Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé – história e ritual da
nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da UNICAMP, 2006, 390 pp.
No início da década de 1990, o en- interessavam mutuamente e caminha-
tão jovem estudante catalão Luis mos pelas zonas rurais de Cachoeira, Nicolau Parés fazia suas primeiras in- reconhecendo espaços sagrados “plan- cursões ao Recôncavo baiano, quero tados” por africanos. dizer, à cidade de Cachoeira. Na épo- Resultado deste esforço foi a publi- ca, era doutorando da School of Ori- cação do livro A formação do Can- ental and African Studies (SOAS), da domblé – história e ritual da nação Universidade de Londres, e fazia suas jeje na Bahia, que nos chega com um primeiras sondagens de campo no substancial atraso, visto que, pelo Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê, menos há uns três anos, se encontra- para compor sua tese de doutorado em va concluído. Todavia, neste interreg- Antropologia da Religião sobre o no, alguns capítulos foram revisados Tambor de Mina do Maranhão. Tive a e ampliados e outros, incluídos na satisfação de conhecê-lo, então, e, a versão original, que certamente ofe- partir daí, mantivemos alguns conta- receram mais densidade à obra. tos através de correspondências. Anos O mencionado livro, como o autor depois, em 1998, ele retornou ao Bra- enfatiza, dedica-se ao estudo aprofun- sil, fixando-se definitivamente em Sal- dado e pormenorizado de uma das vador. Por quase uma década, teste- “raízes” da cultura afro-brasileira a munhei Parés em constante contato partir da história e da antropologia da com o povo-de-santo, presenciando religião. Nela, o leitor deparar-se-á cerimônias privativas em terreiros de com a construção étnica da “nação Candomblé e debruçado em empoei- jeje” no Brasil Colônia (nomeada- rados documentos históricos em Ca- mente a partir do Setecentos, quando choeira. Compartilhando de sua ami- estes povos chegaram à Bahia com zade, trocamos importantes informa- maior intensidade); com a contribui- ções, assim como documentos que nos ção dos cultos de voduns no proces-
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so formativo e organizacional do mento, refere-se a Manuela Carneiro Candomblé e, finalmente, com a da Cunha, que afirma que “a cultura micro-história de dois terreiros de original de um grupo étnico, na nação jeje (mahi) e uma etnografia diáspora ou em situações de intenso seletiva do panteão e do ritual vodum contato, não se perde ou se funde sim- contemporâneo na Bahia. A relevân- plesmente, mas adquire uma nova fun- cia da obra reside exatamente nestes ção, essencial e que se acresce às ou- aspectos perseguidos pelo autor, vis- tras, enquanto se torna uma cultura de to que, salvo engano, até então ne- contraste” (p. 15). nhum estudo neste sentido foi reali- Os dois primeiros capítulos do traba- zado. Além disto, e este é outro as- lho são dedicados ao estudo exausti- pecto importante, o escopo da obra vo das nações ou etnias (etnias não se desdobra a partir da busca do sen- no sentido de “raça”, mas de povos tido lingüístico de dois termos: ou sociedades), dos portos e dos me- “vodum” e “jeje”. andros do tráfico escravo no contex- No capítulo introdutório, Nicolau diz to da África ocidental e da contribui- que um dos problemas do seu traba- ção jeje na formação das identidades lho é compreender “a gênese e a ma- étnicas africanas na Bahia. O autor nutenção das identidades étnicas dos considera as identidades coletivas das africanos no Brasil” (p. 15). Entre ou- sociedades da África ocidental como tras teorias que dão suporte à obra, as multidimensionais, articuladas em di- da etnicidade têm maior acento. Opon- versos níveis (religioso, territorial, do-se às de caráter primordial, preco- lingüístico, político, etc.), porém sem- nizadas por Max Weber e Clifford pre baseadas em vínculos de paren- Geertz, o autor privilegia a de caráter tesco, que reconheciam um passado relacional (situacional), proposta por ancestral e mítico comum. No con- Fredrik Barth, segundo a qual “o nós texto do tráfico, grupos africanos ini- se constrói em relação a eles”. O au- cialmente diferenciados, com suas pe- tor pensa em termos de que “a identi- culiaridades históricas, lingüísticas e dade étnica não seria, portanto, sim- de auto-adscrição, teriam sido con- plesmente um conglomerado de sinais venientemente classificados, por mis- diacríticos fixos (de origem, parentes- sionários e administradores de feito- co biológico, língua, religião, etc.), rias européias, sob denominações ge- mas um processo histórico, dinâmico, néricas (originalmente estranhas a es- em que estes sinais seriam seleciona- tes grupos), tais como “nação mina”, dos e (re)elaborados em relação de “nação nagô” ou “nação jeje”. contraste com o ‘outro’” (p. 15). Atre- Nicolau analisa este processo, distin- lando a teoria relacional ao seu argu- guindo entre denominações “internas”
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e “externas”. As primeiras seriam for- torno do controle do infame comér- mas de auto-adscrição, enquanto as cio realizado no litoral que, desde o segundas seriam categorias impostas século XVI até aproximadamente “de fora”, por membros alheios ao gru- 1860, embarcou milhares de africa- po, sejam africanos ou escravocratas nos prisioneiros de guerra para o tra- europeus, sendo que estas denomina- balho escravo no Brasil. ções externas se prestariam para de- No tocante à formação da identidade signar uma pluralidade de grupos ét- étnica jeje na Bahia, Nicolau analisa a nicos heterogêneos. Apoiando-se no presença destes africanos a partir do pesquisador cubano Jesús Guanche Setecentos até o Oitocentos. O foco Pérez, o autor chama “denominação de sua análise incide sobre as estima- metaétnica” a “denominação externa tivas populacionais. Além de censos utilizada para assinalar um conjunto eclesiásticos, geralmente realizados de grupos étnicos relativamente vizi- por párocos desinteressados, portanto nhos, com uma comunidade de traços inconfiáveis, o autor se debruçou no lingüísticos e culturais, com certa es- paciente e estafante trabalho de análi- tabilidade territorial e, no contexto do se de centenas de inventários, no Ar- escravismo, embarcados nos mesmos quivo Regional de Cachoeira e no Ar- portos” (p. 26). quivo Público do Estado da Bahia, A seguir, especifica os povos jejes a documentos em que as denominações partir de critérios lingüísticos e étnicas eram mais freqüentes. O que territoriais, apontando cerca de qua- se constata é que o grupo “metaétni- torze grupos principais. Nicolau uti- co”, proveniente da “área vodum”, se liza a expressão “área vodum” para concentrou significativamente no Re- definir o espaço territorial jeje em ter- côncavo baiano, constituindo o grupo mos religiosos e acrescenta que o ter- demograficamente majoritário até o ritório jeje abarcava um espaço mai- início do século XIX, e que, em con- or que o do reino do Daomé (situado tato com outros grupos, principalmen- ao sul da atual República Popular do te os nagôs, seus vizinhos, instituíram Benin), incluindo “povos que, embo- o complexo sistema religioso jeje, na ra sujeitos às incursões dos daomea- Bahia, denominado Candomblé. nos na procura de escravos, não per- O terceiro e o quarto capítulos dedi- tenciam estritamente aos seus limi- cam-se à análise da institucionaliza- tes políticos”, como os mahis e ção do Candomblé na Bahia. O ter- savalus (p. 38). Analisando o tráfico ceiro, especificamente, busca as português nesta área, aborda de for- “raízes” deste “processo formativo” ma exaustiva as constantes guerras nas práticas de cura e adivinhação, entre os reinos de Oyo e Daomé, em que, nos séculos XVII e XVIII, ti-
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nham a denominação de calundu. espaços privilegiados para expressar Nicolau se apropria do conceito “com- e manter a dinâmica de contraste que plexo fortuna-infortúnio” ou “ventu- sustenta as fronteiras étnicas. Deste ra-desventura”, proposto na década de modo, a diferenciação entre nações 1970 por pesquisadores da religião da étnicas foi reforçada e perpetuou-se no África centro-ocidental, para pensar as âmbito do Candomblé, definindo, pos- religiões afro-brasileiras. Nesta pers- teriormente, as “nações de candom- pectiva, “a atividade religiosa tem por blé” enquanto “modalidades de rito”. objetivo não só a prevenção do infor- Tendo localizado e definido os povos túnio, mas também a maximização da da África ocidental responsáveis pela boa sorte” (grifo nosso). institucionalização do Candomblé O autor considera que os calundus co- baiano, os capítulos seguintes se de- loniais, com suas práticas de cura e adi- dicam à análise etno-histórica de dois vinhação, geralmente de caráter indi- terreiros ou comunidades de candom- vidualizado, deram, aos poucos, lugar blé de nação jeje mahi – o Zôogodô a formas de organização religiosa cada Bogum Malê Hundô, de Salvador, e vez mais complexas e coletivas, en- o Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê, volvendo, entre outros aspectos, de Cachoeira – que ainda se encon- intrincados processos de iniciação, hi- tram em funcionamento. Apesar das erarquia sacerdotal, calendários de ri- dificuldades enfrentadas para definir tuais, espaços sagrados estáveis e o os meandros da formação destes dois culto de múltiplas divindades num candomblés, principalmente no que mesmo templo. O argumento central diz respeito à história de vida de seus de Nicolau, sustentado por variada do- fundadores, o autor recupera os as- cumentação histórica e etnográfica, é pectos mais importantes da sua fun- o de que este “modelo organizacional”, dação. Um dos problemas centrais diz de caráter eclesial ou conventual, que respeito à época de formação e con- está na base do Candomblé contem- solidação dos dois terreiros e a ante- porâneo, foi providenciado, no fim do rioridade de um em relação ao outro. século XVIII e início do XIX, pelos Outro problema diz respeito à histó- especialistas religiosos jejes que, nes- ria de vida da figura central na fun- ta área de conhecimento, tinham com- dação destes terreiros, que foi a afri- provada tradição. cana Ludovina Pessoa e, com relação Todavia, o autor sugere que o ritual, a Cachoeira, do seu colaborador, o seja nas reuniões festivas, realizadas também africano Tixareme. No en- no contexto das irmandades negras, tanto, a história de vida do arquifono seja no contexto das celebrações reli- (usando um neologismo de ogan giosas de matriz africana, era um dos Boboso, um dos seus importantes
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depoentes) José Maria de Belchior, tual, mas inclui uma análise lingüística conhecido como Zé de Brechó, uma dos termos utilizados no idioma ritual. figura-chave na formação do Seja Enfim, podemos dizer, sem estar exa- Hundê, é satisfatoriamente descrita gerando, que o livro A formação do pelo autor. Candomblé – história e ritual da na- No capítulo dedicado à análise ritual ção jeje na Bahia é um estudo seminal destes candomblés, Nicolau faz uma de antropologia do Candomblé, ou seja, belíssima descrição etnográfica, algo trata-se de um trabalho que, sem esgo- raro, mas fruto de paciente trabalho de tar o assunto, abre perspectiva para conquista de confiança e postura ética, múltiplas outras pesquisas sobre aque- porque, como se sabe, o “jeje é fecha- la que é uma região vigorosamente do”. O capítulo não se concentra uni- importante do ponto de vista afro-reli- camente em descrever o andamento ri- gioso: o Recôncavo baiano. Luiz Cláudio Dias do Nascimento Mestrando do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia/CEAO
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