Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bernardo Guimarães Rosaura, A Enjeitada
Bernardo Guimarães Rosaura, A Enjeitada
BERNARDO GUIMARÃES
Tomo I
A Mãe
Capítulo I
– Que fazes aí, Aurélio, que estás a bocejar como quem está a morrer de sono?
... Quando todos aqui estão a tagarelar como um bando de maritacas, ficas amuado a um
canto, tu que de ordinários a garrulice em pessoa?
– Na verdade, Aurélio!... Estás tão calado, que até já me esquecia de que estás
aí. Anda lá chupa mais um cálice de conhaque, e diverte-nos com algumas de tuas
costumadas asneiras.
– Bêbedo eu! ... oh! quem dera! ... estou meditando, e neste momento procuro
resolver um dos mais graves e árduos problemas que se tem suscitado ante o espírito
humano...
– A quadratura do círculo?...
– Em todo o universo.
– Qual ouro! Quem fala em ouro nestes tempos em que o dinheiro se fabrica de
papel!
– São os dois órgãos principais do corpo humano; Menênio Agripa que o diga.
– Sim? Deveras? Então, faça-nos o favor de dizer o que é, meu grande Édipo,
decifrador de enigmas.
– É do coração.
– Ah! ah! ah! – retorquiu Aurélio, desatando uma grande gargalhada - A força
de poetizar, dizes cada asneirão!... Ah! ah! ah!...
– Mas então – continuou Aurélio no seu tom entre sério e galhofeiro – não nos
explicará o que é esse problema do coração?
– Está visto.
– Onde leste isto, meu palerma? Estás enganado; tais problemas quem os
resolve é o objeto da paixão, dizendo simplesmente: sim ou não.
– Já que vocês, com a mais impertinente curiosidade, o querem saber por força,
escutem-me com atenção. O problema, de cuja a solução me ocupo, é dos mais
momentosos e graves, o mais cheio de corolários importantes, que se pode suscitar na
presente fase de nossa vida escolástica. Dele depende o nosso porvir de amanhã, e
talvez mesmo o depois de amanhã...
– Que algazarra infernal é esta? Deixem o Aurélio dizer qual é esse maldito
problema, que lhe serve não sei se na cabeça, se no coração ou nas tripas...
– É preciso que ele o desembuche, senão vou deitar-me, que por isto já está me
cheirando a maçada.
– Pois bem. Que havemos de fazer no dia de amanhã? Eis aí o problema que me
preocupa, meus senhores, e para cuja solução requeiro o concurso de vosso espírito
esclarecido e de vossas reconhecida ilustração.
A reunião, a que assistimos, tinha lugar em uma rua que, se bem nos
lembramos, tinha o nome de Rua da Constituição, a qual, partindo do largo, onde ficam
o mosteiro e a igreja de S. Bento, dirige-se para o risonho e pitoresco arrabalde da Luz.
A casa ocupada pelos estudantes fronteava justamente com o lado da igreja, que faz face
à rua.
Eram cerca de nove horas da noite. Em uma cidade pouco mais populosa e de
pouco movimento comercial, como era então S. Paulo, já o remanso e o silêncio
reinavam por toda a parte; a rua era um deserto. As janelas da sala de jantar, onde se
dava o colóquio, abriam-se para as extensas vargens alagadiças cortadas pelo
Tamanduateí que separam a cidade propriamente dita do arrabalde de S. Brás. Essas
vargens, banhadas então por um brando luar, formavam outro deserto, mas vasto e
aprazível e pelas janelas abertas os estudantes podiam expandir as vistas e aspirar as
auras frescas e balsâmicas que se elevavam dos vargedos. Portanto, tagarelavam, riam e
gritavam à vontade, sem se importarem com as maldições e pragas dos vizinhos.
– Seja assim como queres. Embirras com esse Letes, mas bem sabes que junto a
ele estão os campos Elíseos. Se achas longe a jornada, passaremos sòmente pelo bairro
da Luz. Há nada mais aprazível e pitoresco que esse bairro?
Basta! Não falemos mais nisso! Até onde irás com tuas encantadoras
perspectivas? Elas só existem na tua imaginação. Com que cores queres tu pintar aquele
acanhado recinto? E para iludir a quem? A nós todos, e a ti mesmo, que lá temos ido
tantas vezes? Belmiro, pelo amor de Deus! Não entremos no jardim; deixemos esse
recanto, que não inspira prazer, nem melancolia, saudade, nem esperança; deixemos
esse lodoso e pútrido, essa mísera aléia de oliveiras, que não dão flor nem fruto, essas
palmeiras raquíticas...
– Com mil diabos! Nada há que te satisfaça! Pois bem, deixemos o jardim!
Vamos para o lado fronteiro, e entremos nesse silencioso e plácido recinto, cercado de
altas muralhas, que quase o escondem aos olhos do mundo. É ali o pitoresco
conventinho de N. S. da Luz. Paz angélica e olímpica serenidade parecem descer da
abóbada da pequena capela, onde infelizmente ressoam mais os cânticos piedosos das
virgens votadas ao Senhor... E aquele silêncio é tão melodioso! Faz a alma embeber-se
em contemplações místicas! Quantas flores de formosura e mocidade ali se fanaram
lentamente, à sombra do altar, para irem abrir-se de novo em primavera eterna nos
jardins da bem-aventurança!
– Ai! Meu Deus! Que carola está hoje este Frei Belmiro! – exclamou um dos
comparsas, bocejando e estirando os braços. – Se continuas com a tua maçante homilia,
vou deitar-me...
– Basta por tua vez também! – exclamou Aurélio. – Toma fôlego, meu amigo,
que esse período, em que vais, é capaz de te estafar. É melhor que digas simplesmente: -
Aquilo é uma Veneza! Ali está a Ponte dos Suspiros; acolá o palácio dos Doges; além o
Adriático... As gôndolas são cascas de palmito, as princesas, que vão dentro caipiras
papudas... Os gondoleiros alguns sapos, dos quais vai um à popa, tocando guitarra...
– Por certo, e para chamar, por um modo mais original, a atenção da bela
Condessa Guicciolini...
– As...pa...pa...puda!... Irra!
– Mas... se és incontentável...
– Que queres? – acudiu Belmiro. – Não vês como este Aurélio é difícil de
contentar? Eu, da minha parte, acho esta Paulicéia um céu aberto, um jardim de delícias.
– Tens um bom par de asas, andorinha peregrina, e podes voar para onde
quiserdes em demanda de outros climas. Mas eu, ai de mim, pobre frango nuelo! Se os
lentes embirrarem comigo, aqui mesmo serei depenado e sacrificado sem piedade...
– Boa noite, rapaziada! Então, que se faz por aqui? – disse ele entrando.
– Um convite, e a quem?
– Decerto. Nós somos seis, e com você sete; é quanto basta. É número
simbólico, e até apocalíptico – observou Aurélio. – Mas da parte de quem o convite, e
para quê?
– Nem uma, nem outra coisa – replicou o Aurélio. – Estávamos aqui a discutir o
seguinte problema, que eu mesmo havia proposto: Que fazer do dia de amanhã? E ainda
não tínhamos achado uma solução que prestasse. O teu convite veio a resolvê-lo. Por
conseguinte, um brinde ao Major Damásio. Viva o Major Damásio!
Agora, meu bravo leitor, não há remédio senão irmos com os estudantes até a
chácara do Major Damásio. A comitiva é alegre e numerosa; consta de uma troça de
sete acadêmicos de anos superiores, todos inteligentes, espirituosos e galhofeiros, e cada
qual mais desmiolado. A companhia é excelente, e nos servirá para disfarçar o enfado
do caminho através de um dos mais solitários e menos poéticos bairros da antiga
Paulicéia.
Apenas se tem avançado uns quinhentos metros por entre os matagais, abre-se
sùbitamente um largo horizonte, onde a vista, até ali encarcerada entre estéreis e
tristonhas charnecas, expande-se livremente pelas extensas e risonhas lesírias alagadas
pelos transbordamentos do Tietê campeando ao longe, no fundo do vasto painel, o
imenso cordão da serra da Cantareira.
Na falda de uma colina, que se eleva sobre esses grandes vargedos alagadiços,
está situada a chácara do major, com sua casa térra, mas bonita, alegre e asseada. Por
detrás dela, estende-se o vasto pomar de jabuticabeiras, laranjeiras, bananais, enfim uma
floresta profunda de árvores frutíferas indígenas e exóticas, que vai terminar na orla dos
vargedos, sendo deles separada por uma sebe de espessos espinheiros.
Era ele um homem maior de cinqüenta anos, de estatura regular, magro, porém
de compleição robusta, refeito e espadaúdo. Apesar da idade, tinha dentes alvos e sãos,
e os cabelos ainda negros, luzentes e corredios, como os dos indígenas. Tinha feições
regulares e fisionomia agradável, onde todavia ressumbrava, por vezes, certo ar de feroz
desconfiança.
Por este pequeno esboço, bem se vê que devia circular-lhe nas veias não
pequena dose de sangue tibiriçá.
Era viúvo de uma mulher pobre e de baixa extração, que dizem fora mui linda, e
com quem se casara por amor. Dizia-se também, pela boca pequena, que a sogra do
major fora cativa, e que a esposa tinha sido libertada na pia batismal.
Não o podemos asseverar, e nem tampouco provar com documentos, mas como
este boato muito influi no desenvolvimento da presente história, força é consigná-lo
aqui. A mulher do major morrera ainda jovem, deixando ao inconsolável esposo um par
de filhos, dos quais o varão morreu em tenra idade.
Sua filha e sua chácara, porém, absorviam quase toda a sua atenção, constituíam
seus principais cuidados, e cumpre notar que ambos mereciam bem esses desvelos. O
jardim era notável, não só pela profusão e imensa variedade de flores raras e formosas
que o cobriam, como principalmente pela aprazível posição em que se achava colocado,
como um belvedere, dominando o pomar, por cima do qual a vista se estendia ao longe
por vastos horizontes.
Consistia ele em uma área quadrada de cerca de dez metros de face, dividida em
canteiros dispostos com arte e agradável simetria. Dois bonitos caramanchões cobertos
de trepadeiras ornavam-lhe os ângulos, como dois torreões de verdura e flores.
Quando ali se achava em seu jardim, ao lado de sua filha, contemplando suas
flores e seu vasto pomar, julgava-se tão feliz e poderoso, como um sultão nos palácios
de Estambul ou Bagdá.
É quanto basta por agora saber a respeito do major e de sua chácara. Quanto à
filha, em breve trataremos de esboçar o seu retrato, pois o major não tarda a chegar, e já
sabemos quanto o velho paulista é desconfiado. Portanto, sobre este particular, por ora
chiton!...
Alguns minutos depois que o major se retirara, entrou um escravo trazendo uma
ampla bandeja carregada de copos, facas, colheres, açúcar, limões azedos e uma garrafa
de aguardente, preparos indispensáveis para um ponche frio, e tudo depositou sobre a
mesa. Depois retirou-se sem dizer palavra, como quem diz: arranjem-se. Isso mesmo é
que os estudantes queriam.
– Vamos a ele – acudiu prontamente Belmiro. – Com o calor que faz, nada
podia vir mais a propósito.
– Tem paciência – replicou o Azevedo – O major não pode tardar. Sem dúvida
está a dar algumas providências para nosso tratamento, e foi avisar a filha, a fim de que
nos seja apresentada de um modo condigno e próprio de sua alta hierarquia.
A palestra foi interrompida neste momento pela voz estridente do major, que já
de longe vinha bradando no interior da casa.
– E D. Adelaide? Ainda não nos apareceu! Não vai conosco? – ousou perguntar
o Azevedo.
– Oh! vai sem dúvida – respondeu o major. – Lá está no jardim à nossa espera.
Capítulo III
Adelaide no Jardim
– D. Adelaide – disse Azevedo – por muito favor lhe peço, deixe-me ficar onde
estava. A senhora, neste jardim, é a rainha das flores; aquele assento é um trono, que lhe
convém divinamente, e dele não deve levantar-se para ninguém.
– Oh! Sr. Azevedo, que quer dizer isto? O senhor me confunde; não mereço
tantas honras – murmurou Adelaide , baixando os olhos, constrangida.
– Bravo! Andem lá com isso! Quero ver qual tem melhor gosto – exclamou o
major que, algum tanto afastado, assistia todo risonho a este tiroteio de galanteria.
Depois o grupo se dispersou pelo jardim, e houve então tal colheita e oferta
recíproca de flores, que era um nunca acabar. Adelaide de sua parte não se cansava na
faina, e verdadeira borboleta esvoaçando de canteiro em canteiro, ela só fazia face aos
sete, oferecendo a este um botão de rosa, àquele uma não-me-deixes, a outro um suspiro
ou uma saudade, e assim por diante, de uma maneira que, no fim de alguns minutos os
pobres rapazes já não sabendo onde acomodar tantas flores as iam tirando fora às
escondidas.
Enquanto eles se enlevam em tão frívola ocupação, vamos nós, caro leitor, tratar
de conhecer mais de perto e de modo mais íntimo aquela que é alvo de tantas
homenagens e adorações.
Não era Adelaide uma beleza completa e sem senão, mas tinha um rosto tão
gentil e fisionomia tão sedutora, que a custo o mais hábil e delicado pincel poderia
apanhar-lhe os traços e a expressão. Era um desses tipo singulares, que atraem e
fascinam por sua encantadora originalidade. Era de porte alto, bem feita e garbosa; de
feições era engraçada e bonita, como bem raras se encontram. Grandes olhos, de uma
negridão e brilho incomparáveis, abriam-se suavemente entre longos cílios da mesma
cor, como dois lagos, onde se espelhavam o amor e a voluptuosidade. A tez tinha a cor,
que o leitor pode imaginar seria a da filha de uma gentil mulata e de um belo e robusto
descendente dos Tibiriçás; era morena, mas de uma matiz suave e transparente, através
do qual se via animar e colorir-lhe as faces o sangue ardente das duas raças de que
procedia.
A farta madeixa, que ela deixava em parte cair como uma cascada espadanando
pelas nédias e bem torneadas espáduas, nem era por demais encaracolada, nem lisa e
corredia, mas debruçava-se em largas e graciosas ondulações, que lhe desciam até
abaixo da cintura. A boca, não mui pequena mas admiravelmente delineada, era
formada por dois lábios rubros e carnudos do mais voluptuoso relevo. Um tênue e quase
imperceptível buço, que lhe sombreava o lábio superior, dava-lhe ainda um realce
indefinível.
Um sorriso dessa boca era um presente do céu; um beijo... oh! isso seria uma
ventura, com que nem mesmo ousaria sonhar o mais audaz de seus adoradores.
Na bem proporcionada e delicada conformação das mãos e dos pés, bem como
na finura do talhe e na elegância do porte, era ela também representante dos mais belos
e genuínos tipos europeus. Dessa tríplice aliança de raças tão diferentes resultou esse
misto singular e encantador, que teve o nome de Adelaide.
Assim o bom major, parte por ignorância e inexperiência, parte por um descuido
e condescendência indesculpáveis, deixava desenvolver-se no seio daquela tenra e
melindrosa planta, fecundo gérmen para muitos transvios, decepções e amarguras pelo
decurso da vida.
Adelaide tinha mestres de francês, de música, de desenho e de italiano, e de
tudo isso já sabia alguma coisa pela rama.
Nunca porém tivera uma aia, ou uma parenta velha, a quem consagrasse afeição
e respeito, e que lhe dirigisse os passos nesse quadra crítica e delicada em que a mulher
passa da infância para a puberdade, e entra, por assim dizer, em um mundo novo e
desconhecido, cheio de atrativos e miragens enlevadoras, onde os abismos ocultam por
entre flores.
Quanto ao desenho, já sabia fazer dois corações traspassados por uma flecha,
duas pombas beijando-se, e debuxava e coloria uma rosa com suas folhas e botões de
modo a não confundir-se com outra qualquer flor.
Tinha então Adelaide dezesseis anos. Estava nessa época da vida em que a
imaginação de uma moça rica e desocupada paira por mundos ideais, só enxergando
ouro e rosas no horizonte encantado do porvir, e em que o físico, tanto atingido à
plenitude de seu desenvolvimento, entrega-se indolente às vagas impressões de mórbido
e voluptuoso sensualismo.
Seria bom o seu cálculo? Andaria ele bem avisado com tal procedimento?
Não sei; a continuação desta história se encarregará de dar uma resposta a essa
pergunta.
Capítulo IV Entre as Jabuticabeiras
– É justo – acudiu Aurélio. – As flores voam nas asas do vento, e são sòmente
cor e perfume; mas os frutos têm também a polpa e o sabor. As flores duram um
momento, e são como a beleza, de que fala o poeta:
Et rose, elle a vécu ce que vivent les roses, L’espace d’un matin. E Rosa ela viveu da
rosa a vida, O espaço de uma aurora.
Jabuticaba, ela viveu sòmente Como a jabuticaba; Foi comida e deixou só a semente;
Assim tudo se acaba.
Esta paródia, que foi aplaudida com estrondosas gargalhadas, não agradou
muito a Adelaide e nem ao Azevedo.
– Ora Belmiro! – disse enfadado. Para que estragardes com tua tradução
sacrílega e picaresca a linda estrofe do poeta! Lembra-te que há também flores
perpétuas e sempre vivas; e aqui mesmo neste jardim posso mostrar-te uma –
acrescentou, olhando significativamente para Adelaide –
E não é como a rosa, que, de vida, Só tem uma manhã; De dia em dia surge mais
crescida, Mais bela e mais louçã
– A elas! – bradou o major, abrindo uma cancela, de onde por alguns degraus se
descia para o quintal de legumes e hortaliças, no fim do qual se estendiam densas e
copadas filas de jabuticabeiras, pelas quais os estudantes se enfiaram de tropel.
– Oh! meu major! – exclamou o Oliveira. – Nisso não consentimos nós; seria
privar-nos do melhor da festa.
– Mas isso não pode ser – interveio Adelaide, que, nesse momento, entrava no
pomar, acompanhada pelo Azevedo. – Os senhores vão se pisar, amarrotar e rasgar a
roupa, e mesmo podem cair... Nada! É melhor que o moleque vá apanhar as frutas; ele
já está acostumado.
– E nós também, minha senhora – atalhou Belmiro. – Qual de nós aqui que não
terá trepado em uma jabuticabeira?
– Eu que aqui estou – acudiu Azevedo. – Nunca trepei e nem quero trepar; não
sou macaco.
– Não és dos grimpantes, e antes queres pertencer à família dos répteis! Tanto
pior para ti; não podes elevar-te como nós, que vamos nos avizinhar das regiões
celestes. Se o Senhor major nos dá licença, tiramos as sobrecasacas, e vamos acima.
– Façam como entenderem, meus caros, todo este pomar hoje lhes pertence.
Estejam em plena liberdade. Mas olhem cá! Reservei para os senhores aquela
jabuticabeira que ali está; ainda ninguém apanhou nela uma só fruta; está carregadinha,
e são doces como favo de mel.
– Obrigado pela fineza, meu caro major; mas há de permitir-nos que ofereçamos
à senhora sua filha as primícias desses frutos deliciosos.
– Que a senhora está aqui como que representando o papel de Eva no Paraíso, e
está me parecendo que aquela é a árvore do fruto proibido.
– Ora! Ora esta, homem! – exclamou o major, rindo-se muito. – Esta nem ao
diabo lembrava. Mas, meu doutor, acho que nenhum daqueles bons moços se parece
com a serpente que enganou Eva.
– É uma das personalidades do Diabo, minha senhora; foi nessa figura que ele
tentou Fausto, para que este tentasse Margarida, como tentou a Eva na figura da
serpente. É uma galante história; se a senhora quiser lê-la...
– Oh! pois não; gosto muito de ler romances... Foi o senhor mesmo que compôs
isso?
– Goethe!... Que nome extravagante!... Mas o senhor fala muito mal dos seus
camaradas...
– Sim, minha filha – disse o major – está claro que o Sr. Azevedo não podia
trazer à nossa casa senão pessoas de distinção.
De distinção bem podiam ser eles; mas à exceção talvez desse pobre Belmiro,
contra o qual tanto se assanhava o humor satírico de Azevedo, não podemos asseverar
que tivessem a consciência muito escrupulosa, e devemos antes crer que se não eram
dos mais devassos e libertinos, qualquer deles era bem capaz de levar um namoro ou
uma intriga amorosa até as últimas conseqüências.
– Então, Azevedo, que quer dizer isto? – dizia-lhe ele em pé, de braços cruzados
diante do colega, que se achava reclinado sobre a relva ao lado de Adelaide. Que viste
cá fazer? Ou és um grande preguiçoso, ou um moleirão sem préstimo algum. Se não
fosses tu quem nos veio abrir as portas deste paraíso, não provarias uma só fruta;
quando muito te daríamos as cascas. Ora, não faltava mais nada! Nós a esfolarmos as
mãos e a torcermos o pé nos galhos da jabuticabeira, e tu estendido aí à sombra sobre a
fresca relva ao lado da Senhora...
– Adelaide da Silva não senhor – atalhou a filha do major – esse não é meu
nome, Sr. Azevedo; chamo-me Adelaide Celestina Bueno de Aguiar.
Os outros estudantes também de sua parte faziam supremos esforços para não se
rirem abertamente da ingênua e singular interpretação, que a moça havia dado ao verso
de Virgílio, onde Azevedo com tanta habilidade soubera encaixar de improviso o nome
de Adelaide. Nada disseram, mas Adelaide, pelos olhares maliciosos que trocaram entre
si, logo compreendeu que havia dito alguma tolice; corou muito, mas não se enfadou,
nem se mostrou desapontada.
– Pois seja assim, que lhes ficarei obrigada... Mas olhem! As frutas vão se
acabando; é preciso novo sortimento.
E tinha razão a moça, pois não se pense que aquele grupo se ocupava só em
falar; ao passo que engoliam a polpa da jabuticaba, deitavam fora também cascas e
caroços de mistura com toda essa torrente de toleimas e disparates que acabamos de
ouvir, além de outros muitos, que omito por brevidade. Em vista daquele pedido, ou
antes ordem da filha do major, parte do grupo, que a rodeava, se afastou, ficando junto
dela somente o Azevedo e mais dois colegas.
Belmiro não podia tolerar de sangue-frio que Azevedo continuasse a ficar a sós
com a filha do major; achava isso revoltante e escandaloso. O pequeno sinal de
predileção que ela lhe havia dado, provando em primeiro lugar das jabuticabas que tinha
colhido,
– Tens razão, Belmiro – replicou Oliveira. – E como lá fica ele tão ancho e
cheio de si e dar boas gargalhadas, talvez zombando de nós, e fazendo-a rir a nossa
custa? Isto com efeito é custoso de aturar-se.
– Ora, deixem-se disso, meus caros! - interrompeu o Dias com um fleugma, que
fez raivar a Belmiro. – Para que essas ciumadas? E que temos nós com o namoro do
Azevedo? Deixá-los; já são conhecidos antigos, e se ela lhe dá preferência é fortuna
dele. Viemos nós aqui para nos divertir, passear e comer jabuticabas, ou para namorar a
filha do major e disputá-la com Azevedo?
– Ora bravo, meu Dias! Essa é impagável! – exclamou Belmiro, com azedume.
– Pelo que vejo, viemos aqui como cortesões de um rei para os servir e render
homenagem a ele e à sua dama?... De certo cá não viemos para requestar a filha do
major, mas também hás-de compreender que não nos fica muito airoso dar azo e
proteção ao namoro do Azevedo.
– Como?...
– Ora como!... Nada mais fácil. Somos seis contra ele, e nada custa dividirmo-
nos em dois grupos, que se revezem de maneira que ele nunca tenha ocasião de achar-se
a sós com ela. Assim, uns ficarão fazendo-lhes companhia, enquanto outros trepam às
jabuticabeiras...
– Pois eu cá – disso o Oliveira – quero ser um dos que ficam; a falar com
franqueza, prefiro mil vezes ficar conversando com a menina, do que ir apanhar, e
mesmo comer, as mais doces jabuticabas do mundo.
– Mas isto não ode ser, meus amigos! – exclamou Belmiro, com impaciência. –
D. Adelaide está à espera de frutas, e nós aqui a turrar como crianças por uma
ninharia!...
– Também não vou, visto que todos ficam – respondeu secamente o Oliveira. –
Não sei qual será mais bobo, se quem lá sobre, ou quem cá fica embaixo. Já cumprimos
para com a filha do major o dever de cavalheiros delicados. Agora, os moleques do
major que apanhem frutas para nós todos.
Cumpre reconhecer que era mui natural e justificável o procedimento dos outros
estudantes para com Belmiro. Este, bem como Azevedo, já tinha merecido de Adelaide
sinais de predileção, próprios para inspirar-lhes sonhos fagueiros e esperanças cor de
rosa. O mesmo não acontecia aos outros, os quais, à exceção talvez Silva, que tanto na
figura como no temperamento parecia um batavo pouco sensível aos encantos da beleza,
e do Dias, filósofo pachorrento, para quem o mais simples galanteio era coisa
incompreensível, os outros todos sentiam também a magnética influência dos sedutores
atrativos da gentil paulista. Não era, pois, de esperar que se prestassem de bom grado a
favorecer aqueles a quem a sorte já se ia mostrando tão propícia e risonha.
Este estado de colisão e perplexidade não durou muito tempo, veio pôr-lhe
termo o incidente inesperado que vamos ler no capítulo seguinte.
Capítulo V
O pai era um tenente do exército, reformado, baixo e algum tanto bojudo, e que
só pelos formidáveis bigodes grisalhos revelava a classe a que pertencia. Como
representa um papel quase nulo nas cenas, que vamos descrevendo, pouco no
ocuparemos com sua pessoa; entretanto, sempre diremos que era viúvo, que sabia muito
bem comer, beber, dormir e ir pontualmente receber à boca do cofre o seu soldo de
tenente que – diga-se em abono a verdade – despendia honestamente com a manutenção
de sua família, a qual constava unicamente dele e suas três filhas. Na sociedade quase
nada dizia, contentava-se com prestar atenção e aplaudir, com seu riso alvar, a tudo que
se dizia.
Enfim, esse novo reforço de gente veio muito a propósito para animar a
companhia, cujo contentamento e bom-humor se ia arrefecendo consideravelmente por
falta de moças, como se extingue o lume no fogão por falta de lenha, ou na candeia à
míngua de óleo. Em verdade uma só moça e um velho, aliás um folgazão, afável e
obsequiador, mas excessivamente preocupado com os cuidados de sua quinta, não
podiam distrair os sete estudantes, a maior parte dos quais começavam a sentir-se
bastante aborrecidos e contrariados. Adelaide, de sua parte, fazia boa cara a todos eles,
mas temos visto sua companhia e conversação quase monopolizados pelo Azevedo, e
ardentemente cobiçada pelo Belmiro, enquanto os outros nenhum interesse nem vontade
tinham para disputar aos dois contendores os sorrisos e boas graças da gentil dona da
casa.
Assim estiveram por alguns minutos os sete estudantes, em pé, em roda das
quatro moças sentadas sobre a relva; eles mudos quase imóveis, e elas rindo-se,
mexendo-se e tagarelando com amável garridice e desembaraço; eles tolhidos e
acanhados sem ousarem interromper aquela orquestra de passarinhos; elas trêfegas e
descuidosas sem mostrarem perceber que quatorze olhos e quatorze ouvidos as
escutavam e contemplavam.
– Então, não se come frutas?! – bradou ele, parando a dez passos de distância. –
Antes querem conversar e brincar do que comer jabuticabas! Ora! ora!... Isso é uma
vergonha!... Meus amigos, aqui estão estas moças, minhas vizinhas, que também
gostam de frutas.
– Meu tenente – disse-lhe – estes moços são verdadeiros quatis para treparem às
árvores; ainda há pouco os vi fazendo proezas lá por cima. Eles nos hão de trazer fruta
com fartura. Enquanto isso, vamos acabar de ver nossos enxertos.
– Os senhor está sofrendo? – perguntou uma das moças, assustada com essa
repentina mudança de cor.
– Não, senhora – balbuciou o pobre moço – mas... mas... as senhoras por que
não... não se deixaram ficar lá com... D. Adelaide? Nós lhes levaremos as frutas...
– Pois eu vou fazer um tiro tão normal e certeiro, que por força há de penetrar –
bradou o Aurélio. – Lá vai!...
– Pois é somente por aí, minha senhora, que estas balas podem penetrar. Perdoe-
me se errei o ponto.
É verdade que era ele, entre todos os seus companheiros, talvez o menos
favorecido pela sorte e pela natureza, para atrair a atenção de uma donzela formosa e
rica, elegante e pretensiosa. Posto que não disforme, não era bonito; como estudante
pobre que era, não podia trajar-se com a elegância e primor de seus companheiros; de
mais a mais era sumamente ingênuo e acanhado, e mui pouco afeito a esses jogos do
espírito, a esses galanteios delicados e lisonjeiras frivolidades, que tanto agradam às
moças. Todavia, mereceu e atraiu a atenção de Adelaide. Perspicaz como ela era, e só
desejando adorações, tinha percebido nos olhos do mancebo a profunda impressão que
sua beleza lhe deixara no espírito. O Azevedo já era conhecido antigo, e posto que ela,
já como por hábito, prestasse ouvidos complacentes a suas homenagens e galanteios
alambicados, parecia contudo entrever no fundo deles um não se que de malicioso e
sardônico, que não deixava de incomodá-la. Entretanto, cuidava soletrar no olhar
profundo e luminoso de Belmiro os indícios de uma paixão sincera, ardente e
impetuosa. E não se enganava totalmente; ao vê-la, o pobre rapaz sentira nalma uma
dessas perturbações que atordoam, e que constituem os pródromos de um verdadeiro
amor. Cônscio porém de sua fraqueza para tão alta conquista, jurou de si para si que
faria tudo quanto estivesse a seu alcance por estorvar os colegas, que ousassem render
homenagens por demais significativas à formosa filha do major. Ora, Adelaide, que
aceitava indistintamente o culto de todos eles, e só desejava ver-se rodeada de
adoradores, vendo que os outros estudantes, à exceção de Azevedo, não se mostravam lá
mui solícitos e assíduos em fazer-lhe a corte, não quis cortar o vôo às nascentes
esperanças de Belmiro. Já a vimos entrançar no cabelo o cravo caboclo, que ele lhe
ofertara. Esse pequeno sinal de predileção fez subir a um grau elevadíssimo a febre
amorosa do pobre moço, dando-lhe certa audácia e desembaraço, que lhe não era
natural.
– Para onde?
– Para casa.
– Nessa não consinto eu... Não lhe estou mandando apanhar frutas; pelo
contrário, quero que fique aqui. Se não fosse o senhor, eu nem teria com quem
conversar. Não vê como aquelas caipiras lá se foram também como umas tontas?
– Oh! Sr. Azevedo, nem tanto! Acho que é uma delicadeza da parte deles...
– Oh! diz que sou uma flor! – replicou Adelaide, encarando o Azevedo com
adorável sorriso, e mostrando na graciosa boca um lírio entre rosas. – É muita lisonja, a
que flor me compara então?
– A todas e a nenhuma.
– É essa que está em seus cabelos; é ela que melhor simboliza, não na cor, mas
na graça e no perfume.
– Mas, minha senhora, essa flor é bem linda, e demais é tão americana...
– Isso pouco me importa; não gosto dela – replicou Adelaide com um momo
desdenhoso.
– Ah! minha senhora... perdão. Nunca pensei que uma flor quisesse mal a outra
flor a não ser por ciúme. Entretanto, se a senhora quisesse dar-me essa desgraçada flor,
que incorreu em seu ódio, eu a guardaria eternamente sobre o coração, só porque
pousou em sua cabeça.
– Está às suas ordens: dê-lhe o destino que quiser – disse Adelaide, entregando
a flor a Azevedo e voltando o rosto com o mais expressivo desdém
Belmiro ignorava que Adelaide, por um preconceito, que desde a infância lhe
fora imbuído por seu pai, menosprezando seu encantador morenismo, tinha fumos de
branquidade e fidalguia, a ponto de tomar como injúria a mais leve e involuntária
alusão, que pusesse em dúvida a pureza imaculada de sua árvore genealógica.
Mas o Azevedo, que, como nós, já conhecia a balda da família, maligno como
era, aproveitou-se habilmente do incidente do cravo caboclo para irritar o amor-próprio
da moça contra seu pobre colega.
Capítulo VI
– Abaixo, meu povo – gritou Azevedo, com voz esganiçada. – O major nos
chama... São horas de jantar.
– Ora vejam lá quem quer nos acompanhar! – bradou Belmiro com mau-humor,
de cima da jabuticabeira. – Espera, Azevedo; espera que lá vamos já neste momento.
– Que tombo, meu Deus! Coitado!... – exclamou a moça, toda consternada sem
dar atenção às palavras de Azevedo. – Deve se ter pisado bastante, não, Sr. Belmiro?
Dizendo isso, o pobre rapaz tentou em vão dar alguns passos, mas o pé
magoado não lho permitia, e ele se viu obrigado a encostar-se ao tronco da
jabuticabeira.
– Ora, valha-me Deus!... Que foi isso? Santa Virgem! – bradou o major,
chegando todo aflito e consternado ao lugar do sinistro. – Eu bem lhes tinha dito que
deixassem o moleque ir apanhar as fruta e se deixassem de estripulias... Mas... o que
querem? É isso... Imprudência de rapaziada...
– Major, por quem é, não se aflija tanto! – disse Belmiro. – Foi um tombinho
insignificante. Apenas parece-me que tenho o pé esquerdo algum tanto magoado.
– Não creia, papai – atalhou Adelaide. – Olhe como está pálido; ele que ainda
agora estava corado!
– Nada! Não creio. O senhor pisou-se muito; vamos já levá-lo para casa. Eu o
ajudo a caminhar. Vamos.
Dizendo isso, a moça oferecia o braço ao estudante.Com que prazer não ia ele
aceitar tão grata e carinhosa oferta... Mas não o consentiu o casmurro do major.
– Está enganado, meu caro. Já fui muladeiro, como sabe; já levei muito tombo,
e tenho tratado um sem-número deles em meus camaradas e peões, e sei o que faço.
Deixe o moço por minha conta; mas há de me ficar em casa hoje, e amanhã está pronto
para ir à aula.
Daí a instantes Adelaide entrou, trazendo, com suas próprias mãos, a Belmiro
um copo de vinho com água e açúcar.
– Mil graças, minha senhora – disse Belmiro depois de ter empinado o copo de
sangria. – Júpiter nunca bebeu mais delicioso néctar, e nem por mãos de mais
encantadora Hebe.
– E isso que te importa, Azevedo? Estás com inveja? Não tens razão; a cada um
a sua vez, meu amigo. Ainda há pouco, eu também tinha bastante inveja de ti, quando lá
no pomar comias as frutas colhidas por nós, e escolhidas, lavadas e oferecidas, pelas
mãos delicadas de D. Adelaide. Bem sei que não passo de um pobre diabo; mas tem
paciência, meu caro! Não posso deixar de considerar-me um deus, quando tenho a
fortuna de ser servido pelas mãos de um anjo.
Esta réplica de Belmiro foi muito festejada e aplaudida pelos estudantes, menos
por Azevedo, que mordeu os beiços, e pelo major e as moças, menos por Adelaide, que
corou e baixou os olhos.
– Meus senhores – disse o major – nada de galhofas com doentes! Deixemos o
Sr. Belmiro em sossego, enquanto nós vamos jantar. Ele também deve jantar; mas vou
mandar trazer para aqui mesmo sua comida.
– Oh! major, para que tanto incômodo? Encostado ao braço de qualquer posso
ainda pôr-me em pé e ir até à sala de jantar.
– Estás doido, meu amigo? Não deve hoje mexer-se daí, se quer sarar depressa;
é o que lhe digo, vamo-nos, meus senhores!
Neste ponto de suas graves meditações, foi Belmiro interrompido pela chegada
de sua refeição, que com grande pesar seu, em vez de lhe ser apresentada por sua
encantadora Hebe, lhe foi trazida em uma grande bandeja por uma preta velha, que se
retirou sem dizer palavra.
O jantar esteve alegre e folgazão, como era de esperar entre convivas de tão
excelente humor, sentados em frente de quatro lindas raparigas, tendo ao lado o major,
que as animava com as palavras e o exemplo, fazendo desaparecer qualquer sombra de
acanhamento. A conversação foi-se animando ao tinido dos copos e da baixela de prata
e porcelana; os motejos, as pilhérias, as gargalhadas expandiam-se folgadamente em
derredor da mesa recheada de saborosas iguarias e vinhos preciosos. Vieram depois os
versos, as anedotas, e por fim fizeram-se numerosos brindes ao som de coretos, que os
estudantes entoavam à goela solta em honra do major, do tenente André e da formosura
das náiades presentes.
– E eu também, mana – disse outra - quase rebentei para não soltar uma risada.
Ele fez uma cara mesmo de cachorro que quebrou panela!!...
Lá de seu quarto, Belmiro, ainda que não pudesse ouvir tudo distintamente,
compreendeu maravilhosamente o sentido da altercação.
Viera-lhe à mente a caprichosa idéia de conversar a sós com Belmiro, e ela era
moça de têmpera a não deixar de satisfazer a um dos seus menores caprichos.
Conversara a sós tanto tempo com Azevedo, que muito era que conversasse também
com Belmiro! Ente o primeiro serviço e a sobremesa achou o pretexto para retirar-se da
mesa, e disfarçadamente dirigir-se ao quarto do enfermo. Se dissimulou seus passos,
não foi com receio do pai, que cheio de complacência e confiança não lhe tolhia o
menor movimento em casa, mas para furtar-se às vistas maliciosas e escrutadoras dos
estudantes, e principalmente de Azevedo, que a não perdia de vista.
– Pois bem, a senhora foi a causa, inocente, é verdade, do tombo que levei!
– Que me diz! Eu? Eu, a causa do seu tombo? Exclamou Adelaide, recuando um
passo.
– Sim, a senhora! Mas não se enfade comigo, e não se aflija com tão pouco.
Esse tombo foi para mim uma fortuna.
– Eu lhe explico tudo, minha senhora. Quando a senhora ficou a ouvir as prosas
de Azevedo, enquanto eu e meus companheiros subíamos às jabuticabeiras, eu não os
perdia de vista, e ficava a morder-me de inveja do meu companheiro. Mas quando a
senhora, tirando dos seus cabelos a flor, que eu lhe tinha dado, a entregou ao Azevedo,
não fui mais senhor de mim, perdi a cabeça, não sabia onde punha o pé, e querendo
desde, pises em falso e dei comigo em terra!...
– Ah! meu Deus! mas eu não podia adivinhar, e nem eu me lembrava que foi o
senhor que me deu semelhante flor.
– Escute ainda. O Sr. Azevedo pediu-me a flor que eu trazia no cabelo. Quando
eu a tirei da cabeça, e vi que era... que era...
– Um cravo caboclo?
– Sim, senhor. Por que razão o senhor escolheu para mim uma flor tão feia?
– Feia, minha senhora? Não lhe acho razão. Na cor, na forma e no perfume me
parece uma das mais mimosas.
– Perdoar eu, minha senhora? Perdoar o que, se só tenho motivo para render-lhe
infinitos agradecimentos? Se não fosse esse tombo, teria eu a ventura de estar aqui com
a senhora recebendo tantas provas de interesse e de... de... compaixão?
Dizendo isto, o estudante tirou do vaso uma rosa, que entreabria com todo o
viço e frescor, e a entregou a Adelaide, depois de ter deposto nas pétalas da flor uma
beijo soberanamente bucólico. Adelaide prendeu-a cuidadosamente nas tranças, e
despediu-se com um sorriso, que até hoje não sabemos que expressão tinha.
Nestes beatíficos devaneios, veio interrompe-lo o Azevedo, que lhe entrou pelo
quarto com ar zombeteiro e triunfante.
Capítulo VII
Sem Título
– Olé! meu sonso!... Então, como vais desse pé? – disse Azevedo, sentando-se à
beira da cama. Anda lá! bem feito!... Quiseste ficar assim uma espécie de acrobata para
agradar às meninas, e eis o que te aconteceu! Objeto de riso e compaixão... Deves
reconhecer que estás fazendo uma triste figura!...
– Manhoso!...
– Não dói nada, maganão... Pensa que não te compreendo? Tu te deixaste cair
para te tornares objeto de atenção, visto que a tua figura não é – aqui entre nós, não te
agastes comigo – não é das mais atrativas.
– Que me importa! Essa pode rir-se de mim, ou para mim. Em que tudo me dá
gosto. Adoro-a, porque é uma divindade. Só a presença dela é para mim um gozo
inefável. Mereço-lhe compaixão? É quanto me basta.
– Ah!... e por isso caíste! Mas não penses que cá hás de pernoitar sozinho, para
te entreteres a teu gosto com a tua divindade. Já tomei minhas medidas. Cá fico para te
fazer companhia. Já falei ao major, que aprovou a minha idéia. E assim ficas tu, e eu
também fico; tu aleijado e desprezado, e eu querido, são e idolatrado...
– Ciumento? Eu ter ciúmes de ti? Que fatuidade! Não compreendes que tua
enfermidade é apenas um pretexto, de que me prevaleço, para ficar também junto dela?
À noite, terás ainda o prazer de presenciar nosso namoro, como já presenciaste de dia. O
primeiro foi talvez a causa de perderes o equilíbrio e destroncares o pé. O segundo te há
de curar; é cura homeopática.
– Oh! se tenho... Pois não viste? E se queres uma prova, aqui está – disse
Azevedo, tirando do bolso um cravo caboclo, que apresentou bem perto dos olhos de
Belmiro.
– Pois que tem de mau essa flor? É tão bonita, e parece-se tanto com ela!...
– Fica sabendo, meu simplório, já que não tens penetração para coisa alguma,
que D. Adelaide, a despeito de sua cor sofrivelmente tisnada, tem fumos de branquidade
e fidalguia; acredita piamente que seu sangue não tem mescla alguma de africano nem
caboclo... Se não és de todo idiota, bem podes compreender que só a palavra – caboclo
– lhe dói mais nos ouvidos do que te dói esse pé...
– Não sabias, mas bem o sei eu, e não há em S. Paulo quem o ignore. Vou agora
pôr-te ao fato da linhagem do nosso anfitrião. O major é caboclo quase puro-sangue,
como bem está revelando o seu todo. A respeito de sua procedência, só se sabe que é
natural de Curitiba e filho de um cigano, e nada mais. Quanto ao lado materno, a estirpe
de D. Adelaide procede ainda de mais baixa estopa. A mãe dela, de que o major há
muito tempo é viúvo, segundo a voz geral, não passava de uma linda mulata, filha de
uma negra mina, e foi alforriada na pia batismal.
– O que estás a dizer, Azevedo, não é possível. Tudo isso pode ser mera
invenção de alguns desafeiçoados.
– É a pura verdade. Todo o povo de S. Paulo sabe muito bem disso, só o major
não quer que isso assim seja. Quanto à filha, é bem possível que realmente ignore sua
ilustre genealogia, que o pai terá tido todo o cuidado de ocultar-lhe. O major pretende
ser descendente de Bartolomeu Bueno e parente chegado dos Andradas. Hás de reparar
que não fala neles sem dizer – o primo José Bonifácio, o primo Antônio Carlos, etc.
Essa balda de fidalguia é nele de tal melindre, que ai! daquele que com a mais ligeira
alusão, mesmo sem querer, a tenha ofendido!...
A estas palavras, Belmiro a principio ficou aterrado; mas imediatamente
lembrou-se que Adelaide, com delicada generosidade, já lhe tinha perdoado a
involuntária ofensa, e recobrou toda sua seguridade.
– Pois eu que lhe conheço a balda a comparo sempre ao lírio, à neve, ao marfim,
e creio que, se lhe desse mesmo beiços e olhos brancos, não se enfadaria tanto, como
com essas tuas cores amorenadas.
– Mas escuta, Azevedo – disse ele, olhando de esgoela para seu interlocutor –
ainda há pouco vi de relance D. Adelaide passar por ali rapidamente, e pareceu-me que
trazia na cabeça uma outra flor... uma rosa, se não me enganei.
– Justamente! uma rosa mal aberta; é símbolo, que escolhi para ela, e dei-lhe em
troco do teu mal-aventurado cravo caboclo.
Aqui Belmiro, a muito custo, pode conter o riso, e contentou-se com rir-se
mentalmente à custa da mentira do Azevedo.
– Bem - disse ele - quem me avisa meu amigo é; daqui em diante, serei mais
acautelado.
– Perdes teu tempo – replicou Azevedo. Uma paulista, e sobretudo uma paulista
da têmpera de D. Adelaide, nunca perdoa um desacato destes.
– Mau é isto! – murmurou Belmiro, fazendo ainda extremos esforços para não
rir-se, e teria desatado uma gargalhada às bochechas de Azevedo, se subitamente o
quarto não fosse invadido pelo resto da companhia, que ali se instalou alegre e
folgadamente em uma tagarelice nunca interrompida até o pôr do sol, hora em que os
estudantes se despediram, ficando o Belmiro e o Azevedo. O major fez-lhes os mais
obsequiosos oferecimentos, e disse-lhes modestamente que quando quisessem passar
mal uma tarde, viessem à sua casa, que lhe dariam muito prazer. A família do Tenente
André, como era da vizinhança, ficou ainda.
A rivalidade, nascida nessa tarde entre os dois estudantes, era efêmera e frívola,
como de ordinário são todas as idéias e sentimentos que se geram no cérebro escaldado
e no coração bandoleiro dessa espécie de gente. Fundava-se ela por um lado a
caprichosa veleidade de Azevedo, que, mais por vaidade do que por amor, e em razão
de suas antigas relações na casa, se julgava com uma espécie de direito adquirido à
predileção da moça; e por outro, na imaginação impressionável e mórbida sensibilidade
de Belmiro. Este – natureza ardente e apaixonada, nutrida na solidão entre sonhos de
volúpia infinda, ficara profundamente impressionado pela provocadora beleza de
Adelaide, e julgava ter encontrado nela a encarnação ideal de seus sonhos. Acoroçoado
pelas provas de afeição que ela lhe dera, já ousava alimentar na fantasia as mais rosadas
esperanças. Adelaide era formosa, rica e filha única, e parecia disposta a amá-lo; a idéia
de casamento lhe esvoaçava já pela mente com suas asas de ouro e azul, e o fazia
entontecer de contentamento.
Por isso, procurava por todos os meios expor ao ridículo a pessoa e a queda de
Belmiro, a qual com grande desgosto seu o ia tornando cada vez mais o objeto da
atenção e solicitude de Adelaide. Foi pois com esse fim que o maligno estudante,
pungido pelo despeito e pelo ciúme, teve a satânica idéia de não deixá-lo pernoitar só
em casa do major.
– Qual piano, papai! – atalhou Adelaide com modéstia. – Há que tempo eu nem
abro o meu piano!... Nem sei mais como se toca. Cantar?... Nem falar nisso! Há quinze
dias tão endefluxada, que me não é possível levar de vencida dois compassos sem
tossir...
– Mas – prosseguiu ela – o Sr. Azevedo, que é da corte, deve de certo saber
bastante música, e talvez queira tocar alguma coisa.
– Eu, minha senhora – respondeu ele com alguma hesitação - não deixo de
apreciar música, mas nunca me apliquei a esse estudo, nem tenho jeito algum para
semelhante arte. Gosto muito da música dramática nos teatros da Corte. Isso é bom aqui
para o amigo Belmiro, que é o menestrel obrigado e indefectível em todos os pagodes e
serenatas de estudantes. Canta que nem um besouro, mas infelizmente não sabe tocar
senão o clássico violão.
– Pois temos aí um muito bom e novo, que papai comprou para mim... Gosto
muito do violão; acho mais bonito do que o piano. Tenho também o método; só me falta
um mestre. O senhor toca por música?...
– Sim senhora.
– Oh!... eu também desejo aprender por música... Lucinda, vai buscar meu
violão. Que belo! É escusado irmos à aula, para tocar violão; não é preciso o senhor
mover-se daí... Não é assim, sr. Belmiro?
O Azevedo foi pelos ares com essa nova fase, por que ia passar – por culpa sua!
– aquela reunião. Dava a mil diabos o momento em que se lembrara de falar em violão.
Ia ficar esquecido a um canto, ao passo que seu rival, que já era alvo de tantas atenções,
ia se tornar com mais esta exibição o verdadeiro herói de festa, pois bem sabia que
Belmiro tocava magistralmente o violão e possuía excelente voz, sonora e apaixonada.
Oh! mas ele não adivinhava que na casa havia um violão. Assim, querendo
deprimir o seu rival, pôs-lhe nas mãos uma arma com que iria acabar de suplantá-lo.
A escrava apareceu, trazendo um rico violão, encordoado de novo, que Adelaide
tomou e foi pessoalmente entregar a Belmiro, que o recebeu com ares de um verdadeiro
trovador. Daí a momentos o quarto retumbou ao som dos mais harmônicos e maviosos
acordes. O major, Adelaide, o Tenente André e suas filhas vieram logo em frente da
cama, onde Belmiro, como um Apolo em seu carro triunfal, empunhava o melódico
instrumento. Os próprios escravos vieram apinhar-se à porta do quarto para escutarem.
Azevedo sentia calafrios e procurava, em vão provocando conversações banais, distrair
a atenção das moças dos magníficos e melodiosos arpejos, enquanto Belmiro deixava os
dedos errarem como a descuido pelas cordas do instrumento.
– Oh! minha senhora, tenho uma péssima voz: o Azevedo, quando lhe disse que
canto como um besouro, disse a pura verdade.
– Não acredito, perdoe-me; apesar de o dizer o Sr. Azevedo, que bem sei como
gosta de caçoar. Cante sempre; do contrário nenhuma destas minhas amigas terá ânimo
de cantar.
Belmiro limpou a goela, harpejou um pouco com os olhos fitos no teto, baixou-
os depois, e com voz sonora, expressiva e apaixonada, cantou uma dessas modinhas
lagrimosas, repassadas de queixas, ais de suspiros, que então, como até hoje, estavam
em voga.
– Então? que tal acha? Confesse que, se os besouros cantam assim, vale bem a
pena tê-los na gaiola à nossa janela.
– Por que não? – atalhou o major. – Pode estar certo que todo aquele que aqui
for apresentado pelo senhor, será sempre bem recebido.
– Não duvido – disse Adelaide – que esse Sr. Couto seja o que o senhor diz;
mas enquanto cá não vem vamos ouvindo aqui o Sr. Belmiro. Que dizem, minhas
amigas?
– É exato – respondeu uma delas. – O Sr. Belmiro tem uma voz bem bonita.
Cante mais uma modinha agora sou eu quem lhe peço.
O Belmiro não teve mais descanso, cantou até às dez horas da noite, e quase
esgotou seu repertório de modinhas e lundus. Azevedo, para quem aquele sarau musical
se ia tornando o mais abominável dos suplícios, colocado entre Adelaide e as filhas do
Tenente André, não cessava de importuná-las com chacotas e epigramas contra o pobre
Belmiro, procurando distrair-lhes a atenção.
As filhas do tenente, que não tinham o mesmo espírito, nem nutriam os mesmos
sentimentos da filha do major, não deixavam de aplaudir o Azevedo com risotas
abafadas e momos mofadores. Como não seria assim? Desejavam captar as atenções do
estudante, decerto para indenizá-lo da indiferença de Adelaide, que lhe respondia umas
vezes com o silêncio, e outras com um – “Ora!... deixe-me ouvir”.
– Nesse caso, deve ser com a mesma com que foi aberta. – retorquiu ela,
olhando para Belmiro.
Azevedo amuou-se e não disse mais palavra. Adelaide cantou uma linda
cançoneta, em que brilhou mais pela beleza de sua figura que pelo timbre fresco e
argentino de sua voz, do que pelo bom gosto e mestria da execução.
– E por que não, minha filha?A dúvida é o senhor querer tomar esse incômodo.
– Aceitamos – disse o major com mostras de satisfação. – Toda vez que quiser
dar um passeio a esta casa, o receberemos com muito prazer.
Não é preciso dizer em que deplorável estado esse ajuste final deixou a nobre
alma de Azevedo. Se Belmiro adormeceu entre visões de ouro e rosas, Azevedo apenas
dormiu sono agitado, com o peito comprimido pela pesada manopla do despeito e do
ciúme, meditando torvas e sinistras vinganças.
Capítulo IX
Conspiração
Para logo uma nuvem de estudantes, que cada vez mais ia se condensando,
formou-se em derredor deles, e quase os abafavam debaixo de um chuveiro de
exclamações, chufas e perguntas.
– Cá o managão – dizia ele – quis se fazer de menino para dar nas vistas e
agradar às belas, e tentando trepar aos últimos galhos de uma jabuticabeira, ai! coitado!
pobre cavaleiro da triste figura! no melhor da festa, faltaram-lhe as pernas, e desabou lá
de cima como um pedaço de céu velho, ou antes como um mono mal atirado, e veio cair
redondamente a meus pés e de D. Adelaide, que quase morreu de susto com tal
brincadeira.
Belmiro, que quando se achava entre seus íntimos sempre tinha algum espírito e
desembaraço, achava-se completamente tolhido no meio daquela saraivada de ditos e
apupadas de tanta gente, que mal conhecia. Debalde invocava a imagem da formosa
Adelaide, lembrando-se da preferência com que, no dia antecedente, o havia
distinguido; debalde forcejava por mostrar-se calmo e sobranceiro às chufas e motejos
dos acadêmicos. Cada vez mais perturbado, suando e rubro como lacre, não sabia
articular a mínima réplica. Para cúmulo de males, seu pé doente não lhe permitia efetuar
uma pronta fuga, único meio de esquivar-se ao fogo cruzado de tantos olhares
petulantes, de tantos risos galhofeiros: forçoso lhe era suportar a pé firme toda essa
mortificante metralhada.
– Mas isto ainda não é tudo – continuou Azevedo, cujo despeito não se limitava
só à pessoa de Belmiro, e estava talvez ainda mais íntimo e profundo contra a inocente
Adelaide. – Há ainda mais uma coisa; coisa assombrosa, a que decerto vocês não
quererão dar crédito...
– Coisa que a mim mesmo custa acreditar, posto que meus olhos vissem, meus
ouvidos ouvissem...
– Eu já lhes digo; tenham paciência. O caso é que a pobre da moça, mordida não
sei de que gosto depravado, mostrou-se toda apaixonada por este mono, que aqui vedes!
– Não, não, não é possível; não posso acreditar – insistiram quase todos.
– Perfeitamente e por sinal que nos não olhava com bons olhos. Mas que tem
esse sujeito, capataz ou arrieiro, como me parece, com D. Adelaide? – continuou
Azevedo, dirigindo-se ao supramencionado segundanista.
– Cuidado com tua pele, meu Belmiro! – exclamou um da turba. – Repara quem
pretendes tirar do lance... Tens um valentão pela proa; esses curitibanos não são para
graças.
Belmiro corou até os olhos; compreendeu que era mesmo desairoso e até ignóbil
da sua parte não dizer uma só palavra em desafronta daquela que lhe havia
testemunhado tanto afeto e predileção, e chamando em seu auxílio a pouca presença de
espírito, que ainda lhe restava:
– Meus amigos – disse – não devemos fazer juízos temerários...
Nesse momento, a sineta da Academia batia um quarto depois de dez horas; era
tempo de Belmiro, Azevedo e muitos outros que ali se achavam entrarem para as aulas,
pelo que dissolveu-se naturalmente aquele ajuntamento, que já ia tomando um caráter
tumultuário.
Cumpre notar que o despeito de Azevedo não tinha só por alvo o seu colega,
estendia-se também a Adelaide, ao major, ao curitibano e a todos aqueles que tivessem
concorrido para perturbar os horizontes, até ali tão serenos, de seu tranqüilo namoro.
Projetava promover, senão um escândalo, na casa do major, ao menos tal desaguisado,
que havia de perturbar todas as suas relações e desarranjar por muito tempo todos os
namoros presentes, passados e futuros de Adelaide. Para esse fim, não podia contar
muito com a cooperação dos companheiros de casa de Belmiro, quase todos amigos e
comprovincianos deste, e demais pouco próprios para empresas dessa ordem. Convidou,
portanto, outros companheiros mais apropriados, entre os quais figuravam o Couto – o
violonista notabilidade – e o moço dos bigodinhos. Não se esqueceu também de
recomendar muito ao Belmiro que por maneira alguma faltasse à função de domingo.
Capítulo X
Nova Provocação
O major – não sem bastante fundamento – fazia de sua filha o mais elevado
conceito não só como formosura, mas também como um modelo de elegância, graça e
inteligência, e a colocava muito acima de todas as celebridades do mundo elegante
daquele tempo em S. Paulo. Como Adelaide já tinha completado os seus dezesseis anos,
o major não podia deixar de pensar em casa-la; tão ilustre raça não devia extinguir-se
em sua filha e era preciso escolher um noivo digno dela. Ora, o corpo acadêmico era
justamente um viveiro de noivos na altura de suas aspirações. Uma mocidade brilhante e
esperançosa freqüentava a Academia; uns ricos, outros fidalgos de sangue azul, outros
com a aristocracia do talento tinham suspensa sobre a fronte a auréola de um esplendido
futuro. O major não ignorava que era especialmente dessa classe que saíam os
deputados, senadores, ministros, barões, condes e marqueses. Estava também
intimamente convencido de que era bastante mostrar-lhes a filha, para ficarem todos
morrendo por ela e a disputarem com encarniçamento a posse de tão inapreciável
tesouro. Portanto, e nesse intuito, tratava de relacionar-se com o que havia de mais
ilustre e prestigioso nessa classe, procurando especialmente os da Corte, e evitando com
a maior cautela pessoas de cor equívoca. Entretanto, de envolta com esses jovens de
famílias distintas, não deixavam de ser admitidos em sua casa alguns estudantes pobres
e obscuros, mas notáveis pelo talento, principalmente se se distinguiam por alguma
aptidão artística ou se eram poetas, pois o major e sua filha eram apaixonados pela
poesia: Adelaide, sobretudo, era muito lida em romances.
Belmiro pouco mais ou menos já adivinhava qual o motivo por que Azevedo
havia convidado novos companheiros, e instava tanto com ele para que não faltasse ao
passeio de domingo; desconfiava que outra não podia ser a sua intenção, senão, de mãos
dadas com seus diabólicos companheiros, promover todos os meios de expô-lo à mais
solene irrisão em presença de Adelaide. Na companhia de seus amigos e comensais,
dispunha ainda de alguma presença de espírito para fazer face às caçoadas; mas com
gente estranha, perdia-se de todo, e sua perturbação bastaria para que fizesse o mais
triste papel. Quanto mais refletia, mais se convencia que lhe não era possível resistir à
conspiração que contra ele se armava. Por outro lado, atormentava-o irresistível desejo
de tornar a ver aquela que lhe havia roubado o coração. Toda a noite, passara a cismar
com ela. Fora tão meiga para com ele; testemunhara-lhe tanto interesse e simpatia! Não
seria grande a indelicadeza de sua parte deixar de comparecer ao primeiro convite? Mas
como arrostar a petulância daquela legião de garotos, que o Azevedo havia arrebanhado
para o acabrunharem ao peso de motejos e caçoadas?
– Ah! raposa matreira – exclamava ele. – Mas deixa-te estar que mesmo sem a
tua presença, hei de preparar-te uma cama, com que não te hás de dar mal. Olhem o
sonso!... Tem convite de um homem de importância e de uma menina bonita, e esconde-
se como um urso bravio! Mas pela falta de um companheiro não devemos perder o
pagode, de ele no que der. Vamos, meus amigos!
Belmiro, entretanto, não ficou tranqüilo, e logo que soube que a comitiva de
Azevedo tinha partido, começou a achar feio e ridículo o seu procedimento. Demais a
mais, gravemente namorado, como realmente se achava, começava a sentir fisgar-se-lhe
ao coração a farpa do ciúme.
– Não! – dizia consigo. – Não devo deixar de comparecer. Adelaide, com minha
ausência, ficará fazendo fraca idéia de mim; pensará que fiz pouco caso de suas
atenções, ela que as merece tanto, e me entregará ao desprezo, que realmente merecerei,
se lá não for... Sou deveras um amante bem frio, tosco e pusilânime!... Ter medo de
meia dúzia de peralvilhos, só porque se trajam com algum primor e sabem dizer a
moças meia dúzia de banalidades e parvoíces adocicadas?!... Ora!... Também o
Azevedo é um dandy de primeira ordem, e anteontem, sem no menor esforço e quase
sem querer, o pus fora de combate!... Vamos! vamos!... Ao menos ficarei sabendo se a
deferência, que teve comigo, foi um capricho de momento ou dó por causa da minha
queda, ou se é mesmo coisa mais séria.
– Ainda bem vieste, meu caro Belmiro. Que falta nos ia fazer!...
– Por que razão eclipsaste na hora da partida? Mas vais melhor do pé?...
Belmiro nada respondia; notou, porém, que o major naquele dia tratava seus
hóspedes com mais reserva e cortesia, e mesmo com certa frieza, que não condizia com
as maneiras francas e familiares com que os recebera da primeira vez; mas não podia
atinar com o motivo de semelhante procedimento.
– Uma vez que apareceu, está desculpado. Meu pai havia de ficar bem
aborrecido, se o senhor não viesse.
– Lá por isso não, meu caro major; nenhuma falta eu faria; aí está o nosso
amigo Couto, que o vai fazer esquecer-se.
– Não é tanto assim – replicou Adelaide. – Canto alguma coisa; mas não sou
mestra. Tenho muito pouco estudo.
– Isso nada importa – disse o Couto, levando a sua cadeira para bem junto da
moça e assentando-se com grande familiaridade ao pé dela. – O que mais se aprecia são
os dons naturais que a senhora pode aperfeiçoar com o exercício e a direção de um bom
mestre.
– Não duvido – disse esta, respondendo ao Couto – mas não tenho pretensões a
ser grande cantora; canto para distrair-me.
– Ah! mas isso é ser muito egoísta; quem dispõe de uma bela voz tem o dever
de cantar também para distrair e encantar aos outros.
– Estás amuado hoje, Belmiro! – disse-lhe um deles – Falas tão pouco!... Será
ainda efeito do tombo que levaste?
– Nem disso me lembro mais – retorquiu Belmiro. – Mas é que quando vocês
falam não fica tempo a ninguém para dizer uma palavra.
– Oh!... oh!... Podes falar, podes soltar alguma das tuas sandices; prometemos
presta-te toda atenção.
– Não sei que o Sr. Belmiro diga sandices – acudiu Adelaide com adorável
ingenuidade – mas se as diz, é com tal graça, que não parecem tais.
Esse brinde foi correspondido com sinceridade por Adelaide e alguns poucos
amigos do estudante, mas pelo resto dos convivas com atordoadores hurras, misturados
com gargalhadas, que não podiam exprimir nem prazer, nem entusiasmo.
Está bem claro que ele foi levantado pelo major mui de propósito para humilhar
o Couto, cuja cor lhe fazia arrepiar os cabelos.
Azevedo desesperava ao ver irem-se malogrando uma por uma todas as suas
tentativas para ridicularizar e por fora de combate o seu rival. Adelaide o amparava com
sua égide não era possível atingi-lo. Só lhe restava uma esperança na ocasião de se tocar
e cantar. Sabia quanto Belmiro era acanhado, e se bem que soubesse tocar violão e
cantar com algum gosto e perfeição, só o fazia raras vezes e entre pessoas com quem já
tivesse contraído alguma familiaridade. Portanto, expô-lo a cantar em pleno dia, de
violão em punho, no meio de uma sala cheia de pessoas, que ele bem sabia estarem mais
dispostas e debicá-lo do que a apreciá-lo, era o maior dos suplícios que podiam infligir-
lhe. De feito, mesmo para os mais desembaraçados, haverá provocação mais cruel do
que ser condenado a cantar de dia bem claro, em uma pequena sala cheia, de face para
todos, que, com os olhos fitos na cara do cantor, lhe observam todos os movimentos e
de ouvidos atentos estão à espera que ele abra a boca? E principalmente quando no
auditório há uma pessoa, diante da qual nos seria dolorosíssimo fazer um mau papel?
Isso é para fazer suar sangue e por em torturas o mais delambido cômico de profissão.
Era nessa terrível arena que Azevedo e seus comparsas esperavam ver o pobre Belmiro
completamente aniquilado sob o peso do ridículo.
Depois de uma breve passeio pelo jardim, onde se serviu o café, os convivas se
reuniram na sala de visitas. Era chegada a hora dos entretenimentos musicais. Por
instigação de Azevedo, o Couto lançou logo mão do violão, e com notável perícia e
agilidade executou lindas peças, que encheram o auditório de prazer e admiração. O
major, porém, e sua filha apenas o aplaudiram com muita frieza; reproduzisse ele as
harmonias dos coros angélicos, a sua cor tisnada lhes fazia parecerem ásperas e
desentoadas as mais suaves notas, que extraía das cordas do instrumento.
– É verdade; nada mais justo, mesmo para corresponder ao brinde com que
ainda há pouco o honrou o senhor major. É preciso que cante. Ande, vamos a isso! dizia
o Couto, entregando o violão a Belmiro.
Esse enfiou e enrubesceu até a raiz dos cabelos; mas tinha formado firme e
inabalável propósito de não cantar, e por esse fim já tinha estudado em escusa, que aliás
parecia ser muito atendível.
– Não, decididamente não; não posso. Peço desculpa ao senhor major e à Sra.
D. Adelaide – disse Belmiro, lançando a esta um olhar de súplica.
– De nossa parte, Sr. Belmiro – respondeu ela – está dispensado; não queremos
agravar seus incômodos só para nos dar prazer.
O Couto esperava que, visto o Belmiro ter sido dispensado, o major ou sua filha
lhe rogassem para cantar. Mas nem um nem outra se lembraram ao menos de dirigir-lhe
a palavra. Com este desencanto, que era quase um desacato, o Azevedo foi às nuvens.
Nunca pensou que o menestrel, a quem tanto havia preconizado, fosse tão cruelmente
menosprezado. Entretanto, ele e seus companheiros, mesmo para dar uma diversão ao
desapontamento e despeito que os molestavam, tomaram a seu cargo o instar com o
Couto para que cantasse alguma coisa. Este, que mais que ninguém se achava enfadado
e de mau humor, acedeu de má vontade à súplica dos companheiros, e entoou uma
cançoneta e alguns lundus chulos e bem pouco próprios da boa companhia. Isso acabou
de indispô-lo com o major, que dava a perros a lembrança, que teve seu amigo Azevedo,
de trazer-lhe à casa semelhante tapuia, como lá de si para si o qualificava.
Por fim os estudantes, menos o tapuia, que não podia nem queria disfarçar o seu
despeito, rodearam Adelaide e rogaram-lhe com muita instância para que cantasse
qualquer coisa. Não lhe foi possível recusar-se. –A senhora decerto vai acompanhar-se
ao piano, não é assim, D. Adelaide? – perguntou-lhe Azevedo. –Não, senhor; prefiro o
violão. O Sr. Belmiro me fará o favor de acompanhar.
Esta última bomba atordoou e fez perder toda a esperança ao Azevedo e a todos
os seus companheiros.
Já o sol se inclinava rúbido sobre a serra das Cantareiras, e desmaiava seu vivo
fulgor, engolfando-se nos diáfanos vapores da tarde. O sol estava a despedir-se do nosso
hemisfério, os convivas do Major Damásio ansiosos por despedir-se de seu hóspede, e
este também não menos aflito por vê-los de costas.
O major, entretanto, não quis despedir os seus convivas sem dar-lhes uma
satisfação, e como não podia dá-la à face de todos, chamou de parte para esse fim o
Azevedo, com quem tinha mais antigas relações e maior familiaridade.
– Eu o trouxe apenas como um insigne músico, que poderia dar algumas lições
à senhora sua filha.
– Nesse caso o meu capataz também toca e canta menos mal; e eu havia de pô-
lo a ensinar minha filha?...
–Oh! não há o menor paralelo... Mas desculpe-me, senhor major; não sabia que
os seus melindres aristocráticos chegavam a tal ponto.
– Se há melindre, não é para com o senhor, meu caro amigo; esta casa está
sempre às suas ordens, e de seus amigos, contando que...
Capítulo XI
Azevedo, logo ao sair, tinha contato aos companheiros, menos a Belmiro, toda a
conversação, algum tanto misteriosa, que tivera com o major ao despedir-se; mas fê-lo
com cuidado e segredo, para que não chegasse aos ouvidos da vítima. Isso reunido à
frieza e cerimoniosa com que foram tratados, levou ao cúmulo o despeito e indignação
dos rapazes. Estimavam muito ao colega, e a desfeita, que lhe foi irrogada, doeu-lhes
como se fosse feita a todos, e juraram castigar a filáucia e petulância do major do modo
o mais cruel que pudessem.
Vamos a escutar um pouco a edificante conversação, com que a trote largo se
iam entretendo pelo caminho.
– Que saloia desenxabida, meu Deus!... Eu pensei que a tal Adelaide tão
decantada fosse outra coisa. No corpo é uma almanjarra desengonçada, cheia de
requebros desengraçados.
– É uma foca.
–Lá quanto aos bigodes, passe; mas que ventas! Parecem duas trombetas! Bem
se lhe esta vendo a raça.
–De certo assim devia ser, por achar nele um outro palerma, que não despregava
dela os olhos, como um cão a namorar um pedaço de carne.
– No menos as aparências...
– Pois são aparências e nada mais. Não viram por lá rondando o tal biltre do
arrieiro ou o capataz? Não repararam, quando ele passava por perto de nós, como fitava
nela uns olhos de fogo, e como abaixava ela os seus, cheia de confusão?
– Oh! isso é verdade. Uma vez que o tal maganão se achou em nossa presença,
ela se mostrou por tal sorte inquieta e perturbada, que parecia estar sentada em uma
cadeira de espinhos.
– E o mais é que o rapazola não deixa de ter uma bonita figura; vale cem vezes
mais do que o Belmiro. Que olhos negros cintilantes! Que fisionomia expressiva! Que
talhe esbelto e vigoroso! É um Cacambo, um Adônis americano.
– E é mesmo. No seu gênero, é um dos mais lindos e vistosos rapazes que tenho
visto. Cuidado, Belmiro! Tem pela frente um guapo competidor.
– Querem saber uma coisa, meus amigos? Creio que já percebi a tática da moça.
Ah! que raposa matreira não é a tal Sra. Adelaide!
– Então o que é?
– Vocês ainda não atinaram com a razão por que, no meio de toda a rapaziada
luzida que lhe faz a corte, escolheu o sorna do Belmiro para objeto de suas
predileções?...
– Ainda não.Qual é?
– Oh! deve ser isso mesmo. Pobre Belmiro! Não és mais que um pau de
cabeleira!
–É isto, podem ter toda a certeza. Quando o sujeitinho se mostrar agoniado com
a menina, esta lhe dirá ingenuamente: tenho dó e simpatia por aquele pobre moço. Ele
facilmente acreditará, e eis aí tudo explicado...
Foi por esta maneira que os estudantes vieram por todo o caminho, retalhando o
coração de seu infeliz colega com alfinetadas de ciúme, que lhe doíam mais que todas as
outras caçoadas. De feito, ele também havia notado certos sintomas, que faziam crer que
as observações de seus companheiros não eram totalmente destituídas de fundamento, e
por isso, pensativo e silencioso, marchava como uma sombra entre seus gárrulos
companheiros, levando para a casa as mais desencontradas impressões. Por um lado
afagavam-lhe a imaginação, como um bando de borboletas matizadas de azul e ouro, as
lembranças das demonstrações inequívocas de afeição que lhe dera Adelaide; por outro,
lhe fazia horrendas esgares a petulante e desalmada caterva dos colegas, que lhe
moviam mil dificuldades. Não eram porém ainda estes que mais o aterravam; já por
duas vezes os tinha suplantado sem grande dificuldade; e o que mais dolorosa impressão
lhe causava era a existência do rival doméstico, sem dúvida o mais formidável de todos,
e que bem via não ser pura invenção de seus colegas. É verdade que também
compreendia otimamente o major, todo enfatuado de fidalguia como era, não podia
consentir em tal amor. Mas que importava isso se tal amor existia, e existiria deveras?
Assim oscilava perplexo o espírito de Belmiro, mas inclinando-se sempre a crer
que semelhante amor era uma quimera, a que a inveja maliciosa de seus colegas e a
nímia susceptibilidade de seus próprio ciúme davam algum vulto. Esse jovem curitibano
era um pobre rapaz estimado na casa e nada mais. Nesta convicção, ainda que mal
baseada, entendeu que devia continuar a freqüentar a casa do major, esperando que os
acontecimentos viessem a desenlear tão intrincada situação.
Portanto, não podendo apaixonar-se por nenhum dos pretendentes, que com
boas ou más intenções a cercavam de homenagens, Adelaide, talvez mesmo para
procurar uma diversão à posição difícil em que se achava, entregava-se, ingênua e
francamente, ao sentimento de simpatia que Belmiro lhe havia inspirado, sentimento
que, mal interpretado, fazia arder a cabeça a este e raivar aos outros de inveja e de
ciúme.
Assim, nesse negócio quase todos andavam mais ou menos enganados. Belmiro
julgava ser amado, e apenas merecia alguma simpatia e consideração, e seus
companheiros, quando em ar de chacota lhe diziam isso em caminho, bem longe
estavam de pensar que diziam a pura verdade. O major e sua filha estavam intimamente
convencidos de que os estudantes disputavam com ardor a posse do coração da rica e
formosa herdeira daquele nobre solar, quando estes, pela maior parte, desde o dia em
que o major se desouve até certo ponto com Azevedo e seu séqüito, só tinham em vista
desmoronar aquele castelo imaginário, e com bárbara malignidade expor ao ridículo não
só o pai, como também o nome de sua infeliz filha, que por certo não merecia
semelhantes desacatos. Alguns deles tiveram a audácia de fazer chegar às mãos de
Adelaide cartas amorosas, que ela teve a prudência e a discrição de queimar sem dar
resposta alguma. Havia contudo um ou outro que, sinceramente apaixonado pela beleza
e atrativos da moça, empregava de boa-fé seus esforços para ganhar-lhe o coração, e
que, fechando os olhos à sua genealogia, estava disposto a pedir-lhe a mão de esposa;
mas esse mesmo não era mais bem sucedido.
A Adelaide, a Adelaide – eis o nome que mil vezes se ouvia repetir nos círculos
nos dandys acadêmicos de S. Paulo. Era um namoro espantoso; Adelaide era um astro
rodeado de miríades de satélites. Quanto verso da mais vaporosa e requintada, quanta
carta da mais acrisolada, ardente, profunda e frenética paixão tinha de ler, e que lhe
eram entregues como por encanto!... A moça via-se atarantada;acreditou-se uma deusa,
que tinha por dever aceitar o culto e adoração universal. Assim o fez, e foi isso talvez
sua salvação. Divindade sobranceira e sem caprichos, não quis em seus altares
sacerdotes privilegiados, aceitando com igual benignidade as oblações e o incenso de
todos.
Um belo dia, porém, Adelaide recebeu das mãos de uma velha escrava um
mimoso e perfumado papelzinho, e julgando ser uma dessas missivas apaixonadas, com
que seus inúmeros amantes costumavam importuna-la, abriu-o sem escrúpulo, e
começou a lê-lo, para depois consumi-lo, como era seu costume, na pira ardente, não
direi do seu desprezo, mas de sua indiferença. Essa missiva, que era anônima, não pode
ter o mesmo destino. Dentro desse papelzinho perfumoso e acetinado estava contida
uma terrível bomba, que devia estourar com grande estrondo, e, fazendo horrível
conflagração, produzir completa mudança nos destinos de Adelaide. Era uma poesia em
forma de lundu, na qual se punha em público e raso a genealogia de Adelaide, tendo por
guizo o seguinte estribilho:
Mas por essa desventura Não chores, linda menina; Nasce a pérola da lama, Nasce do
esterco a bonina.
Bem se vê que esse modo de consolar não podia agradar muito à Adelaide. A princípio,
enrubesceu até à raiz dos cabelos, e pouco depois sua linda tez morena ficou pálida
como a cera de uma tocha funérea; suas pupilas negras se incendiaram, lançando
chispas como as da cainana ofendida; seus seios ofegaram violentos como mar
tempestuoso. Ela, acostumada a ser o alvo de todos os mimos e adorações, nunca
pensara nem mesmo na possibilidade de tão feroz ultraje.
– Lucinda! – gritou ela, chamando pela escrava, que lhe entregara o papel, a qual
imediatamente apareceu. – Toma esta carta... tu te enganaste... Quem foi que a trouxe?
Isso seguramente não é para mim.
– É mesmo para sinhazinha – respondeu a escrava. O moleque, que trouxe esse papel,
falou assim: - É para sinhá Adelaide, filha do Sr. Major Damásio.
– Ah! meus Deus, será possível! – exclamou a moça, levando as mãos aos cabelos. –
Meu pai!... Chama depressa meu pai... ele há de vingar-me!
– Que é isso, sinhazinha?! O que é que mecê tem, que está zangada?
– Não é nada, Lucinda – respondeu secamente a moça. – Anda!... Vai chamar meu pai.
– Há de morrer como um perro vil!... – bradou, dando um furioso murro sobre a mesa,
junto à qual Adelaide se achava sentada. – Há de morrer o insolente, que teve o
atrevimento de... Olá! – quem foi que te trouxe este papel, minha filha?
– Foi Lucinda.
– Ó lá, Lucinda!...
– Quem trouxe?
– Foi um moleque.
– Que moleque?
– Como se chama?
– De quem é?
–Não, não, não, não sei, não sei, não sei! E esta! Pois é preciso saber, maldita! Vai,
corre já atrás do moleque que aqui trouxe este maldito papel. Anda... Não percas tempo;
traze-o já aqui agarrado. Senão... anda, cachorra tinhosa! Anda, demônio dos meus
pecados!...
– Meu pai! – disse por fim Adelaide, levantando o rosto banhado em copioso pranto.
Estava encantadora então. A raiva tinha-se desafogado em lágrimas, e achava-se
restabelecida a harmonia de suas graciosas feições, que a cólera por momentos havia
transtornado. Se a vissem naquele instante os estudantes, que a tinham levada a tal
extremo, ter-se-iam prostrado aos pés dela, atassalhados de remorsos e implorando
perdão. – Meu pai, bem me estava agourando o coração que essa corja de estudantes
malcriados havia de nos pregar alguma; eu não gostava nada de semelhantes reuniões.
– Nem todos, minha filha; isso não vem senão de gente ruim e de baixa ralé; e não pode
ser doutro senão daquele cão tinhoso, daquele esconjurado tapuia que o Azevedo aqui
nos trouxe um dia.
– Não duvido; mas seja de quem for, meu pai, isso não deve ficar sem castigo. Ah! meu
Deus! meu Deus ! que desaforo... Pelo amor de Deus, meu pai, não abra mais sua porta
a semelhante canalha.
– Eu, minha filha! ... Deus me ofenda!... Não quero vê-los mais nem pintados.
– Mas não basta só isso, meu pai; uma afronta destas não pode ficar sem vingança...
– Sim, não pode; dizes bem, minha filha. O maroto há de pagar ao menos com uma boa
sova de pau... Já se viu maior desaforo! Esses estudantinhos cuidam que podem zombar
do mundo inteiro!... Hão de conhecer se o Major Damásio Augusto de Aguiar e
Andrada é da laia deles... Há de se descobrir quem foi o brejeiro infame... Hei de falar
ao compadre Tobias... A polícia há de indagar... Hei de falar também aos lentes... Há de
haver congregação... reprovação... expulsão mesmo!... Arre! Não se insulta assim uma
família distinta!...
– Não, não meu pai - interrompeu a moça. – Com esse espalhafato vamos de mal a pior.
Então é que vamos virar peteca na mão desses biltres. Não diga nada ao padrinho, nem
aos lentes, nem a ninguém. Eu mesma hei de descobrir quem foi o desaforado que me
mandou esses versos, e hei de vingar-me.
– Tu, menina?
– Eu mesma.
– Pois sim... Vê lá se descobres, e conta certo que a mão, que escreveu essas sandices,
nunca mais pegará na pena para escrever coisa nenhuma desta vida.
Conrado não sabia ler nem escrever. O major, que no pequeno curitibano só
queria ter um bom capataz, ignorante e egoísta como era, não curou de cultivar-lhe a
inteligência, e só ambicionando aproveitar seus bons serviços, nem mesmo se lembrou
de faze-lo freqüentar a escola. Entretanto, o rapazote sentia-se mordido de inveja,
quando via sua gentil patroazinha abrir um livro qualquer e lê-lo com desembaraço, ou
tomando uma pena entre os dedinhos rosados passear a mão delicada por sobre o papel,
deixando nele gravado o pensamento. Sendo mais velho do que ela, ficava sumamente
envergonhado, e ardia em desejos de tornar-se nesse particular igual àquela a quem
tanto bem queria. Um dia, manifestou a Adelaide o pesar que o acompanhava por não
poder aprender a ler e a escrever.
–Ora! é tão fácil! – disse-lhe a menina. – Se você quer, eu te ensino, e você fica
sabendo tudo o que eu já sei e o que eu for aprendendo daqui por diante.
Passaram-se assim dois anos, durante os quais Conrado deslizou vida serena e
inocência e felicidade em companhia de sua gentil patroazinha, sem inquietações no
presente e com os olhos fechados ao futuro. Passou-se mais um ano. Conrado havia
completado os dezesseis anos, e Adelaide achava-se entre os treze e os quatorze. O véu
da inocência começava a adelgaçar-se ante os olhos dos dois adolescentes; através das
flores do presente já começavam a entrever vagamente os espinhos do futuro. Conrado
principalmente já não desconhecia a natureza do afeto que o ligava à sua gentil mestra e
patroa, e compreendia vagamente que aquelas doces relações até ali entretidas não
poderiam continuar por muito tempo; que uma grande distância na ordem social
separava o órfão desvalido, camarada ou capataz da rica e ilustre herdeira de uma
família distinta. Já previa uma dolorosa e inevitável separação, e uma nuvem
melancólica lhe pairava sobre a fronte, evolvendo-a em cismas de desalento e amargura.
Adelaide, mais nova ainda, não sentia bem o peso de sua situação; mas o sentimento
instintivo do recato ia por si mesmo impondo um freio às infantis e ingênuas expansões
que costumava ter com seu companheiro de infância. Já ela não freqüentava mais a
escola, e o major havia definitivamente fixado a sua residência na chácara. Conrado, já
tendo entrado no período da puberdade, era com mais freqüência empregado por seu
patrão, que nele tinha toda a confiança, apesar de sua pouca idade, em serviço de
muladeiro, negócio em que ainda continuava, mais por inclinação do que por interesse.
Desejava também que o seu jovem capataz empreendesse algum negócio por sua
própria conta a fim de ir começando algum pecúlio que lhe garantisse o futuro, e para
esse fim já o tinha abonado com certo número de bestas.
Esses afazeres motivaram freqüentes ausências, e os dois meninos já não se
viam tanto a miúdo, e bem raras ocasiões tinham de se falarem. A sala do major abria-se
às vezes a famílias distintas, e a nobres cavalheiros, que o iam visitar e fazer a corte à
formosa e interessante Adelaide. O infeliz Contado, simples e humilde camarada, não
podia tomar lugar no meio de tão ilustre companhia, e tinha de morder aos beiços de
raiva e de despeito, quando o major às vezes o chamava para trazer um copo de água a
algum jovem elegante, que se repoltreava ufano junto de sua jovem patroa. Além disso,
Adelaide tinha mestres de música, dança, desenho e francês, cujas lições lhe consumiam
largas horas, e Conrado, que não podia tomar parte delas, amaldiçoava do fundo dalma
todos esses professores, e bem quisera manda-los a todos os diabos.
– Ah! nem eu sei... Uma coisa, que eu mesmo não sei explicar, uma idéia triste
veio me apertar o coração. Eu estava olhando para a patroa, bonita como está, mas tão
calada e pensativa, e estava me parecendo que era o meu anjo da guarda, que estendia as
asas para o céu, e me ia abandonar para sempre; fiquei triste, e as lágrima me acudiram
aos olhos.
Dizendo isso, à moça tirou de seu ramalhete uma perpétua, levou-a aos lábios,
e, entregando-a a Conrado, retirou-se precipitadamente.
Capítulo XIII
Começa a desilusão
Conrado e Adelaide continuaram a amar-se, mas com essa paixão triste,
reservada e resignada que não amortece, mas antes pelo contrário se fortifica e afervora
com as contrariedades; que estremece, mas não desalenta, com as apreensões do futuro.
Não podiam e nem se animavam a dar franca expansão a um amor, cujas funestas
conseqüências entreviam vagamente. Posto que jovens, eram inteligentes e tinham tino
bastante para calcular as contrariedades e desgraças, que os aguardavam no futuro. Eis
por que os encontramos acabrunhados de tristeza na cena do jardim. Vagos
pressentimentos começavam a enturvar com uma ligeira nuvem de melancolia essas
frontes juvenis, até ali tão serenas e radiantes de felicidade.
Depois que o major teve a desastrada mania de atrair à sua casa uma chusma de
estudantes, bem se pode compreender em quantas novas torturas as inquietações e
ciúmes fariam estorcer-se o agitado coração do mancebo.
Não podia escapar à sua penetração o motivo que levava seu patrão a promover
essas freqüentes reuniões de estudantes de classes elevadas; para ele era evidente que o
major tinha em vistas ajeitar entre eles um bom marido para a menina. Para cúmulo de
angústia ele bem percebia que sua vaidosa patroa se deixava inebriar nos turbilhões de
incenso que a envolviam, e ao menos na aparência abandonava-se de bom grado ao
enlevo das sedutoras homenagens, que todos os dias lhe eram depostas aos pés. Contar
os dias de tribulação que passou, e as noites de angustiosa insônia, que levou nessa
quadra fatal, seria uma jeremíada sem fim.
No dia em que Adelaide recebera a carta fatal, que conhecemos, Conrado estava
em seu quarto, solitário, dando livre curso às suas mágoa e cuidados, quando ela entrou
rápida e inesperadamente com a fisionomia alterada e mais rubra que de ordinário,
trazendo na mão um papel, que amarrotava entre os dedos convulsos. O simples fato de
apresentar-se ela sozinha em seu quarto já era um motivo de surpresa para Conrado,
onde Adelaide depois que se tornara moça, entrava raras vezes, e sempre acompanhada
por alguém. A singular expressão do gesto arrebatado e a fisionomia transtornada da
moça fizeram subir de ponto sua estranheza.
Estas palavras – meu amigo – que na expansão de sua cólera escaparam aos
lábios de Adelaide, soaram como um hino mavioso aos ouvidos de Conrado. Travou do
papel e começou a ler com ávida curiosidade os versos injuriosos, de que fizemos
menção. É difícil explicar as impressões múltiplas e encontradas, que semelhante leitura
suscitou de chofre no espírito do mancebo. Por um lado, não podia deixar de indignar-se
contra a audaciosa petulância do perverso, que não hesitara em insultar a uma linda,
inofensiva e cândida donzela, arrancando lágrimas de despeito e vergonha àqueles olhos
formosos, pelos quais era capaz de dar a vida. Conhecesse ele o autor de tão miserável
procedimento, que iria sem hesitar, naquele primeiro ímpeto de cólera , cravar-lhe uma
bala na cabeça.
Por outro lado, porém lhe parecia que aquele injurioso papel era o prenúncio de
inevitável ruptura entre o major e os estudantes, que dali em diante achariam sempre
trancadas as portas da casa e não poderiam mais requestar sua querida patroa. Era um
peso que lhe tiravam de cima do coração, e quase bendizia o maligno estudante, que
teve a satânica lembrança de endereçar a Adelaide tão insultuoso pasquim. O pobre
moço, portanto, depois da leitura, que fez lentamente para dar tempo à reflexão, viu-se
em supremo embaraço, e ficou longo tempo silencioso sem saber o que devia dizer a sua
jovem patroa.
––É verdade, minha bela patroa; isto é revoltante, e no meu entender não pode
partir senão dessa corja de estudantes, que o patrão velho tinha a imprudência de
chamar para a casa.
– Disso estou eu certa; não me diz nada de novo – atalhou Adelaide, com
enfado. – O que eu desejava saber era qual deles foi que teve a petulância...
– Isso há de ser custoso – replicou o mancebo. – Eram tantos, e cada qual mais
insolente...
– Não creia nisso. A nenhum deles maltratei, para dar-lhes o direito de me
desfeitearem assim. Suponho que isso não pode proceder senão daquele maldito bugre,
muito feio e muito fusco, que queria a todo transe ser meu mestre de música. Como o
tratei com o desprezo, que merece, assentou de vingar-se por esse modo infame.
– Pode ser que sim e pode ser que não. A patroa não podia fazer igual agrado a
todos eles; bastava mostrar mais agrado a um, para que os outros ficassem despeitados.
A patroa não sabe com que gente perversa lidava!...
– Não diga isso; perdão, minha bela patroa, mas às vezes, mesmo sem se querer,
conversa-se mais com um do que com outro. Eu penso que o autor destes versos tanto
podia ser o bugre, de que a patroa falou, como o tal Sr. Azevedo, esse antigo amigo do
patrão, que ultimamente também andava emburrado em razão do... da amizade, que a
patroa mostrava ao sonso do sr. Belmiro.
– Não sei, mas é preciso saber – respondeu Adelaide, com precipitação. – Fosse
lá qual fosse, é-me absolutamente necessário saber quem foi.
– Isso há de ser bem difícil, minha bela patroa, porque entendo cá para mim que
foi toda essa corja, que de comum acordo dirigiu-lhe essa desfeita.
– Não; isso não é possível... Diga-me uma coisa: o senhor não tem relações com
algum desses estudantes? Não costuma ir a casa deles?...
– Por desgraça minha tenho ido, quando o patrão tem a maldita lembrança de
mandar-me com algum recado ou carta de convite.
– Pois bem, é quanto basta. Nada lhe custa ir a casa de um ou outro, escutar o
que se diz, puxar um ou outra conversa... Por este meio por força havemos de saber
quem foi, e ... ah!...
– Portanto, não consentirá que fique sem vingança semelhante ultraje feito à sua
patroa, não é assim?
– Que me vingue.
– Não, não; não é preciso que mate, basta uma sova de chicote, ou umas
bofetadas, em lugar bem público, na cara do insolente.
– Oh! senhora, eu preferiria dar um tiro, ou uma estocada!... Mas se eu nem sei
qual é o insolente...
– Ah!... hesita, não tem ânimo!... – replicou Adelaide, com melancólico desdém.
– Eu julgava que o senhor me tinha algum afeto, que se doía de minhas afrontas; mas
agora vejo o contrário. Adeus!
– Certas coisas!... Que certas coisas são essas? Ficarei enfadada se, se não me
disser.
– Oh! muito bem! está otimamente arranjado – disso o tal homem. – O major é
excelente pessoa; só tem o defeito de ser um fanfarrão muito tolo, que tem fumaças de
branquidade e fidalguia, que nunca teve; mas lá isso é uma sandice, que a ninguém
prejudica...
– Não creia tal – respondeu o homem. – Que é aqui em S. Paulo que não sabe
que ele é filho de um cigano e de uma índia guarani, que foi peão ou domador de burros,
e que se casou com uma mulata da casa de um figurão, que foi quem o fez gente, e que
teve dela uma filha, que... essa, sim, é fazenda fina.
Conrado não contestou, mais a princípio não quis dar inteiro crédito ao dito
desse homem, e daí em diante, em vez de ser interrogado, era ele quem interrogava com
jeitosa precaução a uns e a outros, procurando esclarecer-se sobre a verdadeira
genealogia do patrão. De todos em geral ouviu a confirmação do que lhe dissera seus
primeiro interlocutor, e ficou plenamente convencido que a aristocrática estirpe de sua
idolatrada Adelaide tinha um dos seus troncos imediatos na senzala do cativo e outro na
barraca ambulante do cigano e na taba do selvagem. Essas revelações a princípio não
deixaram de molesta-lo, não porque antevia com mágoa extrema e cruel humilhação por
que teria de passar o coração da pobre moça, quando chegasse ao conhecimento de sua
verdadeira origem, como tarde ou cedo teria de acontecer.
Essas reflexões vinham dar mais azo e mais livre expansão à paixão do
mancebo, até ali tão tímida e concentrada; sentia porém que Adelaide estivesse ainda
em tão completo engano a respeito de sua genealogia, e como não tivesse ânimo para
desiludi-la, esperava que algum feliz acaso viesse fazer cair-lhe a venda dos olhos.
Quando a viu rodeada dessa turba de moços elegantes que o major costumava reunir em
casa, mil vezes teve ímpetos de ir declarar-lhe tudo; mas continha-se imediatamente;
receava com todo o fundamento não ser acreditado; semelhante revelação podia ser
tomada até como um insulto, e o menos, que lhe poderia acontecer, seria ser enxotado
ignominiosamente da casa. O caso, portanto, nesta ocasião, fazendo chegar às mãos de
Adelaide o horrível pasquim dos estudantes, vinha servi-lo de um modo que
ultrapassava todos os seus desejos e esperanças.
Agora que o leitor já se acha inteirado de quais eram essas certas coisas, que
Conrado tinha tanto medo de revelar à patroa, prossigamos no diálogo, que deixamos
interrompido.
–Certas coisas! – exclamou Adelaide. – Por que não as diz? Pode falar sem
rebuço.
– Pior é tanto rodeio; isto mata-me a paciência. Agora quero absolutamente que
me diga que coisas são essas.
– O caso, minha bela e querida patroa, perdoe-me se lhe falo com franqueza, o
caso é este... é que...
– O caso é – disse ele resolutamente, que isto que dizem os versos não deixa de
ser verdade.
– Sem o querer, minha senhora; não me leve isso a mal; todos por aí dizem a
quem quer ou não quer ouvir que a fidalguia do patrão não passa de ridícula
fanfarronada, e atestam tudo quanto está escrito nesse maldito papel.
– Basta, basta Sr. Conrado! Faltava-me ainda esta triste vergonha para tornar-
me a mais infeliz das criaturas!
Dizendo isso, Adelaide deixou-se cair sobre um tamborete, que ali estava junto
a uma mesa, e escondendo o rosto entre os braços, desatou a chorar.
– Não chore, minha patroa. Que é isso!... Ah! meu Deus, quanto me arrependo
de lhe ter contado semelhantes mexericos!... Quem dá importância a tais falatórios?!
Tudo isso sem duvida não passa de pura invenção de alguns maldizentes e invejosos,
que não gostam do patrão, por ser possuidor de uma boa fortuna e pai da moça mais
bonita que pisa nas ruas de S. Paulo. E que importa que o seu sangue não seja de
Fidalga? Nem por isso a patroa deixa de ser quem é, a mais bela, a mais nobre, a mais
encantadora das moças... Ah! por quem é! não continue a chorar assim! Desastrado que
eu fui!... Perdoai-me, minha linda patroa; essas lágrimas, que está chorando, me parece
que são espremidas do meu coração.
– Não, - respondeu Adelaide com tristeza – mas bem vê que a notícia que me traz nada
tem de agradável. Quero saber, se sou isso mesmo que o senhor diz.
– Pois bem, seja assim. Quero e hei de saber se é verdade o que diz o povo. É bom que
cada um conheça o seu lugar.
– Ah! minha senhora, não há motivo para se afligir tanto – continuou Conrado, tentando
ainda um esforço para atenuar o efeito do golpe doloroso, com que acabava de fulminar
a vaidade da moça – O nascimento nobre ou obscuro é coisa que nada significa em
nosso país. Se formos apurar a geração de muita gente graúda que por aí anda
blasonando fidalguia, há de se ver que os troncos, de que descendem, não são em nada
melhores do que o da patroa. Em nossa terra é uma sandice querer a gente gloriar-se de
ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: - no Brasil ninguém
pode gabar-se de que entre seus avós não haja algum que não tenha puxado flecha ou
tocado marimba. O talento, a bondade, e principalmente a riqueza, é que dão
importância às pessoas. A patroa, além de rica, é boa, pura e bela como um anjo, e por
isso há de sempre ocupar na sociedade uma posição brilhante...
–Brilhante!... Ah! sim! servindo de chacota ao povo e de joguete aos estudantes!... Ditas
essas palavras, Adelaide retirou-se bruscamente, deixando Conrado entregue à mais
ansiosa inquietação.
– Que irá ela fazer? – ficou ele pensando – cheio de arrependimento e tremendo pelas
conseqüências da revelação que acabava de fazer. – Se vai levar tudo aos ouvidos do
patrão, estou perdido! Desarrozoado como é ele, principalmente neste particular, vai
fazer uma estralada de mil demônios, e por certo não serei eu o poupado, eu que lhe
machuquei o melindre, que pisei em cheio no rabo da cainana!... Ah! permita Deus que
tal idéia não passe pela cabeça de Adelaide!
Capítulo XIV
Cai de todo a venda
Eram de todo infundados por este lado os receios de Conrado. Adelaide, saindo
do quarto de seu jovem camarada, correu imediatamente para seu aposento a fim de
coordenar seus idéias agitadas, cobrar alguma calma e refletir sobre o meio que
empregaria para ter pleno conhecimento da verdade a respeito da sua genealogia, que
agora via ameaçada de ser de súbito arrojada do solar da mais alta fidalguia à pocilga
das senzalas. Tinha toda confiança em Conrado, e dava inteiro crédito às suas palavras;
mas, no caso melindroso de que se tratava, teve certos motivos para desconfiar e tornar-
se incrédula. Cismou que o moço, não podendo elevar-se até ela pelo lado da geração,
levado talvez também por ciúme e despeito, queria rebaixa-la até a si.
Adelaide não levou muito tempo a refletir; veio-lhe logo à lembrança a preta
Lucinda, a escrava mais antiga do major, cozinheira, copeira e quase mordoma da casa
desde tempos imemoriais, e que impreterivelmente devia saber a genealogia dos
progenitores de sua sinhá moça. Foi logo procura-la e, depois de uma breve conversação
e rodeios preliminares, começou o interrogatório.
– Como não, sinhá? Por sinal que era uma mocetona bonita mesmo, sinhazinha
é o retrato dela.
– Quem era? Fala! Não sabes de que família era? – insistiu Adelaide.
– Ah! sinhazinha, pois o sinhô velho havia de casar com gente ruim?...
– Pois escuta, Lucinda; eu já ouvi dizer que papai é filho de um cigano, e que a
defunta mamãe foi forra na pia.
– Cruz! Ave Maria! – exclamou a preta, arrepiando-se toda, mas com certo
risozinho expressivo, que a seu despeito significava muito. – Quem é que anda contando
essas candongas a sinhazinha?... Não sei disso não; cruz!
– Qual, sinhazinha; isto é mexerico de gente que não tem que fazer. E
sinhazinha que importa com isso agora?... Deixa a boca do mundo falar. Sinhô é rico,
não é assim? Sinhazinha é bonita, prendada, e eu não vejo aí na cidade moça nenhuma
que lhe chegue aos pés. Tira isso da imaginação, sinhazinha.
Os leitores notaram por certo o desplante e seguridade com que Adelaide pedira
a seu pai que deixasse por sua conta o negócio dos estudantes; viram também como esse
espírito de vingança achou-se desapontado e encolheu as asas com as revelações de
Conrado e as respostas evasivas de Lucinda.
– Então, minha filha, que fizeste? – perguntou o major, no dia seguinte, à sua
filha, vendo que ela nem tocava em semelhante assunto. – Não me pediste que deixasse
por tua conta o castigo dos biltres que te insultaram?
– Sim, meu pai; não duvido do que diz; mas todos esses figurões serão também
capazes de nos atirar lama à cara no dia em que eu não quiser corresponder à... Oh! meu
pai, deixemos de nos intrometer nem com estudantes, nem com fidalgos; fiquemos
sossegados em nossa casa, e deixemo-nos de bazófias. Cada um deve conhecer o seu
lugar; não há coisa pior do que andar alardeando fidalguia, mesmo para quem a tem.
A esta réplica, curta e incisiva, o major nada ousou objetar, e embuchou todo
amuado e de mau humor.
Belmiro também, que seduzido por falazes aparências ainda nutria algumas
lisonjeiras ilusões, lembrando-se do convite, que tivera para dar lições de violão à
menina, animou-se a ir um dia à casa do major. Não foi bem mais sucedido que os
outros, Adelaide foi também invisível para ele, e o pai só apareceu para declarar-lhe
positivamente que a filha não queria mais estudar violão, e que de mais a mais estava
resolvido a cortar todas as suas relações com estudantes. Belmiro, que estava ao fato das
ocorrências, mas que realmente não tomara parte nelas, antes reprovara alta e
categoricamente o procedimento de seus colegas, começou a balbuciar algumas frases,
tentando em vão justificar-se; seu discurso foi atalhado in limine, e teve de retirar-se
como os outros, inteiramente desapontado e desencantado. No dia seguinte, compôs e
atirou às auras da publicidade algumas estrofes descabeladas, repassadas de fel e
desespero, em que prometia suicidar-se. Mas não consta que cumprisse a promessa, nem
tampouco que seus versos fossem lidos por Adelaide.
Antes de terminar este capitulo, não é indispensável declarar que, assim como
Belmiro, nenhum dos outros seus companheiros, que no começo desta história achamos
reunidos na casa da Rua da Constituição, teve parte na cruel vindita, com que alguns
desalmados procuraram desforçar-se dos desdéns da filha do major.
O Azevedo também não foi entrado nessa trama, pois quando ela se deu, já se
achava ausente em férias.
– Então, como vai a tua Adelaide? – perguntou ele, em março do ano seguinte, a
Belmiro, com quem se encontrou na Academia.
– Sim?! Então não prosseguiste com o teu namoro?... Pois é pena; ia tão bem
encaminhado...
– Como! Eu?...
– Pois bem, hás de também estar lembrado que, no primeiro dia que lá fui, dei a
D. Adelaide um cravo caboclo, caso de que muito te aproveitaste para manter-me à
bulha.
– Isso é verdade.
– Pois sim; tu fizeste pior. Eu dei-lhe flor cabocla, mas mui linda e mui
cheirosa, e tu lhe ofereceste um verdadeiro caboclo de carne e osso, que a dizer-te a
verdade, não é dos mais lindos, e para que? Para seu mestre de música!... Confessa que
fizeste aquilo por despeito e de propósito para achincalhar a moça.
– Não, meu Belmiro, acredita-me; como vi que ela gostava muito de música, foi
só para tirar-te essa vantagem que apresentei o Couto, compreendes?... Eu queria
reconquistar a posição de que ias me desalojando.
– E com isto produziste a mais temível das crises. O meu cravo caboclo foi o
prólogo desse drama; o teu violonista caboclo produziu o entrecho; o pasquim dos
estudantes trouxe o terrível desenlace.
Assim pois, tanto o major e sua filha como eu e o leitor, daqui em diante, ao
menos por muito tempo, vamos nos ver livres de estudantes.
Capítulo XV
A consciência humana é como um tanque cujo fundo não se pode ver, quando a
água está turvada e revolta, mas sim quando, em estado de perfeita inquietação, se
mostra em toda a sua serenidade e limpidez. É assim que Adelaide, depois que se
recolheu à vida do silêncio e do repouso, livre das distrações, que lhe arrebatavam o
tempo, e das inquietações, que lhe alvoroçavam o espírito, pôde ler distintamente, no
fundo do seu coração, o que realmente ai se achava gravado em caracteres indeléveis.
Reconheceu que amava muito a seu companheiro de infância, que fora esse amor que a
tinha preservado de ligar-se por laços mais íntimos a algum dos amantes que até ali a
tinham galanteado, e que somente a consideração da pretendida desigualdade de posição
social fizera com que até ali ela, procurando iludir-se a si mesma, tentasse em vão
esquivar-se à influência desse sentimento, que desde a infância havia germinado e pelo
decurso do tempo lançado raízes profundas em seu coração. Agora que as revelações de
Conrado acabavam de nivelar as condições de ambos, não tinha mais de que corar,
consagrando os afetos de sua alma a um homem que era seu igual. A esperança de um
amor feliz a bafejava, e parecia-lhe possível conseguir que se pai, desistindo de suas
loucas pretensões aristocráticas, firmasse enfim a felicidade de ambos consentindo em
seu casamento. Em conseqüência, suas relações com o jovem camarada foram se
tornando menos tímidas, e mais assíduas e afetuosas. Adelaide tinha o coração propenso
ao amor e à ternura, e um temperamento vigoroso e ardente, sobre o qual a sensualidade
exercia naturalmente grande domínio. No isolamento, a que se viu condenada, parte por
forças das circunstâncias, parte por sua própria deliberação, essas qualidade ou defeitos,
em vez de se refrearem, desenvolveram-se em toda a sua plenitude, porque acharam
para isso já predispostos condições e elementos os mais favoráveis.
–Há males que vem para o bem – disse ela um dia ingenuamente a Conrado.
– Não.
– No tempo em que eu me julgava fidalga, lhe queria bem, é verdade; mas tinha
não sei que receio ou vergonha de lhe falar nisso. Isso, pode acreditar que era muito
contra a minha vontade; eu vivia constrangida, e era bem infeliz, porque julgava que
estava condenada a casar-me com quem meu pai quisesse; estudante, doutor ou fidalgo.
Isso para mim era um suplício, se bem que não deixasse de divertir-me à custa dessa
gente que se reunia aqui em casa. Hoje não; sou outra; já sei quem sou. O senhor me
entende, creio eu.
– Oh! sim, sim, creio que sim! – exclamou o mancebo em uma efusão de júbilo
que mal podia comprimir. Se não estou enganado no modo de entender suas palavras,
minha querida patroa, sou a criatura mais feliz deste mundo.
– Oh! mil graças! – dizia o mancebo, apertando com indizível emoção entre as
suas a mão que Adelaide lhe abandonava. – Mil graças!... Não faz idéia do quanto me
torna feliz.
Depois desta singela e ingênua declaração de amor, feita por meias palavras, os
dois jovens se entregaram sem constrangimento à expansão de um sentimento que, de
dia em dia, se tornava mais intimo e extremoso, conquanto procurassem
cuidadosamente ocultá-lo aos olhos do major, que, entretanto, não era muito perspicaz
para surpreender os segredos do coração.
Adelaide era como o leitor já sabe, de uma beleza plástica e mais provocadora.
O seio túrgido, sempre arfando em mórbida ondulação, parecia o ninho da ternura e dos
prazeres; o olhar, a um tempo cheio de meiguice e de fogo, como que derramava
fulgores divinos sobre toda a sua figura; as faces róseas os lábios purpurinos eram como
esses pomos vedados, que no paraíso seduziram os progenitores da humanidade e
ocasionaram sua primeira culpa; e o porte dotado de elegância natural, com suas
voluptuosas ondulações e meneios graciosos pareciam estar cantando eternamente o
hino de amor e de volúpia; as feições, não muito corretas, eram animadas por uma
fisionomia de tão encantadora expressão, que impunha a adoração, sem dar tempo à
observação.
O major, ora trancado em seu gabinete, ora na quinta dirigindo o trabalho dos
escravos, parecia esquecido que tinha em casa uma filha de dezesseis anos em
companhia de um bem apessoado rapaz de dezenove a vinte, e ou porque tivesse nela
absoluta e cega confiança, ou porque não compreendesse quão melindroso e frágil vaso
é a honestidade de uma donzela, não nutria a menor apreensão. A tia Eulália, irmã do
major, essa era de todo incapaz de compreender o que se passava em torno dela, e só
cuidava em dar milho às galinhas e em rezar. A velha escrava Lucinda, a única que
talvez já maliciava alguma coisa a respeito das relações entre os dois jovens, nenhum
interesse nem obrigação tinha de embaraça-las... Debaixo de tão felizes auspícios e com
tantas facilidades, os amores de Adelaide e Conrado deram em resultado o que deixo o
leitor adivinhar.
Conrado, moço dotado pela natureza dos mais nobres sentimentos, cheios de
honra e pundonor, tinha até então adiado o pedido, que pretendia fazer ao major, da mão
de sua filha, e isso de acordo com ela. Pretendiam, antes de dar esse passo, preparar o
terreno, procurando desvanecer as bazófias e prejuízos aristocráticos do velho, e por
meios brandos e suasivos reduzi-lo a sentimentos mais cordatos e razoáveis. Coitados!
quanto se enganavam!... Mal pensavam que era isso uma empresa absurda e quase
impossível. Mas nutriam essa esperança, e isso os desculpa.
Depois de sua falta, porém, Conrado compreendeu e fez sentir à sua amante
que não convinha haver mais dilatação, e que era forçoso resolver quanto antes, de um
modo franco e expedito, as dificuldades de sua situação. O que mais afligia ao mancebo
era seu estado de pobreza; pouco possuía para abalançar-se e pedir a mão da filha de tão
opulento negociante. Era isso só o que o humilhava, porque só nisso consistia sua
inferioridade; quando ao mais, estava pronto a apresentar-se ao major como igual a
igual, embora com isso tivesse de ofender as estólidas veleidades aristocráticas do
patrão. Refletindo nisso, tomou uma resolução inspirada por seus nobres sentimentos.
- Patrão – disse ele – eu já estou homem feito; preciso tratar do meu futuro; o
patrão quase que não trata mais de negócios; a minha estada aqui não lhe é mais de
utilidade alguma; e bem vejo que só por pura afeição e generosidade que me conserva
em sua companhia. O patrão tem sido para mim um verdadeiro pai, e portanto é meu
dever pedir sua licença para me deixar sair em negócio por minha própria conta.
– E por que não me vieste pedir? Ou em dinheiro ou em abono, bem sabes que
eu não era capaz de negar-te.
– Sei disso, patrão, e beijo-lhe as mãos, mas já lhe tenho sido bastante pesado, e
não tive ânimo de importuna-lo.
– Deus o ouça, patrão; mas não pense que me despeço por uma vez de sua casa;
apenas der conta de meus negócios, bem ou mal sucedido, é aqui mesmo que hei de vir
apear-me.
Capítulo XVI
O Hóspede
Passado um mês, pouco mais ou menos, depois desta solene intimativa, em que
uma bela tarde de setembro, apeava-se à porta do major Damásio um garboso mancebo
que, pelos trajos e pela comitiva que o acompanhava, parecia um rico viajante, que
vinha visitá-lo ou pedir-lhe hospedagem. Vinha montado em um lindo cavalo pampa,
ricamente arreado à moda curitibana, com um socadinho e todos os mais jaezes cobertos
de prataria. O jovem viandante trazia também à moda dos guascas um pala listrado
atirado ao ombro, botas de mateiro e chilenas de prata, chapéu preto de feltro, e
pendente ao punho um desses bonitos chicotes com o cabo coberto de um lindo e
delicado tecido de prata, admirável industria dos habitantes de Sorocaba, Curitiba e Rio
Grande do Sul; um cinturão de marroquim apertava-lhe o talhe esbelto. O mancebo era
gentil figura, e envergava com natural elegância e desembaraço todo esse trajo pitoresco
e original. Acompanhavam-no um pajem preto, trajando vistosa libré, e dois camaradas
rebarbativos, com suas garruchas pendentes ao arção, laço à garupa e comprida faca
presa ao cinturão. Logo se via que era um rico muladeiro.
– É verdade, meu caro patrão; comprei uma bonita mulada de mil cabeças, que
andei vendendo pelas províncias de Minas e do Rio de Janeiro. A monção era excelente;
havia muita falta de animais; vendi quase tudo à vista e a bom dinheiro, de modo que
realizei de lucro líquido uns vinte e tantos contos de réis.
– Por certo; mas antes de tudo tenho de fazer um pedido muito sério e muito
importante ao patrão. Se nesse pedido eu não for atendido, não sei o que hei de fazer,
porque nesse caso também pouco me importa ser rico ou pobre.
– Pois fala, rapaz, não te acanhes; bem sabes que no meu possível estou sempre
pronto a te servir- disse o major, repoltreando-se em seu assento, com ar protetor, sem
nem de leve desconfiar em que delicada tecla o mancebo ia tocar.
– O pedido que desejo fazer-lhe, senhor major, é a mão de sua filha – disse com
voz trêmula de emoção. – Bem sei que, por minha humilde posição, a não mereço; mas
desde pequenos eu e ela nos queremos, e eu da minha parte farei por alcançar posição
honrosa na sociedade e tornar-me digno...
– Não! não! mil vezes não! – bradou o major, em um violento acesso de cólera.
– Que outra resposta poderia esperar de mim o Sr. Conrado?
– O patrão não me poderá dizer qual o motivo por que de maneira alguma quer
consentir em meu casamento com a senhora sua filha?...
– Pergunto, sim senhor, porque desejo saber – respondeu Conrado, com toda a
calma.
– Não, senhor.
– Pois fique sabendo de hoje em diante que um pobre peão, a quem por
misericórdia estendi a mão em Curitiba, só porque hoje possui algumas patacas, não
pode, nunca poderá ser pretendente à mão da filha do Major Damásio Augusto Bueno
de Aguiar e Andrada!...
– Mas senhor major, atenda que não sou eu só que quero e desejo esse
casamento; ela também o quer, e disso depende a sua felicidade.
– Ela o quer!... quem lhe disse isso? Duvido que a filha do Major Damásio
queira se casar com o ex-capataz de seu pai.
– Bem; é o que vou fazer, e se ela disse que sim, não é mais minha filha.
– Não é e nunca será do meu agrado – continuou ele com voz sacudida. –
Nunca esperei que minha filha desprezasse as homenagens de tantas pessoas de alta
hierarquia para abaixar sua vista sobre um criado da casa! Oh! isto é uma vergonha!
Pensa bem no que dizer e no que pretendes fazer, minha filha!... Queres encher de
desgosto e de vergonha os últimos dias de teu velho pai!?
– É o que estou fazendo, senhor major, pedindo a mão de sua filha – bradou
ele, com resolução e altivez. – Não vejo entre nós desigualdade alguma, senão talvez em
meu favor.
– O que está a dizer?... Repita, se é capaz! – gritou por seu turno o major,
chegando-se a Conrado com gesto ameaçador.
Capítulo XVII
A explosão
– Então, de mais a mais o senhor – disse o major por fim, com voz rouca e
estridente – veio à minha casa também com o propósito de insultar-me? Bem pouco me
importa, Sr. Conrado, que seus pais tenham sido pobres ou ricos, honrados ou não; o
que sei é que nunca hei de fazer de um simples camarada o marido de minha filha. Com
que cara se apresentaria ela diante dos nobres personagens, que me honram com sua
amizade!... Houvesse o que houvesse entre os dois –tomem bem sentido no que vou
dizer – houvesse o que houvesse entre os dois, enquanto eu vivo for, juro por Nossa
Senhora da Lapa, e dou minha palavra de paulista, Adelaide nunca será mulher de
Conrado! Pode, pois, meu rico senhor, montar em seu cavalo, e dizer adeus para sempre
a esta casa. O que eu disse uma vez, está dito, e não gosto de repetir.
– Meu pai! meu pai! – exclamou Adelaide, com voz pungente, estendendo
mãos suplicantes.
– Pois bem! – disse o major dando dois largos passos para um lado e
empunhando duas pistolas, que estavam sobre uma mesa. Sobressaltando com esse
movimento, Conrado levou a mão ao seio e apertou o cabo de uma faca, que trazia presa
à cava do colete.
– Pois bem! – continuou o major, com voz trêmula e sinistra. – Vá; traga os
seus agentes da justiça para tirar-me a filha. Em vez dela, hão de levar-me a mim, salvo
se quiserem levar o seu cadáver.
Estas palavras e esta mímica horrível gelaram de pavor o coração dos dois
mancebos. Nada mais havia a esperar. Adelaide, aterrada, levantou-se a custo, lançou
um olhar consternado sobre seu amante, e quase a desmaiar precipitou-se, cambaleando,
para o interior da casa. Conrado tomou o chapéu e o chicote, e, inclinando-se, à porta do
gabinete:
– Senhor major – disse com voz solene – eu parto, com o coração despedaçado;
mas o senhor espere, cedo ou tarde, o castigo do seu indigno e brutal procedimento.
E saiu arrebatadamente.
Tudo parecia estar perdido sem remissão para Adelaide e Conrado. Tanto um
como outro, posto que sabedores da balda do major, estavam longe de prever que ela
pudesse chegar a tal auge de cegueira e de alucinação e degenerar assim na mais feroz
insensatez. Casar Adelaide com um marido de ilustre família e de alta posição na
sociedade fora sempre o sonho dourado da vida do Major Damásio, o remate de sua
felicidade na terra; e esse sonho, que ele sempre afagara na louca fantasia, e para cuja
realização eram todos os cuidados, todas as atenções de espírito, via-o agora esvaecer-se
como fumo, desmanchado pela veleidade, para ele inconcebível, de um mero capataz e
pelo louco capricho e leviandade da filha! Isso vinha esmagar-lhe o coração com todo o
peso de uma tremenda catástrofe, e ainda mais entenebrecer-lhe a inteligência, já de si
acanhada e de pouca elevação, e mais endurecer-lhe o coração, já por natureza pouco
propenso à ternura.
O pasquim dos estudantes apenas fizera passageira mossa em seu ânimo, e não
conseguira senão agitar de leve, mas não dissipar, as fumaças de fidalguia que lhe
toldavam o cérebro. Essa maldita monomania do major já por si só era bastante para
constituir uma barreira de separação, talvez insuperável, entre Adelaide e o jovem
camarada. Depois porém que este, em má hora, levado pela indignação do pundonor
ofendido, teve a desastrada idéia de rememorar-lhe a obscuridade de sua íntima
procedência, e de rasgar-lhe na face o pergaminho de sua imaginária fidalguia, toda a
possibilidade de acordo e conciliação entre eles desapareceu. Ao despeito da fatuidade
ofendida veio juntar-se o mais violento rancor.
Sua infeliz filha também, se não incorreu em seu ódio, teve de sofrer as
terríveis conseqüências de seu vivo e profundo ressentimento. Tendo perdido a
esperança de leva-la a bom caminho segundo as suas vistas, tomou a peito castigar-lhe a
rebeldia embargando-lhe o caminho de tranqüilidade e ventura, que o destino para ela
tinha preparado.
Capítulo XVIII
Conrado, como se pode imaginar, saiu da casa do major com a cabeça em brasa
e com o coração em torturas. Á vista da ferrenha e feroz obstinação do velho, nenhum
outro recurso lhe restava para apossar-se do objeto de seu amor, não um rapto. Conrado
concebeu esse plano, e combinou todas as medidas necessárias para arrancar
furtivamente Adelaide ao poder de seu pai. Para logo, porém, opuseram-se à realização
de seu projeto dificuldades insuperáveis.
Adelaide, vítima da tirania e loucura paterna, vivia em uma reclusão mais triste
e apertada do que uma freira em sua cela, ou uma odalisca no harém. Lucinda, sua
escrava favorita, que mais receio e desconfiança podia inspirar não só pelo afeto e
dedicação que votava a sua senhora como também por sua sagacidade e atilamento,
tinha sido arredada para bem longe.
A tia Eulália, mulher quase idiota, sem alma e sem coração, essa nem mesmo
parecia dar fé do que se passava, e mal notava o estado de tristeza e batimento em que
vivia a sobrinha. Por essa sorte, a mísera moça nem mesmo tinha com quem abrir seu
coração e desabafar suas mágoas.
Uma coisa porém lhe torturava o coração, e quase lhe tirava o ânimo para pôr
em prática essa resolução extrema; era ter de partir sem poder ver a sua idolatrada
amante, sem poder dizer-lhe um adeus de despedida, confirmar-lhe seu eterno amor,
pedir-lhe que o não esquecesse, conforta-lo a sofrer com resignação as adversidades do
presente, esperando que no futuro o céu lhes deparasse quadra mais favorável. Mas
refletindo que, enquanto permanecessem em S. Paulo, jamais cessariam a triste reclusão
e a incomunicabilidade em que vivia Adelaide, e que assim se prolongariam
indefinidamente os sofrimentos dela, sem que ele em nada pudesse valer-lhe, e por esse
modo tanto valia ficar ali como a cem léguas de distância, confirmou-se no propósito
inabalável de ausentar-se.
Antes de partir, escreveu uma longa carta dirigida a Adelaide, em que lhe dava
conta do que pretendera e não pudera fazer depois da cena terrível, em que pela última
vez se viram; confirmava-lhe seu ardente e inextinguível amor, exortava-a a não
desesperar do futuro, e participando-lhe que ia ausentar-se para bem longe, esperando
que o céu se amerceasse deles, acalmando as iras do major e inspirando-lhe sentimentos
mais humanos e razoáveis.
Como era de esperar que, com sua ausência, se relaxasse o rigor da reclusão
incomunicável em que vivia Adelaide, confiou essa carta a um amigo, para que, quando
se oferecesse oportunidade, a fizesse chegas às mãos de Adelaide sua amante.
– Minha filha – disse ele, dirigindo-se então a Adelaide pela primeira vez,
desde o dia em que Conrado, pela última vez, lhe aparecera – espero que já estejas
curada da loucura que te passou pela cabeça, de te casares com o ex-capataz de teu pai.
Entretanto, é tempo de tomares estado; se aceitas o marido que eu te escolher, – e a
dificuldade está na escolha –, irei imediatamente tratar disso. Se não, apronta-te e
dispõe-te para entrares no recolhimento de Nossa Senhora da Luz ou de Santa Teresa.
Não quero mais que me faças passar pelo desgosto de te ver dar cabeçadas como essa
que querias dar, casando-te com um camarada, um pé-de-poeira.
– Meu pai – disse tristemente a moça – não tenha o menor receio de que meu
coração se entregue a novos afetos. Sou bem infeliz com o meu primeiro para poder
pensar em outros. O meu desejo é mesmo recolher-me à solidão de um convento,
embora não possa professar, como desejo. Já estou acostumada ao retiro e ao
isolamento. Só peço a meu pai que aguarde isso para daqui a mais alguns meses.
O pai anuiu não de muito bom grado aos desejos da filha, e sem indagar os
motivos que levavam a adiar o cumprimento de sua resolução, desta vez, comovido pelo
estado de melancolia e abatimento em que a via, não ousou contrariá-la.
Entretanto, avizinhava-se o tempo em que Adelaide devia ser mãe; sua situação
tornava-se cada vez mais apertada e melindrosa, e já nem sabia como ocultar à gente de
casa as aparências de sua falta, já muito manifesta a olhos mais perspicazes e
escrutadores do que os do major.
A pobrezinha não tinha com quem se entender, nem a quem confiar seu
coração e os cruéis apuros em que se achava. A reclusão e isolamento, a que seu pai a
condenara durante quase dois meses, foi um mal, que ela aceitou como um favor do céu,
porque assim sem dar motivo a desconfianças, podia esconder-se e subtrair-se às vistas
curiosas; desejaria que se prolongasse por mais algum tempo; mas as circunstâncias
mudaram, e ela se via nos mais aflitivos embaraços. Lembrou-se, então, de pedir a seu
pai que fizesse voltar para a casa a preta Lucinda, única pessoa que conhecia suas
fraquezas, e que lhe podia valer em tão críticas e delicadas conjunturas.
Felizmente foi atendida. Adelaide, com as lágrimas nos olhos, contou tudo à
boa e fiel escrava.
– Não tem nada, sinhazinha; sossega seu coração, que tudo se há de arrumar –
disse ela, procurando tranqüilizar e consolar sua senhora. – Deus é grande, e sua negra
está aí.
Como todos os males deste mundo têm alguma compensação, e nos maiores
infortúnios sempre se dá alguma circunstância favorável para os minorar, aconteceu que
o major, desgostoso com o malogro dos casamentos aristocráticos, que pretendia
angariar para sua filha, e enjoado da vida insípida que levava no retiro de sua chácara,
tomou a resolução, para se distrair, de sair de casa e andar de novo em giro de negócio
como muladeiro. Posto que algumas leves suspeitas lhe assaltassem o espírito a respeito
das relações de sua filha com o capataz, elas foram pouco a pouco se desvanecendo, e à
pouca perspicácia de seu pai, este nem de leve suspeitou o grave e melindroso estado da
filha. Demais, Adelaide já lhe tinha declarado que estava no firme propósito de entrar
para um recolhimento, e o pai, capacitado da sinceridade e da persistência dessa
resolução, perfeitamente tranqüilo a respeito do procedimento da filha durante a sua
ausência, ajustou camaradas, fez todos os preparativos, e partiu para o seu giro,
deixando Adelaide e o governo da casa aos cuidados de sua irmã Eulália.
Capítulo XIX
Mês e meio pouco mais ou menos depois desses acontecimentos, uma jovem e
linda senhora, recolhida em seu aposento, fazia esforços supremos para abafar gemidos
e gritos de dor. Era o fruto de um amor furtivo, não consagrado pelos laços do
matrimônio, que estava prestes a vir respirar o ar da vida; era um pobre anjo, que se via
obrigado a nascer na sombra do mistério para ocultar aos olhos do mundo a falta de seus
progenitores.
Entretanto, a doce claridade, que através dos vidros entrava pela janela, que
dava para o jardim e o pomar, mesclando-se à frouxa luz de uma lâmpada única, que
alumiava o quarto, expandia nele certa calma suave, própria para inspirar conforto e
esperança àquelas duas aflitas mulheres.
Enfim o silêncio, que ali reinava apenas interrompido pelos gemidos surdos e
abafados da paciente, foi quebrado pelos vagidos de uma criança. Era uma linda
menina, que no mistério de uma noite plácida e silenciosa vinha respirar a aura de uma
vida debaixo de tão tristes auspícios. Lucinda pensou a criança com toda a perícia e
delicadeza, como se fora uma parteira profissional, enfaixou-a com todo cuidado, e a
depôs no regaço de Adelaide, que a beijou, não com esse sorriso de inefável beatitude
que banha os lábios da jovem mãe, que vê entre seus braços o fruto de seu amor, mas
por entre um véu de lágrimas. Ah! por certo não podia beijar com alegria aquela, que o
destino arrancava do seio materno para passar a braços estranhos e desconhecidos.
– Que bonito! – exclamou a preta, deitando olhos curiosos para fora da janela.
– Se sinhazinha pudesse ver como está bonita a noite!... Está tudo tão sossegado!... O
céu tão limpo!... Meu Deus! que noite tão clara, tão serena e tão cheirosa!... E esta
cantiga?... Não está ouvindo, sinhazinha?... É um céu aberto!... Tudo isso quer dizer
fortuna para a menina que nasceu.
– Quem sabe, Lucinda?... Pode ser feliz quem nasce nestas circunstâncias, e
nunca talvez terá de conhecer pai nem mãe? Pobrezinha! – suspirou a moça, apertando
ao seio a criancinha e banhando-a de lágrimas.
Foi para essa casa que Lucinda, ao ganhar a estrada, se dirigiu com seu débil e
precioso fardo. A preta conhecia Há muito a velha Nhá Tuca, e posto que não
conhecesse íntima e particularmente seus costumes e viver doméstico, sabia, pela voz
pública, que era uma senhora de bem, e mesmo de sentimentos caridosos. Demais,
estando ali na vizinhança e em lugar retirado, sua sinhazinha podia lá ir de quando em
quando, em ar de passeio, e gozar o prazer de ver e afagar sua filhinha, sem que
ninguém pudesse desconfiar coisa alguma. Nenhuma casa, portanto, lhe pareceu, e com
razão, mais apropriada do que a de Nhá Tuca para lhe ser confiado tão sagrado depósito.
À porta dessa casa, Lucinda parou e escutou; a primeira alva do dia começava a
despontar; tendo percebido rumor dentro, e vendo que a gente da casa começava a
despertar, depositou a criança e o embrulho no limiar da porta; e afastou-se; mas apenas
achou-se a uns cem passos de distância, parou e, escondendo-se entre uns arbustos à
beira do caminho, ficou à espreita do que sucederia. Passados poucos minutos, a porta
abriu-se, e ela viu ser recolhida a criança com grandes mostras de surpresa e causando
como era natural, grande alvoroço em toda a casa, mas segundo lhe pareceu, com ares
de carinho e compaixão; e voltou para casa, tranqüila e satisfeita.
Já o sol ia bem alto, quando Adelaide despertou de seu longo e profundo sono.
Posto que prevenida e cúmplice na sorte que se ia dar à sua malfadada filhinha, seu
coração constrangeu-se amarga e dolorosamente, quando, ao acordar, não a viu a seu
lado e se viu mãe sem filha.
À tarde Lucinda saiu, e foi em ar de passeio, até a casa de Nhá Tuca com o fim
de saber novas da pequena exposta; para lá se dirigiu para entrar na bodega como quem
quer fazer alguma compra, mas com o fim principal de puxar conversa e ouvir novas da
criança, que nessa madrugada lá havia depositado. Mas antes que o fizesse, olhando
pela porta aberta de uma saleta da frente, diante da qual tinha de passar para chegar à
venda, deu com os olhos em um pequeno féretro posto sobre uma mesa no meio da sala,
no qual se achava amortalhada uma criancinha com simplicidade e pobreza, mas com os
enfeites e flores do costume. A esse espetáculo Lucinda sofreu tão violento abalo no
coração, que esteve a ponto de desfalecer; todavia, esforçou-se por dominar sua
comoção e chegou-se à porta para examinar o cadáver. Era evidentemente uma criança
recém-nascida, de cor mimosa e branca, como a sua enjeitadinha; não podia ser senão a
filha da sua sinhá. Para melhor verificar o caso, entrou na venda, e aí ouviu a triste
confirmação do que já tinha como quase certo.
– Enjeitaram aqui hoje, pela manhã – dizia Nhá Tuca à Lucinda e a outros
curiosos que se achavam na venda –, uma pobre criancinha muito bonitinha. Coitada!
tive uma pena dela!... Não sei como há gente neste mundo que tem ânimo de enjeitar
seus filhos!... E eu também tomara poder cuidar na minha vida; não tenho tempo para
andar criando os filhos dos outros, não. Mas assim mesmo pobre, como sou, não quis
desamparar a pobre criança, e estava pronta para criá-la, porque, até esta mesma noite,
me pariu aqui em casa uma mulata, que bem podia dar de mamar a duas crianças... Mas,
mecês que querem?... O maldito ou a maldita, que trouxe a criança, parece que a
carregou aos trambolhões, como quem carrega um porco; de maneiras que a coitadinha
da criança chegou toda machucada, e com o umbigo esvaindo em sangue!... Está! E não
houve mais remédio! Ali está motinha, coitada!...
– A menina – continuou Nhá Tuca – ali pelas dez horas, mais ou menos, entrou
em convulsões, e não houve chá, fomentação, nem benzedura que eu não fizesse; nada
pôde lhe valer. Ali pela volta do meio-dia entregou a alma a Deus. Não sabia se era
batizada, e portanto, aqui nesse ermo, onde a gente não encontra, quando quer, nem
padre, nem surjão, mandei chamar um vizinho para batizá-la. Graças a Deus, não
morreu pagã, e vai ser enterrada em sagrado na Igreja de Santa Ifigênia. É uma despesa
que Deus sabe quanto me custa – terminou soltando um estrepitoso suspiro. – Mas seja
tudo pelo amor de Deus!
– Meu Deus! meu Deus! levaste minha filhinha!... Bem! é um anjo, que
chamaste para perto de ti, para interceder por mim, pobre pecadora. Agora, chama-me
também, e leva-me para junto dela.
– É verdade, sinhazinha; aquela música, que estava tocando, quando ela nasceu,
não era cá da terra. – Eram os anjos do céu que estavam esperando sua irmãzinha –
disse Lucinda. E ambas puseram-se a chorar amargamente.
FIM DO 1º VOLUME
ROSAURA, A ENJEITADA
BERNARDO GUIMARÃES
Tomo II
CAPÍTULO I
Eram passados doze anos, depois dos acontecimentos que acabamos de narrar.
Em uma sala mobiliada com bastante luxo, se bem que não com muito gosto, em um
sobrado da Rua de S. Bento, na cidade de S. Paulo, uma linda menina de dez anos
estava sentada ao piano, dedilhando, com volubilidade e bem pouca atenção, as lições
de Hünten. À direita, ao pé dela, achava-se também sentada em uma cadeira, com a mão
na face e acotovelada sobre a mesa do piano, uma senhora que poderia ter, quando
muito, trinta anos, e que parecia observar, com certo orgulho e complacência, o estudo
da gentil menina. Era uma senhora morena, de fisionomia regular e simpática, de
grandes olhos negros e lânguidos e que tinha bem conservada ainda uma beleza que, no
viço dos anos, devia ter sido das mais encantadoras. Pelo primoroso cuidado com que se
trajava, pelas maneiras e ademanes um tanto afetados, via-se que ainda predominava
nela esse fundo de vaidade inseparável das moças formosas, mesmo quando essa
formosura já vai declinando para o ocaso. A desta, porém, ainda não declinava; nem
cãs, nem rugas, nem macilência denunciavam nela a época da decadência. Não era já a
tenra e mal aberta flor, brilhante de viço e frescura e ainda rociada das pérolas da
aurora; mas sim a flor que alardeia, desabrochadas em toda sua plenitude, as pétalas
formosas ao fulgor de um belo sol de estio.
Brincavam também em torno dela, pela sala, entrando e saindo, mais três
crianças de mais tenra idade, interrompendo a cada passo com suas travessuras o estudo
da pianista, que em vão se zangava e ralhava com elas.
– Estela - disse a moça com voz suave, estendendo a mão e fazendo parar de
chofre os róseos dedinhos da menina, que esvoaçavam ligeiros como borboletas sobre o
teclado – estás hoje muito rudezinha; disseste muito mal esse último compasso; repete
ainda uma vez; não quero que a mestra venha ralhar contigo.
– Ah! logo vi; teus dedos estão correndo pelas teclas, enquanto teu sentido
mesmo anda bem longe, tontinha!
– Não, mamãe; estou esperando papai para jantar; estou com saudade dele, e
também com fome. Olha, mamãe – acrescentou, apontando para um lindo pêndulo que
estava sobre um aparador, – já são quase quatro horas.
– Qual saudade, nem fome!... Estás com sentido é na mulatinha, que teu pai foi
comprar para ti, e que prometeu trazer hoje. Sossega esse coraçãozinho, que ela há de
vir; se não for hoje, há de ser amanhã, porque já está comprada e paga.
– Ah! já faz hoje mais de oito dias que papai está comprando essa mulatinha, e
nunca mais ela vem.
– É porque ainda não tinha encontrado uma que servisse; mas agora já achou, já
comprou, e há de vir.
– Hei de, hei de, sim, minha filha. Arre lá! sufocas-me com tantas perguntas.
Nesse ponto da conversação, ouviu-se rumor de gente que vinha subindo a
escada.
Estela e seus irmãozinhos correram logo para o topo da escada; a mãe deixou-se
ficar sentada em seu lugar. Daí a instantes, entrou na sala um homem de bela presença e
elegantemente trajado.
– Entra, Rosaura; é aqui que está tua senhora dizia ele, voltando-se para trás.
Entrou logo após ele, acompanhada pelas crianças, uma linda criatura, em cuja
descrição é mister determo-nos um pouco. Era uma menina que parecia ter quatorze
anos, de belo porte, cabelos de azeviche, não mui finos e sedosos, mas espessos e de um
brilho refulgente como o do aço polido. Os olhos grandes e da mesma cor dos cabelos
tinham tal expressão de ingenuidade e doçura, que captavam logo a simpatia e afeição
de todos. A boca pequena, com lábios carnudos do mais voluptuoso e encantador
relevo, formava com o queixo, algum tanto pronunciado, e o nariz reto e afilado, um
perfil das mais delicadas e harmoniosas curvas. A tez do rosto e das mãos era de um
moreno algum tanto carregado; mas quem embebesse o olhar curioso pelo pouco que se
podia entrever do colo, por baixo do corpilho do vestido, bem podia adivinhar que era o
sol, que a tinha assim crestado, e que sua cor natural era fina e mimosa como a do
jambo. Não trazia mantilha, esses dois côvados de pano ou baeta, em que não andou
tesoura nem agulha, e com que as escravas e as mulheres de baixa classe, em S. Paulo,
usavam embrulhar a cabeça e os ombros; em vez dela trazia, sobraçado, um bonito chale
de lã, e trajava vestido cor-de-rosa; a linda e opulenta madeixa era o único ornato de sua
cabeça, e os pés calçavam chinelos de marroquim vermelho. Trajada com tal singeleza e
dotada de tanta graça e formosura, oferecia um interessante e gentil modelo de
camponesa, digno de ocupar atenção e o pincel do mais hábil artista.
– Que menina é esta que o senhor nos traz, Sr. Morais? – perguntou ela ao
marido. – Que é da escravinha, que está sempre a prometer à Estela? Ela está sempre a
amofinar-me com suas impaciências.
– Pois não está ai diante de teus olhos?! – respondeu o marido, apreciando com
desvanecimento a surpresa da mulher. – Eu tinha prometido à Estela uma jóia, e não aí
qualquer crioula beiçuda, ou mulata encarapinhada. custou-me, porém sempre achei.
Que tal te parece? . . .
– Rosaura.
– Rosaura!.. Até o nome é bonito. Vem cá, Rosaura; não sou eu a tua senhora; tua
senhora é esta menina – acrescentou, pegando Estela pelo braço e colocando-a defronte
de Rosaura.
– Hé! há! – exclamou ela, admirada. – Como é isso, sinhá! Pois essa menina é
cativa mesmo?.. É a mucama que sinhô comprou?!... Cruz!... Parece mais outra
sinhazinha. Vamos, minha filha, vamos para dentro – continuou Lucinda, tomando a
mão de Rosaura e conduzindo-a para o interior da casa. Os meninos as acompanharam,
pulando de contentes.
– Não achas, Adelaide – disse Morais à sua mulher, logo que se acharam sós –
não achas que não era possível encontrar peça mais linda para a nossa Estelinha?
– Na verdade, é muito linda criatura, – respondeu Adelaide. – Até faz pena ver
no cativeiro uma menina tão mimosa. Se ela for boa mesmo, como parece, hei de tratá-
la com todo o carinho, mais como uma companheira, uma irmã de meus filhos, do que
como escrava; e até, se for possível, o meu desejo é dar-lhe a liberdade. Uma criatura
tão bela e interessante não nasceu para o cativeiro.
– Oh! quanto a isso, mais devagar, minha querida. Poderemos forrá-la pelo
tempo adiante, se ela o merecer. custou-nos uma soma considerável, e não é para já
largarmos mão dela. Não pude arrancá-la das garras do casmurro do senhor, senão por
dois contos e quinhentos mil-réis. Como teu pai deu-me carta branca e disse-me que não
olhasse a dinheiro, mais que me pedissem, eu daria.
– Muito mais que isso vale ela – retorquiu Adelaide. – Por mim, não a largarei
mais nunca, nem por quanto dinheiro há neste mundo.
CAPÍTULO I I
O SR. MORAIS
Agora, que temos apresentado ao leitor Adelaide casada e com quatro filhinhos,
vivendo com certo luxo e ostentação no centro da cidade, tranqüila e feliz, ao menos
aparentemente, no seio de sua família, forçoso nos é voltar atrás uns doze a treze anos, a
fim de explicar que fatos se deram para operar essa transformação no destino de uma
mulher, que tanto nos interessa.
A casa do Major Damásio, que durante muito tempo se tinha tornado uma
espécie de eremitério, foi gradualmente se fazendo mais acessível à sociedade e mais
animada. A lembrança dos remoques e epigramas dos estudantes e das pretensões do
capataz ia pouco a pouco se apagando. O major, que nunca perdia a esperança de achar
para sua filha um noivo de alta hierarquia, começava a atrair de novo e convidar a jantar
alguns amigos, não excluindo mesmo, mas com algum escrúpulo na escolha, alguns
jovens da classe acadêmica. Adelaide nada havia perdido de sua formosura e atrativos,
apesar dos transes dolorosos por que havia passado; sua robusta organização havia
zombado dos trabalhos e contratempos, e a flor de sua beleza alardeava-se ainda tão
esplêndida e viçosa como dantes. Somente os sofrimentos lhe haviam estampado na
fisionomia e nas maneiras um ar mais grave e melancólico, que ainda mais realçava
seus encantos.
Damásio, que também se assinava Bueno, descobriu logo entre ele e o futuro
genro certo grau de parentesco, e doce nome de primo e prima substituíram daí em
diante os nomes próprios entre os dois namorados. Adelaide não se desagradou do
moço, o qual, na verdade, além de sua bonita figura e maneiras agradáveis e insinuantes,
parecia ser dotado de boas e sólidas qualidades. É verdade que não concebeu por ele
uma dessas paixões profundas e veementes, como a que Conrado lhe havia inspirado,
mas votava-lhe essa estima calma, porém terna e afetuosa, que é a melhor garantia da
paz e felicidade da vida conjugal.
É quase escusado dizer que houve banquete profuso e baile esplêndido, aos
quais foram convidados o compadre Tobias, o presidente da província, os lentes da
Academia, as famílias mais gradas da cidade e a nata da classe acadêmica.
Ali, à testa de seu estabelecimento, o velho major, que para o comércio tinha
bastante tino e aptidão, podia tudo superintender e vedar que o genro comprometesse
por suas imprudências os interesses da casa. Graças a esse expediente, o major pôde.se
abrigar de uma ruína inevitável, e Morais achou uma ocupação digna e honesta, com a
qual podia manter decentemente, e mesmo assegurar, o futuro da família sem meter a
mão no patrimônio do velho.
CIÚMES
A aquisição da linda escrava Rosaura foi um motivo de festa por muitos dias na
família do major. Era um mimo, que há muito o avô desejava fazer à Estela, linda e
interessante netinha, que era o seu ídolo; e para esse fim tinha dado amplas autorizações
ao genro. O mimo excedeu a sua expectativa, e valia realmente um tesouro. Rosaura,
nos primeiros dias, foi antes o enlevo e admiração da família, do que a escrava da casa.
Adelaide a tratava com carinho maternal; Lucinda a rodeava de cuidados e procurava
adivinhar-lhe os desejos; as crianças não comiam um doce, uma gulodice qualquer, que
não repartissem com ela; o major a chamava de minha tetéia, e o Sr. Morais ficava às
vezes a contemplá-la com ar tão terno e embevecido, que não deixava de causar
displicência e inquietação à Adelaide.
Quando estava em companhia, Rosaura era sempre alegre, meiga e afável; mas
Lucinda e mesmo Adelaide a tinham surpreendido a sós cismando tristemente, e às
vezes com as lágrimas nos olhos.
– Que tem, Rosaura, que estás aí tão triste e amuada e quase a chorar? –
perguntou-lhe uma vez Adelaide com ternura.
– Nada, minha sinhá; é por que estava me lembrando de minha mãe, que já
morreu.
– Ora! não chores, por favor! – replicou Adelaide, pousando a mão sobre a
linda cabecinha de Rosaura. – Eu também quase não conheci mãe, e não estou
chorando. Não chores mais, não; eu também sou tua mãe.
– Se não ceder a meus desejos, Rosaura, – dizia-lhe ele nos transportes de sua
insensata e lasciva paixão – vendo-te aí a qualquer senhor libertino e sem coração, que
fará contigo o que eu não posso, nem tenho ânimo de fazer; que te amarrará de pés e
mãos, e fará de ti o que muito bem quiser.
Morais rugia de raiva e desespero, mas nem assim deixava de prosseguir, cada
vez com mais ardor, em seus assaltos brutais contra a pudicícia da gentil escrava.
Nesses torpes manejos, por mais que Morais se esforçasse por ocultá-los não puderam
escapar por muito tempo à sagacidade de Adelaide, que depressa colheu provas
manifestas do indigno procedimento de seu marido. Ela amava-o sinceramente, e essa
triste descaída do esposo magoou-lhe cruelmente o coração. Há doze anos era casada, e
nunca até ali a mais ligeira nuvem de discórdia viera perturbar a harmonia conjugal e
toldar a serenidade do lar doméstico. Foi, portanto, um rude golpe para sua alma, golpe
que a feria e humilhava ao mesmo tempo, ver a paz, que até então tinha reinado no seio
da família, perturbada por tão ignóbil e vergonhoso motivo. Era Adelaide, como
sabemos, de temperamento ardente e irascível; não sabia abafar seus ressentimentos;
eles faziam explosão com violência. Todavia, dessa vez corando por seu marido, o pejo
e o pundonor tolheram-lhe, a princípio, as expansões de despeito e indignação, de que
trazia saturado o coração. A tal ponto, porém, chegaram os desmandos do Sr. Morais,
que ela não pôde conter-se por mais tempo. Rubra de pejo e de ressentimento,
exprobrou ao marido seus vergonhosos desvarios.
Morais sentiu-se algum tanto abalado com essas ternas e sentidas palavras da
esposa, e quase sentiu remorsos por afligi-Ia tanto com seu mau procedimento.
Como se pode imaginar, foi um passo bem difícil e penível para ela entabular
conversação a esse respeito com uma escrava e com uma quase criança; mais era
forçoso, para descobrimento da verdade e sossego de seu coração.
Parece que o Sr. Morais te persegue e atormenta com carícias excessivas. Vejo-
te às vezes correr dele assustada, como lebre que foge ao cão. Que te quer ele?.. Não me
dirás, Rosaura?
Fazendo estas perguntas, Adelaide procurava em vão disfarçar o amargor de
suas palavras com certo tom de gracejo.
– Não sei, minha senhora – respondeu a escrava, corando muito e com visível
perturbação. – Ele gosta muito de brincar comigo; mas eu tenho muito medo e respeito
dele, e por isso fujo para perto de minha senhora.
– Fazes bem, Rosaura; mas tudo isso não passará de mero brinquedo?.. Estás
bem certa disso?
– Eu acho que não passa de brinquedo: quer brincar comigo, como brinca com
sinhá Estelinha.
– Eu mesma não sei o que ele diz; não escuto nada, e vou correndo para longe,
porque tenho muito respeito, e...
A pobre escravinha queria ainda dizer muita coisa, mas de embaraçada, não
sabendo explicar-se, nada mais pôde dizer e parou na reticência, esperando mais alguma
pergunta. Adelaide, porém, não quis insistir mais; uma sinistra desconfiança lhe havia
atravessado o espírito; a boa e simples Rosaura não quis declarar à sua senhora toda a
verdade, porque, apesar de sua pouca idade, era assisuada e discreta, e não queria atear
o facho da discórdia no seio da família; com suas hesitações, porém, e suas respostas
tímidas e evasivas, teve a infelicidade de produzir um efeito mil vezes pior do que
aquele que desejava evitar. Notando as frases indecisas, a perturbação e enleio de
Rosaura, entrou pelo espírito de Adelaide a suspeita de que Rosaura era cúmplice na
deslealdade de seu marido, ou que, pelo menos, aceitava sem repugnância seus afagos, e
por isso procurava encobrir-lhe a verdade. Julgou-se duplamente ultrajada em seu
pundonor de esposa, e em sua qualidade de senhora, e tomou daí em diante tal
indisposição contra a pobre escrava, que começou a tratá-la não só com indiferença,
mas com tão pronunciada malevolência, que esmagava o inocente coração de Rosaura.
É verdade que no fundo de sua alma não se extinguira de todo esse sentimento de terna
simpatia, que Rosaura lhe havia inspirado desde a primeira vez que a vira; mas a
cegueira do ciúme sufocava quase sempre esse sentimento, e a fazia tratar a escrava
com o mais cruel desabrimento e aspereza. O mau humor de Adelaide subia de ponto, e
já não havia naquela casa a bonança, união e contentamento de outros tempos. Adelaide
ralhava sempre; os meninos andavam espantados e em gritos, vendo a bela cativa
sempre amuada e chorosa, e a mãe a mimoseá-la com os edificantes epítetos de
delambida, tarasca e outros quejandos, que eles felizmente não podiam compreender. O
major estranhava, mas nem de leve suspeitava o verdadeiro motivo da mudança de
humor de sua filha, e perguntando a si mesmo a causa desse fenômeno o atribuía à volta
de lua, e talvez a algum novo astro, - ainda em gestação, que vinha aumentar a brilhante
plêiade de sua ilustre descendência. Morais, sem deixar de ativar suas diligências para
seduzir a infeliz menina, todavia andava cabisbaixo e desconfiado. Assim Rosaura vivia
em contínua tribulação entre as perseguições do senhor e a rispidez e malevolência da
senhora. O demônio da discórdia tinha roçado sua asa negra por aquele lar, há pouco tão
feliz, alegre e esperançoso.
CAPÍTULO IV
DESCOBERTA
– Ah!... meu Deus! – exclamou ela – espera, menina; deixa ver o que é isto que
você tem aqui debaixo do peito esquerdo.
– Jesus!... Santo nome de Jesus! – murmurou ela, com voz sumida, quase
falando consigo mesma. – Que é isso, Deus grande!? Será possível que essa Rosaura
seja a filha de sinhá Adelaide!... Rosaura, o que foi isto? Conta-me! – continuou ela,
com voz mais clara. – O que é que você tem?.. Sinhá te ralhou?
– Não – respondeu soluçando a pobre menina sinhá não me ralha; meu senhor é
que me persegue.
– Ah! coitadinha!... Logo vi. Você pensa que eu já não percebi a má tenção de
sinhô moço?.. Cruz! que homem ruim é aquele! mas sossega, minha filha, não há de ser
nada. Eu vou buscar roupa para você mudar, e depois você há de me contar uma coisa.
– Pois sim, tia Lucinda; vai mesmo, vai me buscar outro vestido, que eu assim
não posso aparecer; o que é que sinhá Adelaide há de pensar de mim, vendo-me neste
estado? Lucinda, como o leitor deve lembrar-se, foi quem recebeu nos braços, quando
veio à luz do mundo, a mimosa e infeliz criança fruto dos amores clandestinos de
Conrado e Adelaide; foi ela quem lavou, pensou, vestiu e depois expôs, com boas e
louváveis intenções, a mísera recém-nascida à porta de Nhá Tuca. Tinha-lhe feito
impressão e trazia gravado na lembrança um sinalzinho nluito distinto, que a criança
tinha do lado esquerdo, pouco mais ou menos na altura do coração, em forma de cruz,
semelhando um hábito do cruzeiro. Rosaura apresentava agora um sinal em tudo igual e
semelhante, se bem que um pouco deslocado. Demais, Lucinda já havia notado uma tal
ou qual semelhança das feições de Rosaura com as de Adelaide, e mais ainda com as de
Conrado. Entretanto, estava certíssima que vira estendida em seu pequeno féretro
ornado de flores e capelas o cadáver da filhinha de sua sinhá. A preta entrou a cismar
sobre essa estranha coincidência, e uma forte suposição, quase com o caráter da certeza,
penetrou-lhe no espírito. Rosaura era a enjeitada; Rosaura era a filha de Adelaide e
Conrado; a criança, que vira morta, era outra.
– Anda, minha filha, toma, muda essa roupa – disse Lucinda, entrando e
entregando à Rosaura um vestido.
– Tia Lucinda, que precisão tenho eu de mentir? Sou mesmo aqui de S. Paulo;
sou cria da casa de uma mulher velha, que mora na beira da estrada, que vai para as
bandas de Jundiaí, chamada Nhá Tuca. Minha mãe morreu, já vai para cinco anos...
– Minha mãe?.. Minha mãe era... era um pouco mais trigueira do que eu.
– Ah! logo vi; era mulata – murmurou consigo a preta. – O que eu desconfio
vai tomando rumo. E depois, minha, filha?
– E depois, eu havía de ter uns dez anos, minha sinhá me vendeu a um homem
velho, que costumava comprar para vender por fora comboio de escravos. Ele e a
mulher dele ficaram gostando de mim, me estimavam muito, e não me queriam vender
por nada. Se não fosse o Sr. Morais, que tanto teimou e ofereceu tanto dinheiro, eles não
me vendiam.
– Mas escuta, menina; você nunca ouviu dizer que lá na casa de Nhá Tuca,
quando você nasceu, aconteceu alguma coisa?...
– Ah! Ah!... agora me lembro, tia Lucinda, – replicou Rosaura, batendo na alva
testa com os rosados dedinhos; – agora me lembro que lá em casa de sinhá velha ouvi
contar que, no dia em que eu nasci, apareceu na porta de casa uma menina enjeitada,
que morreu no mesmo dia.
– Não sei, minha filha, mas tenho cá minhas cismas... Deixa estar, menina; ou
eu não sou filha de minha mãe, ou hei de desmanchar essa candonga, seja lá como for.
– Deus de misericórdia! – pensava ela. – Como é que pode acontecer uma coisa
destas!... A mãe, sem saber, comprar sua própria filha e tê-la em casa como escrava!... E
há de continuar a tê-la nessa conta sem nunca poder saber a verdade!? Não; isto não
pode continuar assim. Deus não quer isso. Agora, que pouco mais ou menos já dei na
malhada, hei de botar tudo isso em pratos limpos, custe o que custar!
Para Lucinda já era fora de dúvida que Rosaura era a filha de Adelaide; mas
nem a sua convicção pessoal, nem sua mera asseveração, nem mesmo a alegação dos
veementes indícios, que corroboravam sua suspeita, seriam suficientes para restituir
Rosaura à posição que, pelo nascimento, lhe era devida. Depois de muito pensar,
convenceu-se de que ela, pobre e ignorante escrava, por si só nada podia fazer de
acertado e eficaz naquela conjuntura; pensou que o melhor expediente, de que podia
lançar mão, era comunicar imediatamente sua descoberta à Adelaide. Esta, em vista de
tão valentes indícios, sem dúvida não hesitaria em reconhecer quanto era natural e
plausível a suposição da escrava. Demais, a boa e sensível preta, que apesar de sua
condição conhecia os mais delicados sentimentos do coração humano, sabia que, a ser
exato o que supunha, a voz da natureza, esse poderoso instinto que jamais engana,
juntando-se a tantas outras provas auxiliares, viria cortar toda a dúvida e dizer a última
palavra.
Firme em seu propósito, Lucinda esperou pelas horas mais adiantadas da noite,
em que o Sr. Morais saía a passeio, como era de costume, e em que as crianças estavam
dormindo, para fazer à sua sinhá a revelação do mistério, que lhe preocupava o espírito.
CAPÍTULO V
CONFIDÊNCIA
Era perto de dez horas da noite. Em casa do Major Damásio tudo repousava em
profundo silêncio. As crianças dormiam o sono suave e tranqüilo da inocência. Rosaura
que tinha o seu aposento em um pequeno quarto imediato à alcova de sua senhora,
apesar dos transes e inquietações por que passara, há muito que adormecera. Havia
chorado um pouco antes de conciliar o sono, pensando nas perseguições de Morais, e
mais ainda nos desabrimentos da senhora; mas graças aos seus quatorze anos, à pureza
de seu coração e à tranqüilidade de seu espírito, a insônia lhe era desconhecida.
– Nada! Não me engana... Como é que sinhazinha então está assim com os
olhos vermelhos e cheios dágua?
– Mas o quê, sinhazinha?... Não me esconda nada, não; pode sem susto abrir
seu coração com sua preta. Não quero ver sinhazinha chorando assim; o que é que mecê
tem?
Assim a preta, que viera para fazer uma revelação, teve de ouvir, em primeiro
lugar, as confidências e queixumes da senhora; tanto melhor para Lucinda, que assim se
acabava em mais favoráveis disposições para entrar com sua senhora em conversação
confidencial. Adelaide, com algum vexame e embaraço, mas em poucas e rápidas
palavras, expôs à escrava o motivo de seus desgostos; contou não só as impudentes
tentativas, que seu marido fazia quase à sua vista, para seduzir Rosaura, como também
as desconfianças que nutria a respeito desta.
– Eu sei já disso tudo, sinhazinha; – disse Lucinda – mecê tem razão contra
sinhô moço; com efeito, ele tem andado muito mal. Mas a respeito da pobre menina,
sinhazinha anda muito enganada. Se sinhazinha soubesse quem é esta Rosaura!...
– Sei bem, Lucinda; ela me parece muito boa rapariga, cuidadosa, diligente e
muito carinhosa com as crianças, mas... desconfio... .
– Não, sinhazinha, não é nenhuma desgraça; antes pelo contrário, é coisa de lhe
dar muito gosto e alegria.
Lucinda, então, acocorando-se aos pés da senhora, e abafando a voz para não
acordar as crianças e Rosaura, que dormia ali bem perto, contou por miúdo tudo quanto
nessa tarde se tinha passado entre ela e Rosaura e a plena convicção em que estava, à
vista de tão veementes indícios, de que a escrava que o Sr. Morais havia comprado não
era outra senão a filha de Adelaide, que ela Lucinda havia exposto em casa de Nhá Tuca
e que, não se sabe com que interesse ou para que fim, fizeram passar por morta.
Ah! se assim é, Lucinda, foi Deus, foi a Divina Providência, que se serviu das
más intenções de meu marido e fez Rosaura correr para junto de ti naquele estado, a fim
de tudo se descobrir. Sem isso, era bem possível que ela ficasse por muito tempo, talvez
por toda a vida, condenada ao cativeiro e isso em casa de sua mãe, no meio de suas
irmãs!... Ah! só de pensar nisso arrepiam-se-me as carnes e se me espedaça o coração!...
– Mas agora, sinhazinha, só tem motivo para dar graças a Deus, que não
permitiu que assim acontecesse.
– Sim! sim! cala-te, Lucinda! Tudo isso é verdade – disse Adelaide, arquejando
de emoção. – Além disso, desde a primeira vez que pus os olhos em Rosaura, comecei a
sentir por ela uma afeição e ternura de mãe... Oh!
A surpresa e emoção de Adelaide eram extremas. Muito havia ela sofrido por
amor daquele primeiro fruto de um amor infeliz; os longos anos, que haviam decorrido,
a felicidade conjugal, que havia encontrado, os carinhos do pai e do espôso, as carícias
dos filhinhos não tinham podido apagar a lembrança da inocente e infeliz menina, que
do seio materno passara a braços estranhos e deles ao túmulo, nem estancar de todo o
pranto, que tão dolorosa recordação às vezes lhe arrancava ao coração. Nesses Últimos
dias, principalmente, e depois que Morais, desmentindo o seu passado, se entregava a
desregramentos indesculpáveis, sofria mais cruelmente que nunca, e sentindo o remorso
atassalhar-me a alma, atribuía sua desgraça a castigo de Deus pelas fraquezas de sua
mocidade.
– Rosaura, minha filha, perdoa-me! – exclamava ela, com lágrimas nos olhos,
querendo precipitar-se no quarto vizinho a ir abraçar a menina, que dormia o sono dos
anjos. Lucinda a custo pôde conter e acalmar sua senhora. '
– Não, minha sinhá; não acorda a menina ainda não; deixa ela dormir. Por
enquanto é bom que ela não saiba nada do que se passa. Antes de tudo é preciso
procurar modos de tirá-Ia do cativeiro e justificar que ela nasceu livre. Mas já vai
ficando tarde, e sinhô Morais não pode tardar por aí. Amanhã nós precisamos conversar
para ver como se há de arrumar isso, ouviu, sinhazinha?
A preta tomou a bênção e retirou-se. Daí a pouco, chegou o Sr. Morais, que
fatigado dos passeios, tratou imediatamente de deitar-se, e em breve adormeceu
profundamente. Adelaide, porém, com o espírito superexcita do pelo singular e estranho
acontecimento que acabava de lhe ser revelado, não podia conciliar o sono. Por três
vezes levantou-se, e tomando a lâmpada, que ardia sobre um bufete, enquanto todos
dormiam, dirigia-se pé ante pé para o quarto de Rosaura, e ali, sentando-se de mansinho
à beira da cama da menina adormecida, ficava por longo tempo a contemplar-lhe o rosto
angélico que lhe despertava nalma recordações a um tempo tão tristes e tão suaves. Da
terceira vez que lá foi, o semblante da gentil escrava apresentava um aspecto ainda mais
risonho e encantador; um sonho celestial parecia iluminar-lhe a fisionomia.
CAPÍTULO VI
UM SONHO REALIDADE
Essas provas, porém, não eram ainda peremptórias, e não constituíam senão
presunções muito fortes em favor da suposição de Lucinda. Sem algum documento
escrito, sem alguma justificação irrefragável, essa suposição podia cair por terra, como
mero embuste de negra velha, e a condição de escrava da pobre Rosaura, não tendo
nenhum fundamento sólido para ser contestada, nem ao menos poderia ser posta em
litígio.
Não eram, porém, só esses os maiores embaraços com que lutava o espírito
atribulado da pobre senhora. Mesmo que Rosaura fosse reconhecida livre e nascida de
pais livres, jamais poderia ser reconhecida como sua filha, sem que se revelasse a nódoa
do seu passado e sem incorrer no desprezo e talvez no ódio de um e outro. Poderia ela
confessar a um e a outro a sua falta, com esperança de obter indulgência e perdão? Era
principalmente para com o esposo que a posição de Adelaide se tinha tornado uma das
mais difíceis e angustiosas que se pode imaginar. Confessar ao marido uma falta, que há
mais de doze anos lhe havia ocultado, era um passo arriscadíssimo, a que jamais se
abalançaria. Tinha vergonha e também muito medo da cólera do marido. Quando se
ama uma mulher, que se julga pura, o ciúme não perdoa nem mesmo as fraquezas do
passado.
Rosaura, que tinha acordado alegre e risonha como um passarinho, que saúda
uma bela aurora, apenas tomou a bênção à Adelaide, correu logo a tagarelar com
Lucinda.
– Tia Lucinda, não sabe?... Tive, esta noite, um sonho, o mais bonito deste
mundo, um sonho que me fez chorar de alegria.
– Não sou adivinhadeira... mas decerto você sonhou com os anjinhos do céu,
minha menina. Que mais podia você sonhar?
– É quase isso mesmo, tia Lucinda. Eu sonhei que estava debruçada na janela,
olhando para o céu. Era de noite. Eu estava namorando as estrelas...
– Minha filha, não chores mais tua mãe; eu não morri, não; fui ao céu, e agora
volto para ficar contigo.
Se ela não tivesse dito que era minha mãe, eu não a conhecia. Era uma mulher
muito mais moça e muito mais bonita que a defunta mamãe. Tinha os cabelos bem
compridos e soltos, e a cor mais clara. Queria abraçá-la, mas não podia; ela chegou bem
pertinho e deu-me um beijo na boca. Acordei, mas até agora ainda me parece que estou
sonhando aquele sonho.
– Deveras? – disse Lucinda. – E quem sabe se esse sonho não era verdade?
– Deixa estar, minha menina; esse teu bonito sonho é ao menos de muito bom
agouro.
– É a pura verdade, Lucinda; fui por três vezes com a luz na mão espiar o sono
de... de minha filha, sim, de minha filha; hoje estou certíssima de que Rosaura é minha
filha.
– E sinhazinha não está vendo que aí anda o dedo de Deus? Bem estava eu
dizendo ainda agora a Rosaura que aquele sonho tão bonito bem podia ser uma verdade;
e era mesmo, mais do que eu pensava. Essa mãe, que não morreu, e que ela estava
vendo, quem era mais senão sua mãe verdadeira, senão sinhazinha mesmo.
– É isso, Lucinda; parece que Deus por fim se compadece de mim, e nos quer
favorecer, e tenho esperança de que Rosaura ainda há de ser muito feliz. Mas vamos ao
que agora mais importa; o que havemos de fazer a bem de Rosaura? Pensaste nisso,
Lucinda?
– Talvez sinhazinha não ache bom, mas eu não vejo outro remédio.
– Está direito, e mesmo eu penso que é de nossa obrigação fazer o que me veio
cá na idéia.
– Nesse caso, nós devemos participar tudo a ele. Se ele não puder nos guiar e
ajudar neste negócio, ninguém mais. Ele é rico, e tem muito boas amizades na terra; e
demais sinhazinha bem pode imaginar quanto ele é capaz de fazer, sabendo que tem
uma filha linda e mimosa, e que essa filha está no cativeiro.
– Tens muita razão, Lucinda; e eu que nem nisso havia pensado! Mas a falar-te
com franqueza, repugna-me bastante dar esse passo. Não vá ele agastar-se comigo, ficar
nos tendo ódio e desprezo por termos enjeitado a menina, e no excesso de sua
indignação revelar tudo a meu pai e a meu marido, e expor-me à vergonha e desprezo de
todos aqui. Ah! Lucinda, tenho muito medo.
– Nem pensar nisso, sinhazinha; eu conheço. muito nhô Conrado; ele é incapaz
disso. Tem muito bom coração aquele moço, e bastante juízo para ver que sinhazinha
não podia criar sua filha. O que depois aconteceu não foi por culpa nossa.
– Mas ele decerto me há de ter ódio por ter-me casado com outro.
– Qual ódio, sinhazinha! Então ele não há de saber que aqui correu como certo
que ele tinha morrido !
Por fim de contas, não vejo senão ele, que pode e deve amparar a pobre
Rosaura. Deixa tudo por minha conta, sinhazinha; hoje mesmo eu vou conversar com
nhô Conrado; primeiramente hei de sondar ele com jeito, e depois se eu perceber nele
boa disposição, como espero, conto-lhe tudo sem esconder nem disfarçar coisa
nenhuma. Sinhazinha me manda hoje de tarde à rua para qualquer serviço, e eu vou
direitinho à casa de nhô Conrado, e logo de noite lhe venho dar conta do que se passar.
– Pois sim, Lucinda; agora compreendo que é indispensável fazer tudo quanto
dizes; eu, fraca mulher, nada posso fazer em benefício de minha infeliz filha. Ele é pai,
deve e pode fazer tudo. Deus nos há de favorecer, Lucinda; confiemos nele.
CAPÍTULO VII
CONRADO CAPITALISTA
Já que Conrado, que por tanto tempo passava por morto, agora nos aparece de
novo vivo, rico e feliz ao menos na aparência, é-nos indispensável dar conta, por alto,
ao leitor, de como essa notícia se propagou com caráter de tanta veracidade, e do que
sucedeu ao amante de Adelaide, depois que tão ignominiosa e brutalmente foi expedido
da casa do major.
Esse rude e doloroso golpe o prostrou por muito tempo, sua razão esteve a
extinguir-se, e sua existência vacilou às bordas da sepultura; seus amigos e mesmo os
médicos, que o assistiam, chegaram a desesperar de sua vida. Mas sua juvenil e robusta
organização não permitiu que sucumbisse aos sofrimentos físicos e morais, que o
atormentavam. Restabeleceu-se, se bem que com custo e lentidão, e logo que se sentiu
com o juízo mais firme e a saúde mais vigorosa, começou a pensar no que deveriar
fazer. O amor de Adelaide não era para ele dali em diante mais do que um túmulo, sobre
o qual não deveria derramar nem as lágrimas da compaixão, nem as flores da saudade,
mas sim calcá-Io aos pés com ódio e com desprezo. Suas mágoas desde então
converteram-se em rancor e desejos de vingança. Protestou no fundo dalma que tomaria
do Major Damásio, autor principal dos seus infortúnios, a mais solene e cabal vingança,
não vingança sanguinosa, Conrado não tinha instintos de ferocidade, mas vingança
moral, abatendo-lhe o orgulho e esmagando-o debaixo do peso da mais pungente
humilhação. Nada lhe era mais fácil; o major em sua vida passada oferecia largas
brechas, pelas quais podia ser atacado e abatido até o rés do chão. Para esse fim só lhe
era mister agora tornar-se rico o mais que lhe fosse possível. Não possuía dinheiro
suficiente para entrar em altas especulações; mas já era muito conhecido e considerado
entre os estancieiros de Curitiba, e não lhe faltava crédito, graças ao feliz êxito de seus
primeiros negócios. Entrou de novo na vida de muladeiro, e em poucos anos adquiriu
uma fortuna, que naquela época, em S. Paulo, bem se podia dizer colossal. O que o
amor outrora lhe fizera alcançar, hoje o obtinha em mais alta escala o desejo de
vingança.
Achando-se já suficientemente rico para passar vida independente entre os
esplendores de luxo e de opulência, deixou a vida fragueira de muladeiro, e veio
estabelecer-se na capital da província, onde comprou, no centro da cidade, um vasto
prédio, que ornou e mobiliou com todo o luxo e magnificência. Possuía uma cocheira
sempre guarnecida dos mais belos e vigorosos animais, e uma formosa e elegante
caleche, na qual se apavonava com aristocrático desplante com personagens altamente
colocados, percorrendo as ruas mais públicas da cidade. Com essa ostentação, que nem
estava em seu caráter lhano e despretensioso, nem se harmonizava com suas idéias
eminentemente democráticas, tinha somente em vista esmagar a estólida vaidade do
major, ao qual pretendia não só humilhar, como também expor ao último ridículo
perante a sociedade paulistana. Três ou quatro vezes mais rico do que ele, conhecendo a
baixa linhagem de que procedia o seu velho ex-patrão, e sabedor de todas as suas
manias e de seus precedentes, Conrado jogava com inquestionável superioridade, e o
capataz, outrora achincalhado e expelido, podia agora, calcar aos pés a filáucia ridícula
e imbecil de seu antigo patrão. Todavia, as vingativas intenções, com que chegara a São
Paulo, esmoreceram e esfriaram completamente com as informações que teve logo
depois da sua chegada. Só então soube que há muito tempo passava por morto. Esse
boato, que correra em S. Paulo e fora geralmente acreditado, tivera por origem o fato de
ter realmente morrido no Sincorá um outro negociante do mesmo nome e da mesma
província que Conrado, e tendo chegado essa notícia a S. Paulo, onde o outro era
desconhecido, todos facilmente acreditaram que o falecido era o amante de Adelaide. O
Major Damásio foi o mais empenhado em propalar essa notícia, que muito estimou,
fingindo até ter recebido cartas, que a confirmavam, pois ele até seria capaz de inventá-
la, só para destruir as esperanças que sua filha porventura ainda nutrisse a respeito do
capataz. O tempo, os trabalhos e os sofrimentos não tinham podido extinguir de todo, no
coração de Conrado, aquele amor profundo e ardente, que concebera por aquela que
fora o enlêvo de seus primeiros anos, e o sonho inebriante de sua mocidade, amor de
que conservava ainda amarga e saudosa recordação. Ao saber em S. Paulo que Adelaide
fora iludida como todos, acreditando em sua morte, que não de muito bom grado
consentira em se casar, e que como esposa e mãe tinha tido sempre uma vida honesta e
exemplar, teve dobrado motivo para lastimar sua sorte por ter perdido aquele anjo, que o
céu lhe havia destinado, e que a estólida vaidade de um pai insensato lhe havia roubado
para sempre. Desvaneceu-se de todo o despeito, que conservava contra Adelaide,
perdoou-a de todo o seu coração, mas sua animosidade contra o major por isso mesmo
mais recrudesceu, e se o poupou, e não levou sua vingança ao extremo que desejava, foi
em atenção à estima e consideração que lhe merecia a filha.
A única e ligeira vingança, de que usava, era quando, repoltreado em sua linda
caleche em companhia de pessoas de alta consideração, se por acaso encontrava pelas
ruas o major, o saudava com a ponta dos dedos, dizendo-lhe com zombeteira
familiaridade: – Adeus, major; como vai essa bizarria? – O major horrorizava-se, como
se tivesse visto o diabo, enterrava ainda mais o chapéu na cabeça, e seguia seu caminho
a tossir, escarrar e resmungar, com o que muito Conrado se divertia.
Conrado era capitalista; não tinha armazém, nem loja; sua fortuna girava
produtivamente, sem que suas mãos morenas e musculosas, mas delicadas, precisassem
descalçar a luva para pegar no côvado. Era correspondente de grande número de
estudantes, com os quais entretinha relações de amizade. Os estudantes o estimavam e
freqüentavam não só por suas belas qualidades, como também porque Conrado, através
das vicissitudes de sua vida agitada, soubera cultivar seu espírito, amava a leitura e
apreciava a sociedade dos literatos. Muitos e vantajosos casamentos se lhe tinham
oferecido; mas a todos ele se havia esquivado; a triste recordação de seu primeiro amor
tão mal-aventurado o fazia recuar ante a idéia do casamento. .
Na tarde, pois, desse mesmo dia em que Lucinda teve com sua senhora a
conversação, de que demos conta no capítulo antecedente, a velha escrava foi bater à
porta do aristocrático prédio em que Conrado residia. Era já sol posto, e felizmente para
Lucinda, achava-se Conrado sozinho em seu salão de visitas, donde ainda há pouco se
tinham retirado alguns ilustres personagens. Estava ele nessa ocasião meio reclinado em
um sofá, justamente embebido em ternas e dolorosas recordações dos amores de sua
mocidade, da sua querida Adelaide, aos pés da qual com quanto prazer não teria de
posto toda aquela riqueza e opulência, de que gozava, se uma estrela funesta não tivesse
vindo perturbar o seu destino e entenebrecer para sempre os horizontes de sua vida!...
Quando um criado veio anunciar-lhe que uma preta velha o vinha procurar e desejava,
como um grande favor, falar-lhe em particular, Conrado, que era benfazejo e esmoler,
julgou que seria alguma desgraçada como tantas outras, a quem costumava fazer
generosas esmolas. Quando, porém, depois de a ter feito entrar no salão, reconheceu a
velha escrava do major, sentiu um choque inexplicável.
– É mesmo, nhô Conrado, é mesmo uma grande novidade que hoje me traz à
sua casa.
– Deveras? Deve ser mesmo assim, pois já vai para seis anos que moro aqui em
S. Paulo, e é a primeira vez que vens à minha casa.
– Podia e devia ter vindo há mais tempo se há mais tempo tivesse sabido da
grande novidade, que hoje me traz aqui; mas só ontem é que vim a saber.
– Ela vai indo bem, louvado seja Deus. Mecê ainda se lembra dela?
– Mecê não me entende; eu queria saber se não ficou querendo mal a ela pelo
que aconteceu.
– Senhor, sim.
– Mecê tem toda a razão, nhô Conrado; meu sinhô velho é homem que não tem
coração. Como mecês dois se queriam bem desde criança, ah! meu Deus! nunca vi um
amor assim! Se ao menos sinhá Adelaide lhe tivesse dado uma filhinha, como mecê
havia de querer bem a ela!...
– Mas faça de conta, – insistiu a preta com certo sorriso, que fez cismar a
Conrado – se assim acontecesse... se um filho ou uma filha...
– Oh! se assim fosse, seria para mim uma grande consolação, a única talvez
que poderia mitigar a dor profunda, que sempre me acompanhará por ter perdido
Adelaide. Tu tens razão, eu sou como o viúvo, que perdeu a esposa idolatrada ainda na
flor dos anos, sem que de sua união ficasse um fruto, em que empregasse os extremos
de seu coração. Olha, Lucinda, – continuou ele, abrindo um cofrezinho e tirando dele
um papel, que embrulhava um pequeno ramalhete de flores murchas, tão murchas, que
estavam quase pulverizadas. –Vês estas flores murchas? Já nem se sabe o que são. Foi
ela que mas deu no jardim da chácara, um dia, em que declarou-me francamente o seu
amor. No dia em que eu soube do casamento de Adelaide, quis deitar fora estas flores;
mas não tive ânimo; parecia que meu coração adivinhava que ela era inocente. É tudo
que resta de nosso antigo amor; são estas flores murchas e poídas, fiel emblema de
minhas ilusões perdidas, de minhas esperanças esmagadas pelas mãos do destino. Se eu
conservo com tanto amor e tão religioso cuidado estas relíquias mortas de nossa afeição,
de que extremos, de que adorações não rodearia o fruto vivo e animado de nosso
amor!... Mas Deus assim não permitiu, nem isso era possível...
– Não se zangue com sua preta, nhô Conrado, disse Lucinda, abafando a voz e
com ar suplicante. Eu sei de tudo o que mecê sabe, e de mais alguma coisa que mecê
ainda não sabe.
– Pois bem, eu vou falar bem claro. Sinhá Adelaide teve uma filha, que nasceu
poucos meses depois que mecê desapareceu de S. Paulo. .
– E é viva ainda?
– É sim, senhor.
– Lá em casa.
– Em casa de quem?
– Santo Deus, como pode ser isso!... Minha filha, se a tenho, deve estar já
entrada em quatorze anos; entretanto, há mais de cinco anos que moro aqui em São
Paulo, nunca me constou que em casa do major existisse essa menina. Oh! por que não
me contaram isso há mais tempo?...
– Ah! meu senhor moço! quer mecê creia, quer não creia, é porque nós também
não ficamos sabendo de tal coisa, senão de ontem para hoje, e há apenas um mês que a
menina está lá em casa. E saiba mais uma coisa, que lhe vai doer bastante no coração,
mas tenha paciência, é preciso que saiba de tudo para poder valer à sua filha. Saiba que
sua filha foi para lá como escrava, e como escrava lá está até agora.
– Como escrava!... Minha filha como escrava, e em casa de sua própria mãe!...
Tu estás zombando comigo, Lucinda! Explica-me isso já, se não queres me pôr doido.
– Tenha paciência, nhô Conrado; sente-se outra vez no seu canapé, sossegue
seu coração, que eu lhe vou contar tudo o que aconteceu depois que mecê se foi embora
de S. Paulo.
– Que diabo de negócio terá ele com aquela bruxa velha? – murmuravam entre
si os criados, curiosos e pasmados de tão estranha e misteriosa conferência.
CAPÍTULO VIII
REVELAÇAO
Narrou-lhe como em uma noite Adelaide, assistida unicamente por ela, tinha
dado à luz com feliz sucesso uma linda e vigorosa menina, que nessa mesma
madrugada, pela deplorável necessidade das circunstâncias, expôs ocultamente em casa
de uma vizinha, conhecida pelo nome de Nhá Tuca, que passava por uma senhora
honesta e caridosa. Em casa dessa mulher ficava-lhes fácil velar sobre a sorte da
criança, ter freqüentes notícias dela, socorrê-la por meios ocultos e indiretos, e vê-la
mesmo de quando em quando, sem suscitar desconfianças: que nesse mesmo dia,
porém, indo à casa de Nhá Tuca colher disfarçadamente alguma notícia da enjeitada,
soube que tinha morrido, e vendo em uma sala o cadáver já amortalhado de uma criança
recém-nascida, acreditou piamente que era o da filha de Adelaide. Voltou a casa com
essa triste nova. Passaram-se dois anos, sem que recebesse notícia alguma de Conrado,
até que correu em S. Paulo, como certa e confirmada por todos, a notícia de seu
falecimento. Adelaide passou mais dois anos de tristeza e abatimento, deplorando a
perda do amante e da infeliz filhinha, recusando alguns casamentos vantajosos, até que
enfim se resolveu, não sem alguma relutância, a casar-se com o Sr. Morais, do qual tem
tido até o presente quatro filhinhos. A primeira, linda menina por nome Estela, que é o
mimo da casa, e o ídolo dos pais e do avô, mostrou ultimamente com insistência o
desejo de possuir uma mulatinha, que lhe servisse de mucama, que a acompanhasse à
escola, à missa e aos passeios. O avô, que só desejava adivinhar os pensamentos da
netinha, deu ordem franca ao genro para procurar e comprar, fosse por que preço fosse,
a mais linda mulatinha que pudesse encontrar. O Sr. Morais, depois de muito procurar,
acertou de encontrar com efeito a mais linda jóia que se pode imaginar, comprou para
escrava de sua filha a filha de sua mulher, a irmã de seus filhos!... Quem tal creria?
– É uma menina branca, mimosa, rosada e linda como um anjo! – dizia Lucinda
– Tem cabelos soltos, pele fina... Encheu as vistas e fez a admiração de toda a gente de
casa... Os meninos, coitadinhos! sem saberem que ela é irmã deles, já lhe querem muito
bem, porque ela não só é bonita como muito boazinha.
Conrado mal respirava ouvindo essa tôsca mas fiel descrição de sua filha. –
Basta, Lucinda, basta! – interrompeu ele, impacientado. – Agora só quero que me digas
por que meio descobriste que essa menina é a filha de Adelaide.
Por fim, contou-lhe como havia adquirido a certeza, de que Rosaura era a filha
de Adelaide, em razão do sinal que na véspera havia descoberto no peito da menina, e
por certas perguntas, que tinha feito e cujas respostas combinavam perfeitamente com
suas suposições.
Mas posso... devo jurar... juro que Rosaura é a filha de sinhá Adelaide, que
fizeram batizar como escrava.
Conrado escutou com a mais profunda atenção a longa narrativa, que a preta
lhe fez em linguagem sinples e expressiva, e de que demos um rápido resumo por já ser
conhecida do leitor.
Ele conhecia bem Lucinda, essa boa e fiel escrava, que criara Adelaide com o
leite de seus peitos, e que sempre lhe fora tão dedicada. Não lhe era possível duvidar de
suas deposições. Apenas a interrompera, uma ou outra vez, com interjeições de pasmo
ou de dó, de despeito ou de cólera.
– Oh! meu Deus! meu Deus! – exclamou ele, quando Lucinda terminou. –
Minha filha escrava! escrava de outros!... E por fim ser vendida à sua própria mãe!...
Ah! maldito major! tu só és responsável, perante Deus e a humanidade, de tão estranha
desventura! Foste tu, e mais ninguém, que reduziste tua neta à condição de escrava. Mas
eu juro por Deus e por tudo quanto há sagrado: minha filha, a filha de Adelaide, em
poucos dias será reconhecida livre, como nasceu, e não como liberta, custe o que custar,
dinheiro, lágrimas, sangue mesmo, se for preciso! Lucinda, tu bem vês, Deus nos
favorece, e tu tens sido em tudo isto o instrumento da sua Providência.
– Sim, nhô Conrado; ao menos assim parece; mas tenha dó de sinhá Adelaide;
não a ponha a perder; ela, coitada, não tem culpa de nada.
– Sim, Lucinda, bem sei, e não quero comprometer a honra e reputação de que
goza Adelaide; mas não sei... se isso será possível... Dize-me uma coisa; ainda existe
essa mulher chamada Nhá Tuca?
– Não lhe sei dizer, nhô Conrado. Pensando que a enjeitada tinha morrido
deveras, não me importei mais com tal mulher; nunca mais fui por aquelas bandas, e
nem tenho perguntado por ela a ninguém.
– Mau! – disse Conrado, estremecendo; – se ela não é viva, a coisa não está
muito bem parada. Só ela poderia desembrulhar esse mistério e converter em certeza o
que por ora não passa de uma conjetura.
– Não se aflija, nhô Conrado; bem pode ser que ela ainda viva na mesma casa.
Amanhã, vou saber.
– Ah! nhô Conrado! pois é preciso paga?.. Pois ela também não é o mesmo que
minha filha? Não basta a alegria, que eu hei de ter? Deixe-se disso, nhô Conrado; sua
escrava está pronta para tudo que mecê determinar. Amanhã é domingo; costumo
sempre ir ouvir missa em Santa Ifigênia, e tenho de ir à chácara. Da chácara à casa de
Nhá Tuca é um pulo. Amanhã, pela tardinha, às mesmas horas que hoje vim, aqui estou
para dar parte a mecê do que souber.
– Aqui te espero. Se por felicidade ainda ela for viva, exista ela onde existir,
irei imediatamente procurá-la, e com um punhal em uma das mãos e uma bôlsa bem
recheada na outra, forçá-la-ei a vomitar a confissão da execrável atrocidade que
cometeu. Mas antes disso, irei amanhã mesmo, vencendo minha repugnância, cruzar a
soleira daquela casa, sepulcro de minha felicidade, e proporei ao tal Sr. Morais a
compra de sua escrava; não quero que ela continue nem mais um só dia no cativeiro.
Vou comprar minha filha a peso de ouro!... Depois tratarei de provar aos olhos da
sociedade que ela nasceu livre.
– Ah! nhô Conrado, eu acho que sinhô Morais não vende a menina nem por
quanto ouro há neste mundo.
– Julgas isso?.. Pior para ele. Declararei que Rosaura é minha filha, e como pai
tenho o direito de reclamá-la. Se nem assim quiser cedê-la, lhe direi que tenho certeza
de que nasceu de mãe livre, o que tratarei de provar perante os tribunais, ainda que para
isso seja preciso despender tudo quanto possuo.
– Não tocarei no nome de Adelaide; minha boca jamais revelará quem é a mãe
de minha filha, salvo no caso que isso seja absolutamente necessário.
– Nesse caso é bem triste a colisão em que me verei: – entre a honra de uma
mulher, que amei, que amo ainda, e a liberdade de minha filha!... Que partido posso eu
tomar? A própria Adelaide, creio eu, não hesitará em confessar sua falta, se assim for
preciso para arrancar sua filha ao cativeiro.
– É assim mesmo, nhô Conrado; é uma lástima; mas tenho fé que Deus não há
de permitir que isso seja preciso.
Se bem que contente e esperançada pelo modo por que as coisas se iam
encaminhando, bem mal dormida passou Lucinda essa noite, atormentada pela incerteza
de achar ou não viva Nhá Tuca, esperando com a mais viva impaciência o alvorecer do
dia.
CAPÍTULO IX
NA MISSA
Enfim, alvoreceu bela e risonha a aurora desse dia que tão ansiosamente
aguardava, e que tão decisiva influência tinha de exercer sobre seu destino e sua futura
felicidade. Era um domingo. A uma noite brusca, chuvosa, havia sucedido um dia limpo
e sereno. Os sinos das diversas igrejas dobravam e repicavam alegremente, e o povo,
que acudia às missas matinais, começava a cruzar por todas as ruas da cidade. O
coração de Conrado expandiu-se em palpites de prazer e de esperança.
– Perdi a amante, que devia ser minha esposa murmurou consigo; mas o céu
teve piedade de mim e preservou-me a filha, que hoje ou amanhã terei a ventura de
acolher em minha casa, e apertar em meus braços.
Como era por demais cedo para ir à casa do major, Conrado tratou de vestir-se
para ir à missa da Sé, que os sinos anunciavam, e isso não só para matar o tempo, que
tão lento lhe corria, como também a fim de implorar a proteção do Altíssimo para o
bom êxito do melindroso negócio, em que se achava tão vivamente empenhado.
Tendo entrado na Igreja, depois de feita uma curta oração, começou a passear
olhares indiferentes pelos diversos grupos de mulheres, que se achavam sentadas pela
nave à espera da missa. Súbito, deu com os olhos em um grupo que lhe fixou a atenção.
Compunha-se ele de uma senhora ainda moça, alta, esbelta e formosa, de quatro
galantes crianças e de uma rapariga, que lhes servia de mucama, tão branca e tão linda,
que, se não fora o trajo mais simples e modesto e a posição que ocupava atrás do grupo,
a tomaríeis seguramente por uma irmã mais velha dos outros meninos.
Às dez horas e um quarto, entrava ele na loja do Sr. Morais. Estava este
sentado no mostrador e quase sàzinho, pois o único caixeiro, que ali existia, estava
quase sumido a um canto, entre fardos e rolos de fazenda, a olhar para as prateleiras.
Depois de se terem cumprimentado friamente, como pessoas que apenas se conheciam,
Conrado declarou a Morais que desejava ter com ele uma conversação particular.
Morais o levou a um gabinete no fundo da loja.
– Consta-me – disse Conrado – que V. S.a possui uma linda escravinha, que
comprou a um senhor. . . não me lembra agora o nome.
– Ao Sr. Basílio, morador na Rua do Tabatinguera – atalhou Morais. – Mas a
que vem agora essa pergunta?
Conrado não teve ânimo de pronunciar a palavra – escrava – que lhe queimava
os lábios falando de sua filha.
– Ah! – murmurou Morais, que desde o começo dessa conversação, por uma
vaga desconfiança e sem saber bem por que, começava a sentir-se constrangido e
contrariado.
– Sinto não poder satisfazer os seus desejos, Sr. Conrado; não há dinheiro que
compre essa rapariga; é um mimo que meu sogro fez a uma filha minha, e nem ela, nem
eu, nem minha mulher estamos dispostos a vendê-la, nem mesmo quando V. S.a nos
trouxesse todos os tesouros das Mil e Uma Noites.
– Oh! por que não! – disse Morais que, chamando o caixeiro, lhe deu recado, e
daí a momentos Rosaura compareceu à presença de Conrado. Ao encarar aquele
homem, que nunca tinha visto, e que fitava nela um olhar penetrante, mas afetuoso e
terno, a jovem escrava sentiu indizível comoção; tomou a bênção, à maneira dos
escravos, abaixou os olhos e corou. Vendo agora face a face e tão perto de si aquele
rosto em que, ao lado da beleza, ressumbrava toda a candura e inocência de uma alma
angélica, Conrado a muito custo pôde conter e dissimular sua emoção.
– Nasci aqui mesmo perto da cidade, em uma casa que fica para as bandas de
N. Senhora do Ó.
– Era uma mulher chamada Nhá Tuca, que me vendeu, quando fiz dez anos, a
um velho chamado Basílio, morador na Rua do Tabatinguera, e este foi que me vendeu
para o Sr. Morais.
– Conheci, sim senhor, eu tinha sete para oito anos, quando ela morreu.
– Sr. Morais – continuou ele, depois que Rosaura se retirou, – tenho o maior
empenho em libertar essa menina; já lhe disse que não recuo diante do preço, por
exagerado que seja. Creio também que V. S.a nenhum interesse pode ter em conservá-la
no cativeiro, e que tem alma bastante nobre e generosa para não desejar ver, por mais
tempo, em tão aviltante condição, uma menina tão linda e tão digna de melhor sorte. É a
mesmíssima rapariga, que eu supunha, e tenho motivos muito particulares e poderosos
para tratar de sua liberdade.
– Pois bem, Sr. Morais; fico ciente de quais sejam os motivos por que não quer
ceder-me a menina; concordo que não deixam de ser poderosos, e mesmo não duvido
que V. S.a se acha possuído das melhores intenções a respeito dessa escrava; mas eu
tenho uma razão muito mais atendível e muito mais poderosa que qualquer outra, e
diante da qual espero que V. S.a, se é homem de bem e de consciência, como creio, não
hesitará um só momento em satisfazer o meu desejo.
– Eu!... talvez... mas não compreendo que possa haver essa razão tão forte...
– É muito simples; e para que V. S.a não pense que sou levado a dar este passo
por algum motivo menos nobre e honesto, aqui lhe declaro imediatamente e sem
rebuço: sou pai de Rosaura.
– V. S.a. duvida?.. Pois saiba que não tenho o costume de mentir, nem mesmo
em coisas triviais, quanto mais quando se trata de negócio tão sério – replicou Conrado,
assumindo um tom de voz e uma atitude grave e imponente.
– Sim! bem pode ser – disse Morais, balbuciando, – Nada mais natural e mais
comum do que... a gente.... ter filhos naturais, mesmo com escravas; mas V. S.a. poderá
provar...
– Posso.
– Pois bem, mesmo que o prove, que direito lhe assiste para exigir de mim a
entrega de sua filha, que e minha escrava?
– Julguei que V. S.a fosse razoável, Sr. Morais, retorquiu Conrado, refreando a
custo sua cólera. – Mas já que a declaração, que acabo de fazer-lhe, de que essa menina
é minha filha, não é bastante para fazê-lo largar mão dela, fique sabendo mais que essa
rapariga, que tem como escrava, nasceu livre, de pai e mãe livres, e que não foi senão
em conseqüência de uma execranda e infernal maquinação que ela desde a infância se
acha reduzida a essa triste condição, o que tudo posso e hei de provar. V. S.a. não quer
cedê-la por dinheiro; bem, pois ver-se-á obrigado a entregá-la sem indenização alguma.
– Quanto ao pai – continuou Morais – pouco nos importa saber quem ele foi,
porque como V. S.a de certo não ignora – partus ventrem sequitur, – a cria segue a
condição da mãe.
– Sei bem disso, Sr. Morais; mas V. S.a está bem certo de que Rosaura é
realmente filha dessa mulata escrava, pertencente a tal Nhá Tuca?...
– Pode-se muito, e hei de provar que a verdadeira mãe de Rosaura não é essa,
que se lhe atribui, não é essa escrava de Nhá Tuca, mas uma mulher livre...
– Ah! Sr. Morais, praza ao céu que V. S.a sempre ignore quem é ela!
– E por que razão? Que quer dizer isso, senhor? Não me explicará?
Conrado avaliava em seu espírito todos esses prós e contras, e dando talvez a
estes maior peso e valor do que realmente mereciam, afligia-se em extremo, mas não
sem fundamento, porque, se já não existisse a velha Nhá Tuca, o negócio do
reconhecimento de Rosaura como livre de nascimento dificilmente poderia ser
encaminhado com esperança de êxito feliz. Ora nada era mais natural e mesmo provável
do que o fato de já ser falecida aquela mulher, que, segundo lhe dissera Lucinda, há
quatorze anos já era velha e adoentada.
Enquanto Conrado espera com a mais viva impaciência a hora, em que a velha
escrava tem de vir dar conta de sua comissão, acompanhemo-la nos passos que deu para
desempenhá-la.
CAPÍTULO X
Enquanto Conrado, sôfrego, e ansioso, dava esses passos na cidade, não menos
solícita e inquieta andava a boa Lucinda lá pelos lados da freguesia de Nossa Senhora
do Ó. Nessa manhã, como prometera, foi à Santa Ifigênia, onde ouviu missa às nove
horas, e dali seguiu, em marcha a mais acelerada que lhe foi possível, pela estrada de
Jundiaí. Não tomou pelo caminho da chácara do major; nada tinha lá que fazer;
continuou direito pela estrada real até a altura, que era bem conhecida, onde existia a
casa de Nhá Tuca. Não é possível explicar qual foi o seu espanto e consternação
quando, ao chegar ali, não avistou senão ruínas. Da casa não restavam senão os esteios
carbonizados e algumas paredes derruídas; o teto tinha desabado; as cercas estavam
arrombadas, e o abandono, a solidão e a tristeza reinavam naquele sítio, que outrora fora
uma vivenda tão ruidosa, alegre e animada. A casa de Nhá Tuca era erma tapera, onde
não se via viva alma, a quem se pudesse dirigir qualquer pergunta. A tal espetáculo, um
frio e angustioso desalento se apoderou do coração de Lucinda, que quase desfaleceu.
Sentou-se à beira da estrada em frente das ruínas, e pôs-se a refletir. Lembrou-se que, a
uns quinhentos passos mais ou menos pela estrada adiante, havia também, à beira do
caminho, a casa de um francês, que tinha negócio. Era o vizinho mais próximo de Nhá
Tuca, e devia saber qual tinha sido o destino dessa mulher. A casa tinha sido queimada,
não havia dúvida; mas isso não queria dizer que a dona também já não existisse.
Lucinda reanimou-se de um resto de esperança, levantou-se e pôs-se a caminhar para
diante. Como era domingo, à porta da taverna do francês havia numeroso concurso de
gente. Eram de dez para onze horas; grande número de caipiras da vizinhança, que já
tinham ouvido missa, uns na cidade, outros na capela de Nossa Senhora do Ó, ali se
achavam a palestrar e a molhar a goela para empurrar o domingo, conforme a frase
vulgar.
– Mecês não me saberão dizer – perguntou ela que fim levou uma mulher
velha, que morava aqui para atrás, chamada Nhá Tuca?..
–Eh! há! minha tia! pois tu ainda perguntas por essa bruxa esconjurada? –
diziam eles.
– Cruz! arreda daqui, rapariga! Só o nome dessa mulher traz mau azar; vou-me
embora.
– E eu também; a pinga, que tomei está me fervendo na garganta só de ouvir
esse nome. Antes o diabo me apareça.
– Quem sabe, minha tia, se mecê também é da rodinha das pretas feiticeiras,
que moravam com essa velha de uma figa?
– Pois então que diabo de negócio tens com essa carcaça excomungada, de que
ninguém quer ouvir nem o nome?
– Ué! meu branco, conheci ela noutro tempo! Agora estou perguntando; que
mal faz isso?
– Passei, inhor sim; mas a casa está toda queimada, e lá não encontrei viva
alma.
– A casa ardeu há de haver três para quatro anos. Assim também deve arder a
dona nas caldeiras do cão tinhoso.
– Não sei, nem quero saber – respondeu o caipira sem reparar na comoção de
Lucinda. – Se não deu ainda, não tardará muito em dar a alma ao diabo, que a carregue.
– Mas olha, que não te agarre ela pelas orelhas, e não te leve consigo para os
infernos! – acrescentou outro caipira.
Atarantada com tantas chufas, e apavorada com o medonho retrato que faziam
de Nhá Tuca, a pobre Lucinda não sabia o que devia acreditar, nem o que devia fazer.
Bem via que aquela gente estava toda com a cabeça esquentada com as amiudadas
libações alcoólicas, e que todos aqueles ditos contra a pobre velha poderiam não ser
mais que meros gracejos inspirados pela bebida; mas por outro lado, a antiga casa de
Nhá Tuca, que acabava de ver em ruínas e quase toda devorada pelo incêndio, e o
miserável ranchinho, que lhe estavam mostrando como sua nova vivenda, tornavam
mais que provável o que estavam dizendo os caipiras. Esteve por algum tempo em
estado de hesitação, olhando para a casinha como querendo resolver-se a lá ir; mas
faltava-lhe o ânimo.
Por fim um homem algum tanto idoso, que ali estava na roda, porém com a
cabeça mais calma e fresca do que seus companheiros, observando a ansiosa
inquietação em que se achava a crioula, para saber ao certo a sorte da velha,
compadeceu-se dela, e chamando-a de parte assegurou-lhe que aquele ranchinho era de
fato a atual morada de Nhá Tuca, que ainda era viva, mas que há muitos dias se achava
às portas da morte. Contou-lhe mais, em poucas palavras, que essa mulher tinha perdido
tudo quanto possuía e caído na mais profunda miséria, vendo morrer uma por uma, em
pouco tempo, de moléstias ruins e contagiosas, todas as suas escravas, que constituíam
seu principal cabedal; que também, de certo tempo em diante, fora diminuindo
rapidamente toda a freguesia de seu negócio, até que por fim, para cúmulo de males,
pegou-lhe fogo na casa, que ardeu toda em uma noite, mal podendo escapar os
moradores, e que Nhá Tuca, vendo-se reduzida à última pobreza, se havia refugiado
naquele ranchinho, que por compaixão lhe haviam cedido, e onde vivia das minguadas
esmolas, que bem pouca gente lhe dava: que dois dias antes morrera de repente a única
escrava que lhe restava, que lhe fazia companhia e esmolava para ambas, se bem que
em estado quase tão lastimoso como a senhora. O povo atribuía todas essas desgraças a
castigo pelas maldades que essa mulher tinha praticado, e que por muito tempo andaram
encobertas. Por isso, todos fugiam dela e a deixavam abandonada naquele miserável
ranchinho, onde se achava morrendo à míngua.
Lucinda não quis ouvir mais nada, se bem que o velho se mostrasse disposto a
narrar-lhe por miúdo todas as horríveis façanhas daquela execrável mulher. Pediu
desculpa, alegando que era cativa e morava longe, despediu-se, e se depressa tinha
vindo, mais depressa voltou para a cidade, onde chegou pela volta do meio-dia. A
notícia de que Nhá Tuca estava viva, mas às portas da morte, dava-lhe asas, e a robusta
crioula, a despeito de sua idade e corpulência, em menos de meia hora venceu a
distância de mais de meia légua, que a separava da cidade.
– Vive, sim senhor; mas está mal, quase a morrer. Deixemos de mais conversa,
nhô Conrado; é preciso ir lá já e já, quanto antes; a cada momento ela pode expirar.
Conrado chamou imediatamente o seu pajem, e deu-lhe ordem para que selasse
depressa o seu melhor cavalo. Enquanto isso se fazia, Lucinda dava a Conrado as
indicações necessárias, para que acertasse com o lugar em que se achava situado o
rancho de Nhá Tuca.
Lucinda retirou-se para a casa, e Conrado partiu a galope para as bandas da
freguesia de Nossa Senhora do Ó.
CAPÍTULO XI
– Podem fazer-me o favor de mostrar-me onde mora por aqui uma pobre velha,
que se acha muito mal, chamada Nhá Tuca? – perguntou o cavaleiro, depois de ter
saudado contesmente a comitiva.
- Chê! que coisa, Deus do céu! Um moço tão chibante e luzido que terá que
fazer na casa daquela velha tartaruga amaldiçoada? – disse um dos da roda, apenas o
cavaleiro se distanciou.
– Quem sabe se é parente, nhô Tico? – ponderou outro. – A velha já foi rica, e
diz que é filha de muito boa gente.
– Chê! que esperança, nhô Neco! Nhá Tuca ter um parente daquela
qualidade!... Fora o irmão, que ela matou, nunca teve parente mais nenhum, que eu
saiba.
– Não é nada disso, gente; o que eu estou lembrando é que aquele moço é
alguém, a quem a velha fez alguma maldade, e que lhe vem pedir contas na hora da
morte. Fora do que já anda aí na boca do povo, na casa daquela velha fazia-se muita
coisa ruim, que até hoje ninguém sabe.
– Isso é que bem pode ser, nhô Quim; mas já agora não arredo pé daqui,
enquanto não ficar sabendo em que isso se pára. Aquele moço decerto não há de ficar
toda vida em casa da bruxa; há de voltar e por fim de contas sempre se há de saber
alguma coisa.
– E eu também daqui não saio, enquanto ele não voltar; estou aflito por saber
em que dá essa embrulhada.
Foi bem difícil a Conrado dar com a entrada do rancho, a qual consistia em
alguns paus-a-pique soltos, e que não se distinguiam bem do resto da parede. Era mister
afastá-las para um e outro lado a fim de franquear uma estreita entrada. Conrado, que
conhecia muito esse gênero de portas, por tê-las visto muitas vezes em ranchos de roça,
abriu-a e não sem custo penetrou no interior da choupana, esfregando o pano de sua fina
casaca nos imundos paus daquela hedionda pocilga. Posto que não houvesse no rancho
uma só janela ou fresta, por onde penetrassem francamente o ar e a luz, contudo, as
paredes formadas de paus roliços mal unidos entre si deixavam entrar claridade bastante
para que Conrado, depois que se foi afazendo à meia-luz que ali reinava, pudesse
distinguir com facilidade os objetos.
Era a palhoça dividida em dois compartimentos iguais por meio de uma esteira
de taquara. No primeiro, para o qual dava a porta única da casa, por onde Conrado tinha
entrado, via-se no chão um cinzeiro apagado, e junto dele um colchão esfrangalhado
rodeado de algumas cuias e cacos de panela. Era sem dúvida a miserável enxerga, da
qual há dois dias tinha sido transferida para a sepultura a última companheira e
cúmplice da desgraçada velha.
O espetáculo, que ali se lhe ofereceu aos olhos, era indescritível pela sua
hediondez, e capaz de fazer recuar de horror as almas mais corajosas e caritativas.
Se não fosse o poderoso incentivo, que ali o levava, Conrado teria recuado
diante de tão lastimoso e repulsivo quadro, e, deixando uma generosa esmola à
cabeceira da enferma, ter-se-ia retirado imediatamente. Mas era instigado por um
motivo imperioso, pelo qual afrontaria mesmo todos os transes e perigos, por mais
temerosos que fossem.
– O senhor, quem quer que é, pode chegar – disse, com voz rouca e arquejante,
a infeliz velha, vendo Conrado parar ao limiar da entrada do quarto. – Não tenha susto;
eu sou uma pobre velha desgraçada, que em castigo de meus pecados aqui vivo a penar
desamparada por todos, e morrendo aos poucos no fundo desta cama...
Senhor meu, tenha piedade desta pobre velha!... Foi Deus quem o mandou
aqui... Há dois dias que aqui não vem criatura viva nem para me dar um gole de água
pelo amor de Deus.
– Ah! meu senhor! Deus lhe dê muita saúde e largos anos de vida! Eu estou já
com os pés na sepultura, e bem pouca coisa posso precisar neste mundo. O de que mais
preciso é que Deus me perdoe os muitos e enormes pecados que cometi em minha vida.
Ah! meu Deus, quem me dera um padre para me confessar.
– Por esse lado, sossegue seu coração; hoje mesmo lhe hei de trazer um padre,
e estou pronto a fazer tudo o mais que a senhora exigir para alívio de seus sofrimentos e
sossego de sua consciência.
– Oh! meu senhor!... meu benfeitor!... Deus lhe dará o pago por essa obra de
caridade.
– Sim, mas quero também da senhora uma recompensa, que lhe é muito fácil, e
da qual depende todo o sossego e felicidade de minha vida. Quero lhe pedir um favor. . .
– A mim, meu senhor!... Que favor lhe posso eu fazer, eu pobre velha
desvalida, já com os pés na sepultura?
– Eu lho vou dizer já sem mais rodeios, porque não devemos perder tempo. A
senhora cometeu na sua vida um ato altamente criminoso, cujo segredo não pode levar
para a sepultura sem causar a desgraça de toda a minha vida e a da inocente vítima
desse ato execrando. Não se lembra?
– Ah! meu Deus, eu pratiquei tantas ações ruins!... Qual delas será?. .
– Eu lhe vou avivar a memória. Não se lembra que na noite de vinte e quatro
para vinte e cinco de novembro, faz agora justamente quatorze anos, – amanheceu
exposta na porta de sua casa uma menina recém-nascida?
– Oh! se me lembro, meu Deus! meu Deus! e com que remorsos!... É por essa e
por outras muitas maldades, que pratiquei, que hoje me acho aqui penando desta
maneira, ai! meu Deus, e sem ter um confessor!
– Tenha paciência; o confessor há de vir. Agora, conte-me com franqueza e
verdade, o que é feito dessa criança? A justiça humana já nada tem que ver com a
senhora; é perante o tribunal divino que em breve talvez terá de responder. Se não
confessa o seu crime, a fim de remediar o mal imenso que fez, e que até hoje pesa sobre
essa infeliz criatura, não pode esperar salvação para sua alma.
– Graças, meu Deus! mil graças vos sejam dadas, – exclamou a velha,
levantando ao céu as descarnadas mãos, e exalando um forte suspiro, com que parecia
aliviar o coração de um peso enorme, que o oprimia. Graças a Deus, que, em minha
última hora, me permite desmanchar o mal que fiz. Meu senhor, pelo amor de Deus,
perdoe-me; minha vida foi toda um tecido de perversidades. Essa menina não morreu,
como eu fiz acreditar. Nessa mesma noite, em que ela apareceu enjeitada à porta de
minha casa, uma mulata, minha escrava, tinha tido uma criança, que morreu logo depois
de nascida, e eu... meu Deus! que vergonha! que abominaçao...
É preciso que não oculte nada para descargo de sua consciência e para se poder
remediar o mal que fez.
– Rosaura.
– E a quem vendeu-a?
– Por que não, meu senhor!... Nem há coisa que eu mais deseje. Prouvera a
Deus que eu pudesse desfazer assim todas as outras maldades que pratiquei!... Ah! meu
Deus, perdão!.. misericórdia!...
Ao sair fora da palhoça, Conrado consultou o relógio; eram quase duas horas.
– Temos ainda muito tempo – pensou ele. – Ás quatro horas, posso estar de
volta aqui com o padre. Os dias são grandes, das quatro até a noite, tudo pode ficar
arranjado, salvo se a velha expira antes disso.
– Então, meu amo, como vai a velha tinhosa? Ainda o diabo não a carregou? –
ousou perguntar um, a quem as excessivas libações tinham tornado por demais
desembaracado.
CAPÍTULO XII
FREI JOÃO DE SANTA CLARA
A figura de Frei João estava em perfeita harmonia com sua natureza moral.
Porte elevado, feições corretas e suaves, fisionomia nobre e expansiva, maneiras
singelas, mas delicadas, um timbre de voz claro e sonoro tornavam-no um personagem
altamente simpático, que logo à primeira vista conquistava a afeição e respeito de todos.
Todavia, não obstante a moderação e brandura de seu caráter, não lhe faltavam energia e
severidade, quando assim era mister, quer na linguagem quer nas ações. A idade de Frei
João orçava então pelos quarenta e cinco anos, e tanto no porte como no semblante
reunia ao viço e ao vigor da juventude a gravidade e sisudez da idade madura.
– Em casos tais – disse ele – fosse quem fosse, que viesse reclamar de mim um
tal serviço, eu não saberia recusá-lo. Mas – continuou, com sorriso quase imperceptivel
– permita-me que lhe diga, meu amigo, ao que me parece, não é só espirito de caridade,
que o faz procurar-me com tanta sofreguidão, deixando em caminho o cura da freguesia,
que é quem tem obrigação de acudir com os sacramentos, e tantos outros padres, que aí
os há com fartura em uma cidade episcopal. Tem talvez algum interesse particular nesse
negócio, e eu não devo ignorá-lo.
– Ah!... o negócio então é mais que sério. Pretende por conseguinte exigir dessa
mulher uma confissão pública.
– E ela se prestará?..
– Acabo de estar com ela; está talvez mais disposta e mais impaciente do que
eu, porque essa declaração é de absoluta necessidade para a reparação do mal que ela
fez. Mas ela se acha nas extremas entre a vida e a morte; não temos tempo a perder;
avie-se, que daqui a um instante chegará a sua cavalgadura, e de caminho lhe contarei
toda essa história.
De feito, enquanto Frei João calçava suas botas pretas de couro de mateiro com
esporas de ferro, e tomava o chapéu de fêltro com abas largas, o pajem de Conrado
chegava à porta do convento, trazendo pelas rédeas um lindo cavalo escuro
completamente ajaezado. O palafrém, posto que fosse mui bem doutrinado, era vivo e
ardente.
– O maldito! – gritou Conrado para o pajem não te recomendei que trouxesses
um animal bem manso?
– Não se importe com isso; não sou tão mau cavaleiro como pensa.
E de feito o frade ganhou a sela com tal presteza e agilidade, e soube sofrear e
dirigir o irrequieto animal, com tal garbo e desembaraço, que faria inveja ao mais hábil
picador. A sotaina e o grande chapéu em nada prejudicavam a habilidade e gentileza do
guapo cavaleiro.
– Entretanto, noto que a divina Providência como que tem querido proteger,
por um modo manifesto, a sua Rosaura, dirigindo os acontecimentos por tal sorte, que
em breve se revelará em plena luz a verdadeira origem da menina. Repare o meu amigo
como tudo vai se combinando, e como que conspirando para esse feliz resultado!... A
venda de Rosaura à sua própria mãe foi um fato providencial. Se Deus quis por esse
estranho meio colocar em contato essas duas criaturas, que pertenciam uma a outra, e
conservar até hoje a vida a essa desgraçada mulher, que reduziu a menina à escravidão,
foi por certo para esse grande e misericordioso desígnio. Vamos, meu amigo,
apressemos o passo. Estou ansioso por ver chegado a um próspero desfecho este
singularíssimo drama.
CAPÍTULO XIII
Não só o desejo de servir a Conrado, que por sua generosidade e boas maneiras
lhe tinha captado a benevolência, como também a curiosidade, que semelhante fato
excitava, contribuíram para que não só o taverneiro, como todos os seus numerosos
fregueses se prestassem com a melhor vontade a tudo quanto deles exigia o cavaleiro.
Vinte ou trinta testemunhas, que lhe fossem necessárias naquela ocasião, com facilidade
as acharia prontas por aquela vizinhança.
Eram já quatro horas da tarde, e quase todas as pessoas, que pela manhã
encontramos juntas na taverna do francês, ainda ali se achavam presas pela viva
curiosidade, que neles excitara a visita de um tão guapo e distinto cavaleiro em casa de
uma velha bruxa, que no entender deles estava prestes a dar a alma ao diabo. Se
algumas dessas pessoas se tinham retirado, em compensação tinham chegado outras,
atraídas pelo rumor que se ia propagando, de que a velha bruxa, estando a expirar se
tinha resolvido a fazer confissão pública e pôr todos os seus podres na rua.
Conrado e o frade, seguidos pelo francês e pelas duas outras testemunhas
dirigiam-se a pé para o rancho de Nhá Tuca. Os mais fregueses também os foram
acompanhando em distância e um a um, ou em pequenos grupos, foram pouco a pouco
se avizinhando e acercando em torno da mísera choupana da moribunda.
– Santo Deus! – exclamava um deles. – Que irá fazer ali Frei João?.. Um santo
em casa de uma bruxa! . . .
– Vai fazer obra de caridade – respondeu outro. Vai ver se ainda pode livrar das
penas do inferno a alma da pobre velha.
– Isso é impossível... pois mecê não sabe que ela é mula sem cabeça?
– Pois que tem isso?.. É que o padre vai tirar o diabo do corpo dela. Ah! se eu
pudesse estar lá dentro e ver o tinhoso sair aos pinchos da boca daquela tartaruga
velha!...
– Deus te livre!... Ver o quê!... A cara de Satanás!... Até estou com medo de ver
agora mesmo pegar fogo no rancho, e a velha sair de lá na figura do cão tinhoso.
– Mas esse é homem de Deus; não há mal que o pegue; há de sair são e salvo.
Enquanto o povo por fora se entretinha assim com estes e outros apodos e
conjeturas, o frade e seu amigo penetravam no aposento da enferma, a qual, graças à
generosidade de Conrado e aos cuidados do francês, apresentava um aspecto menos
lúgubre e menos nauseabundo.
Antes, porém, de assistirmos à cena da confissão da velha, nos é mister dar aqui
ao leitor uma rápida notícia biográfica da personagem, que agora jaz no leito da agonia
com a alma abarrotada de pecados e crivada de remorsos.
Alguma coisa já dissemos acerca do caráter e dos costumes de Nhá Tuca; mas
apenas levantamos um canto do véu que encobre as torpezas e atrocidades, que
constituíram a ocupação única de sua longa vida.
Essa herança, como já sabemos, na sua melhor parte consistia em uma boa
porção de crioulas e mulatas, todas novas e bonitas, vigorosas e sadias.
Parece que por desgraça sua, o irmão de Nhá Tuca tinha sangue turco nas veias;
tinha pendor imenso para o serralho, nascera para ser um sultão, ou pelo menos um
vizir. Por isso toda a fortuna, que havia herdado ou adquirido à custa de algum trabalho,
ia consumindo toda em colecionar essa formosa tribo, que por força do destino teve de
transmitir à sua irmã única, sem mesmo ter o trabalho de fazer testamento. A
sensualidade de um serviu admiràvelmente à avareza da outra.
A irmã, que não podia tirar o mesmo proveito de tão preciosa deixa, excogitou
outro meio de fazê-la render o maior lucro possível. O vício capital dessa mulher era,
como sabemos, a avareza, pecado mortal incompreensível para muitos e só
compreendido por aqueles que lhe sentem as delícias.
Obedecendo a essa sua tendência inata, Nhá Tuca concebeu e realizou o projeto
de fundar com as raparigas, que herdara, uma espécie de prostíbulo ou alcouce, dirigido
por ela em pessoa, do qual esperava auferir grandes vantagens pecuniárias. Mas Moji-
Mirim, era então uma pobre vila, talvez arraial ainda, e não podia oferecer campo assaz
vasto para suas altas especulações. Portanto Nhá Tuca tomou o acordo de vender tudo
quanto possuía em sua terra natal, e de emigrar com seu formoso rebanho para a capital
da província, onde poderia desenvolver em mais larga escala sua lucrativa indústria.
Voltavam, portanto, as Vênus para a casa sempre com rica propina, que
entregavam fielmente à senhora; diziam, porém, alguns que ela sempre lhes deixava
alguma porcentagem para os alfinetes, a fim de desempenharem com mais zêlo e boa
vontade sua afanosa profissão.
Um dia, uma de suas mais belas mulatas deu à luz uma linda menina, e tão
alva, que ninguém a diria descendente de africanos. Era a própria Nhá Tuca quem
assistia os partos de suas escravas, e sempre com habilidade e mestrança, que o
resultado nunca desmentiu. Dessa vez, porém, tão desastrada andou no cortar o umbigo
da criança, que esta, esvaindo-se em sangue, se finou poucas horas depois de nascida.
Nhá Tuca sentiu cruelmente esta perda, e levou uma boa hora a praguejar-se e a vomitar
blasfêmias e maldições.
Isso era pela madrugada. Mal despontou a primeira alva do dia, ela, que era
sempre a primeira a levantar-se, ao abrir a porta da frente deu com os olhos em um
berçozinho, em que se achava enfaixada uma criança, cuja procedência já conhecemos.
Recuou espavorida, e benzeu-se dando três passos para trás.
– Cruzes!... credo!... que será isto, Deus do céu! – exclamou ela em atitude de
espanto, e com os olhos pregados no berço. – E não é que é uma criança, que vieram
enjeitar à minha porta!... ora!... ora!... ora esta!... esta não lembrava nem ao diabo!...
Acham-me então com cara de mãe da humanidade!... Mas enfim, que hei de eu fazer?...
Não hei de deitá-la aos porcos, oh! isso não... Mas... mas... - continuou ela, coçando a
cabeça, avizinhando-se do berço, inclinando-se sobre ele, e reparando com atenção a
criança. – Ora esta!... eu sou mesmo uma pateta!... É coisa que está entrando pelos
olhos. Foi minha boa fortuna que aqui me trouxe esta criança... Vejamos! – prosseguiu
ela, murmurando sempre em voz baixa e arredando as faixas, que envolviam a
criancinha. – Coitadinha! está dormindo!... Como é bonitinha!... oh!... e é fêmea!...
Tanto melhor. E é tal qual como a defuntinha, sem tirar nem pôr. E esta!... Sai-
me uma morta pela porta afora, e entra-me outra viva pela porta adentro... Mil graças a
quem me fez tão delicado presente, e tão a propósito!...
– Qual morreu o quê, toleirona!... Quem te disse isso?... Foi vágado, que deu na
menina; eu fomentei com arruda e cachaça, e ela voltou a si. Quem morreu foi uma
enjeitadinha, que encontrei aí na porta agorinha mesmo quase a expirar.
O cadáver da verdadeira escrava foi nesse mesmo dia dado à sepultura como o
de uma enjeitada, e quinze dias depois a exposta era batizada na Capela de Santa
Ifigênia como escrava de Nhá Tuca, e recebia na pia batismal o nome de Rosaura.
Por estas e outras proezas, Nhá Tuca começou a granjear uma enorme
reputação de bruxa, feiticeira e mestra em malefícios diabólicos, passando como coisa
incontestável, entre os povos daquela redondeza, que ela tinha pacto com o diabo. Por
essa razão começou ela a ser detestada e temida, execrada e evitada por toda aquela
gente. As raparigas foram-se cobrindo de uma lepra, que se propagou por todas, devida
a moléstias sifilíticas mal curadas; tornaram-se hediondas e foram morrendo uma a uma,
sucessivamente. Os fregueses, que outrora com tanta alegria e sofreguidão acudiam
àquela animada e ruidosa locanda, agora fugiam de lá como quem foge da peste.
Dorotéia era talvez a mais linda de todas as odaliscas do serralho de Nhá Tuca,
e a única que ainda conservava alguns restos da saúde e frescura da mocidade. Era ela a
favorita e a confidente de Nhá Tuca, e a quem esta não receava confiar seus segredos e
suas chaves.
Foi nessa ocasião que Nhá Tuca, achando-se inteiramente exausta de recursos,
se viu na dura necessidade de vender Rosaura, que então contava dez anos, e era a única
cria que lhe restava de suas escravas. Posto que vivesse no meio daquela escola do vício
e da abjeção, Rosaura, graças à índole privilegiada, e também ao cuidado que Nhá Tuca,
por exceção de regra, tinha tido de esquivar-lhe aos olhos as cenas de devassidão que se
davam em sua casa, havia conservado até ali pura e intacta a inocência de sua alma. Se
era uma fada pela formosura do rosto e pelo airoso porte de seu corpo esbelto, era um
anjo pela candura e pureza do coração.
Foi um assinalado favor, que o céu fez à pobre menina, permitindo que ainda
em verdes anos fosse arrancada ao ambiente infecto daquele imundo lupanar.
O francês que tinha taverna à beira da estrada foi o único que se compadeceu
dela, permitindo-lhe morar no miserável ranchinho em que a encontramos.
Era esta que, de quando em quando, saía a esmolar pela cidade para si e para
sua companheira, porque se saísse a própria Nhá Tuca, bem minguada seria a coleta.
Essa mesma pobre preta, que era seu único arrimo, havia morrido subitamente dois dias
antes, deixando sua senhora entrevada sobre seu mísero grabato e no estado de
indigência e desamparo em que Conrado veio encontrá-la.
CAPÍTULO XIV
A CONFISSÃO
No quarto da moribunda havia dois tamboretes, um colocado junto à cabeceira,
outro aos pés do pobre girau. Havia também defronte do leito uma mesa pequena e
tosca, sobre a qual estava colocado um crucifixo de madeira entre duas velas acesas;
assim como também um tinteiro, pena e papel. A enferma, graças aos cuidados do
francês, que, conforme as recomendações de Conrado, além de ter mandado arejar o
aposento e mudar a roupa da cama, tinha-lhe enviado um caldo e um cálix de vinho,
achava-se mais reanimada. Estava ela meio sentada, e encostada a alguns travesseiros.
Conrado fez Frei João sentar-se à cabeceira, e ele mesmo colocou-se aos pés da cama da
enferma. O francês e as outras duas testemunhas, por não haver mais assentos, ficaram
em pé defronte do leito.
A velha voltou a custo o rosto para o padre, depois, levando lentamente sobre o
coração a destra mirrada em sinal de gratidão e reverência, o saudou com uma leve
inclinação de cabeça.
– Tenha piedade de mim, senhor padre, murmurou com voz seca e alquebrada.
– Sim, é ele, bem sei, mas minhas culpas são tantas e tão enormes...
– E está pronta a declará-lo em voz alta perante nós, que aqui estamos?
– Pronta, senhor padre; pronta para tudo.
Nessa mesma manhã, ao romper do dia, encontrei exposta em minha porta uma
menina recém-nascida, que substituí à criança morta fazendo-a passar pela filha da
escrava, e dizendo que a enjeitada é que tinha morrido. Esta enjeitada foi batizada na
Igreja de Santa Ifigênia como escrava minha com o nome de Rosaura, e como tal foi
conservada em meu poder até a idade de dez anos, sendo vendida por mim a um Sr.
Basílio, morador na Rua do Tabatinguera. Ignoro o que depois foi feito dela. S. Paulo, 2
de novembro de 184..."
Concluído este ato, retiraram-se todos deixando somente o frade para ouvir a
penitente em confissão auricular.
É escusado dizer que o fato, que constituiu a confissão pública da velha, logo
circulou de boca em boca, e foi discutido, comentado, e apreciado de mil maneiras. Sua
curiosidade já em parte ficara satisfeita; já sabiam qual o nobre e generoso motivo, pelo
qual o cavaleiro, que ali se apresentara pela manhã, havia mostrado tanto interesse e
solicitude pela velha, e feito tantos esforços para, que não morresse sem confissão. Não
cessavam de elogiá-lo tanto quanto maldiziam a desditosa velha. Mas restava ainda um
mistério, que não podiam penetrar, e que lhes causava no espírito o mais incômodo
prurido. Dariam tudo para saber que laço misterioso havia entre o cavaleiro e a menina
batizada como escrava, que lhe merecia tantos cuidados e sacrifícios. De conjetura em
conjetura alguns não deixaram de tocar certo no alto; mas eram meras suposições; a
dúvida e o mistério persistiam.
Com grande desgosto de Conrado, que pretendia ir nessa mesma tarde arrancar
sua filha às mãos de seus supostos senhores, a confissão da velha teve de durar uma boa
hora, tanta era a carga de pecados, de que aquela alma trazia carregada a consciência, e
que lhe era mister alijar à borda do túmulo para poder subir ao céu.
– Sim; morreu. Aquela pobre alma parece que, por um supremo esforço, se
mantinha presa ao corpo para descarregar o peso de suas enormes culpas. Foi recebendo
a absolvição e expirando imediatamente.
Estava-se já nos primeiros dias de novembro, e nem uma gota de chuva tinha
ainda caído do céu sobre a terra ardente e sequiosa. A seca com seu sinistro cortejo de
calamidades ameaçava a bela província de S. Paulo, pouco afeita a ser castigada com
semelhante flagelo. Já se tinham feito preces públicas implorando a misericórdia divina;
já a milagrosa Imagem de N. S. da Penha, que tem a sua capela a duas léguas de
distância da cidade de S. Paulo, tinha sido conduzida em procissão solene, desde lá até a
Igreja da Sé, com grande devoção e atos de penitência.
Conrado, Frei João e toda aquela gente, que em número de trinta a quarenta
pessoas ali se achava desde pela manhã, viram-se forçados a recolher-se
atropeladamente à casa do francês. Os cômodos eram bastantemente acanhados para
tanta gente; mas mesmo assim, eles em pé, apinhados e acotovelando-se, enquanto lá
por fora a tempestade desabava roncando furiosa, falavam em voz alta com a maior
franqueza e desembaraço, formando outra tempestade de horripilantes pragas e
maldições.
– Aquela mulher era mesmo o diabo, que malsinava esta terra – gritava um. –
Foi ela morrer, e a chuva descer. Bendita morte e bendita chuva!
– Se até o céu se zanga contra essa mulher, nós é que devemos ter piedade
dela? – clamava o povo, e já se dispunha a ir, logo que amainasse a tormenta, atacar
fogo ao rancho, a fim de que ardesse completamente com o cadáver da velha e tudo que
lhe pertencia.
– Dela – diziam eles – não devem ficar sobre a terra nem mesmo as cinzas.
Pouco nos custa acender um grande braseiro, que secará a chuva, e amanhã esse maldito
rancho e sua dona não serão mais que um punhado de cinza, que o vento levará pelos
ares.
E teriam levado a efeito sua intenção, se Conrado e Frei João não os tivessem
estorvado, opondo-se com energia a tão cruel profanação.
– É porque o meu amigo não conhece de que têmpera é aquele Major Damásio
– respondia Conrado.
É o homem mais teimoso, mais emperrado que o sol cobre. Quando encabeça
para um lado, não há força humana, que o possa desviar. É como a anta disparada pelo
mato, esbarrando furiosamente em quanto obstáculo encontra e levando tudo de
vencida. . .
– Até que cai em algum poço, e aí, querendo fazer face ao inimigo, é de
ordinário vencida e morta.
– Ignoro certamente.
– Pois saiba que concebeu por ela a mais louca e infrene paixão, e a cada
instante emprega todos os meios e artifícios para seduzi-la ou coagi-la, de modo que a
infeliz menina, a qualquer momento, pode ser vítima da fúria libidinosa de seu
pretendido senhor. E é bem de crer que, quando ele perceber que a presa está prestes a
escapar-lhe das garras, redobrará de esforços para levar a efeito seus execráveis
desígnios. Eis aí por que não posso resignar-me às delongas dos meios judiciais, sempre
morosos e complicados mesmo nas coisas as mais simples. Estou quase certo que tanto
o velho como o genro hão de recalcitrar com a maior obstinação, e cerrando os olhos à
evidência, hão de opor todos os embaraços, que estiverem a seu alcance, a fim de obstar
a liberdade e a entrega de Rosaura. Creio por isso que não terei remédio senão valer-me
do meio pronto e decisivo, com que a Providência armou-me o braço.
– Tens razão de sobejo, meu caro amigo – replicou o frade. – Não sabia que as
coisas se achavam em tão melindrosa conjuntura. Não obstante, antes de lançarmos mão
desse recurso extremo, convém empregar todos os meios para conseguir a liberdade e
entrega da menina sem quebra da honra de Adelaide, sem ir levar a vergonha e a
discórdia ao seio de uma família considerada.
– De minha parte – retorquiu Conrado – bem estimaria que, para seu castigo, o
major viesse ao conhecimento de todo o ocorrido, pois é ele o primeiro, o único
causador de todos estes transtornos; mas a lembrança de que Adelaide, vítima dos
caprichos de um pai estúpido e brutal, também irá participar do mesmo castigo, me
contém em meus legítimos desejos de vingança.
– Está bem; mas isso não seria propriamente uma vingança, porém sim um
castigo, que Deus lhe infligia por minhas mãos. Esteja porém tranquilo a esse respeito;
não empregarei a arma terrível, de que disponho, senão em último caso; mas tenho
quase certeza de que me forçarão a empregá-la; ver-me-ei na cruel necessidade de
invocar o testemunho da própria Adelaide perante seu pai e seu marido.
– Eles são capazes de contestar a luz ao sol. Veremos amanhã. Às dez horas,
iremos à casa do Major Damásio. Poderá fazer-me ainda este favor?
– Com muito prazer; creio até que a minha presença aí não é sàmente útil,
torna-se mesmo necessária, pois creia que não sossego enquanto não vir esse negócio
terminado com o mais feliz resultado. Eu lá estarei para coadjuvá-lo, quanto em mim
couber, a fim de concluí-lo sem escândalo, e do modo o mais pacífico que for possível.
Quando tivermos esgotado todos os meios brandos, eu darei um sinal, para que o meu
amigo lance mão do extremo recurso.
CAPÍTULO XV
O SOGRO E O GENRO
– Esse homem terá decerto algum motivo particular para querer pregar-me
alguma peça – murmurava consigo. – Já fui estudante, e ele sempre foi futrica; talvez eu
lhe tivesse arranjado alguma caçoada, de que não me lembro, e para tirar desforra vem-
me agora com esta... Mas perde seu tempo; não é a mim, que há de fazer engolir
araras... Vá com sua caçoada para mais longe! Decerto o maganão sabe que gosto de
Rosaura, e quer me fazer medo. . .
Com estas e outras estólidas reflexões, que o seu mesquinho espírito lhe
sugeria, Morais procurava dissipar a terrível impressão, que lhe causara a visita de
Conrado; mas era debalde; a figura grave e severa de Conrado, suas palavras firmes e
concisas e o estranho motivo de sua visita eram como visões sinistras, que de contínuo
lhe apavoravam a imaginação. Embaraçado com mil conjeturas, que lhe escaldavam o
cérebro, não pôde ter-se, que não fosse comunicar ao sogro tudo quanto havia ocorrido
entre ele e Conrado, esperando que aquele dissipasse a inquietação, que o torturava. O
velho, que em razão dos janeiros e das moléstias já começava a tresler seu tanto ou
quanto, soltou uma estrondosa gargalhada.
– Pois deveras não saber ainda quem é esse peralta! – exclamou ele. – Foi meu
capataz; fui eu quem lhe dei a mão e o tirei do nada; se não fosse eu, ainda hoje ele
estaria em Curitiba domando burros, ou tocando tropa.
– Isso sabia eu – respondeu Morais; – mas o certo é que hoje é um homem de
importância e bastante rico.. .
– Rico! ora, rico!... Não creias nisso, homem. É mais basófia e impostura do
que qualquer outra coisa. Anda nos fazendo foscas com suas pataratas de luxo e riqueza
só para nos pôr sal na moleira. Se tu soubesses o motivo por que esse biltre nos tem
ojeriza, não lhe davas tanta importância.
– Tem, e muita, meu rapaz, e eu já te conto por que. Hás de acreditar, que
aquele pé de poeira, sendo meu capataz, teve o descoco de apaixonar-se pela nossa
Adelaide a ponto de ter o desaforo de pedi-la em casamento a mim, a mim mesmo que
aqui estou?!
– Deveras!?...
– Por isso! por isso! – exclamou ainda o genro. Por isso é que ele vem com
tamanha arrogância exigir o que não lhe pertence, inventando embustes e patranhas para
me embaçar...
– Queres saber uma coisa? – interrompeu o sogro. – Quer me parecer que esse
pelintra já conhecia Rosaura, e deseja possuí-la, decerto para seu serralho...
– Mas escuta ainda, basbaque. Não tens reparado que Rosaura tem assim certas
parecenças com Adelaide, quando era mocinha?
– Oh! se tem!... – murmurou o genro quase falando consigo mesmo. – Pensei
que só eu tinha reparado nisso.
– Pois é isso talvez que lhe despertou agora outra vez a paixão antiga e...
compreendes o resto, para o bom entendedor um pingo é letra. Mas como lhe tomaste a
dianteira comprando a rapariga, que ele cobiçava lá para seus fins, danou com o caso e
agora vem com essas patranhas procurar arrancá-la de nossas mãos.
Morais achou todo fundamento nas conjeturas do major, que vieram dar bases
mais sólidas às suas estólidas suposições, e em conseqüência suas inquietações se
transformaram no mais entranhado rancor contra Conrado. Lembrando-se do ar meigo e
afetuoso, com que Rosaura, com seus grandes olhos límpidos e ternos, havia
contemplado o moço durante todo o tempo que estivera em sua presença, o ciúme
atracou-lhe ao coração as garras ferozes; sua paixão insensata pela inocente menina
tomou um caráter sombrio de exaltação e ferocidade, que quase tocava ao delírio.
Andava de aposento em aposento, procurando Rosaura, e, quando a encontrava, a
envolvia em um olhar torvo e inflamado, que não se poderia dizer se era de cólera, ou
desse ardente sensualismo que lhe queimava o sangue. Rosaura fugia, e correndo
espavorida procurava abrigo ora junto de Adelaide, ora junto de Lucinda.
O mau humor de Morais se fez sentir nesse dia em toda a casa. Na loja, o
pequeno caixeiro que o ajudava, tendo cometido uma insignificante falta, Morais
investiu sobre ele de côvado em punho com tal fúria, que o obrigou a saltar o balcão e
correr pela porta afora para não mais voltar. A mesa achou o jantar péssimo, e a pobre
Lucinda teve de ouvir os mais horríveis repelões.
Enfim, nesse dia tudo em casa do major andou inquieto e agitado. Lucinda,
preocupada e ansiosa pelo resultado das passadas, que Conrado ia dar para conseguir a
liberdade de Rosaura, não sabia o que fazia, e esperava com impaciência a noite para
pôr termo a suas incertezas.
Adelaide, apesar do prazer íntimo que sentia, vendo perto de si a filha do seu
primeiro amor tão linda e tão amável, achava-se desassossegada e apreensiva, receando,
com bastante fundamento, que o reconhecimento da liberdade de Rosaura não se
pudesse realizar sem se romper, talvez para sempre, a confiança e harmonia que até ali
tinham reinado no seio de sua família.
A própria Estela, apesar de sua tenra idade, vendo que Rosaura, a quem já
adorava, em vez de brincar com ela, na forma do costume, andava ressabiada pelos
cantos da casa, com ar espavorido e consternado, sem saber por que, achava-se também
triste e amuada.
Quando desceu a noite, Lucinda achou pretexto para sair, e foi direito à casa de
Conrado. Esse ainda não tinha chegado. Lucinda o esperou à porta por espaço de quase
uma hora. Triste e contrariada já vinha de volta para casa, quando encontrou em
caminho dois cavaleiros, em um dos quais reconheceu Conrado. Era tal a sua ansiedade,
que, esquecendo-se de sua condição, abalançou-se a travar da rédea do animal no meio
da rua, suspender-lhe a marcha, e dirigir ao elegante cavaleiro uma pergunta.
– Então, nhô Conrado, como é?... – foram as únicas palavras que lhe dirigiu. .
A preta voou para a casa, pulando de contente, seu humor do dia para a noite
mudou-se por tal forma, que a todos causou estranheza; ela, que durante todo o dia
estivera distraída, rabujenta, e de poucas graças, apresentava-se agora alegre e folgazona
como nunca. Corria, cantava, ria-se à toa, como se fosse uma criança. Tomou Rosaura
ao colo, e cobrindo-a de carícias a chamava de sinhazinha com alegria tal, que parecia
loucura. Rosaura, Estela e as crianças, que nem por sombra suspeitavam o motivo de tão
insólito contentamento, riam-se também, a não poderem mais, da desenvoltura de
Lucinda.
Adelaide, que fora a primeira a quem a preta logo ao chegar tinha comunicado
as palavras de Conrado, sentiu banhar-se-lhe em júbilo o coração; mas um cruel
pressentimento pesava-lhe sobre o espírito, e não permitia que o seu júbilo se
manifestasse com as mesmas expansões do de Lucinda. Ela compreendia vagamente
que se achava na véspera de um acontecimento, que tinha de exercer a mais decisiva
influência sobre seu destino futuro, e cheia de inquietação e angústia aguardava o
desenlace de uma situação, que ela, melhor que ninguém, sabia quanto era grave e
melindrosa.
Durante a noite o sono de todos, à exceção do das crianças, foi agitado, febril e
povoado de sonhos. O espírito de Adelaide debatia-se entre o prazer de ver sua filha
bela, grande e pura, arrancada à escravidão e restituída aos carinhos de seus
progenitores, e o receio cruel de ver perdida aos olhos do esposo e do pai a reputação de
que até ali gozara, e estes pensamentos afugentavam o sono de suas pálpebras.
Para Lucinda essa noite pareceu uma eternidade; estava ansiosa pelo momento
em que, em vez de dar, teria de pedir a bênção à Rosaura.
CAPÍTULO XVI
ABATE OS SOBERBOS
No dia seguinte, Frei João veio almoçar em casa de Conrado, e daí dirigiram-se
ambos para casa do Major Damásio. A missão, que iam desempenhar, era grave e
melindrosa, e é fácil de compreender a emoção com que ambos, e especialmente
Conrado, transpuseram a soleira daquela casa, onde por uma fatal necessidade iam
talvez levar a vergonha e a desarmonia.
– Não é propriamente uma visita, senhor major, disse o frade. – O que nos traz
hoje à sua casa é um negócio da mais alta importância, não só para nós, como para V.
S.a.
– Muito grave é o negócio, mas por isso não seja a dúvida – disse o major,
tocando a campainha.
Apareceu um escravo, pelo qual mandou chamar a filha e o genro, que após
instantes se apresentaram na sala.
Ah! que tristes e amargas recordações lhe oprimiam o coração, e que sérias e
assustadoras apreensões lhe assaltavam o espírito naquela ocasião e em presença
daquele homem!...
Adelaide, apesar dos filhos e de mais quatorze primaveras, que tinham passado
sobre sua juventude, ainda conservava no frescor da tez, no brilho dos olhos e na
delicadeza e flexibilidade de seu bem feito corpo, quase intactas todas as graças da
primeira mocidade. A matrona de trinta anos em quase nada diferençava da donzela de
dezoito.
O tempo apenas lhe tinha tornado as belas feições um pouco mais
pronunciadas, e lhe imprimira na fisionomia certa expressão grave e melancólica, que
ainda mais lhe realçava os encantos.
Ao ver tão perto de si e ao tocar a mão daquela, que fora o primeiro e único
amor de sua vida, Conrado sentiu o mais violento abalo, e abafou um gemido de
angústia e de saudade. Pareceu-lhe que sua antiga paixão ia renascer com todos os seus
arroubos e exaltações, e a muito custo conseguiu domar a extrema emoção que o
assoberbava.
– Senhor Major – disse Frei João – ainda precisamos pedir-lhe mais um favor.
– Ora, sem o saberem – continuou Conrado compraram uma pessoa que nasceu
livre, e que por fraude e malícia de uma mulher, que ontem faleceu, foi reduzida à
escravidão. Ontem eu procurei o Sr. Morais, e pedi-lhe o resgate dessa menina,
oferecendo-lhe a quantia que quisesse; mas ele recusou-se obstinadamente. Ontem eu
ainda não tinha provas irrecusáveis; hoje, mercê de Deus, as tenho sólidas e
irrefragáveis, e venho apresentá-las e exigir que me seja entregue essa menina, sobre a
qual tenho direitos sagrados.
– Há! há! há! – gargalhou o major, com riso aparvalhado. – O senhor é o pai e
não poderá fazer-nos o favor de dizer quem era a mãe?
– É debalde insistir, Sr. Conrado – replicou Morais. – Nós não disporemos dela,
nem mesmo que o senhor ofereça toda a sua fortuna. A paternidade, que V. S.a chama a
si, e de que não queremos duvidar, nada significa; a maternidade é o que importa neste
caso, e enquanto V.S.a não provar que Rosaura é filha de mãe livre. . .
– Nada mais fácil – atalhou Conrado – mas quero guardar esse segredo, porque
importa a honra de uma mulher a quem consagro ... a mais alta estima.
– Ah! nesse caso, só V.S.a tentando os meios judiciais; e mesmo assim lhe será
talvez necessário desembuchar esse segredo. Devo notar-lhe também que nós não
maltratamos Rosaura; pelo contrário, a consideramos como fazendo parte da família, e a
tratamos com o mimo e carinho que ela merece. A minha Estela a quer como se fosse
sua irmã, e minha mulher a estremece como se fosse sua filha.
– Acaba V.S.a de proferir a meio uma verdade mais verdadeira do que imagina
– disse Conrado, com certo sorriso de melancólica ironia, cuja significação só Adelaide
e Frei João compreenderam.
– Mas, Sr. Morais – continuou Conrado – creio que neste negócio poderei
prescindir dos meios judiciários. A infeliz mulher, que escravizou Rosaura, faleceu
ontem; mas antes de expirar fez confissão pública do seu crime; o sacerdote, que a
ouviu de confissão, foi o meu amigo que aqui se acha presente, o Sr. Frei João de Santa
Clara, de cujas virtudes, prudência e ilustração não é dado duvidar. Em presença dele,
minha e de mais duas testemunhas a velha fez a seguinte declaração, que tomamos por
escrito, e que passo a ler.
Conrado tirou da algibeira e leu com voz firme e clara o papel, cujo conteúdo já
conhecemos. Finda a leitura, decorreram silenciosamente alguns instantes de angústia e
inquietação para uns, e de estupefação para outros. A angústia estava no coração de
Conrado, de Frei João e de Adelaide, que compreendiam perfeitamente a crítica situação
em que se achavam. Pode-se idear, mas não explicar a penível posição em que se
achavam aquelas duas almas nobres em presença de uma mulher, cuja reputação iam
ver-se talvez na dura necessidade de sacrificar para salvar a filha da escravidão e da
desonra; de uma mulher que, não obstante ter no seu passado uma nódoa muito
desculpável, se tinha mostrado por seu ulterior comportamento digna de todo o respeito
e estima da sociedade.
– Sr. Conrado – disse ele, com desdenhosa e impertinente altivez – sei muito
bem quem era essa mulher, que foi a primeira senhora de Rosaura, e que ontem faleceu.
Também já houve quem esta manhã me desse notícia da cena, que vossa senhoria
preparou, e que de fato não foi mal representada.
Em qualquer outra ocasião Conrado teria repelido com energia e dignidade esta
tão grosseira e insultuosa insinuação; mas naquele, delicado transe lhe era mister levar
ao extremo sua paciência e longanimidade. Uma ruptura logo no começo daquela
conferência podia transtornar todos os seus planos de acomodação pacífica e honrosa, e
portanto deixou passar sem resposta as palavras injuriosas de Morais.
– Não contesto – continuou este – que essa mulher foi quem vendeu Rosaura;
mas vendeu-a como sua legítima senhora; posso contestar, contesto e contestarei
sempre, que Rosaura seja livre, por nascimento, como filha de mulher livre. Merece ser
livre, é verdade; mas a mim compete dar-lhe a liberdade, quando me aprouver e julgar
conveniente. Todo o povo de S. Paulo conhece muito bem quem foi essa Nhá Tuca. Foi
uma boa e honrada senhora, que há muitos anos, por desgraças e contratempos, que lhe
sobrevieram, caiu na miséria e perdeu o juízo. Caduca e alienada, como estava, com
mais de oitenta anos de idade, e de mais a mais já nas vascas da morte, que valor pode
ter a sua declaração, embora feita perante três ou mais testemunhas?...
– Isso é que nada tem de verdade – replicou Frei João, com voz sonora e firme.
– Minha deposição ali está firmada com juramento, e mercê de Deus nunca profanei o
sagrado hábito, que visto, com um juramento falso ou mal considerado. Também não
sou tão destituído de penetração e inteligência, que não saiba discernir quem está ou não
em estado de demência, e posso asseverar e jurar, se necessário for, que essa mulher
morreu no gozo perfeito de suas faculdades intelectuais.
– Mas, senhor padre – replicou Morais – todo o homem está sujeito ao erro; V.
Rev.ma bem podia enganar-se.
– V.S.a é que está perfeitamente enganado a respeito dessa mulher. Nhá Tuca
nunca foi essa boa e honrada mulher, que V. S.a pensa. A princípio passou por tal; mas
há muito tempo o povo está no conhecimento de sua triste e vergonhosa crônica, das
torpezas, embustes e perversidades, que praticou para enriquecer-se. Além de sua
própria confissão, aí está a voz pública, que há muito tempo já a tinha condenado. É,
portanto, irrecusável o documento, que o meu amigo acaba de ler...
– Reflitam bem, meus senhores! – disse ainda o carmelita. – Olhem que com
sua obstinada recusa vão dar um triste e escandaloso desfecho a um negócio, que bem
podia terminar-se entre nós de um modo amigável e honroso para todos.
– Deus e todos que aqui se acham – disse – são testemunhas dos esforços, que
temos empregado, eu e meu amigo Frei João, no sincero e louvável empenho de evitar
um grande escândalo, conservando inviolável um segredo, cuja revelação vai trazer a
vergonha, a desconfiança e a discórdia ao seio de uma família, cuja harmonia e
felicidade eu sou o primeiro a desejar. Mas desgraçadamente forçam-me a dar esse
extremo e doloroso passo; resignem-se, portanto, a ouvir a verdade toda inteira. Senhor
major, restitua-me sua neta; Sr. Morais, restitua-me a filha de sua mulher; Sra. D.
Adelaide, faça com que me seja entregue a nossa filha!
CAPÍTULO XVII
EXALTA OS HUMILDES
– Sr. Morais – disse Conrado – é vossa senhoria quem força um pai a lançar
mão deste meio extremo, mas legítimo, para arrancar a filha das garras do cativeiro e da
desonra. Do cativeiro, é coisa manifesta; da desonra, o Sr. Morais melhor que ninguém
sabe o motivo por que assim me exprimo.
Adelaide não respondeu diretamente a esta pergunta, mas caindo de joelhos aos
pés de seu marido, contorcendo convulsivamente as mãos, debulhada em lágrimas e
afogada em soluços, mal podia pronunciar:
– Perdão!... perdão!...
– Perdoar-te, eu? - disse Morais. – Ah! se eu soubesse há mais tempo que não
passavas de uma...
– Basta! – bradou Conrado, atalhando a palavra ignominiosa, que irrompia dos
lábios de Morais. – Insultar a uma senhora, em tão aflitivas circunstâncias não é só uma
crueldade, é uma indignidade, uma covardia; quatorze anos de uma vida pura e de um
procedimento exemplar são mui suficientes para fazer esquecer uma primeira e única
fraqueza, devida a imprudência e ardor da mocidade. Embora! Se V.S.a não perdoa,
Deus perdoará. E V.S.a – continuou Conrado, voltando-se respeitosamente para o
major, que mal voltara a si do efeito esmagador, com que o fulminara tão triste
revelação também não perdoa à sua filha?
– Eu! eu nunca! nunca! – respondeu ele, com olhar desvairado e voz lúgubre e
cavernosa. – Quando pensei eu que estava reservada por minha filha semelhante
vergonha para meus últimos dias!... Ah! meu Deus! antes nunca semelhante opróbrio
tivesse chegado ao meu conhecimento!
– Tem razão, senhor major - disse por fim Frei João, em tom brando e
benévolo, aproximando-se do major. – Melhor seria, que vossa senhoria e seu genro
ficassem para sempre ignorando esse mistério, que estava escondido nas sombras de um
passado inescrutável para vós e para todo o mundo, e era esse o nosso maior empenho,
para o qual envidamos os meios a nosso alcance. Mass quem é o culpado dessa
revelação? Quem provocou esta cena angustiosa que ameaça destruir para sempre a paz
e felicidade, que até aqui tem reinado no seio de sua família?... Vossas senhorias
mesmo, fazendo-se surdos às nossas propostas, a nossos avisos e conselhos, inspirados
por sentimentos de honra, de justiça e de humanidade. Por que razão não se decidiram a
conceder logo e sem condições, como aconselhavam a razão, a justiça e a conveniência,
a liberdade a essa menina, que nasceu livre, como tudo estava denunciando? Se assim
tivessem procedido, o triste segredo, que acaba de ser revelado, ficaria para sempre
sepultado entre nós três, entre mim, o Sr. Conrado e a Sra. Adelaide. Mas vossas
senhorias, bem a pesar nosso, nos forçaram a esta cruel revelação. Ainda mesmo que
não aparecesse o próprio pai reclamando sua filha, nem eu, nem qualquer outro, que
tivesse coração nobre e sensível, uma vez ciente do ocorrido, poderia jamais consentir
que o avô e a mãe continuassem a conservar em casa, entregue aos vexames da
escravidão, a neta e a filha. Agora cumpre-lhes aceitar com resignação as conseqüências
de sua imprudente e mal avisada obstinação. Cumpre-lhes sobretudo eliminar para
sempre do espírito e do coração a lembrança de uma falta, que já está amplamente
expiada por longos anos de uma vida exemplar e sem mancha, e que já se perde
sepultada nas trevas profundas de um remoto passado. – Console-se, meu amigo! –
continuou Frei João, pousando brandamente a mão sobre o ombro do ancião, que ainda
se não reerguera de seu abatimento. Não se entregue a um pesar, que não tem muita
razão de ser. Nenhum opróbrio pesa sobre sua família, nem mácula alguma veio marcar
a bela reputação de sua filha, que, por suas virtudes e pelos excelentes dotes de seu
coração e de seu espírito, tem sabido conquistar na sociedade o respeito e a estima de
todos. A solicitude, a paciência, o zelo religioso, com que por largo tempo tem
desempenhado os deveres de filha, de esposa e de mãe, a têm tornado tão pura, e talvez
mais respeitável, do que o era antes de sua falta. A fraqueza de sua mocidade é um
segredo, que ficará para sempre entre Deus e nós. Senhor major, sou eu quem lhe peço,
em nome da humanidade e da religião, abençoe sua filha. Sr. Morais, em nome da honra
e da dignidade, e sobretudo em nome de seus inocentes filhinhos, abrace sua esposa.
– Não, minha filha, não és tu que deves pedir perdão a mim, nem a ninguém –
disse, com acento da mais íntima e sincera compunção. – É teu velho pai que o vem
pedir-te agora. Perdão, minha filha!
– Perdoar-lhe eu, meu pai, por quê? – dizia a filha, entre soluços.
– Agora vejo que te fiz muito, muito mal. Eu sou a principal causa de tudo isso;
fui eu o autor de tua desonra; fui eu quem escravizei minha neta!... Perdão, Adelaide.
Perdão, Conrado!...
– Não, meu amigo – atalhou Frei João – o perdão generoso, que acaba de dar à
sua filha, o absolve de qualquer falta, e o torna digno do respeito de todos nós.
E dizendo isto, beijava com respeitosa efusão a rugosa mão de seu antigo
patrão.
Rosaura já tem quatorze anos, e parece-me que será capaz de guardar o segredo
até para com seus próprios irmãos.
– Tem toda razão – confirmou o carmelita. – Seus filhos são ainda mui
crianças, e a indiscrição própria da idade os levaria naturalmente a divulgar um segredo,
que deve ficar para sempre oculto aos olhos do mundo. Mas eu também não sairei daqui
com a consciência tranqüila, se não fizer ainda um pedido por minha parte e por parte
do amigo, que aqui me trouxe. Este pedido, que não importa sacrifício algum para a
família, tem por si a justiça, a humanidade, mesmo a gratidão. É inegável que, quem
mais contribuiu para que se reconhecesse o verdadeiro nascimento e a liberdade de
Rosaura, foi a escrava Lucinda. Sem ela a pobre menina ficaria talvez para sempre
condenada à condição de escrava em casa de sua própria mãe, quando muito à de
liberta, sem que jamais se pudesse saber a sua verdadeira origem, e se tivesse de ter
filhos, toda a sua descendência ficaria com essa nódoa original. Decerto nem o senhor
major, nem o Sr. Morais sabem ainda por que meios misteriosos a divina Providência se
serviu dessa boa rapariga como de um instrumento para seus altos e misericordiosos
desígnios; mas em breve serão informados de tudo isso, e se convencerão de que digo a
verdade. Lucinda é a verdadeira libertadora da menina Rosaura. Ora, não é justo que
aquela, que dá liberdade aos outros, que acaba de desatar os nós que amarravam ao
poste do cativeiro a filha de seus senhores, continue a ser cativa. É enfim a liberdade de
Lucinda, que lhes pedimos. O meu amigo dará por ela qualquer soma que exigirem.
– Não aceito soma alguma, nem grande, nem pequena; não quero nem mesmo
agradecimento – disse o major – porque é esse o meu dever. Lucinda desde este
momento é livre.
– Deus lhe levará em conta a santa e generosa ação, que acaba de praticar.
Agora podem mandar abrir essas portas; nosso principal empenho era reconhecer
Rosaura como livre de nascimento; isto felizmente está conseguido; é quanto basta e
quanto se deve saber fora daqui. Peço a Deus, senhor major, que a paz e felicidade, que
tem reinado até aqui em sua casa, não se perturbe com este incidente, e se conserve
sempre inalterável.
CAPÍTULO XVIII
A MÃE E A FILHA
Não se pode negar que lhe assistia bastante razão. Os zelos não se limitam
somente aos cuidados do presente e aos receios do futuro; estendem-se também pelo
passado, e tornam-se retrospectivos. Com efeito deve ser bem doloroso para o coração
de um marido, que tem vivido largos anos na doce persuasão que fora ele objeto do
primeiro e único amor de sua esposa, saber que esta já tivera outro afeto, talvez mais
extremoso e ardente do que aquele, que lhe consagrava, embora mesmo não fosse
acompanhado das fatais conseqüências, que teve o de Adelaide. Ainda se o objeto dessa
primeira paixão já não existisse ou pelo menos a distância ou novos laços de amor
tornassem provável a completa extinção de seu primeiro afeto, o espírito de Morais
poderia tranqüilizar-se algum tanto. Mas Conrado estando ali vivo, morando na mesma
cidade, solteiro, com o coração completamente livre e isento, moço elegante, rico e
rodeado de prestígio, forçoso é convir que a posição de Morais não era das mais
invejáveis.
Por outro lado a perda de Rosaura, por quem tinha concebido uma dessas
paixões sensuais e infrenes, que quase não se pode explicar, o enchia de despeito, raiva
e ciúme. Rosaura, livre e debaixo do domínio de Conrado, ficava inteiramente fora do
alcance de seus libidinosos desejos, e formosa, rica e cheia de atrativos como era, não
tardaria a encontrar algum amante feliz, que a desposasse; esta idéia, por mais que ele se
esforçasse por arrancá-loa, se lhe agarrava teimosa ao coração como farpa envenenada.
Para Adelaide, também, essa nova fase de sua existência apresentava duas faces
bem diferentes; uma risonha e feliz, cheia de suaves expansões de ternura e alegria;
outra, porém, carregada de sombrios matizes, entenebrecida de cruéis angústias e
pungentes inquietações. O tempo havia mitigado mas não extinguido, o vivo pesar,
antes remorso, que a cruciava, quando se lembrava da filhinha, fruto de seu primeiro
amor, exposta e falecida no mesmo dia em que nascera. Quando essa cruel recordação
lhe preocupava o espírito, acudiam-lhe as lágrimas aos olhos, acusava-se de mãe
desnaturada, maldizia-se e lançava contra si mesma a exprobração de infanticida. Essas
cruéis recordações, essas amargas reflexões é que, transformando seu gênio outrora tão
alegre, descuidoso, e até mesmo leviano, tinham comunicado ao seu caráter, à sua
fisionomia e às suas maneiras esse ar grave e melancólico, que dessa época em diante
sempre a distinguiu.
Compreende-se, pois, o júbilo íntimo, que lhe banhava o coração, vendo viva e
restituída a seus carinhos a filha, da qual julgava que na terra já nem os ossos existiam.
Entretanto, esse prazer era fortemente contrabalançado pela vergonha e humilhação, em
que se via colocada perante o pai, e principalmente perante o marido. Do pai estava ela
certa que fora completo o perdão e nascido da abundância do coração; o do marido,
porém, via bem claramente, e todos compreenderam que fora arrancado pela força das
circunstâncias. A infeliz esposa já pressentia que jamais poderia gozar do mesmo grau
de afeto e confiança, que até ali merecera do marido, e antevia com tristeza um futuro
de desavenças e dissabores, de zelos e desconfianças; mas estava resignada a aceitar,
submissa e sem queixume, como expiação de sua falta, o peso de sua nova e triste
situação.
– Que quer dizer isto, tia Lucinda?! – exclamou Rosaura, entre atônita e
risonha. – Você hoje está louca, ou?..
– Não sou sua tia, não, sinhazinha; mecê não é nem nunca foi cativa; seu pai e
sua mãe estão aí bem vivos, e tudo gente de bem, e gente rica.
– Eu?.. Tenho pai e mãe vivos?... Ora me deixa, tia Lucinda; você está
caducando.
– É aquele moço, que ontem veio aqui, que esteve lá embaixo na loja com nhô
Morais, e que hoje veio aí também; é nhô Conrado.
– Ah! meu Deus! não duvido não; deve ser ele mesmo; meu coração parece que
estava adivinhando. Desde que o vi, não quis mais arredar meus olhos dele, e fiquei, não
sei por que, lhe querendo um bem, como você não faz idéia, tia Lucinda.
– Como não havia de ser assim?... A voz do sangue fala muito alto.
– Mas, tia Lucinda, você disse também que eu ainda tenho mãe; isso é que eu
não posso acreditar. Quem é ela?... Onde está?... ó meu Deus, que alegria, não seria para
mim ir beijar agora mesmo a mão dela!
– Pois sinhazinha deveras ainda não adivinhou? Rosaura olhou atônita para
Lucinda, e nada respondeu.
Rosaura, sem saber o que pensar, deixou-se maquinalmente levar pela mão de
Lucinda, que a conduziu ao quarto de Adelaide.
– Mas aqui é o quarto de sinhá Adelaide – disse Rosaura. – Minha mãe está aí
com ela?
Adelaide já esperava sua filha, essa que ainda ontem julgava sua escrava, e que
agora, pela primeira vez, ia apertar em seus braços. Estava encostada a um bufete, com
a face pousada sobre urna das mãos, e voltada para a porta, sobre a qual tinha os olhos
fixos. Divisavam-se em suas pálpebras vestígios de lágrimas, mas pairava-lhe nos lábios
um leve sorriso cheio de afeto e melancolia. Era nobre e simpática a sua figura, e em
seu todo brilhava uma espécie de formosura, talvez mais atrativa do que essa, que na
aurora da vida florejava em seu rosto tão esplêndida e viçosa. Era a beleza calma e
suave do outono, despida dos garridos encantos e das vivazes e embaidoras seduções da
primavera. Apenas viu Rosaura, que entrava por seu quarto procurando, em vão, com os
olhos, por todos os cantos, alguém que não fosse Adelaide, adiantou-se para ela com os
braços abertos.
– Vem, minha filha, vem – exclamou Adelaide, com transporte. – Vem abraçar
tua mãe!...
– Minha mãe! – foi a única palavra, que pronunciou, e precipitou-se nos braços
de Adelaide, inundando-lhe o seio de lágrimas de prazer e ternura.
CAPÍTULO XIX
– Que tem, meu Carlos, que há tempos a esta parte andas triste e amuado, assim
com cara de Romeu pálido, com saudade de sua Julieta, e outras vezes com gestos de
Otelo furibundo, prestes a sufocar Desdêmona?
– Tu falas galhofando, Frederico, porque não sabes o que eu sofro. É um
sentimento íntimo e profundo, que tenho vergonha, e até medo, de comunicar a vocês
que tudo metem a ridículo.
– Obrigado, Frederico; sei que me tens sincera amizade, e que embora na turba
dos outros sejas tão caçoador como outro qualquer, tens caráter sisudo e sensível, e não
zombas dos sofrimentos alheios. Por isso não faço a menor dúvida em contar-te a causa
deste aborrecimento e tristeza, que há tempos me acabrunha.
– Pois bem, vamos a isso; desembucha tudo sem receio. Sou um pouco menos
frívolo e leviano do que nossos companheiros, e saberei guardar segredo, se o exiges.
Este diálogo passava-se entre dois estudantes do quarto ano jurídico de São
Paulo. Tinham acabado de jantar e ainda se achavam à mesa em casa de Frederico, que
morava só, no alto da Consolação, um dos bairros mais isolados e solitários da cidade.
Era isso cerca de dois meses antes dos interessantes sucessos, de que demos conta nos
dois últimos capítulos desta história. Os dois quartanistas eram da província de Minas, e
amigos íntimos de longa data, não dessa amizade fundada em relações passageiras e de
ocasião, que freqüentemente se dão entre estudantes, as quais tanto têm de francas e
sinceras, como de pouco duradouras; são laços, que não se rompem, mas que com o
tempo e ausência acabam, por desatar-se insensivelmente.
Estatura regular, cabelos e olhos escuros, tez clara e levemente colorida, olhar
cintilante e profundo revelavam nele imaginação viva, natureza ardente e apaixonada.
Tanto um como outro eram tidos em distintos estudantes por sua inteligência,
assiduidade e bom comportamento, considerados pelos lentes e estimados pelos colegas.
Entretanto, Carlos há dois meses começara a dar muito más contas de si,
falhava muitas vezes, balbuciava a muito custo a lição, quando não era chamado, e às
vezes se escusava alegando incômodo de saúde, que a sua que sua progressiva magreza
e deperecimento não deixavam de justificar. Seus companheiros notavam a grave e
profunda alteração, que se ia operando no físico e moral de Carlos, alteração que, a não
ser devida a alguma afecção do organismo, não podia ser atribuída senão a sofrimentos
morais. Quando lhe inqueriam o motivo de tão estranha modificação em todo o seu ser,
dava respostas evasivas, que em nada satisfaziam a curiosidade dos colegas.
– É verdade; tem mais esse prestígio a seu favor. Dizer-te que é um anjo, uma
fada, que respira em todo o seu ser um perfume de celestial candura e inocência, que
impõe o respeito e adoração, é proferir palavras banais, que nada exprimem. É preciso
vê-la para poder formar perfeita idéia de sua deslumbrante formosura. Meus
companheiros, que apenas a têm visto de relance, também ficaram impressionados ao
aspecto de tão rara beleza.
– E tu... a tens contemplado mais a vontade? – Felizmente não sei por que,
parece que lhe agradei mais do que qualquer outro. No lado da casa, que olha para a
nossa, há apenas uma pequena janela, que dá para o tal terreno neutro, de que te falei, o
qual fica também por baixo da janela do meu quarto.
– É verdade; mesmo da minha mesa de estudo posso vê-la, quando chega à sua
janelinha, moldura bem pouco digna daquele busto mais lindo e mais ideal do que as
virgens de Rafael... Ali aparece ela algumas vezes, mas se acaso avista algum dos meus
companheiros, retira-se imediatamente.
– Não; fica enquanto eu fico, e creio que só se retira quando é chamada por
alguém de casa.
– Oh! quanto és feliz, meu Carlos!... Aí temos outra vez quase a mesma
aventura de Píramo e Tisbe. Mas dize-me: teu namoro não passa dessas olhadelas de
longe? Ainda não pudeste conversar de perto com ela?
– Ah! meu amigo! foi mesmo essa entrevista, que me lançou o desânimo
nalma, fazendo-me conhecer toda a complicação e estranheza de minha situação.
– Oh! bem dizia eu! Temos Romeu e Julieta. - Mas a minha Julieta.
..
– Eu sei que o senhor me quer muito, e eu também lhe tenho muito amor... mas
este nosso amor não deve continuar. . .
– Ah! não me fales assim! Não deve continuar por que, minha querida?...
– Ah! bem me custa lhe confessar isto: mas... mas eu. .. eu não sou digna do
seu amor.
– Mas por que me diz isso? Por que se julga indigna do meu amor, minha
senhora? – perguntei-lhe, em tom um tanto brusco.
– É porque eu não sou nenhuma senhora – respondeu ela, com voz tímida e
angustiada. – Sou uma simples escrava do Sr. Basílio.
– Seja embora assim, mas é revoltante, que haja no mundo quem tenha ânimo
de manter na escravidão criatura tão linda; servir um homem, e a que homem, santo
Deus! aquela formosura ideal e celeste, digna de viver no céu em companhia dos
anjos!... Mas essa é a pura, esmagadora verdade. Rosaura percebeu a cruel impressão,
que sua declaração produzira em meu espírito, recolheu-se e, encostando-se com a
fronte à parede e escondendo o rosto entre os alvos braços meio nus, começou a chorar.
Não sei explicar-te a emoção, que senti nesse momento. Todos os horrores praticados
com formosas e nobres escravas, a começar pela infeliz Agar, barbaramente sacrificada
às conveniências da família de Abrão, me vieram à lembrança; senti-me aniquilado.
Como única resposta, tomei ambas as suas mãos, cobri-as de beijos ardentes, e
disse-lhe já não me lembro bem que palavras loucas e apaixonadas; mas foi pouco mais
ou menos isto:
– Agora que sei, que és escrava, amo-te mais que nunca, minha querida. És
escrava por um capricho da sorte; Deus te fez livre, porque Deus não permite a
escravidão. Nasceste escrava, mas eu te farei livre, porque é um insulto feito à natureza,
à humanidade, ao próprio Criador conservar na escravidão um anjo, como tu és. Se a
escravidão fosse uma coisa possível aos olhos da moral e da religião, tu serias a
senhora, porque todo o mundo deve respeito e obediência, amor e adoração à inocência
e à formosura, e tu possuis a beleza, a inocência e a imaculada candura dos anjos. Não
penses que desmereceste o amor, que te consagro, com a declaração que acabas de
fazer-me. Tu és escrava! Pois bem, és uma escrava, que podes ter milhares de escravos a
teus pés, e o mais dedicado, o mais submisso deles sou eu. Linda escrava, eu sou teu
escravo, e de hoje em diante considero meu principal dever empregar todo o meu
esforço em quebrar-te os ferros da escravidão.
– Mas acaso não tens consciência de tua fraqueza? Para superar essas
dificuldades, transpor essas barreiras, de que meios dispões, não me dirás?
– Que exaltação, meu Deus!... Deveras tu tinhas ânimo de te casar com uma
liberta? ...
– Pois que tem isso, quando essa liberta vale uma princesa?! Digo-te mais –
continuou, levantando-se e dando a sua voz um tom de extraordinária firmeza e
exaltação – cativa como é, se eu não pudesse quebrar-lhe os ferros, dar-me-ia por feliz
em tê-la por esposa e unir o meu destino de homem livre ao de tão formosa e adorável
escrava, empregando minha vida em ajudá-la a arrastar os grilhões do cativeiro.
– Irra!.. levas bem longe a tua audácia!! Nunca pensei que fosses tão afoito.
– Demais, não será necessário chegar a tais extremos; posso conseguir tudo por
meios mais naturais ou menos violentos. Está por um ano a minha formatura, e um ano
escoa-se bem depressa. Vou estudar com afinco, e depois de formado trabalharei como
um mouro, e privar-me-ei mesmo do necessário até adquirir uma soma considerável,
com que possa comprar a liberdade da menina.
– Isso é mais razoável; mas assim mesmo, a quantas vicissitudes não vai ficar
exposto o teu pobre amor! . . . A rapariga é escrava, e como tal pode ser vendida, ou o
que é pior, pode ser obrigada a casar-se com outro, se não lhe acontecer coisa pior.
– Ah! não me digas tal; isso é impossível, ela antes se deixaria matar. Demais,
ela me disse que seus senhores não a vendiam por dinheiro nenhum.
– Desesperas-me com as tuas objeções; não sei resolvê-las por agora; mas o
amor, como diz Salomão, é forte e poderoso como a morte: ele saberá a seu tempo
quebrar todos os obstáculos.
– Pelo que vejo, tua loucura é incurável, meu pobre Carlos; esse teu infausto
amor grudou-se ao teu coração como ostra ao rochedo. Entretanto, sempre te direi que o
melhor partido, que tens a tomar, para que ela não se torne crônica, é procurar combater
por todos os meios essa paixão romanesca e desassisada. Tua situação é com efeito das
mais estranhas e originais, e dá assunto para um bonito romance; mas o romance é bom
nos livros; na vida real é sempre uma atrapalhação, que devemos arredar. É preciso,
pois, dar pronto desenlace a tua complicada situação, e o mais pronto e mais decisivo é
cortar o nó górdio com a espada de Alexandre; é renunciar à tua paixão.
– Impossível, porque não queres, porque não fazes o mínimo esforço para
suplantá-la. A primeira coisa, que deverias fazer, era mudar de casa, fugir da vizinhança
dessa mulher, que te fascina. Dado esse passo, é preciso procurar distrações no estudo,
na leitura de romances, nos passeios, nos pagodes mesmo.
– Não há distração possível para paixões desta ordem, meu Frederico; não tento
nada disso, porque estou intimamente convencido que tudo isso será ineficaz.
– Ah! bem! já que assim te entregas sem resistência ao teu insensato amor, não
vejo salvação para ti; empreendes contra o destino uma luta, em que seguramente tens
de sucumbir. Se não puderes conseguir, como é certo, nem a mão, nem a liberdade da
menina, o que será de ti, maluco, com essa tua desastrada paixão?
– Bem sei que vou arcar cem mil dificuldades, vou arrostar os preconceitos do
mundo, e que além disso estou exposto a eventualidades, que podem de um momento
para outro derrocar todos os meus planos, e destruir toda a minha felicidade. Sei tudo
isso; mas não posso, não posso esquivar-me à fascinação, que exerce sobre mim aquela
adorável menina. Não penses que isto em mim é exaltação romanesca, delírio de
imaginação; não, não. Bem sabes que sempre fui avesso aos namoros e amoricos, a que
nossos colegas pela maior parte são tão avezados. Este meu amor é um amor puro,
verdadeiro,sincero, profundo, inextinguível; é o primeiro e creio que há de ser o único
da minha vida.
– Ora, pelo amor de Deus, deixa-te dessas exaltações!! Uma escrava sempre é
uma escrava; mais cedo ou mais tarde te verás forçado a matar essa paixão que te
amofina.
– Mais depressa ela me matará...
A confidência dos dois amigos foi nesse ponto interrompida pelo tropel de uma
troça de estudantes, que nesse momento invadiam ruidosamente a casa de Frederico.
CAPÍTULO XX
PROJETOS VÃOS
De feito, desde que se via a formosa escrava do Sr. Basílio, era preciso um
supremo esforço de imaginação para acreditar que era realmente uma escrava. Sua tez
branca e delicada, os magníficos cabelos escuros, que lhe emolduravam o rosto e lhe
ondeavam pelo bem torneado colo, as feições corretas e harmoniosamente delineadas,
os ademanes naturalmente graciosos e elegantes, acrescendo a tudo isso o encanto da
inocência e candura infantil, não denunciavam por certo a filha da senzala. Ao vê-la
qualquer juraria que era uma donzela distinta, criada com todo o mimo e solicitude entre
os carinhos de uma família honesta, e bafejada desde o berço pelo sopro da liberdade.
O seu tráfego de escravos também se fazia algum tanto à sorrelfa e com certo
mistério; mas os habitantes de S. Paulo já o conheciam, e quando algum, por
necessidade de dinheiro ou por qualquer outro motivo, desejava desfazer-se de algum
escravo, já sabia a que porta iria bater. Quando tinha reunido uma coleção suficiente, ele
os comboiava para fora da capital, quase sempre em direção aos ricos municípios do
norte da província e para a mata do Rio de Janeiro, onde os negociava vantajosamente
com os opulentos fazendeiros cafezistas daquelas paragens. Estas suas saídas eram,
como todos os atos de sua vida, feitas com segredo e mistério nas horas mortas da noite.
De um dia para outro, o velho com toda a sua família, a qual consistia em sua mulher e
seu comboio de escravos, desaparecia de casa, sem que ninguém soubesse para onde se
havia dirigido.
CAPÍTULO XXI
VENDIDA!
– Chê! que esperança! há que tempo ele já saiu pra fora vender seus escravos.
– Que está dizendo, senhora!... Oh!... minha... senhora!... não saberá me dizer
se levou também uma menina... ainda muito nova...
– Eu sei lá disso, meu moço?.. Ele quando sai é às chuchas caladas e fora de
horas... Decerto essa também havia de ir.
Nada mais era preciso para esmagar completamente o coração do pobre rapaz.
Recolheu-se à casa e trancou-se em seu quarto.
Foi assim que Frederico o veio encontrar, encerrado em seu quarto em tal
estado de prostração e desalento, que causava dó e inquietação não só pela sua saúde
como pela sua razão. Não reproduziremos as violentas explosões de furor, as amargas
lamentações e terríveis imprecações, em que prorrompeu ainda o mísero mancebo em
presença do amigo. Este as escutou todas com a maior paciência sem interrompê-lo,
nem contrariá-lo, e profundamente abalado pelo deplorável estado em que via o amigo,
conservou-se mudo por largo tempo sem achar uma frase de conforto e animação para
tão acerbo sofrimento.
– Que se há de fazer em casos tais, meu amigo? disse ele por fim. – Lastimo-te
deveras do fundo do coração, e – lastimo ainda mais essa infeliz e formosa criatura, que
o destino fez nascer escrava, devendo ter nascido em berço de púrpura e ouro. Mas não
serei eu mais quem te vá ainda embalar o espírito com vãs e ilusórias esperanças; não; é
escusado lutar contra a fatalidade. O único refúgio que te resta é a resignação; é pedir ao
tempo e às distrações o lenitivo para o rude golpe que te feriu o coração. Basta de te
entregares a esse aflitivo desalento, a essa desolação, que cada vez mais te agrava os
pesares. Vamos, meu amigo, cobra coragem, e mostra-te homem! Veste-te, e vamos
passear; irás morar comigo de hoje em diante; é necessário que abandones para sempre
essa casa, que tão amargas recordações te traz ao espírito.
– Entrego-me em tuas mãos, meu Frederico; se bem que nada espere nem do
tempo, nem das distrações, nem mesmo da tua amizade, para mitigar a angústia, que me
devora, vou, vou para onde quiseres levar-me; abdico em tuas mãos a minha vontade,
como um autômato, cujos movimentos dirigirás a teu bel-prazer, porque de fato tudo me
é indiferente; nada me interessa, nada mais desejo neste mundo.
– Isso é por agora, meu Carlos. Com o tempo, há de passar esse teu triste
desalento. Vamos; quero afastar-te dos lábios o teu cálix de amargura; quero arrancar-te
deste Getsêmani, em que pareces querer exalar a existência. Lembra-te que estamos em
fim de outubro, e é preciso nos prepararmos para o ato.
– Pois bem: vou de acordo com isso, Carlos; a agitação, que atualmente te
perturba o espírito, não te permite estudar. Deixarás o teu ato para março ou abril; será
melhor assim. Entretanto, por agora, me pertences; já o declaraste. Vamos com isto;
avia-te, e quanto antes vamo-nos embora daqui.
CAPÍTULO XXII
EM CASA DO CORRESPONDENTE
– Oh! mui bem aparecido, meu caro Carlos! – disse alegremente Conrado. – Há
que tempos o não vejo!...
Estava mal comigo? Mas estou o achando tão pálido e desfigurado!... Tem
estado doente?
– Algum tanto, Sr. Conrado; tenho sofrido bastante nestes últimos tempos.
– Ah! e como não mandou me dizer nada?... Sabe quanto sou amigo de seu pai,
e muito pesar me ficaria se o filho do meu amigo sofresse alguma coisa nesta cidade
sem eu lhe ter valido em coisa alguma. Tenho estranhado a sua falta, e se não fossem
certas ocorrências, que há dias a esta parte muito me têm preocupado, já teria ido
procurá-lo em sua casa.
– Muito obrigado. Sr. Conrado; mas não se inquiete; meus incômodos não são
talvez de conseqüência, mas são do número daqueles que nem a ciência, nem os
cuidados do homem podem minorar, somente o tempo...
– De modo nenhum; não só não estou preparado, como mesmo não quero, e
nem posso fazer ato este ano.
– Não, senhor; não cheguei a perdê-lo, mas dei grande número de faltas, e
nestes dois últimos meses quase nada pude estudar. Pretendo ir passar as férias em casa,
e por isso venho hoje importuná-lo para dar-me além da mesada, mais algum dinheiro
para arranjar condução.
– Ah! muito bem; hei de sentir muito a sua ausência; mas não posso deixar de
aprovar a sua resolução em vista do estado de sua saúde. Faz bem; vá tomar ares em sua
bela província, e volte-nos robusto, sadio, e alegre como dantes.
– Oh! por que não? Há de voltar sem dúvida. Quererá dar a seu pai o desgosto
de ver interrompida sua carreira quase no seu têrmo?... Há de voltar, sim, meu amigo.
Entretanto, não quero que se vá embora, sem que fique sabendo de uma novidade, que
há aqui em nossa casa... Não é capaz de adivinhar qual é.
– Pois participo-lhe que sou pai; não há muitos dias, nasceu-me uma filha, que
desejo lhe apresentar.
– Uma filha! – exclamou Carlos, com surpresa. Ora essa! O senhor está
gracejando, não é casado, e demais...
– Ora, que tem isso? – atalhou Conrado. – Não quer acreditar? Pois vou
apresentar-lha neste momento. Com licença.
– Será gracejo? – pensava ele. – Mas que alcance, que explicação, que espírito
pode ter semelhante gracejo em tal ocasião, principalmente de um homem dotado de
tanto senso e de tanta discrição como é o meu correspondente?!... O Sr. Conrado, além
de não ser casado, não me consta que tenha amásia alguma nem em casa, nem fora dela,
e passa por celibatário exemplar. É mesmo para admirar que este homem, moço ainda,
rico e elegante, não tenha tido namoro, nem intrigas amorosas de espécie alguma!... É
coisa quase impossível... não há dúvida... A única hipótese razoável, que se apresenta ao
espírito, é mesmo a de alguma filha natural, fruto de algum amor misterioso, que ele até
aqui tem sabido esconder com cuidado aos olhos do mundo. Como me tem amizade e
deposita em mim alguma confiança, vai agora fazer-me depositário do seu segredo.
– Agora mesmo vai lhe ser apresentada a minha filha, Sr. Carlos, – disse
Conrado, tornando a aparecer no salão.
Carlos, em pé, e com os olhos fitos na porta, por onde Conrado havia entrado,
esperava a cada momento uma ama ou uma escrava, trazendo nos braços, bem
enfaixada, a criancinha, filha de seu correspondente. De feito, passados alguns instantes,
ouviu passadas e o leve rugir de um vestido pelo pavimento.
Mas quem assomou no limiar da porta?... A mais formosa donzela que se pode
imaginar, de gentil esbelto porte, tendo no rosto não mui alvo todas as graças do pudor
virginal e da ingenuidade infantil.
– Minha filha – disse ele – aqui está o meu amigo, o Sr. Carlos, estudante do
quarto ano, a quem queria apresentar-te.
– Que quer dizer isto? – exclamou Conrado, com surpresa. – Pelo que estou
vendo, já se conheciam?...
– Pois bem, venha cedo, e prometo-lhe que amanhã mesmo ficará ciente da
história de Rosaura, e se dissiparão todas as suas dúvidas e incredulidades.
Conversaram ainda por algum tempo, mas nem Carlos nem Rosaura, no
assombro e enlevo em que se achavam, sabiam bem o que diziam. Também de sua parte
Conrado se achava bastantemente apreensivo; o fato de já serem os dois jovens
conhecidos um do outro fizera-lhe impressão no ânimo, e não lhe tinha escapado o
enleio e perturbação com que se encaravam. Por mais que se esforçasse por dissimular
sua preocupação, não podia deixar de mostrar-se pensativo e distraído. Em vista daquele
estado de embaraço e constrangimento, em que todos se achavam, Carlos compreendeu
que não convinha prolongar por mais tempo sua visita, e sem se lembrar mais de
mesada, nem de dinheiro para a viagem, levantou-se, tomou o chapéu, e já ia despedir-
se.
CAPÍTULO XXIII
Havia apenas quinze dias que Rosaura se achava em casa de seu pai, e não
diremos que se havia operado nela uma completa transformação, porque Rosaura era
elegante, discreta e graciosa por natureza; mas tinha feito tais progressos no
desenvolvimento desses seus dotes naturais, que parecia ter sido nascida e educada no
meio da mais polida sociedade. É verdade que ela, durante sua escravidão, fora sempre
tratada com mais algum mimo e delicadeza do que os outros escravos, mesmo por Nhá
Tuca, sua primeira senhora; mas mesmo assim era para admirar como em sua brusca
passagem, da humilde condição de escrava e de sua vida simples e retraída, para os
salões da opulência, se familiarizasse tão depressa com a sua nova posição. Também a
sua estada por espaço de um mês em casa de Adelaide, onde era tratada como parte da
família, contribuiu para habituá-la ao trato de uma sociedade mais distinta, e serviu
como de transição ou tirocínio, para que não entrasse por demais bisonha na opulenta e
luxuosa casa de Conrado.
Conrado, pois, que tinha especial simpatia e estima pelo seu correspondido, não
podia deixar de apresentar-lhe sua filha e dar-lhe conta também do modo singular, por
que o destino o levara a deparar com tão precioso achado. A surpresa que lhe causou o
conhecimento recíproco dos dois jovens o tornou pensativo.
O amor que já mutuamente se consagravam era fator que, quanto mais refletia,
mais claramente se lhe apresentava ao espírito.
A enfermidade e abatimento físico e moral de Carlos e a declaração, que lhe
havia feito, de que seus incômodos não eram daqueles que se curam pelos recursos da
medicina, nem pelos cuidados dos homens, bem denunciavam que havia ali uma causa
moral profunda e persistente, e essa causa não podia ser outra senão o amor de Rosaura.
Como, porém, seu espírito se perdesse em um caos de conjeturas mais ou menos
razoáveis, sobre os quais lhe era mister refletir com mais sossego, deliberou aprazar
para o dia seguinte o que tinha de comunicar ao mancebo.
Tudo conspirava para convencê-lo de que entre os dois jovens existia paixão
recíproca, amor puro e sincero; os ventos todos sopravam na direção de suas conjeturas,
e talvez mesmo de seus desejos.
Desde que tinha em casa sua filha, Conrado havia notado que, a despeito da
imensa alegria que ela sentia por ter, por assim dizer, nascido de novo em um mundo
estranho, por ter sido arrancada, pela mão benéfica da Providência, do inferno da
escravidão para um céu de venturas, onde, ao lado da liberdade, vinha encontrar pai e
mãe, uma leve nuvem de tristeza pairava de quando em quando sobre aquela fronte tão
pura, tão radiante de candura e de inocência. Por vezes a surpreendera em tal estado de
melancolia, que não podia deixar de interrogá-la; ela porém respondia que seu desgosto
provinha unicamente de ter mãe tão boa e tão perto de si, e não poder viver com ela,
abraçá-la e beijá-la, todos os dias, e nem mesmo poder dar-lhe em público o doce nome
de mãe. Esse motivo tão justo, e aliás verdadeiro, mas que não era o único nem o mais
poderoso de seus melancólicos devaneios, não deixava de satisfazer algum tanto a
ansiosa e solícita curiosidade de Conrado. Depois, porém, que se deu o encontro entre
ela e o seu jovem correspondido, as idéias de Conrado tomaram outra direção. Não
conhecia bem ainda a índole e o temperamento de Rosaura, mas mesmo assim
compreendia perfeitamente que aquela melancolia não era muito compatível com a sua
idade, nem podia constituir seu estado normal, e devia ser resultado de algum
sentimento contrariado; que alguma coisa, fosse o que fosse, faltava para a completa
felicidade de sua filha.
Depois, porém, que em sua presença Carlos e Rosaura se encontraram em face
um do outro, a luz foi-se fazendo diante de seus olhos.
O vivo rubor, que lhe assomara às faces, logo que deu com os olhos no
mancebo, nunca mais se apagou, apenas desmaiou um pouco, depois que ele se retirou,
e assim se conservou até o dia seguinte. Eram as rosas do amor, que refloriam de novo
no bafejo da esperança naquele cândido e encantador semblante. Os sorrisos lhe
adejavam espontâneos pelos lábios, e nos olhos lhe cintilava um fulgor sereno e
bonançoso como o de uma manhã de abril. Nesse dia, Conrado não viu mais no rosto de
sua filha nem a mais leve sombra de tristeza.
– Qual bom moço! É muito estúrdio como todos os seus companheiros... Basta
ser estudante.
– Oh! meu pai não diga isso! – exclamou com toda a vivacidade e com toda a
ingenuidade a menina. – É porque meu pai não o conhece. Esse não é como os outros; é
muito bem criado, e tem tão bons modos...
– São aparências, minha filha; não acredites muito nesses sujeitinhos. Não é de
hoje que os conheço. Esse Carlos mesmo, se não é um maluco ou um devasso como os
outros, talvez não passe de um refinado hipócrita.
– Ah! meu pai! Será possível! – murmurou Rosaura, com voz sentida, e tornou-
se triste e amuada...
Conrado não precisava saber mais para ficar inteirado da natureza dos
sentimentos de sua filha para com o seu correspondido. Só lhe faltava agora sondar o
coração de Carlos, para o que esperou com impaciência o dia seguinte.
Carlos não sabia como passar aquele longo dia de novembro, que tão
ardentemente desejava ver caído nos abismos do passado, não para amaldiçoá-lo, mas
para glorificá-lo como a data mais feliz de sua vida, se acaso o dia seguinte viesse
confirmar as risonhas esperanças da véspera. Em casa achou somente o cozinheiro de
Frederico; que preparava o jantar. Na situação em que se achava o espírito de Carlos, o
que mais lhe convinha era mesmo ou a solidão, ou um amigo íntimo com quem
desabafasse suas emoções; como Frederico não aparecia, ficava-lhe por companheira a
solidão. O cozinheiro serviu-lhe o jantar, Carlos sentou-se à mesa, mas apenas ingeriu
automaticamente alguns bocados e logo levantou-se. Consultava de contínuo o relógio,
mas os minutos volviam-se com tal lentidão, que pareciam horas. Ficar ali sozinho
dentro de casa não lhe pareceu o melhor modo de acelerar a carreira do tempo.
– Vamos passear – pensou ele – dar um passeio bem largo e bem fatigante,
andar, andar, pouco importa por onde, até anoitecer. O longo exercício trará a fadiga, e a
fadiga o sono, e nada há melhor para dar velocidade às asas, do tempo que o sono; a
dormir, um século volve-se em um minuto.
– É hoje! é hoje o dia! – murmurou consigo. Dia feliz ou nefasto? Não sei, mas
em poucas horas estarei ciente do destino, que me espera.
Carlos vestiu-se e preparou-se com vagar e esmero, coisa que há muito tempo
não era seu costume, almoçou mal e apressadamente, enquanto Frederico dormia, tomou
o chapéu e saiu. Todavia, muito a seu pesar eram apenas dez horas. Como era domingo
vendo uma igreja aberta entrou para ouvir missa e ganhar tempo. Depois de ter dado
ainda muitas voltas, ouviu em transportes de alegria soar meio-dia na torre da Sé. Quão
harmoniosas lhe soaram aos ouvidos aquelas doze badaladas!... Era chegado enfim o
momento, que há vinte e quatro horas esperava com tão impaciente ansiedade. Conrado
tinha-lhe dito que, do meio-dia em diante, estaria em casa à sua espera.
CAPÍTULO XXIV
BEATITUDE
– Queira subir.
Estava divina; em toda a sua figura respirava um não sei quê de celeste e
arrebatador; banhava-lhe os lábios um ligeiro sorriso, que lhe comunicava a toda a
fisionomia uma expressão de felicidade tão calma e suave, que a teríeis por um anjo no
gozo completo de todas as venturas do empíreo. Tinha chegado a pouco da rua, e ainda
não tinha deixado o vestido de nobreza preta, com que fora, com seu pai, ouvir na Sé a
missa conventual. Essa cor do vestido dava o mais esplêndido realce ao seu busto
gracioso, e comunicava-lhe à tez uns matizes de jaspe ligeiramente rosado, do mais
encantador efeito.
Daí a instante, entrou um moleque trazendo sobre uma rica bandeja de charão
copos, garrafas de cerveja e outros refrescos. Tomaram um copo de excelente Bass, e
enquanto aspiravam a fumaça de um delicioso havana, Conrado pôs-se a contar ab ovo,
com toda a minudência e franqueza, a história de seus amores, as contrariedades que
encontrou, a fraqueza em que caiu, da qual resultou o nascimento de uma filha, cuja
existência até bem poucos dias ele próprio ignorava. Contou também toda a história de
Rosaura, como fora batizada como escrava pela mulher avara e perversa, em cuja casa
fora exposta, e como tal fora vendida na idade de dez anos a esse Sr. Basílio, em cuja
casa Carlos a tinha conhecido; como enfim, por um concurso de circunstâncias, que
pareciam encaminhadas pela mão da Providência, tinha-se chegado ao conhecimento da
verdadeira origem da menina, reconhecendo-se pública e autenticamente o seu
nascimento livre. Nessa narração, porém, alterando certos nomes e mudando para
Curitiba o cenário de suas aventuras amorosas, procurava como sempre arredar de sobre
a verdadeira mãe de Rosaura a mais leve sombra de suspeita.
– Não duvido que assim seja, meu amigo; mas eu infelizmente não sou dotado
desse sexto sentido, pois não tive nem o mais leve pressentimento de que tinha uma
filha, e essa condenada ao cativeiro. Deixemo-nos, porém, de pressentimentos por
agora, que já não nos são necessários. Tratemos dos sentimentos. O senhor, que não é
de hoje que conhece Rosaura, não acha que ela tem bastante formosura e merecimento?
– Estimo muito que faça dela tão elevado conceito. Também eu estou me
convencendo que Deus me deu em minha filha uma jóia, um tesouro de inestimável
valor, e é por isso mesmo que ando assustado com medo que mo roubem.
– Ora por quê?!... Linda, amável, rica, não faltarão ladrões que ma roubem, e
eu ficarei órfão da filha, que há poucos dias os céus me concederam.
– Tem razão – disse tristemente Carlos. – Mais tarde ou mais cedo tem de casá-
la com alguém.
– É verdade; mas permita-me que lhe faça uma pequena pergunta. O senhor,
que teve a fortuna de conhecer Rosaura primeiro que eu, que sou pai dela, e que talvez
teve com ela entretenimentos particulares diga-me francamente, meu amigo, até que
ponto chegaram as suas relações?
Carlos ficou por algum tempo perplexo e desapontado com essas perguntas de
Conrado. Foi só então que compreendeu a que alvo atiravam as palavras um pouco
vagas e ambíguas do pai de Rosaura. Logo viu que ele já suspeitava, se é que não estava
certo da natureza de seus sentimentos para com a gentil menina.
Também lhe disse que o desespero e dor, que sofreu com este último golpe,
tinha afetado profundamente a sua saúde, fazendo-o definhar rapidamente, e talvez o
tivesse levado ao túmulo, se a mais feliz eventualidade não lhe tivesse feito deparar
livre e feliz, e na mais brilhante posição social, aquela que ele supunha ainda na triste
condição de escrava, exilada de sua terra, arrancada a suas afeições, palmilhando a pé
essas escabrosas estradas para ser vendida...
Aqui a voz de Carlos embargou-se pela emoção... não pôde mais continuar.
Carlos falava com tal animação, e com tal tom de franqueza e sinceridade, que
Conrado não pôde deixar de dar pleno crédito a suas palavras.
– Enfim, meu amigo – concluiu ele – conheci sua filha, supondo-a livre, porém
pobre; amei-a com todas as forças de minha alma. Vim depois ao conhecimento de que
era escrava, e nem assim deixei de adorá-la com o mesmo afeto puro e respeitoso, que
sempre lhe havia consagrado. Por duas vezes me achei junto dela, e a mais audaciosa
homenagem, que meu amor ousou render-lhe, foi beijar-lhe a mão uma ou outra vez.
Hoje, que a vejo livre, rica, feliz e restituída a um tão bom pai, o meu amor é o mesmo,
minha esperança, porém, é muito fraca; bem vejo que a não mereço, e serei o último
entre tantos, e tão brilhantes competidores, que sem dúvida se apresentarão aspirando à
sua mão.
Carlos pronunciou estas últimas palavras com tal tom de tristeza e desalento,
que Conrado, comovido, se deu pressa em manifestar-lhe suas verdadeiras intenções.
– Tranqüilize-se, meu caro Carlos, – disse-lhe, com benévolo sorriso – não tem
por ora nem rival, nem concorrente algum, e mesmo que os tivesse, o preferido seria
sempre o senhor, não só por minha parte como também por ela. Melhor do que ninguém
o senhor deve saber se ela corresponde ou não ao seu amor. Desde ontem que os estou
observando e estudando a ambos, e agora, em vista das revelações táo explícitas e
sinceras, que acaba de fazer-me, era preciso que eu fosse bem destituído de penetração
para não compreender que se amam mutuamente.
– O senhor me faz o mais ditoso dos homens; murmurou enfim – não sei como
testemunhar-lhe o meu reconhecimento...
Carlos nada respondeu; tomou uma das mãos de Conrado, levou-a ao coração,
e o abraçou. A emoção embargava-Ihe a voz, e o peito lhe arfava, afogado em ondas de
felicidade. A excessiva ventura, como a extrema desgraça, quando assim vem
inesperada, desorienta e embota o espírito. Conrado compreendeu o acanhamento, em
que aquela extraordinária comoção colocava o mancebo, e julgou conveniente deixá-lo
a sós inebriar-se nos eflúvios de prazer e ventura, que lhe banhavam o coração.
Notou também que havia na sala um magnífico piano de Erard, e sobre ele
aberto o método de Hünten.
Retirou-se ao pôr do sol, e voou para a casa nas asas do amor, da alegria e da
esperança.
Entrando em casa, fez tais tolices, brincou, cantou e saltou por tal arte, que
Frederico ficou apreensivo, julgando que suas mágoas o tinham enlouquecido. Mal
pensava ele que essas mágoas da noite para o dia se tinham transformado em júbilos
inefáveis.
Depois, porém, que o seu amigo o pôs ao fato de todo o ocorrido, o coração do
bom Frederico também transbordou de alegria, e apesar do seu sério ficou quase tão
louco como o próprio Carlos.
CAPÍTULO XXV
OS ÓBITOS
Voltemos à casa do Major Damásio, pois há muito não temos notícia do que
por lá se passa, não sabemos o que é feito da infeliz e interessante Adelaide, de seu pai,
de seu marido, e nem de sua linda e crescente prole.
É-nos forçoso dar agora, ainda que com bastante pesar, uma dupla notícia
fúnebre; mas como dizem que há males que vêm para bem, devemos suportá-la com
resignação, respeitando sempre os altos desígnios da Providência.
Oito dias pouco mais ou menos depois da cena tão venturosa, tão cheia de
emoções deliciosas, a que acabamos de assistir em casa de Conrado, a família do Major
Damásio cobria-se de luto. Morais, depois da terrível conferência, que se passara entre
ele, sua esposa, seu sogro, Frei João e Conrado, caíra gravemente enfermo. Os médicos
chamados à sua cabeceira declararam que era um caso de febre perniciosa, que então
grassava pela cidade, e pouca esperança mostraram de poder salvá-lo, e tinham razão.
Os sofrimentos do espírito, se não produzem, ao menos aumentam a
intensidade da moléstia existente, e a tornam incurável, quando as causas morais são
desconhecidas ou quando mesmo sendo conhecidas pelo próprio paciente, não podem
ser reveladas, como as de Morais, e, portanto, não podem ser combatidas.
Triste situação, em que nem ao menos lhe era permitido o alívio do desabafo!
Desesperador infortúnio, cujas causas não podia revelar sem desonra para a mulher, que
tanto amara, ou sem se confessar réu de uma grande infâmia.
Quanto ao major, sua saúde e sua razão já muito enfraquecidas pelos anos e
pelas moléstias não puderam resistir ao doloroso golpe do dia fatal da conferência.
Paralítico e inteiramente desmemoriado jazia no fundo de uma cama, e nem teve
conhecimento da morte de seu genro, a quem poucos dias sobreviveu. Adelaide e
Lucinda foram, durante os longos dias de tão sinistra e dolorosa crise, os dois anjos
tutelares, que em tudo cuidavam e a tudo providenciavam.
Conrado seria levado a dar esse passo somente por seus pensamentos generosos
e tão consentâneos ao seu caráter, ou também embalado pela esperança de fazer
ressuscitar o seu passado? Sua filha, cuja existência ignorava, tinha ressuscitado. Teria
ele esperanças de fazer também ressuscitar como esposa á mãe de sua filha?
Eis o que em breve havemos de saber.
Adelaide recebeu a visita de Conrado com tão cordial e sincera gratidão, que
ele não hesitou em continuá-las, encarregando-se com a melhor vontade de todos os
negócios de casa.
Adelaide, graças ao vigor de sua organização, tendo já trinta anos, podia bem
mentir, que não tinha ainda vinte e cinco. Depois que a esperança de um novo amor
antigo lhe tinha entrado no coração, havia voltado aos anos de sua juventude, e seu ar
melancólico era temperado por um desses risos meigos e suaves, como um raio de sol
escoando-se por entre as nuvens tênues e vaporosas de uma tarde tépida e serena.
Era um homem na idade viril, mas que parecia ter dez anos de menos.
EPÍLOGO
OS CASAMENTOS
– Deixa dessa cisma; ele bem sabe que sinhazinha, se casou, não foi muito por
sua vontade, e foi porque correu como certo que nhô Conrado tinha morrido.
– É que nhô Conrado não lhe olha com maus olhos. Paixão antiga é como
gameleira; por mais que se corte sempre fica uma raizinha, que brota de novo.
– É o que te parece, Lucinda. O interesse que mostra por mim pode não ser
mais que delicadeza de um coração generoso e compassivo. Vê-me viúva, já me quis
bem, tem dó de mim, e nada mais.
– Deixa-te disso...
– Falemos, sim, pois que inconveniente há em falar nisso, se não falamos para
fazer mal a ninguém? Pobre Adelaide! deve estar lutando com bastantes dificuldades!
Como há de governar uma casa cheia de tantos e tão complicados negócios, ela que
nenhuma prática tem dessas coisas?... Rica, sem marido, sem pai, moça e formosa ainda
como sempre foi, ou mais ainda, sem mãe, sem irmãos, rodeada de quatro filhinhos em
tenra idade!... Que triste isolamento!...
– É verdade, nhô Conrado; é ela sozinha comigo, pobre negra velha e cansada,
as crianças e Deus!...
– Pois eu, da minha parte, Lucinda, teria o maior prazer do mundo em adotar
como meus filhos os irmãozinhos de Rosaura.
– Pois é o que te digo – prosseguiu o moço. Entendo que fica muito mal o luto
em uma senhora tão moça e tão formosa. Consentiria ela que eu fosse despojá-la de tão
lúgubre vestidura?
Dois meses depois desta conversação, uma linda caleça, puxada por duas
parelhas de possantes e vistosos cavalos brancos, conduzia para a igreja catedral dois
formosos pares de noivos, que, sentados de fronte um do outro, iam receber à face do
altar.
Quem os visse não era capaz de adivinhar que eram pai e sogra, filha e genro,
que assim por modo tão singular se achavam de vis-à-vis. Um dos pares estava ainda
em todo o viço da mocidade, o outro, posto que algum tanto mais idoso, nem por isso
era inferior ao outro em beleza e elegância; por isso mais facilmente se acreditaria
serem irmãos e cunhados.
Conrado, que nenhum desejo nem motivo tinha para adiar seu casamento com
Adelaide, achou que era não só de bom tom, como de bom agouro, celebrar também no
mesmo dia, hora e lugar o consórcio de sua filha com o seu querido Carlos e por isso
concedeu-lhe perdão da pena de um ano de purgatório, a que o tinha condenado. fim