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Carne vermelha: Que diferença fez Estesícoro?

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Anne Carson

“Gosto da sensação das palavras fazendo o que


querem e o que têm de fazer.”
Gertrude Stein

Ele chegou depois de Homero e antes de Gertrude Stein, um intervalo difícil para um poeta.
Nascido perto de 650 a.C., na costa norte da Sicília, em uma cidade chamada Himera, viveu entre
refugiados que falavam uma mistura do dórico com o dialeto de Cálcis. Uma população refugiada
tem fome de língua e consciência de que qualquer coisa pode acontecer. As palavras ricocheteiam.
As palavras, se você deixar, farão o que querem e o que têm de fazer. As palavras de Estesícoro
foram reunidas em vinte e seis livros dos quais nos restam uns doze títulos e várias coleções de
fragmentos. Não se sabe muito de sua vida profissional (além do famoso episódio em que foi
cegado por Helena). Parece que ele foi bastante bem-sucedido e popular. Como os críticos o
descrevem? Muitos elogios antigos acompanham seu nome. “O mais homérico dos poetas líricos”,
diz Longino. “Faz das velhas histórias algo novo”, diz Suídas. “Movido por um desejo de
mudança”, diz Dionísio de Halicarnasso. “Que belo gênio no uso de adjetivos”, acrescenta
Hermógenes. Aqui tocamos o cerne da questão “Que diferença fez Estesícoro?”. Pode ser útil aqui
fazer uma comparação. Quando Gertrude Stein precisou resumir Picasso, ela disse “Esse aí
trabalhava”. Então digamos de Estesícoro: “Esse aí fazia adjetivos”.
O que é um adjetivo? Substantivos nomeiam o mundo. Verbos ativam os substantivos.
Adjetivos vêm de outro lugar. A palavra adjetivo (epitheton, em grego) é, ela mesma, um adjetivo,
que significa “colocado em cima”, “adicionado”, “anexado”, “importado”, “estrangeiro”.
Adjetivos parecem acréscimos razoavelmente inocentes, mas olhe melhor. Esses pequenos
mecanismos inseridos têm o encargo de fixar todas as coisas do mundo a seus lugares particulares.
Eles são as travas do ser [the latches of being].
Existem, é claro, várias formas diferentes de ser. No mundo da épica homérica, por
exemplo, o ser é estável e as particularidades, fortemente calcadas na tradição. Quando Homero
menciona sangue, o sangue é negro. Quando aparecem mulheres, elas são aquelas dos belos
tornozelos ou de olhos brilhantes. Posêidon é sempre Posêidon de azuis cabelos. A risada dos
deuses é inexaurível. Os joelhos humanos são ágeis. O sol é incansável. A morte é escarpada. O
fígado dos covardes é branco. Os epítetos de Homero são expressões fixas com as quais ele amarra
cada substância do mundo a seu atributo mais adequado e os mantém no lugar para que sejam
epicamente consumidos. Há uma paixão nisso, mas que espécie de paixão? “O consumo não é uma
paixão por substâncias, mas uma paixão pelo código”, escreve Baudrillard.
Eis que na superfície imóvel desse código nasceu Estesícoro. E Estesícoro estudou sem
descanso essa superfície. Ela se esquivou dele. Ele chegou mais perto. Ela ficou quieta. “Paixão

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Capítulo #1 do romance em versos Autobiography of Red. CARSON, Anne. Autobiography of Red. New York:
Vintage, 1999. p. 3-7. Tradução Ligia G. Diniz.
por substâncias” parece ser uma boa descrição desse momento. Por motivos que ninguém sabe
apontar, Estesícoro começou a soltar as travas.
Estesícoro libertou o ser. Todas as substâncias do mundo começaram a flutuar. De repente
não havia mais nada que pudesse impedir cavalos de terem cascos ocos. Ou um rio de ter raízes
de prata. Ou uma criança de ser ilesa. Ou o inferno, tão profundo como o sol é alto. Ou Héracles,
resistente a provações. Ou um planeta, preso no meio da noite. Ou um insone, fora da alegria. Ou
matanças, de um negro cremoso. Algumas substâncias se mostraram mais complexas. A Helena
de Troia, por exemplo, estava amarrada uma tradição adjetival de devassidão já velha quando
Homero se serviu dela. Quando Estesícoro liberou Helena de seu epíteto, verteu-se tal luz que
acabou por cegá-lo por alguns instantes. Esta é uma grande questão, a questão sobre a cegueira
que Helena causou a Estesícoro, ainda que geralmente considerada irrespondível.
Um exemplo mais tratável é Gerião. Gerião é o nome de um personagem de um antigo
mito grego sobre quem Estesícoro escreveu um poema bastante longo em metro dáctilo-epítrito e
estrutura triádica. Sobreviveram 84 fragmentos de papiro e meia dúzia de citações, que receberam,
nas edições standard, o nome de Geryoneis (“a questão de Gerião”), ou Gerioneida. Eles contam
de um estranho monstro vermelho e alado que vivia em uma ilha chamada Erytheia (um adjetivo
que significa simplesmente “Lugar Vermelho”) sossegadamente cuidando de um rebanho de gado
vermelho mágico, até que um dia o herói Héracles atravessou o mar e o matou para levar o gado.
Há muitas diferentes maneiras de contar uma história como essa. Héracles foi um herói grego
importante, e a morte de Gerião foi um de Seus celebrados trabalhos. Se Estesícoro houvesse sido
um poeta mais convencional, poderia ter seguido o ponto de vista de Héracles e produzido um
relato emocionante da vitória da cultura sobre a monstruosidade. Mas, em vez disso, os fragmentos
existentes do poema de Estesícoro oferecem uma amostra irresistível de cenas, tanto altivas quanto
patéticas, da experiência do próprio Gerião. Vemos sua vida de menino vermelho e seu
cachorrinho. Uma cena em que sua mãe faz um apelo desesperado e vai embora. Tomadas
intercaladas em que se vê Héracles se aproximando, pelo mar. Uma rápida visão dos deuses no
céu apontando para a queda de Gerião. A batalha em si. O momento em que tudo, de repente,
começa a se passar mais lentamente, e a seta de Héracles divide em dois o crânio de Gerião. Vemos
Héracles matar o cachorrinho com Sua famosa clava.
Mas já basta de preâmbulo. Você pode responder por si mesma a pergunta “Que diferença
fez Estesícoro?” ao considerar sua obra-prima. Alguns de seus fragmentos principais vêm a seguir.
Se você achar o texto difícil, não está sozinha. O tempo não tratou Estesícoro muito bem. Não há
menção a passagens dele com mais de trinta linhas, e pedaços de papiros (que ainda estão sendo
encontrados: os mais recentes foram recuperados de cartonagem no Egito, em 1977) escondem
tanto quanto contam. O corpus completo de fragmentos de Estesícoro no original grego foi
publicado treze vezes até hoje, por diferentes editores, começando com Bergk, em 1882. Nenhuma
edição é exatamente igual a outra, nem em seu conteúdo nem na ordenação desse conteúdo. Bergk
diz que a história de um texto é como uma longa carícia. Não importa como seja, quando lemos os
fragmentos da Gerioneida, a impressão que temos é a de que Estesícoro compôs um poema
narrativo substancial e depois o rasgou em muitos pedacinhos, que então enfiou em uma caixa com
algumas letras de canção e anotações de palestras e lascas de carne. Os números dos fragmentos
dizem aproximadamente quantos pedaços caíram da caixa. Você pode, é claro, continuar agitando
a caixa. “Acredite em mim pela carne e por mim mesma”, como diz Gertrude Stein. Eis aqui.
Agite.
Ainda Anne Carson e adjetivos:

No livro The Albertine Workout, de 2014, Carson escreve, no “ appendix 15 (a) on adjectives”:
“Adjectives are the handles of Being”, substituindo latches e optando pelo B maiúsculo. Na
tradução de Vilma Arêas e Francisco A. Guimarães para o livro dedicado à personagem de Em
busca do tempo perdido, lemos:

CARSON, Anne. O método Albertine. Tradução de Vilma Arêas e Francisco A. Guimarães. São
Paulo: Jabuticaba, 2017.

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