a
condenara durante quase dois meses, foi um mal, que ela aceitou como um favor do céu,
porque assim sem dar motivo a desconfianças, podia esconder-se e subtrair-se às vistas
curiosas; desejaria que se prolongasse por mais algum tempo; mas as circunstâncias
mudaram, e ela se via nos mais aflitivos embaraços. Lembrou-se, então, de pedir a seu
pai que fizesse voltar para a casa a preta Lucinda, única pessoa que conhecia suas
fraquezas, e que lhe podia valer em tão críticas e delicadas conjunturas.

Felizmente foi atendida. Adelaide, com as lágrimas nos olhos, contou tudo à
boa e fiel escrava.

– Não tem nada, sinhazinha; sossega seu coração, que tudo se há de arrumar –
disse ela, procurando tranqüilizar e consolar sua senhora. – Deus é grande, e sua negra
está aí.

Como todos os males deste mundo têm alguma compensação, e nos maiores
infortúnios sempre se dá alguma circunstância favorável para os minorar, aconteceu que
o major, desgostoso com o malogro dos casamentos aristocráticos, que pretendia
angariar para sua filha, e enjoado da vida insípida que levava no retiro de sua chácara,
tomou a resolução, para se distrair, de sair de casa e andar de novo em giro de negócio
como muladeiro. Posto que algumas leves suspeitas lhe assaltassem o espírito a respeito
das relações de sua filha com o capataz, elas foram pouco a pouco se desvanecendo, e à
pouca perspicácia de seu pai, este nem de leve suspeitou o grave e melindroso estado da
filha. Demais, Adelaide já lhe tinha declarado que estava no firme propósito de entrar
para um recolhimento, e o pai, capacitado da sinceridade e da persistência dessa
resolução, perfeitamente tranqüilo a respeito do procedimento da filha durante a sua
ausência, ajustou camaradas, fez todos os preparativos, e partiu para o seu giro,
deixando Adelaide e o governo da casa aos cuidados de sua irmã Eulália.

Capítulo XIX

Mês e meio pouco mais ou menos depois desses acontecimentos, uma jovem e
linda senhora, recolhida em seu aposento, fazia esforços supremos para abafar gemidos
e gritos de dor. Era o fruto de um amor furtivo, não consagrado pelos laços do
matrimônio, que estava prestes a vir respirar o ar da vida; era um pobre anjo, que se via
obrigado a nascer na sombra do mistério para ocultar aos olhos do mundo a falta de seus
progenitores.

Eram onze horas para meia-noite de um dia de novembro de 1847. Além da


moça, achava-se no aposento somente uma escrava idosa, para desempenhar todos os
delicados misteres que exige essa crítica situação. Ela, porém, solícita, diligente e
corajosa, a tudo provia, tudo desempenhava com celeridade e inteligência, já animando
com palavras a jovem parturiente, já multiplicando-se para acudir a tudo com a maior
rapidez e desembaraço.

Um luar esplêndido se derramava pelos vargedos do Tietê, e lá fora enchia de


serenidade e de encantos essa noite, que dentro daquelas paredes, tão angustiosa e cheia
de ansiedade corria para a pobre moça.

Entretanto, a doce claridade, que através dos vidros entrava pela janela, que
dava para o jardim e o pomar, mesclando-se à frouxa luz de uma lâmpada única, que
alumiava o quarto, expandia nele certa calma suave, própria para inspirar conforto e
esperança àquelas duas aflitas mulheres.

Enfim o silêncio, que ali reinava apenas interrompido pelos gemidos surdos e
abafados da paciente, foi quebrado pelos vagidos de uma criança. Era uma linda
menina, que no mistério de uma noite plácida e silenciosa vinha respirar a aura de uma
vida debaixo de tão tristes auspícios. Lucinda pensou a criança com toda a perícia e
delicadeza, como se fora uma parteira profissional, enfaixou-a com todo cuidado, e a
depôs no regaço de Adelaide, que a beijou, não com esse sorriso de inefável beatitude
que banha os lábios da jovem mãe, que vê entre seus braços o fruto de seu amor, mas
por entre um véu de lágrimas. Ah! por certo não podia beijar com alegria aquela, que o
destino arrancava do seio materno para passar a braços estranhos e desconhecidos.

O calor abafava dentro do estreito quarto; Adelaide pediu a Lucinda que


entreabrisse um pouco a vidraça, para renovar a atmosfera e respirar um ar mais livre. O
ar estava tépido e parado; nem brisa nem vapor algum girava no ambiente, de modo que
pudesse comprometer a saúde da mãe ou da criança. Lucinda abriu com precaução a
vidraça. Um hálito embalsamado, não de aromas acres e ativos, mas de suaves e pouco
sensíveis emanações de flores e folhas agrestes, entrou pela janela, refrescando a
atmosfera do aposento. Ao mesmo tempo, ouviram-se os ecos melodiosos de um
descante ao longe, pelas ribas do Tietê.

Era, provavelmente, alguma serenata de pescadores ou estudantes, que,


aproveitando a serenidade da noite e a beleza do luar, sulcava as águas preguiçosas do
rio paulistano, ao som de barcarolas e instrumentos.

– Que bonito! – exclamou a preta, deitando olhos curiosos para fora da janela.
– Se sinhazinha pudesse ver como está bonita a noite!... Está tudo tão sossegado!... O
céu tão limpo!... Meu Deus! que noite tão clara, tão serena e tão cheirosa!... E esta
cantiga?... Não está ouvindo, sinhazinha?... É um céu aberto!... Tudo isso quer dizer
fortuna para a menina que nasceu.

– Quem sabe, Lucinda?... Pode ser feliz quem nasce nestas circunstâncias, e
nunca talvez terá de conhecer pai nem mãe? Pobrezinha! – suspirou a moça, apertando
ao seio a criancinha e banhando-a de lágrimas.

– Ah! sinhazinha, para que há de estar a chorar assim? Deus é de misericórdia;


sua filhinha há de ser feliz, muito feliz; é sua preta que lhe afiança.

– Deus te ouça – murmurou a moça, alquebrada pelos sofrimentos e trabalhos


do parto, daí a instantes adormeceu profundamente.

Já o dia não estava muito longe de alvorecer. Chegava a hora propícia de


Lucinda pôr em prática o plano, que já tinha concebido e comunicado à sua senhora; era
chegado o momento em que a boa e delicada escrava, com as lágrimas nos olhos, tinha
de cumprir um triste e dolorosíssimo dever. Lucinda, com muito instinto e delicadeza,
que nem sempre se encontra mesmo entre pessoas de fina educação, não quis despertar
Adelaide; pelo contrário, aproveitou-se daquela hora de sono profundo e reparador, que
de ordinário costuma durar longo tempo, para levar a criança ao triste destino a que
nascera condenada, sem que a mãe passasse pela dor de tão acerba separação. Não tinha
tempo a perder; envolveu cuidadosamente a recém-nascida embaixo de sua mantilha de
baeta, tomou em uma das mãos um embrulho, que continha algum enxoval para a
criança, e saiu misteriosamente com seu melindroso fardo. Ao chegar à estrada que
conduzia à cidade, em vez de encaminhar-se para ali, tomou a direita para o lado do
caminho que se dirige a Jundiaí.

Depois de ter andado cerca de um quilômetro naquela direção, via-se naquele


tempo, à beira da estrada, uma pequena casa térrea de modesta aparência, mas cômoda e
asseada, situada a pouco mais de meia légua do centro da cidade. Junto dela havia um
pequeno curral, e no fundo um belo jardim de flores e hortaliças; em torno, viam-se
algumas nédias vacas ruminando tranqüilamente, porcos, galinhas e outras criações
domésticas. Tudo isso indicava que o dono ou dona da casa era pessoa industriosa e
diligente, e gozava de uma tal ou qual abastança, o que não era muito comum naquela
época nos arredores da formosa Paulicéia.

A proprietária – pois era uma mulher – vulgarmente conhecida pelo apelido de


Nhá Tuca, diminutivo familiar de Gertrudes na província de São Paulo, era uma mulher
de seus cinqüenta anos, seca e alta, que fora sempre celibatária, de maneiras um pouco
ásperas e desabridas; gozava, porém, de respeito e consideração entre a vizinhança, e
era tida em conta de uma boa e honesta senhora, reputação que devia talvez mais aos
seus haveres do que a qualidades reais. Devia a pequena fortuna, que possuía, à herança
de um irmão, que, tendo morrido intestado, sem outros herdeiros ascendentes,
descendentes nem colaterais, a deixou senhora de uma boa dúzia de escravos de um e
outro sexo, moços e robustos todos.

Os escravos homens vendeu-os todos ela logo, alegando que, na qualidade de


mulher, não podia governar homens. Ficando com sete raparigas, crioulas e mulatas,
todas no viço da idade, bem feitas e vistosas, comprou a quinta em que a encontramos,
onde também vendia aguardente, fumo, quitanda, e dava pousada aos passageiros.

O amor ao dinheiro, o desejo de engrossar cada vez mais o seu já sofrível


mealheiro, era o móvel principal de todas as suas ações. Por isso andava em contínuo e
incansável movimento, desde o primeiro albor do dia até horas avançadas da noite. As
escravas também, posto que bem tratadas e garridamente vestidas, trabalhavam
incessantemente sempre debaixo de suas vistas, e não lhes ficava tempo de sobra para se
entregarem à gandaia. Um lucro porém mais avultado lhe provinha das setes escravas;
há doze ou quatorze anos, que lhe pertenciam essas escravas, tinham-lhe dado já umas
vinte e tantas crias lindas e vistosas, as quais, logo que chegavam à idade de dez anos, a
boa mulher tratava de vender pelo melhor preço que podia. Seu estabelecimento bem se
podia chamar um viveiro de escravos. Na época em que nos achamos, já ela havia
melhorado consideravelmente o estado da burra, e tinha a casa cheia de uma chusma de
crianças da mesma procedência e condenadas ao mesmo destino. Parece que ela
conhecia um anexim egoístico e desumano de nossos antepassados, que diz: – crioulos,
cria-los e vende-los, e sabia executa-lo, à risca.

Foi para essa casa que Lucinda, ao ganhar a estrada, se dirigiu com seu débil e
precioso fardo. A preta conhecia Há muito a velha Nhá Tuca, e posto que não
conhecesse íntima e particularmente seus costumes e viver doméstico, sabia, pela voz
pública, que era uma senhora de bem, e mesmo de sentimentos caridosos. Demais,
estando ali na vizinhança e em lugar retirado, sua sinhazinha podia lá ir de quando em
quando, em ar de passeio, e gozar o prazer de ver e afagar sua filhinha, sem que
ninguém pudesse desconfiar coisa alguma. Nenhuma casa, portanto, lhe pareceu, e com
razão, mais apropriada do que a de Nhá Tuca para lhe ser confiado tão sagrado depósito.

À porta dessa casa, Lucinda parou e escutou; a primeira alva do dia começava a
despontar; tendo percebido rumor dentro, e vendo que a gente da casa começava a
despertar, depositou a criança e o embrulho no limiar da porta; e afastou-se; mas apenas
achou-se a uns cem passos de distância, parou e, escondendo-se entre uns arbustos à
beira do caminho, ficou à espreita do que sucederia. Passados poucos minutos, a porta
abriu-se, e ela viu ser recolhida a criança com grandes mostras de surpresa e causando
como era natural, grande alvoroço em toda a casa, mas segundo lhe pareceu, com ares
de carinho e compaixão; e voltou para casa, tranqüila e satisfeita.

Já o sol ia bem alto, quando Adelaide despertou de seu longo e profundo sono.
Posto que prevenida e cúmplice na sorte que se ia dar à sua malfadada filhinha, seu
coração constrangeu-se amarga e dolorosamente, quando, ao acordar, não a viu a seu
lado e se viu mãe sem filha.

À tarde Lucinda saiu, e foi em ar de passeio, até a casa de Nhá Tuca com o fim
de saber novas da pequena exposta; para lá se dirigiu para entrar na bodega como quem
quer fazer alguma compra, mas com o fim principal de puxar conversa e ouvir novas da
criança, que nessa madrugada lá havia depositado. Mas antes que o fizesse, olhando
pela porta aberta de uma saleta da frente, diante da qual tinha de passar para chegar à
venda, deu com os olhos em um pequeno féretro posto sobre uma mesa no meio da sala,
no qual se achava amortalhada uma criancinha com simplicidade e pobreza, mas com os
enfeites e flores do costume. A esse espetáculo Lucinda sofreu tão violento abalo no
coração, que esteve a ponto de desfalecer; todavia, esforçou-se por dominar sua
comoção e chegou-se à porta para examinar o cadáver. Era evidentemente uma criança
recém-nascida, de cor mimosa e branca, como a sua enjeitadinha; não podia ser senão a
filha da sua sinhá. Para melhor verificar o caso, entrou na venda, e aí ouviu a triste
confirmação do que já tinha como quase certo.

– Enjeitaram aqui hoje, pela manhã – dizia Nhá Tuca à Lucinda e a outros
curiosos que se achavam na venda –, uma pobre criancinha muito bonitinha. Coitada!
tive uma pena dela!... Não sei como há gente neste mundo que tem ânimo de enjeitar
seus filhos!... E eu também tomara poder cuidar na minha vida; não tenho tempo para
andar criando os filhos dos outros, não. Mas assim mesmo pobre, como sou, não quis
desamparar a pobre criança, e estava pronta para criá-la, porque, até esta mesma noite,
me pariu aqui em casa uma mulata, que bem podia dar de mamar a duas crianças... Mas,
mecês que querem?... O maldito ou a maldita, que trouxe a criança, parece que a
carregou aos trambolhões, como quem carrega um porco; de maneiras que a coitadinha
da criança chegou toda machucada, e com o umbigo esvaindo em sangue!... Está! E não
houve mais remédio! Ali está motinha, coitada!...

Nesse ponto da narração, Lucinda arrepiou-se, e esteve a ponto de protestar


contra as palavras de Nhá Tuca. Tinha a consciência de que havia carregado a menina
com todo o cuidado e mimo possível, e que a largara sem a mínima lesão à porta da casa
de Nhá Tuca. Mas Lucinda era discreta, e bem via que a menor palavra que dissesse
podia dar lugar a suposições, não só da parte da velha dona da casa, como também de
toda aquela gente abelhuda e maliciosa que ali se achava. Entretanto, não podia deixar
de dar crédito ao que dizia a velha, pois ali estava bem patente a prova irrefragável, o
cadáver da criança. Refletindo um pouco, passou-lhe rapidamente pela idéia que, sem
dúvida seriam as escravas da casa que, entrando com a criança aos boléus e passando-a
de mão, estouvadamente, e em cuidado algum, a tinham feito morrer. E vendo-as do
lado de dentro do balcão, a escutarem de parte a conversação, Lucinda relanceava sobre
elas olhares arrevezados e furibundos.

– A menina – continuou Nhá Tuca – ali pelas dez horas, mais ou menos, entrou
em convulsões, e não houve chá, fomentação, nem benzedura que eu não fizesse; nada
pôde lhe valer. Ali pela volta do meio-dia entregou a alma a Deus. Não sabia se era
batizada, e portanto, aqui nesse ermo, onde a gente não encontra, quando quer, nem
padre, nem surjão, mandei chamar um vizinho para batizá-la. Graças a Deus, não
morreu pagã, e vai ser enterrada em sagrado na Igreja de Santa Ifigênia. É uma despesa
que Deus sabe quanto me custa – terminou soltando um estrepitoso suspiro. – Mas seja
tudo pelo amor de Deus!

Lucinda voltou para casa, a passos lentos e com o coração repassado de


amargura, estudando um modo de dar a triste nova à senhora, de maneira que não a
chocasse muito. Deu-a por meias palavras, mas Adelaide a compreendeu logo, e
exclamou, cheia de angústia:

– Meu Deus! meu Deus! levaste minha filhinha!... Bem! é um anjo, que
chamaste para perto de ti, para interceder por mim, pobre pecadora. Agora, chama-me
também, e leva-me para junto dela.

– É verdade, sinhazinha; aquela música, que estava tocando, quando ela nasceu,
não era cá da terra. – Eram os anjos do céu que estavam esperando sua irmãzinha –
disse Lucinda. E ambas puseram-se a chorar amargamente.

FIM DO 1º VOLUME

ROSAURA, A ENJEITADA
BERNARDO GUIMARÃES

Tomo II

CAPÍTULO I

DOZE ANOS DEPOIS

Eram passados doze anos, depois dos acontecimentos que acabamos de narrar.
Em uma sala mobiliada com bastante luxo, se bem que não com muito gosto, em um
sobrado da Rua de S. Bento, na cidade de S. Paulo, uma linda menina de dez anos
estava sentada ao piano, dedilhando, com volubilidade e bem pouca atenção, as lições
de Hünten. À direita, ao pé dela, achava-se também sentada em uma cadeira, com a mão
na face e acotovelada sobre a mesa do piano, uma senhora que poderia ter, quando
muito, trinta anos, e que parecia observar, com certo orgulho e complacência, o estudo
da gentil menina. Era uma senhora morena, de fisionomia regular e simpática, de
grandes olhos negros e lânguidos e que tinha bem conservada ainda uma beleza que, no
viço dos anos, devia ter sido das mais encantadoras. Pelo primoroso cuidado com que se
trajava, pelas maneiras e ademanes um tanto afetados, via-se que ainda predominava
nela esse fundo de vaidade inseparável das moças formosas, mesmo quando essa
formosura já vai declinando para o ocaso. A desta, porém, ainda não declinava; nem
cãs, nem rugas, nem macilência denunciavam nela a época da decadência. Não era já a
tenra e mal aberta flor, brilhante de viço e frescura e ainda rociada das pérolas da
aurora; mas sim a flor que alardeia, desabrochadas em toda sua plenitude, as pétalas
formosas ao fulgor de um belo sol de estio.

Brincavam também em torno dela, pela sala, entrando e saindo, mais três
crianças de mais tenra idade, interrompendo a cada passo com suas travessuras o estudo
da pianista, que em vão se zangava e ralhava com elas.

– Estela - disse a moça com voz suave, estendendo a mão e fazendo parar de
chofre os róseos dedinhos da menina, que esvoaçavam ligeiros como borboletas sobre o
teclado – estás hoje muito rudezinha; disseste muito mal esse último compasso; repete
ainda uma vez; não quero que a mestra venha ralhar contigo.

– Ora, mamãe! – replicou a menina, dando um muxoxo. – estes meninos estão a


toda hora me atrapalhando... Também não sei por que é que papai hoje está tardando
tanto.

– Ah! logo vi; teus dedos estão correndo pelas teclas, enquanto teu sentido
mesmo anda bem longe, tontinha!

– Não, mamãe; estou esperando papai para jantar; estou com saudade dele, e
também com fome. Olha, mamãe – acrescentou, apontando para um lindo pêndulo que
estava sobre um aparador, – já são quase quatro horas.

– Qual saudade, nem fome!... Estás com sentido é na mulatinha, que teu pai foi
comprar para ti, e que prometeu trazer hoje. Sossega esse coraçãozinho, que ela há de
vir; se não for hoje, há de ser amanhã, porque já está comprada e paga.

– Ah! já faz hoje mais de oito dias que papai está comprando essa mulatinha, e
nunca mais ela vem.

– É porque ainda não tinha encontrado uma que servisse; mas agora já achou, já
comprou, e há de vir.

– Bravo! bravo! mamãe! - exclamou Estela, saltando do tamboretinho e indo


envolver com os braços o colo da mãe, encarando-a tão de perto, que quase a beijava. –
Ela é bonitinha? Já é grande? .. Como se chama? Eu queria que ela fosse do meu
tamanho. Mamãe há de dar a ela um vestido bem bonito para ela andar comigo na rua,
não há de, mamãe?

– Hei de, hei de, sim, minha filha. Arre lá! sufocas-me com tantas perguntas.
Nesse ponto da conversação, ouviu-se rumor de gente que vinha subindo a
escada.

– Escuta, – continuou a senhora, – há de ser teu pai, que chega.

Estela e seus irmãozinhos correram logo para o topo da escada; a mãe deixou-se
ficar sentada em seu lugar. Daí a instantes, entrou na sala um homem de bela presença e
elegantemente trajado.

– Entra, Rosaura; é aqui que está tua senhora dizia ele, voltando-se para trás.

Entrou logo após ele, acompanhada pelas crianças, uma linda criatura, em cuja
descrição é mister determo-nos um pouco. Era uma menina que parecia ter quatorze
anos, de belo porte, cabelos de azeviche, não mui finos e sedosos, mas espessos e de um
brilho refulgente como o do aço polido. Os olhos grandes e da mesma cor dos cabelos
tinham tal expressão de ingenuidade e doçura, que captavam logo a simpatia e afeição
de todos. A boca pequena, com lábios carnudos do mais voluptuoso e encantador
relevo, formava com o queixo, algum tanto pronunciado, e o nariz reto e afilado, um
perfil das mais delicadas e harmoniosas curvas. A tez do rosto e das mãos era de um
moreno algum tanto carregado; mas quem embebesse o olhar curioso pelo pouco que se
podia entrever do colo, por baixo do corpilho do vestido, bem podia adivinhar que era o
sol, que a tinha assim crestado, e que sua cor natural era fina e mimosa como a do
jambo. Não trazia mantilha, esses dois côvados de pano ou baeta, em que não andou
tesoura nem agulha, e com que as escravas e as mulheres de baixa classe, em S. Paulo,
usavam embrulhar a cabeça e os ombros; em vez dela trazia, sobraçado, um bonito chale
de lã, e trajava vestido cor-de-rosa; a linda e opulenta madeixa era o único ornato de sua
cabeça, e os pés calçavam chinelos de marroquim vermelho. Trajada com tal singeleza e
dotada de tanta graça e formosura, oferecia um interessante e gentil modelo de
camponesa, digno de ocupar atenção e o pincel do mais hábil artista.

Os meninos rodeavam a rapariga com ar de estupefação e a contemplavam com


a mais viva curiosidade. Ela parou defronte da senhora, fitou-lhe os olhos meigos, e
tomou-lhe a bênção, com um ar ao mesmo tempo terno e submisso. Ao pôr os olhos na
menina, a senhora sentiu-se assaltada de estranha emoção, ou porque a simpática
fisionomia da escrava e a encantadora ingenuidade, que respirava em toda sua angélica
figura, lhe tocassem o coração, ou porque o seu lindo rosto lhe despertasse nalma vaga
reminiscência de alguma, pessoa que conhecera. Enfim, não podia capacitar-se de que
aquela formosa e interessante rapariga fosse a escrava destinada à sua filha.

– Que menina é esta que o senhor nos traz, Sr. Morais? – perguntou ela ao
marido. – Que é da escravinha, que está sempre a prometer à Estela? Ela está sempre a
amofinar-me com suas impaciências.

– Pois não está ai diante de teus olhos?! – respondeu o marido, apreciando com
desvanecimento a surpresa da mulher. – Eu tinha prometido à Estela uma jóia, e não aí
qualquer crioula beiçuda, ou mulata encarapinhada. custou-me, porém sempre achei.
Que tal te parece? . . .

– Muito lindazinha. Como se chama?

– Rosaura.

– Rosaura!.. Até o nome é bonito. Vem cá, Rosaura; não sou eu a tua senhora; tua
senhora é esta menina – acrescentou, pegando Estela pelo braço e colocando-a defronte
de Rosaura.

Então, a gentil escravinha, com singeleza e desembaraço infantil, acocorou-se


sobre o largo tapete junto ao piano, sentou Estela sobre o seu regaço e, envolvendo-a
com os braços, beijou-a em ambas as faces, exclamando:

– Esta é que é a minha sinhazinha! ... Como é tão bonitinha!. . .

A linda escrava também nesse momento sentia banhar-se-lhe o coração em


eflúvios de estranha ternura, que lhe umedecia os olhos, e ora acariciando a filha, ora
olhando para a mãe, julgava-se como que arrebatada a um mundo estranho. Estela
retribuía com mudos afagos as carícias da escrava. A senhora, com a face na mão,
contemplava com a mais benévola e terna complacência aquela cena encantadora, e não
se fartava de olhar para Rosaura, que com modos tão meigos e naturais lhe afagava os
filhinhos, como se já os conhecesse de longa data.

– Está bom – disse a senhora, levantando-se.

São horas de jantar. Estela, vai chamar Lucinda.

A menina correu para o interior da casa, e daí a momentos reapareceu com a


preta velha, que já conhecemos.
– Lucinda – disse a dona da casa – leva esta menina para dentro, mostra-lhe
toda a casa, e trata bem dela; de hoje em diante, ela faz parte da família; é a mucama de
sinhá Estelinha.

A preta estatelou os grandes olhos esbugalhados sobre a rapariga.

– Hé! há! – exclamou ela, admirada. – Como é isso, sinhá! Pois essa menina é
cativa mesmo?.. É a mucama que sinhô comprou?!... Cruz!... Parece mais outra
sinhazinha. Vamos, minha filha, vamos para dentro – continuou Lucinda, tomando a
mão de Rosaura e conduzindo-a para o interior da casa. Os meninos as acompanharam,
pulando de contentes.

– Não achas, Adelaide – disse Morais à sua mulher, logo que se acharam sós –
não achas que não era possível encontrar peça mais linda para a nossa Estelinha?

Como ela ficou satisfeita com a sua faceira mucama!...

– Na verdade, é muito linda criatura, – respondeu Adelaide. – Até faz pena ver
no cativeiro uma menina tão mimosa. Se ela for boa mesmo, como parece, hei de tratá-
la com todo o carinho, mais como uma companheira, uma irmã de meus filhos, do que
como escrava; e até, se for possível, o meu desejo é dar-lhe a liberdade. Uma criatura
tão bela e interessante não nasceu para o cativeiro.

– Oh! quanto a isso, mais devagar, minha querida. Poderemos forrá-la pelo
tempo adiante, se ela o merecer. custou-nos uma soma considerável, e não é para já
largarmos mão dela. Não pude arrancá-la das garras do casmurro do senhor, senão por
dois contos e quinhentos mil-réis. Como teu pai deu-me carta branca e disse-me que não
olhasse a dinheiro, mais que me pedissem, eu daria.

– Muito mais que isso vale ela – retorquiu Adelaide. – Por mim, não a largarei
mais nunca, nem por quanto dinheiro há neste mundo.

CAPÍTULO I I

O SR. MORAIS
Agora, que temos apresentado ao leitor Adelaide casada e com quatro filhinhos,
vivendo com certo luxo e ostentação no centro da cidade, tranqüila e feliz, ao menos
aparentemente, no seio de sua família, forçoso nos é voltar atrás uns doze a treze anos, a
fim de explicar que fatos se deram para operar essa transformação no destino de uma
mulher, que tanto nos interessa.

O Major Damásio voltara de sua excursão comercial depois de um ausência de


seis a sete meses. Encontrou Adelaide já completamente restabelecida dos incômodos
da maternidade, se bem que acabrunhada ainda por certo langor e abatimento,
provenientes mais dos sofrimentos do espírito, do que de incômodos físicos, e não lhe
entrou pela mente nem a mais leve suspeita do misterioso acontecimento que lhe tinha
maculado o santuário da família. Felizmente, também nada tinha transpirado em público
a respeito da fraqueza da infeliz moça. A discrição de Lucinda, a vida solitária e retraída
de Adelaide, a imbecilidade da tia Eulália e a morte imediata da pobre criança, que caiu
do seio materno à sepultura, fizeram com que o público, sempre ávido de escândalos,
ficasse em perfeita ignorância desse fato, e a filha do major conservasse intacta e
imaculada sua reputação aos olhos do mundo.

Adelaide não falou mais no seu propósito de entrar para um recolhimento, ou


porque de fato semelhante resolução, não sendo firme nem sincera, se tinha desvanecido
em seu espírito, ou porque, não tendo conseguido riscar do coração a lembrança de seu
amante, queria ganhar tempo, nutrindo a esperança de poder talvez, um dia, unir ao dele
o seu destino. O major também, por sua parte, nem de leve tocava em tal assunto. Tendo
para si que a filha se achava inteiramente curada da louca paixão, que concebera pelo
jovem capataz, não perdia a esperança de vê-la, um dia, casada com algum alto
personagem, que viesse dar mais honra e lustre à sua árvore genealógica.

Conrado, saindo de S. Paulo, em uma peregrinação sem rumo e sem destino


certo, de diversas localidades, em que se achava, tinha por vezes dirigido cartas à sua
amante, para serem entregues cautelosamente por intermédio de terceiro; mas
infelizmente nenhuma delas, à exceção da que escrevera antes de partir, comunicando-
lhe a sua retirada de S. Paulo, ou porque fossem interceptadas em virtude de precauções
tomadas pelo major, ou por qualquer outra fatalidade, pôde chegar às mãos de Adelaide.
Esta também se via na impossibilidade de escrever-lhe por não saber o que era feito
dele, nem a que ponto dirigir suas cartas.
Assim se passaram perto de dois anos, sem que se desse alteração alguma na
triste sorte de Adelaide, sem que ela pudesse obter a mais vaga, a mais ligeira
informação a respeito do destino de Conrado. No fim desse tempo, porém, espalhou-se
em S. Paulo a notícia de que Conrado, girando em negócio de muladeiro pela província
da Bahia, havia falecido no Sincorá, de uma febre perniciosa. Essa triste nova, que bem
depressa chegou aos ouvidos de Adelaide, foi um golpe doloroso, que por muito tempo
a acabrunhou, e apagou-lhe da alma toda a esperança de felicidade na terra. Mas
Adelaide, se era de temperamento vivo e ardente, fácil de inflamar-se em paixões
fogosas, não tinha essa sensibilidade profunda, que nem o tempo nem as circunstâncias
podem obliterar, e que mesmo debaixo das ruínas de todas as esperanças conserva
sempre vivaz e ardente o sentimento do primeiro amor, como o fogo debaixo das cinzas.
Sua alma era, como seu corpo, robusta e resistente; os choques podiam prostrá-la, mas
não a esmagavam. Amava com ardor e com todas as forças de sua alma ao amigo da
infância, ao amante da juventude; suas lágrimas e sua saudade foram sinceras e
pungentes, mas com o volver dos tempos foram-se mitigando, a resignação veio por
fim, e Adelaide animou-se de coragem para viver.

A casa do Major Damásio, que durante muito tempo se tinha tornado uma
espécie de eremitério, foi gradualmente se fazendo mais acessível à sociedade e mais
animada. A lembrança dos remoques e epigramas dos estudantes e das pretensões do
capataz ia pouco a pouco se apagando. O major, que nunca perdia a esperança de achar
para sua filha um noivo de alta hierarquia, começava a atrair de novo e convidar a jantar
alguns amigos, não excluindo mesmo, mas com algum escrúpulo na escolha, alguns
jovens da classe acadêmica. Adelaide nada havia perdido de sua formosura e atrativos,
apesar dos transes dolorosos por que havia passado; sua robusta organização havia
zombado dos trabalhos e contratempos, e a flor de sua beleza alardeava-se ainda tão
esplêndida e viçosa como dantes. Somente os sofrimentos lhe haviam estampado na
fisionomia e nas maneiras um ar mais grave e melancólico, que ainda mais realçava
seus encantos.

Entre os moços, que freqüentavam a casa do major, havia um que,


sinceramente apaixonado da beleza de Adelaide, se fez notar por seus obséquios e
homenagem e por sua assiduidade. Era um terceiranista de bela e agradável presença, de
maneiras simpáticas, e posto que não fosse rico, tinha a fortuna de assinar-se com o
apelido de Bueno de Morais, um dos nomes heráldicos de mais distinção na província
de S. Paulo. Além disso, sendo aspirante ao pergaminho de bacharel em direito, tinha
aberta diante de si a carreira das honras e grandezas, e o bom major podia bem nutrir a
esperança de ter, um dia, um genro deputado, presidente, ministro, senador e por fim até
mesmo visconde e marquês.

Damásio, que também se assinava Bueno, descobriu logo entre ele e o futuro
genro certo grau de parentesco, e doce nome de primo e prima substituíram daí em
diante os nomes próprios entre os dois namorados. Adelaide não se desagradou do
moço, o qual, na verdade, além de sua bonita figura e maneiras agradáveis e insinuantes,
parecia ser dotado de boas e sólidas qualidades. É verdade que não concebeu por ele
uma dessas paixões profundas e veementes, como a que Conrado lhe havia inspirado,
mas votava-lhe essa estima calma, porém terna e afetuosa, que é a melhor garantia da
paz e felicidade da vida conjugal.

Havendo, pois, comum acordo entre todas as partes interessadas, contratou-se e


celebrou-se dentro de poucos dias o casamento da Sra. D. Adelaide Florbela Bueno de
Aguiar com o Sr. Francisco Ribeiro Bueno de Morais.

É quase escusado dizer que houve banquete profuso e baile esplêndido, aos
quais foram convidados o compadre Tobias, o presidente da província, os lentes da
Academia, as famílias mais gradas da cidade e a nata da classe acadêmica.

Bueno de Morais era de inteligência um pouco menos que medíocre; tanto


assim que, apesar de contar já os seus vinte e sete anos, apenas, à custa de muito
patronato e de muito alisar os bancos da Academia tinha podido içar-se até o terceiro
ano. Se já era por natureza algum tanto avesso às letras, a vida matrimonial e a tal ou
qual opulência, que entrou a fruir, acabaram de lhe tirar completamente o gosto pelo
estudo. Perdeu o ano, e não pôde fazer ato. Declarou a seu sogro que não podia mais
continuar no curso acadêmico; que já possuía instrução bastante para seguir a carreira
que melhor lhe conviesse, e, conhecendo o fraco de seu Sogro, apontou-lhe diversos
exemplos de homens que, sem possuírem pergaminho algum, tinham atingido as mais
altas posições sociais. O sogro, posto que bastante contrariado, não teve remédio senão
condescender com a veleidade do genro, do qual ainda não desesperava, e perguntou-lhe
em que desejava empregar-se. Morais respondeu-lhe que precisava adquirir por seus
próprios esforços alguma fortuna, que é a primeira base de uma boa posição social, e
que ele se sentia com decidida vocação para a carreira comercial, para a qual desde o
berço propendiam todas as suas inclinações. O major, acedendo a seus desejos,
aconselhou-lhe que começasse pelo negócio de muladeiro, que no seu entender era o
que mais depressa podia enriquecer, e para prova dava o seu próprio exemplo. Morais
aceitou o conselho, e aproveitou-se da bolsa e largos abonos que o sogro lhe facilitava;
mas como homem, que tinha ainda menos prática de negócios do que dos livros, em
menos de dois anos deu literalmente com todos os burros nágua, e o sogro teve de
sangrar sua burra em quantia considerável a fim de desempenhar o genro para com seus
fregueses de Sorocaba e Curitiba.

Entretanto, o luxo e a opulência continuavam a reinar na mesma escala no seio


daquela família, com aprazimento do major e muito especial agrado de Morais, cuja
ocupação daí em diante cifrava-se em freqüentar bailes e teatros, em alguns passeios
com a família ou em bródios de estudantes, a cuja classe ainda se julgava filiado e cujos
hábitos não tinha de todo perdido. Assim se passava o tempo, e entretanto a fortuna do
major, que ele havia acumulado à custa de penáveis trabalhos, durante uma longa vida
de atividade e economia, lá se ia escoando de um modo rápido e assustador. Já
alquebrado pelos anos, o major não podia mais entregar-se à vida laboriosa e fragueira
de outrora: sentia, no entanto, a necessidade, senão de aumentar, ao menos de conservar
e manter no mesmo estado, por meio de alguma especulação vantajosa, um patrimônio,
de que dependia o futuro de sua descendência, e que seu genro, longe de fazer
prosperar, só sabia dilapidar. Portanto, para pôr um paradeiro ao desmantelamento de
sua fortuna, lembrou-se de abrir no pavimento térreo da casa nobre, em que agora o
encontramos com toda a família, um vasto armazém de secos e molhados, em que por
cautela figurava como sócio de seu genro, em cuja gerência não confiava muito.

Ali, à testa de seu estabelecimento, o velho major, que para o comércio tinha
bastante tino e aptidão, podia tudo superintender e vedar que o genro comprometesse
por suas imprudências os interesses da casa. Graças a esse expediente, o major pôde.se
abrigar de uma ruína inevitável, e Morais achou uma ocupação digna e honesta, com a
qual podia manter decentemente, e mesmo assegurar, o futuro da família sem meter a
mão no patrimônio do velho.

Passaram-se assim alguns anos de vida folgada e tranqüila, durante os quais a


prole de Morais foi-se aumentando até a época a que somos chegados.
CAPÍTULO III

CIÚMES

A aquisição da linda escrava Rosaura foi um motivo de festa por muitos dias na
família do major. Era um mimo, que há muito o avô desejava fazer à Estela, linda e
interessante netinha, que era o seu ídolo; e para esse fim tinha dado amplas autorizações
ao genro. O mimo excedeu a sua expectativa, e valia realmente um tesouro. Rosaura,
nos primeiros dias, foi antes o enlevo e admiração da família, do que a escrava da casa.
Adelaide a tratava com carinho maternal; Lucinda a rodeava de cuidados e procurava
adivinhar-lhe os desejos; as crianças não comiam um doce, uma gulodice qualquer, que
não repartissem com ela; o major a chamava de minha tetéia, e o Sr. Morais ficava às
vezes a contemplá-la com ar tão terno e embevecido, que não deixava de causar
displicência e inquietação à Adelaide.

E Rosaura merecia bem essas contemplações e deferências. Ativa, inteligente e


habilidosa, não se recusava a serviço algum. Na cozinha ajudava a tia Lucinda com tal
jeito e desembaraço, que fazia pasmar a velha preta. Na sala engomava, cozia e bordava,
de modo que encantava à sua senhora. Aos trabalhos os mais delicados, como aos mais
rudes e fragueiros, se oferecia e prestava não só com prontidão, como também com
certo ar afetuoso, que fazia crer que tomava gosto em seu cativeiro. Tratava das crianças
com tal amabilidade, jeito e carinho, que parecia não uma rapariga de quatorze anos,
mas uma provecta mãe de família. Reunindo-se a estas qualidades adoráveis o porte e o
rosto de uma donzela, que poderia figurar em um salão aristocrático, pode-se fazer idéia
do tesouro inapreciável que, graças ao dinheiro do major e às diligências do seu genro,
era hoje propriedade da casa.

Quando estava em companhia, Rosaura era sempre alegre, meiga e afável; mas
Lucinda e mesmo Adelaide a tinham surpreendido a sós cismando tristemente, e às
vezes com as lágrimas nos olhos.

– Que tem, Rosaura, que estás aí tão triste e amuada e quase a chorar? –
perguntou-lhe uma vez Adelaide com ternura.
– Nada, minha sinhá; é por que estava me lembrando de minha mãe, que já
morreu.

– Ora! não chores, por favor! – replicou Adelaide, pousando a mão sobre a
linda cabecinha de Rosaura. – Eu também quase não conheci mãe, e não estou
chorando. Não chores mais, não; eu também sou tua mãe.

E com estas doces palavras a menina se consolou e recobrou seu ar sereno e


jovial.

Esse estado de paz e bem-aventurança doméstica infelizmente não pôde durar


por muito tempo. A força de contemplar todos os dias as belezas plásticas da formosa
Rosaura, Morais se foi deixando arrastar por uma paixão insensata e frenética por ela.

Ou fosse um amor verdadeiro, íntimo e profundo, que lhe revolucionasse a


alma, o que era bem possível à vista da sedutora beleza da cativa, ou fosse o demônio da
libidinagem, que lhe turvava o espírito e lhe inflamava o sangue, o que é ainda mais
provável, o certo é que Morais, sem atender nem ao menos às conveniências e ao decoro
da família, deixou entrever a cega paixão que o dominava. Um dia, não podendo mais
conter-se, declarou suas impudicas intenções à ingênua e virtuosa escrava, que mal as
podia compreender. Senhor quase absoluto da casa, fazia quotidianamente à inexperta
rapariga pomposas promessas de liberdade, dinheiro e mil felicidades, às quais a singela
menina opunha sempre a mais rude e obstinada negativa. Com as repulsas e
esquivanças, ainda mais recrudescia a febre de ardente sensualismo que abrasava o
sangue de Morais; depois de ter empregado em vão todos os meios de sedução a seu
alcance, lançou mão também das mais terríveis ameaças.

– Se não ceder a meus desejos, Rosaura, – dizia-lhe ele nos transportes de sua
insensata e lasciva paixão – vendo-te aí a qualquer senhor libertino e sem coração, que
fará contigo o que eu não posso, nem tenho ânimo de fazer; que te amarrará de pés e
mãos, e fará de ti o que muito bem quiser.

– Senhor – respondia a escrava, com uma resolução e firmeza para admirar em


sua idade a condição é escusado ameaçar-me, perde seu tempo; nunca cederei, nunca!
Faça de mim o que quiser, tenho fé que Deus me há de valer.

Morais rugia de raiva e desespero, mas nem assim deixava de prosseguir, cada
vez com mais ardor, em seus assaltos brutais contra a pudicícia da gentil escrava.
Nesses torpes manejos, por mais que Morais se esforçasse por ocultá-los não puderam
escapar por muito tempo à sagacidade de Adelaide, que depressa colheu provas
manifestas do indigno procedimento de seu marido. Ela amava-o sinceramente, e essa
triste descaída do esposo magoou-lhe cruelmente o coração. Há doze anos era casada, e
nunca até ali a mais ligeira nuvem de discórdia viera perturbar a harmonia conjugal e
toldar a serenidade do lar doméstico. Foi, portanto, um rude golpe para sua alma, golpe
que a feria e humilhava ao mesmo tempo, ver a paz, que até então tinha reinado no seio
da família, perturbada por tão ignóbil e vergonhoso motivo. Era Adelaide, como
sabemos, de temperamento ardente e irascível; não sabia abafar seus ressentimentos;
eles faziam explosão com violência. Todavia, dessa vez corando por seu marido, o pejo
e o pundonor tolheram-lhe, a princípio, as expansões de despeito e indignação, de que
trazia saturado o coração. A tal ponto, porém, chegaram os desmandos do Sr. Morais,
que ela não pôde conter-se por mais tempo. Rubra de pejo e de ressentimento,
exprobrou ao marido seus vergonhosos desvarios.

– O senhor – disse ela, depois de amargas queixas e pungentes invectivas –


quer me pôr na dura necessidade de comunicar tudo a meu pai, a fim de que ele mande
para longe, forre ou venda essa pobre menina, causa por certo inocente de semelhantes
escândalos, e isso seria uma crueldade. Não, meu amigo – acrescentou ela, ameigando a
voz e abraçando o marido. – Espero que não continuará mais nesse mau caminho. É tua
mulher quem te pede em nome de nosso amor de doze anos, em nome de nossos
inocentes filhinhos.

Morais sentiu-se algum tanto abalado com essas ternas e sentidas palavras da
esposa, e quase sentiu remorsos por afligi-Ia tanto com seu mau procedimento.

– Minha querida Adelaide – disse, com a mais bem fingida e refinada


hipocrisia que se pode imaginar – como pudeste dar entrada em teu coração a tão
injustas suspeitas contra teu marido? Como pudeste imaginar, nessa louca cabecinha,
que eu seja capaz de ter tão depravadas intenções contra -ma pobre e interessante
menina, que só me inspira compaixão, interesse e simpatia? Gosto muito de Rosaura,
acho-a muito engraçada e bonitinha, amo-a mesmo se assim o queres, mas com esse
amor de que falava um dos meus colegas, metido a poeta. Amo-a como se ama as flores
do campo, as estrelas do céu, o canto dos passarinhos. Amo-a como se ama tudo quanto
é belo na criação. É verdade que, às vezes, procuro beijá-la na fronte e mesmo na face,
mas ela foge toda espantadiça a coitadinha, não sabendo talvez que a procuro beijar,
como beijo a meus filhinhos.

– Ah! senhor – disse a moça, fitando os lindos olhos do marido, como


procurando ler-lhe no fundo da alma será sincero o que me está dizendo?

– Juro pelo nosso amor, minha Adelaide!

Adelaide pareceu convenci da e tranqüilizada com as palavras do marido, e os


dois esposos reconciliados se abraçaram em mútua efusão de ternura. Mas o ciúme é
como um cancro; quando uma vez se agarra ao coração, nunca mais se pode extirpar
completamente; por mais hábil que seja a mão do operador, lá ficam raízes e filamentos
imperceptíveis, dos quais renasce e se alimenta a chaga devoradora. Morais, na
persuasão de ter iludido sua mulher e dissipado completamente suas desconfianças,
abandonou-se daí em diante com mais desembaraço ainda às expansões de sua louca
paixão pela formosa escrava, e redobrou de ardis, seduções, promessas e ameaças para
rendê-la a seus impudicos desejos.

A proporção, porém, de seus esforços, com grande desesperação sua, mais


recrescia a relutância da honesta e inocente menina. Mas o ciúme não dorme, tem vista
aguda e ouvido delicadíssimo. Adelaide, a despeito dos protestos do marido que a
tranqüilizaram momentaneamente, não deixava de espiar seus passos com disfarce e
fina sagacidade, e à vista do que ia observando, não podia convencer-se de que a afeição
que ele consagrava a Rosaura fosse amor puro e inocente, que procurava aparentar.
Receando, porém, que o ciúme lhe estivesse alucinando algum tanto o espírito, fazendo-
lhe dar grandes proporções a coisas insignificantes, decidiu-se a interrogar a própria
Rosaura sobre esse particular, para acabar de uma vez com tão cruciantes incertezas.

Como se pode imaginar, foi um passo bem difícil e penível para ela entabular
conversação a esse respeito com uma escrava e com uma quase criança; mais era
forçoso, para descobrimento da verdade e sossego de seu coração.

– Rosaura... – disse ela, um dia, à escrava. Os meninos estavam ausentes e


Rosaura, sentada a seus pés, sobre um tapete, se ocupava em trabalhos de agulha.

Parece que o Sr. Morais te persegue e atormenta com carícias excessivas. Vejo-
te às vezes correr dele assustada, como lebre que foge ao cão. Que te quer ele?.. Não me
dirás, Rosaura?
Fazendo estas perguntas, Adelaide procurava em vão disfarçar o amargor de
suas palavras com certo tom de gracejo.

– Não sei, minha senhora – respondeu a escrava, corando muito e com visível
perturbação. – Ele gosta muito de brincar comigo; mas eu tenho muito medo e respeito
dele, e por isso fujo para perto de minha senhora.

– Fazes bem, Rosaura; mas tudo isso não passará de mero brinquedo?.. Estás
bem certa disso?

– Eu acho que não passa de brinquedo: quer brincar comigo, como brinca com
sinhá Estelinha.

– E ele não te diz nada?.. Não te declara coisa alguma?...

– Eu mesma não sei o que ele diz; não escuto nada, e vou correndo para longe,
porque tenho muito respeito, e...

A pobre escravinha queria ainda dizer muita coisa, mas de embaraçada, não
sabendo explicar-se, nada mais pôde dizer e parou na reticência, esperando mais alguma
pergunta. Adelaide, porém, não quis insistir mais; uma sinistra desconfiança lhe havia
atravessado o espírito; a boa e simples Rosaura não quis declarar à sua senhora toda a
verdade, porque, apesar de sua pouca idade, era assisuada e discreta, e não queria atear
o facho da discórdia no seio da família; com suas hesitações, porém, e suas respostas
tímidas e evasivas, teve a infelicidade de produzir um efeito mil vezes pior do que
aquele que desejava evitar. Notando as frases indecisas, a perturbação e enleio de
Rosaura, entrou pelo espírito de Adelaide a suspeita de que Rosaura era cúmplice na
deslealdade de seu marido, ou que, pelo menos, aceitava sem repugnância seus afagos, e
por isso procurava encobrir-lhe a verdade. Julgou-se duplamente ultrajada em seu
pundonor de esposa, e em sua qualidade de senhora, e tomou daí em diante tal
indisposição contra a pobre escrava, que começou a tratá-la não só com indiferença,
mas com tão pronunciada malevolência, que esmagava o inocente coração de Rosaura.
É verdade que no fundo de sua alma não se extinguira de todo esse sentimento de terna
simpatia, que Rosaura lhe havia inspirado desde a primeira vez que a vira; mas a
cegueira do ciúme sufocava quase sempre esse sentimento, e a fazia tratar a escrava
com o mais cruel desabrimento e aspereza. O mau humor de Adelaide subia de ponto, e
já não havia naquela casa a bonança, união e contentamento de outros tempos. Adelaide
ralhava sempre; os meninos andavam espantados e em gritos, vendo a bela cativa
sempre amuada e chorosa, e a mãe a mimoseá-la com os edificantes epítetos de
delambida, tarasca e outros quejandos, que eles felizmente não podiam compreender. O
major estranhava, mas nem de leve suspeitava o verdadeiro motivo da mudança de
humor de sua filha, e perguntando a si mesmo a causa desse fenômeno o atribuía à volta
de lua, e talvez a algum novo astro, - ainda em gestação, que vinha aumentar a brilhante
plêiade de sua ilustre descendência. Morais, sem deixar de ativar suas diligências para
seduzir a infeliz menina, todavia andava cabisbaixo e desconfiado. Assim Rosaura vivia
em contínua tribulação entre as perseguições do senhor e a rispidez e malevolência da
senhora. O demônio da discórdia tinha roçado sua asa negra por aquele lar, há pouco tão
feliz, alegre e esperançoso.

CAPÍTULO IV

DESCOBERTA

Perseguições e tentativas as mais audaciosas não cessavam por parte de Morais,


que, cada vez mais fascinado pelos provocadores encantos da cativa, já tinha perdido a
cabeça e pervertido o coração. Um dia, aproveitando ocasião, que lhe pareceu azada,
seus esforços tocaram a excessivo grau de audácia e violência; a menina a muito custo
pôde escapar-lhe dos braços, toda desalinhada e com as roupas dilaceradas. Não teve
ânimo de correr para junto de sua senhora naquele estado de agitação e desalinho,
receosa de provocar uma cena do mais deplorável e vergonhoso escândalo, e talvez das
mais terríveis conseqüências. . Eram quatro para cinco horas da tarde. Rosaura arrojou-
se anelante e trêmula, como corça escapada às garras do jaguar, para um quarto interior,
que era ocupado por Lucinda, que nessa hora estava a fiar em um fuso de mão. Rosaura
entrou bruscamente e atirou-se desatinada sobre a cama da velha preta, arquejante e
abafando lágrimas e soluços, que lhe empolavam os seios e lhe queimavam as
pálpebras.

– Que é isso, menina? – exclamou a preta, levantando-se assustada e chegando-


se para perto de Rosaura. – O que é que te aconteceu?..
Rosaura, debruçada sobre a cama, escondendo o rosto e o seio, nada respondia
e continuava a chorar e soluçar. Lucinda pegou-lhe brandamente nos braços, que
estavam cruzados sobre o peito, e com carinho a fez sentar-se. O corpilho do vestido da
menina, todo lacerado e descosido, deixava ver completamente nus os brancos e
mimosos seios, que arfavam violentamente, trêmulos e medrosos como duas alvas
pombas, que se recolhem ao ninho, fugindo às garras do gavião.

De súbito Lucinda soltou um grito de espanto, como se um raio luminoso lhe


tivesse atravessado o espírito.

– Ah!... meu Deus! – exclamou ela – espera, menina; deixa ver o que é isto que
você tem aqui debaixo do peito esquerdo.

A preta abaixou o rosto sobre o peito de Rosaura, e observou com atenção.

– Jesus!... Santo nome de Jesus! – murmurou ela, com voz sumida, quase
falando consigo mesma. – Que é isso, Deus grande!? Será possível que essa Rosaura
seja a filha de sinhá Adelaide!... Rosaura, o que foi isto? Conta-me! – continuou ela,
com voz mais clara. – O que é que você tem?.. Sinhá te ralhou?

– Não – respondeu soluçando a pobre menina sinhá não me ralha; meu senhor é
que me persegue.

– Ah! coitadinha!... Logo vi. Você pensa que eu já não percebi a má tenção de
sinhô moço?.. Cruz! que homem ruim é aquele! mas sossega, minha filha, não há de ser
nada. Eu vou buscar roupa para você mudar, e depois você há de me contar uma coisa.

– Pois sim, tia Lucinda; vai mesmo, vai me buscar outro vestido, que eu assim
não posso aparecer; o que é que sinhá Adelaide há de pensar de mim, vendo-me neste
estado? Lucinda, como o leitor deve lembrar-se, foi quem recebeu nos braços, quando
veio à luz do mundo, a mimosa e infeliz criança fruto dos amores clandestinos de
Conrado e Adelaide; foi ela quem lavou, pensou, vestiu e depois expôs, com boas e
louváveis intenções, a mísera recém-nascida à porta de Nhá Tuca. Tinha-lhe feito
impressão e trazia gravado na lembrança um sinalzinho nluito distinto, que a criança
tinha do lado esquerdo, pouco mais ou menos na altura do coração, em forma de cruz,
semelhando um hábito do cruzeiro. Rosaura apresentava agora um sinal em tudo igual e
semelhante, se bem que um pouco deslocado. Demais, Lucinda já havia notado uma tal
ou qual semelhança das feições de Rosaura com as de Adelaide, e mais ainda com as de
Conrado. Entretanto, estava certíssima que vira estendida em seu pequeno féretro
ornado de flores e capelas o cadáver da filhinha de sua sinhá. A preta entrou a cismar
sobre essa estranha coincidência, e uma forte suposição, quase com o caráter da certeza,
penetrou-lhe no espírito. Rosaura era a enjeitada; Rosaura era a filha de Adelaide e
Conrado; a criança, que vira morta, era outra.

– Anda, minha filha, toma, muda essa roupa – disse Lucinda, entrando e
entregando à Rosaura um vestido.

– Agora - continuou ela, depois de ter ajudado a menina a vestir-se – agora,


você há de me dizer uma coisa, que ainda não me disse, porque eu ainda não perguntei.
Donde é que você é?... Quem foi teu sinhô ou tua sinhá, que te vendeu para sinhô
Morais?... Você é daqui mesmo de S. Paulo?... Fala verdade, minha filha.

– Tia Lucinda, que precisão tenho eu de mentir? Sou mesmo aqui de S. Paulo;
sou cria da casa de uma mulher velha, que mora na beira da estrada, que vai para as
bandas de Jundiaí, chamada Nhá Tuca. Minha mãe morreu, já vai para cinco anos...

– E de que cor era tua mãe? – atalhou Lucinda.

– Minha mãe?.. Minha mãe era... era um pouco mais trigueira do que eu.

– Ah! logo vi; era mulata – murmurou consigo a preta. – O que eu desconfio
vai tomando rumo. E depois, minha, filha?

– E depois, eu havía de ter uns dez anos, minha sinhá me vendeu a um homem
velho, que costumava comprar para vender por fora comboio de escravos. Ele e a
mulher dele ficaram gostando de mim, me estimavam muito, e não me queriam vender
por nada. Se não fosse o Sr. Morais, que tanto teimou e ofereceu tanto dinheiro, eles não
me vendiam.

– Mas escuta, menina; você nunca ouviu dizer que lá na casa de Nhá Tuca,
quando você nasceu, aconteceu alguma coisa?...

– Não, tia Lucinda; não me lembro de nada.

– Puxa pela memória, menina; lembra bem... talvez.. .

– Ah! Ah!... agora me lembro, tia Lucinda, – replicou Rosaura, batendo na alva
testa com os rosados dedinhos; – agora me lembro que lá em casa de sinhá velha ouvi
contar que, no dia em que eu nasci, apareceu na porta de casa uma menina enjeitada,
que morreu no mesmo dia.

– Santo nome de Jesus! – murmurou Lucinda, benzendo-se. – Eis aí como são


as coisas deste mundo!... Ah! Rosaura! Rosaura!... está me parecendo que essa menina
enjeitada não morreu nada.

– Como assim, tia Lucinda?...

– Não sei, minha filha, mas tenho cá minhas cismas... Deixa estar, menina; ou
eu não sou filha de minha mãe, ou hei de desmanchar essa candonga, seja lá como for.

Nesse momento apareceu Estela, que vinha chamar Rosaura, e Lucinda


achando-se a sós ficou a banzar sobre o estranho caso que acabava de presenciar, e
quanto mais cismava, mais se convencia de que Rosaura era a filha de Adelaide, que ela
havia exposto na porta da casa da velha Gertrudes.

– Deus de misericórdia! – pensava ela. – Como é que pode acontecer uma coisa
destas!... A mãe, sem saber, comprar sua própria filha e tê-la em casa como escrava!... E
há de continuar a tê-la nessa conta sem nunca poder saber a verdade!? Não; isto não
pode continuar assim. Deus não quer isso. Agora, que pouco mais ou menos já dei na
malhada, hei de botar tudo isso em pratos limpos, custe o que custar!

Assim reflexionando, a preta começou a excogitar os meios que empregaria


para rasgar completamente o véu daquele mistério, que um acaso, ou antes, um
assinalado favor da Providência, lhe ia revelando.

Para Lucinda já era fora de dúvida que Rosaura era a filha de Adelaide; mas
nem a sua convicção pessoal, nem sua mera asseveração, nem mesmo a alegação dos
veementes indícios, que corroboravam sua suspeita, seriam suficientes para restituir
Rosaura à posição que, pelo nascimento, lhe era devida. Depois de muito pensar,
convenceu-se de que ela, pobre e ignorante escrava, por si só nada podia fazer de
acertado e eficaz naquela conjuntura; pensou que o melhor expediente, de que podia
lançar mão, era comunicar imediatamente sua descoberta à Adelaide. Esta, em vista de
tão valentes indícios, sem dúvida não hesitaria em reconhecer quanto era natural e
plausível a suposição da escrava. Demais, a boa e sensível preta, que apesar de sua
condição conhecia os mais delicados sentimentos do coração humano, sabia que, a ser
exato o que supunha, a voz da natureza, esse poderoso instinto que jamais engana,
juntando-se a tantas outras provas auxiliares, viria cortar toda a dúvida e dizer a última
palavra.

Firme em seu propósito, Lucinda esperou pelas horas mais adiantadas da noite,
em que o Sr. Morais saía a passeio, como era de costume, e em que as crianças estavam
dormindo, para fazer à sua sinhá a revelação do mistério, que lhe preocupava o espírito.

CAPÍTULO V

CONFIDÊNCIA

Era perto de dez horas da noite. Em casa do Major Damásio tudo repousava em
profundo silêncio. As crianças dormiam o sono suave e tranqüilo da inocência. Rosaura
que tinha o seu aposento em um pequeno quarto imediato à alcova de sua senhora,
apesar dos transes e inquietações por que passara, há muito que adormecera. Havia
chorado um pouco antes de conciliar o sono, pensando nas perseguições de Morais, e
mais ainda nos desabrimentos da senhora; mas graças aos seus quatorze anos, à pureza
de seu coração e à tranqüilidade de seu espírito, a insônia lhe era desconhecida.

Só Adelaide velava, refletindo nas ingratidões e desvarios do marido e na


pretendida deslealdade de Rosaura da qual a cegueira do ciúme lhe fazia formar tão mau
conceito. .

Todavia, quando com o espírito mais calmo se lembrava da fisionomia da


menina, tão cheia de pudor e candura, de suas maneiras tão honestas e recatadas, de sua
índole tão dócil e fagueira, repugnava-lhe a idéia do mau procedimento que lhe atribuía
em seus acessos de despeito, e um misterioso sentimento de benevolência e ternura
como que a obrigava a inocentar no íntimo da alma a desventurada escravinha. À força
de entregar-se ao embate de tantas tribulações e dissabores, Adelaide havia chorado, e,
encostada a um bufete, tinha os olhos rubros e úmidos quando Lucinda lhe entrou pelo
quarto.

– Santa Virgem! – exclamou a preta, observando a fisionomia alterada e os


olhos macerados da senhora. – O que é que lhe aconteceu, sinhazinha?
– Nada, Lucinda; absolutamente nada.

– Nada! Não me engana... Como é que sinhazinha então está assim com os
olhos vermelhos e cheios dágua?

– É: verdade, Lucinda; estava pensando em coisas bem desagradáveis, e creio


que chorei um pouco... mas...

– Mas o quê, sinhazinha?... Não me esconda nada, não; pode sem susto abrir
seu coração com sua preta. Não quero ver sinhazinha chorando assim; o que é que mecê
tem?

Lucinda, como o leitor sabe, fora outrora, em circunstâncias bem críticas, a


amiga dedicada, a leal confidente e a única depositária do maior, ou antes, do único
segredo de Adelaide. Esta, portanto, não tinha razão para recusar-se a explicar-lhe o
motivo de seus desgostos, e naquela ocasião até estimou o aparecimento e a interpelação
da escrava, porque tinha realmente necessidade de desabafar com alguém as mágoas,
que lhe oprimiam o coração. E com quem melhor poderia ela abrir sua alma, do que
com a velha e leal escrava, que de tanto lhe tinha valido nos mais apertados e
melindrosos transes de sua vida íntima?

Assim a preta, que viera para fazer uma revelação, teve de ouvir, em primeiro
lugar, as confidências e queixumes da senhora; tanto melhor para Lucinda, que assim se
acabava em mais favoráveis disposições para entrar com sua senhora em conversação
confidencial. Adelaide, com algum vexame e embaraço, mas em poucas e rápidas
palavras, expôs à escrava o motivo de seus desgostos; contou não só as impudentes
tentativas, que seu marido fazia quase à sua vista, para seduzir Rosaura, como também
as desconfianças que nutria a respeito desta.

– Eu sei já disso tudo, sinhazinha; – disse Lucinda – mecê tem razão contra
sinhô moço; com efeito, ele tem andado muito mal. Mas a respeito da pobre menina,
sinhazinha anda muito enganada. Se sinhazinha soubesse quem é esta Rosaura!...

– Sei bem, Lucinda; ela me parece muito boa rapariga, cuidadosa, diligente e
muito carinhosa com as crianças, mas... desconfio... .

– Deixa dessas desconfianças, sinhazinha. Rosaura não é capaz disso. Se


sinhazinha soubesse tudo, como eu sei, em vez de zangar-se com ela, havia de trazê-la
mesmo dentro do seio, como se fosse sua filha.
A estas palavras, Adelaide sentiu um estremecimento involuntário.

– Como se fosse minha filha! Por que dizes isto, Lucinda?

– Sim, senhora, – insistiu a escrava – como se fosse sua filha, e sinhazinha


havia de arrepender-se mil vezes de tê-la em tão ruim conta. Há aí uma coisa, que eu
devo, por força, contar à sinhazinha, se não quiser botar minha alma no inferno .

– O que é? Conta, Lucinda. Será ainda alguma desgraça?

– Não, sinhazinha, não é nenhuma desgraça; antes pelo contrário, é coisa de lhe
dar muito gosto e alegria.

– Deveras, Lucinda?.. Pois conta depressa o que é isso.

Lucinda, então, acocorando-se aos pés da senhora, e abafando a voz para não
acordar as crianças e Rosaura, que dormia ali bem perto, contou por miúdo tudo quanto
nessa tarde se tinha passado entre ela e Rosaura e a plena convicção em que estava, à
vista de tão veementes indícios, de que a escrava que o Sr. Morais havia comprado não
era outra senão a filha de Adelaide, que ela Lucinda havia exposto em casa de Nhá Tuca
e que, não se sabe com que interesse ou para que fim, fizeram passar por morta.

– Meu Deus! meu Deus! – exclamou a moça, levantando as mãos ao céu. –


Será possível!... Ter, sem o saber, comprado como escrava minha própria filha!...

Ah! se assim é, Lucinda, foi Deus, foi a Divina Providência, que se serviu das
más intenções de meu marido e fez Rosaura correr para junto de ti naquele estado, a fim
de tudo se descobrir. Sem isso, era bem possível que ela ficasse por muito tempo, talvez
por toda a vida, condenada ao cativeiro e isso em casa de sua mãe, no meio de suas
irmãs!... Ah! só de pensar nisso arrepiam-se-me as carnes e se me espedaça o coração!...

– Mas agora, sinhazinha, só tem motivo para dar graças a Deus, que não
permitiu que assim acontecesse.

– É verdade, Lucinda. Ah! Rosaura! Rosaura! minha infeliz filhinha! -


continuou Adelaide, estendendo os braços para o lado, em que dormia Rosaura. –
Perdoa-me; enganaram-me; eu não podia saber do teu destino; mas hoje, graças a Deus,
vejo-te viva e perto de mim! Mas ah! isso parece-me impossível – continuou ela a
bracos ainda com a incredulidade. – Viste bem esse sinal, Lucinda? Quem sabe se não
há algum engano da tua parte? Quase todo o mundo nasce com algum sinalzinho no
corpo.

– Isso é verdade; mas no mesmo lugar, do mesmo tamanho e do mesmo feitio,


sinhazinha?! E de mais a mais acontecer que, no mesmo dia em que Rosaura nasceu,
morreu uma criança enjeitada em casa de Nhá Tuca?! Imagina bem, sinhazinha, e verá
se aí anda alguma tramada, ou não. Demais disso, repara bem na carinha de Rosaura,
sinhazinha, e me diga com quem ela dá ares. Ela se parece com sinhazinha, um pouco,
porém, ainda mais com certa pessoa, que mecê bem sabe.

– Sim! sim! cala-te, Lucinda! Tudo isso é verdade – disse Adelaide, arquejando
de emoção. – Além disso, desde a primeira vez que pus os olhos em Rosaura, comecei a
sentir por ela uma afeição e ternura de mãe... Oh!

Lucinda!... não há dúvida mais para mim... Rosaura é minha filha.

A surpresa e emoção de Adelaide eram extremas. Muito havia ela sofrido por
amor daquele primeiro fruto de um amor infeliz; os longos anos, que haviam decorrido,
a felicidade conjugal, que havia encontrado, os carinhos do pai e do espôso, as carícias
dos filhinhos não tinham podido apagar a lembrança da inocente e infeliz menina, que
do seio materno passara a braços estranhos e deles ao túmulo, nem estancar de todo o
pranto, que tão dolorosa recordação às vezes lhe arrancava ao coração. Nesses Últimos
dias, principalmente, e depois que Morais, desmentindo o seu passado, se entregava a
desregramentos indesculpáveis, sofria mais cruelmente que nunca, e sentindo o remorso
atassalhar-me a alma, atribuía sua desgraça a castigo de Deus pelas fraquezas de sua
mocidade.

– Rosaura, minha filha, perdoa-me! – exclamava ela, com lágrimas nos olhos,
querendo precipitar-se no quarto vizinho a ir abraçar a menina, que dormia o sono dos
anjos. Lucinda a custo pôde conter e acalmar sua senhora. '

– Não, minha sinhá; não acorda a menina ainda não; deixa ela dormir. Por
enquanto é bom que ela não saiba nada do que se passa. Antes de tudo é preciso
procurar modos de tirá-Ia do cativeiro e justificar que ela nasceu livre. Mas já vai
ficando tarde, e sinhô Morais não pode tardar por aí. Amanhã nós precisamos conversar
para ver como se há de arrumar isso, ouviu, sinhazinha?
A preta tomou a bênção e retirou-se. Daí a pouco, chegou o Sr. Morais, que
fatigado dos passeios, tratou imediatamente de deitar-se, e em breve adormeceu
profundamente. Adelaide, porém, com o espírito superexcita do pelo singular e estranho
acontecimento que acabava de lhe ser revelado, não podia conciliar o sono. Por três
vezes levantou-se, e tomando a lâmpada, que ardia sobre um bufete, enquanto todos
dormiam, dirigia-se pé ante pé para o quarto de Rosaura, e ali, sentando-se de mansinho
à beira da cama da menina adormecida, ficava por longo tempo a contemplar-lhe o rosto
angélico que lhe despertava nalma recordações a um tempo tão tristes e tão suaves. Da
terceira vez que lá foi, o semblante da gentil escrava apresentava um aspecto ainda mais
risonho e encantador; um sonho celestial parecia iluminar-lhe a fisionomia.

Adelaide a contemplava absorta e enlevada, e a muito custo continha-se para


não estreitá-Ia nos braços e cobri-Ia de beijos. Dir-se-ia que a filha, apesar de ter os
olhos cerrados, estava vendo com os olhos dalma o rosto da mãe, que a contemplava,
procurava sorrir-lhe e se esforçava por lançar-lhe ao colo os braços entorpecidos pelo
sono. De'feito, passados alguns instantes, os braços de Rosaura fizeram um pequeno
movimento para se erguerem, e a rosada boquinha entreabriu-se, mostrando os alvos
dentes, num sorriso cheio de carícia e meiguice. Adelaide não pode conter-se; abaixou o
rosto sobre o de Rosaura, e a mãe, em um assomo de inefável ternura, encostou sua
boca à da filha, e colheu nos lábios dela aquele angélico sorriso, como o colibri colhe a
gôta de mel no cálix de uma rosa.

Rosaura acordou e abriu os olhos; mas já Adelaide, medrosa como o amante,


que tivesse furtado um beijo à amada adormecida, tinha apagado a lâmpada ràpidamente
e se esgueirado para sua alcova.

CAPÍTULO VI

UM SONHO REALIDADE

A descoberta que Lucinda acabava de fazer, havia colocado Adelaide na mais


singular e complicada situação. O vivo prazer, que experimentava vendo sua filha como
que ressuscitada, e além disso crescida, vigorosa e bela como um anjo, era
contrabalançado por considerações, que o leitor bem pode avaliar.' Tinha sua filha em
casa, é verdade, mas como escrava, como propriedade, como um móvel. Era-lhe
possível talvez libertá-la à força de instâncias e súplicas para com seu pai e seu marido,
e depois conservá-la por tempo indefinido em casa junto a si, mas como liberta, e não
como filha, não como irmã de seus outros filhinhos. Bem se vê que isso só poderia
suavizar um pouco a sorte da infeliz enjeitada, mas seria dolorosíssimo para um coração
materno. Era mister ao menos que se verificasse que Rosaura, embora não se declarasse
ser filha de Adelaide, não nascera cativa, e que só um cruel e inexplicável destino a
fizera passar por isso, e como tal ser vendida de mão em mão. Demais, esse fato, de que
somente Adelaide e Lucinda se achavam intimamente convencidas, não estava
comprovado senão pelos indícios, aliás robustíssimos, em que se firmava a velha
escrava.

Essas provas, porém, não eram ainda peremptórias, e não constituíam senão
presunções muito fortes em favor da suposição de Lucinda. Sem algum documento
escrito, sem alguma justificação irrefragável, essa suposição podia cair por terra, como
mero embuste de negra velha, e a condição de escrava da pobre Rosaura, não tendo
nenhum fundamento sólido para ser contestada, nem ao menos poderia ser posta em
litígio.

Não eram, porém, só esses os maiores embaraços com que lutava o espírito
atribulado da pobre senhora. Mesmo que Rosaura fosse reconhecida livre e nascida de
pais livres, jamais poderia ser reconhecida como sua filha, sem que se revelasse a nódoa
do seu passado e sem incorrer no desprezo e talvez no ódio de um e outro. Poderia ela
confessar a um e a outro a sua falta, com esperança de obter indulgência e perdão? Era
principalmente para com o esposo que a posição de Adelaide se tinha tornado uma das
mais difíceis e angustiosas que se pode imaginar. Confessar ao marido uma falta, que há
mais de doze anos lhe havia ocultado, era um passo arriscadíssimo, a que jamais se
abalançaria. Tinha vergonha e também muito medo da cólera do marido. Quando se
ama uma mulher, que se julga pura, o ciúme não perdoa nem mesmo as fraquezas do
passado.

Lutando com essas angústias do coração e perplexidades do espírito, Adelaide,


que nem um momento adormecera, esperou ansiosa o alvorecer do dia. Rosaura, com
um semblante risonho e tranqüilo, foi a primeira que veio perdir-lhe a bênção. Adelaide
olhou para ela com enternecimento, e deu-lhe a mão a beijar, o que muito alegrou o
coração da pobre menina.

Adelaide esperava com impaciência uma ocasião oportuna, em que, achando-se


a sós com Lucinda, se aconselhasse com ela a fim de combinar os meios de salvar
Rosaura das garras do cativeiro e fazê-la reconhecer como livre de nascimento sem
comprometer a honra de Adealide; sem revelar o triste acontecimento, que até ali,
felizmente, havia dormido na sombra do mais profundo mistério.

Temos falado de Lucinda, e temo-la visto fazer um papel importante nesta


história, sem lhe darmos o devido apreço. Era uma crioula velha, que havia amamentado
sinhá Adelaide, e que a queria como filha. Tinha muito juízo, muito boa alma e muito
boas intenções. Além disso, a velha crioula era dotada de tal ronha, penetração e finura
para negócios difíceis, como os de que vamos tratando, que faria inveja ao mais hábil
diplomata. Lucinda, porém, diferia dos diplomatas em só empregar o seu talento a bem
da paz e da prosperidade da família de que fazia parte, e não em multiplicar
dificuldades, alimentando o espírito de discórdia.

Rosaura, que tinha acordado alegre e risonha como um passarinho, que saúda
uma bela aurora, apenas tomou a bênção à Adelaide, correu logo a tagarelar com
Lucinda.

– Tia Lucinda, não sabe?... Tive, esta noite, um sonho, o mais bonito deste
mundo, um sonho que me fez chorar de alegria.

– Deveras, menina?... Bem bom é isso. Então que foi?...

– Adivinha, tia Lucinda.

– Não sou adivinhadeira... mas decerto você sonhou com os anjinhos do céu,
minha menina. Que mais podia você sonhar?

– É quase isso mesmo, tia Lucinda. Eu sonhei que estava debruçada na janela,
olhando para o céu. Era de noite. Eu estava namorando as estrelas...

– Bonito namoro – interrompeu a crioula – de certo elas também te estavam


namorando.

– Comecei a lembrar-me de minha mãe, que já morreu – continuou a menina,


sem dar muita atenção à lisonjeira réplica da crioula – quando uma nuvem cheia de luz
se apresentou no céu, mesmo defronte de meus olhos. Essa nuvem veio descendo pouco
a pouco, até chegar bem perto de mim. Dentro dela vinha uma mulher. A princípio,
fiquei com medo; mas essa mulher tinha um ar muito meigo, e disse-me com brandura:

– Minha filha, não chores mais tua mãe; eu não morri, não; fui ao céu, e agora
volto para ficar contigo.

Se ela não tivesse dito que era minha mãe, eu não a conhecia. Era uma mulher
muito mais moça e muito mais bonita que a defunta mamãe. Tinha os cabelos bem
compridos e soltos, e a cor mais clara. Queria abraçá-la, mas não podia; ela chegou bem
pertinho e deu-me um beijo na boca. Acordei, mas até agora ainda me parece que estou
sonhando aquele sonho.

– Deveras? – disse Lucinda. – E quem sabe se esse sonho não era verdade?

– Como!... Isso não é possível!...

– Deixa estar, minha menina; esse teu bonito sonho é ao menos de muito bom
agouro.

– Deus o permita, tia Lucinda.

Nesse momento apareceu Adelaide, e depois de ter encarregado a Rosaura de


cuidar do almoço, chamou Lucinda a seu quarto. O marido e o pai tinham descido para a
loja; os meninos, alegres e descuidosos, brincavam pela casa.

Lucinda antes de tudo contou à sua sinhá o sonho de Rosaura.

– Que singular coincidência! – exclamou Adelaide, comovida até o íntimo da


alma. – Havia de ser por certo no momento em que eu estava perto dela alumiando-lhe o
rosto, e que ela riu-se para mim, sonhando e eu beijei-lhe a boca.

– Ah! minha sinhazinha, que me está dizendo? Isso é deveras?...

– É a pura verdade, Lucinda; fui por três vezes com a luz na mão espiar o sono
de... de minha filha, sim, de minha filha; hoje estou certíssima de que Rosaura é minha
filha.

– E sinhazinha não está vendo que aí anda o dedo de Deus? Bem estava eu
dizendo ainda agora a Rosaura que aquele sonho tão bonito bem podia ser uma verdade;
e era mesmo, mais do que eu pensava. Essa mãe, que não morreu, e que ela estava
vendo, quem era mais senão sua mãe verdadeira, senão sinhazinha mesmo.

– É isso, Lucinda; parece que Deus por fim se compadece de mim, e nos quer
favorecer, e tenho esperança de que Rosaura ainda há de ser muito feliz. Mas vamos ao
que agora mais importa; o que havemos de fazer a bem de Rosaura? Pensaste nisso,
Lucinda?

– Ah! sinhazinha, eu banzei a noite inteira parafusando na imaginação um


modo de arranjar isso, sem que sinhazinha fique mal, e só achei um furo.

– Qual é ele? Fala, Lucinda.

– Talvez sinhazinha não ache bom, mas eu não vejo outro remédio.

– Não tenhas receio, fala, Lucinda; para conseguir a liberdade e fazer a


felicidade de minha filha, estou disposta a tudo.

– Está direito, e mesmo eu penso que é de nossa obrigação fazer o que me veio
cá na idéia.

– O que é então, Lucinda? Estou impaciente por saber.

– Sinhazinha sabe que sinhá Rosaura não é sua só...

– Pois de quem mais é?

- Ui sinhazinha!... pois não é também de nhô Conrado?

– Ah! por certo – respondeu Adelaide, corando e baixando os olhos.

– Nesse caso, nós devemos participar tudo a ele. Se ele não puder nos guiar e
ajudar neste negócio, ninguém mais. Ele é rico, e tem muito boas amizades na terra; e
demais sinhazinha bem pode imaginar quanto ele é capaz de fazer, sabendo que tem
uma filha linda e mimosa, e que essa filha está no cativeiro.

– Tens muita razão, Lucinda; e eu que nem nisso havia pensado! Mas a falar-te
com franqueza, repugna-me bastante dar esse passo. Não vá ele agastar-se comigo, ficar
nos tendo ódio e desprezo por termos enjeitado a menina, e no excesso de sua
indignação revelar tudo a meu pai e a meu marido, e expor-me à vergonha e desprezo de
todos aqui. Ah! Lucinda, tenho muito medo.
– Nem pensar nisso, sinhazinha; eu conheço. muito nhô Conrado; ele é incapaz
disso. Tem muito bom coração aquele moço, e bastante juízo para ver que sinhazinha
não podia criar sua filha. O que depois aconteceu não foi por culpa nossa.

– Mas ele decerto me há de ter ódio por ter-me casado com outro.

– Qual ódio, sinhazinha! Então ele não há de saber que aqui correu como certo
que ele tinha morrido !

Por fim de contas, não vejo senão ele, que pode e deve amparar a pobre
Rosaura. Deixa tudo por minha conta, sinhazinha; hoje mesmo eu vou conversar com
nhô Conrado; primeiramente hei de sondar ele com jeito, e depois se eu perceber nele
boa disposição, como espero, conto-lhe tudo sem esconder nem disfarçar coisa
nenhuma. Sinhazinha me manda hoje de tarde à rua para qualquer serviço, e eu vou
direitinho à casa de nhô Conrado, e logo de noite lhe venho dar conta do que se passar.

– Pois sim, Lucinda; agora compreendo que é indispensável fazer tudo quanto
dizes; eu, fraca mulher, nada posso fazer em benefício de minha infeliz filha. Ele é pai,
deve e pode fazer tudo. Deus nos há de favorecer, Lucinda; confiemos nele.

CAPÍTULO VII

CONRADO CAPITALISTA

Já que Conrado, que por tanto tempo passava por morto, agora nos aparece de
novo vivo, rico e feliz ao menos na aparência, é-nos indispensável dar conta, por alto,
ao leitor, de como essa notícia se propagou com caráter de tanta veracidade, e do que
sucedeu ao amante de Adelaide, depois que tão ignominiosa e brutalmente foi expedido
da casa do major.

Conrado saiu de S. Paulo com o desespero na alma e a mais pungente dor


cravada no coração. Tinha bastante dinheiro para um rapaz solteiro, e achando-se
inteiramente isento de dívidas e compromissos, saiu a divagar pelo mundo sem destino
certo, a ver se pelas distrações da viagem conseguia mitigar a mágoa, que lhe
atormentava a existência. Assim andou por espaço de dois anos, peregrinando pelas
províncias do Rio de Janeiro, Minas e Bahia, dispendendo a pequena fortuna, que em
seis meses o amor lhe fizera adquirir para ir depor aos pés de sua querida Adelaide; mas
a despeito de todas as suas tentativas não conseguiu esquecer-se da formosa
companheira e amiga de sua infância, da apaixonada e extremosa amante, que na
mocidade lhe vertera pelos caminhos da vida o perfume do amor e da felicidade.
Escreveu-lhe por diversas vezes, esperando sempre uma resposta, que nunca lhe chegou,
porque como sabemos Adelaide não recebera nenhuma de suas cartas. No fim de dois
anos, chegou-lhe às mãos uma carta, não dirigida a ele, que em S. Paulo passava por
morto, mas a um paulista então residente no Sincorá, onde Conrado também se achava,
na qual entre outras coisas se noticiava o casamento de Adelaide.

Esse rude e doloroso golpe o prostrou por muito tempo, sua razão esteve a
extinguir-se, e sua existência vacilou às bordas da sepultura; seus amigos e mesmo os
médicos, que o assistiam, chegaram a desesperar de sua vida. Mas sua juvenil e robusta
organização não permitiu que sucumbisse aos sofrimentos físicos e morais, que o
atormentavam. Restabeleceu-se, se bem que com custo e lentidão, e logo que se sentiu
com o juízo mais firme e a saúde mais vigorosa, começou a pensar no que deveriar
fazer. O amor de Adelaide não era para ele dali em diante mais do que um túmulo, sobre
o qual não deveria derramar nem as lágrimas da compaixão, nem as flores da saudade,
mas sim calcá-Io aos pés com ódio e com desprezo. Suas mágoas desde então
converteram-se em rancor e desejos de vingança. Protestou no fundo dalma que tomaria
do Major Damásio, autor principal dos seus infortúnios, a mais solene e cabal vingança,
não vingança sanguinosa, Conrado não tinha instintos de ferocidade, mas vingança
moral, abatendo-lhe o orgulho e esmagando-o debaixo do peso da mais pungente
humilhação. Nada lhe era mais fácil; o major em sua vida passada oferecia largas
brechas, pelas quais podia ser atacado e abatido até o rés do chão. Para esse fim só lhe
era mister agora tornar-se rico o mais que lhe fosse possível. Não possuía dinheiro
suficiente para entrar em altas especulações; mas já era muito conhecido e considerado
entre os estancieiros de Curitiba, e não lhe faltava crédito, graças ao feliz êxito de seus
primeiros negócios. Entrou de novo na vida de muladeiro, e em poucos anos adquiriu
uma fortuna, que naquela época, em S. Paulo, bem se podia dizer colossal. O que o
amor outrora lhe fizera alcançar, hoje o obtinha em mais alta escala o desejo de
vingança.
Achando-se já suficientemente rico para passar vida independente entre os
esplendores de luxo e de opulência, deixou a vida fragueira de muladeiro, e veio
estabelecer-se na capital da província, onde comprou, no centro da cidade, um vasto
prédio, que ornou e mobiliou com todo o luxo e magnificência. Possuía uma cocheira
sempre guarnecida dos mais belos e vigorosos animais, e uma formosa e elegante
caleche, na qual se apavonava com aristocrático desplante com personagens altamente
colocados, percorrendo as ruas mais públicas da cidade. Com essa ostentação, que nem
estava em seu caráter lhano e despretensioso, nem se harmonizava com suas idéias
eminentemente democráticas, tinha somente em vista esmagar a estólida vaidade do
major, ao qual pretendia não só humilhar, como também expor ao último ridículo
perante a sociedade paulistana. Três ou quatro vezes mais rico do que ele, conhecendo a
baixa linhagem de que procedia o seu velho ex-patrão, e sabedor de todas as suas
manias e de seus precedentes, Conrado jogava com inquestionável superioridade, e o
capataz, outrora achincalhado e expelido, podia agora, calcar aos pés a filáucia ridícula
e imbecil de seu antigo patrão. Todavia, as vingativas intenções, com que chegara a São
Paulo, esmoreceram e esfriaram completamente com as informações que teve logo
depois da sua chegada. Só então soube que há muito tempo passava por morto. Esse
boato, que correra em S. Paulo e fora geralmente acreditado, tivera por origem o fato de
ter realmente morrido no Sincorá um outro negociante do mesmo nome e da mesma
província que Conrado, e tendo chegado essa notícia a S. Paulo, onde o outro era
desconhecido, todos facilmente acreditaram que o falecido era o amante de Adelaide. O
Major Damásio foi o mais empenhado em propalar essa notícia, que muito estimou,
fingindo até ter recebido cartas, que a confirmavam, pois ele até seria capaz de inventá-
la, só para destruir as esperanças que sua filha porventura ainda nutrisse a respeito do
capataz. O tempo, os trabalhos e os sofrimentos não tinham podido extinguir de todo, no
coração de Conrado, aquele amor profundo e ardente, que concebera por aquela que
fora o enlêvo de seus primeiros anos, e o sonho inebriante de sua mocidade, amor de
que conservava ainda amarga e saudosa recordação. Ao saber em S. Paulo que Adelaide
fora iludida como todos, acreditando em sua morte, que não de muito bom grado
consentira em se casar, e que como esposa e mãe tinha tido sempre uma vida honesta e
exemplar, teve dobrado motivo para lastimar sua sorte por ter perdido aquele anjo, que o
céu lhe havia destinado, e que a estólida vaidade de um pai insensato lhe havia roubado
para sempre. Desvaneceu-se de todo o despeito, que conservava contra Adelaide,
perdoou-a de todo o seu coração, mas sua animosidade contra o major por isso mesmo
mais recrudesceu, e se o poupou, e não levou sua vingança ao extremo que desejava, foi
em atenção à estima e consideração que lhe merecia a filha.

A única e ligeira vingança, de que usava, era quando, repoltreado em sua linda
caleche em companhia de pessoas de alta consideração, se por acaso encontrava pelas
ruas o major, o saudava com a ponta dos dedos, dizendo-lhe com zombeteira
familiaridade: – Adeus, major; como vai essa bizarria? – O major horrorizava-se, como
se tivesse visto o diabo, enterrava ainda mais o chapéu na cabeça, e seguia seu caminho
a tossir, escarrar e resmungar, com o que muito Conrado se divertia.

Conrado era capitalista; não tinha armazém, nem loja; sua fortuna girava
produtivamente, sem que suas mãos morenas e musculosas, mas delicadas, precisassem
descalçar a luva para pegar no côvado. Era correspondente de grande número de
estudantes, com os quais entretinha relações de amizade. Os estudantes o estimavam e
freqüentavam não só por suas belas qualidades, como também porque Conrado, através
das vicissitudes de sua vida agitada, soubera cultivar seu espírito, amava a leitura e
apreciava a sociedade dos literatos. Muitos e vantajosos casamentos se lhe tinham
oferecido; mas a todos ele se havia esquivado; a triste recordação de seu primeiro amor
tão mal-aventurado o fazia recuar ante a idéia do casamento. .

Achava-se ele, pois, nessa brilhante e invejável situação, quando se deram os


fatos, que temos referido, e que vieram de novo pô-lo em contato, ainda que em
condições bem diferentes, com a família do major, com a qual suas relações, há mais de
doze anos, achavam-se quebradas.

Na tarde, pois, desse mesmo dia em que Lucinda teve com sua senhora a
conversação, de que demos conta no capítulo antecedente, a velha escrava foi bater à
porta do aristocrático prédio em que Conrado residia. Era já sol posto, e felizmente para
Lucinda, achava-se Conrado sozinho em seu salão de visitas, donde ainda há pouco se
tinham retirado alguns ilustres personagens. Estava ele nessa ocasião meio reclinado em
um sofá, justamente embebido em ternas e dolorosas recordações dos amores de sua
mocidade, da sua querida Adelaide, aos pés da qual com quanto prazer não teria de
posto toda aquela riqueza e opulência, de que gozava, se uma estrela funesta não tivesse
vindo perturbar o seu destino e entenebrecer para sempre os horizontes de sua vida!...
Quando um criado veio anunciar-lhe que uma preta velha o vinha procurar e desejava,
como um grande favor, falar-lhe em particular, Conrado, que era benfazejo e esmoler,
julgou que seria alguma desgraçada como tantas outras, a quem costumava fazer
generosas esmolas. Quando, porém, depois de a ter feito entrar no salão, reconheceu a
velha escrava do major, sentiu um choque inexplicável.

– Oh! és tu, Lucinda! – exclamou, com surpresa e emoção. – Tu em minha


casa! É uma grande novidade. Há mais de doze anos que não falo com pessoa alguma
de tua casa, à exceção do teu belo senhor, a quem às vezes cumprimento, quando o
encontro na rua.

– É mesmo, nhô Conrado, é mesmo uma grande novidade que hoje me traz à
sua casa.

– Deveras? Deve ser mesmo assim, pois já vai para seis anos que moro aqui em
S. Paulo, e é a primeira vez que vens à minha casa.

– Podia e devia ter vindo há mais tempo se há mais tempo tivesse sabido da
grande novidade, que hoje me traz aqui; mas só ontem é que vim a saber.

– Enches-me de curiosidade, Lucinda. Senta-te aí numa cadeira e vamos à tua


novidade. És uma excelente rapariga, e estou certo que, por tua vontade só, eu não teria.
sofrido o que sofri em casa de teu senhor. Mas antes de tudo, dize-me, como vai tua
senhora? Goza saúde, e vive satisfeita?

– Ela vai indo bem, louvado seja Deus. Mecê ainda se lembra dela?

– Como não, Lucinda? – replicou Conrado, algum tanto desconfiado da


pergunta. – Lembro-me sempre dela e com muita saudade, mas com amor não; bem vês
que isso hoje é impossível.

– Mecê não me entende; eu queria saber se não ficou querendo mal a ela pelo
que aconteceu.

– Por ela ter-se casado?

– Senhor, sim.

– A dizer-te a verdade, Lucinda, a princípio fiquei com bastante ódio dela,


porque não sabia das tramóias, que por cá se armaram dando-me por morto. Mas, depois
que soube de tudo, perdoei-lhe do fundo dalma, e só fiquei com um grande pesar, que
há de durar sempre em meu coração, e um grande ódio e rancor, que também nunca se
há de extinguir, contra teu senhor, que foi o único causador de toda a nossa desgraça.

– Mecê tem toda a razão, nhô Conrado; meu sinhô velho é homem que não tem
coração. Como mecês dois se queriam bem desde criança, ah! meu Deus! nunca vi um
amor assim! Se ao menos sinhá Adelaide lhe tivesse dado uma filhinha, como mecê
havia de querer bem a ela!...

– Que lembrança é essa, Lucinda! – atalhou Conrado, atônito e estremecendo


ao ouvir tais palavras. Que queres dizer com isso?... Mas bem vês que isso era
impossível.

– Mas faça de conta, – insistiu a preta com certo sorriso, que fez cismar a
Conrado – se assim acontecesse... se um filho ou uma filha...

– Oh! se assim fosse, seria para mim uma grande consolação, a única talvez
que poderia mitigar a dor profunda, que sempre me acompanhará por ter perdido
Adelaide. Tu tens razão, eu sou como o viúvo, que perdeu a esposa idolatrada ainda na
flor dos anos, sem que de sua união ficasse um fruto, em que empregasse os extremos
de seu coração. Olha, Lucinda, – continuou ele, abrindo um cofrezinho e tirando dele
um papel, que embrulhava um pequeno ramalhete de flores murchas, tão murchas, que
estavam quase pulverizadas. –Vês estas flores murchas? Já nem se sabe o que são. Foi
ela que mas deu no jardim da chácara, um dia, em que declarou-me francamente o seu
amor. No dia em que eu soube do casamento de Adelaide, quis deitar fora estas flores;
mas não tive ânimo; parecia que meu coração adivinhava que ela era inocente. É tudo
que resta de nosso antigo amor; são estas flores murchas e poídas, fiel emblema de
minhas ilusões perdidas, de minhas esperanças esmagadas pelas mãos do destino. Se eu
conservo com tanto amor e tão religioso cuidado estas relíquias mortas de nossa afeição,
de que extremos, de que adorações não rodearia o fruto vivo e animado de nosso
amor!... Mas Deus assim não permitiu, nem isso era possível...

Conrado interrompeu-se; a emoção, que se apoderava de sua alma com aquelas


recordações, provocava-lhe as lágrimas. Pousou a fronte sobre a almofada do sofá, e
escondeu o rosto entre as mãos, procurando dominar sua perturbação. Lucinda o
contemplava com ar satisfeito e enternecido, e não quis perturbá-lo em sua passageira
cisma; as coisas corriam do modo o mais propício para o intento que ali a trouxera.
– Mas dize-me, Lucinda – disse bruscamente Conrado, levantando a cabeça da
almofada – a que propósito te veio essa lembrança de um filho meu e de Adelaide, de
uma coisa impossível?

– Impossível!... ah! meu branco, perdão, eu sei de tudo.

– De quê, Lucinda? – exclamou o moço, impacientando-se.

– Não se zangue com sua preta, nhô Conrado, disse Lucinda, abafando a voz e
com ar suplicante. Eu sei de tudo o que mecê sabe, e de mais alguma coisa que mecê
ainda não sabe.

– Matas-me a paciência! Fala de uma vez, Lucinda.

– Pois bem, eu vou falar bem claro. Sinhá Adelaide teve uma filha, que nasceu
poucos meses depois que mecê desapareceu de S. Paulo. .

– Que estás dizendo, Lucinda! – gritou Conrado, levantando-se de um salto, e


colocando-se defronte da preta, arquejante e pálido de surpresa e emoção. – Adelaide
teve uma filha... de mim?

– Pois de quem mais, nhô Conrado?..

– E é viva ainda?

– É sim, senhor.

– E onde está ela?

– Lá em casa.

– Em casa de quem?

– De meu senhor; com sinhá Adelaide.

– Santo Deus, como pode ser isso!... Minha filha, se a tenho, deve estar já
entrada em quatorze anos; entretanto, há mais de cinco anos que moro aqui em São
Paulo, nunca me constou que em casa do major existisse essa menina. Oh! por que não
me contaram isso há mais tempo?...

– Ah! meu senhor moço! quer mecê creia, quer não creia, é porque nós também
não ficamos sabendo de tal coisa, senão de ontem para hoje, e há apenas um mês que a
menina está lá em casa. E saiba mais uma coisa, que lhe vai doer bastante no coração,
mas tenha paciência, é preciso que saiba de tudo para poder valer à sua filha. Saiba que
sua filha foi para lá como escrava, e como escrava lá está até agora.

– Como escrava!... Minha filha como escrava, e em casa de sua própria mãe!...
Tu estás zombando comigo, Lucinda! Explica-me isso já, se não queres me pôr doido.

– Tenha paciência, nhô Conrado; sente-se outra vez no seu canapé, sossegue
seu coração, que eu lhe vou contar tudo o que aconteceu depois que mecê se foi embora
de S. Paulo.

– Sim! sim!... Conta-me tudo, e depressa, que estou morrendo de impaciência!

Conrado chamou um criado, e ordenou-lhe que dissesse a quem quer que o


procurasse que não se achava em casa. Interessava-lhe ao último ponto a narração que ia
escutar, e não lhe convinha por modo algum ser interrompido. Não quis que se
acendessem luzes no salão – pois já vinha descendo a noite, recomendou que todos os
fâmulos e escravos se recolhessem ao fundo do edifício, trancou algumas portas e
voltou para junto de Lucinda.

Todas essas precauções, inspiradas pelos nobres e delicados sentimentos de


Conrado, eram necessárias, porque só ele devia ouvir o que a preta ia revelar; trata-se da
honra de uma senhora, a quem muito amara, a quem muito estimava ainda, e cuja
reputação até aquela data se tinha conservado ilibada.

– Que diabo de negócio terá ele com aquela bruxa velha? – murmuravam entre
si os criados, curiosos e pasmados de tão estranha e misteriosa conferência.

CAPÍTULO VIII

REVELAÇAO

Lucinda contou minuciosamente a Conrado tudo o que havia sucedido em casa


do major desde a época, em que aquele, repelido com brutal tenacidade em suas
pretensões à mão de Adelaide, se vira forçado a retirar-se de S. Paulo. Informou-o das
rigorosas medidas e precauções que o major tomara a fim de interceptar toda e qualquer
comunicação entre os dois amantes, de modo que não lhes foi possível nem mesmo
fazê-lo sabedor do grave e melindroso estado em que se achava Adelaide. Se não fosse a
dilatada e oportuna viagem que fizera o major, e os cuidados e precauções tomadas por
ela, Lucinda, não sabe o que teria sido da honra e mesmo da vida da pobre sinhá, que
teria talvez sucumbido, vítima da cólera do pai.

Narrou-lhe como em uma noite Adelaide, assistida unicamente por ela, tinha
dado à luz com feliz sucesso uma linda e vigorosa menina, que nessa mesma
madrugada, pela deplorável necessidade das circunstâncias, expôs ocultamente em casa
de uma vizinha, conhecida pelo nome de Nhá Tuca, que passava por uma senhora
honesta e caridosa. Em casa dessa mulher ficava-lhes fácil velar sobre a sorte da
criança, ter freqüentes notícias dela, socorrê-la por meios ocultos e indiretos, e vê-la
mesmo de quando em quando, sem suscitar desconfianças: que nesse mesmo dia,
porém, indo à casa de Nhá Tuca colher disfarçadamente alguma notícia da enjeitada,
soube que tinha morrido, e vendo em uma sala o cadáver já amortalhado de uma criança
recém-nascida, acreditou piamente que era o da filha de Adelaide. Voltou a casa com
essa triste nova. Passaram-se dois anos, sem que recebesse notícia alguma de Conrado,
até que correu em S. Paulo, como certa e confirmada por todos, a notícia de seu
falecimento. Adelaide passou mais dois anos de tristeza e abatimento, deplorando a
perda do amante e da infeliz filhinha, recusando alguns casamentos vantajosos, até que
enfim se resolveu, não sem alguma relutância, a casar-se com o Sr. Morais, do qual tem
tido até o presente quatro filhinhos. A primeira, linda menina por nome Estela, que é o
mimo da casa, e o ídolo dos pais e do avô, mostrou ultimamente com insistência o
desejo de possuir uma mulatinha, que lhe servisse de mucama, que a acompanhasse à
escola, à missa e aos passeios. O avô, que só desejava adivinhar os pensamentos da
netinha, deu ordem franca ao genro para procurar e comprar, fosse por que preço fosse,
a mais linda mulatinha que pudesse encontrar. O Sr. Morais, depois de muito procurar,
acertou de encontrar com efeito a mais linda jóia que se pode imaginar, comprou para
escrava de sua filha a filha de sua mulher, a irmã de seus filhos!... Quem tal creria?

– É uma menina branca, mimosa, rosada e linda como um anjo! – dizia Lucinda
– Tem cabelos soltos, pele fina... Encheu as vistas e fez a admiração de toda a gente de
casa... Os meninos, coitadinhos! sem saberem que ela é irmã deles, já lhe querem muito
bem, porque ela não só é bonita como muito boazinha.
Conrado mal respirava ouvindo essa tôsca mas fiel descrição de sua filha. –
Basta, Lucinda, basta! – interrompeu ele, impacientado. – Agora só quero que me digas
por que meio descobriste que essa menina é a filha de Adelaide.

Lucinda, continuando, revelou a Conrado as desconfianças que lhe haviam


atravessado o espírito ao observar a notável semelhança que as feições de Rosaura
tinham com as de Adelaide e mais ainda com as de Conrado.

Por fim, contou-lhe como havia adquirido a certeza, de que Rosaura era a filha
de Adelaide, em razão do sinal que na véspera havia descoberto no peito da menina, e
por certas perguntas, que tinha feito e cujas respostas combinavam perfeitamente com
suas suposições.

– Deus me perdoe! – concluiu ela – se juro falso...

Mas posso... devo jurar... juro que Rosaura é a filha de sinhá Adelaide, que
fizeram batizar como escrava.

Conrado escutou com a mais profunda atenção a longa narrativa, que a preta
lhe fez em linguagem sinples e expressiva, e de que demos um rápido resumo por já ser
conhecida do leitor.

Ele conhecia bem Lucinda, essa boa e fiel escrava, que criara Adelaide com o
leite de seus peitos, e que sempre lhe fora tão dedicada. Não lhe era possível duvidar de
suas deposições. Apenas a interrompera, uma ou outra vez, com interjeições de pasmo
ou de dó, de despeito ou de cólera.

– Oh! meu Deus! meu Deus! – exclamou ele, quando Lucinda terminou. –
Minha filha escrava! escrava de outros!... E por fim ser vendida à sua própria mãe!...
Ah! maldito major! tu só és responsável, perante Deus e a humanidade, de tão estranha
desventura! Foste tu, e mais ninguém, que reduziste tua neta à condição de escrava. Mas
eu juro por Deus e por tudo quanto há sagrado: minha filha, a filha de Adelaide, em
poucos dias será reconhecida livre, como nasceu, e não como liberta, custe o que custar,
dinheiro, lágrimas, sangue mesmo, se for preciso! Lucinda, tu bem vês, Deus nos
favorece, e tu tens sido em tudo isto o instrumento da sua Providência.

– Sim, nhô Conrado; ao menos assim parece; mas tenha dó de sinhá Adelaide;
não a ponha a perder; ela, coitada, não tem culpa de nada.
– Sim, Lucinda, bem sei, e não quero comprometer a honra e reputação de que
goza Adelaide; mas não sei... se isso será possível... Dize-me uma coisa; ainda existe
essa mulher chamada Nhá Tuca?

– Não lhe sei dizer, nhô Conrado. Pensando que a enjeitada tinha morrido
deveras, não me importei mais com tal mulher; nunca mais fui por aquelas bandas, e
nem tenho perguntado por ela a ninguém.

– Mau! – disse Conrado, estremecendo; – se ela não é viva, a coisa não está
muito bem parada. Só ela poderia desembrulhar esse mistério e converter em certeza o
que por ora não passa de uma conjetura.

– Não se aflija, nhô Conrado; bem pode ser que ela ainda viva na mesma casa.
Amanhã, vou saber.

– Pois sim, Lucinda; vê modos de lá ir o mais breve que te for possível, e


verificar se é viva ou não essa mulher. Ajuda-me nesta empresa; eu não posso ter nem
mais um instante de sossego, enquanto não vir minha filha restituída à condição em que
nasceu, à sombra deste telhado, partilhando comigo destes bens, que deu-me a fortuna.
Vai; eu saberei recompensar os teus serviços.

– Ah! nhô Conrado! pois é preciso paga?.. Pois ela também não é o mesmo que
minha filha? Não basta a alegria, que eu hei de ter? Deixe-se disso, nhô Conrado; sua
escrava está pronta para tudo que mecê determinar. Amanhã é domingo; costumo
sempre ir ouvir missa em Santa Ifigênia, e tenho de ir à chácara. Da chácara à casa de
Nhá Tuca é um pulo. Amanhã, pela tardinha, às mesmas horas que hoje vim, aqui estou
para dar parte a mecê do que souber.

– Aqui te espero. Se por felicidade ainda ela for viva, exista ela onde existir,
irei imediatamente procurá-la, e com um punhal em uma das mãos e uma bôlsa bem
recheada na outra, forçá-la-ei a vomitar a confissão da execrável atrocidade que
cometeu. Mas antes disso, irei amanhã mesmo, vencendo minha repugnância, cruzar a
soleira daquela casa, sepulcro de minha felicidade, e proporei ao tal Sr. Morais a
compra de sua escrava; não quero que ela continue nem mais um só dia no cativeiro.
Vou comprar minha filha a peso de ouro!... Depois tratarei de provar aos olhos da
sociedade que ela nasceu livre.
– Ah! nhô Conrado, eu acho que sinhô Morais não vende a menina nem por
quanto ouro há neste mundo.

– Julgas isso?.. Pior para ele. Declararei que Rosaura é minha filha, e como pai
tenho o direito de reclamá-la. Se nem assim quiser cedê-la, lhe direi que tenho certeza
de que nasceu de mãe livre, o que tratarei de provar perante os tribunais, ainda que para
isso seja preciso despender tudo quanto possuo.

– Mas sinhá Adelaide... Coitada!...

– Não tocarei no nome de Adelaide; minha boca jamais revelará quem é a mãe
de minha filha, salvo no caso que isso seja absolutamente necessário.

– Permita Deus que não seja.

– Nesse caso é bem triste a colisão em que me verei: – entre a honra de uma
mulher, que amei, que amo ainda, e a liberdade de minha filha!... Que partido posso eu
tomar? A própria Adelaide, creio eu, não hesitará em confessar sua falta, se assim for
preciso para arrancar sua filha ao cativeiro.

– É assim mesmo, nhô Conrado; é uma lástima; mas tenho fé que Deus não há
de permitir que isso seja preciso.

Lucinda voltou para a casa contentíssima pelo feliz resultado da comissão, de


que se havia encarregado. Ao ver que Conrado nenhum rancor guardava contra
Adelaide, e que pelo contrário só tinha para com ela palavras de afetuosa ternura e de
triste e saudosa recordação, seu coração nadava em júbilo. Apressou-se em comunicar
tudo à sua senhora, que sentiu acudirem-lhe aos olhos lágrimas de enternecimento, e
estremeceu em sua consciência de honesta e leal esposa receando que se ateassem de
novo, debaixo das cinzas, as mal extintas chamas de seu primeiro amor.

Se bem que contente e esperançada pelo modo por que as coisas se iam
encaminhando, bem mal dormida passou Lucinda essa noite, atormentada pela incerteza
de achar ou não viva Nhá Tuca, esperando com a mais viva impaciência o alvorecer do
dia.
CAPÍTULO IX

NA MISSA

O mesmo acontecia a Conrado, que passou uma noite agitadíssima. A revelação


que Lucinda acabava de fazer-lhe, parecia-lhe um sonho, e punha-lhe o espírito quase
em delírio. As tristes recordações do passado vinham juntar-se agora as apreensões do
futuro, e toda a noite passou ele a cogitar nos meios mais convenientes e eficazes, que
deveria empregar para fazer reconhecer sua filha como livre de nascimento sem
comprometer a reputação de Adelaide. Volvendo também, às vezes, suas vistas para o
passado, enxergava nesse estranho acontecimento um castigo da Providência, que assim
punia o orgulho, fatuidade e dureza desse homem, que tanto blazonava de branco e
fidalgo do mais puro sangue, fazendo que sua neta, até a idade de quatorze anos, vivesse
na humilhante condição de escrava, até por fim ser vendida como tal à sua própria mãe,
para servir de mucama a uma irmã sua.

Conrado em vão se deitava, procurando conciliar o sono pela leitura de algum


livro; não conseguia achar distração alguma às vivas preocupações, que lhe agitavam o
espírito. Levou quase toda a noite a passear por todas as salas e corredores de sua vasta
habitação, consultando amiúde o relógio e a contar essas horas, que para ele se
escoavam com desesperadora lentidão. Assim esperou ele o fim dessa noite angustiosa,
que, apesar de correr o mês de novembro, lhe pareceu mais longa do que uma noite de
junho.

Enfim, alvoreceu bela e risonha a aurora desse dia que tão ansiosamente
aguardava, e que tão decisiva influência tinha de exercer sobre seu destino e sua futura
felicidade. Era um domingo. A uma noite brusca, chuvosa, havia sucedido um dia limpo
e sereno. Os sinos das diversas igrejas dobravam e repicavam alegremente, e o povo,
que acudia às missas matinais, começava a cruzar por todas as ruas da cidade. O
coração de Conrado expandiu-se em palpites de prazer e de esperança.

– Perdi a amante, que devia ser minha esposa murmurou consigo; mas o céu
teve piedade de mim e preservou-me a filha, que hoje ou amanhã terei a ventura de
acolher em minha casa, e apertar em meus braços.
Como era por demais cedo para ir à casa do major, Conrado tratou de vestir-se
para ir à missa da Sé, que os sinos anunciavam, e isso não só para matar o tempo, que
tão lento lhe corria, como também a fim de implorar a proteção do Altíssimo para o
bom êxito do melindroso negócio, em que se achava tão vivamente empenhado.

Tendo entrado na Igreja, depois de feita uma curta oração, começou a passear
olhares indiferentes pelos diversos grupos de mulheres, que se achavam sentadas pela
nave à espera da missa. Súbito, deu com os olhos em um grupo que lhe fixou a atenção.
Compunha-se ele de uma senhora ainda moça, alta, esbelta e formosa, de quatro
galantes crianças e de uma rapariga, que lhes servia de mucama, tão branca e tão linda,
que, se não fora o trajo mais simples e modesto e a posição que ocupava atrás do grupo,
a tomaríeis seguramente por uma irmã mais velha dos outros meninos.

Com aquela vista, Conrado estremeceu e sentiu calafrios; na mãe de família


reconhecera imediatamente Adelaide; mas toda a sua atenção, a princípio, concentrou-se
na mucama. Era Rosaura; não podia haver a menor dúvida, era sua filha; era ela que ali
estava, servindo de escrava à sua mãe e a seus irmãos!... Durante toda a missa, o
mancebo não arredou os olhos daquele interessante grupo, que representava para sua
alma um passado cheio de saudosas e amargas recordações, e um futuro cheio de
ansiedade e inquietação.

Rosaura trajava um singelo vestido de chita fina, azul-claro, apertado à cintura


por uma fita cor-de-rosa; os cabelos negros e lisos no alto da cabeça, presos por uma fita
da mesma cor, desciam-lhe soltos pelos ombros, caracolando em abundantes e luzidios
cachos. A mantilha de lã escura, que trazia em volta do pescoço, em razão da frescura
da manhã, ainda mais fazia sobressaírem as linhas harmoniosas de seu busto encantador.
De joelhos, com a cabeça inclinada, os braços cruzados por baixo dos seios, só lhe
faltavam as asas para que a julgásseis um serafim em atitude de adoração.

Conrado a contemplava cheio de enlevo e orgulho, ao mesmo tempo que se lhe


confrangia o coração ao considerar que, por um singular capricho da sorte, essa tão
linda criatura, tendo nascido livre, estava reduzida à escravidão, e era cativa de sua mãe.
Não há expressões que possam interpretar em toda a sua intensidade as vivas emoções,
que assaltaram o espírito do mancebo, ao ver diante de si, ajoelhadas ante o altar de
Deus a amante, que o céu lhe destinara para esposa, e que lhe arrancaram dos braços
para entregá-la a outrem, e a filha, que logo ao nascer escapara aos braços maternos
para ser, por meio da mais abominável maquinação, reduzida ao cativeiro.

Os olhos de Conrado iam de Rosaura a Adelaide e de Adelaide a Rosaura, e,


confrontando as feições de uma e de outra, não pôde deixar de reconhecer a notável
semelhança que entre elas existia. Já nenhuma dúvida lhe restava no espírito; a voz da
natureza acabava de confirmar de um modo irrefragável as suposições de Lucinda, e lhe
bradava dentro dalma: é tua filha.

Ainda nada tinha sido revelado a Rosaura a respeito do seu nascimento e


verdadeira condição, e nem convinha que o fosse, enquanto esse fato não estivesse
verificado por meio de provas evidentes e irrecusáveis. Por isso Adelaide, posto que em
sua consciência já tivesse plena e íntima convicção de que Rosaura era sua filha,
continuava ainda a tratá-la como escrava, se bem que com o mesmo mimo e carinho,
que prodigalizava aos outros filhos. As duas mulheres, com a atenção concentrada nos
atos religiosos, não olhavam em derredor, e por isso não notaram a presença do homem,
que com tanta persistência as observava.

Terminada a missa, Conrado esperou que elas saíssem, e as foi acompanhando


em certa distância, até sumirem-se a seus olhos dobrando o ângulo da Rua Direita com a
de S. Bento, na qual residia Adelaide. Desejaria nunca mais perder de vista aquelas duas
mulheres, às quais seu destino se prendia por laços de tanto afeto e de tanto mistério.
Mas não era chegada ainda a ocasião. E Conrado, que morava na Rua Direita, entrou em
casa unicamente para ganhar tempo, e para não fazer uma visita demasiado matinal
esperou que soassem dez horas.

Às dez horas e um quarto, entrava ele na loja do Sr. Morais. Estava este
sentado no mostrador e quase sàzinho, pois o único caixeiro, que ali existia, estava
quase sumido a um canto, entre fardos e rolos de fazenda, a olhar para as prateleiras.
Depois de se terem cumprimentado friamente, como pessoas que apenas se conheciam,
Conrado declarou a Morais que desejava ter com ele uma conversação particular.
Morais o levou a um gabinete no fundo da loja.

– Consta-me – disse Conrado – que V. S.a possui uma linda escravinha, que
comprou a um senhor. . . não me lembra agora o nome.
– Ao Sr. Basílio, morador na Rua do Tabatinguera – atalhou Morais. – Mas a
que vem agora essa pergunta?

– Vem muito a propósito, e é até necessária, porque é justamente a respeito


dessa...

Conrado não teve ânimo de pronunciar a palavra – escrava – que lhe queimava
os lábios falando de sua filha.

– A respeito dessa menina – continuou ele concluindo a frase – que venho


conversar com V. S.a.

– Ah! – murmurou Morais, que desde o começo dessa conversação, por uma
vaga desconfiança e sem saber bem por que, começava a sentir-se constrangido e
contrariado.

– Tenha paciência, Sr. Morais; escute-me alguns momentos, que em poucas


palavras vou lhe explicar tudo.

Essa menina, se é a mesma que eu penso, tem todo o direito à liberdade, e eu


tenho o mais vivo desejo, tenho mesmo obrigação de comprá-la a fim de restituí-la à
liberdade. Não olho o preço; exija, Sr. Morais, que será imediatamente satisfeito.

– Sinto não poder satisfazer os seus desejos, Sr. Conrado; não há dinheiro que
compre essa rapariga; é um mimo que meu sogro fez a uma filha minha, e nem ela, nem
eu, nem minha mulher estamos dispostos a vendê-la, nem mesmo quando V. S.a nos
trouxesse todos os tesouros das Mil e Uma Noites.

– Deveras?.. Com efeito! – exclamou Conrado, com um sorriso algum tanto


sarcástico. – Mas talvez essa menina não seja a mesma, que eu penso; V. S.a não poderá
fazer-me o favor de mandar chamá-la?... Desejo muito vê-la, porque se não for a que eu
suponho, é escusado incomodá-lo por mais tempo.

– Oh! por que não! – disse Morais que, chamando o caixeiro, lhe deu recado, e
daí a momentos Rosaura compareceu à presença de Conrado. Ao encarar aquele
homem, que nunca tinha visto, e que fitava nela um olhar penetrante, mas afetuoso e
terno, a jovem escrava sentiu indizível comoção; tomou a bênção, à maneira dos
escravos, abaixou os olhos e corou. Vendo agora face a face e tão perto de si aquele
rosto em que, ao lado da beleza, ressumbrava toda a candura e inocência de uma alma
angélica, Conrado a muito custo pôde conter e dissimular sua emoção.

– Encantadora menina! - murmurou ele, voltando-se para Morais, que fez um


gesto de displicência.

O primeiro impulso de seu coração foi de apertá-la nos braços, e depor-lhe na


fronte o primeiro beijo do amor paterno; mas conteve-se, porque ainda não era a ocasião
própria para a expansão de seus afetos.

– Como te chamas, menina? – perguntou ele a Rosaura, com vez afetuosa.

– Rosaura, uma sua escrava – respondeu a menina.

– Rosaura! Bonito nome!... Que idade tem?...

– Devo ter quatorze, pouco mais ou menos.

– Em que lugar nasceste?...

– Nasci aqui mesmo perto da cidade, em uma casa que fica para as bandas de
N. Senhora do Ó.

– Quem era teu primeiro senhor?!...

– Era uma mulher chamada Nhá Tuca, que me vendeu, quando fiz dez anos, a
um velho chamado Basílio, morador na Rua do Tabatinguera, e este foi que me vendeu
para o Sr. Morais.

– Conheceste tua mãe?

– Conheci, sim senhor, eu tinha sete para oito anos, quando ela morreu.

– Não te lembras da cor e da figura que tinha?

– Muito mal; só me lembro que era mulata clara... – Pobrezinha!... refletiu


consigo, Conrado. – Era preciso ter alma bem negra para reduzir à escravidão e à
orfandade uma tão linda e interessante criatura, que. aliás nasceu livre e ainda tem o pai
e a mãe vivos!

Morais escutava com especial desagrado e estranheza esse interrogatório, do


qual não podia compreender a importância, nem o alcance.
– Sr. Morais – disse Conrado, voltando-se para ele, – estou satisfeito e fico-lhe
obrigado. Pelas perguntas, que fiz, e pelas respostas, que a menina me deu, fico
suficientemente inteirado do que me convinha saber. Pode mandá-la retirar-se.

– Sr. Morais – continuou ele, depois que Rosaura se retirou, – tenho o maior
empenho em libertar essa menina; já lhe disse que não recuo diante do preço, por
exagerado que seja. Creio também que V. S.a nenhum interesse pode ter em conservá-la
no cativeiro, e que tem alma bastante nobre e generosa para não desejar ver, por mais
tempo, em tão aviltante condição, uma menina tão linda e tão digna de melhor sorte. É a
mesmíssima rapariga, que eu supunha, e tenho motivos muito particulares e poderosos
para tratar de sua liberdade.

– Se V. S.a – respondeu secamente Morais, – tem motivos poderosos para


querer libertar essa rapariga, eu também os tenho e muito poderosos para não cedê-la
por preço nenhum. Demais, fique V. S.a sabendo que, embora seja ela escrava, é tratada
com toda a brandura e carinho, como se fosse uma filha. Também nós pretendemos dar-
lhe a liberdade; mas é cedo ainda; Rosaura é muito criança; precisa ainda ser vigiada e
educada, e está em nossa casa, como se fosse nossa tutelada.

– Pois bem, Sr. Morais; fico ciente de quais sejam os motivos por que não quer
ceder-me a menina; concordo que não deixam de ser poderosos, e mesmo não duvido
que V. S.a se acha possuído das melhores intenções a respeito dessa escrava; mas eu
tenho uma razão muito mais atendível e muito mais poderosa que qualquer outra, e
diante da qual espero que V. S.a, se é homem de bem e de consciência, como creio, não
hesitará um só momento em satisfazer o meu desejo.

– Eu!... talvez... mas não compreendo que possa haver essa razão tão forte...

– É muito simples; e para que V. S.a não pense que sou levado a dar este passo
por algum motivo menos nobre e honesto, aqui lhe declaro imediatamente e sem
rebuço: sou pai de Rosaura.

– V. S.a. pai de Rosaura! – exclamou Morais, atônito e desconcertado com essa


brusca e inesperada declaração. - É possível, mas... é bem difícil de acreditar-se.

– V. S.a. duvida?.. Pois saiba que não tenho o costume de mentir, nem mesmo
em coisas triviais, quanto mais quando se trata de negócio tão sério – replicou Conrado,
assumindo um tom de voz e uma atitude grave e imponente.
– Sim! bem pode ser – disse Morais, balbuciando, – Nada mais natural e mais
comum do que... a gente.... ter filhos naturais, mesmo com escravas; mas V. S.a. poderá
provar...

– Posso.

– Pois bem, mesmo que o prove, que direito lhe assiste para exigir de mim a
entrega de sua filha, que e minha escrava?

A estas palavras, os olhos de Conrado se incendiaram em súbitos lampejos de


indignação e cólera. – Sua filha, que é minha escrava!... Esta frase cruel doeu-lhe mais
que o mais pungente e feroz insulto, e atravessou-lhe o coração como lâmina de ferro
em brasa. Entretanto, uma simples declaração lhe era bastante para fulminar ali mesmo
o orgulhoso senhor, que usava para com ele de semelhante linguagem. Forçoso, porém
lhe era por enquanto sopear os ímpetos de sua indignação; não devia e nem convinha
fazer essa declaração senão em último caso, e quando já tivesse provas irrefragáveis
para confirmá-la.

– Julguei que V. S.a fosse razoável, Sr. Morais, retorquiu Conrado, refreando a
custo sua cólera. – Mas já que a declaração, que acabo de fazer-lhe, de que essa menina
é minha filha, não é bastante para fazê-lo largar mão dela, fique sabendo mais que essa
rapariga, que tem como escrava, nasceu livre, de pai e mãe livres, e que não foi senão
em conseqüência de uma execranda e infernal maquinação que ela desde a infância se
acha reduzida a essa triste condição, o que tudo posso e hei de provar. V. S.a. não quer
cedê-la por dinheiro; bem, pois ver-se-á obrigado a entregá-la sem indenização alguma.

– Isso é que eu duvido, Sr. Conrado; a descendência dessa rapariga é conhecida


e notória, como V. S.a. acaba de ouvir da boca dela mesma. É filha de uma mulata já
falecida, que era escrava de uma senhora por nome Gertrudes, pessoa que eu mesmo
conheci, e que é geralmente conhecida pelos habitantes de S. Paulo, e que talvez ainda
exista para confirmar o que digo.

– Deus assim o permita, – murmurou Conrado.

– Quanto ao pai – continuou Morais – pouco nos importa saber quem ele foi,
porque como V. S.a de certo não ignora – partus ventrem sequitur, – a cria segue a
condição da mãe.
– Sei bem disso, Sr. Morais; mas V. S.a está bem certo de que Rosaura é
realmente filha dessa mulata escrava, pertencente a tal Nhá Tuca?...

– Tanto quanto se pode estar certo de uma coisa evidente e incontestável. A


maternidade é coisa que não se pode pôr em dúvida.

– Pode-se muito, e hei de provar que a verdadeira mãe de Rosaura não é essa,
que se lhe atribui, não é essa escrava de Nhá Tuca, mas uma mulher livre...

– Mas quem lhe disse isso?.. Quem é essa mulher? . . .

– Ah! Sr. Morais, praza ao céu que V. S.a sempre ignore quem é ela!

– E por que razão? Que quer dizer isso, senhor? Não me explicará?

– Nada, Sr. Morais; são lembranças tristes, que me atribulam o espírito –


respondeu Conrado, arrependido da exclamação, que lhe escapara. Mas, enfim, como V.
S.a de forma alguma quer aceder aos desejos, não quero importuná-lo por mais tempo, e
vou tratar da liberdade de minha filha pelos meios a meu alcance.

– Faça o que entender – replicou secamente Morais.

E esses dois homens, que há pouco se tinham cumprimentado com frieza e


indiferença, despediram-se, agora, em tal tom de mau humor e desabrimento, que fazia
pressagiar entre eles a mais pertinaz e encarniçada luta.

Conrado voltou para a casa sumamente contrariado e aflito com as formais e


terminantes negativas de Morais. Não obstante o tom de seguridade com que falara a
este não deixava de nutrir sérios receios a respeito da possibilidade de provar a condição
livre de Rosaura. A sua principal esperança repousava sobre a existência dessa mulher,
que a tinha reduzido à escravidão, e da qual esperava arrancar, com promessas ou
ameaças, a confissão de seu crime. As outras provas que podia aduzir não constituíam
senão presunções, em verdade mui veementes, mas que podiam ser contestadas e
infirmadas vantajosamente. O sinal que Rosaura tinha no peito, bem podia ser uma
coincidência devida ao acaso, e demais alegado por uma simples escrava pouco valor
podia ter, até mesmo poderia ser considerado como mero embuste de sua invenção para
favorecer sua companheira de cativeiro. A semelhança, que se notava entre as feições de
Adelaide e de Rosaura, era uma circunstância em que nem de leve pretendia tocar, uma
vez que pudesse obter o reconhecimento da liberdade de sua filha sem declarar sua
maternidade, e por conseqüência sem comprometer a reputação de Adelaide. O fato de
ter nascido uma criança escrava, no mesmo dia e na mesma casa em que morria uma
enjeitada, também não autorizava a assacar contra uma pobre velha a imputação do
hediondo crime de ter substituído pela enjeitada a criança morta. Era preciso um
depoimento formal de qualquer testemunha insuspeita, que confirmasse as fortes
presunções resultantes de todas essas circunstâncias. A única pessoa talvez que, à
exceção de Nhá Tuca, poderia depor sobre o fato, com plena ciência e consciência, era a
suposta mãe de Rosaura; mas essa há muito tempo já não existia.

Conrado avaliava em seu espírito todos esses prós e contras, e dando talvez a
estes maior peso e valor do que realmente mereciam, afligia-se em extremo, mas não
sem fundamento, porque, se já não existisse a velha Nhá Tuca, o negócio do
reconhecimento de Rosaura como livre de nascimento dificilmente poderia ser
encaminhado com esperança de êxito feliz. Ora nada era mais natural e mesmo provável
do que o fato de já ser falecida aquela mulher, que, segundo lhe dissera Lucinda, há
quatorze anos já era velha e adoentada.

Enquanto Conrado espera com a mais viva impaciência a hora, em que a velha
escrava tem de vir dar conta de sua comissão, acompanhemo-la nos passos que deu para
desempenhá-la.

CAPÍTULO X

ESTARÁ VIVA OU NÃO?

Enquanto Conrado, sôfrego, e ansioso, dava esses passos na cidade, não menos
solícita e inquieta andava a boa Lucinda lá pelos lados da freguesia de Nossa Senhora
do Ó. Nessa manhã, como prometera, foi à Santa Ifigênia, onde ouviu missa às nove
horas, e dali seguiu, em marcha a mais acelerada que lhe foi possível, pela estrada de
Jundiaí. Não tomou pelo caminho da chácara do major; nada tinha lá que fazer;
continuou direito pela estrada real até a altura, que era bem conhecida, onde existia a
casa de Nhá Tuca. Não é possível explicar qual foi o seu espanto e consternação
quando, ao chegar ali, não avistou senão ruínas. Da casa não restavam senão os esteios
carbonizados e algumas paredes derruídas; o teto tinha desabado; as cercas estavam
arrombadas, e o abandono, a solidão e a tristeza reinavam naquele sítio, que outrora fora
uma vivenda tão ruidosa, alegre e animada. A casa de Nhá Tuca era erma tapera, onde
não se via viva alma, a quem se pudesse dirigir qualquer pergunta. A tal espetáculo, um
frio e angustioso desalento se apoderou do coração de Lucinda, que quase desfaleceu.
Sentou-se à beira da estrada em frente das ruínas, e pôs-se a refletir. Lembrou-se que, a
uns quinhentos passos mais ou menos pela estrada adiante, havia também, à beira do
caminho, a casa de um francês, que tinha negócio. Era o vizinho mais próximo de Nhá
Tuca, e devia saber qual tinha sido o destino dessa mulher. A casa tinha sido queimada,
não havia dúvida; mas isso não queria dizer que a dona também já não existisse.
Lucinda reanimou-se de um resto de esperança, levantou-se e pôs-se a caminhar para
diante. Como era domingo, à porta da taverna do francês havia numeroso concurso de
gente. Eram de dez para onze horas; grande número de caipiras da vizinhança, que já
tinham ouvido missa, uns na cidade, outros na capela de Nossa Senhora do Ó, ali se
achavam a palestrar e a molhar a goela para empurrar o domingo, conforme a frase
vulgar.

– Bom! - murmurou Lucinda consigo, – No meio de tanta gente é impossível


que não haja alguém que me saiba dizer o que é feito de Nhá Tuca.

Dirigiu-se, pois, resolutamente para a venda, comprou uma quitanda, bebeu um


gole de vinho, para cobrar alento, e depois, dirigindo-se aos circunstantes, com uma
hesitação e receio fácil de compreender-se, mas difícil de explicar-se:

– Mecês não me saberão dizer – perguntou ela que fim levou uma mulher
velha, que morava aqui para atrás, chamada Nhá Tuca?..

A companhia, que ali se achava, trazia já a cabeça bastante aquecida pelos


freqüentes tragos, com que no correr da conversação iam molhando a palavra. A
pergunta de Lucinda, portanto, em vez de obter resposta, foi recebida entre mil risadas e
apodos zombeteiros, que confundiram e desorientaram completamente a pobre preta.

–Eh! há! minha tia! pois tu ainda perguntas por essa bruxa esconjurada? –
diziam eles.

– Cruz! arreda daqui, rapariga! Só o nome dessa mulher traz mau azar; vou-me
embora.
– E eu também; a pinga, que tomei está me fervendo na garganta só de ouvir
esse nome. Antes o diabo me apareça.

– Quem sabe, minha tia, se mecê também é da rodinha das pretas feiticeiras,
que moravam com essa velha de uma figa?

– Eu não! Cruz! Ave Maria! – exclamou Lucinda, espavorida.

– Pois então que diabo de negócio tens com essa carcaça excomungada, de que
ninguém quer ouvir nem o nome?

– Ué! meu branco, conheci ela noutro tempo! Agora estou perguntando; que
mal faz isso?

– Não passaste pela casa dela aí na estrada?

– Passei, inhor sim; mas a casa está toda queimada, e lá não encontrei viva
alma.

– A casa ardeu há de haver três para quatro anos. Assim também deve arder a
dona nas caldeiras do cão tinhoso.

– Então já morreu?! – exclamou Lucinda, transida de susto. A boa preta,


interessava-se pela vida dessa mulher perversa e detestada, como se ela lhe fora mãe
idolatrada.

– Não sei, nem quero saber – respondeu o caipira sem reparar na comoção de
Lucinda. – Se não deu ainda, não tardará muito em dar a alma ao diabo, que a carregue.

– Mas enfim... – balbuciou Lucinda.

– Mas enfim – interrompeu o interlocutor – se quer saber mais alguma coisa, vá


acolá naquela casinha; não está vendo? É lá que a bruxa mora, se é que o diabo ainda
não a carregou.

Dizendo isso, o homem apontava para um miserável casebre, coberto de capim,


que se avistava a uns trezentos passos de distância, e algum tanto arredado do caminho.

– Ali, meu Deus, naquele pobre ranchinho! – exclamou Lucinda. – Coitada!


ela, que era tão bem arranjada!... Como são as coisas deste mundo!
– Cala-te daí. Se tu a conhecesses melhor, não estavas aí com tanta pena dela.
Ou és da mesma laia, ou não conheces bem a tal bruxa.

– Mas eu desejava tanto saber se ainda é viva.

– Pois vá lá saber – respondeu brutalmente o interlocutor.

– Mas olha, que não te agarre ela pelas orelhas, e não te leve consigo para os
infernos! – acrescentou outro caipira.

Atarantada com tantas chufas, e apavorada com o medonho retrato que faziam
de Nhá Tuca, a pobre Lucinda não sabia o que devia acreditar, nem o que devia fazer.
Bem via que aquela gente estava toda com a cabeça esquentada com as amiudadas
libações alcoólicas, e que todos aqueles ditos contra a pobre velha poderiam não ser
mais que meros gracejos inspirados pela bebida; mas por outro lado, a antiga casa de
Nhá Tuca, que acabava de ver em ruínas e quase toda devorada pelo incêndio, e o
miserável ranchinho, que lhe estavam mostrando como sua nova vivenda, tornavam
mais que provável o que estavam dizendo os caipiras. Esteve por algum tempo em
estado de hesitação, olhando para a casinha como querendo resolver-se a lá ir; mas
faltava-lhe o ânimo.

Por fim um homem algum tanto idoso, que ali estava na roda, porém com a
cabeça mais calma e fresca do que seus companheiros, observando a ansiosa
inquietação em que se achava a crioula, para saber ao certo a sorte da velha,
compadeceu-se dela, e chamando-a de parte assegurou-lhe que aquele ranchinho era de
fato a atual morada de Nhá Tuca, que ainda era viva, mas que há muitos dias se achava
às portas da morte. Contou-lhe mais, em poucas palavras, que essa mulher tinha perdido
tudo quanto possuía e caído na mais profunda miséria, vendo morrer uma por uma, em
pouco tempo, de moléstias ruins e contagiosas, todas as suas escravas, que constituíam
seu principal cabedal; que também, de certo tempo em diante, fora diminuindo
rapidamente toda a freguesia de seu negócio, até que por fim, para cúmulo de males,
pegou-lhe fogo na casa, que ardeu toda em uma noite, mal podendo escapar os
moradores, e que Nhá Tuca, vendo-se reduzida à última pobreza, se havia refugiado
naquele ranchinho, que por compaixão lhe haviam cedido, e onde vivia das minguadas
esmolas, que bem pouca gente lhe dava: que dois dias antes morrera de repente a única
escrava que lhe restava, que lhe fazia companhia e esmolava para ambas, se bem que
em estado quase tão lastimoso como a senhora. O povo atribuía todas essas desgraças a
castigo pelas maldades que essa mulher tinha praticado, e que por muito tempo andaram
encobertas. Por isso, todos fugiam dela e a deixavam abandonada naquele miserável
ranchinho, onde se achava morrendo à míngua.

Lucinda não quis ouvir mais nada, se bem que o velho se mostrasse disposto a
narrar-lhe por miúdo todas as horríveis façanhas daquela execrável mulher. Pediu
desculpa, alegando que era cativa e morava longe, despediu-se, e se depressa tinha
vindo, mais depressa voltou para a cidade, onde chegou pela volta do meio-dia. A
notícia de que Nhá Tuca estava viva, mas às portas da morte, dava-lhe asas, e a robusta
crioula, a despeito de sua idade e corpulência, em menos de meia hora venceu a
distância de mais de meia légua, que a separava da cidade.

Conrado, com o espírito desassossegado e entregue a cruéis tribulações,


achava-se em casa pensando no modo por que havia de passar as longas horas, que
ainda tinham de decorrer até o prazo, em que Lucinda prometera voltar com a resposta
tão impacientemente esperada, quando inesperadamente a crioula, que o criado da porta
tinha ordem de deixar entrar a qualquer hora que aparecesse, se lhe apresenta arquejante
de cansaço e coberta de suor.

– Que é isso, Lucinda? – perguntou o moço, sobressaltado. – Que novidade


temos?... Vens tão cansada e tão antes da hora marcada!...

– Sossega seu coração, nhô Conrado – respondeu Lucinda, a ofegar. – O


negócio não vai mal por ora... Vim depressa e antes da hora, porque assim era preciso.
A mulher ainda vive...

– Vive!... Louvado seja Deus! – exclamou Conrado, levantando as mãos ao céu


– tudo está remediado. Rosaura, minha filha, vais ser livre e restituída aos braços de teu
pai!...

– Vive, sim senhor; mas está mal, quase a morrer. Deixemos de mais conversa,
nhô Conrado; é preciso ir lá já e já, quanto antes; a cada momento ela pode expirar.

– Tens razão, Lucinda; tens razão; vou já.

Conrado chamou imediatamente o seu pajem, e deu-lhe ordem para que selasse
depressa o seu melhor cavalo. Enquanto isso se fazia, Lucinda dava a Conrado as
indicações necessárias, para que acertasse com o lugar em que se achava situado o
rancho de Nhá Tuca.
Lucinda retirou-se para a casa, e Conrado partiu a galope para as bandas da
freguesia de Nossa Senhora do Ó.

CAPÍTULO XI

NHÁ TUCA E SUA CHOUPANA

Ainda alguns caipiras ociosos e folgazões se achavam reunidos junto à porta da


taverna do francês, uns conversando, outros cochilando, outros cantando e tocando
viola, sentados no patamar, quando viram despontar na volta da estrada, pelo lado da
cidade, um cavaleiro, que vinha a grande galope, e que em poucos instantes veio
esbarrar diante deles o seu lindo e garboso cavalo alazão todo arquejante e coberto de
espuma. Era um mancebo de trinta e tantos anos, de porte esbelto, de fisionomia nobre e
simpática, e que trajava com primoroso esmero e elegância.

– Podem fazer-me o favor de mostrar-me onde mora por aqui uma pobre velha,
que se acha muito mal, chamada Nhá Tuca? – perguntou o cavaleiro, depois de ter
saudado contesmente a comitiva.

Os caipiras fitaram sobre ele um olhar espantado, e o deixaram por alguns


instantes esperando a resposta. Cada qual queria responder, mas revolvendo o chapéu
entre as mãos, e olhando ora para o elegante cavaleiro, ora uns para os outros, ora para o
chão, ficaram como engasgados, esperando cada um que o seu vizinho o antecipasse na
resposta. Se esses mesmos homens ainda há pouco estranharam altamente que Lucinda
lhes pedisse novas de Nhá Tuca, quanto maior não devia ser seu pasmo e surpresa,
quando viram aquele nobre cavaleiro perguntar com tanto interesse e açodamento pela
bruxa excomungada, que era objeto de asco e desprezo para todo o mundo por aquela
redondeza. A este, porém não ousaram responder com apodos e galhofas, como fizeram
com a pobre crioula.
– Está ali mesmo à vista, patrão; é acolá – respondeu por fim um deles,
apontando para o rancho de Nhá Tuca.

O cavaleiro agradeceu com um gesto, e tocou o cavalo a galope para o sítio


indicado.

- Chê! que coisa, Deus do céu! Um moço tão chibante e luzido que terá que
fazer na casa daquela velha tartaruga amaldiçoada? – disse um dos da roda, apenas o
cavaleiro se distanciou.

– Quem sabe se é parente, nhô Tico? – ponderou outro. – A velha já foi rica, e
diz que é filha de muito boa gente.

– Chê! que esperança, nhô Neco! Nhá Tuca ter um parente daquela
qualidade!... Fora o irmão, que ela matou, nunca teve parente mais nenhum, que eu
saiba.

– Não é nada disso, gente; o que eu estou lembrando é que aquele moço é
alguém, a quem a velha fez alguma maldade, e que lhe vem pedir contas na hora da
morte. Fora do que já anda aí na boca do povo, na casa daquela velha fazia-se muita
coisa ruim, que até hoje ninguém sabe.

– Isso é que bem pode ser, nhô Quim; mas já agora não arredo pé daqui,
enquanto não ficar sabendo em que isso se pára. Aquele moço decerto não há de ficar
toda vida em casa da bruxa; há de voltar e por fim de contas sempre se há de saber
alguma coisa.

– E eu também daqui não saio, enquanto ele não voltar; estou aflito por saber
em que dá essa embrulhada.

– E eu também – repetiram todos os outros.

Vamos ver em que isso dá.

Enquanto os caipiras iam discutindo e comentando nesse gosto a visita de


Conrado à casa de Nhá Tuca, resolvidos a esperarem ali a pé firme o resultado da
mesma, o mancebo apeara-se junto ao rancho da infeliz velha, e batendo palmas pediu
licença em voz bem alta. A mísera mulher, que, segundo parecia, ali jazia há dois dias
no leito da miséria e do sofrimento sem ouvir voz humana, estremeceu de prazer ao
perceber que lhe batiam à porta.
– Quem é?.. Pode entrar – respondeu de dentro uma voz fraca, trêmula e
esganiçada.

Foi bem difícil a Conrado dar com a entrada do rancho, a qual consistia em
alguns paus-a-pique soltos, e que não se distinguiam bem do resto da parede. Era mister
afastá-las para um e outro lado a fim de franquear uma estreita entrada. Conrado, que
conhecia muito esse gênero de portas, por tê-las visto muitas vezes em ranchos de roça,
abriu-a e não sem custo penetrou no interior da choupana, esfregando o pano de sua fina
casaca nos imundos paus daquela hedionda pocilga. Posto que não houvesse no rancho
uma só janela ou fresta, por onde penetrassem francamente o ar e a luz, contudo, as
paredes formadas de paus roliços mal unidos entre si deixavam entrar claridade bastante
para que Conrado, depois que se foi afazendo à meia-luz que ali reinava, pudesse
distinguir com facilidade os objetos.

Era a palhoça dividida em dois compartimentos iguais por meio de uma esteira
de taquara. No primeiro, para o qual dava a porta única da casa, por onde Conrado tinha
entrado, via-se no chão um cinzeiro apagado, e junto dele um colchão esfrangalhado
rodeado de algumas cuias e cacos de panela. Era sem dúvida a miserável enxerga, da
qual há dois dias tinha sido transferida para a sepultura a última companheira e
cúmplice da desgraçada velha.

Achavam-se junto ao cinzeiro, quando Conrado entrou, um cãozinho mofino e


coberto de gafeira, procurando no borralho extinto algum resto de calor, e um lagarto,
que sem dúvida por ali rondava à caça de baratas e outros insetos, em que a choupana
devia abundar. O lagarto esgueirou-se sutilmente, e desapareceu com a celeridade que
lhe é própria; o cão, porém, levantou-se e abanando a cauda olhava para o visitante com
olhos suplicantes, como quem lhe pedia pelo amor de Deus um bocado de alimento.
Conrado não lhes deu atenção, e dirigiu-se para uma abertura que dava comunicação
com o outro compartimento.

O espetáculo, que ali se lhe ofereceu aos olhos, era indescritível pela sua
hediondez, e capaz de fazer recuar de horror as almas mais corajosas e caritativas.

Em um girau, firmado sobre quatro toscas e grossas forquilhas fincadas no


chão, estava estendida a mísera velha em cima de uma enxerga de palhas de milho, tão
esfarrapada e poída, que mais parecia um montão de lixo. Ali agonizava ela há dois dias
como um esqueleto embrulhado em andrajos asquerosos. Ao pé dela, à cabeceira, o
único móvel que existia era um tamborete estropiado, sobre o qual se via uma tosca
tigela de barro, vazia!... Nem uma gôta de água ali havia para a mísera enferma!... Em
torno, pelo imundo e estreito cubículo, não se viam senão alguns trapos asquerosos
espalhados pelo chão. A estes contristadores e repugnantes acessórios, se juntarmos a
figura cadavérica e a fisionomia repulsiva da velha, teremos um painel que nenhum
pincel humano é capaz de reproduzir em toda a sua lúgubre e sinistra realidade. Para
receber o hóspede desconhecido, que tão inesperadamente a vinha visitar, a enferma se
reanimou um pouco, e conseguiu levantar algum tanto sobre um montão de roupas
velhas, que lhe serviam de travesseiro, o busto lívido e descarnado. A magreza, a
velhice e a doença ainda mais faziam ressaltar as linhas duras e angulosas de sua
fisionomia ignóbil e repelente. Os olhos pequenos e extintos mal se podiam divisar por
debaixo das arcadas superciliares proeminentes e ossudas. O que mais, porém,
contribuía para dar-lhe ao semblante uma expressão de fealdade, que incutia terror e
repugnância, eram os dentes, que ela ainda os tinha todos, grandes, salientes e amarelos.
Como seus lábios, finos e mirrados como duas tiras de velho pergaminho, contraídos
pela macilência e pela febre, não podendo cerrar-se, conservavam-se entreabertos, um
certo sorriso fúnebre e sinistro parecia estar fixo sobre sua boca agonizante.

Se não fosse o poderoso incentivo, que ali o levava, Conrado teria recuado
diante de tão lastimoso e repulsivo quadro, e, deixando uma generosa esmola à
cabeceira da enferma, ter-se-ia retirado imediatamente. Mas era instigado por um
motivo imperioso, pelo qual afrontaria mesmo todos os transes e perigos, por mais
temerosos que fossem.

– O senhor, quem quer que é, pode chegar – disse, com voz rouca e arquejante,
a infeliz velha, vendo Conrado parar ao limiar da entrada do quarto. – Não tenha susto;
eu sou uma pobre velha desgraçada, que em castigo de meus pecados aqui vivo a penar
desamparada por todos, e morrendo aos poucos no fundo desta cama...

Senhor meu, tenha piedade desta pobre velha!... Foi Deus quem o mandou
aqui... Há dois dias que aqui não vem criatura viva nem para me dar um gole de água
pelo amor de Deus.

Apesar do exterior repugnante da velha, e do crime inqualificável de que era


responsável para com ele, Conrado não pôde deixar de apiedar-se do estado de profunda
miséria e desamparo em que jazia aquela desgraçada criatura, e exprobrou no íntimo
dalma a dureza dos vizinhos, que tão desumanamente assim a deixavam perecer.

– Sim, minha velha, – respondeu ele, avizinhando-se do leito – eu me


compadeço sinceramente de sua desgraça, e é por isso que venho hoje aqui com
disposição de procurar alívio a seus sofrimentos, e prestar-lhe todos os socorros, de que
necessitar.

– Ah! meu senhor! Deus lhe dê muita saúde e largos anos de vida! Eu estou já
com os pés na sepultura, e bem pouca coisa posso precisar neste mundo. O de que mais
preciso é que Deus me perdoe os muitos e enormes pecados que cometi em minha vida.
Ah! meu Deus, quem me dera um padre para me confessar.

– Por esse lado, sossegue seu coração; hoje mesmo lhe hei de trazer um padre,
e estou pronto a fazer tudo o mais que a senhora exigir para alívio de seus sofrimentos e
sossego de sua consciência.

– Oh! meu senhor!... meu benfeitor!... Deus lhe dará o pago por essa obra de
caridade.

– Sim, mas quero também da senhora uma recompensa, que lhe é muito fácil, e
da qual depende todo o sossego e felicidade de minha vida. Quero lhe pedir um favor. . .

– A mim, meu senhor!... Que favor lhe posso eu fazer, eu pobre velha
desvalida, já com os pés na sepultura?

– Eu lho vou dizer já sem mais rodeios, porque não devemos perder tempo. A
senhora cometeu na sua vida um ato altamente criminoso, cujo segredo não pode levar
para a sepultura sem causar a desgraça de toda a minha vida e a da inocente vítima
desse ato execrando. Não se lembra?

– Ah! meu Deus, eu pratiquei tantas ações ruins!... Qual delas será?. .

– Eu lhe vou avivar a memória. Não se lembra que na noite de vinte e quatro
para vinte e cinco de novembro, faz agora justamente quatorze anos, – amanheceu
exposta na porta de sua casa uma menina recém-nascida?

– Oh! se me lembro, meu Deus! meu Deus! e com que remorsos!... É por essa e
por outras muitas maldades, que pratiquei, que hoje me acho aqui penando desta
maneira, ai! meu Deus, e sem ter um confessor!
– Tenha paciência; o confessor há de vir. Agora, conte-me com franqueza e
verdade, o que é feito dessa criança? A justiça humana já nada tem que ver com a
senhora; é perante o tribunal divino que em breve talvez terá de responder. Se não
confessa o seu crime, a fim de remediar o mal imenso que fez, e que até hoje pesa sobre
essa infeliz criatura, não pode esperar salvação para sua alma.

– Graças, meu Deus! mil graças vos sejam dadas, – exclamou a velha,
levantando ao céu as descarnadas mãos, e exalando um forte suspiro, com que parecia
aliviar o coração de um peso enorme, que o oprimia. Graças a Deus, que, em minha
última hora, me permite desmanchar o mal que fiz. Meu senhor, pelo amor de Deus,
perdoe-me; minha vida foi toda um tecido de perversidades. Essa menina não morreu,
como eu fiz acreditar. Nessa mesma noite, em que ela apareceu enjeitada à porta de
minha casa, uma mulata, minha escrava, tinha tido uma criança, que morreu logo depois
de nascida, e eu... meu Deus! que vergonha! que abominaçao...

– Diga, diga tudo, senhora! – instou Conrado.

É preciso que não oculte nada para descargo de sua consciência e para se poder
remediar o mal que fez.

– E eu fiz batizar a enjeitada como filha da escrava, e fiz constar que a


enjeitada é que tinha morrido.

– E que nome deu à menina?

– Rosaura.

– E depois vendeu-a, não é assim?

– É verdade, meu senhor.

– E a quem vendeu-a?

– A um senhor Basílio, morador na Rua do Tabatinguera.

– Justamente! É ela! - exclamou Conrado, com íntimo e profundo júbilo. – Não


se pode mais opor a mínima dúvida a respeito da origem de Rosaura. Estou satisfeito,
senhora; eu vou neste mesmo instante buscar um padre para ouvi-la de confissão, e
também mandar-lhe alguns meios de tratar-se. Em menos de duas horas estarei de novo
aqui com o padre e mais duas pessoas, porque me é de absoluta necessidade que a
senhora repita diante de testemunhas a confissão, que acaba de fazer-me em particular,
para conseguir a liberdade da menina, que a senhora condenou à escravidão. Está
disposta a isso, minha senhora?

– Por que não, meu senhor!... Nem há coisa que eu mais deseje. Prouvera a
Deus que eu pudesse desfazer assim todas as outras maldades que pratiquei!... Ah! meu
Deus, perdão!.. misericórdia!...

– Pois bem; até breve.

– Deus o acompanhe, e o traga a salvamento, meu senhor.

Ao sair fora da palhoça, Conrado consultou o relógio; eram quase duas horas.

– Temos ainda muito tempo – pensou ele. – Ás quatro horas, posso estar de
volta aqui com o padre. Os dias são grandes, das quatro até a noite, tudo pode ficar
arranjado, salvo se a velha expira antes disso.

Durante a visita, apesar da preocupação que lhe dominava o espírito, ou em


razão dessa mesma preocupação, Conrado tinha examinado com atenção o estado da
enferma e apesar de não ser médico, compreendeu que ele era gravíssimo, e que naquele
caso não havia mais cura possível. Todavia, refletiu que o estado de prostração em que a
via podia ser resultado não só da moléstia, como também da inanição a que tinham
reduzido o abandono e privação absoluta, a que há dois dias se achava condenada. Se a
deixasse naquele desamparo, em que ele a tinha encontrado, corria risco de achá-la na
volta senão morta, pelo menos impossibilitada de fazer de modo inteligível a
declaração, que era o alvo de todos os seus esforços. Montou a cavalo e parou de novo à
porta da taverna do francês. Os fregueses, que ali encontrara, ainda lá se achavam a pé
quedo, esperando a sua volta.

– Então, meu amo, como vai a velha tinhosa? Ainda o diabo não a carregou? –
ousou perguntar um, a quem as excessivas libações tinham tornado por demais
desembaracado.

Conrado franziu o sobrolho, e sem responder diretamente a tão brutal pergunta,


dirigindo-se a todos, exprobrou-Ihes sem aspereza nem grosseria, mas em termos
enérgicos e severos, sua desumanidade para com. aquela desgraçada mulher, fazendo-
lhes ver que não era próprio de cristãos deixar morrer à míngua e ao desamparo uma
criatura humana, por mais perversa que tenha sido em sua vida. A moléstia, a idade, o
sexo e a extrema pobreza, em que vivia e ia morrer, eram bastantes para seu castigo, e a
tornavam digna da comiseração de todo o mundo. Aqueles que assim a maltratavam
tornavam-se tão bons como ela e dignos da mesma sorte.

Os caipiras, ouvindo as palavras severas, mas cordiais e sensatas do mancebo,


sentiram mais compunção e arrependimento, do que se tivessem escutado as
ameaçadoras vociferações do mais rochonchudo e atrabiliário capuchinho. Procuraram
desculpar-se com a reputação de que gozava a velha, de ser bruxa, feiticeira e de ter
pacto com o diabo; mas enfim todos voltaram-se às boas com o gentil e generoso
cavaleiro, que os afagou com uma generosa molhadura, pedindo-lhes que não
continuassem a ter em tão má conta uma pobre mulher velha, que estava às portas da
morte. Todos protestaram que não continuariam a ter o mesmo procedimento,
declarando-se prontos a fazer tudo que Conrado determinasse. Conrado chamou de parte
o francês dono da taverna, e dando-lhe uma soma de dinheiro mais que suficiente,
pediu-lhe que acudisse de pronto à doente com algum cordial ou algum caldo, que a
confortasse, visto que ela estava morrendo mais de fraqueza e inanição do que mesmo
de doença. Recomendou-lhe também que mandasse imediatamente varrer e assear a
imunda pocilga em que jazia a mísera velha, e colocar lá duas outras cadeiras ou
tamboretes, porque, dentro de duas horas ao mais tardar, tinha de voltar com um padre
para ouvi-la de confissão.

– Tenha paciência! – disse ele ao taverneiro.

Não se poupe a despesas nem a trabalho, que tudo hei de remunerar


generosamente, e além disso lhe ficarei tão agradecido por tudo que fizer por essa
mulher, como se fosse um serviço feito a mim próprio.

O francês comprometeu-se de bom grado a cumprir tudo que Conrado lhe


recomendara. O interesse, que aquele rico e distinto cavaleiro tomava pela pobre e
desgraçada velha, lhes excitando altamente a curiosidade, os dispunha também a
secundá-lo em tão louvável e caridoso empenho.

Conrado agradeceu, e tocou a galope para a cidade.

CAPÍTULO XII
FREI JOÃO DE SANTA CLARA

Conrado, chegando à cidade, apenas parou um momento à porta de sua casa


para dar ordem a seu pajem de selar o animal mais manso que houvesse na cocheira, e
levá-lo imediatamente ao convento do Carmo, onde ia esperá-lo.

Achava-se então em S. Paulo hospedado no Convento de sua Ordem um frade


carmelita, por nome Frei João de Santa Clara, distinto por suas virtudes e seu grande
saber. Pregador exímio e teólogo profundo, este não tinha passado seus dias vegetando
em piedoso ócio e pisando mansamente os santos ladrilhos com o breviário na mão à
sombra das severas abóbadas no claustro. Tinha percorrido quase todas as províncias do
Brasil, missionado, já entre populações civilizadas, já entre aldeias de indígemas em
serviço de catequese. Era também por vezes encarregado, pelo Geral da Ordem, de
árduas e importantes comissões, e era em virtude de uma destas que se achava então em
S. Paulo. Suas virtudes não consistiam meramente na prática desses exercícios
ascéticos, que seus confrades de ordinário tanto alardeiam mais para se imporem à
veneração do vulgo, do que por verdadeiro espírito de penitência e mortificação.
Tolerante, benévolo e afável para com todos, nada tinha dessa exterioridade ríspida e
austera, que constitui o caráter essencial do frade. Era ameno e singelo na conversação,
e entregava-se sem escrúpulo aos prazeres lícitos e compatíveis com o seu estado.
Pertencendo a uma importante e abastada família da Bahia, renunciara a todas as
vantagens, que lhe proporcionavam o nascimento e a fortuna, e tomara o hábito em
virtude de uma vocação sincera, posta à prova por longo noviciado. Era, portanto Frei
João de Santa Clara um monge moldado pelo tipo sublime dos Boaventura, Francisco
Xavier, Luís de Gonzaga e Vicente de Paulo.

A figura de Frei João estava em perfeita harmonia com sua natureza moral.
Porte elevado, feições corretas e suaves, fisionomia nobre e expansiva, maneiras
singelas, mas delicadas, um timbre de voz claro e sonoro tornavam-no um personagem
altamente simpático, que logo à primeira vista conquistava a afeição e respeito de todos.
Todavia, não obstante a moderação e brandura de seu caráter, não lhe faltavam energia e
severidade, quando assim era mister, quer na linguagem quer nas ações. A idade de Frei
João orçava então pelos quarenta e cinco anos, e tanto no porte como no semblante
reunia ao viço e ao vigor da juventude a gravidade e sisudez da idade madura.

Quando Conrado esteve no Sincorá, também aí se achava Frei João


missionando, e teve então aquele ocasião de travar relações com o carmelita, relações
que, em breve, se converteram em laços de recíproca estima e amizade. Quando o frade
chegou a S. Paulo, onde, na época dos acontecimentos que vamos narrando, se achava
há cerca de um mês, Conrado foi um dos primeiros que se apressou em visitá-lo e
oferecer-lhe seu préstimo e seus serviços. Frei João folgou muito de encontrar o seu
jovem conhecido e amigo de outrora em tão próspera e brilhante posição, e como não
tinha senão mui poucas relações em São Paulo, começaram ambos a freqüentar-se com
assiduidade, e os laços da antiga amizade se reataram talvez com mais força e
intimidade ainda.

Nenhum sacerdote, pois, estava em melhores condições para ser o confessor de


Nhá Tuca, e auxiliar a Conrado no melindroso negócio em que se achava empenhado.

Além de ser homem de consumada prudência e discrição e um sacerdote


respeitável, por possuir em grau eminente todas as virtudes peculiares ao seu estado, era
seu amigo.

Conrado apeou-se à porta do Convento do Carmo, subiu as escadas e foi direito


à cela de Frei João. Não pense o leitor que os conventos em S. Paulo, na época a que
nos reportamos, eram ainda, como outrora, claustros ou mosteiros regulares, com bom
número de frades, com seu competente abade ou prior, mantendo todo o rigor da
disciplina monástica, salmeando todos os dias, em horas próprias, matinas, laudas e
vésperas. Não; já nesse tempo os dois conventos, que eram propriedade monacal, e creio
que ainda o são os do Carmo e de S. Bento, eram apenas habitados por dois ou três
frades, servindo de guardiães a esses imensos edificios desolados, tristes e mergulhados
em silêncio tumular. Esses frades tinham também às vezes por companhia algum
estudante, que, por escassez de meios ou por qualquer outro motivo, lá era admitido por
especial favor a partilhar o pão e o teto das ricas confrarias. Portanto, não se admire o
leitor ao ver Conrado subir sem a menor cerimônia as escadas do convento e dirigir-se à
cela que lhe era mui conhecida ocupada por Frei João.
Não causou estranheza ao frade o aparecimento inesperado de Conrado, que em
razão da intimidade lhe batia no aposento sem se fazer anunciar; mas quando o mancebo
lhe declarou o motivo, que naquela ocasião ali o trazia, e a natureza do serviço que
vinha pedir-lhe, não deixou de ficar algum tanto surpreendido.

– Em casos tais – disse ele – fosse quem fosse, que viesse reclamar de mim um
tal serviço, eu não saberia recusá-lo. Mas – continuou, com sorriso quase imperceptivel
– permita-me que lhe diga, meu amigo, ao que me parece, não é só espirito de caridade,
que o faz procurar-me com tanta sofreguidão, deixando em caminho o cura da freguesia,
que é quem tem obrigação de acudir com os sacramentos, e tantos outros padres, que aí
os há com fartura em uma cidade episcopal. Tem talvez algum interesse particular nesse
negócio, e eu não devo ignorá-lo.

– Oh! sem dúvida, e nem tenho intenção de ocultá-lo – respondeu Conrado,


com vivacidade. – A pressa é que me não permite explicar-me desde já. Tenho nessa
confissão um interesse do mais subido alcance para mim.

A velha tem de fazer uma declaração, da qual dependem sossego e felicidade


de toda a minha vida.

– Ah!... o negócio então é mais que sério. Pretende por conseguinte exigir dessa
mulher uma confissão pública.

– Sim, meu amigo.

– E ela se prestará?..

– Acabo de estar com ela; está talvez mais disposta e mais impaciente do que
eu, porque essa declaração é de absoluta necessidade para a reparação do mal que ela
fez. Mas ela se acha nas extremas entre a vida e a morte; não temos tempo a perder;
avie-se, que daqui a um instante chegará a sua cavalgadura, e de caminho lhe contarei
toda essa história.

De feito, enquanto Frei João calçava suas botas pretas de couro de mateiro com
esporas de ferro, e tomava o chapéu de fêltro com abas largas, o pajem de Conrado
chegava à porta do convento, trazendo pelas rédeas um lindo cavalo escuro
completamente ajaezado. O palafrém, posto que fosse mui bem doutrinado, era vivo e
ardente.
– O maldito! – gritou Conrado para o pajem não te recomendei que trouxesses
um animal bem manso?

– Pois este ainda é chucro? – perguntou, sorrindo, o frade.

– Não – respondeu Conrado –mas é tão fogoso. . .

– Não se importe com isso; não sou tão mau cavaleiro como pensa.

E de feito o frade ganhou a sela com tal presteza e agilidade, e soube sofrear e
dirigir o irrequieto animal, com tal garbo e desembaraço, que faria inveja ao mais hábil
picador. A sotaina e o grande chapéu em nada prejudicavam a habilidade e gentileza do
guapo cavaleiro.

– Na verdade – exclamou Conrado – V. Rev.ma é um homem admirável; além


de ser o ornamento de sua classe, tem as qualidades do homem do mundo o mais
amável e elegante que se pode imaginar.

– Hábito e natureza, meu caro – respondeu o frade, com volubilidade. – Sempre


tive gosto pela equitação; a necessidade de viajar continuamente me tornou perito na
arte.

Puseram-se a caminho. O leitor, que já visitou S. Paulo, sabe que o convento do


Carmo se acha situado na extremidade da cidade, do lado oposto àquele a que os dois
cavaleiros tinham de dirigir-se.

Tiveram, pois, de atravessar toda a cidade na melhor marcha de seus cavalos,


sem poderem conversar, em razão do tumulto das ruas. Felizmente, não era extenso o
trajeto da então pequena cidade, e logo que transpuseram a ponte do Macu penetraram
no bairro mais silencioso e deserto de Santa Ifigênia. Conrado, retardando um pouco o
passo do animal, começou a dar conta a Frei João do ponderoso motivo que o levara a
chamá-lo para aquele mister. Narrou-lhe com toda a sinceridade e franqueza, como se
estivesse no tribunal da penitência, aos pés do confessor, os fatos capitais, que o leitor já
sabe e constituem o assunto desta história, sem preterir circunstância alguma
importante. Contou-lhe com toda a lhaneza o amor, que desde a infância concebera pela
filha de seu antigo patrão; os esforços sobre-humanos que fizera para tornar-se digno
dela; a falta em que a cegueira do amor e a imprudência e ardor da mocidade o fizeram
incorrer; a invencível obstinação com que o filaucioso velho se manteve na negativa,
perseguindo-o por esse motivo encarniçadamente e até ameaçando-lhe a existência; pelo
que viu-se obrigado a retirar-se por longo tempo de S. Paulo, sem poder ter a menor
comunicação com sua amante; a ignorância em que, até àquela data, estivera, da
existência de sua filha, fato de que só na véspera tivera conhecimento por intermédio de
uma escrava, que por um feliz acaso o descobrira; como essa filha fora batizada como
escrava pela mulher, que Frei João ia confessar e nessa condição se achava até àquela
data, tendo ultimamente, por um estranho capricho da sorte, vendida à sua própria mãe.

– Agora – concluiu Conrado – já o meu amigo compreende o alto interesse que


ligo à confissão dessa desgraçada velha, que por grande favor do céu ainda encontrei
viva, e o motivo por que o procuro, não só como sacerdote, mas também como amigo, a
fim de coadjuvar-me no desempenho de uma missão, que é para mim um dever sagrado.
Conto que, não só nesta confissão, como em outros passos, que terei de dar, para ser
reconhecida a verdadeira maternidade de Rosaura, o meu amigo não me recusará o
auxílio de suas luzes e de sua influência.

O frade ouviu a narração de seu amigo com a maior atenção, e apenas o


interrompera poucas vezes com interjeições de in teresse e de surpresa.

– Por indiferente que me fosse a pessoa, que reclamasse de mim um serviço


dessa ordem – respondeu frei João – não me era lícito recusá-lo, quanto mais a um
amigo, a quem tanto desejo ser útil. Na verdade a história, que acaba de contar-me, é um
drama contristador, e contém as mais severas e terríveis lições. Ainda bem que, com o
favor de Deus, tenho esperança de levá-la a um desfecho feliz e satisfatório para todos.
É ainda um episódio palpitante de interesse e de triste originalidade, que nos vem
mostrar bem ao vivo os singulares e funestos resultados a que nos pode arrastar essa
desumana e degradante instituição da escravatura, que para vergonha nossa ainda
subsiste no país.

– Entretanto, noto que a divina Providência como que tem querido proteger,
por um modo manifesto, a sua Rosaura, dirigindo os acontecimentos por tal sorte, que
em breve se revelará em plena luz a verdadeira origem da menina. Repare o meu amigo
como tudo vai se combinando, e como que conspirando para esse feliz resultado!... A
venda de Rosaura à sua própria mãe foi um fato providencial. Se Deus quis por esse
estranho meio colocar em contato essas duas criaturas, que pertenciam uma a outra, e
conservar até hoje a vida a essa desgraçada mulher, que reduziu a menina à escravidão,
foi por certo para esse grande e misericordioso desígnio. Vamos, meu amigo,
apressemos o passo. Estou ansioso por ver chegado a um próspero desfecho este
singularíssimo drama.

Nesse ponto da conversação, já estavam à vista da casa do taverneiro francês,


onde foram apear-se.

CAPÍTULO XIII

NHÁ TUCA E SUA CRÔNICA

Apenas se apearam, Conrado chamou de parte o francês, dono da taverna, e


depois de ter sido por ele informado de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas,
pediu-lhe que fosse assistir como testemunha a uma declaração solene, que a velha Nhá
Tuca tinha de fazer em confissão pública para desencargo de sua consciência. Pediu-lhe
também que, dentre os circunstantes escolhesse para o mesmo fim mais duas pessoas,
que soubessem ler e escrever, e que gozassem de bom conceito.

Não só o desejo de servir a Conrado, que por sua generosidade e boas maneiras
lhe tinha captado a benevolência, como também a curiosidade, que semelhante fato
excitava, contribuíram para que não só o taverneiro, como todos os seus numerosos
fregueses se prestassem com a melhor vontade a tudo quanto deles exigia o cavaleiro.
Vinte ou trinta testemunhas, que lhe fossem necessárias naquela ocasião, com facilidade
as acharia prontas por aquela vizinhança.

Eram já quatro horas da tarde, e quase todas as pessoas, que pela manhã
encontramos juntas na taverna do francês, ainda ali se achavam presas pela viva
curiosidade, que neles excitara a visita de um tão guapo e distinto cavaleiro em casa de
uma velha bruxa, que no entender deles estava prestes a dar a alma ao diabo. Se
algumas dessas pessoas se tinham retirado, em compensação tinham chegado outras,
atraídas pelo rumor que se ia propagando, de que a velha bruxa, estando a expirar se
tinha resolvido a fazer confissão pública e pôr todos os seus podres na rua.
Conrado e o frade, seguidos pelo francês e pelas duas outras testemunhas
dirigiam-se a pé para o rancho de Nhá Tuca. Os mais fregueses também os foram
acompanhando em distância e um a um, ou em pequenos grupos, foram pouco a pouco
se avizinhando e acercando em torno da mísera choupana da moribunda.

A curiosidade vence o pavor e desmancha todos os escrúpulos. Todos aqueles


que ainda há pouco fugiam do rancho de Nhá Tuca como de um lugar malsinado, e que
quando por ali passavam tinham o cuidado de nem olhar para ele, benzendo-se cheios
de terror quando acontecia enxergarem a velha, agora se sentiam irresistivelmente
atraídos para aquele ponto. Era a curiosidade, esse ímã misterioso, que para ali os
arrastava.

Nas massas populares a curiosidade suplanta o medo, e faz arrostar todos os


perigos reais ou imaginários.

É assim, por exemplo, que por ocasião de um grande incêndio a turba se


aglomera por sob as paredes de um edifício em chamas, que a cada momento pode
desabar sobre ela, sendo necessário intervir a ação da polícia para desviá-la. Às vezes
também, para gozar de um espetáculo o mais trivial e corriqueiro, a turba não hesita em
colocar-se nas posições as mais incômodas e perigosas, em risco de quebrar um braço
ou uma perna.

O espetáculo ou mistério, que atraía a curiosidade de nossos caipiras, nada


tinha de realmente perigoso, mas abalava-lhes a imaginação, como se tivessem de ver
Satanás em pessoa.

– Santo Deus! – exclamava um deles. – Que irá fazer ali Frei João?.. Um santo
em casa de uma bruxa! . . .

– Vai fazer obra de caridade – respondeu outro. Vai ver se ainda pode livrar das
penas do inferno a alma da pobre velha.

– Isso é impossível... pois mecê não sabe que ela é mula sem cabeça?

– E demais a mais tem o diabo no corpo – acrescentou outro.

– Pois que tem isso?.. É que o padre vai tirar o diabo do corpo dela. Ah! se eu
pudesse estar lá dentro e ver o tinhoso sair aos pinchos da boca daquela tartaruga
velha!...
– Deus te livre!... Ver o quê!... A cara de Satanás!... Até estou com medo de ver
agora mesmo pegar fogo no rancho, e a velha sair de lá na figura do cão tinhoso.

– Chê! que esperança!... Então o frade não está lá dentro?...

– Mas esse é homem de Deus; não há mal que o pegue; há de sair são e salvo.

Enquanto o povo por fora se entretinha assim com estes e outros apodos e
conjeturas, o frade e seu amigo penetravam no aposento da enferma, a qual, graças à
generosidade de Conrado e aos cuidados do francês, apresentava um aspecto menos
lúgubre e menos nauseabundo.

Antes, porém, de assistirmos à cena da confissão da velha, nos é mister dar aqui
ao leitor uma rápida notícia biográfica da personagem, que agora jaz no leito da agonia
com a alma abarrotada de pecados e crivada de remorsos.

Isto nos é indispensável, porque a parte pública da confissão da velha versa


somente sobre um fato, que já conhecemos, a substituição de uma criança escrava e
morta por outra viva e livre, donde resultou a escravização de Rosaura. O resto, porém,
passa-se debaixo do misterioso sigilo da confissão auricular, e como não somos
sacerdotes, e nem foi em nosso peito que ela depositou os segredos de sua abominável e
execranda vida, segredos que depois foram conhecidos e propalados a todos que
tivessem ouvidos para ouvi-los, cremos que não será pecado da nossa parte divulgá-los
agora.

Alguma coisa já dissemos acerca do caráter e dos costumes de Nhá Tuca; mas
apenas levantamos um canto do véu que encobre as torpezas e atrocidades, que
constituíram a ocupação única de sua longa vida.

Nhá Tuca não era natural da cidade de S. Paulo.

Nascera em Moji-Mirim, em mil setecentos e setenta, pouco mais ou menos.


Portanto, já não podia descer ao túmulo com menos de setenta e muitos a oitenta anos.
Foi somente depois que recebeu a herança de seu falecido irmão, que tomou a resolução
de mudar sua residência para a capital da província, então capitania.

Essa herança, como já sabemos, na sua melhor parte consistia em uma boa
porção de crioulas e mulatas, todas novas e bonitas, vigorosas e sadias.
Parece que por desgraça sua, o irmão de Nhá Tuca tinha sangue turco nas veias;
tinha pendor imenso para o serralho, nascera para ser um sultão, ou pelo menos um
vizir. Por isso toda a fortuna, que havia herdado ou adquirido à custa de algum trabalho,
ia consumindo toda em colecionar essa formosa tribo, que por força do destino teve de
transmitir à sua irmã única, sem mesmo ter o trabalho de fazer testamento. A
sensualidade de um serviu admiràvelmente à avareza da outra.

A irmã, que não podia tirar o mesmo proveito de tão preciosa deixa, excogitou
outro meio de fazê-la render o maior lucro possível. O vício capital dessa mulher era,
como sabemos, a avareza, pecado mortal incompreensível para muitos e só
compreendido por aqueles que lhe sentem as delícias.

Obedecendo a essa sua tendência inata, Nhá Tuca concebeu e realizou o projeto
de fundar com as raparigas, que herdara, uma espécie de prostíbulo ou alcouce, dirigido
por ela em pessoa, do qual esperava auferir grandes vantagens pecuniárias. Mas Moji-
Mirim, era então uma pobre vila, talvez arraial ainda, e não podia oferecer campo assaz
vasto para suas altas especulações. Portanto Nhá Tuca tomou o acordo de vender tudo
quanto possuía em sua terra natal, e de emigrar com seu formoso rebanho para a capital
da província, onde poderia desenvolver em mais larga escala sua lucrativa indústria.

Em S. Paulo comprou fora da cidade o prédio, em que pela primeira vez a


encontramos, e onde estabeleceu com excelentes cômodos e por preços módicos venda,
rancho e hospedaria.

A freguesia, logo desde princípios, tornou-se cada vez mais numerosa. O


serviço da hospedaria era feito com grande esmero e asseio pelas seis ou oito escravas,
jovens e vistosas, e sempre trajadas com certo luxo provocador, que atraía a atenção dos
sibaritas. Elas, habilmente industriadas pela abelha-mestra, cercavam os viandantes de
mil cuidados e atenções, a que não era possível resistir. Eram outras tantas Hebes,
ofertando a Jove a taça da ambrosia.

Muita vez acontecia que o viajor, esquecendo-se de interesses, que reclamavam


a pronta continuação de sua viagem, encantado pela deliciosa hospedagem, que ali
encontrava, falhava quase sem querer um, dois, três e mais dias; tanta era a
obsequiosidade, tantos os carinhos, de que se via rodeado. Em todo caso, quando o
viandante não falhava, lá ficava, além da despesa ordinária, uma grossa soma, ou uma
rica jóia, que as fiéis servidoras nunca deixavam de entregar à senhora. Nem lhes era
mister guardar coisa alguma. Nada lhes faltava nem quanto a alimento nem quanto a
vestuário. Gozavam de liberdade quase absoluta, e compreendendo o recíproco
interesse, que as ligava à sua senhora, viviam com ela em perfeito pé de inteligência e
harmonia. A própria dona da casa, apesar de velha e adoentada, trabalhava tanto ou
mais do que as escravas, que tafulonas e peraltas só se ocupavam em serviços delicados
e em fazer sala aos hóspedes, enquanto a senhora era apenas ajudada por uma preta
velha no serviço grosseiro da casa. Tudo isso, porém se fazia por gosto da senhora, que
o dava por muito bem empregado.

E não era só com os passageiros, que se especulava. A rapaziada da vizinhança


também lá acudia atraída pela fama da boa bebida, que lá havia, e das bonitas raparigas,
que serviam de caixeiras e de serventes na hospedaria. Mais de um filho de caipira bem
arranjado ali deixou, sem saber como, os rendimentos de todo o bom negócio, que havia
feito na cidade, e arruinou seu pai com as repetidas invernadas na taberna de Nhá Tuca.

E não ficavam só em casa as vergonhosas especulações da velha; estendiam-se


a mais longe. Todos os domingos e dias santos, Nhá Tuca expedia para a cidade três ou
quatro de suas mais lindas raparigas, bem vestidas e prontas a armar laço à bôlsa dos
estudantes. Em toda parte, onde há academia, universidade, ou coisa que o valha, há
sempre numerosa cáfila de moços ricos, pródigos e libertinos, que não hesitam em
sangrar consideràvelmente a bolsa paterna em benefício das cantoneiras.

Voltavam, portanto, as Vênus para a casa sempre com rica propina, que
entregavam fielmente à senhora; diziam, porém, alguns que ela sempre lhes deixava
alguma porcentagem para os alfinetes, a fim de desempenharem com mais zêlo e boa
vontade sua afanosa profissão.

Outra traficância, porém, se não tão sórdida, ao menos igualmente imoral e


repugnante, fazia ela por meio dessas miseráveis criaturas. Sadias e bem tratadas como
andavam as escravas de Nhá Tuca, não deixavam de dar de vez em quando algumas
lindas crias, que, ao chegarem à idade de oito ou dez anos, a senhora vendia por bom
dinheiro, sem que as mães educadas naquela escola de abjeção prostibular opusessem a
menor resistência, nem manifestassem mágoa alguma com a separação dos filhos.

Em abono da verdade cumpre-nos dizer que Nhá Tuca só vendia os machos,


reservando as mulheres para reforma do serralho, substituindo as mães, quando estas
envelhecessem ou morressem; e mesmo os machos ela não os vendia senão a pessoas do
lugar. Com isso, tinha duas vantagens: não só obedecia aos impulsos de seu sensível
coração, não desterrando para longe de suas mães aqueles queridas pimpolhos, como
também adquiria excelentes alcaiotas para a sua grei e habilíssimos corretores para todo
gênero de traficância.

Um dia, uma de suas mais belas mulatas deu à luz uma linda menina, e tão
alva, que ninguém a diria descendente de africanos. Era a própria Nhá Tuca quem
assistia os partos de suas escravas, e sempre com habilidade e mestrança, que o
resultado nunca desmentiu. Dessa vez, porém, tão desastrada andou no cortar o umbigo
da criança, que esta, esvaindo-se em sangue, se finou poucas horas depois de nascida.
Nhá Tuca sentiu cruelmente esta perda, e levou uma boa hora a praguejar-se e a vomitar
blasfêmias e maldições.

Isso era pela madrugada. Mal despontou a primeira alva do dia, ela, que era
sempre a primeira a levantar-se, ao abrir a porta da frente deu com os olhos em um
berçozinho, em que se achava enfaixada uma criança, cuja procedência já conhecemos.
Recuou espavorida, e benzeu-se dando três passos para trás.

– Cruzes!... credo!... que será isto, Deus do céu! – exclamou ela em atitude de
espanto, e com os olhos pregados no berço. – E não é que é uma criança, que vieram
enjeitar à minha porta!... ora!... ora!... ora esta!... esta não lembrava nem ao diabo!...
Acham-me então com cara de mãe da humanidade!... Mas enfim, que hei de eu fazer?...
Não hei de deitá-la aos porcos, oh! isso não... Mas... mas... - continuou ela, coçando a
cabeça, avizinhando-se do berço, inclinando-se sobre ele, e reparando com atenção a
criança. – Ora esta!... eu sou mesmo uma pateta!... É coisa que está entrando pelos
olhos. Foi minha boa fortuna que aqui me trouxe esta criança... Vejamos! – prosseguiu
ela, murmurando sempre em voz baixa e arredando as faixas, que envolviam a
criancinha. – Coitadinha! está dormindo!... Como é bonitinha!... oh!... e é fêmea!...

Tanto melhor. E é tal qual como a defuntinha, sem tirar nem pôr. E esta!... Sai-
me uma morta pela porta afora, e entra-me outra viva pela porta adentro... Mil graças a
quem me fez tão delicado presente, e tão a propósito!...

Dizendo ou, antes, resmungando essas horríveis palavras, a velha recolheu o


berço e, tirando dele com todo o jeito a criança adormecida, a levou para o quarto da
mulata puérpera e a depôs nos braços dela, dizendo secamente:
– Toma tua filha.

– Como é isso, nhanhã? – exclamou surpreendida a rapariga. – Pois minha filha


não morreu?...

– Qual morreu o quê, toleirona!... Quem te disse isso?... Foi vágado, que deu na
menina; eu fomentei com arruda e cachaça, e ela voltou a si. Quem morreu foi uma
enjeitadinha, que encontrei aí na porta agorinha mesmo quase a expirar.

Nhá Tuca, saindo do quarto da mulata, teve o cuidado de ir imediatamente


colocar a escravinha morta dentro do berço, donde há pouco tirara a enjeitada viva.

Não se sabe se a mãe da menina morta e as outras escravas perceberam esta


manobra de Nhá Tuca, e se nela foram coniventes; o certo é que ali nunca se ouviu nem
de leve murmurar sobre tal coisa.

O cadáver da verdadeira escrava foi nesse mesmo dia dado à sepultura como o
de uma enjeitada, e quinze dias depois a exposta era batizada na Capela de Santa
Ifigênia como escrava de Nhá Tuca, e recebia na pia batismal o nome de Rosaura.

Dessa data em diante, os negócios de Nhá Tuca começaram a desandar em


progressivo desarranjo e decadência. Com a idade, a devassidão e as moléstias, a beleza
das raparigas foi murchando e se esvaecendo com assustadora rapidez. Vendo cada vez
mais ir-se-lhes escasseando a freguesia, Nhá Tuca, que era mestra jubilada em toda a
casta de tricas, abusões e torpezas, industriou as raparigas em certas práticas infames,
ensinando-lhes a preparar filtros amorosos por meio de processos imundos e nocivos a
fim de prenderem o coração dos desditosos amantes. Com esse expediente, nem por isso
obtiveram grandes vantagens.

Todavia, sempre conseguiram enviar para a eternidade, depois de bem


depenados, uma boa meia dúzia de patinhos, e deixar para sempre entisicados dos
pulmões e da algibeira não menos de outra meia dúzia.

Por estas e outras proezas, Nhá Tuca começou a granjear uma enorme
reputação de bruxa, feiticeira e mestra em malefícios diabólicos, passando como coisa
incontestável, entre os povos daquela redondeza, que ela tinha pacto com o diabo. Por
essa razão começou ela a ser detestada e temida, execrada e evitada por toda aquela
gente. As raparigas foram-se cobrindo de uma lepra, que se propagou por todas, devida
a moléstias sifilíticas mal curadas; tornaram-se hediondas e foram morrendo uma a uma,
sucessivamente. Os fregueses, que outrora com tanta alegria e sofreguidão acudiam
àquela animada e ruidosa locanda, agora fugiam de lá como quem foge da peste.

Dorotéia era talvez a mais linda de todas as odaliscas do serralho de Nhá Tuca,
e a única que ainda conservava alguns restos da saúde e frescura da mocidade. Era ela a
favorita e a confidente de Nhá Tuca, e a quem esta não receava confiar seus segredos e
suas chaves.

Em uma noite de orgia, em que houve suma profusão de bebidas espirituosas,


de parceria e combinação com um taful, com quem se ligara estreitamente, lá pela
madrugada, Dorotéia, filou sutilmente a chave do mealheiro, esvaziou-o
completamente, e eclipsou-se de uma vez para sempre em companhia do amante. Ao
dar pela falta da escrava e de todo o dinheiro que possuía, a velha deu urros de
desespero, e caiu fulminada por uma congestão; mas não morreu. Apesar de todas as
diligências que empregou, nunca mais lhe foi possível deitar a mão nem na escrava nem
no dinheiro.

Foi nessa ocasião que Nhá Tuca, achando-se inteiramente exausta de recursos,
se viu na dura necessidade de vender Rosaura, que então contava dez anos, e era a única
cria que lhe restava de suas escravas. Posto que vivesse no meio daquela escola do vício
e da abjeção, Rosaura, graças à índole privilegiada, e também ao cuidado que Nhá Tuca,
por exceção de regra, tinha tido de esquivar-lhe aos olhos as cenas de devassidão que se
davam em sua casa, havia conservado até ali pura e intacta a inocência de sua alma. Se
era uma fada pela formosura do rosto e pelo airoso porte de seu corpo esbelto, era um
anjo pela candura e pureza do coração.

Foi um assinalado favor, que o céu fez à pobre menina, permitindo que ainda
em verdes anos fosse arrancada ao ambiente infecto daquele imundo lupanar.

O preço de Rosaura, porém, não tendo aplicação lucrativa, bem depressa se


exauriu, e a miséria veio bater à porta da desgraçada velha, que já não tinha por
companheira senão uma escrava, tão idosa e inválida como ela. Já Nhá Tuca se
dispunha a vender o prédio, em que morava, para ter de que subsistir, quando, para
cúmulo de males, em uma bela noite foi ele devorado por um incêndio, do qual a custo e
como por milagre ela e sua companheira puderam escapar com a roupa do corpo. No
outro dia, as duas míseras velhas vagavam pela estrada, mendigando pelo amor de Deus
um bocado de alimento e um telheiro em que se abrigassem, e bem poucos se
compadeciam delas.

– Foi bem feito! – murmurava o povo, desalmado. – É castigo de Deus. Nem


outra sorte merecia semelhante feiticeira.

Portanto, a infeliz, condenada a tragar até às fezes, a taça do abandono e da


miséria, era por quase toda parte mal acolhida, e até repelida e insultada. O povo ou
porque tem por costume fazer a vista grossa sobre os defeitos e nódoas, que enxovalham
a vida de qualquer, enquanto este se acha em condições de riqueza e prosperidade, ou
porque, só depois que Nhá Tuca caiu em desgraça, começassem a divulgar-se as
torpezas e malefícios por ela praticados, o povo não teve dela menor comiseração. De
feito eram execráveis as atrocidades, que se lhe atribuíam, e foram as próprias escravas
que, vendo o descalabro dos bens da senhora, e o desconceito em que ia caindo, se
encarregaram de propalá-las. Por boca dessas desgraçadas, que a miséria e a crápula
tornavam cada vez mais abjetas, toda a gente daqueles arredores ficou sabendo não só
as façanhas, que temos relatado, como também que fora Nhá Tuca quem abreviara os
dias de seu irmão para empolgar-lhe a herança.

O francês que tinha taverna à beira da estrada foi o único que se compadeceu
dela, permitindo-lhe morar no miserável ranchinho em que a encontramos.

Aí definhava ela, há dois anos, em companhia da preta velha de que já falamos.

Era esta que, de quando em quando, saía a esmolar pela cidade para si e para
sua companheira, porque se saísse a própria Nhá Tuca, bem minguada seria a coleta.
Essa mesma pobre preta, que era seu único arrimo, havia morrido subitamente dois dias
antes, deixando sua senhora entrevada sobre seu mísero grabato e no estado de
indigência e desamparo em que Conrado veio encontrá-la.

CAPÍTULO XIV

A CONFISSÃO
No quarto da moribunda havia dois tamboretes, um colocado junto à cabeceira,
outro aos pés do pobre girau. Havia também defronte do leito uma mesa pequena e
tosca, sobre a qual estava colocado um crucifixo de madeira entre duas velas acesas;
assim como também um tinteiro, pena e papel. A enferma, graças aos cuidados do
francês, que, conforme as recomendações de Conrado, além de ter mandado arejar o
aposento e mudar a roupa da cama, tinha-lhe enviado um caldo e um cálix de vinho,
achava-se mais reanimada. Estava ela meio sentada, e encostada a alguns travesseiros.
Conrado fez Frei João sentar-se à cabeceira, e ele mesmo colocou-se aos pés da cama da
enferma. O francês e as outras duas testemunhas, por não haver mais assentos, ficaram
em pé defronte do leito.

– Sra. D. Gertrudes – disse Conrado, com um acento de voz pausado e brando,


de modo que tranqüilizasse a enferma – prometi trazer-lhe um confessor: venho cumprir
a minha promessa. Aí está em sua presença o Sr. Padre Frei João de Santa Clara, digno
e virtuoso sacerdote, que está pronto a ouvi-la de confissão, e absolvê-la de seus
pecados.

A velha voltou a custo o rosto para o padre, depois, levando lentamente sobre o
coração a destra mirrada em sinal de gratidão e reverência, o saudou com uma leve
inclinação de cabeça.

– Tenha piedade de mim, senhor padre, murmurou com voz seca e alquebrada.

– É a misericórdia divina, e não a minha, que a senhora deve implorar –


respondeu brandamente Frei João. – É Deus, e não eu, que tem de julgá-la.

– Sim, é ele, bem sei, mas minhas culpas são tantas e tão enormes...

– Embora. Se a senhora tem verdadeira contrição e arrependimento de seus


pecados, por muitos e enormes que sejam, deve ter firme esperança de que Deus se
amerceará de sua alma. Há, porém, um ponto de sua confissão, que este meu amigo, que
aqui me trouxe, deseja que seja feito em voz alta e em presença das testemunhas, que
aqui nos achamos, e tomada por escrito, a fim de remediar um grande mal, que a
senhora fez, reduzindo à escravidão pessoa livre. Recorda-se desse fato?...

– Oh! sim! muito! para vergonha minha e tormento de minha alma.

– E está pronta a declará-lo em voz alta perante nós, que aqui estamos?
– Pronta, senhor padre; pronta para tudo.

– Pois bem; faça em primeiro lugar, conscienciosamente e com toda a


sinceridade, a declaração desse fato com todas as circunstâncias, de que se lembrar.
Depois, a ouvirei em confissão particular e secreta.

– É verdade, senhor padre; foi um crime abominável, que cometi... Graças a


Deus, que ainda me dá tempo de remediá-lo nesta hora derradeira.

A velha em seguida fez, com voz débil e arrastada, a narração minuciosa da


fraudulenta manobra, que já conhecemos, e por meio da qual reduzira à escravidão a
filha de Conrado e Adelaide. Frei João redigiu e ditou, e o francês escreveu a seguinte
declaração: .

"Eu Gertrudes Maria dos Anjos, natural de Moji-Mirim, província de S. Paulo,


achando-me em artigo de morte e prestes a entregar minha alma ao Criador, em
confissão pública, que de viva voz e de livre vontade faço perante o Rev.mo Sr. Padre
Frei João de Santa Clara, e mais testemunhas, para desencargo de minha consciência,
salvação de minha alma, e reparação do mal causado, declaro que na noite de dezoito
para dezenove de novembro de mil e oitocentos e quarenta..., uma escrava minha deu à
luz uma menina, a qual faleceu logo depois de nascida.

Nessa mesma manhã, ao romper do dia, encontrei exposta em minha porta uma
menina recém-nascida, que substituí à criança morta fazendo-a passar pela filha da
escrava, e dizendo que a enjeitada é que tinha morrido. Esta enjeitada foi batizada na
Igreja de Santa Ifigênia como escrava minha com o nome de Rosaura, e como tal foi
conservada em meu poder até a idade de dez anos, sendo vendida por mim a um Sr.
Basílio, morador na Rua do Tabatinguera. Ignoro o que depois foi feito dela. S. Paulo, 2
de novembro de 184..."

Esta espécie de termo, declaração, depoimento, ou como melhor se possa


chamar, foi lido à enferma, que o julgou conforme ao que tinha declarado, e em ato
contínuo assinado por Frei João e as outras testemunhas. Frei João, para dar maior força
e autenticidade àquele importante documento, antes de assinar-se, escreveu o seguinte
juramento:
"Pelo sagrado hábito, que visto, da Ordem dos Carmelitas, juro que a presente
declaração foi feita perante mim, tal qual se acha escrita, em ato de confissão pública in
articulis mortis".

Concluído este ato, retiraram-se todos deixando somente o frade para ouvir a
penitente em confissão auricular.

É escusado dizer que o fato, que constituiu a confissão pública da velha, logo
circulou de boca em boca, e foi discutido, comentado, e apreciado de mil maneiras. Sua
curiosidade já em parte ficara satisfeita; já sabiam qual o nobre e generoso motivo, pelo
qual o cavaleiro, que ali se apresentara pela manhã, havia mostrado tanto interesse e
solicitude pela velha, e feito tantos esforços para, que não morresse sem confissão. Não
cessavam de elogiá-lo tanto quanto maldiziam a desditosa velha. Mas restava ainda um
mistério, que não podiam penetrar, e que lhes causava no espírito o mais incômodo
prurido. Dariam tudo para saber que laço misterioso havia entre o cavaleiro e a menina
batizada como escrava, que lhe merecia tantos cuidados e sacrifícios. De conjetura em
conjetura alguns não deixaram de tocar certo no alto; mas eram meras suposições; a
dúvida e o mistério persistiam.

Com grande desgosto de Conrado, que pretendia ir nessa mesma tarde arrancar
sua filha às mãos de seus supostos senhores, a confissão da velha teve de durar uma boa
hora, tanta era a carga de pecados, de que aquela alma trazia carregada a consciência, e
que lhe era mister alijar à borda do túmulo para poder subir ao céu.

– De profundis exclamavi - veio murmurando Frei João ao sair elo rancho da


moribunda.

– Morreu? - perguntou Conrado, que o esperava à porta.

– Sim; morreu. Aquela pobre alma parece que, por um supremo esforço, se
mantinha presa ao corpo para descarregar o peso de suas enormes culpas. Foi recebendo
a absolvição e expirando imediatamente.

– Deus se compadeça de sua alma – disse Conrado.

– Amen – respondeu Frei João.

Enquanto Nhá Tuca se confessava, o sol próximo ao ocaso já quase tocava na


serra da Cantareira, não entre vapores diáfanos e nuvenzinhas douradas, mas entre
negros e carregados bulcões de orlas cor de cobre, que a cada instante se acendiam, e
apagavam ao sulcar de mil coriscos. Era a tempestade, que se avizinhava em seu carro
impetuoso, impelido pelo sopro dos furacões.

Estava-se já nos primeiros dias de novembro, e nem uma gota de chuva tinha
ainda caído do céu sobre a terra ardente e sequiosa. A seca com seu sinistro cortejo de
calamidades ameaçava a bela província de S. Paulo, pouco afeita a ser castigada com
semelhante flagelo. Já se tinham feito preces públicas implorando a misericórdia divina;
já a milagrosa Imagem de N. S. da Penha, que tem a sua capela a duas léguas de
distância da cidade de S. Paulo, tinha sido conduzida em procissão solene, desde lá até a
Igreja da Sé, com grande devoção e atos de penitência.

A tempestade, portanto, apesar de avizinhar-se medonha e ameaçadora, foi


saudada com gritos de alegria pelo povo, que se achava reunido em torno da cabana de
Nhá Tuca. O vento zunia com fúria diabólica, os coriscos fuzilavam de instante a
instante, os trovões estouravam cada vez com mais força, e a chuva começava a
despenhar-se em violentas e copiosas rajadas.

Conrado, Frei João e toda aquela gente, que em número de trinta a quarenta
pessoas ali se achava desde pela manhã, viram-se forçados a recolher-se
atropeladamente à casa do francês. Os cômodos eram bastantemente acanhados para
tanta gente; mas mesmo assim, eles em pé, apinhados e acotovelando-se, enquanto lá
por fora a tempestade desabava roncando furiosa, falavam em voz alta com a maior
franqueza e desembaraço, formando outra tempestade de horripilantes pragas e
maldições.

– Aquela mulher era mesmo o diabo, que malsinava esta terra – gritava um. –
Foi ela morrer, e a chuva descer. Bendita morte e bendita chuva!

– E é mesmo assim – replicou outro. – Aquela maldita trazia o demônio na


mala, e era preciso um padre santo para mandar o cão tinhoso com a velha e tudo
estourar nas profundas dos infernos, para a gente ficar livre da seca.

– Abençoado seja o Sr. Frei João de Santa Clara! A imaginação do povo é


sempre; propensa a crendices e superstições, e aquele fenômeno, coincidindo com a
morte da desgraçada velha, fez com que acreditassem que ela, provocando com suas
maldades as iras do céu era a única causadora do flagelo, com que Deus afligia aquela
terra, e portanto continuava a maldizer na morte a pobre mulher, a quem na vida já
tinham votado ao desamparo e à execração. Assim a alma de Nhá Tuca, para onde quer
que tivesse de dirigir-se, retirava-se deste mundo entre os roncos da tempestade e as
apupadas e maldições do povo. O vento impetuoso tinha dilacerado e atirado pelos ares
o teto de capim do rancho, deixando o cadáver da mísera velha exposto a todo o vigor
do temporal.

– Se até o céu se zanga contra essa mulher, nós é que devemos ter piedade
dela? – clamava o povo, e já se dispunha a ir, logo que amainasse a tormenta, atacar
fogo ao rancho, a fim de que ardesse completamente com o cadáver da velha e tudo que
lhe pertencia.

– Dela – diziam eles – não devem ficar sobre a terra nem mesmo as cinzas.
Pouco nos custa acender um grande braseiro, que secará a chuva, e amanhã esse maldito
rancho e sua dona não serão mais que um punhado de cinza, que o vento levará pelos
ares.

E teriam levado a efeito sua intenção, se Conrado e Frei João não os tivessem
estorvado, opondo-se com energia a tão cruel profanação.

Quando o temporal cessou de todo, a noite vinha descendo sobre a terra.


Aquela chuva, que durou cerca de uma hora, a todos agradou, menos a Conrado, a quem
viera tirar a possibilidade de ir, como pretendia, reclamar naquele mesmo dia a entrega
de sua Rosaura. Sua impaciência era legítima; quisera que nem mais uma só noite sua
filha dormisse debaixo dos tetos do major; informado por Lucinda, já era sabedor dos
contínuos e graves perigos a que ali se achavam expostas a pureza e a pudicícia da
menina. Mas forçoso lhe foi diferir para o dia seguinte a satisfação do seu intento; posto
que tivesse cessado a chuva, o céu se conservava nublado, e a noite ia-se tornando
escuríssima; isto, unido ao mau estado dos caminhos escavados pelas enxurradas,
retardava consideràvelmente a marcha dos animais, e não poderiam chegar à cidade
senão com noite muito adiantada.

A despeito da escuridão e das dificuldades do caminho, Conrado e Frei João, de


volta para a cidade, não deixaram de conversar largamente combinando entre si os
meios que deveriam empregar para que, sem escândalo e sem lesão da honra e da
reputação de Adelaide, Rosaura fosse prontamente reconhecida como livre de
nascimento, e entregue a seu pai. Frei João aconselhava a seu amigo que procurasse ser
o mais humano e generoso, que fosse possível, para com o pai e o marido de Adelaide,
os quais, se fosse possível, deveriam ficar em perpétua ignorância da existência dessa
neta e dessa enteada. Ponderava-lhe mais que, se eles recusassem entregá-la por meios
amigáveis, restava ainda o recurso dos meios judiciais, pelos quais seriam sem remissão
forçados a reconhecer a liberdade da menina e largar mão dela.

– É porque o meu amigo não conhece de que têmpera é aquele Major Damásio
– respondia Conrado.

É o homem mais teimoso, mais emperrado que o sol cobre. Quando encabeça
para um lado, não há força humana, que o possa desviar. É como a anta disparada pelo
mato, esbarrando furiosamente em quanto obstáculo encontra e levando tudo de
vencida. . .

– Até que cai em algum poço, e aí, querendo fazer face ao inimigo, é de
ordinário vencida e morta.

– É verdade, mas depois de muito acuada e à custa de renhido combate. Mas o


meu amigo ignora ainda as perversas e sinistras intenções, que o marido de Adelaide
tem sobre a minha inocente Rosaura.

– Ignoro certamente.

– Pois saiba que concebeu por ela a mais louca e infrene paixão, e a cada
instante emprega todos os meios e artifícios para seduzi-la ou coagi-la, de modo que a
infeliz menina, a qualquer momento, pode ser vítima da fúria libidinosa de seu
pretendido senhor. E é bem de crer que, quando ele perceber que a presa está prestes a
escapar-lhe das garras, redobrará de esforços para levar a efeito seus execráveis
desígnios. Eis aí por que não posso resignar-me às delongas dos meios judiciais, sempre
morosos e complicados mesmo nas coisas as mais simples. Estou quase certo que tanto
o velho como o genro hão de recalcitrar com a maior obstinação, e cerrando os olhos à
evidência, hão de opor todos os embaraços, que estiverem a seu alcance, a fim de obstar
a liberdade e a entrega de Rosaura. Creio por isso que não terei remédio senão valer-me
do meio pronto e decisivo, com que a Providência armou-me o braço.

– Tens razão de sobejo, meu caro amigo – replicou o frade. – Não sabia que as
coisas se achavam em tão melindrosa conjuntura. Não obstante, antes de lançarmos mão
desse recurso extremo, convém empregar todos os meios para conseguir a liberdade e
entrega da menina sem quebra da honra de Adelaide, sem ir levar a vergonha e a
discórdia ao seio de uma família considerada.

– De minha parte – retorquiu Conrado – bem estimaria que, para seu castigo, o
major viesse ao conhecimento de todo o ocorrido, pois é ele o primeiro, o único
causador de todos estes transtornos; mas a lembrança de que Adelaide, vítima dos
caprichos de um pai estúpido e brutal, também irá participar do mesmo castigo, me
contém em meus legítimos desejos de vingança.

– Nenhuma vingança é legítima, meu amigo.

– Está bem; mas isso não seria propriamente uma vingança, porém sim um
castigo, que Deus lhe infligia por minhas mãos. Esteja porém tranquilo a esse respeito;
não empregarei a arma terrível, de que disponho, senão em último caso; mas tenho
quase certeza de que me forçarão a empregá-la; ver-me-ei na cruel necessidade de
invocar o testemunho da própria Adelaide perante seu pai e seu marido.

– Talvez não; o documento, que levamos, não pode ser contestado.

– Eles são capazes de contestar a luz ao sol. Veremos amanhã. Às dez horas,
iremos à casa do Major Damásio. Poderá fazer-me ainda este favor?

– Com muito prazer; creio até que a minha presença aí não é sàmente útil,
torna-se mesmo necessária, pois creia que não sossego enquanto não vir esse negócio
terminado com o mais feliz resultado. Eu lá estarei para coadjuvá-lo, quanto em mim
couber, a fim de concluí-lo sem escândalo, e do modo o mais pacífico que for possível.
Quando tivermos esgotado todos os meios brandos, eu darei um sinal, para que o meu
amigo lance mão do extremo recurso.

Neste ponto da conversação, os dois amigos entravam na cidade. Acabavam de


soar nove horas. Conrado apeou-se em casa, e mandou seu pajem acompanhar Frei João
ao Convento e trazer a cavalgadura.

CAPÍTULO XV
O SOGRO E O GENRO

Esse dia primeiro de novembro de 184... tão cheio de emoções profundas e


interessantes peripécias na vida de Conrado, não se escoou também tranqüilamente em
casa do Major Damásio. Desde que Conrado aí aparecera exigindo do Sr. Morais a
libertação e a entrega de Rosaura, alegando que ela nascera livre, e declarando que era
sua filha, o marido de Adelaide perdeu não somente toda a tranqüilidade de seu espírito,
como também algum tanto de sua razão. Por mais que se esforçasse por dar pouca
importância às declarações do rico capitalista, elas não deixavam de fazer sobre sua
alma a mais esmagadora impressão.

O genro do major conhecia a Conrado pela bela e honrosa reputação, de que


gozava não só na capital, como em toda a província de S. Paulo. Sabia muito bem que,
além de rico, era homem honesto e honrado, incapaz de aleives e manejos torpes.

– Esse homem terá decerto algum motivo particular para querer pregar-me
alguma peça – murmurava consigo. – Já fui estudante, e ele sempre foi futrica; talvez eu
lhe tivesse arranjado alguma caçoada, de que não me lembro, e para tirar desforra vem-
me agora com esta... Mas perde seu tempo; não é a mim, que há de fazer engolir
araras... Vá com sua caçoada para mais longe! Decerto o maganão sabe que gosto de
Rosaura, e quer me fazer medo. . .

Com estas e outras estólidas reflexões, que o seu mesquinho espírito lhe
sugeria, Morais procurava dissipar a terrível impressão, que lhe causara a visita de
Conrado; mas era debalde; a figura grave e severa de Conrado, suas palavras firmes e
concisas e o estranho motivo de sua visita eram como visões sinistras, que de contínuo
lhe apavoravam a imaginação. Embaraçado com mil conjeturas, que lhe escaldavam o
cérebro, não pôde ter-se, que não fosse comunicar ao sogro tudo quanto havia ocorrido
entre ele e Conrado, esperando que aquele dissipasse a inquietação, que o torturava. O
velho, que em razão dos janeiros e das moléstias já começava a tresler seu tanto ou
quanto, soltou uma estrondosa gargalhada.

– Pois deveras não saber ainda quem é esse peralta! – exclamou ele. – Foi meu
capataz; fui eu quem lhe dei a mão e o tirei do nada; se não fosse eu, ainda hoje ele
estaria em Curitiba domando burros, ou tocando tropa.
– Isso sabia eu – respondeu Morais; – mas o certo é que hoje é um homem de
importância e bastante rico.. .

– Rico! ora, rico!... Não creias nisso, homem. É mais basófia e impostura do
que qualquer outra coisa. Anda nos fazendo foscas com suas pataratas de luxo e riqueza
só para nos pôr sal na moleira. Se tu soubesses o motivo por que esse biltre nos tem
ojeriza, não lhe davas tanta importância.

– Então ele nos tem ojeriza?.. Dessa não sabia eu.

– Tem, e muita, meu rapaz, e eu já te conto por que. Hás de acreditar, que
aquele pé de poeira, sendo meu capataz, teve o descoco de apaixonar-se pela nossa
Adelaide a ponto de ter o desaforo de pedi-la em casamento a mim, a mim mesmo que
aqui estou?!

– Deveras!?...

– Olé!... sim, senhor!... E com uma petulância e impertinência de espantar. O


que vale é que a menina nunca lhe deu confiança, e eu arrumei-lhe com um não redondo
à cara.

– Por isso! por isso! – exclamou o genro, com alegria aparvalhada.

– Mas o bicho teimou assim mesmo – continuou o sogro – e foi-me preciso


enxotá-lo pela porta afora para me ver livre dele.

– Por isso! por isso! – exclamou ainda o genro. Por isso é que ele vem com
tamanha arrogância exigir o que não lhe pertence, inventando embustes e patranhas para
me embaçar...

– Queres saber uma coisa? – interrompeu o sogro. – Quer me parecer que esse
pelintra já conhecia Rosaura, e deseja possuí-la, decerto para seu serralho...

– O maganão gosta de boas fazendas, e como se acha apatacado, cobiçou a


menina, e faz o possível para obtê-la.

– Coitado!... Disso está ele bem livre.

– Mas escuta ainda, basbaque. Não tens reparado que Rosaura tem assim certas
parecenças com Adelaide, quando era mocinha?
– Oh! se tem!... – murmurou o genro quase falando consigo mesmo. – Pensei
que só eu tinha reparado nisso.

– Pois é isso talvez que lhe despertou agora outra vez a paixão antiga e...
compreendes o resto, para o bom entendedor um pingo é letra. Mas como lhe tomaste a
dianteira comprando a rapariga, que ele cobiçava lá para seus fins, danou com o caso e
agora vem com essas patranhas procurar arrancá-la de nossas mãos.

– Ah! patife! – bradou o genro, encrispando os punhos. – Volta cá outra vez a


buscar lã, e verás como sairás tosqueadinho!

Morais achou todo fundamento nas conjeturas do major, que vieram dar bases
mais sólidas às suas estólidas suposições, e em conseqüência suas inquietações se
transformaram no mais entranhado rancor contra Conrado. Lembrando-se do ar meigo e
afetuoso, com que Rosaura, com seus grandes olhos límpidos e ternos, havia
contemplado o moço durante todo o tempo que estivera em sua presença, o ciúme
atracou-lhe ao coração as garras ferozes; sua paixão insensata pela inocente menina
tomou um caráter sombrio de exaltação e ferocidade, que quase tocava ao delírio.
Andava de aposento em aposento, procurando Rosaura, e, quando a encontrava, a
envolvia em um olhar torvo e inflamado, que não se poderia dizer se era de cólera, ou
desse ardente sensualismo que lhe queimava o sangue. Rosaura fugia, e correndo
espavorida procurava abrigo ora junto de Adelaide, ora junto de Lucinda.

O mau humor de Morais se fez sentir nesse dia em toda a casa. Na loja, o
pequeno caixeiro que o ajudava, tendo cometido uma insignificante falta, Morais
investiu sobre ele de côvado em punho com tal fúria, que o obrigou a saltar o balcão e
correr pela porta afora para não mais voltar. A mesa achou o jantar péssimo, e a pobre
Lucinda teve de ouvir os mais horríveis repelões.

Enfim, nesse dia tudo em casa do major andou inquieto e agitado. Lucinda,
preocupada e ansiosa pelo resultado das passadas, que Conrado ia dar para conseguir a
liberdade de Rosaura, não sabia o que fazia, e esperava com impaciência a noite para
pôr termo a suas incertezas.

Adelaide, apesar do prazer íntimo que sentia, vendo perto de si a filha do seu
primeiro amor tão linda e tão amável, achava-se desassossegada e apreensiva, receando,
com bastante fundamento, que o reconhecimento da liberdade de Rosaura não se
pudesse realizar sem se romper, talvez para sempre, a confiança e harmonia que até ali
tinham reinado no seio de sua família.

A própria Estela, apesar de sua tenra idade, vendo que Rosaura, a quem já
adorava, em vez de brincar com ela, na forma do costume, andava ressabiada pelos
cantos da casa, com ar espavorido e consternado, sem saber por que, achava-se também
triste e amuada.

Somente as crianças mais tenras brincavam, riam, saltavam com a descuidosa


alegria da puerícia.

Quando desceu a noite, Lucinda achou pretexto para sair, e foi direito à casa de
Conrado. Esse ainda não tinha chegado. Lucinda o esperou à porta por espaço de quase
uma hora. Triste e contrariada já vinha de volta para casa, quando encontrou em
caminho dois cavaleiros, em um dos quais reconheceu Conrado. Era tal a sua ansiedade,
que, esquecendo-se de sua condição, abalançou-se a travar da rédea do animal no meio
da rua, suspender-lhe a marcha, e dirigir ao elegante cavaleiro uma pergunta.

– Então, nhô Conrado, como é?... – foram as únicas palavras que lhe dirigiu. .

– Tudo correu à medida de nossos desejos – respondeu o cavaleiro, que logo


reconheceu a velha escrava. – Amanhã, Rosaura está livre.

A preta voou para a casa, pulando de contente, seu humor do dia para a noite
mudou-se por tal forma, que a todos causou estranheza; ela, que durante todo o dia
estivera distraída, rabujenta, e de poucas graças, apresentava-se agora alegre e folgazona
como nunca. Corria, cantava, ria-se à toa, como se fosse uma criança. Tomou Rosaura
ao colo, e cobrindo-a de carícias a chamava de sinhazinha com alegria tal, que parecia
loucura. Rosaura, Estela e as crianças, que nem por sombra suspeitavam o motivo de tão
insólito contentamento, riam-se também, a não poderem mais, da desenvoltura de
Lucinda.

Adelaide, que fora a primeira a quem a preta logo ao chegar tinha comunicado
as palavras de Conrado, sentiu banhar-se-lhe em júbilo o coração; mas um cruel
pressentimento pesava-lhe sobre o espírito, e não permitia que o seu júbilo se
manifestasse com as mesmas expansões do de Lucinda. Ela compreendia vagamente
que se achava na véspera de um acontecimento, que tinha de exercer a mais decisiva
influência sobre seu destino futuro, e cheia de inquietação e angústia aguardava o
desenlace de uma situação, que ela, melhor que ninguém, sabia quanto era grave e
melindrosa.

Durante a noite o sono de todos, à exceção do das crianças, foi agitado, febril e
povoado de sonhos. O espírito de Adelaide debatia-se entre o prazer de ver sua filha
bela, grande e pura, arrancada à escravidão e restituída aos carinhos de seus
progenitores, e o receio cruel de ver perdida aos olhos do esposo e do pai a reputação de
que até ali gozara, e estes pensamentos afugentavam o sono de suas pálpebras.

Morais teve horríveis pesadelos e sonhos pavorosos, em que se lhe apresentava


a figura de Conrado, torva e inexorável, disputando-lhe a posse da formosa Rosaura.

Para Lucinda essa noite pareceu uma eternidade; estava ansiosa pelo momento
em que, em vez de dar, teria de pedir a bênção à Rosaura.

Esta dormiu com a imaginação entre a figura sombria e sinistra de Morais,


ameaçando-a com seus olhares ardentes e carregados, e a benévola e plácida imagem,
que lhe ficara intimamente gravada nalma, do homem que estivera com ela pela manhã.

CAPÍTULO XVI

ABATE OS SOBERBOS

No dia seguinte, Frei João veio almoçar em casa de Conrado, e daí dirigiram-se
ambos para casa do Major Damásio. A missão, que iam desempenhar, era grave e
melindrosa, e é fácil de compreender a emoção com que ambos, e especialmente
Conrado, transpuseram a soleira daquela casa, onde por uma fatal necessidade iam
talvez levar a vergonha e a desarmonia.

Introduzidos na sala de visitas, foram aí recebidos pelo Major Damásio com


fria polidez.

– Desejava saber – disse o major, convidando-os a sentarem-se, – a que devo a


honra desta visita.
Frei João, que conhecia a velha indisposição, que existia entre o major e
Conrado e refletindo que debaixo da emoção, que o dominava, seu amigo não teria a
necessária presença de espírito para entabular convenientemente a conversação,
resolveu-se a responder por ele.

– Não é propriamente uma visita, senhor major, disse o frade. – O que nos traz
hoje à sua casa é um negócio da mais alta importância, não só para nós, como para V.
S.a.

– Um negócio da mais alta importância! – exclamou o major, fingindo-se


surpreendido. – E comigo!... Pode ser... Declarem qual é esse negócio, e estou pronto a
dar a solução, que for de direito e couber no possível.

– Entretanto, senhor major – continuou Frei João – para tratarmos desse


negócio é indispensável que estejam também aqui presentes o Sr. Morais e sua senhora,
que são nele altamente interessados, e por isso rogamos-lhe o favor de mandá-los
chamar.

– Muito grave é o negócio, mas por isso não seja a dúvida – disse o major,
tocando a campainha.

Apareceu um escravo, pelo qual mandou chamar a filha e o genro, que após
instantes se apresentaram na sala.

Quando Adelaide deu com os olhos em Conrado, apesar de prevenida,


empalideceu, foi extraordinária sua perturbação, e a muito custo, com passos vacilantes,
adiantou-se para tocar a mão, que ele lhe estendia.

Ah! que tristes e amargas recordações lhe oprimiam o coração, e que sérias e
assustadoras apreensões lhe assaltavam o espírito naquela ocasião e em presença
daquele homem!...

Adelaide, apesar dos filhos e de mais quatorze primaveras, que tinham passado
sobre sua juventude, ainda conservava no frescor da tez, no brilho dos olhos e na
delicadeza e flexibilidade de seu bem feito corpo, quase intactas todas as graças da
primeira mocidade. A matrona de trinta anos em quase nada diferençava da donzela de
dezoito.
O tempo apenas lhe tinha tornado as belas feições um pouco mais
pronunciadas, e lhe imprimira na fisionomia certa expressão grave e melancólica, que
ainda mais lhe realçava os encantos.

Ao ver tão perto de si e ao tocar a mão daquela, que fora o primeiro e único
amor de sua vida, Conrado sentiu o mais violento abalo, e abafou um gemido de
angústia e de saudade. Pareceu-lhe que sua antiga paixão ia renascer com todos os seus
arroubos e exaltações, e a muito custo conseguiu domar a extrema emoção que o
assoberbava.

Também Frei João se achava bastantemente comovido. Espírito elevado e alma


nobre e sensível, bem compreendia o alcance e importância da cena, que se ia passar. O
major e seu genro eram os únicos que se mostravam pouco preocupados e, apesar de
não ignorarem o motivo da visita de Conrado, afetavam certo ar de indiferença e
seguridade. Tinham razão; estavam longe de suspeitar a que tristes resultados poderia
chegar aquela conferência. Se pudessem adivinhar, que vergonha e ignomínia estava
suspensa sobre suas cabeças como a espada de Dâmocles, seriam eles os primeiros a se
apresentar de fronte humilhada e cheios de confusão, pedindo uma acomodação
honrosa.

– Senhor Major – disse Frei João – ainda precisamos pedir-lhe mais um favor.

– Pronto, se estiver em meu poder. . .

– É muito simples o meu pedido. É de absoluta necessidade que aquilo, sobre o


que temos de conversar, se passe debaixo do maior segredo, de modo que jamais possa
ser divulgado, nem conhecido senão por nós, que aqui nos achamos. Por isso peço-lhe
que mande retirar-se dos cômodos vizinhos os fâmulos e escravos e mais pessoas da
família e feche as portas de modo que não possam escutar-nos.

– É boa! – exclamou o major, com desabrimento. – Nunca tive e nem tenho


segredos em minha casa! Não me dirá para que fim tanto mistério?!...

– Teremos acaso o tribunal da Inquisição em nossa casa, senhor padre? –


perguntou Morais, empertigando-se.

– Não se agastem, meus senhores! – respondeu o frade, com brandura. – Bem


sei que o senhor major não tem segredos em sua vida, e se os tem, ele próprio os ignora;
e fique certo o Sr. Morais, que não venho trazer à sua casa o tribunal da Inquisição.
Venho aqui a convite de meu amigo o Sr. Conrado a fim de cumprir um dever não só de
amizade, como de religião e humanidade. Tenho, enfim, o desígnio de levar a um feliz e
pacífico desenlace um negócio de muito melindre, que pende entre ele e os senhores. No
fundo desse negócio existe um segredo importante, que talvez seja forçoso revelar, e
que é mister que fique sepultado aqui entre nós, sem que jamais possa ecoar além destas
quatro paredes.

O major e Morais olharam um para o outro, como que perguntando o que


significavam as palavras que Frei João acabava de proferir; Adelaide, porém, que bem
compreendia o alcance delas, estremeceu e recolheu sua alma no seio de sua angústia.

– Pois bem! – disse Morais, fechando bruscamente as portas do salão. – Faça-se


a vontade a vossas senhorias; quanto a mim, tanto me rende que as portas estejam
fechadas, como abertas. Não tenho segredos, mas não posso proibir que outros os
tenham. Vejamos agora – concluiu ele, sentando-se – qual é esse tão importante e
misterioso negócio.

– Esse importante e misterioso negócio – disse Conrado, levantando-se, e com


voz firme e pausada – é de suma importância, e precisa muito da sombra do segredo e
do mistério, principalmente da parte de vossa senhoria. É coisa muito simples; e para
evitar mais perguntas, vou explicá-Ia em poucas palavras. Há pouco tempo o Sr. Morais
comprou como escrava uma menina por nome Rosaura a um negociante de escravos,
para servir de mucama a uma menina chamada Estela, filha do Sr. Morais e da Sra. D.
Adelaide.

– Até aí tudo é exatíssimo – murmurou Morais.

– Ora, sem o saberem – continuou Conrado compraram uma pessoa que nasceu
livre, e que por fraude e malícia de uma mulher, que ontem faleceu, foi reduzida à
escravidão. Ontem eu procurei o Sr. Morais, e pedi-lhe o resgate dessa menina,
oferecendo-lhe a quantia que quisesse; mas ele recusou-se obstinadamente. Ontem eu
ainda não tinha provas irrecusáveis; hoje, mercê de Deus, as tenho sólidas e
irrefragáveis, e venho apresentá-las e exigir que me seja entregue essa menina, sobre a
qual tenho direitos sagrados.

– Direitos sagrados! – exclamou o major. – Esta ainda é mais importante. Quais


são eles?
– Já ontem declarei ao Sr. Morais, e agora o repito: sou pai de Rosaura.

– Há! há! há! – gargalhou o major, com riso aparvalhado. – O senhor é o pai e
não poderá fazer-nos o favor de dizer quem era a mãe?

Conrado olhou para Adelaide, e empalideceu; ela baixou os olhos e corou.


Ambos tiveram comiseração do dito inconsciente do pobre velho.

– Não há necessidade de saber-se quem é a mãe redarguiu Conrado. – É um


segredo, que desejo guardar, e que só em última necessidade revelarei para salvar minha
filha da escravidão e da desonra.

Conrado carregou nesta última palavra, fitando os olhos de Morais, que,


percebendo-lhe o alcance, estremeceu como o réu que vê seu crime descoberto.

– Estou pronto – continuou Conrado – a indenizá-los da soma, por que


compraram a menina, porque sei que o fizeram em boa-fé.

– É debalde insistir, Sr. Conrado – replicou Morais. – Nós não disporemos dela,
nem mesmo que o senhor ofereça toda a sua fortuna. A paternidade, que V. S.a chama a
si, e de que não queremos duvidar, nada significa; a maternidade é o que importa neste
caso, e enquanto V.S.a não provar que Rosaura é filha de mãe livre. . .

– Nada mais fácil – atalhou Conrado – mas quero guardar esse segredo, porque
importa a honra de uma mulher a quem consagro ... a mais alta estima.

– Ah! nesse caso, só V.S.a tentando os meios judiciais; e mesmo assim lhe será
talvez necessário desembuchar esse segredo. Devo notar-lhe também que nós não
maltratamos Rosaura; pelo contrário, a consideramos como fazendo parte da família, e a
tratamos com o mimo e carinho que ela merece. A minha Estela a quer como se fosse
sua irmã, e minha mulher a estremece como se fosse sua filha.

– Acaba V.S.a de proferir a meio uma verdade mais verdadeira do que imagina
– disse Conrado, com certo sorriso de melancólica ironia, cuja significação só Adelaide
e Frei João compreenderam.

– Mas, Sr. Morais – continuou Conrado – creio que neste negócio poderei
prescindir dos meios judiciários. A infeliz mulher, que escravizou Rosaura, faleceu
ontem; mas antes de expirar fez confissão pública do seu crime; o sacerdote, que a
ouviu de confissão, foi o meu amigo que aqui se acha presente, o Sr. Frei João de Santa
Clara, de cujas virtudes, prudência e ilustração não é dado duvidar. Em presença dele,
minha e de mais duas testemunhas a velha fez a seguinte declaração, que tomamos por
escrito, e que passo a ler.

Conrado tirou da algibeira e leu com voz firme e clara o papel, cujo conteúdo já
conhecemos. Finda a leitura, decorreram silenciosamente alguns instantes de angústia e
inquietação para uns, e de estupefação para outros. A angústia estava no coração de
Conrado, de Frei João e de Adelaide, que compreendiam perfeitamente a crítica situação
em que se achavam. Pode-se idear, mas não explicar a penível posição em que se
achavam aquelas duas almas nobres em presença de uma mulher, cuja reputação iam
ver-se talvez na dura necessidade de sacrificar para salvar a filha da escravidão e da
desonra; de uma mulher que, não obstante ter no seu passado uma nódoa muito
desculpável, se tinha mostrado por seu ulterior comportamento digna de todo o respeito
e estima da sociedade.

A estupefação era por parte do major e de seu genro, que a princípio se


sentiram inteiramente desconcertados e como que aturdidos com a leitura do
documento, que Conrado apresentara. Todavia, não quiseram dar-se ainda por vencidos.
O primeiro, já treslendo algum tanto, não quis dar crédito ao que via e ouvia, e começou
a pensar lá de si para si que toda aquela cena não passava de manejo preparado pelo seu
ex-capataz, que por aquela maneira procurava vingar-se dele por lhe ter recusado a mão
de sua filha. O genro, dominado pela insensata paixão, que concebera pela gentil
Rosaura, e alucinado pelo ciúme, que o sogro lhe excitara nalma, fazendo-lhe crer que
Conrado cobiçava a rapariga para sua amásia, fechava também os olhos à evidência, e
não via nessa triste e pungente cena mais que embuste e velhacaria.

Foi Morais quem primeiro rompeu o silêncio.

– Sr. Conrado – disse ele, com desdenhosa e impertinente altivez – sei muito
bem quem era essa mulher, que foi a primeira senhora de Rosaura, e que ontem faleceu.
Também já houve quem esta manhã me desse notícia da cena, que vossa senhoria
preparou, e que de fato não foi mal representada.

Em qualquer outra ocasião Conrado teria repelido com energia e dignidade esta
tão grosseira e insultuosa insinuação; mas naquele, delicado transe lhe era mister levar
ao extremo sua paciência e longanimidade. Uma ruptura logo no começo daquela
conferência podia transtornar todos os seus planos de acomodação pacífica e honrosa, e
portanto deixou passar sem resposta as palavras injuriosas de Morais.

– Não contesto – continuou este – que essa mulher foi quem vendeu Rosaura;
mas vendeu-a como sua legítima senhora; posso contestar, contesto e contestarei
sempre, que Rosaura seja livre, por nascimento, como filha de mulher livre. Merece ser
livre, é verdade; mas a mim compete dar-lhe a liberdade, quando me aprouver e julgar
conveniente. Todo o povo de S. Paulo conhece muito bem quem foi essa Nhá Tuca. Foi
uma boa e honrada senhora, que há muitos anos, por desgraças e contratempos, que lhe
sobrevieram, caiu na miséria e perdeu o juízo. Caduca e alienada, como estava, com
mais de oitenta anos de idade, e de mais a mais já nas vascas da morte, que valor pode
ter a sua declaração, embora feita perante três ou mais testemunhas?...

– Isso é que é verdade – ponderou o major.

– Isso é que nada tem de verdade – replicou Frei João, com voz sonora e firme.
– Minha deposição ali está firmada com juramento, e mercê de Deus nunca profanei o
sagrado hábito, que visto, com um juramento falso ou mal considerado. Também não
sou tão destituído de penetração e inteligência, que não saiba discernir quem está ou não
em estado de demência, e posso asseverar e jurar, se necessário for, que essa mulher
morreu no gozo perfeito de suas faculdades intelectuais.

– Mas, senhor padre – replicou Morais – todo o homem está sujeito ao erro; V.
Rev.ma bem podia enganar-se.

– V.S.a é que está perfeitamente enganado a respeito dessa mulher. Nhá Tuca
nunca foi essa boa e honrada mulher, que V. S.a pensa. A princípio passou por tal; mas
há muito tempo o povo está no conhecimento de sua triste e vergonhosa crônica, das
torpezas, embustes e perversidades, que praticou para enriquecer-se. Além de sua
própria confissão, aí está a voz pública, que há muito tempo já a tinha condenado. É,
portanto, irrecusável o documento, que o meu amigo acaba de ler...

– Vê-lo-emos em juízo – retorquiu Morais, com arrogância.

– Não há de ser preciso! – exclamou Conrado, levantando-se com indignação...


– Quero poupar-lhe esse trabalho, Sr. Morais. – A validade desse documento vai ser
confirmada aqui mesmo e sem mais demora.
Frei João lançou um olhar a Conrado, e fez-lhe um gesto negativo, como
dando-lhe a entender que ainda se devia tentar algum esforço para trazer aqueles
homens a um acordo razoável. Conrado o compreendeu e calou-se.

Frei João levantou-se, então, e com ar grave e solene:

– Não posso compreender que poderoso motivo leva vossas senhorias a


cerrarem os olhos à evidência e a recusarem-se com tanta pertinácia à prática de uma
ação nobre e generosa, que não é mais do que o cumprimento de um dever de justiça e
de humanidade, que em nada os prejudica. O meu amigo possui um documento
incontestável, que há pouco acabamos de ouvir ler, e que jamais, quer em juízo como
fora dele, poderá ser infirmado. Além disso alega um direito sagrado: a paternidade; o
Sr. Conrado é pai de Rosaura. Por fim, oferece-se para indenizá-los do valor por que
compraram a menina, e está pronto a dar mais ainda, se o exigirem. Por cúmulo de
generosidade o meu amigo quer evitar os meios judiciários para arredar um escândalo,
cujo peso tem de recair todo sobre quem o quer provocar. A justiça, a humanidade, a
religião e a honra exigem que vossas senhorias entreguem a menina ao Sr. Conrado,
restituam a filha a seu pai.

Muitas outras coisas disse o respeitável carmelita, em linguagem severa, mas


comedida, e com a eloqüência de um verdadeiro apóstolo de Cristo; não conseguiu,
porém, arrancar aqueles dois homens de sua cega obstinação.

Adelaide, pálida e aniquilada, ousou também balbuciar algumas palavras em


favor da pretensão de Conrado; mas apenas havia começado a falar, um olhar terrível do
marido e um gesto ameaçador do pai a fizeram emudecer.

– Reflitam bem, meus senhores! – disse ainda o carmelita. – Olhem que com
sua obstinada recusa vão dar um triste e escandaloso desfecho a um negócio, que bem
podia terminar-se entre nós de um modo amigável e honroso para todos.

– Desista de semelhante empresa, senhor padre! – redarguiu Morais, com


azedume e mau modo. – Ela é imprópria, para não dizer indigna, de seu estado. É a
primeira vez que vejo ir-se aos conventos arrancar os frades de suas tranqüilas celas,
distraí-los de suas santas ocupações para nos virem à casa disputar-nos nossa legítima
propriedade.
A estas desrespeitosas e insensatas palavras de Morais, Frei João não perdeu a
calma nem a paciência, mas perdeu toda a esperança de poder chamar aqueles dois
homens ao caminho da prudência, da razão e da justiça. Convenceu-se por fim que
baldados seriam todos os esforços que empregasse para conduzir o negócio, que ali o
trazia, a uma solução menos escandalosa e menos fatal à tranqüilidade e honra daquela
família. Olhou para Conrado e com um gesto deu-lhe a entender que já não havia outro
recurso senão lançar mão da fatal e extrema arma, de que dispunham. Conrado o
compreendeu, e abafando a voz, para que não ecoasse fora daquele recinto, mas com um
acento bem distinto e repassado de dolorosa e profunda emoção:

– Deus e todos que aqui se acham – disse – são testemunhas dos esforços, que
temos empregado, eu e meu amigo Frei João, no sincero e louvável empenho de evitar
um grande escândalo, conservando inviolável um segredo, cuja revelação vai trazer a
vergonha, a desconfiança e a discórdia ao seio de uma família, cuja harmonia e
felicidade eu sou o primeiro a desejar. Mas desgraçadamente forçam-me a dar esse
extremo e doloroso passo; resignem-se, portanto, a ouvir a verdade toda inteira. Senhor
major, restitua-me sua neta; Sr. Morais, restitua-me a filha de sua mulher; Sra. D.
Adelaide, faça com que me seja entregue a nossa filha!

CAPÍTULO XVII

EXALTA OS HUMILDES

Passaram-se alguns momentos de pasmo e de silêncio, durante os quais o major


e seu genro ficaram como fulminados, e Adelaide entregue à mais cruciante angústia.
Morais, todavia, posto que aturdido por aquele cruel e inopinado golpe, não quis ainda
acreditar, e tentou reagir contra a terrível verdade, que o esmagava.

– Nossa filha! – bradou ele, espumando de raiva e avançando para Conrado de


punho alçado. – Mentira! infâmia! vil impostura!!...
– Que pretende, senhor? – disse Frei João, avançando também, estendendo o
braço e, com um gesto firme e imponente, contendo a cólera insensata de Morais. –
Espere ainda; não se exaspere tanto; já que assim o quer e não dá crédito a nossas
palavras, tendo-nos em conta de embusteiros e caluniadores, a verdade vai-lhe ser
revelada em toda a sua cruel realidade pela boca a mais competente.

– Mentira! embuste!... Para apadrinhar um roubo, querem trazer a desonra ao


seio de uma família honesta! – bradou ainda Morais.

– Sr. Morais – disse Conrado – é vossa senhoria quem força um pai a lançar
mão deste meio extremo, mas legítimo, para arrancar a filha das garras do cativeiro e da
desonra. Do cativeiro, é coisa manifesta; da desonra, o Sr. Morais melhor que ninguém
sabe o motivo por que assim me exprimo.

– Não insulte por esse modo a toda uma família honrada.

– Não insulto a ninguém; digo simplesmente a verdade. Minha senhora –


continuou Conrado, voltando-se para Adelaide, com acento repassado de amargura,
espero que me não ficará odiando por tão estranho procedimento, a que as
circunstâncias me obrigam. Perdoe-me; a senhora também é mãe, e não quereria por
preço nenhum ver a sua filha reduzida à escravidão, exposta continuamente às
seduções... Ah! minha senhora, é escusado dizer-lhe mais... não posso sacrificar a
liberdade e a honra da filha à reputação da mãe. É preciso que a senhora declare quem é
a mãe de Rosaura.

Adelaide não respondeu diretamente a esta pergunta, mas caindo de joelhos aos
pés de seu marido, contorcendo convulsivamente as mãos, debulhada em lágrimas e
afogada em soluços, mal podia pronunciar:

– Perdão!... perdão!...

– Levanta-te daí, mulher indigna! – gritou Morais, repelindo-a brutalmente. –


Levanta-te, e nunca mais me apareças.

– Perdão! perdão! – continuou ela, abraçando as pernas do marido. – Em nome


de nossos filhinhos, perdão, meu marido! Perdão, meu pai! Perdão, meu Deus!...

– Perdoar-te, eu? - disse Morais. – Ah! se eu soubesse há mais tempo que não
passavas de uma...
– Basta! – bradou Conrado, atalhando a palavra ignominiosa, que irrompia dos
lábios de Morais. – Insultar a uma senhora, em tão aflitivas circunstâncias não é só uma
crueldade, é uma indignidade, uma covardia; quatorze anos de uma vida pura e de um
procedimento exemplar são mui suficientes para fazer esquecer uma primeira e única
fraqueza, devida a imprudência e ardor da mocidade. Embora! Se V.S.a não perdoa,
Deus perdoará. E V.S.a – continuou Conrado, voltando-se respeitosamente para o
major, que mal voltara a si do efeito esmagador, com que o fulminara tão triste
revelação também não perdoa à sua filha?

– Eu! eu nunca! nunca! – respondeu ele, com olhar desvairado e voz lúgubre e
cavernosa. – Quando pensei eu que estava reservada por minha filha semelhante
vergonha para meus últimos dias!... Ah! meu Deus! antes nunca semelhante opróbrio
tivesse chegado ao meu conhecimento!

O velho cravou os cotovelos sobre os joelhos, e escondendo o rosto e a fronte


entre as mãos trêmulas e convulsas, caiu em triste e profundo abatimento. Adelaide, em
pé, a um canto da sala, debruçada sobre um aparador, envolvendo o rosto entre os
braços, procurava em vão abafar os soluços, que lhe abalavam os seios. Morais sentou-
se a um canto, e para disfarçar a confusão, a vergonha e o desespero, que lhe flagelavam
a alma, trincava desapiedadamente entre os dentes as pontas de seu áspero e comprido
bigode. Conrado e o frade oprimidos pela mais dolorosa impressão, contemplaram por
instantes, silenciosamente, aquela pungente e contristadora cena.

– Tem razão, senhor major - disse por fim Frei João, em tom brando e
benévolo, aproximando-se do major. – Melhor seria, que vossa senhoria e seu genro
ficassem para sempre ignorando esse mistério, que estava escondido nas sombras de um
passado inescrutável para vós e para todo o mundo, e era esse o nosso maior empenho,
para o qual envidamos os meios a nosso alcance. Mass quem é o culpado dessa
revelação? Quem provocou esta cena angustiosa que ameaça destruir para sempre a paz
e felicidade, que até aqui tem reinado no seio de sua família?... Vossas senhorias
mesmo, fazendo-se surdos às nossas propostas, a nossos avisos e conselhos, inspirados
por sentimentos de honra, de justiça e de humanidade. Por que razão não se decidiram a
conceder logo e sem condições, como aconselhavam a razão, a justiça e a conveniência,
a liberdade a essa menina, que nasceu livre, como tudo estava denunciando? Se assim
tivessem procedido, o triste segredo, que acaba de ser revelado, ficaria para sempre
sepultado entre nós três, entre mim, o Sr. Conrado e a Sra. Adelaide. Mas vossas
senhorias, bem a pesar nosso, nos forçaram a esta cruel revelação. Ainda mesmo que
não aparecesse o próprio pai reclamando sua filha, nem eu, nem qualquer outro, que
tivesse coração nobre e sensível, uma vez ciente do ocorrido, poderia jamais consentir
que o avô e a mãe continuassem a conservar em casa, entregue aos vexames da
escravidão, a neta e a filha. Agora cumpre-lhes aceitar com resignação as conseqüências
de sua imprudente e mal avisada obstinação. Cumpre-lhes sobretudo eliminar para
sempre do espírito e do coração a lembrança de uma falta, que já está amplamente
expiada por longos anos de uma vida exemplar e sem mancha, e que já se perde
sepultada nas trevas profundas de um remoto passado. – Console-se, meu amigo! –
continuou Frei João, pousando brandamente a mão sobre o ombro do ancião, que ainda
se não reerguera de seu abatimento. Não se entregue a um pesar, que não tem muita
razão de ser. Nenhum opróbrio pesa sobre sua família, nem mácula alguma veio marcar
a bela reputação de sua filha, que, por suas virtudes e pelos excelentes dotes de seu
coração e de seu espírito, tem sabido conquistar na sociedade o respeito e a estima de
todos. A solicitude, a paciência, o zelo religioso, com que por largo tempo tem
desempenhado os deveres de filha, de esposa e de mãe, a têm tornado tão pura, e talvez
mais respeitável, do que o era antes de sua falta. A fraqueza de sua mocidade é um
segredo, que ficará para sempre entre Deus e nós. Senhor major, sou eu quem lhe peço,
em nome da humanidade e da religião, abençoe sua filha. Sr. Morais, em nome da honra
e da dignidade, e sobretudo em nome de seus inocentes filhinhos, abrace sua esposa.

As palavras graves, mas brandas e insinuantes do carmelita, produziram


profunda impressão no ânimo dos que o escutavam. Depois que terminou, reinou ainda
completo silêncio por alguns instantes, durante os quais só se ouvia a respiração
ofegante de todos, e os soluços mal abafados de Adelaide.

O espírito de Morais lutava na mais cruel perplexidade. As palavras do frade


lhe haviam penetrado no coração; não podia deixar de reconhecer quanto eram cordatas
e assisadas; mas o orgulho, o pundonor e a honra do esposo, ofendida de um modo tão
brusco e doloroso, ofuscavam-lhe a razão, e quase o faziam surdo aos ditames da justiça
e da humanidade. Debalde, porém, tentaria resistir à cruel situação, que o assoberbava;
se quisesse recalcitrar, iria torná-la ainda mais complicada e escandalosa. Deu a mão a
Adelaide, que de novo tinha vindo prostrar-se a seus pés banhada em lágrimas, e
ajudou-a a levantar-se.
– Levante-se, senhora! – disse friamente, dando-lhe a mão. – Da minha parte
está perdoada.

Não quis porém abraçá-la.

O major sentia-se abalado até o íntimo dalma; as palavras do carmelita tinham


operado nele profunda e salutar revolução. As rijas fibras daquele coração endurecido
pelos preconceitos da educação e da ignorância, agora amolgadas pelos gelos da idade e
pelas severas lições de amarga experiência, vibraram pela primeira vez a um impulso
nobre e generoso, e tornaram-se sensíveis à voz da razão e da natureza. Duas grossas
lágrimas lhe escorregaram pelas faces rugosas e macilentas; eram talvez as primeiras,
que lhe corriam das pálpebras, desde que se conhecera homem; mas por isso mesmo,
quanta dor, quanta amargura, quanto arrependimento deviam encerrar!... Levantou-se, e,
avançando de braços abertos para sua filha, a cingiu contra o coração.

– Não, minha filha, não és tu que deves pedir perdão a mim, nem a ninguém –
disse, com acento da mais íntima e sincera compunção. – É teu velho pai que o vem
pedir-te agora. Perdão, minha filha!

E o velho apertava a filha entre os braços e ambos derramavam lágrimas no


seio um do outro.

– Perdoar-lhe eu, meu pai, por quê? – dizia a filha, entre soluços.

– Agora vejo que te fiz muito, muito mal. Eu sou a principal causa de tudo isso;
fui eu o autor de tua desonra; fui eu quem escravizei minha neta!... Perdão, Adelaide.
Perdão, Conrado!...

– Não, meu amigo – atalhou Frei João – o perdão generoso, que acaba de dar à
sua filha, o absolve de qualquer falta, e o torna digno do respeito de todos nós.

– É verdade o que diz o meu amigo, senhor major – disse Conrado. – Eu


também de hoje em diante, banindo inteiramente da lembrança nossa antiga desavença,
beijo a mão do pai generoso e bom, que sabe perdoar.

E dizendo isto, beijava com respeitosa efusão a rugosa mão de seu antigo
patrão.

– Mas – continuou ele – a minha culpa é talvez a, maior e a mais grave de


todas; e eu também preciso do seu perdão.
– Se não fosse a minha, Sr. Conrado, – replicou o major – a sua culpa não
existiria, nem a de Adelaide. Nada tenho que perdoar-lhe; mas se assim o quer, em
minha consciência e em meu coração, está perdoado.

– Fico-lhe agradecido do fundo dalma. Agora só me resta fazer ainda um


pedido. O segredo, que aqui entre nós já não existe, deve ainda desgraçadamente ser
conservado até entre irmãos. Rosaura ainda não sabe quem é seu pai; mas hoje mesmo o
saberá; e se o Sr. Morais consentir, hoje mesmo saberá quem é sua mãe.

Rosaura já tem quatorze anos, e parece-me que será capaz de guardar o segredo
até para com seus próprios irmãos.

– Não posso me opor, – respondeu Morais, com ar triste e abatido – a que


Rosaura fique sabendo quem é sua mãe; o que desejo é que meus filhos ignorem sempre
a falta de Adelaide.

– Tem toda razão – confirmou o carmelita. – Seus filhos são ainda mui
crianças, e a indiscrição própria da idade os levaria naturalmente a divulgar um segredo,
que deve ficar para sempre oculto aos olhos do mundo. Mas eu também não sairei daqui
com a consciência tranqüila, se não fizer ainda um pedido por minha parte e por parte
do amigo, que aqui me trouxe. Este pedido, que não importa sacrifício algum para a
família, tem por si a justiça, a humanidade, mesmo a gratidão. É inegável que, quem
mais contribuiu para que se reconhecesse o verdadeiro nascimento e a liberdade de
Rosaura, foi a escrava Lucinda. Sem ela a pobre menina ficaria talvez para sempre
condenada à condição de escrava em casa de sua própria mãe, quando muito à de
liberta, sem que jamais se pudesse saber a sua verdadeira origem, e se tivesse de ter
filhos, toda a sua descendência ficaria com essa nódoa original. Decerto nem o senhor
major, nem o Sr. Morais sabem ainda por que meios misteriosos a divina Providência se
serviu dessa boa rapariga como de um instrumento para seus altos e misericordiosos
desígnios; mas em breve serão informados de tudo isso, e se convencerão de que digo a
verdade. Lucinda é a verdadeira libertadora da menina Rosaura. Ora, não é justo que
aquela, que dá liberdade aos outros, que acaba de desatar os nós que amarravam ao
poste do cativeiro a filha de seus senhores, continue a ser cativa. É enfim a liberdade de
Lucinda, que lhes pedimos. O meu amigo dará por ela qualquer soma que exigirem.
– Não aceito soma alguma, nem grande, nem pequena; não quero nem mesmo
agradecimento – disse o major – porque é esse o meu dever. Lucinda desde este
momento é livre.

– Deus lhe levará em conta a santa e generosa ação, que acaba de praticar.
Agora podem mandar abrir essas portas; nosso principal empenho era reconhecer
Rosaura como livre de nascimento; isto felizmente está conseguido; é quanto basta e
quanto se deve saber fora daqui. Peço a Deus, senhor major, que a paz e felicidade, que
tem reinado até aqui em sua casa, não se perturbe com este incidente, e se conserve
sempre inalterável.

Conrado e Frei João se retiraram comovidos e pensativos, mas satisfeitos com o


resultado da espinhosa missão, que tinham desempenhado.

CAPÍTULO XVIII

A MÃE E A FILHA

Terminou-se assim o grave e delicado negócio do reconhecimento de Rosaura


como livre de nascimento, com aprazimento de todos. Somente Morais, apesar de
reconhecer a justiça e indeclinável necessidade daquele ato, sentia-se com razão
humilhado e abatido sob o peso de sua nova situação. A revelação, que acabava de
ouvir, confirmada por um modo irrefragável de ter ele desposado como pura uma
mulher maculada por uma primeira falta, o acabrunhava. Se já os encantos de Rosaura
iam extinguindo em seu coração o amor conjugal, daí em diante jamais poderia
conservar para com ela a mesma afeição e estima, que até ali lhe havia consagrado, se é
que já não lhe votava o desprezo e aversão.

Não se pode negar que lhe assistia bastante razão. Os zelos não se limitam
somente aos cuidados do presente e aos receios do futuro; estendem-se também pelo
passado, e tornam-se retrospectivos. Com efeito deve ser bem doloroso para o coração
de um marido, que tem vivido largos anos na doce persuasão que fora ele objeto do
primeiro e único amor de sua esposa, saber que esta já tivera outro afeto, talvez mais
extremoso e ardente do que aquele, que lhe consagrava, embora mesmo não fosse
acompanhado das fatais conseqüências, que teve o de Adelaide. Ainda se o objeto dessa
primeira paixão já não existisse ou pelo menos a distância ou novos laços de amor
tornassem provável a completa extinção de seu primeiro afeto, o espírito de Morais
poderia tranqüilizar-se algum tanto. Mas Conrado estando ali vivo, morando na mesma
cidade, solteiro, com o coração completamente livre e isento, moço elegante, rico e
rodeado de prestígio, forçoso é convir que a posição de Morais não era das mais
invejáveis.

Por outro lado a perda de Rosaura, por quem tinha concebido uma dessas
paixões sensuais e infrenes, que quase não se pode explicar, o enchia de despeito, raiva
e ciúme. Rosaura, livre e debaixo do domínio de Conrado, ficava inteiramente fora do
alcance de seus libidinosos desejos, e formosa, rica e cheia de atrativos como era, não
tardaria a encontrar algum amante feliz, que a desposasse; esta idéia, por mais que ele se
esforçasse por arrancá-loa, se lhe agarrava teimosa ao coração como farpa envenenada.

Para Adelaide, também, essa nova fase de sua existência apresentava duas faces
bem diferentes; uma risonha e feliz, cheia de suaves expansões de ternura e alegria;
outra, porém, carregada de sombrios matizes, entenebrecida de cruéis angústias e
pungentes inquietações. O tempo havia mitigado mas não extinguido, o vivo pesar,
antes remorso, que a cruciava, quando se lembrava da filhinha, fruto de seu primeiro
amor, exposta e falecida no mesmo dia em que nascera. Quando essa cruel recordação
lhe preocupava o espírito, acudiam-lhe as lágrimas aos olhos, acusava-se de mãe
desnaturada, maldizia-se e lançava contra si mesma a exprobração de infanticida. Essas
cruéis recordações, essas amargas reflexões é que, transformando seu gênio outrora tão
alegre, descuidoso, e até mesmo leviano, tinham comunicado ao seu caráter, à sua
fisionomia e às suas maneiras esse ar grave e melancólico, que dessa época em diante
sempre a distinguiu.

Compreende-se, pois, o júbilo íntimo, que lhe banhava o coração, vendo viva e
restituída a seus carinhos a filha, da qual julgava que na terra já nem os ossos existiam.
Entretanto, esse prazer era fortemente contrabalançado pela vergonha e humilhação, em
que se via colocada perante o pai, e principalmente perante o marido. Do pai estava ela
certa que fora completo o perdão e nascido da abundância do coração; o do marido,
porém, via bem claramente, e todos compreenderam que fora arrancado pela força das
circunstâncias. A infeliz esposa já pressentia que jamais poderia gozar do mesmo grau
de afeto e confiança, que até ali merecera do marido, e antevia com tristeza um futuro
de desavenças e dissabores, de zelos e desconfianças; mas estava resignada a aceitar,
submissa e sem queixume, como expiação de sua falta, o peso de sua nova e triste
situação.

Lucinda, a quem Adelaide imediatamente comunicara o resultado da


conferência, não cabia em si de contente; parecia ter sacudido o peso dos anos, e ria,
cantava e pulava como uma criança. Correu imediatamente para junto de Rosaura, caiu-
lhe aos pés, e abraçando-a pelos joelhos, com os olhos arrasados em lágrimas de.
alegria, chamou-a de – sinhazinha – de sinhá Rosaura – e de mil outras coisas fagueiras
e afetuosas, que puseram em grande espanto a pobre menina.

– Que quer dizer isto, tia Lucinda?! – exclamou Rosaura, entre atônita e
risonha. – Você hoje está louca, ou?..

– Não sou sua tia, não, sinhazinha; mecê não é nem nunca foi cativa; seu pai e
sua mãe estão aí bem vivos, e tudo gente de bem, e gente rica.

– Eu?.. Tenho pai e mãe vivos?... Ora me deixa, tia Lucinda; você está
caducando.

– Ah!... eu estou caducando!. .. Pois sim, escuta cá, menina!

Lucinda levantou-se dos pés de Rosaura, sentou-se em um tamborete e fez a


menina sentar-se sobre seus joelhos. Nessa posição, contou à menina em poucas
palavras, mas com muita vivacidade, a história do seu nascimento, a malícia e fraude da
velha, que a tinha reduzido ao cativeiro, o modo singular pelo qual ainda na véspera, e
de que Rosaura estava bem lembrada, ela, Lucinda tinha descoberto que Rosaura era a
menina, que tinha sido enjeitada à porta de Nhá Tuca, a confissão da velha, e como
acabava de ser reconhecida como livre de nascimento por toda a gente de casa.

Lucinda em toda a sua singela e animada narração tinha contado unicamente o


milagre, mas muito de propósito não tinha, nem por indícios, revelado o nome do pai
nem da mãe de Rosaura; queria reservar-lhe essa deliciosa surpresa.

Quando terminou, Rosaura saltou-lhe do colo, e colocando-se em pé defronte


da velha crioula fitou-a com um desses olhares indefiníveis, que exprimem a um tempo
surpresa e prazer, dúvida e assombro.
– Então, quem é meu pai? – perguntou ela.

– É aquele moço, que ontem veio aqui, que esteve lá embaixo na loja com nhô
Morais, e que hoje veio aí também; é nhô Conrado.

– Deveras? – exclamou Rosaura, interrogando a velha crioula, com seu olhar


expressivo e cintilante de alegria. – Deveras, meu pai é aquele homem, que ontem
esteve aí, e que me mandou chamar lá embaixo na loja?...

– É esse mesmo; pois ainda duvida, minha menina?

– Ah! meu Deus! não duvido não; deve ser ele mesmo; meu coração parece que
estava adivinhando. Desde que o vi, não quis mais arredar meus olhos dele, e fiquei, não
sei por que, lhe querendo um bem, como você não faz idéia, tia Lucinda.

– Como não havia de ser assim?... A voz do sangue fala muito alto.

– Mas, tia Lucinda, você disse também que eu ainda tenho mãe; isso é que eu
não posso acreditar. Quem é ela?... Onde está?... ó meu Deus, que alegria, não seria para
mim ir beijar agora mesmo a mão dela!

– Isto é que nada custa.

– Mas, quem é ela?.. Fala, tia Lucinda!

– Pois sinhazinha deveras ainda não adivinhou? Rosaura olhou atônita para
Lucinda, e nada respondeu.

– Pois bem, – continuou a crioula, tomando a mão de Rosaura; – eu vou levar


já sinhazinha onde está sua mãe.

Rosaura, sem saber o que pensar, deixou-se maquinalmente levar pela mão de
Lucinda, que a conduziu ao quarto de Adelaide.

– Mas aqui é o quarto de sinhá Adelaide – disse Rosaura. – Minha mãe está aí
com ela?

– Está, sim, – respondeu vivamente a crioula, empurrando a porta do aposento,


que apenas se achava encostada. – Entra, sinhazinha.

Adelaide estava só. Tinha mandado os filhos a passeio. O major,


profundamente comovido pela cena, a que acabava de assistir, tinha-se recolhido à
solidão de seu gabinete. Morais havia descido para a loja a ver se ali encontrava alguma
distração ao embate de mil pensamentos peníveis, que lhe tormentavam o espírito.

Adelaide já esperava sua filha, essa que ainda ontem julgava sua escrava, e que
agora, pela primeira vez, ia apertar em seus braços. Estava encostada a um bufete, com
a face pousada sobre urna das mãos, e voltada para a porta, sobre a qual tinha os olhos
fixos. Divisavam-se em suas pálpebras vestígios de lágrimas, mas pairava-lhe nos lábios
um leve sorriso cheio de afeto e melancolia. Era nobre e simpática a sua figura, e em
seu todo brilhava uma espécie de formosura, talvez mais atrativa do que essa, que na
aurora da vida florejava em seu rosto tão esplêndida e viçosa. Era a beleza calma e
suave do outono, despida dos garridos encantos e das vivazes e embaidoras seduções da
primavera. Apenas viu Rosaura, que entrava por seu quarto procurando, em vão, com os
olhos, por todos os cantos, alguém que não fosse Adelaide, adiantou-se para ela com os
braços abertos.

– Vem, minha filha, vem – exclamou Adelaide, com transporte. – Vem abraçar
tua mãe!...

Rosaura a princípio estacou petrificada de pasmo; seu espírito hesitou um


momento; julgava-se vítima de alguma alucinação; mas bem depressa a voz da natureza
falou-lhe alto ao coração, e dissipou-lhe todas as dúvidas.

– Minha mãe! – foi a única palavra, que pronunciou, e precipitou-se nos braços
de Adelaide, inundando-lhe o seio de lágrimas de prazer e ternura.

CAPÍTULO XIX

UM ESTUDANTE SINCERAMENTE ENAMORADO

– Que tem, meu Carlos, que há tempos a esta parte andas triste e amuado, assim
com cara de Romeu pálido, com saudade de sua Julieta, e outras vezes com gestos de
Otelo furibundo, prestes a sufocar Desdêmona?
– Tu falas galhofando, Frederico, porque não sabes o que eu sofro. É um
sentimento íntimo e profundo, que tenho vergonha, e até medo, de comunicar a vocês
que tudo metem a ridículo.

– Menos eu, Carlos; principalmente, quando estamos a sós, longe da algazarra


de nossos turbulentos companheiros. Pergunto-te com verdadeiro interesse o motivo
desse abatimento de espírito, que há mais de um mês todos notam em ti, e que, digo-te
com sinceridade, não deixa de me afligir e inquietar bastante.

– Obrigado, Frederico; sei que me tens sincera amizade, e que embora na turba
dos outros sejas tão caçoador como outro qualquer, tens caráter sisudo e sensível, e não
zombas dos sofrimentos alheios. Por isso não faço a menor dúvida em contar-te a causa
deste aborrecimento e tristeza, que há tempos me acabrunha.

– Pois bem, vamos a isso; desembucha tudo sem receio. Sou um pouco menos
frívolo e leviano do que nossos companheiros, e saberei guardar segredo, se o exiges.

Não será mau; os gracejos indiscretos, as caçoadas cínicas, no estado em que


me acho, toam-me muito mal.

– Portanto, enquanto fumamos um pouco – disse Frederico; oferecendo um


charuto a seu amigo – vai-me desfiando o teu drama, que seguramente não deixará de
ser algum idílio amatório.

Este diálogo passava-se entre dois estudantes do quarto ano jurídico de São
Paulo. Tinham acabado de jantar e ainda se achavam à mesa em casa de Frederico, que
morava só, no alto da Consolação, um dos bairros mais isolados e solitários da cidade.
Era isso cerca de dois meses antes dos interessantes sucessos, de que demos conta nos
dois últimos capítulos desta história. Os dois quartanistas eram da província de Minas, e
amigos íntimos de longa data, não dessa amizade fundada em relações passageiras e de
ocasião, que freqüentemente se dão entre estudantes, as quais tanto têm de francas e
sinceras, como de pouco duradouras; são laços, que não se rompem, mas que com o
tempo e ausência acabam, por desatar-se insensivelmente.

Os dois mineiros consagravam-se reciprocamente uma afeição sólida, firmada


pelo tempo desde os estudos colegiais e fundada nas belas qualidades, que cada um
deles reconhecia com prazer em seu amigo. Frederico era um mancebo de alta estatura,
louro e de olhos castanhos.
A índole bondosa, a lisura e franqueza dalma transluziam em sua fisionomia
sempre plácida e expansiva, como seu nobre coração, sobre o qual as paixões
tumultuosas da juventude jamais tinham conseguido exercer império absoluto. Lia-se
em sua fronte espaçosa e bem conformada o bom senso, o juízo reto, a inteligência
luminosa, sobre a qual a imaginação podia bem exercer sua influência encantadora, mas
nunca poderia dominá-la. Parecia mais um batavo, descendente de algum dos
companheiros de Maurício de Nassau, do que um brasileiro de pura raça latina.

O outro apresentava um tipo inteiramente diverso; era um verdadeiro filho do


Brasil e da província de Minas; assemelhava-se a um napolitano.

Estatura regular, cabelos e olhos escuros, tez clara e levemente colorida, olhar
cintilante e profundo revelavam nele imaginação viva, natureza ardente e apaixonada.

Tanto um como outro eram tidos em distintos estudantes por sua inteligência,
assiduidade e bom comportamento, considerados pelos lentes e estimados pelos colegas.

Entretanto, Carlos há dois meses começara a dar muito más contas de si,
falhava muitas vezes, balbuciava a muito custo a lição, quando não era chamado, e às
vezes se escusava alegando incômodo de saúde, que a sua que sua progressiva magreza
e deperecimento não deixavam de justificar. Seus companheiros notavam a grave e
profunda alteração, que se ia operando no físico e moral de Carlos, alteração que, a não
ser devida a alguma afecção do organismo, não podia ser atribuída senão a sofrimentos
morais. Quando lhe inqueriam o motivo de tão estranha modificação em todo o seu ser,
dava respostas evasivas, que em nada satisfaziam a curiosidade dos colegas.

Frederico era o que mais se afligia com o lastimoso estado de abatimento em


que via o amigo, e foi com o propósito de obter dele uma declaração confidencial e
franca, que nesse dia o convidou a jantar em sua casa a sós com ele.

Carlos não pôde esquivar-se à solicitação cordial e sincera de seu amigo, e


tendo acendido o seu charuto, começou assim:

– Depois que moro na Rua do Tabatinguera adquiri um conhecimento quase


misterioso, que tem exercido, e há de exercer sempre, eu bem o pressinto, poderosa
influência sobre o meu destino. Além da casa, em que moro, deves ter reparado que há
outra casa baixa, separada da minha por um terreno vazio, que não pertence nem a um,
nem a outro prédio. Nessa casa, habitada por um Sr. Basílio, mora uma criatura
encantadora, dotada de tantas perfeições, tão cheia de atrativos, que são capazes de
transtornar a cabeça a mais firme e inflamar o coração mais empedernido.

– Ah! já ouvi falar nessa menina – atalhou Frederico. – Dizem que é um


prodígio de beleza; mas apenas é visível por momentos, e esconde-se como Diana entre
os véus do mais tímido recato.

– É verdade; tem mais esse prestígio a seu favor. Dizer-te que é um anjo, uma
fada, que respira em todo o seu ser um perfume de celestial candura e inocência, que
impõe o respeito e adoração, é proferir palavras banais, que nada exprimem. É preciso
vê-la para poder formar perfeita idéia de sua deslumbrante formosura. Meus
companheiros, que apenas a têm visto de relance, também ficaram impressionados ao
aspecto de tão rara beleza.

– E tu... a tens contemplado mais a vontade? – Felizmente não sei por que,
parece que lhe agradei mais do que qualquer outro. No lado da casa, que olha para a
nossa, há apenas uma pequena janela, que dá para o tal terreno neutro, de que te falei, o
qual fica também por baixo da janela do meu quarto.

– Oh! que condições favoráveis para o mais renhido namôro! – exclamou


Frederico.

– É verdade; mesmo da minha mesa de estudo posso vê-la, quando chega à sua
janelinha, moldura bem pouco digna daquele busto mais lindo e mais ideal do que as
virgens de Rafael... Ali aparece ela algumas vezes, mas se acaso avista algum dos meus
companheiros, retira-se imediatamente.

– Mas de ti nunca ela foge?...

– Não; fica enquanto eu fico, e creio que só se retira quando é chamada por
alguém de casa.

– Oh! quanto és feliz, meu Carlos!... Aí temos outra vez quase a mesma
aventura de Píramo e Tisbe. Mas dize-me: teu namoro não passa dessas olhadelas de
longe? Ainda não pudeste conversar de perto com ela?

– Converso da janela quase que somente por mímica. Entretanto, ultimamente


pude obter uma entrevista.
– Uma entrevista! oh!... pois que mais desejas?.. Pela maneira, com que as
coisas te vão correndo, só vejo motivo para andares pulando de contente, e não assim
como andas, torvo e sombrio, como o Hamlet de Byron.

– Ah! meu amigo! foi mesmo essa entrevista, que me lançou o desânimo
nalma, fazendo-me conhecer toda a complicação e estranheza de minha situação.

– Como assim? Não posso compreender-te.

– Vou já explicar-te tudo. Por palavras conversadas cautelosamente, ela


concedeu-me uma entrevista em horas mortas da noite. Saltei ao pátio na hora aprazada
e fui colocar-me junto à janelinha, onde ela não tardou em aparecer. É escusado, e seria
enfadonho para ti, estar a descrever-te as emoções que senti.

– Oh! bem dizia eu! Temos Romeu e Julieta. - Mas a minha Julieta.

..

– Que tinha ela?

– Vais já saber. Depois de havermos feito em termos bem explícitos mútua


declaração de nosso amor, disse-me ela por fim, com voz trêmula e vacilante:

– Eu sei que o senhor me quer muito, e eu também lhe tenho muito amor... mas
este nosso amor não deve continuar. . .

– Ah! não me fales assim! Não deve continuar por que, minha querida?...

– Ah! bem me custa lhe confessar isto: mas... mas eu. .. eu não sou digna do
seu amor.

– A estas palavras, um calafrio percorreu-me todo o corpo. Por que razão a


menina se julgava indigna do meu amor? A interpretação mais natural, que se me
apresentou ao espírito, foi que aquela menina, apesar de parecer tão ingênua e pura
como um anjo, já poderia ter maculado o véu da inocência no lôdo da devassidão, e por
isso, conservando ainda um pouco de sinceridade, se confessava indigna de ser por mim
amada. Esta sinistra idéia pungiu-me cruelmente o coração.

– Mas por que me diz isso? Por que se julga indigna do meu amor, minha
senhora? – perguntei-lhe, em tom um tanto brusco.
– É porque eu não sou nenhuma senhora – respondeu ela, com voz tímida e
angustiada. – Sou uma simples escrava do Sr. Basílio.

– Escrava! Escrava a senhora! – gritei, com surpresa e indignação, esquecendo


do lugar e das circunstâncias em que me achava. Foi preciso que a menina me tapasse a
boca, para que eu não continuasse a prorromper em gritos e exclamações, que teriam
traído a nossa entrevista. Foi mister que ela asseverasse mais duas e três vezes e
confirmasse com juramento, para eu acabar de crer que ela era realmente escrava.
Fiquei por alguns instantes acabrunhado sob o peso de tão cruel e estranha revelação.
Como é concebível com efeito, meu caro Frederico, que aquela mocinha de tez tão
clara, de feições tão regulares e perfeitas como as de qualquer moça de pura raça
caucasiana, tenha sangue dessa raça desventurada, que nossa desumanidade e cobiça
condenou à escravidão?

– Nada mais simples, Carlos; com a continuação do cruzamento, a raça africana


se depura e aperfeiçoa, e eu tenho visto mais de uma escrava mais branca e mais bonita
que sua senhora.

– Seja embora assim, mas é revoltante, que haja no mundo quem tenha ânimo
de manter na escravidão criatura tão linda; servir um homem, e a que homem, santo
Deus! aquela formosura ideal e celeste, digna de viver no céu em companhia dos
anjos!... Mas essa é a pura, esmagadora verdade. Rosaura percebeu a cruel impressão,
que sua declaração produzira em meu espírito, recolheu-se e, encostando-se com a
fronte à parede e escondendo o rosto entre os alvos braços meio nus, começou a chorar.
Não sei explicar-te a emoção, que senti nesse momento. Todos os horrores praticados
com formosas e nobres escravas, a começar pela infeliz Agar, barbaramente sacrificada
às conveniências da família de Abrão, me vieram à lembrança; senti-me aniquilado.

– Estás quase a chorar, Carlos; continua e deixa-te de emoções.

– Se exiges que me não comova, não continuo, porque me é impossível


prosseguir de sangue-frio.

– Pois vá! Lamenta-te e chora à tua vontade; mas prossegue.

– Estendi o meu braço para dentro da janela e arranquei-a suavemente daquela


lastimosa atitude. Então ela, com um tom de voz, que me doeu no íntimo dalma, disse-
me:
– Agora, que o senhor sabe, que eu não passo de uma pobre escrava, vai me
desprezar e fazer bem pouco caso de mim, não é assim? Não mereço outra coisa, e nem
posso ser objeto de seu amor. Foi contra minha vontade que fiquei lhe querendo bem;
mas eu sou cativa; fuja de mim. Foi só para lhe dizer isto que deixei o senhor vir
conversar comigo.

Como única resposta, tomei ambas as suas mãos, cobri-as de beijos ardentes, e
disse-lhe já não me lembro bem que palavras loucas e apaixonadas; mas foi pouco mais
ou menos isto:

– Agora que sei, que és escrava, amo-te mais que nunca, minha querida. És
escrava por um capricho da sorte; Deus te fez livre, porque Deus não permite a
escravidão. Nasceste escrava, mas eu te farei livre, porque é um insulto feito à natureza,
à humanidade, ao próprio Criador conservar na escravidão um anjo, como tu és. Se a
escravidão fosse uma coisa possível aos olhos da moral e da religião, tu serias a
senhora, porque todo o mundo deve respeito e obediência, amor e adoração à inocência
e à formosura, e tu possuis a beleza, a inocência e a imaculada candura dos anjos. Não
penses que desmereceste o amor, que te consagro, com a declaração que acabas de
fazer-me. Tu és escrava! Pois bem, és uma escrava, que podes ter milhares de escravos a
teus pés, e o mais dedicado, o mais submisso deles sou eu. Linda escrava, eu sou teu
escravo, e de hoje em diante considero meu principal dever empregar todo o meu
esforço em quebrar-te os ferros da escravidão.

– Disse-lhe muitas outras coisas com uma eloqüência apaixonada, que me


borbotava da abundância dalma. Se bem me lembro, no meu entusiasmo febril e
delirante, cheguei a dizer-lhe que, para conseguir-lhe a liberdade, seria capaz até de
matar e roubar.

– Arre lá!... misericórdia! – exclamou Frederico, rindo-se. – Salteador e


assassino! Um novo Luigi Zampa!... Apre!... é demais, meu caro.

– O certo é – continuou Carlos – que ela, com essa ingênua credulidade,


própria das almas cândidas e imaculadas, que ainda não conhecem o fingimento e a
linguagem artificial dos sedutores, deu pleno crédito a meus protestos e expansões; e
tinha razão, porque, de fato, eram puros e sinceros; eram a expressão de um amor
profundo e ardente, que jamais poderei arrancar do coração. Estás a sorrir, Frederico?..
Tens razão; bem sei que é uma loucura; mas que hei de eu fazer? . . Não posso, não
posso de todo subtrair-me a ela.

– Mas enfim de contas, o que pretendes tu fazer?

– Eu sei lá, meu amigo!... Acho-me na mais horrível perplexidade, e ao mesmo


tempo na mais inabalável resolução de arrostar todas as dificuldades, transpor todas as
barreiras, que me separam dessa encantadora menina.

– Mas acaso não tens consciência de tua fraqueza? Para superar essas
dificuldades, transpor essas barreiras, de que meios dispões, não me dirás?

– É verdade, que posso eu fazer? – suspirou Carlos, com desânimo. – É agora


que compreendo quanto é real e verdadeira a importância do dinheiro, e quanto é parvo
e imbecil o desdém, que alguns pretendidos filósofos afetam ter por ele. Estólido é
aquele que diz que a tranqüilidade do espírito, os júbilos do coração não se compram
com dinheiro. É certo que muitas vezes a verdadeira felicidade, que consiste na
satisfação de todos os prazeres lícitos do espírito e do corpo, no bem-estar físico e
moral, pode-se obter sem a riqueza; mas quantas vezes também não depende dela?...
Quantas vezes o destino nos prepara todos os elementos de ventura, todas as
circunstâncias conspiram para nos elevar ao cúmulo da felicidade, e a falta de dinheiro
nos despenha no abismo da dor e do infortúnio?!...

– Estás hoje um moralista de primeira força, capaz de competir com Labruyere


ou com o Marquês de Maricá.

– Zombas de minhas reflexões?.. Duvidas de sua exatidão?... Se duvidas, aqui


estou eu que sou o exemplo vivo do que acabo de avançar. Fosse eu rico, e hoje mesmo
ela estaria livre, embora sua liberdade me custasse toda a minha fortuna, a receberia
como esposa, embora liberta, e não teria inveja à felicidade de ninguém, porque ela vale
mais para mim do que todos os tesouros e todas as grandezas do mundo.

– Que exaltação, meu Deus!... Deveras tu tinhas ânimo de te casar com uma
liberta? ...

– Pois que tem isso, quando essa liberta vale uma princesa?! Digo-te mais –
continuou, levantando-se e dando a sua voz um tom de extraordinária firmeza e
exaltação – cativa como é, se eu não pudesse quebrar-lhe os ferros, dar-me-ia por feliz
em tê-la por esposa e unir o meu destino de homem livre ao de tão formosa e adorável
escrava, empregando minha vida em ajudá-la a arrastar os grilhões do cativeiro.

– Ó nobre e magnânima dedicação, digna de um filósofo da antiguidade, ou do


mais ultra-romântico poeta dos tempos que correm! – exclamou Frederico, em tom
solenemente cômico. – Agora resta saber se o tal Sr. Basílio consentirá que te cases com
a sua escrava.

– E que não consinta; um rapto e um casamento clandestino sanariam todas as


dificuldades.

– Irra!.. levas bem longe a tua audácia!! Nunca pensei que fosses tão afoito.

– Demais, não será necessário chegar a tais extremos; posso conseguir tudo por
meios mais naturais ou menos violentos. Está por um ano a minha formatura, e um ano
escoa-se bem depressa. Vou estudar com afinco, e depois de formado trabalharei como
um mouro, e privar-me-ei mesmo do necessário até adquirir uma soma considerável,
com que possa comprar a liberdade da menina.

– Isso é mais razoável; mas assim mesmo, a quantas vicissitudes não vai ficar
exposto o teu pobre amor! . . . A rapariga é escrava, e como tal pode ser vendida, ou o
que é pior, pode ser obrigada a casar-se com outro, se não lhe acontecer coisa pior.

– Ah! não me digas tal; isso é impossível, ela antes se deixaria matar. Demais,
ela me disse que seus senhores não a vendiam por dinheiro nenhum.

– E como esperas que a vendam a ti?

– Desesperas-me com as tuas objeções; não sei resolvê-las por agora; mas o
amor, como diz Salomão, é forte e poderoso como a morte: ele saberá a seu tempo
quebrar todos os obstáculos.

– Pelo que vejo, tua loucura é incurável, meu pobre Carlos; esse teu infausto
amor grudou-se ao teu coração como ostra ao rochedo. Entretanto, sempre te direi que o
melhor partido, que tens a tomar, para que ela não se torne crônica, é procurar combater
por todos os meios essa paixão romanesca e desassisada. Tua situação é com efeito das
mais estranhas e originais, e dá assunto para um bonito romance; mas o romance é bom
nos livros; na vida real é sempre uma atrapalhação, que devemos arredar. É preciso,
pois, dar pronto desenlace a tua complicada situação, e o mais pronto e mais decisivo é
cortar o nó górdio com a espada de Alexandre; é renunciar à tua paixão.

– Concordo; mas isso é que é absolutamente impossível.

– Impossível, porque não queres, porque não fazes o mínimo esforço para
suplantá-la. A primeira coisa, que deverias fazer, era mudar de casa, fugir da vizinhança
dessa mulher, que te fascina. Dado esse passo, é preciso procurar distrações no estudo,
na leitura de romances, nos passeios, nos pagodes mesmo.

– Não há distração possível para paixões desta ordem, meu Frederico; não tento
nada disso, porque estou intimamente convencido que tudo isso será ineficaz.

– Ah! bem! já que assim te entregas sem resistência ao teu insensato amor, não
vejo salvação para ti; empreendes contra o destino uma luta, em que seguramente tens
de sucumbir. Se não puderes conseguir, como é certo, nem a mão, nem a liberdade da
menina, o que será de ti, maluco, com essa tua desastrada paixão?

– Bem sei que vou arcar cem mil dificuldades, vou arrostar os preconceitos do
mundo, e que além disso estou exposto a eventualidades, que podem de um momento
para outro derrocar todos os meus planos, e destruir toda a minha felicidade. Sei tudo
isso; mas não posso, não posso esquivar-me à fascinação, que exerce sobre mim aquela
adorável menina. Não penses que isto em mim é exaltação romanesca, delírio de
imaginação; não, não. Bem sabes que sempre fui avesso aos namoros e amoricos, a que
nossos colegas pela maior parte são tão avezados. Este meu amor é um amor puro,
verdadeiro,sincero, profundo, inextinguível; é o primeiro e creio que há de ser o único
da minha vida.

– Assim o quero crer, meu Carlos, mas desgraçadamente é um amor


impossível.

– É impossível, mas entretanto, existe, e existe de parte a parte com recíproco


fervor e sinceridade!... Logo que existe, tem uma razão de ser. Deus é bom e justo, e eu
confio no meu destino e na pureza de meus afetos.

– Ora, pelo amor de Deus, deixa-te dessas exaltações!! Uma escrava sempre é
uma escrava; mais cedo ou mais tarde te verás forçado a matar essa paixão que te
amofina.
– Mais depressa ela me matará...

A confidência dos dois amigos foi nesse ponto interrompida pelo tropel de uma
troça de estudantes, que nesse momento invadiam ruidosamente a casa de Frederico.

Carlos calou-se instantaneamente, como o sabiá, que suspende seus plangentes


arpejos quando ouve rumores pelo bosque. Era um estudante sinceramente enamorado;
coisa rara!

CAPÍTULO XX

PROJETOS VÃOS

Passaram-se quinze dias, durante os quais o estado moral e físico de Carlos


apresentou algumas melhoras, se bem que a sua paixão nada declinasse de seu primitivo
grau de ardor e exaltação. O desabafo, que tivera com Frederico, lhe fizera bem, e como
já tinha um peito amigo, a que confiasse suas mágoas e inquietações, sentia o coração
algum tanto aliviado do peso, que o oprimia, e o espírito mais calmo para entregar-se ao
estudo, e continuou a freqüentar as aulas com alguma assiduidade. O vivo desejo que
tinha, de terminar seus estudos para pôr em execução o plano que formara, para libertar
sua formosa vizinha, influiu talvez mais que tudo para esse lisonjeiro resultado.

Quanto a Frederico, esse tinha desistido completamente de seu propósito de


combater a paixão de Carlos, e dizia de si para si que só depois de dar todas as
cabeçadas, que pretendia, é que seu amigo poderia tomar rumo. Levado por uma
curiosidade mui natural, quis conhecer também essa escrava de peregrina formosura,
que por tal sorte tinha transtornado a cabeca e cativado o coração de seu amigo. Foi para
esse fim em casa de Carlos, o qual não hesitou, antes folgou por ter ocasião de
proporcionar a seu amigo um ensejo para ver e admirar o encantador objeto de sua
ardente paixão. Esperava que, depois de vê-la, Frederico se despojaria de grande parte
de sua austeridade, e não estranharia tanto a exaltação de seu amor. De feito Frederico,
escondido cautelosamente no quarto de Carlos, de modo que pudesse ver sem ser visto,
gozou por um quarto de hora o indizível e platônico prazer de contemplar uma das mais
sedutoras belezas que o céu tinha criado, e de presenciar um namôro o mais ingênuo,
sentimental e apaixonado que se pode imaginar, expressado pela mais eloqüente e
significativa mímica. Aquilo, que para os dois amantes era o mais sério episódio do
drama do amor, para Frederico tornava-se quase uma cena cômica e ele teria soltado ali
mesmo uma grossa gargalhada, se não o contivesse por um lado a beleza angélica, a
graciosa e ingênua figura da moça, e por outro o respeito que devia à afeição profunda e
sincera do amigo. Saiu dali desanimado mais que nunca de poder desviar o amigo de
sua louca paixão, e se não deixava de lastimá-la, reconheceu todavia que a menina era,
com efeito, digna desse culto fanático, dessa fervente adoração, que lhe consagrava.
Tomando sumo interesse não já só pela sorte de Carlos, como também pela da gentil
escrava, que deplorava do fundo dalma ter nascido naquela condição, Frederico, que era
filho de pais opulentos, obedecendo aos nobres e filantrópicos impulsos de seu coração,
concebeu desde logo a generosa idéia de empregar os meios a seu alcance para
conseguir a liberdade da gentil cativa. A princípio havia pensado que essa rapariga não
seria mais do que uma linda mulata, como há tantas no Brasil, faceiras e sedutoras, e a
pintura, que dela Carlos lhe havia feito, levava em conta de exagero apaixonado de um
homem, que só vê o objeto amado através de um prisma ilusório, que elimina todos os
defeitos e realça as mais comezinhas qualidades. Desde que a viu, porém, suas idéias se
modificaram consideràvelmente, e o amor de Carlos, de que a princípio mofara com seu
ar de risonha bonomia, lhe pareceu plenamente justificado.

De feito, desde que se via a formosa escrava do Sr. Basílio, era preciso um
supremo esforço de imaginação para acreditar que era realmente uma escrava. Sua tez
branca e delicada, os magníficos cabelos escuros, que lhe emolduravam o rosto e lhe
ondeavam pelo bem torneado colo, as feições corretas e harmoniosamente delineadas,
os ademanes naturalmente graciosos e elegantes, acrescendo a tudo isso o encanto da
inocência e candura infantil, não denunciavam por certo a filha da senzala. Ao vê-la
qualquer juraria que era uma donzela distinta, criada com todo o mimo e solicitude entre
os carinhos de uma família honesta, e bafejada desde o berço pelo sopro da liberdade.

Frederico, impressionado pela rara formosura da menina, já não julgava uma


degradação, uma abdicação da própria dignidade desposar uma liberta de tanta beleza e
merecimento. Também Frederico, no íntimo de sua consciência, estava bem convencido
de que a escravidão é um acidente do destino, que não constitui uma nódoa, e o fato de
casar-se o seu amigo com uma liberta, mormente sendo dotada de tão vantajosas
prendas físicas e morais, nenhum desar, nem mesmo ridículo poderia provocar sobre a
sua pessoa e reputação. Formou pois o generoso, se bem que um pouco excêntrico
projeto de procurar aplanar o caminho, para que os votos do coração de Carlos fossem
satisfeitos. Comunicou suas intenções ao amigo, que lho agradeceu do íntimo dalma e
daí em diante criou novo ânimo e novos incentivos para prosseguir em sua arrojada
empresa.

O primeiro passo que Frederico tentou foi procurar travar conhecimento e


relações com o Sr. Basílio, dono da escrava. Mas Basílio era um homem excêntrico, de
difícil trato, quase incomunicável, que não dava ingresso em sua casa senão a raríssimas
pessoas. Ele e sua respeitável e veneranda esposa viviam vida misteriosa e retraída; não
saíam de casa senão aos domingos pela madrugada para ouvirem missa na Sé, o marido
bem embuçado em seu comprido capote de gola em pé, que lhe tapava a cara até os
olhos, e ela toda embiocada em sua mantilha. Fora disso, só se lhes enxergava às vezes
a ponta do nariz por entre as rótulas, que apenas entreabriam momentaneamente para
espiarem a rua.

O seu tráfego de escravos também se fazia algum tanto à sorrelfa e com certo
mistério; mas os habitantes de S. Paulo já o conheciam, e quando algum, por
necessidade de dinheiro ou por qualquer outro motivo, desejava desfazer-se de algum
escravo, já sabia a que porta iria bater. Quando tinha reunido uma coleção suficiente, ele
os comboiava para fora da capital, quase sempre em direção aos ricos municípios do
norte da província e para a mata do Rio de Janeiro, onde os negociava vantajosamente
com os opulentos fazendeiros cafezistas daquelas paragens. Estas suas saídas eram,
como todos os atos de sua vida, feitas com segredo e mistério nas horas mortas da noite.
De um dia para outro, o velho com toda a sua família, a qual consistia em sua mulher e
seu comboio de escravos, desaparecia de casa, sem que ninguém soubesse para onde se
havia dirigido.

Basílio, além de sua absoluta insociabilidade, tinha particular ojeriza à classe


acadêmica, da qual se arrepelava como de cobra venenosa ou cão danado, sem dúvida
porque já alguma vez teria sido vítima de seus desapiedados motejos.

Tudo isso dificultava sumamente a generosa empresa de Frederico e a tornava


quase impraticável. Entretanto, não desanimou. Por três vezes bateu palmas à porta de
Basílio; por três vezes uma voz esganiçada gritou do interior – não está em casa – sem
que ninguém lhe aparecesse à porta. Entendeu por fim que, só por intermédio de um
terceiro, que gozasse da amizade e confiança de Basílio, poderia penetrar naquela
espelunca e entabular negociações com semelhante casmurro.

Enquanto Frederico andava em diligências para encontrar um intermediário


prestimoso, que o pusesse em comunicação com o velho Basílio, deram-se
acontecimentos, que vieram inteiramente burlar seus planos, e derrocar todas as
esperanças, que começavam a embalar a imaginação do pobre Carlos.

CAPÍTULO XXI

VENDIDA!

Desanimado de achar acesso junto à respeitável pessoa do Sr. Basílio,


Frederico, mesmo na Academia, entrou a fazer pesquisas e indagações entre os
contínuos e bedéis, a fim de ver se podiam informá-lo das relações e amizades, que
porventura o tal homem entretinha na cidade. No fim de quatro ou cinco dias achava-se
tão adiantado como dantes. Como, porém, não julgava de grande urgência a solução
daquele negócio, não o tangia lá com grande afã e diligência, esperando que, com tempo
e perseverança, sempre havia de deparar um meio de achar-se face a face com o Sr.
Basílio.

Entretanto, Carlos começou de novo a não comparecer às aulas, e durante toda


uma semana não foi visto na Academia, o que causava grande cuidado e inquietação a
Frederico. Os dois amigos não se freqüentavam com assiduidade, em razão da distância
que separava suas residências, morando cada um na extremidade de bairros
diametralmente opostos. Perguntando Frederico por seu amigo aos companheiros que
com ele moravam, estes lhe responderam, que Carlos estava a ponto de ficar
completamente maníaco; o namoro e a preguiça o estavam pondo a perder; vivia
trancado no quarto, comia pouco e às vezes nada, saía à rua de quando em quando, e
voltava sempre com ar cada vez mais lúgubre e desconsolado.
O mais breve que lhe foi possível, Frederico dirigiu-se à casa de Carlos, onde o
encontrou em um estado de prostração e desalento, que fazia dó. Soube, então, pela
boca do próprio Carlos, que há mais de oito dias a janelinha, onde costumava ver a
formosa escrava, se conservava fechada!... Nos dois ou três primeiros dias ainda havia
suportado, com alguma resignação e sem desesperar, o desaparecimento de sua amante.
Talvez estivesse doente, ou quem sabe se tinham sido percebidos os seus colóquios de
janela, e por isso era agora severamente vigiada por seus senhores? E também, que
horror! quem sabe se teria sido vendida!?... Esta última hipótese era como um estilete
envenenado a pungir continuamente o coração do pobre rapaz. Para livrar-se de tantas e
tão cruéis incertezas, deliberou indagar pela vizinhança o que teria sido feito da menina.
Os vizinhos, porém, que sabiam tanto como ele, do que se passava em casa do Sr.
Basílio, não puderam dar-lhe informação alguma.

Depois de dois ou três dias de baldadas indagações pela vizinhança, resolveu-se


a ir ele próprio à casa de Basílio, e se bem que já tivesse conhecimento dos hábitos de
incomunicabilidade do velho, jurou de si para si que tanto havia de bater à porta, tanto
gritar e rogar, tal algazarra e tais disparates havia de fazer, que nâo teriam remédio
senão abrir a porta e falar-lhe. Firme neste propósito tratou de pô-lo em execução, e
cheio de arrojo e resolução foi pela manhã bater à porta do misterioso e invisível
vizinho Basílio. Mas... ai dele!... a porta da rua estava fechada e sem chave, as rótulas e
janelas trancadas, de modo que nem a luz nem o ar ali podiam penetrar. Por mais que
Carlos, depois de muito bater, aplicasse o ouvido, não distinguiu nem o mais leve
rumor, que denunciasse a presença de ente vivo, nem mesmo de um cão ou de um gato.

Carlos retirou-se dali pálido, exangue e a cambalear como um homem que


acabasse de ser gravemente ferido. Nesse estado ia-se dirigindo para a casa quando uma
velha da vizinhança, cuja vida era tão misteriosa como a do Sr. Basílio, pondo o nariz
fora da rótula, perguntou-lhe:

– Quem estava procurando ali, meu moço?

– Ora, é boa pergunta! – respondeu Carlos, de mau humor. – Procurava o dono


da casa.

– Chê! que esperança! há que tempo ele já saiu pra fora vender seus escravos.
– Que está dizendo, senhora!... Oh!... minha... senhora!... não saberá me dizer
se levou também uma menina... ainda muito nova...

– Eu sei lá disso, meu moço?.. Ele quando sai é às chuchas caladas e fora de
horas... Decerto essa também havia de ir.

Nada mais era preciso para esmagar completamente o coração do pobre rapaz.
Recolheu-se à casa e trancou-se em seu quarto.

– Oh! minha adorada e infeliz Rosaura!... tu vendida!... Tu, a mais bela e a


mais adorável das criaturas, que saiu das mãos do Eterno, tangida a pé por essas
estradas, no meio de um comboio de escravos, como uma rês no meio da manada, para
ser exposta no mercado! . . . Vendida. Deus do céu!... Vendidas a inocência e a beleza
pelo mais abjeto e ignóbil dos homens!... Vendida e a quem, Deus de misericórdia!
Quem sabe em que mãos irás parar, minha infeliz Rosaura!... Ah! talvez nas mãos de
algum senhor brutal e devasso, que empregará todos os meios para profanar-te a pureza,
violar-te a pudicícia! Oh! sim, porque teus encantos fascinam, cercam-te de mil perigos,
e vão expor-te às mais terríveis vicissitudes. Ah! maldita sociedade! maldita lei! povo e
governo mil vezes maldito, que tolera e fomenta tão vergonhoso e execrando tráfico!
Oh! se eu fora rico, iria por essas estradas, acompanhado de uma escolta de bons
capangas, no encalce do ladrão, havia de descobrir-lhe a pista, e, por vontade ou por
força, o infame havia de largar mão da presa. Ah! pobreza! pobreza!... Tu resumes em ti
todos os infortúnios... Pobre menina! lírio cândido e sem mancha atirado no infecto e
lodacento abismo da escravidão!...

Exalando estas e outras dolorosas e intermináveis exclamações, o mancebo


passou dias e dias encerrado em seu quarto, entregue à mais pungente angústia e
desesperação, desatando torrentes de lágrimas, que em nada mitigavam a dor, que lhe
torturava a alma; seus sofrimentos não eram daqueles que acham desabafo no pranto
copioso; as lágrimas ardentes, que lhe crestavam as pálpebras, exprimidas do coração
entre torturas, só deixavam nele a aridez do desespero.

Foi assim que Frederico o veio encontrar, encerrado em seu quarto em tal
estado de prostração e desalento, que causava dó e inquietação não só pela sua saúde
como pela sua razão. Não reproduziremos as violentas explosões de furor, as amargas
lamentações e terríveis imprecações, em que prorrompeu ainda o mísero mancebo em
presença do amigo. Este as escutou todas com a maior paciência sem interrompê-lo,
nem contrariá-lo, e profundamente abalado pelo deplorável estado em que via o amigo,
conservou-se mudo por largo tempo sem achar uma frase de conforto e animação para
tão acerbo sofrimento.

– Que se há de fazer em casos tais, meu amigo? disse ele por fim. – Lastimo-te
deveras do fundo do coração, e – lastimo ainda mais essa infeliz e formosa criatura, que
o destino fez nascer escrava, devendo ter nascido em berço de púrpura e ouro. Mas não
serei eu mais quem te vá ainda embalar o espírito com vãs e ilusórias esperanças; não; é
escusado lutar contra a fatalidade. O único refúgio que te resta é a resignação; é pedir ao
tempo e às distrações o lenitivo para o rude golpe que te feriu o coração. Basta de te
entregares a esse aflitivo desalento, a essa desolação, que cada vez mais te agrava os
pesares. Vamos, meu amigo, cobra coragem, e mostra-te homem! Veste-te, e vamos
passear; irás morar comigo de hoje em diante; é necessário que abandones para sempre
essa casa, que tão amargas recordações te traz ao espírito.

– Entrego-me em tuas mãos, meu Frederico; se bem que nada espere nem do
tempo, nem das distrações, nem mesmo da tua amizade, para mitigar a angústia, que me
devora, vou, vou para onde quiseres levar-me; abdico em tuas mãos a minha vontade,
como um autômato, cujos movimentos dirigirás a teu bel-prazer, porque de fato tudo me
é indiferente; nada me interessa, nada mais desejo neste mundo.

– Isso é por agora, meu Carlos. Com o tempo, há de passar esse teu triste
desalento. Vamos; quero afastar-te dos lábios o teu cálix de amargura; quero arrancar-te
deste Getsêmani, em que pareces querer exalar a existência. Lembra-te que estamos em
fim de outubro, e é preciso nos prepararmos para o ato.

– Não me fales em atos, nem estudos, nem me faças lembrar de Academia. Se


não fosse essa maldita Academia, que aqui me trouxe, eu estaria agora bem tranqüilo
em minha província, e não aqui como ludíbrio do destino, suportando as mais cruéis
torturas. Diga-me de que nos serve vir aqui estudar o direito, o dever e a justiça, se eles
não são e nunca serão respeitados, nem executados?... Se se praticam por aí
impunemente, todos os dias, as mais torpes e atrozes iniqüidades, as mais flagrantes e
hediondas violações da lei e do direito? Maldita ciência – se é que merece tal nome –
maldita ciência, que só existe nos livros e nos códigos, como pura irrisão aos direitos da
humanidade, que a sociedade pesa em sua balança corrupta para calcá-las aos pés!...
Não; não vou nem mais uma vez à Academia. Em novembro irei, pela última vez, a casa
de meu correspondente para... para ir-me embora.

– Pois bem: vou de acordo com isso, Carlos; a agitação, que atualmente te
perturba o espírito, não te permite estudar. Deixarás o teu ato para março ou abril; será
melhor assim. Entretanto, por agora, me pertences; já o declaraste. Vamos com isto;
avia-te, e quanto antes vamo-nos embora daqui.

Carlos vestiu-se automaticamente, e os dois amigos, de braço dado, tristes e


taciturnos, atravessaram a cidade e dirigiram-se para a casa de Frederico.

CAPÍTULO XXII

EM CASA DO CORRESPONDENTE

Em meados de novembro, vinte dias pouco mais ou menos depois que


Frederico tinha levado Carlos para sua casa, das dez para onze horas do dia, achava-se
Conrado sozinho, em seu salão de visitas, folheando alguns jornais, que acabava de
receber, quando lhe bateram palmas à porta, embaixo da escada. Mandou entrar quem
fosse, e daí a alguns segundos apresentou-se na sala um moço pálido, alquebrado e
macilento, na figura do qual Conrado, não sem alguma dificuldade e depois de alguns
instantes de reparo, reconheceu Carlos, o estudante que já é do nosso conhecimento, e
que era seu correspondido.

Conrado quando, em seus giros de muladeiro, viajou pela província de Minas,


passou mais de uma vez pela fazenda do pai de Carlos, com quem negociou, e em cuja
casa encontrou hospitalidade franca e delicada, como se sói dispensar naquela
província, nascendo daí relações de pura e boa amizade entre os dois. Por isso, quando o
fazendeiro teve de mandar seu filho para S. Paulo, o recomendou a Conrado, pedindo-
lhe que fosse seu correspondente. O paulista aceitou com prazer aquele encargo, e o seu
correspondido, por suas belas qualidades, seu talento e boa conduta, granjeou bem
depressa sua estima e simpatia.

Carlos freqüentava com assiduidade a casa de seu correspondente, onde era


tratado com particular distinção e cordial amizade. Depois, porém, que o nosso
estudante se travara de amores com a escrava de Basílio, suas visitas começaram a
escassear de mais em mais, até cessarem de todo; havia cerca de dois meses que não se
viam; a última mesada Carlos a tinha mandado buscar por um recibo.

– Oh! mui bem aparecido, meu caro Carlos! – disse alegremente Conrado. – Há
que tempos o não vejo!...

Estava mal comigo? Mas estou o achando tão pálido e desfigurado!... Tem
estado doente?

– Algum tanto, Sr. Conrado; tenho sofrido bastante nestes últimos tempos.

– Ah! e como não mandou me dizer nada?... Sabe quanto sou amigo de seu pai,
e muito pesar me ficaria se o filho do meu amigo sofresse alguma coisa nesta cidade
sem eu lhe ter valido em coisa alguma. Tenho estranhado a sua falta, e se não fossem
certas ocorrências, que há dias a esta parte muito me têm preocupado, já teria ido
procurá-lo em sua casa.

– Muito obrigado. Sr. Conrado; mas não se inquiete; meus incômodos não são
talvez de conseqüência, mas são do número daqueles que nem a ciência, nem os
cuidados do homem podem minorar, somente o tempo...

– Deus o permita – interrompeu Conrado. – Então já está preparado para fazer


um brilhante ato como é seu costume?...

– De modo nenhum; não só não estou preparado, como mesmo não quero, e
nem posso fazer ato este ano.

– E por quê? Acaso perdeu o ano em razão da moléstia?

– Não, senhor; não cheguei a perdê-lo, mas dei grande número de faltas, e
nestes dois últimos meses quase nada pude estudar. Pretendo ir passar as férias em casa,
e por isso venho hoje importuná-lo para dar-me além da mesada, mais algum dinheiro
para arranjar condução.
– Ah! muito bem; hei de sentir muito a sua ausência; mas não posso deixar de
aprovar a sua resolução em vista do estado de sua saúde. Faz bem; vá tomar ares em sua
bela província, e volte-nos robusto, sadio, e alegre como dantes.

– Não sei se voltarei, Sr. Conrado, – murmurou Carlos, com desânimo.

– Oh! por que não? Há de voltar sem dúvida. Quererá dar a seu pai o desgosto
de ver interrompida sua carreira quase no seu têrmo?... Há de voltar, sim, meu amigo.
Entretanto, não quero que se vá embora, sem que fique sabendo de uma novidade, que
há aqui em nossa casa... Não é capaz de adivinhar qual é.

– Nem por sombra.

– Pois participo-lhe que sou pai; não há muitos dias, nasceu-me uma filha, que
desejo lhe apresentar.

– Uma filha! – exclamou Carlos, com surpresa. Ora essa! O senhor está
gracejando, não é casado, e demais...

– Ora, que tem isso? – atalhou Conrado. – Não quer acreditar? Pois vou
apresentar-lha neste momento. Com licença.

Conrado retirou-se para o interior da casa. Carlos, se tivesse o espírito menos


preocupado, e não trouxesse o coração tão pejado de amarguras, ficando ali só teria
passeado uma vista dolhos em torno do salão, e teria notado nele não pequena
modificação no luxo e na disposição dos móveis. Teria notado neles um arranjo mais
caprichoso e elegante, almofadas colocadas nos sofás com o mais esmerado asseio,
flores frescas em todos os vasos, enfim em tudo certo ar garrido e festivo, que estava
revelando que ali andava a mão de uma mulher, e mulher de fino e apurado gosto. Teria
visto mais sobre um bufete de jacarandá negro um rico leque, um lenço de cambraia
primorosamente bordado e um mimoso ramalhete de violetas, objetos que seguramente
não eram do uso de Conrado. O mancebo, porém, nada viu, nada observou, e durante a
ausência de Conrado, que durou poucos minutos, ficou a fazer mil conjeturas sobre o
que lhe acabava de anunciar seu correspondente.

– Será gracejo? – pensava ele. – Mas que alcance, que explicação, que espírito
pode ter semelhante gracejo em tal ocasião, principalmente de um homem dotado de
tanto senso e de tanta discrição como é o meu correspondente?!... O Sr. Conrado, além
de não ser casado, não me consta que tenha amásia alguma nem em casa, nem fora dela,
e passa por celibatário exemplar. É mesmo para admirar que este homem, moço ainda,
rico e elegante, não tenha tido namoro, nem intrigas amorosas de espécie alguma!... É
coisa quase impossível... não há dúvida... A única hipótese razoável, que se apresenta ao
espírito, é mesmo a de alguma filha natural, fruto de algum amor misterioso, que ele até
aqui tem sabido esconder com cuidado aos olhos do mundo. Como me tem amizade e
deposita em mim alguma confiança, vai agora fazer-me depositário do seu segredo.

– Agora mesmo vai lhe ser apresentada a minha filha, Sr. Carlos, – disse
Conrado, tornando a aparecer no salão.

Carlos, em pé, e com os olhos fitos na porta, por onde Conrado havia entrado,
esperava a cada momento uma ama ou uma escrava, trazendo nos braços, bem
enfaixada, a criancinha, filha de seu correspondente. De feito, passados alguns instantes,
ouviu passadas e o leve rugir de um vestido pelo pavimento.

– Ei-la! – disse entre si.

Mas quem assomou no limiar da porta?... A mais formosa donzela que se pode
imaginar, de gentil esbelto porte, tendo no rosto não mui alvo todas as graças do pudor
virginal e da ingenuidade infantil.

Vinha vestida de branco, com encantadora e elegante simplicidade. Rosaura e


Carlos imediatamente se reconheceram. Aquela mal pôde avançar dois ou três passos
pela sala, e estacou como petrificada; Carlos a muito custo pôde conter uma explosão de
espanto.

Assim permaneceram por alguns instantes em frente um do outro, tolhidos,


embaraçados, atônitos, e como que julgando-se vítimas de alguma mistificação.
Conrado, que ignorava a verdadeira causa daquele embaraço, atribuindo-o a
acanhamento, tratou logo de tirá-los dele.

– Minha filha – disse ele – aqui está o meu amigo, o Sr. Carlos, estudante do
quarto ano, a quem queria apresentar-te.

– Sr. Carlos... – disse Rosaura, estendendo-lhe a mão e cobrindo-se de vivo


rubor.

– Rosaura! – ia quase exclamar o mancebo, no arroubo de sua indizível


emoção.
– Minha senhora – balbuciou ele – custa-me a crer o que vejo; estava bem
longe de esperar encontrá-la aqui!...

– Que quer dizer isto? – exclamou Conrado, com surpresa. – Pelo que estou
vendo, já se conheciam?...

– Sim, senhor – respondeu Carlos, perturbado e baixando os olhos. – A senhora


era minha vizinha no Tabatinguera; já nos vimos algumas vezes.

– É verdade – murmurou Rosaura.

– É singular! – repetiu Conrado.

– Mais singular me parece – retorquiu Carlos, um pouco restabelecido de sua


primeira surpresa e emoção – vir encontrar em sua casa esta senhora já não na condição
em que a conheci, mas na qualidade de sua filha. Perdoe-me se lhe falo com esta lisura;
mas é um mistério, que me assombra, e que desejava ver decifrado. Até mesmo ainda
me quer parecer que e isto um gracejo de sua parte.

– Um gracejo! – replicou Conrado, formalizando-se um pouco. – A que


propósito viria semelhante gracejo?... Mas eu lhe desculpo; o senhor tem alguma razão
para assim pensar, principalmente sabendo já dos precedentes de Rosaura, o que eu
estava bem longe de imaginar. Há mesmo aí um mistério, que eu devo e desejo lhe
comentar. Promete vir jantar amanhã conosco?...

– Com muito prazer.

– Pois bem, venha cedo, e prometo-lhe que amanhã mesmo ficará ciente da
história de Rosaura, e se dissiparão todas as suas dúvidas e incredulidades.

Conversaram ainda por algum tempo, mas nem Carlos nem Rosaura, no
assombro e enlevo em que se achavam, sabiam bem o que diziam. Também de sua parte
Conrado se achava bastantemente apreensivo; o fato de já serem os dois jovens
conhecidos um do outro fizera-lhe impressão no ânimo, e não lhe tinha escapado o
enleio e perturbação com que se encaravam. Por mais que se esforçasse por dissimular
sua preocupação, não podia deixar de mostrar-se pensativo e distraído. Em vista daquele
estado de embaraço e constrangimento, em que todos se achavam, Carlos compreendeu
que não convinha prolongar por mais tempo sua visita, e sem se lembrar mais de
mesada, nem de dinheiro para a viagem, levantou-se, tomou o chapéu, e já ia despedir-
se.

– Então, não quer receber a sua mesada? – perguntou Conrado.

– Ah! é verdade! ia me esquecendo.

Conrado sorriu-se de um modo que fez corar o estudante, e levando-o para o


seu gabinete contou-lhe o dinheiro não só da mesada, como também do que ele exigiu
para a viagem. Carlos, porém, ao retirar-se da casa do seu correspondente, tinha tanta
vontade de ir a férias, como de atirar-se nas profundas e sombrias águas do Tietê com
uma pedra ao pescoço.

CAPÍTULO XXIII

VINTE E QUATRO HORAS DE ANSIOSA EXPECTATIVA

Conrado como dissemos, ficara seriamente impressionado ao saber que Carlos


e Rosaura já se conheciam. Isto para um homem experiente e perspicaz como era ele, e
à vista dos sintomas, que rapidamente observara naquele primeiro encontro, queria dizer
que os dois jovens já se amavam. Por alguns momentos, uma vaga e sombria
desconfiança lhe adejou pela mente, lembrando-se da humilde e desgraçada condição
em que até então tinha vivido sua filha. Mas essa nuvem para logo se dissipava toda a
vez que contemplava a fisionomia de Rosaura, em que se espelhavam a candura e a
inocência de sua alma. Também conhecia a Carlos como um moço de sentimentos
nobres e delicados, e o modo por que ambos se houveram naquele encontro inopinado
bem estava revelando que, se havia ali paixão, era de uma e outra parte uma paixão
virginal e pura, um sentimento honesto e recatado.

Havia apenas quinze dias que Rosaura se achava em casa de seu pai, e não
diremos que se havia operado nela uma completa transformação, porque Rosaura era
elegante, discreta e graciosa por natureza; mas tinha feito tais progressos no
desenvolvimento desses seus dotes naturais, que parecia ter sido nascida e educada no
meio da mais polida sociedade. É verdade que ela, durante sua escravidão, fora sempre
tratada com mais algum mimo e delicadeza do que os outros escravos, mesmo por Nhá
Tuca, sua primeira senhora; mas mesmo assim era para admirar como em sua brusca
passagem, da humilde condição de escrava e de sua vida simples e retraída, para os
salões da opulência, se familiarizasse tão depressa com a sua nova posição. Também a
sua estada por espaço de um mês em casa de Adelaide, onde era tratada como parte da
família, contribuiu para habituá-la ao trato de uma sociedade mais distinta, e serviu
como de transição ou tirocínio, para que não entrasse por demais bisonha na opulenta e
luxuosa casa de Conrado.

Este se comprazia, com justo e bem fundado orgulho, em apresentar Rosaura


como sua filha aos seus íntimos amigos, e em lhes contar o modo extraordinário e quase
miraculoso, pelo qual o céu lhe concedera uma filha já grande, formosa e dotada em tão
alto grau de todos os atrativos físicos e morais. Omitia, entretanto, ou alterava certas
circunstâncias a fim de evitar indagações, e desviar toda e qualquer suspeita que
pudesse pairar sobre a verdadeira mãe de Rosaura. Assim dizia que ela nascera em
Curitiba, e que sua mãe já não existia. Quanto ao mais, alterando somente os nomes das
pessoas e dos lugares, narrava com toda minudência e fidelidade o singular acontecido,
que lhe tinha dado uma filha, com cuja existência ele nem sonhava. Com o coração
ermo de afetos, como até ali tinha vivido, tendo sempre presentes ao espírito tristes e
amargas recordações do seu infeliz passado, Conrado não cessava de congratular-se
com sua sorte, e bendizer o céu que, preservando e restituindo-lhe a filha, vinha reatar
seu doloroso passado a um risonho e esperançoso futuro pelos laços tão suaves e
afetuosos do amor paterno. Rosaura era uma flor cândida e mimosa, que de chofre lhe
desabrochou sob os passos como por encanto, em toda a plenitude do viço e louçania,
para embalsamar-lhe o outono da vida com seu delicado perfume.

Conrado, pois, que tinha especial simpatia e estima pelo seu correspondido, não
podia deixar de apresentar-lhe sua filha e dar-lhe conta também do modo singular, por
que o destino o levara a deparar com tão precioso achado. A surpresa que lhe causou o
conhecimento recíproco dos dois jovens o tornou pensativo.

O amor que já mutuamente se consagravam era fator que, quanto mais refletia,
mais claramente se lhe apresentava ao espírito.
A enfermidade e abatimento físico e moral de Carlos e a declaração, que lhe
havia feito, de que seus incômodos não eram daqueles que se curam pelos recursos da
medicina, nem pelos cuidados dos homens, bem denunciavam que havia ali uma causa
moral profunda e persistente, e essa causa não podia ser outra senão o amor de Rosaura.
Como, porém, seu espírito se perdesse em um caos de conjeturas mais ou menos
razoáveis, sobre os quais lhe era mister refletir com mais sossego, deliberou aprazar
para o dia seguinte o que tinha de comunicar ao mancebo.

Tudo conspirava para convencê-lo de que entre os dois jovens existia paixão
recíproca, amor puro e sincero; os ventos todos sopravam na direção de suas conjeturas,
e talvez mesmo de seus desejos.

Todavia, antes de fazer a CarIos declarações mais íntimas, julgou prudente


sondar de antemão as disposições do coração da filha. Isto foi-lhe mui fácil; o coração
puro é como a fonte límpida, que nada esconde em seu fundo.

Desde que tinha em casa sua filha, Conrado havia notado que, a despeito da
imensa alegria que ela sentia por ter, por assim dizer, nascido de novo em um mundo
estranho, por ter sido arrancada, pela mão benéfica da Providência, do inferno da
escravidão para um céu de venturas, onde, ao lado da liberdade, vinha encontrar pai e
mãe, uma leve nuvem de tristeza pairava de quando em quando sobre aquela fronte tão
pura, tão radiante de candura e de inocência. Por vezes a surpreendera em tal estado de
melancolia, que não podia deixar de interrogá-la; ela porém respondia que seu desgosto
provinha unicamente de ter mãe tão boa e tão perto de si, e não poder viver com ela,
abraçá-la e beijá-la, todos os dias, e nem mesmo poder dar-lhe em público o doce nome
de mãe. Esse motivo tão justo, e aliás verdadeiro, mas que não era o único nem o mais
poderoso de seus melancólicos devaneios, não deixava de satisfazer algum tanto a
ansiosa e solícita curiosidade de Conrado. Depois, porém, que se deu o encontro entre
ela e o seu jovem correspondido, as idéias de Conrado tomaram outra direção. Não
conhecia bem ainda a índole e o temperamento de Rosaura, mas mesmo assim
compreendia perfeitamente que aquela melancolia não era muito compatível com a sua
idade, nem podia constituir seu estado normal, e devia ser resultado de algum
sentimento contrariado; que alguma coisa, fosse o que fosse, faltava para a completa
felicidade de sua filha.
Depois, porém, que em sua presença Carlos e Rosaura se encontraram em face
um do outro, a luz foi-se fazendo diante de seus olhos.

Desde que Carlos lá apareceu, a fisionomia da moça foi-se modificando de um


modo tão sensível, que não pôde escapar às vistas perspicazes e escrutadoras de
Conrado.

O vivo rubor, que lhe assomara às faces, logo que deu com os olhos no
mancebo, nunca mais se apagou, apenas desmaiou um pouco, depois que ele se retirou,
e assim se conservou até o dia seguinte. Eram as rosas do amor, que refloriam de novo
no bafejo da esperança naquele cândido e encantador semblante. Os sorrisos lhe
adejavam espontâneos pelos lábios, e nos olhos lhe cintilava um fulgor sereno e
bonançoso como o de uma manhã de abril. Nesse dia, Conrado não viu mais no rosto de
sua filha nem a mais leve sombra de tristeza.

Depois de ter notado com particular atenção aqueles sintomas, Conrado,


procurando encobrir sua intenção, e sem muita insistência, fez à sua filha algumas
perguntas a respeito de Carlos.

– Então, já conhecias esse moço, que te apresentei hoje? – perguntou, afetando


indiferença.

– Já, sim senhor; era nosso vizinho já na Rua do Tabatinguera, – respondeu


Rosaura, bastantemente enleada.

– E que tal te parece ele?

– Me parece muito bom moço.

– Qual bom moço! É muito estúrdio como todos os seus companheiros... Basta
ser estudante.

– Oh! meu pai não diga isso! – exclamou com toda a vivacidade e com toda a
ingenuidade a menina. – É porque meu pai não o conhece. Esse não é como os outros; é
muito bem criado, e tem tão bons modos...

– São aparências, minha filha; não acredites muito nesses sujeitinhos. Não é de
hoje que os conheço. Esse Carlos mesmo, se não é um maluco ou um devasso como os
outros, talvez não passe de um refinado hipócrita.
– Ah! meu pai! Será possível! – murmurou Rosaura, com voz sentida, e tornou-
se triste e amuada...

Conrado sorriu-se; tinha surpreendido no fundo da alma o segredo da filha.

– Não te aflijas, Rosaura; eu também conheço Carlos, e até o vi pequenino em


Minas na fazenda do pai, que é muito meu conhecido e meu amigo.

– Ah! deveras? – replicou Rosaura, reanimando-se. – Quanto estimo isso!...

Conrado não precisava saber mais para ficar inteirado da natureza dos
sentimentos de sua filha para com o seu correspondido. Só lhe faltava agora sondar o
coração de Carlos, para o que esperou com impaciência o dia seguinte.

Quando Carlos saiu da casa de Conrado, e se achou no meio da rua, ia tão


aturdido com o que lhe acabava de acontecer, que parou perplexo sem saber para onde
dirigir seus passos. Nesta hesitação ficou parado alguns momentos; mas depois,
levantando os olhos para o sobrado, viu Conrado e Rosaura, que da sacada o
contemplavam com ar risonho; envergonhou-se, e fez um ligeiro cumprimento, e como
quem despertava de um sonho, dirigiu-se resolutamente para a casa de Frederico, com
quem morava desde que este o arrancara da Rua do Tabatinguera. Caminhava, porém,
por tal sorte distraído, tal era a preocupação e enlevo em que ia embebido, que não via
onde pisava, abalroava um e outro transeunte, e não correspondia aos cumprimentos dos
colegas e conhecidos, com quem ia encontrando. Levava a alma como que fechada
dentro de uma nuvem cor-de-rosa, cheia de visões e miragens encantadoras, que não lhe
permitiam ver nada do mundo exterior, enquanto o corpo se movia automaticamente,
procurando o rumo de casa. O achado que acabava de fazer, sem o procurar, sem o
saber, o atordoava. Encontrar Rosaura, que ele julgava para sempre perdida, encontrá-la
de um dia para outro livre, rica, em uma posição brilhante, transformada de escrava que
era em uma distinta donzela, filha de um opulento e amável cavalheiro, o qual, além de
tudo, era o seu correspondente, o amigo de sua família, era com efeito um
acontecimento, que tinha um não sei quê de prodigioso, era um sonho das mil e uma
noites. Todavia, o azul do horizonte, que lhe sorria, não era ainda de todo puro e calmo;
pairava sobre ele uma nuvenzinha escura, que lhe turbava a serenidade. Terrível
suspeita lavrava por instantes ao espírito de Carlos. Apesar de estar bem convencido da
honradez e sinceridade do caráter de Conrado, não podia conformar-se com a idéia de
que Rosaura fosse sua filha. Conrado era rico, podia satisfazer todos os seus caprichos.
Viu Rosaura, encantou-se de sua beleza, não poupou esforços nem dinheiro para obtê-
la, comprou-a, libertou-a, levou-a para casa, e não querendo casar-se com uma liberta,
fê-la ou pretende fazê-la sua amásia. Para coonestar aos olhos do público sua
convivência com a gentil menina, procura fazer crer que é sua filha; para o que pouco
lhe custará inventar qualquer história. Carlos também não deixara de perceber a
alteração, que se manifestara na fisionomia de Conrado ao saber que ele e Rosaura já se
conheciam e esse fato servia para confirmá-lo em suas sombrias apreensões.

Bem se vê que eram apreensões quiméricas e disparatadas de um espírito


enfermo, que, tendo surgido como por encanto dos abismos tenebrosos do infortúnio e
do desalento, a custo pôde abrir os olhos à luz da esperança e da ventura, tendo ainda
diante deles as cataratas da desconfiança.

Não obstante, esses pensamentos, por insensatos que fossem, atormentavam


cruelmente a imaginação do moço, se bem que fossem contrabalançados por algumas
reflexões mais razoáveis, que imediatamente lhe acudiam ao espírito. Mas persistia
sempre a dúvida, esse cancro roedor, que tanto martiriza o espírito e o coração, e Carlos
raivava contra o seu correspondente por ter diferido para o dia seguinte essas
revelações, que deviam pô-lo ao fato do nascimento de Rosaura, e terminar de uma vez
todas as incertezas que o atormentavam.

Embebido em seus pensamentos, Carlos percorreu a Rua Direita, desceu a


ponte do Pique, subiu a longa rua que conduz ao alto da Consolação, em cuja
extremidade morava com Frederico. Este não estava em casa; era sábado, e, segundo o
seu costume, tinha saído a passeio e a visitar os amigos.

Carlos não sabia como passar aquele longo dia de novembro, que tão
ardentemente desejava ver caído nos abismos do passado, não para amaldiçoá-lo, mas
para glorificá-lo como a data mais feliz de sua vida, se acaso o dia seguinte viesse
confirmar as risonhas esperanças da véspera. Em casa achou somente o cozinheiro de
Frederico; que preparava o jantar. Na situação em que se achava o espírito de Carlos, o
que mais lhe convinha era mesmo ou a solidão, ou um amigo íntimo com quem
desabafasse suas emoções; como Frederico não aparecia, ficava-lhe por companheira a
solidão. O cozinheiro serviu-lhe o jantar, Carlos sentou-se à mesa, mas apenas ingeriu
automaticamente alguns bocados e logo levantou-se. Consultava de contínuo o relógio,
mas os minutos volviam-se com tal lentidão, que pareciam horas. Ficar ali sozinho
dentro de casa não lhe pareceu o melhor modo de acelerar a carreira do tempo.

– Vamos passear – pensou ele – dar um passeio bem largo e bem fatigante,
andar, andar, pouco importa por onde, até anoitecer. O longo exercício trará a fadiga, e a
fadiga o sono, e nada há melhor para dar velocidade às asas, do tempo que o sono; a
dormir, um século volve-se em um minuto.

Tinha bastante razão, como a experiência e o resultado vieram demonstrar. O


amante de Rosaura tomou o chapéu e saiu; foi até à Ponte Grande do Tietê, que distava
de sua casa cerca de meia légua, procurando esquecer-se, mas lembrando-se sempre do
dia seguinte, que tinha de resolver o problema de seu futuro destino. Quando voltou, já
vinha caindo a noite; apesar de bastante fatigado, continuou ainda a passear à toa por
todas as ruas da cidade, até que badalaram dez horas no relógio da Sé. Então voltou para
casa, que, como de dia, achou completamente deserta. Frederico tinha ido ao teatro.
Fatigado tanto de andar como de pensar, Carlos deitou-se e dormiu profundamente até o
dia seguinte. Quando abriu os olhos e viu que já raiava a luz do dia, estremeceu de
júbilo.

– É hoje! é hoje o dia! – murmurou consigo. Dia feliz ou nefasto? Não sei, mas
em poucas horas estarei ciente do destino, que me espera.

Consultou o relógio; já era bem tarde, quase nove horas.

– Bom! – exclamou ele. – Bem-aventurado sono, que assim me encolheu o


tempo! Já me faltam poucas horas; enquanto lavo o rosto, visto-me e almoço, aproxima-
se o momento suspirado. Entretanto, vamos a ver o Frederico.

Frederico, tresnoitado do teatro, ainda dormia a sono solto.

– Melhor! – refletiu Carlos. – Deixemo-lo dormir. Não quero dar-lhe uma


notícia incompleta, ler-lhe um romance, cujo desfecho ainda não está escrito. Logo
saberá tudo.

Carlos vestiu-se e preparou-se com vagar e esmero, coisa que há muito tempo
não era seu costume, almoçou mal e apressadamente, enquanto Frederico dormia, tomou
o chapéu e saiu. Todavia, muito a seu pesar eram apenas dez horas. Como era domingo
vendo uma igreja aberta entrou para ouvir missa e ganhar tempo. Depois de ter dado
ainda muitas voltas, ouviu em transportes de alegria soar meio-dia na torre da Sé. Quão
harmoniosas lhe soaram aos ouvidos aquelas doze badaladas!... Era chegado enfim o
momento, que há vinte e quatro horas esperava com tão impaciente ansiedade. Conrado
tinha-lhe dito que, do meio-dia em diante, estaria em casa à sua espera.

CAPÍTULO XXIV

BEATITUDE

Quando Carlos bateu palmas em casa de Conrado, foi Rosaura que se


apresentou no topo da larga escadaria, e com um gracioso aceno disse-lhe:

– Queira subir.

Estava divina; em toda a sua figura respirava um não sei quê de celeste e
arrebatador; banhava-lhe os lábios um ligeiro sorriso, que lhe comunicava a toda a
fisionomia uma expressão de felicidade tão calma e suave, que a teríeis por um anjo no
gozo completo de todas as venturas do empíreo. Tinha chegado a pouco da rua, e ainda
não tinha deixado o vestido de nobreza preta, com que fora, com seu pai, ouvir na Sé a
missa conventual. Essa cor do vestido dava o mais esplêndido realce ao seu busto
gracioso, e comunicava-lhe à tez uns matizes de jaspe ligeiramente rosado, do mais
encantador efeito.

Subindo as escadas, Carlos pensou que ia sendo assumido ao paraíso, a cuja


porta um querubim o esperava para introduzi-lo na mansão das delícias eternas.
Todavia, não ia muito seguro da sorte que o esperava, e transpôs, a passos vacilantes, o
pórtico daquele recinto, que para ele simbolizava o céu. A despeito dos lisonjeiros e
esperançosos sintomas que lia no rosto radiante de Rosaura, ainda pairava-lhe na mente
um resto da dúvida e desconfiança que o assaltara na véspera. Era ainda uma alma que
chegava às portas do céu para ser julgada, e bem podia acontecer que fosse precipitada
por aquelas escadas abaixo, condenada aos tormentos do inferno.

Tendo introduzido Carlos no salão, Rosaura retirou-se, e daí a poucos instantes


apareceu Conrado.
– Muito bem, meu caro Carlos, – disse ele ao entrar. – Estimo que viesse cedo,
como lhe havia recomendado, pois temos muito que conversar.

– Aqui estou a suas ordens – replicou Cralos – e ansioso por escutar as


interessantes comunicações que prometeu fazer-me. Creia que desde ontem trago o
espírito atormentado pela mais viva curiosidade de saber, por que maneira vossa
senhoria de um dia para outro, se tornou pai de uma criatura de quatorze anos, revestida
de todas as ingênuas graças da infância, e de todos os encantos da puberdade. A não lhe
ter caído do céu um anjo, só se vossa senhoria tem a virtude do Onipotente, e criou de
sua própria costela, de um momento para outro, essa nova Eva, como Deus formou a
mãe do gênero humano, a princesa do paraíso.

– Creio no que me diz e compreendo perfeitamente a sua curiosidade –


replicou, sorrindo-se, o pai de Rosaura. – Dentro em pouco sua curiosidade vai ser
plenamente satisfeita. Mora longe, o sol está ardente; deve estar cansado. Também
cheguei há pouco da rua, e me acho bastantemente encalmado. Descansemos um pouco
enquanto tomamos algum refresco.

Daí a instante, entrou um moleque trazendo sobre uma rica bandeja de charão
copos, garrafas de cerveja e outros refrescos. Tomaram um copo de excelente Bass, e
enquanto aspiravam a fumaça de um delicioso havana, Conrado pôs-se a contar ab ovo,
com toda a minudência e franqueza, a história de seus amores, as contrariedades que
encontrou, a fraqueza em que caiu, da qual resultou o nascimento de uma filha, cuja
existência até bem poucos dias ele próprio ignorava. Contou também toda a história de
Rosaura, como fora batizada como escrava pela mulher avara e perversa, em cuja casa
fora exposta, e como tal fora vendida na idade de dez anos a esse Sr. Basílio, em cuja
casa Carlos a tinha conhecido; como enfim, por um concurso de circunstâncias, que
pareciam encaminhadas pela mão da Providência, tinha-se chegado ao conhecimento da
verdadeira origem da menina, reconhecendo-se pública e autenticamente o seu
nascimento livre. Nessa narração, porém, alterando certos nomes e mudando para
Curitiba o cenário de suas aventuras amorosas, procurava como sempre arredar de sobre
a verdadeira mãe de Rosaura a mais leve sombra de suspeita.

Carlos escutava absorto e enleado a narração de Conrado, como quem ouvia as


melodias de um coro angelical. Jamais havia lido páginas de mais delicioso romance em
cujo festivo e risonho desenlace ia ele entrar por caminhos juncados das flores do amor
e da felicidade!

– Bem me adivinhava o coração! – exclamou, com expansivo entusiasmo. Bem


me dizia não sei que voz do céu, que essa tão formosa e interessante menina não podia
ter seu berço na senzala da escravidão!... Meu espírito revoltava-se obstinadamente
contra esse fato, apesar de ser confirmado por um modo, que parecia irrefragável. A
imagem daquele anjo de celeste pureza e incomparável formosura parecia afugentar
para bem longe de mim a sinistra e aviltante idéia da escravidão. Oh! é que a verdade,
sem que o soubesse penetrava em meu espírito por caminhos ocultos, e nele derramava
essa luz vaga e misteriosa, que se chama pressentimento.

– Não duvido que assim seja, meu amigo; mas eu infelizmente não sou dotado
desse sexto sentido, pois não tive nem o mais leve pressentimento de que tinha uma
filha, e essa condenada ao cativeiro. Deixemo-nos, porém, de pressentimentos por
agora, que já não nos são necessários. Tratemos dos sentimentos. O senhor, que não é
de hoje que conhece Rosaura, não acha que ela tem bastante formosura e merecimento?

– É incomparável. O meu amigo possui em sua filha um tesouro inestimável.

– Estimo muito que faça dela tão elevado conceito. Também eu estou me
convencendo que Deus me deu em minha filha uma jóia, um tesouro de inestimável
valor, e é por isso mesmo que ando assustado com medo que mo roubem.

– Por que diz isso, Sr. Conrado?

– Ora por quê?!... Linda, amável, rica, não faltarão ladrões que ma roubem, e
eu ficarei órfão da filha, que há poucos dias os céus me concederam.

– Tem razão – disse tristemente Carlos. – Mais tarde ou mais cedo tem de casá-
la com alguém.

– É verdade; mas permita-me que lhe faça uma pequena pergunta. O senhor,
que teve a fortuna de conhecer Rosaura primeiro que eu, que sou pai dela, e que talvez
teve com ela entretenimentos particulares diga-me francamente, meu amigo, até que
ponto chegaram as suas relações?

Carlos ficou por algum tempo perplexo e desapontado com essas perguntas de
Conrado. Foi só então que compreendeu a que alvo atiravam as palavras um pouco
vagas e ambíguas do pai de Rosaura. Logo viu que ele já suspeitava, se é que não estava
certo da natureza de seus sentimentos para com a gentil menina.

– Já sabe que a amo – pensou consigo – é mister falar-lhe com toda a


franqueza, revelar-lhe tudo.

Carlos, então, reanimando-se e cheio de confiança começou a contar como


tinha conhecido Rosaura, e como tinha concebido por ela a mais ardente e viva paixão.
O profundo desgosto, que se apoderou de seu coração ao saber que Rosaura era cativa,
os projetos loucos que concebeu para restituí-la à liberdade, as angústias por que
passou, o profundo desalento em que caiu quando Rosaura desapareceu, constando com
todos os caracteres da certeza que tinha sido levada no comboio por seu senhor, para ser
vendida em longes terras, nada disso lhe ocultou.

Também lhe disse que o desespero e dor, que sofreu com este último golpe,
tinha afetado profundamente a sua saúde, fazendo-o definhar rapidamente, e talvez o
tivesse levado ao túmulo, se a mais feliz eventualidade não lhe tivesse feito deparar
livre e feliz, e na mais brilhante posição social, aquela que ele supunha ainda na triste
condição de escrava, exilada de sua terra, arrancada a suas afeições, palmilhando a pé
essas escabrosas estradas para ser vendida...

Aqui a voz de Carlos embargou-se pela emoção... não pôde mais continuar.

Conrado sentia também de sua parte emoção extraordinária.

Carlos falava com tal animação, e com tal tom de franqueza e sinceridade, que
Conrado não pôde deixar de dar pleno crédito a suas palavras.

– Enfim, meu amigo – concluiu ele – conheci sua filha, supondo-a livre, porém
pobre; amei-a com todas as forças de minha alma. Vim depois ao conhecimento de que
era escrava, e nem assim deixei de adorá-la com o mesmo afeto puro e respeitoso, que
sempre lhe havia consagrado. Por duas vezes me achei junto dela, e a mais audaciosa
homenagem, que meu amor ousou render-lhe, foi beijar-lhe a mão uma ou outra vez.
Hoje, que a vejo livre, rica, feliz e restituída a um tão bom pai, o meu amor é o mesmo,
minha esperança, porém, é muito fraca; bem vejo que a não mereço, e serei o último
entre tantos, e tão brilhantes competidores, que sem dúvida se apresentarão aspirando à
sua mão.
Carlos pronunciou estas últimas palavras com tal tom de tristeza e desalento,
que Conrado, comovido, se deu pressa em manifestar-lhe suas verdadeiras intenções.

– Tranqüilize-se, meu caro Carlos, – disse-lhe, com benévolo sorriso – não tem
por ora nem rival, nem concorrente algum, e mesmo que os tivesse, o preferido seria
sempre o senhor, não só por minha parte como também por ela. Melhor do que ninguém
o senhor deve saber se ela corresponde ou não ao seu amor. Desde ontem que os estou
observando e estudando a ambos, e agora, em vista das revelações táo explícitas e
sinceras, que acaba de fazer-me, era preciso que eu fosse bem destituído de penetração
para não compreender que se amam mutuamente.

A estas palavras o estudante, deslumbrado pelos fulgores da mais risonha


esperança e mergulhado em eflúvios de beatitude, esteve a ponto de arrojar-se aos pés
de Conrado e beijar-lhe as mãos; mas a própria violência de sua emoção o acanhava, e
naqueles momentos; não sabendo o que devia dizer ou fazer, quedou-se por algum
tempo silencioso, de olhos cravados no chão, e o peito a ofegar.

– O senhor me faz o mais ditoso dos homens; murmurou enfim – não sei como
testemunhar-lhe o meu reconhecimento...

– Nada tem que agradecer-me – atalhou Conrado.

– Concedendo-lhe a mão de Rosaura, não faço mais que dar cumprimento a um


enlace, que o destino tinha preparado de antemão, e ainda mais uma vez não posso
deixar de dar graças à Providência, que, restituindo-me a filha, depara-me ao mesmo
tempo para ela um esposo tão digno de minha escolha. Não serei eu que vá romper
violentamente laços tão santos e puros, que a natureza formou, e que o céu deve
abençoar. Como há pouco lhe contei, muito sofri na minha mocidade em razão de ser
contrariado em meus afetos, e a oposição caprichosa de um pai pouco sensato nos
tornou para sempre infelizes a mim e a mãe de Rosaura. Eu seria pior mil vezes do que
esse pai, se tendo passado por tão cruel e dolorosa provação, quisesse condenar à
mesma sorte a filha, que o céu preservou-me por meios tão extraordinários.

Carlos nada respondeu; tomou uma das mãos de Conrado, levou-a ao coração,
e o abraçou. A emoção embargava-Ihe a voz, e o peito lhe arfava, afogado em ondas de
felicidade. A excessiva ventura, como a extrema desgraça, quando assim vem
inesperada, desorienta e embota o espírito. Conrado compreendeu o acanhamento, em
que aquela extraordinária comoção colocava o mancebo, e julgou conveniente deixá-lo
a sós inebriar-se nos eflúvios de prazer e ventura, que lhe banhavam o coração.

– Já temos conversado muito – disse-lhe. – É quanto basta por agora; permita-


me que o deixe a sós por alguns instantes; esteja à sua vontade.

Conrado retirou-se para o interior da casa, e Carlos ficou sàzinho respirando à


larga as auras da esperança e da felicidade. Ao contrário do dia anterior, começou a
examinar minuciosamente todos os objetos, que ali existiam. Viu o que na véspera não
vira, sobre o bufete um pequeno ramalhete de jasmins e violetas, o par de luvas e o
leque, que Rosaura costumava sempre ali deixar. Respirou com avidez o perfume dos
jasmins e violetas, beijou três vezes o leque que não soube retribuir-lhe tão extremosos
carinhos, apertou as luvas ao peito, e ninguém seria capaz de traduzir o hino de amor,
que do fundo do coração entoava à senhora daqueles objetos e de seus pensamentos.

Notou também que havia na sala um magnífico piano de Erard, e sobre ele
aberto o método de Hünten.

– Oh! – exclamou ele – eis aí um bem singular capricho do destino!... Aquela,


que queriam votar à escravidão e condenar a só ouvir na senzala as cantigas do africano
ao som da marimba ou do machete, vai, de hoje em diante, interpretar as mais
admiráveis produções da arte moderna.

Nesse seu passeio estático em roda do salão, foi interrompido pelo


aparecimento de Conrado e Rosaura, agradável interrupção, que veio pôr o cúmulo a
suas deliciosas emoções. O leitor fará idéia de quão rápidas e agradáveis correram as
horas para os dois amantes. À tarde, depois do jantar, enquanto Rosaura, principiante
ainda, sentada ao piano, estudava as escalas, Conrado tomou de parte seu futuro genro,
levou-o para a sacada.

– Como vê, ela é ainda muito principiante – disse-lhe. – É necessário que eu a


eduque ainda para poder lha entregar. Veio para aqui sabendo apenas ler e escrever mal;
mas tem tal inteligência, é tão dócil, e entrega-se ao estudo com tal ardor, que espero em
menos de um ano dar-lhe uma noiva digna do senhor, e que poderá apresentar-se no
meio da mais distinta sociedade sem fazê-la corar.

Carlos não se enfadaria se pudesse desde logo desposar a menina assim


bisonha, como estava, e essa proposta para esperar mais um ano não lhe agradou muito.
– Paciência! – murmurou consigo – fui condenado a um ano de purgatório;
porém que importa, se depois disso tenho certa a bem-aventurança?...

Retirou-se ao pôr do sol, e voou para a casa nas asas do amor, da alegria e da
esperança.

Entrando em casa, fez tais tolices, brincou, cantou e saltou por tal arte, que
Frederico ficou apreensivo, julgando que suas mágoas o tinham enlouquecido. Mal
pensava ele que essas mágoas da noite para o dia se tinham transformado em júbilos
inefáveis.

Depois, porém, que o seu amigo o pôs ao fato de todo o ocorrido, o coração do
bom Frederico também transbordou de alegria, e apesar do seu sério ficou quase tão
louco como o próprio Carlos.

CAPÍTULO XXV

OS ÓBITOS

Voltemos à casa do Major Damásio, pois há muito não temos notícia do que
por lá se passa, não sabemos o que é feito da infeliz e interessante Adelaide, de seu pai,
de seu marido, e nem de sua linda e crescente prole.

É-nos forçoso dar agora, ainda que com bastante pesar, uma dupla notícia
fúnebre; mas como dizem que há males que vêm para bem, devemos suportá-la com
resignação, respeitando sempre os altos desígnios da Providência.

Oito dias pouco mais ou menos depois da cena tão venturosa, tão cheia de
emoções deliciosas, a que acabamos de assistir em casa de Conrado, a família do Major
Damásio cobria-se de luto. Morais, depois da terrível conferência, que se passara entre
ele, sua esposa, seu sogro, Frei João e Conrado, caíra gravemente enfermo. Os médicos
chamados à sua cabeceira declararam que era um caso de febre perniciosa, que então
grassava pela cidade, e pouca esperança mostraram de poder salvá-lo, e tinham razão.
Os sofrimentos do espírito, se não produzem, ao menos aumentam a
intensidade da moléstia existente, e a tornam incurável, quando as causas morais são
desconhecidas ou quando mesmo sendo conhecidas pelo próprio paciente, não podem
ser reveladas, como as de Morais, e, portanto, não podem ser combatidas.

O infeliz Morais tinha dupla razão para desesperar-se e sofrer horrivelmente;


uma legítima e natural, outra procedente de um desvario, de uma paixão insensata;
ambas, porém, inconfessáveis, porque era seu dever recalcá-las bem no fundo do
coração.

Triste situação, em que nem ao menos lhe era permitido o alívio do desabafo!
Desesperador infortúnio, cujas causas não podia revelar sem desonra para a mulher, que
tanto amara, ou sem se confessar réu de uma grande infâmia.

Para uma organização enfraquecida, e para uma alma ainda susceptível de


pundonor não era preciso mais. O desgosto, a vergonha, os remorsos, e tudo isso
reunido talvez a um insulto da febre, de que falavam os médicos, o levaram ao túmulo
em poucos dias.

Quanto ao major, sua saúde e sua razão já muito enfraquecidas pelos anos e
pelas moléstias não puderam resistir ao doloroso golpe do dia fatal da conferência.
Paralítico e inteiramente desmemoriado jazia no fundo de uma cama, e nem teve
conhecimento da morte de seu genro, a quem poucos dias sobreviveu. Adelaide e
Lucinda foram, durante os longos dias de tão sinistra e dolorosa crise, os dois anjos
tutelares, que em tudo cuidavam e a tudo providenciavam.

Conrado era minuciosamente informado, pela boa e zelosa Lucinda, de tudo


que se passava em casa do major. Depois que este morreu, julgou que era seu dever ir
visitá-la e oferecer seus serviços àquela, que tanto amara, que era mãe de sua filha,
viúva e órfã de pai, não tendo senão filhos em tenra idade, e entretanto herdeira de uma
fortuna, que se bem que reduzida pelos esbanjamentos e má administração dos últimos
tempos, devia ser ainda considerável.

Conrado seria levado a dar esse passo somente por seus pensamentos generosos
e tão consentâneos ao seu caráter, ou também embalado pela esperança de fazer
ressuscitar o seu passado? Sua filha, cuja existência ignorava, tinha ressuscitado. Teria
ele esperanças de fazer também ressuscitar como esposa á mãe de sua filha?
Eis o que em breve havemos de saber.

Adelaide recebeu a visita de Conrado com tão cordial e sincera gratidão, que
ele não hesitou em continuá-las, encarregando-se com a melhor vontade de todos os
negócios de casa.

O amor antigo e recíproco renasceu livre e expansivo como nunca. Os


infortúnios de um e outro tinham posto ao claro as nobres qualidades de ambos.

A faceirice e galanteios de Adelaide, durante a primavera de sua vida, não eram


mais do que resultado da inexperiência e irreflexão dos verdes anos, alimentadas por
uma educação mal dirigida.

Adelaide, graças ao vigor de sua organização, tendo já trinta anos, podia bem
mentir, que não tinha ainda vinte e cinco. Depois que a esperança de um novo amor
antigo lhe tinha entrado no coração, havia voltado aos anos de sua juventude, e seu ar
melancólico era temperado por um desses risos meigos e suaves, como um raio de sol
escoando-se por entre as nuvens tênues e vaporosas de uma tarde tépida e serena.

O mesmo acontecia a Conrado.

Era um homem na idade viril, mas que parecia ter dez anos de menos.

Somente um aspecto mais severo e certa beleza máscula o tornavam algum


tanto diferente do que antes era.

EPÍLOGO
OS CASAMENTOS

– Ó sinhazinha, escuta uma coisa – disse, um dia.

Lucinda, à viúva de Morais, cerca de um mês depois dos fúnebres


acontecimentos que acabamos de relatar; – não ficava agora tão bonito mecê casar com
nhô Conrado?...

– Que esperança, Lucinda! – respondeu Adelaide, suspirando. – Eu viúva,


carregada de filhos!... Demais, bem sabe, não pude ser-lhe fiel, como ele foi, e... e é
ainda....

– E é ainda?... Como é que sinhazinha sabe disso? – atalhou a preta, sorrindo


maliciosamente.

– Ora, que pergunta! – disse Adelaide, corando um pouco. – Eu casei-me e ele


até hoje é solteiro...

– Deixa dessa cisma; ele bem sabe que sinhazinha, se casou, não foi muito por
sua vontade, e foi porque correu como certo que nhô Conrado tinha morrido.

– Ah! isso é a pura verdade.

– Pois então?... Escuta, sinhazinha, vou lhe contar uma coisa. . .

– O quê? – acudiu Adelaide, com impaciente curiosidade.

– É que nhô Conrado não lhe olha com maus olhos. Paixão antiga é como
gameleira; por mais que se corte sempre fica uma raizinha, que brota de novo.

– É o que te parece, Lucinda. O interesse que mostra por mim pode não ser
mais que delicadeza de um coração generoso e compassivo. Vê-me viúva, já me quis
bem, tem dó de mim, e nada mais.

– Não é somente dó, sinhazinha; é mais alguma coisa; quer apostar?


– Deixemos de apostas; mas enfim...

– Mas enfim eu vou ver se o negócio tem jeito.

– Deixa-te disso...

– Deixa por minha conta.

Lucinda saiu imediatamente e voou para casa de Conrado.

– Lucinda – disse Conrado à velha crioula, depois de outras conversas próprias


para disfarçar e encher tempo; os pensamentos de ambos navegavam na mesma direção,
mas desejavam encontrar-se e chegar à fala sem abalroamento. – Lucinda, eu acho que
D. Adelaide deve estar em posição bem embaraçosa...

– Oh, nhô Conrado, nem falemos nisso, coitada da sinhá!...

– Falemos, sim, pois que inconveniente há em falar nisso, se não falamos para
fazer mal a ninguém? Pobre Adelaide! deve estar lutando com bastantes dificuldades!
Como há de governar uma casa cheia de tantos e tão complicados negócios, ela que
nenhuma prática tem dessas coisas?... Rica, sem marido, sem pai, moça e formosa ainda
como sempre foi, ou mais ainda, sem mãe, sem irmãos, rodeada de quatro filhinhos em
tenra idade!... Que triste isolamento!...

– É verdade, nhô Conrado; é ela sozinha comigo, pobre negra velha e cansada,
as crianças e Deus!...

– Pois eu, da minha parte, Lucinda, teria o maior prazer do mundo em adotar
como meus filhos os irmãozinhos de Rosaura.

Lucinda estremeceu de prazer, ouvindo estas palavras, cujo alcance logo


compreendeu, e calou-se.

– Pois é o que te digo – prosseguiu o moço. Entendo que fica muito mal o luto
em uma senhora tão moça e tão formosa. Consentiria ela que eu fosse despojá-la de tão
lúgubre vestidura?

– Não sei – respondeu Lucinda, com ar malicioso; – só indo perguntar.

– Pois pergunta-lhe e apressa-te em trazer-me a resposta.


Lucinda nada mais quis saber, e nem esteve por mais conversas; correu direito
para a casa.

Dois meses depois desta conversação, uma linda caleça, puxada por duas
parelhas de possantes e vistosos cavalos brancos, conduzia para a igreja catedral dois
formosos pares de noivos, que, sentados de fronte um do outro, iam receber à face do
altar.

Quem os visse não era capaz de adivinhar que eram pai e sogra, filha e genro,
que assim por modo tão singular se achavam de vis-à-vis. Um dos pares estava ainda
em todo o viço da mocidade, o outro, posto que algum tanto mais idoso, nem por isso
era inferior ao outro em beleza e elegância; por isso mais facilmente se acreditaria
serem irmãos e cunhados.

Mas o leitor já sabe quem são eles.

Conrado, que nenhum desejo nem motivo tinha para adiar seu casamento com
Adelaide, achou que era não só de bom tom, como de bom agouro, celebrar também no
mesmo dia, hora e lugar o consórcio de sua filha com o seu querido Carlos e por isso
concedeu-lhe perdão da pena de um ano de purgatório, a que o tinha condenado. fim

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