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"eu" surge, desperto, mas "eu" se aflige ao se sentir em
um corpo imóvel, inerte, mineral. Então, "eu" busca
Se digo: "As crianças são como os pais as fizeram e os contatos, as alavancas. "Eu" busca o mais sensí-
as educaram ... ", eu me deparo com o consentimento vel, o mais leve, um dedinho, os lábios, as pálpebras
universal.
e, com todas as suas forças dirigidas a um desses pon-
Se prossigo: "Os pais são como a atual sociedade os tos, "eu" consegue uma onda, um estremecimento, um
força_ a_ ser. Seria preciso ver como mudar realmente as movimento leve e quase imperceptível, que é como um
c~~?1çoes de vida ... ", fecham-me a boca e o Centro que imenso alívio, pois ele basta para me impelir ao movi-
d~nJ~, sob o pretexto de que alguns de seus operários mento reencontrado e ao mundo vivo que me aguarda.
nao tem o aspecto, que coisa!, de verdadeiros educadores. Mas não limito a isso meu sucesso, pois não sou
meu próprio psiquiatra-psicólogo. Esse primeiro gesto
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balbuciado é a chave que me abre para todas as cir-
cunstâncias que me aguardam e não uma pequena cla-
Bom. Deit~do na grama das muralhas, debruço-me e raboia sobre mim mesmo. Minha vida aproveita disso
observo o madaptado.
para ser inundada de seres vivos e sempre aberta ao
imprevisto até a fadiga extrema.
PRIMEIRA OBSERVAÇÃO. Vivi durante quatro anos
em.um :si~o de alie_nados. Os alienados mais típicos, SEGUNDA OBSERVAÇÃO. Eu arrasto comigo, sem dúvida
mais cromcos, mais dementes não me surpreende desde o meu nascimento, uma espécie de angústia, de
ram: momentos de mim mesmo tornados homens um medo prévio, que se alia a uma magreza de homenzi-
"pon_to de vista" mantido por mais tempo do que ~erin nho de arame.
preciso; um desapego que sono nenhum pode romper Maio 1940. Aqui estou, como os demais, preso na
e o resto do mundo que parte à deriva sem que se faça guerra, um coelho perdido na sucata monumental e
um ?e.sto para saltar na roda que gira; a solução únicn nos apitos e na carne humana da qual escorre san-
e trag1ca que se impõe por falta de mobilidade. gue e suor através do assoalho do caminhão. Desde
Por vezes, sou eu mesmo esse alienado que é pers- que parei de crescer, é o único período da minha vida
crutado para ser liberado. Profundamente adormecido, em que ganhei peso (oito quilos ). Meu medo tinha
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OS VAGABUNDOS EFICAZH \ OS VAGABUNDOS EFIC AZ ES l 2.I
encontrado o alimento que lhe convinha. Ele já não a moral ensinada sem precaução é a catedral deserta
me consumia mais.
que elas temem e cujos vitrais quebram por ódio_ dessa
Desde então, essa angustiazinha vagabunda voltou. vida coletiva da qual são excluídas, pequenas cnanças
Ela pousa despreocupada no menor cansaço como uma decepcionadas antecipadamente por não serem gran-
mosca reluzente no lixo pressentido. Expulso-a com des homens.
um violento golpe de raciocínio, ela vai pousar ao lado.
Resta-me apenas esperar que um grande e forte acon- QUARTA OBSERVAÇÃO. Nas paredes dos dois cômodos
tecimento venha seduzi-la e tirá-la de perto por um onde vivo (o maior tem cinco janelas), estão pendura-
tempo. Mas eu a conheço ... É capaz de voltar grávida. dos desenhos. Todos malogrados. Os desenhos de que
gosto no momento, eu os dou ou então, o~namenta_-
TERCEIRA OBSERVAÇÃO. Quando tinha doze ou treze dos de cor, um diretor de galeria tenta vende-los aqui
anos, encontrei furtivamente uns livros e documentos e ali. Guardo nessas paredes que me são familiares
nos quais o sexo tinha o lugar de pedra angular. todos os malogrados que, sozinhos, são a esperança
Dizia-se neles que o sexo era o motor de tudo o que da descoberta.
vive, de tudo o que é. O grande segredo, a grande força . Esses traços deixados pela minha mão em uma
Então, me senti tão pequeno, tão magricelo, tão per- grande folha, não posso acreditar que, passados os
dido em uma espécie de catedral gótica cujos signos, breves momentos de encantamento, sejam suficientes.
os trejeitos, os mistérios eu não compreendia, rejei- Posso me deixar escorrer inteiro neles, ou somente
tado dessa comunhão que eu pressentia unânime ao me descrever neles como uma carroça se descreve, para
meu redor, e necessária pois geradora de toda a vida. quem tem bons olhos, pelos sulcos que ela deixa.
Excluído, morto-vivo, com esse sexo minúsculo e com
a certeza ineficaz que me fazia odiar antecipadamente X
as mulheres e seus desejos, os quais apenas os gigantes
poderiam enfrentar.
Criança tenaz, sem dúvida ainda terei que esperar muito
Estragos do conhecimento intelectual prévio e tempo pela minha puberdade social, essa aceitação pura
prematuro.
e simples das maneiras que têm os homens de nunca ser
Estragos que reencontro nas crianças para as quais eles mesmos e de mutilar raivosamente as crianças.
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12.2. OS VAGA BUNDOS EFICAZll~ OS VAGABUNDOS E FICAZES
Se na origem dos distúrbios de comportamento os nesse mundo que, por uma ilusão de óptica cotidiana-
médicos detectam taras hereditárias, a meu ver, de mente alimentada, veem pela janela?
modo geral, inscrevem-se diante disso as mesquinha• Conselhos, ameaças, restrições e promessas são de
rias e a desonestidade do adulto reinante. um tempo que já passou.
H á meses, na falta de uma "instituição", quando A criança de hoje "conhece" o mundo - das soli-
me trazem uma criança difícil, eu a mando ir brincar e dões geladas, dos grandes hotéis, do Equador e dos
tranco o pai. As confissões que obtenho não são feitas botecos obscuros. Ela acredita conhecê-lo, acredita nas
para que eu me reconcilie com a vidinha burguesa. imagens. Tem repulsa aos livros. Está desgostosa da
N ão há mais um dia sequer em que os jornais não monotonia cotidiana e hesitante com a vida familiar.
nos falem de crimes e delitos cometidos por garotos. As evasões vêm ao seu encontro.
"Não há ma is moral" ... e é por isso que a sua filh:1 Desastre? Desastre coletivo se o adulto persistir
está muda. em manter a criança com as mãos atrás das costas. A
Mas há moral, sim, até demais, e da pior espécie, criança se revira e morde, pula pela janela e cai, pois o
degenerada pelo temor, heredo-católica, 1 e que fa z o mundo mil vezes visto e que ela acreditava pronto para
seu disse-me-disse protegida justamente por esse temor'. recebê-la é apenas reflexos e miragem. Se ele existe,
está muito mais longe. Pode-se alcançá-lo com um
X passo depois do outro. Mas a criança do cinema, do
rádio, da heliogravura não sabe andar.
Cinema, rádio e imprensa trazem o mundo em im:1 Machucada, retorna à existência obrigatória.
gens, música, fra ses. Constituem o pasto permanenrt Machucada, prepara o próximo salto através de sua
da potência imaginária das crianças. Como pode no~ janela no mundo das imagens, e, visto que é preciso
espantar que elas queiram ficar imediatamente de pé ter dinheiro, ela há de "encontrá-lo". Ou então renun-
ciará, enojada para sempre por saber que há na Terra
1. Deligny retoma aqui de forma irônica o prefixo heredo- (ck
dois mundos vizinhos e, contudo, tão distantes quanto
hereditariedade), tão em voga naquela época para naturalizar 0 11 a Terra e a Lua: aquele no qual a vida é atrozmente
indivíduos com distúrbios de caráter, as " taras" , os vícios e mesmo cotidiana e aquele dos espaços pitorescos, dos encon-
diversas doenças. Fala-se então, por exemplo, de heredo-tuben.a1 tros imprevistos, onde os gestos espontâneos não são
lose, heredo-sífilis, heredo-alcoolismo. [N.T.]
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freados por uma atmosfera espessa de necessidades. sobrecarregarão o povo infantil com o peso de sua
Crianças prontas para o crime, crianças murchas de bagagens pseudocientíficas, pseudo-históricas, pseu-
antemão ... Talvez seja tempo de repensar a educação domorais, coleção de bibelôs injuriosos, presentes
em função do nosso mundo de diversas profundidades. típicos daqueles que vêm do mundo dos adultos.
A necessidade é tal que daqui a pouco inúmeros edu-
cadores vão se revelar. Eles existem. Estão um pouco X
(1947)
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O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 15
a infância. A desenvoltura dessas pessoas em aparente- como o bernardo-eremita 2 protege sua barriga com
mente aceitar e assimilar verdades às quais não ousam uma concha emprestada. Como é que eles, insuficientes
se opor só se compara com a sua habilidade paciente sociais docilmente resignados a um emprego monó-
de evitar a verdadeira aplicação prática de princípios tono notoriamente ineficaz, poderiam compreender
que ameaçam o conforto moral e social do qual são os essas crianças que têm a improvável ousadia de mani-
representantes patentes e prudentes. festar transtornos de comportamento?
Elas pululam em torno das crianças em situação Gostam da ordem, dos relatórios escritos para se
de perigo "moral", delinquentes ou inadaptadas. manterem acobertados e das fofocas para se informar.
Defensores dissimulados de uma ordem social podre e Ignoram o que uma turma de garotos e garotas pode
ruindo por toda parte, ocupam-se das vítimas mais fla- consumir de energia, de pregos, de tijolos, de solas, de
grantes dos desmoronamentos: as crianças miseráveis. tempo, de ideias, de tudo o mais.
Importunos e tenazes, juntam-se como moscas, e o Um estabelecimento bem "administrado" - será
zumbido de sua atividade benfeitora camufla a simples que isso quer dizer que tudo o que vive nele em breve
necessidade de desovar nessa carne moribunda seus vai morrer?
próprios desejos de obediência servil, de conformismo Nesse eterno combate dos ativos contra os passivos,
flácido e de moralismo de meia-tigela. faço apelo aos psicólogos, psiquiatras, biólogos e peda-
Empregam de bom grado um termo magnífico, de gogos que se afastam na descoberta do homem, sem
uma tolice suntuosa, pérola que cresce com as secreções ouvir os chamados desesperados dos educadores, que,
dos milhares de comitês grudadas nas mesas das reu- na aleatoriedade dos estabelecimentos, tentam ajudar
niões administrativas como ostras no rochedo: a cor- as crianças a viver reunidas em torno deles, e se sentem
~ ' reção moral. Como se as crianças tivessem em algum insidiosamente bloqueados - as crianças e eles mes-
lugar um pedaço de não-sei-quê, direito em uma, torto mos - pelas "circunstâncias" antiquadas e mesquinhas
em outras, e que poderia ser modelado vergando-lhes impostas pelas atuais administrações.
as costas a golpes de exemplos ou dando-lhes bolachas Educadores ... ? Quem são vocês? Formados, como se
amanteigadas nos dias de visita ou de grande festa. diz, em estágios ou em cursos nacionais e internacionais,
Todos esses burocratas pequeno-autoridades escon-
dem a frouxidão do seu caráter em sua situação social 2.Espécie de crustáceo que se abriga em conchas vazias de outros
animais. [N.T.]
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instruídos sem nenhuma preocupação prévia em saber Visto que "eu" redigi esse diário de bordo, parece-me
se têm no estômago um mínimo de intuição, de ima- útil esboçar, nesse prefácio, uma breve auto-observa-
ginação criadora e de simpatia com o homem, envol- ção desse "eu".
tos em um vocabulário médico-científico e em técnicas Sempre curvado sobre mim mesmo, ao ponto de sen-
esboçadas, largam vocês, em sua maioria frutos infantis tir dor no osso achatado que se encontra no centro do
da burguesia, ainda encaracolados em si mesmos em peito que deve ser a dobradiça do homem, eis que já
plena miséria humana. ' não sou simétrico e nunca me pareço comigo. Há uma
E ano após ano, algumas marionetes aqui, uns boa parte desse "eu", informe, plástico, afetivo, que se
corais ali, testes e tretas, complexos e estatísticas, con- deixa marcar como a massa do vidraceiro.
gressos e relatórios tecem uma rede de camuflagem Em breve serão dez anos desde que me encontro entre
em torno desse misterioso lixo social da infância ina- aqueles que põem fogo nas fazendas, roubam carvão
daptada3 que morre em cortiços, dá errado em casas nas barcaças, aqueles que fraudam e vagabundeiam,
burguesas e definha com frequência bem maior do que essa ralé de menores que crimeia,4 ingrateia, assistên-
se admite nos anexos de prisões ou de estabelecimen- cia-publiqueia,5 e se masturbam a existência. Varíola,
tos inumanos. álcool, tuberculose, indiscutivelmente. Cortiços, bai-
xeza humana, mães que se reproduzem como coelhas e
X o pai em cima da filha, simples assim.
Tenho um enorme rancor do câncer capitalista que
vai, como se diz, atingir o coração. É provável que "Tenho", como se diz, uma criança pequena. H:-1.
ainda vá feder um pouco no subúrbio. Mas e amanhã? entre nós uma ruptura latente: minha morte, que
Seria uma pena que nas cidades-jardins, nas escolas deve chegar ao menos uns trinta anos antes da dela; e
ensolaradas, as crianças ficassem cinzentas, monótonas aprecio diariamente essa separação posta entre mim
e dóceis, anestesiadas por séculos de desconfiança em e a "minha" criança, como um ponto que nos afasta
relação ao homem. um do outro, apontando para o meu desaparecimento
Assim, há dez anos, passo muito tempo com "eles", enquanto lhe atribui uma vida nova e virgem.
sem um pingo de devoção, e com alguns meninos e meni- Mas entendo melhor como a preocupação mesqui-
nas com quem tenho amizade. E falo de mim mesmo, de nha de eternidade individual leva aqueles mesmos
minha atitude em relação às dificuldades pitorescas da que não creem mais no paraíso a querer com todas
minha profissão. Invento, enquanto lhes falo, reflexos ou as forças se prolongar tal como são. Parece que vejo
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