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OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1

eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11


! aberto a todos que passam por ali. Alg1111
es moram nela com sua família.
O resto é com a geme.
humano - artista, operário e revolucion:í, 111
nto. Só nos falta - quem diria? - um pou~ 11
·o. Conselhos de administração com mais d1
embros (dos quais trinta "relicários" e d,·,
)S "), dispensamos.

às borboletinhas benfeitoras que voltej:1111,


.a noite tempestuosa do capitalismo católico,
so avançaram na leitura até aqui, aviso-llw,
1 braços no catecismo e, caso sejam "sinc.: t·
os lares de grandes anormais precisam dr
evotadas.
orço de reeducação não sustentado por uma
por uma revolta cheira muito rapidamentt
:lhos ou a água benta contaminada. O que
)ara esses moleques é ensiná-los a viver, não
~judá-los, não os amar.
~
OS VAGABUNDOS EFICAZES

Privados "deles" no momento, as muralhas me ensinam.


Maciços de tijolos vermelhos com ângulos retos,
elas são mordiscadas pelos bisnetos daqueles que as
construíram. Verdes e vermelhas, elas se parecem com
enormes soldados mutilados. As crianças correm sobre
suas costas. Sua grande veste de grama é toda entre-
cortada de jardins operários cercados de quatro fileiras
de arame farpado que fixam estrelas de ferrugem sobre
as verduras, quando se caminha, e no céu, quando se
deita na grama.
Cada jardineiro fez para si, criança tenaz, um
pequeno santuário de ferramentas.
Uma enorme pilha municipal de detritos, franja
extrema do bem de outrem, defuma com inúmeros
pequenos incêndios sem chamas e fermenta. Uma
fumaça se arrasta baixa emergindo das carcaças de
fogões enferrujados, dos colchões esburacados, das
barras de cama-gaiola. Latas de conserva vazias bri-
lham quando o sol se mistura à fumaça.
Velhos do hospício e crianças estão grudados à
colina fedorenta . Brigam pelos achados.
No horizonte, na borda da . cidade, hospício,
caserna, abatedouros, e a bagunça imunda dos bair-
ros inverossímeis.
Na entrada dos cortiços, ficam sentadas estranhas
crianças, crianças vomitadas. Para falar de sua cor e
de sua forma, não há outra palavra.
II 8
OS VAGABUNDOS EFICAZ!!~ OS VAGABU NDOS EFICAZES

X
"eu" surge, desperto, mas "eu" se aflige ao se sentir em
um corpo imóvel, inerte, mineral. Então, "eu" busca
Se digo: "As crianças são como os pais as fizeram e os contatos, as alavancas. "Eu" busca o mais sensí-
as educaram ... ", eu me deparo com o consentimento vel, o mais leve, um dedinho, os lábios, as pálpebras
universal.
e, com todas as suas forças dirigidas a um desses pon-
Se prossigo: "Os pais são como a atual sociedade os tos, "eu" consegue uma onda, um estremecimento, um
força_ a_ ser. Seria preciso ver como mudar realmente as movimento leve e quase imperceptível, que é como um
c~~?1çoes de vida ... ", fecham-me a boca e o Centro que imenso alívio, pois ele basta para me impelir ao movi-
d~nJ~, sob o pretexto de que alguns de seus operários mento reencontrado e ao mundo vivo que me aguarda.
nao tem o aspecto, que coisa!, de verdadeiros educadores. Mas não limito a isso meu sucesso, pois não sou
meu próprio psiquiatra-psicólogo. Esse primeiro gesto
X
balbuciado é a chave que me abre para todas as cir-
cunstâncias que me aguardam e não uma pequena cla-
Bom. Deit~do na grama das muralhas, debruço-me e raboia sobre mim mesmo. Minha vida aproveita disso
observo o madaptado.
para ser inundada de seres vivos e sempre aberta ao
imprevisto até a fadiga extrema.
PRIMEIRA OBSERVAÇÃO. Vivi durante quatro anos
em.um :si~o de alie_nados. Os alienados mais típicos, SEGUNDA OBSERVAÇÃO. Eu arrasto comigo, sem dúvida
mais cromcos, mais dementes não me surpreende desde o meu nascimento, uma espécie de angústia, de
ram: momentos de mim mesmo tornados homens um medo prévio, que se alia a uma magreza de homenzi-
"pon_to de vista" mantido por mais tempo do que ~erin nho de arame.
preciso; um desapego que sono nenhum pode romper Maio 1940. Aqui estou, como os demais, preso na
e o resto do mundo que parte à deriva sem que se faça guerra, um coelho perdido na sucata monumental e
um ?e.sto para saltar na roda que gira; a solução únicn nos apitos e na carne humana da qual escorre san-
e trag1ca que se impõe por falta de mobilidade. gue e suor através do assoalho do caminhão. Desde
Por vezes, sou eu mesmo esse alienado que é pers- que parei de crescer, é o único período da minha vida
crutado para ser liberado. Profundamente adormecido, em que ganhei peso (oito quilos ). Meu medo tinha
120
OS VAGABUNDOS EFICAZH \ OS VAGABUNDOS EFIC AZ ES l 2.I

encontrado o alimento que lhe convinha. Ele já não a moral ensinada sem precaução é a catedral deserta
me consumia mais.
que elas temem e cujos vitrais quebram por ódio_ dessa
Desde então, essa angustiazinha vagabunda voltou. vida coletiva da qual são excluídas, pequenas cnanças
Ela pousa despreocupada no menor cansaço como uma decepcionadas antecipadamente por não serem gran-
mosca reluzente no lixo pressentido. Expulso-a com des homens.
um violento golpe de raciocínio, ela vai pousar ao lado.
Resta-me apenas esperar que um grande e forte acon- QUARTA OBSERVAÇÃO. Nas paredes dos dois cômodos
tecimento venha seduzi-la e tirá-la de perto por um onde vivo (o maior tem cinco janelas), estão pendura-
tempo. Mas eu a conheço ... É capaz de voltar grávida. dos desenhos. Todos malogrados. Os desenhos de que
gosto no momento, eu os dou ou então, o~namenta_-
TERCEIRA OBSERVAÇÃO. Quando tinha doze ou treze dos de cor, um diretor de galeria tenta vende-los aqui
anos, encontrei furtivamente uns livros e documentos e ali. Guardo nessas paredes que me são familiares
nos quais o sexo tinha o lugar de pedra angular. todos os malogrados que, sozinhos, são a esperança
Dizia-se neles que o sexo era o motor de tudo o que da descoberta.
vive, de tudo o que é. O grande segredo, a grande força . Esses traços deixados pela minha mão em uma
Então, me senti tão pequeno, tão magricelo, tão per- grande folha, não posso acreditar que, passados os
dido em uma espécie de catedral gótica cujos signos, breves momentos de encantamento, sejam suficientes.
os trejeitos, os mistérios eu não compreendia, rejei- Posso me deixar escorrer inteiro neles, ou somente
tado dessa comunhão que eu pressentia unânime ao me descrever neles como uma carroça se descreve, para
meu redor, e necessária pois geradora de toda a vida. quem tem bons olhos, pelos sulcos que ela deixa.
Excluído, morto-vivo, com esse sexo minúsculo e com
a certeza ineficaz que me fazia odiar antecipadamente X
as mulheres e seus desejos, os quais apenas os gigantes
poderiam enfrentar.
Criança tenaz, sem dúvida ainda terei que esperar muito
Estragos do conhecimento intelectual prévio e tempo pela minha puberdade social, essa aceitação pura
prematuro.
e simples das maneiras que têm os homens de nunca ser
Estragos que reencontro nas crianças para as quais eles mesmos e de mutilar raivosamente as crianças.
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12.2. OS VAGA BUNDOS EFICAZll~ OS VAGABUNDOS E FICAZES

Se na origem dos distúrbios de comportamento os nesse mundo que, por uma ilusão de óptica cotidiana-
médicos detectam taras hereditárias, a meu ver, de mente alimentada, veem pela janela?
modo geral, inscrevem-se diante disso as mesquinha• Conselhos, ameaças, restrições e promessas são de
rias e a desonestidade do adulto reinante. um tempo que já passou.
H á meses, na falta de uma "instituição", quando A criança de hoje "conhece" o mundo - das soli-
me trazem uma criança difícil, eu a mando ir brincar e dões geladas, dos grandes hotéis, do Equador e dos
tranco o pai. As confissões que obtenho não são feitas botecos obscuros. Ela acredita conhecê-lo, acredita nas
para que eu me reconcilie com a vidinha burguesa. imagens. Tem repulsa aos livros. Está desgostosa da
N ão há mais um dia sequer em que os jornais não monotonia cotidiana e hesitante com a vida familiar.
nos falem de crimes e delitos cometidos por garotos. As evasões vêm ao seu encontro.
"Não há ma is moral" ... e é por isso que a sua filh:1 Desastre? Desastre coletivo se o adulto persistir
está muda. em manter a criança com as mãos atrás das costas. A
Mas há moral, sim, até demais, e da pior espécie, criança se revira e morde, pula pela janela e cai, pois o
degenerada pelo temor, heredo-católica, 1 e que fa z o mundo mil vezes visto e que ela acreditava pronto para
seu disse-me-disse protegida justamente por esse temor'. recebê-la é apenas reflexos e miragem. Se ele existe,
está muito mais longe. Pode-se alcançá-lo com um
X passo depois do outro. Mas a criança do cinema, do
rádio, da heliogravura não sabe andar.
Cinema, rádio e imprensa trazem o mundo em im:1 Machucada, retorna à existência obrigatória.
gens, música, fra ses. Constituem o pasto permanenrt Machucada, prepara o próximo salto através de sua
da potência imaginária das crianças. Como pode no~ janela no mundo das imagens, e, visto que é preciso
espantar que elas queiram ficar imediatamente de pé ter dinheiro, ela há de "encontrá-lo". Ou então renun-
ciará, enojada para sempre por saber que há na Terra
1. Deligny retoma aqui de forma irônica o prefixo heredo- (ck
dois mundos vizinhos e, contudo, tão distantes quanto
hereditariedade), tão em voga naquela época para naturalizar 0 11 a Terra e a Lua: aquele no qual a vida é atrozmente
indivíduos com distúrbios de caráter, as " taras" , os vícios e mesmo cotidiana e aquele dos espaços pitorescos, dos encon-
diversas doenças. Fala-se então, por exemplo, de heredo-tuben.a1 tros imprevistos, onde os gestos espontâneos não são
lose, heredo-sífilis, heredo-alcoolismo. [N.T.]
I 24 OS VAGABUNDOS EFICAZES OS VAGABUNDOS EFICAZES 1 25

freados por uma atmosfera espessa de necessidades. sobrecarregarão o povo infantil com o peso de sua
Crianças prontas para o crime, crianças murchas de bagagens pseudocientíficas, pseudo-históricas, pseu-
antemão ... Talvez seja tempo de repensar a educação domorais, coleção de bibelôs injuriosos, presentes
em função do nosso mundo de diversas profundidades. típicos daqueles que vêm do mundo dos adultos.
A necessidade é tal que daqui a pouco inúmeros edu-
cadores vão se revelar. Eles existem. Estão um pouco X

desamparados no momento. Entediam-se tanto que se


poderia pensar que são imorais e antissociais. O mínimo desenho infantil é um chamado. Muito
frequentemente, os adultos respondem curiosos, fér-
X teis em comentários. Vemo-nos assim no coração da
fraude habitual.
Milhares de crianças se esgueiram, para quem sabe ver, Contrassensos, rupturas, tremores, rascunhos, igno-
nas ruelas estreitas traçadas muito profundamente nas râncias são admitidos e mesmo apreciados quando
preocupações massivas dos adultos. Na falta de um expressos no papel, balbucios de uma ingenuidade
guia, brincam de guerrinha. aplicada.
Se a mesma ingenuidade for expressa em atos, ins-
X tabilidades, audácias, desdém e preguiças, o adulto
provocado se torna odioso.
Meio poetas, meio pintores, meio cantarolantes de E assim pegamos no flagra essa derivação artística,
belas músicas, meio intérpretes, exibidores de si mes- em cuja direção cresce a sociedade que não quer ser
mos e de marionetes, honestos com o instante, chu- incomodada, que quer que se cuspa nas paredes, que
padores de certezas e cuspidores de questões, película até se apressa em enquadrar os cuspes, que organizará
viva à flor da sociedade, incontestavelmente inadap- exposições de hediondos catarros, muito feliz por não
tados, inquietos com sua vagabundagem e pacientes tocarem na ordem discreta de suas construções, de
como empalhadores de cadeiras - aí estão os compa- suas hierarquias, de seus hábitos.
nheiros de que as crianças precisam. Um desenho infantil não é uma obra de arte: é um
Exploradores ingênuos e pobres, eles não chamado para novas circunstâncias.
126 OS VAGAB UN D OS EFICA Zll~ OS VAGABUNDOS EFIC AZ !'.,

X Nos bairros e periferias corroídos p o 1 11 111 , , 11111 p 1


manente de miséria, onde a pequc11:1 11 11111 1d 11 li d11
Criador de circunstâncias, assim é o educador a se egoísmo é veementemente raspada a cad:1 d 1.1 , v 1v 1 , 1
debater com todas as inércias. Boa sorte. povo das fábricas e dos canteiros de obras.
Eu o aconselho a preservar um modo de expressão Aqui, as casas são gaiolas feitas de tijolos em burid:1~
pessoal. Mesmo que seja apenas para absorver essa em pátios sombrios como poços.
espuma de delírio que borbulha em torno de toda Elas são colocadas em pequenos jardins e olham
ação intensa. umas às outras por todas as janelas, sem segredo pos-
Quando era responsável por um Centro ou um sível entre si.
pavilhão, aconteceu-me de me sentir um compositor. Lá vivem mulheres gordas que parecem ter parido
Aconteceu-me de confundir coletividade infantil com rodas as crianças do bairro, as quais vemos passar em
tocar órgão. Nascia uma música de revolta ornamen- filas nas horas da escola pelas pequenas vias rodea-
tada de humor que formava em torno de mim uma das por cercas vivas com arame farpado e tábuas mal
bolha, um universo no qual eu vivia confortavelmente. pregadas.
Fraude para as vidas confinadas. Lá vivem meninas carinhosas e tenazes como
rainhas-cupim.
X Lá vivem meninos trabalhadores braçais, metalúrgi-
cos, pedreiros que não querem que a pesada mandíbula
São crianças difíceis, são crianças que experimentaram do trabalho na fábrica ou da construção se feche sobre
o delito. Os companheiros um tanto superficiais de que eles, que mantêm, à força, a mandíbula entreaberta e
eu falava há pouco servem para crianças que, ademais, querem saber aonde estão indo e o que são.
têm bons laços afetivos. Eles sabem, nos sábados à noite, ganhar o magní-
Para as crianças oriundas de todas as misérias, é pre- fico aspecto do vagabundo e cantam e dançam e fazem
ciso companheiros de uma raça diferente. mímicas e desenham e sabem se entregar à música
como ao sol, ao teatro como à montanha.
X Fim de turno. A despeito dos cansados por anteci-
pação, uma nova raça acaba de nascer sob o sol. Era
128 OS VAGABUNDOS EFICAZES OS VAGABUNDOS EFICAZES

preciso que, mais cedo ou mais tarde, esse sofrimento X

e esse burburinho humano dos bairros periféricos nos


dessem esses vagabundos sociais em busca (não mais Desequilibrado?
no espaço, mas aí mesmo onde nasceram) de um modo Pestalozzi, Rimbaud, Van Gogh, vocês - cujo dese-
de vida mais honesto, em busca, se quisermos, de uma quilíbrio deixou uma marca gigantesca e cujos tesouros,
moral que não feda a preconceitos soterrados sob os · ecos e a própria tenacidade nos maravilham - digam a
detritos de uma estrutura social que desmorona. ele o que significa ser "professor de escola", ou enru-
Os mais conscientes dentre eles às vezes têm febre. bescer aos vinte e cinco anos como um adulto surpreso
ao ser lembrado de masturbações infantis, com a mera
X evocação de uma obra literária que cria a poesia atual,
que "pinta, pinta, pinta" porque não se tem o "dom da
Um deles me disse (ele estava deitado em um cômodo de palavra que permitiria ajudar os humildes".
uma pequena construção perto do Marne2, um cômodo Três incansáveis, em busca de uma moral que não
cujas paredes precisam ser pintadas após cada chuva, seja uma impressão morta, em breve espalhados nesse
pois o teto tem buracos; onde "eles" se reúnem em qua- solo vivo do povo que vai ao encontro da vida.
tro ou seis ou dez; onde o pequeno armário de livros
foi feito para nada, por um marceneiro vizinho; onde X

se inquietam e falam e se amam e são da resistência e


da revolução de cada dia; onde recusam veementemente Pestalozzi. Rimbaud. Van Gogh.
dias seguintes que sejam gastos como vésperas), um deles Ansiava por me juntar a eles desde o início do livro.
me disse (e estava deitado porque tinha uma febre de Eles, sua obra, sua vida, suas cartas. Queria envergo-
quarenta graus de tanto ter feito "mímica" com os cama- nhar os "professores", os "juízes", os "artistas" fri-
radas, em palanques cheios, durante uma incontável festa sando que esses três vagabundos grandiosos haviam
popular): "Escrevo poemas assim, e pinto, sabe? Estou sido muito conscientemente os irmãos inquietos dos
trabalhando a mímica ... e temo estar desequilibrado." jovens delinquentes. Eu queria ter entrelaçado seus tra-
ços ao longo desse diário de bordo coletivo.
Fugas, detenções, miséria, temor, revolta, asilo.
2. Nome de um rio afluente do Sena. [N.T.]
130
OS VAGABUNDOS EFICAZES

Nenhum dos três se queixaria da vizinhança. Questão


de hábito.
Mas, em seguida, desisti de esmiuçar o que se ofe-
rece como um belo fruto de vida para quem sabe ler
e olhar.

A exasperação de seres machucados por condições


sociais intoleravelmente desonestas e as impaciên-
cias de crianças oprimidas por adultos desajeitados se
exprimem através dos mesmos sinais.
Quando o povo for libertado e ousar andar com seus
próprios pés, a obra de arte ganhará para ele formas,
cores e músicas familiares.
Será preciso, por favor, libertar ao mesmo tempo as
crianças e colocá-las junto de educadores de presença
leve, provocadores de alegria, sempre prontos a remo-
delar bolas de argila, vagabundos eficazes maravilha-
dos pela infância.
Esperança.

(1947)
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O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 15

Em 1945, eu escrevia Graine de crapule 1 após ter


vivido alguns anos com crianças inadaptadas. Pequeno
livro nascido ao acaso dos dias. Amargo, disseram-me.
Amargo? O entusiasmo do primeiro esforço me ins-
pirou esses versos improvisados enquanto caminhava.
Encarregado - seriam essas pequenas fórmulas tão
agradáveis a todos os-ouvidos? - de dirigir um centro
de observação para crianças difíceis e decidido a não
deixar que se perdessem ou sumissem na confusão do
cotidiano as pequenas fórmulas escritas por mim, eu
oferecia aos leitores de Graine de crapule a redação
de um diário de bordo contando como a experiência
destroça ou estimula a frágil frota - alguns a imaginam
toda feita de barquinhos de papel ornados de utopia -
dos princípios da pedagogia ativa.
Pude flagrar os náufragos vergonhosos dessa frota.
Os testemunhos que depois recebi, de outros educado-
res lidando com as mesmas dificuldades, me incitam a
nomear os inimigos da infância, inimigos frequente-
mente inconscientes, pois são em primeiro lugar ini-
migos de si próprios, desde muito jovens. Encontrei-os
repetidamente, pois sua vanguarda milita nas institui-
ções de educação e seu Estado-maior sitia os comitês,
os conselhos, as associações encarregadas de proteger

e. Algo como "Germe de crápula", título do livro de aforismos,


onde Deligny explora uma pedagogia outra. "Crápula" recebe aí
um sentido positivo (NT).
16 OS VAGABUNDOS EFICAZES O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 17

a infância. A desenvoltura dessas pessoas em aparente- como o bernardo-eremita 2 protege sua barriga com
mente aceitar e assimilar verdades às quais não ousam uma concha emprestada. Como é que eles, insuficientes
se opor só se compara com a sua habilidade paciente sociais docilmente resignados a um emprego monó-
de evitar a verdadeira aplicação prática de princípios tono notoriamente ineficaz, poderiam compreender
que ameaçam o conforto moral e social do qual são os essas crianças que têm a improvável ousadia de mani-
representantes patentes e prudentes. festar transtornos de comportamento?
Elas pululam em torno das crianças em situação Gostam da ordem, dos relatórios escritos para se
de perigo "moral", delinquentes ou inadaptadas. manterem acobertados e das fofocas para se informar.
Defensores dissimulados de uma ordem social podre e Ignoram o que uma turma de garotos e garotas pode
ruindo por toda parte, ocupam-se das vítimas mais fla- consumir de energia, de pregos, de tijolos, de solas, de
grantes dos desmoronamentos: as crianças miseráveis. tempo, de ideias, de tudo o mais.
Importunos e tenazes, juntam-se como moscas, e o Um estabelecimento bem "administrado" - será
zumbido de sua atividade benfeitora camufla a simples que isso quer dizer que tudo o que vive nele em breve
necessidade de desovar nessa carne moribunda seus vai morrer?
próprios desejos de obediência servil, de conformismo Nesse eterno combate dos ativos contra os passivos,
flácido e de moralismo de meia-tigela. faço apelo aos psicólogos, psiquiatras, biólogos e peda-
Empregam de bom grado um termo magnífico, de gogos que se afastam na descoberta do homem, sem
uma tolice suntuosa, pérola que cresce com as secreções ouvir os chamados desesperados dos educadores, que,
dos milhares de comitês grudadas nas mesas das reu- na aleatoriedade dos estabelecimentos, tentam ajudar
niões administrativas como ostras no rochedo: a cor- as crianças a viver reunidas em torno deles, e se sentem
~ ' reção moral. Como se as crianças tivessem em algum insidiosamente bloqueados - as crianças e eles mes-
lugar um pedaço de não-sei-quê, direito em uma, torto mos - pelas "circunstâncias" antiquadas e mesquinhas
em outras, e que poderia ser modelado vergando-lhes impostas pelas atuais administrações.
as costas a golpes de exemplos ou dando-lhes bolachas Educadores ... ? Quem são vocês? Formados, como se
amanteigadas nos dias de visita ou de grande festa. diz, em estágios ou em cursos nacionais e internacionais,
Todos esses burocratas pequeno-autoridades escon-
dem a frouxidão do seu caráter em sua situação social 2.Espécie de crustáceo que se abriga em conchas vazias de outros
animais. [N.T.]
18 OS VAGABUNDOS EFICAZES O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 19

instruídos sem nenhuma preocupação prévia em saber Visto que "eu" redigi esse diário de bordo, parece-me
se têm no estômago um mínimo de intuição, de ima- útil esboçar, nesse prefácio, uma breve auto-observa-
ginação criadora e de simpatia com o homem, envol- ção desse "eu".
tos em um vocabulário médico-científico e em técnicas Sempre curvado sobre mim mesmo, ao ponto de sen-
esboçadas, largam vocês, em sua maioria frutos infantis tir dor no osso achatado que se encontra no centro do
da burguesia, ainda encaracolados em si mesmos em peito que deve ser a dobradiça do homem, eis que já
plena miséria humana. ' não sou simétrico e nunca me pareço comigo. Há uma
E ano após ano, algumas marionetes aqui, uns boa parte desse "eu", informe, plástico, afetivo, que se
corais ali, testes e tretas, complexos e estatísticas, con- deixa marcar como a massa do vidraceiro.
gressos e relatórios tecem uma rede de camuflagem Em breve serão dez anos desde que me encontro entre
em torno desse misterioso lixo social da infância ina- aqueles que põem fogo nas fazendas, roubam carvão
daptada3 que morre em cortiços, dá errado em casas nas barcaças, aqueles que fraudam e vagabundeiam,
burguesas e definha com frequência bem maior do que essa ralé de menores que crimeia,4 ingrateia, assistên-
se admite nos anexos de prisões ou de estabelecimen- cia-publiqueia,5 e se masturbam a existência. Varíola,
tos inumanos. álcool, tuberculose, indiscutivelmente. Cortiços, bai-
xeza humana, mães que se reproduzem como coelhas e
X o pai em cima da filha, simples assim.
Tenho um enorme rancor do câncer capitalista que

3. A noção de "infância inadaptada" foi institucionalizada por de-


creto pelo governo da Ocupação de Vichy em 1943, reagrupando 4 . A escrita mais tardia de Deligny, a partir do fim dos anos
categorias de uso corrente como "infância infeliz", "em perigo mo- , 960, ao trabalhar e viver com crianças autistas mudas, será
ral" ou "deficiente". Junto com o surgimento da noção, instituições caracterizada pela constante criação de infinitivos. Mas a expe-
são estruturadas, criam-se novas profissões e leis, em suma, surge rimentação na língua usando verbos já começa a dar sinais nesse
uma verdadeira tecnologia médico-jurídico-social destinada à juven- período. [N.T.]
tude "anormal" ou "desviante". Em 1947, data de publicação do li- 5. Assistência Pública era o órgão responsável por direcionar aos
vro, pouco mais de dois anos depois da Liberação, em um momento Centros de Observação e de Triagem (COTs) parte dos jovens ór-
ainda de indefinição e de negociação entre gaullistas e membros do fãos e maltratados ou cujos pais haviam sido considerados incapa-
Partido Comunista Francês, Deligny está envolvido em uma batalha 1.cs de criá-los por razões diversas (alcoolismo, incesto, violência
institucional em torno dos usos e do futuro dessa noção. (N.T.] doméstica). [N.T.]
'" OS VAGABUNDOS EFICAZES· O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES

vai, como se diz, atingir o coração. É provável que "Tenho", como se diz, uma criança pequena. H:-1.
ainda vá feder um pouco no subúrbio. Mas e amanhã? entre nós uma ruptura latente: minha morte, que
Seria uma pena que nas cidades-jardins, nas escolas deve chegar ao menos uns trinta anos antes da dela; e
ensolaradas, as crianças ficassem cinzentas, monótonas aprecio diariamente essa separação posta entre mim
e dóceis, anestesiadas por séculos de desconfiança em e a "minha" criança, como um ponto que nos afasta
relação ao homem. um do outro, apontando para o meu desaparecimento
Assim, há dez anos, passo muito tempo com "eles", enquanto lhe atribui uma vida nova e virgem.
sem um pingo de devoção, e com alguns meninos e meni- Mas entendo melhor como a preocupação mesqui-
nas com quem tenho amizade. E falo de mim mesmo, de nha de eternidade individual leva aqueles mesmos
minha atitude em relação às dificuldades pitorescas da que não creem mais no paraíso a querer com todas
minha profissão. Invento, enquanto lhes falo, reflexos ou as forças se prolongar tal como são. Parece que vejo

1 intuições que não tinha. E, com mentiras em supersimu-


lação, formo-me. Torno-me o educador que deveria ter
inumeráveis pais abusivos, carregando cestas cheias
de preconceitos, galoparem em direção à velhice

1 sido, um pouco ofegante por correr atrás desse "eu" por


mim descrito nos momentos de entusiasmo.
temerosa montados em seus filhos como árabes em
suas mulas.

1 Malandro, obstinado e exigente na vida cotidiana,


sempre enredado no social como um vagabundo no
E quando os pais não estão, quando as crianças são
entregues, sei que as cestas ficam ainda mais pesadas,
arame farpado, sou, diante do mais maltrapilho dos os pontapés mais ferozes e dissimulados, as rações

1 fugitivos arrastados por dois policiais, como um pintor


seguro em sua técnica diante de um desenho de criança,
mais raras, pois os caravaneiros querem ordem no
pequeno cortejo cinzento da infância inadaptada, que

1 desagradavelmente consciente da minha sociabilidade.


Imagino o outro fazendo um rápido inventário dos
dá coices e bufa ou se cala para sempre.
Amoral? Em todo caso, de forma alguma defensor

1 seus últimos delitos e calculando o número de cigar-


ros pelos restos de tabaco acumulados no único bolso
da moral "em alta", como se diz na bolsa.
Antissocial? Seguramente estranho a essa explora-
forrado que lhe resta. Sinto seu desconforto diante de ção hipócrita do homem pelo homem, a essa transpi-

1 pessoas com uniforme. Meu pai era oficial. Meu avô,


chefe de alfândega.
ração de tédio, a toda hierarquia preestabelecida.
Mas sinto o egoísmo como uma acrobacia mental
OS VAGABUNDOS EFICAZES

que, com a primeira hesitação, deixa você em pedaços


no fundo da sua própria angústia.
Então eu busco, junto com aqueles que não encon-
traram como companheiros.

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