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JAGGERNAUT nº 2 - 2020

Índice

Editorial: Crises, champanhe e banho de sangue, Coletivo Jaggernaut

Crises, champanhe e banho de sangue - Dossiê

Valor-dissociação, sexo e crise do capitalismo


Entrevista de Roswitha Scholz com Clara Navarro Ruiz

A "primeira versão" da teoria da crise de Marx


Nuno Miguel Cardoso Machado

Uma contradição entre matéria e forma: sobre o papel da produção da mais-valor relativo na
dinâmica da crise final
Claus Peter Ortlieb

A natureza na "contradição em processo": uma contribuição ao debate sobre a teoria da crise


Daniel Cunha

Varia

A ruptura ontológica: para uma outra história mundial


Robert Kurz

A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa


Felipe Catalani

Jean-Marie Vincent, precursor da crítica do valor?


Anselm Jappe

Contra Lordon

Anticapitalismo truncado e espinosismo na obra de Frédéric Lordon


Benoît Bohy-Bunel
Crises, champanhe e banho de sangue

Coletivo Jaggernaut

Não que a estrita objetividade da crise deva incluir algo como um automatismo
objetivo da emancipação social. A crise torna o capitalismo obsoleto, mas sem criar
outra ordem social, que os homens têm de fazer por si próprios.

A crise, por sua vez objetiva, desta “falsa” objetividade negativa, não sugere
porventura qualquer espera tranquila pela salvação, mas, pelo contrário, uma crítica
e atividade negadoras muito mais fundamentais, que, de resto, já não podem
invocar a forma de atividade capitalista, que é o trabalho, como um direito humano,
talvez ainda possível de reivindicar. Em outras palavras: quanto mais a crise entra
no campo de visão como limite interno absoluto do capital, tanto mais a crítica do
capitalismo se torna uma questão categorial e deixa de ser, justamente por isso,
uma simples questão de classe, tonando-se, pelo contrário, uma questão que se
coloca inevitavelmente de qualquer ponto de vista social.

Robert Kurz, Ler Marx1

Na era do capital fictício, o capitalismo se impôs, sem nenhuma dúvida, em um ritmo


desenfreado sobre todo o planeta, destruindo ou marginalizando quase completamente todos os
outros modos de produção e de vida. Nestas últimas décadas ele transformou a grande maioria da
população mundial em vendedora de força de trabalho, a polarização entre ricos e pobres tomou
proporções desmesuradas, enquanto as condições de trabalho e de vida no mundo se tornam cada
vez mais insuportáveis. À crise de 2008 seguiram-se quase dez anos de um crescimento mundial
débil, que levou os atores econômicos a temer uma "estagnação secular". A "grande corrida" às
matérias-primas que tinha levado os países "emergentes" a crescer nos anos 2000, graças ao
crescimento de uma bolha financeira ligada a esses produtos, teve fim em 2015 com o estouro desta
última. Posteriormente, durante o verão de 2017, assistiu-se a uma breve retomada do crescimento
mundial que parecia desmentir essas preocupações. Tudo parecia voltar ao normal. The show must
go on. Contudo, não é nada disso. A forma de vida capitalista-patriarcal jamais conquistou sua
eternidade sobre a terra, e o "Fim da história" é, finalmente, em todos os lugares, trinta anos após a
queda do Muro de Berlim, aquele de um planeta definitivamente doente de capitalismo.
Desde o século XIX, a modernidade capitalista-patriarcal insistiu incansavelmente, no
entanto, na inexorável racionalização da sociedade e na celebração de suas vitórias contra todas as

1
[Tradução (adaptada) de Boaventura Antunes. Disponível em: http://www.obeco-online.org/ler_marx.pdf. N.T.]
ameaças exteriores que teriam podido colocar em perigo a formidável sociedade mercantil em
nascimento. Contudo, com os limites internos (das potencialidades de valorização do capital) e
externos (ecológicos) de um sistema cujo único objetivo é transformar 100€ em 120€ vindo à tona,
a ameaça não é mais doravante exterior a essa sociedade, mas é, por todos os lados, endógena.
Longe de tomar a visão pseudo-tranquilizadora de uma "sociedade de risco" (Ulrich Beck)
gestionável, a sociedade capitalista global mostra-se cada vez mais uma sociedade autofágica, que
serra inexoravelmente o galho sobre o qual está assentada, devorando seus próprios filhos. A
sociedade capitalista global é ela mesma seu pior inimigo. As aterrorizadoras ameaças que pesam
sobre ela, agora fora de qualquer controle, provêm de seu próprio funcionamento estrutural.
Enquanto a compreensão dominante da crise da economia mundial gira em torno da
identificação de causas superficiais, pareceu-nos indispensável problematizar essa crise e insistir no
fato de que ela não é somente de superfície, mas estrutural, não apenas cíclica, mas final: não no
sentido de um desmoronamento instantâneo, mas como fim a fogo lento de um sistema
plurissecular. Isso não é a profecia de um evento futuro, mas a constatação de um processo
permanente que se tornou visível no início dos anos 70 e cujas raízes remontam à própria origem do
capitalismo e de seu funcionamento. Porque se pretende pensar o carácter estrutural dessa crise, a
sua compreensão deve ser efetuada a partir do seu núcleo, ao nível mesmo da relação social
fundamental que estrutura a sociedade capitalista-patriarcal no seu conjunto: uma crise do valor-
dissociação.
A crise do capitalismo global, que tem como base a crise da valorização induzida pela
terceira revolução industrial, assume a forma de um processo de destruição ecológica e de paranoia
social, e no plano sociológico, a da passagem de uma sociedade de integração de massa a uma
ordem social neoliberal de seleção e apartheid. Um horizonte que conduz cada vez mais, em
diversas regiões, a um terror de cortes orçamentários, de funcionários corruptos e de quadrilhas
subestatais, a uma transformação dos Estados em administradores do desastre, ao aumento das
ideologias de crise excludentes, a um imperialismo de exclusão2 e à economia de pilhagem que
inclui cada vez mais países. O patriarcado produtor de mercadorias não parou, aliás, de se
barbarizar,3 enquanto o ambiente natural está em vias de ser destruído em um ritmo assustador. A
mudança climática ou a extinção da vida são expressões disso, as mais extremas e as mais
perigosas.
Um breve quadro do mundo da forma de vida capitalista neste primeiro quarto do século
XXI é o de uma estação de incêndio insana no último verão na Amazônia, assim como na África
Central, uma Austrália que ardeu durante 240 dias consecutivos, uma Índia marcada pelos pogroms

2
Remetemos para esse tema ao livro de Robert Kurz, Impérialisme d'exclusion et état d'exception, Paris, Divergences
2018.
3
Ver Roswitha Scholz, Le Sexe du capitalisme, Albi, Éditions Crise et Critique, 2019.
anti-muçulmanos que teriam feito milhares de vítimas, uma guerra civil latente na zona saheliana se
alimentando de máfias, bandos jihadistas e conflitos em torno de terras afetadas pela desertificação,
uma multiplicação dos "Estados falidos"4 e um barril de pólvora deixado ao fogo no Oriente Médio.
Do centro às periferias e margens colapsadas do planeta-capital, o capitalismo à lá Mad Max já está
por todos os lados sob nossos olhos. Ao mesmo tempo, a era neoliberal assistiu à diminuição dos
impostos sobre os ricos para favorecer a sua capacidade de investimento na indústria financeira. A
classe que lucra [classe profitante] não utiliza o seu capital apenas para consumo - contrariamente
aos pobres ou às classes médias - mas justamente para alimentar a produção de capital fictício5
necessário à sobrevivência do próprio capitalismo. O capitalismo em que a multiplicação do capital
fictício tornou-se a indústria de base é um capitalismo estruturalmente mais desigual do que o
capitalismo fordista dos "Trinta Gloriosos". Desde então, a humanidade desintegra-se cada vez mais
em um oceano de extrema pobreza de onde emergem, em cada continente, país e cidade, as últimas
ilhotas bunkerizadas de uma riqueza obscena: crises, champanhe e banho de sangue.

Um tour grátis pelo caos da crise global

Ao se estabelecer em 2,4% em 2019, sua pior performance desde a crise financeira de 2008,
o crescimento mundial desacelerou, assim, em 90% das economias nacionais (tanto avançadas
como emergentes). A crise do coronavírus apenas agravou essa situação em que a economia
mundial já está em estado de deperecimento no plano da acumulação real, porque o processo
fundamental de crise se origina em uma insolúvel contradição inerente ao capitalismo.
Na esfera da economia da empresa, o processo de produção capitalista é "a unidade do
processo de trabalho e do processo de formação de valor".6 Não é o conteúdo material nem a
satisfação das necessidades concretas, simbólicas e sensíveis que importa, mas a realização da
finalidade de multiplicação do dinheiro, em si mesma abstrata e vazia de conteúdo. Esse movimento
quantitativo abstrato é sem fim, a valorização do capital não conhece nenhum limite. Cada ciclo de
valorização bem-sucedido comporta imediatamente a obrigação de reinvestir o capital aumentado.

4
Um estado falido representa um Estado no qual nada funciona corretamente, que não consegue assegurar suas tarefas
essenciais de "capitalista coletivo ideal". Essa falência estatal manifesta-se através de uma diversidade de sintomas,
decorrentes da ausência de respeito ao Estado de direito, através de um controle mínimo do espaço político e
econômico, ou seja, de uma incapacidade relativa de preservar a ordem, garantir a segurança da população, canalizar as
demandas e suscitar a lealdade da mesma, a fim de servir de plataforma da valorização do valor, etc., e normalizar,
portanto, as relações sociais fundadas na relação de valor-dissociação.
5
Na secção V do livro III de O Capital, Karl Marx utiliza o conceito de capital fictício para designar a moeda de
crédito, os títulos da dívida pública e as ações. Sabe-se que as mercadorias ordinárias representam um trabalho
objetivado passado, enquanto os títulos de propriedade (crédito, ações, obrigações, etc.) representam uma antecipação
do valor futuro, do futuro trabalho abstrato. O capital fictício não dispõe de dimensão sensível material, e essas
esperanças de ganhos futuros só existem em conexão com a economia material (uma conexão de natureza diferente
segundo os estágios do capitalismo).
6
Karl Marx, Le Capital, Livro I, PUF, 1993, p. 209.
Esse dinheiro é ele mesmo a expressão empírica de uma forma de riqueza abstrata historicamente
específica do capitalismo, o valor. Uma riqueza que faz abstração das qualidades concretas e da
utilidade dos produtos fabricados, que não existem senão como suportes materiais da representação
dessa riqueza abstrata. Uma riqueza que exprime uma forma de relação social na qual os indivíduos,
para produzir e viver, se relacionam uns com os outros como pessoas isoladas, graças às atividades
de produção efetuadas em um processo de abstração tanto do seu conteúdo concreto como de sua
finalidade. Somente ao se reduzirem ao seu denominador comum de ser "trabalho abstrato",
"trabalho em geral" vazio de qualquer conteúdo, é que essas atividades diversas de produção (de um
bem ou de um serviço) representam valor através das mercadorias produzidas. O trabalho abstrato
"produz" o valor. A acumulação da riqueza abstrata, ou seja, do valor, não representa outra coisa
senão o "armazenamento" de unidades de trabalho abstrato gastas no processo de produção de
mercadorias. Portanto, o importante no capitalismo é o trabalho. Tudo gira em torno dele. No
caldeirão do crescimento econômico tudo se resume a ele, o objetivo nunca é satisfazer
necessidades nem responder a alguma utilidade. Fundamentalmente, as necessidades, a utilidade e a
reprodução da vida humana, que são os suportes transitórios da própria reprodução do capital,
respondem somente a um único objetivo válido: queimar sempre mais trabalho vivo nos seus
caldeirões infernais a fim de acumular valor para reiniciar um ciclo, etc.
No movimento do capital em funcionamento (isto é, investido em um ciclo de produção),
que é aquele das diversas metamorfoses da sua substância - o trabalho abstrato -, sua alma-valor se
perpetua, desdobra-se e cresce em razão da extorsão de sobretrabalho não-pago (a exploração),
atravessando assim diferentes envelopes materiais. O trabalho abstrato torna possível que a forma-
dinheiro, como adiantamento indispensável para financiar a produção, transforme-se nos elementos
da produção (capital variável, capital fixo, etc.), tome em seguida a forma efêmera de mercadoria, e
volte, enfim, à forma de mercadoria geral do dinheiro que se pode trocar por tubos de pasta de dente
Parodontax, livros das edições Hachette, mísseis da MBDA, caixas de Playmobil da JouéClub,
relógios da LIP Industrie ou suéter e mel "100% francês" da Monteboug SA, ou seja, pelas
mercadorias à venda.
O processo de produção no âmbito da Máquina-Trabalho Global compõe-se de três
"cadeias": no seu centro, encontram-se suas linhas de produção na fábrica e na montagem, cada vez
mais automatizadas, implantadas em edifícios industriais. É aí o lugar de fabricação de bens ou
serviços que incluem todos os mecanismos úteis, organizados e coordenados: edifício industrial,
máquinas, equipamentos, manutenção, controle de qualidade, sistema inteligente de informação e
"capital humano" em ação nos postos de trabalho. Essas linhas de produção são alimentadas a
montante por matérias-primas e produtos semiacabados através de cadeias de suprimentos (ou
supply chain) de empresas extrativas ou agrícolas e de indústrias pesadas. Encontra-se aí toda uma
rede de indústrias extrativas e de tratamento de matérias-primas brutas, explorações e firmas agro-
alimentares, fornecedores, fornecedores de fornecedores e de equipamento, que comportam
igualmente suas próprias linhas de produção parciais de fabricação e montagem. Todo esse setor a
montante é um setor de preparação dos elementos para compor os "corpos da mercadoria" (Marx).
A jusante, as últimas ações são aquelas da entrega dos produtos acabados, chamada cadeia de
distribuição (logística).
A compulsão por produtividade faz parte da dinâmica imanente do conjunto desse sistema
produtivo, que é sempre a unidade do processo de trabalho e do processo de formação de valor.
Além disso, essas três cadeias (de produção, de fornecimento e de distribuição) não funcionariam
sem os investimentos públicos do Estado, que se ocupa, como "capitalista coletivo ideal", do que os
capitalistas individuais não podem eles mesmos levar a cabo. Os Estados asseguram assim certas
condições da compulsão por produtividade do sistema produtivo com infraestruturas cada vez mais
imponentes (portos, hubs de mercadorias, vias de comunicação terrestres e fluviais, ordenamento
digital dos territórios, etc.).
Contudo, essa compulsão mina estruturalmente o processo de valorização porque ela evacua
massivamente da esfera de produção a força de trabalho que cria o mais-valor. Por algum tempo
múltiplas contratendências características da época fordista (aumento do volume de produção,
conquista de novos mercados, chegada ao mercado de novos produtos, criação de uma sociedade de
consumo de massa capaz de "absorver" essa quantidade crescente de mercadorias produzidas, etc.)
permitiram ao capitalismo superar temporariamente essa contradição. No entanto, com a terceira
revolução industrial a partir do final dos anos 1960, cada novo nível superior de produtividade em
uma linha de produção ou cadeia logística precisa de cada vez menos trabalho vivo vinculado aos
diferentes postos de trabalho para uma quantidade crescente de riqueza material. A expulsão do
trabalho vivo pelos processos inovadores nas linhas é maior do que a reabsorção do trabalho vivo
nos novos campos de produção de mercadorias (a relação entre processos inovadores e mercadorias
inovadoras inverte-se). Assim, o capitalismo, ao substituir cada vez mais, em todos os setores de
exploração das empresas, o trabalho humano pela automação industrial e o resto do package de
racionalização da produtividade, mina suas próprias bases. A quantidade de força de trabalho
explorada de forma produtiva - no sentido da valorização do capital - diminui, e a produção de valor
real se contrai. O que asfixia o capitalismo é a diminuição absoluta do trabalho vivo implicado no
processo de produção imediato e a queda, em consequência, da massa de mais-valor social.
A fim de compreender os sobressaltos do mundo contemporâneo, essa teoria da crise,
desenvolvida pela corrente Wertkritik a partir do artigo seminal de Robert Kurz, publicado em 1986
no primeiro número da revista Marxistische Kritik, "A crise do valor de troca. A ciência da força
produtiva, o trabalho produtivo e a reprodução capitalista"7, está no centro do novo número da
Jaggernaut, com os textos de Nuno Machado, Claus Peter Ortlieb (grupo Exit!) e Daniel Cunha,
que abordam diferentes aspectos da questão, incluindo a dimensão do colapso ecológico.
Para a versão kurziana, encontramos diferentes desenvolvimentos desta teoria da crise em
La Substance du capital, publicado recentemente nas edições L'Échappée, notadamente no que
concerne à ausência de uma teoria consequente da crise e do colapso no marxismo tradicional,
assim como nos comentários de diferentes autores do marxismo minoritário do século XX que
tiveram o mérito de tentar elaborar uma teoria do colapso, mas que permaneceram um pouco
truncados: Rosa Luxemburg, Henryk Grossmann ou Paul Mattick.
Em 2021 será publicada, também nas edições Crise & Critique, a obra de Kurz
L'Effondrement de la modernisation, que desenvolve certos aspectos da teoria da crise. O grupo
Krisis atual apresentou a sua própria teoria, que é um pouco diferente da de Kurz e do grupo Exit !,
no livro de Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, La Grande dévalorisation, com tradução francesa em
2014 nas Post-éditions, no qual se desenvolvem especialmente os conceitos de "capitalismo
invertido" e de capital fictício como "mercadoria de segunda ordem".
Em um próximo número Jaggernaut retomará as diferenças de abordagens entre Krisis e
Exit!.8 Nós não trataremos neste presente número da crise do coronavírus como acelerador, e não
gatilho, da crise econômica, mas publicaremos no final de agosto De Virus Illustribus. Crise du
coronavirus et épuisement structurel du capitalisme, de Sandrine Aumercier, Clément Homs,
Anselm Jappe e Gabriel Zacarias.9
Em A "primeira versão" da teoria da crise em Marx: a queda da massa social de mais-valia
e o limite interno absoluto do capital, Nuno Machado mostra que a teoria da crise de Marx é
geralmente associada à lei da queda tendencial da taxa de lucro apresentada no terceiro volume de
O Capital. Segundo Marx, a composição orgânica crescente do capital - o fato de que o capital
variável cresce em termos absolutos, mas diminui relativamente devido ao crescimento mais rápido
do capital constante - traduz-se pela queda da taxa geral de lucro, que mina a reprodução do capital.
Neste artigo o autor defende que, ao contrário do foco na queda tendencial da taxa de lucro como

7
[A crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2017. N.T.]
8
O debate encontra-se em diferentes textos: Knut Hüller, Kapital als Fiktion ? Wie endloser Verteilungskampf die
Profitrate senkt und ‚Finanzkrisen‘ erzeugt, Tredition, 2015 ; Bernd Czorny (2016) : « Ernst Lohoff und der
methologische Individualismus », disponível em: < https://www.exit-online.org/druck.php?tabelle=autoren&posnr=560
> ; Ernst Lohoff, « Zwei Bücher – zwei Standpunkte. Zur Diskussion um Die große Entwertungund Geld ohne Wert »,
disponível em: < https://www.krisis.org/2017/zwei-buecherzwei-standpunkte/ > ; Thomas Meyer, « Wertkritik als
Mogelpackung », disponível em: < https://www.exit-
online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=35&posnr=594&backtext1=text1.php >. [Alguns destes textos estão
disponíveis em português no site http://obeco.planetaclix.pt/. N.T.].
9
Pode-se ler os primeiros capítulos provisórios da obra no site Palim Psao: < http://www.palim-
psao.fr/2020/04/parution-prochaine-de-virus-illustribus.crise-du-coronavirus-et-epuisement-structurel-du-capitalisme-
de-sandrine-aumercier-clement-h >. [Edição brasileira do livro completo, em versão um pouco diferente da francesa:
Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global. São Paulo: Editora Elefante, 2020. N.T.].
fenômeno que leva somente a simples reestruturações cíclicas do capital, tais como os marxistas
tradicionais as entendem geralmente: 1) existe uma "primeira versão" da teoria da crise de Marx,
esboçada sobretudo nos Grundrisse, que atribui a crise secular da economia capitalista ao declínio
absoluto do trabalho vivo e, consequentemente, à queda da massa social de mais-valor produzido;
2) apenas esta "primeira versão" da teoria da crise permite compreender de maneira coerente o
limite interno absoluto do capital.
Em Uma contradição entre matéria e forma, Claus Peter Ortlieb examina o ensaio de Robert
Kurz "A crise do valor de troca" e a crítica de Michael Heinrich a este respeito. Trata-se em
particular da produção de mais-valor relativo, como o chama Marx, ou seja, do mais-valor que o
capital pode adquirir aumentando a produtividade. Para o Marx dos Grundrisse, o constrangimento
associado à redução permanente do tempo de trabalho necessário abre uma "contradição em
processo" capaz de “fazer explodir” o modo de produção baseado no valor. Se Heinrich não é capaz
de reconhecer uma tal contradição na produção de mais-valor relativo e cita o Marx de O Capital
contra o Marx dos Grundrisse, Ortlieb prova - de uma maneira diferente da de Kurz em 1986 - que
a categoria de mais-valor relativo desenvolvido em O Capital contém em si esta contradição: desde
um certo estágio de desenvolvimento capitalista, ela já se torna necessária para obter uma massa
constante e é ainda mais importante para obter um mais-valor crescente na sociedade, e a produção
de materiais aumenta ao menos tão rápido quanto a produtividade. Mas isso é impossível a longo
prazo por causa da finitude das riquezas materiais, que são indispensáveis como suportes materiais
do valor. Essa é a razão profunda da crise da exploração capitalista e da crise ecológica, que não
pode ser resolvida no quadro da produção capitalista.
Em A natureza na "contradição em processo": uma contribuição ao debate sobre a teoria da
crise, Daniel Cunha propõe-se a desenvolver a teoria da crise elaborada por Robert Kurz e Claus P.
Ortlieb, referindo-se também a Moishe Postone, e mais particularmente ao que concerne à crise
ecológica e à sua relação com a crise da valorização. Para esta finalidade, apoiando-se nos conceitos
de Jason W. Moore, conhecido por sua obra Capitalism in the Web of Life: ecology and the
accumulation of capital [O capitalismo na teia da vida: ecologia e a acumulação de capital], o autor
procura demonstrar que o valor do capital em circulação, no seu papel de mediador da composição
orgânica do capital, deve ser levado em conta na teoria das crises. Em seguida ele procura mostrar
que a noção de "naturezas históricas" (Jason W. Moore) é mais apropriada do que a de "ruptura
metabólica” (John Bellamy Foster) para tal tarefa no quadro geral da crítica categorial do valor.
A crise fundamental da valorização não é um ponto limite que o capitalismo atingiria em
breve, ela é já o núcleo de base da lógica concreta e cotidiana do funcionamento do capitalismo. O
capital em processo desdobra sua lógica de base através da sua dinâmica imanente tornando seus
fundamentos mais frágeis.
Nos anos 1970, o boom fordista do pós-guerra, que se apoiava ainda no consumo massivo de
trabalho vivo explorado na produção industrial, esgotou-se. Assim, as duas variantes da sociedade
mercantil, a economia estatal soviética e a economia de mercado ocidental, entraram em uma fase
de estagnação e de crise. Nos Estados centrais capitalistas apareceu o fenômeno da "estagflação", a
coexistência de um crescimento em baixa e de uma inflação em alta, enquanto a força de trabalho
era dispensada de maneira massiva. Os Estados do "socialismo real", por sua vez, ficavam cada vez
mais atrasados na corrida por produtividade e não podiam mais fazer face à concorrência mundial.
Mas, nos anos 1980, as duas versões do sistema mundial de produção de mercadorias conheceram
evoluções opostas. Enquanto a crise se agravou no "bloco do Leste", as economias de mercado
ocidentais sofreram uma metamorfose que deu à acumulação de capital uma nova base provisória -
ainda que muito precária a longo prazo. A revolução neoliberal soltou as rédeas dos mercados
financeiros e os levou a substituir o capital industrial como principal suporte da acumulação
mundial de capital. Um novo tipo de capitalismo de crise apareceu, no qual a acumulação de
"capital fictício" (Marx), ou seja, a multiplicação explosiva dos créditos e dos títulos financeiros de
todos os tipos, tornou-se o verdadeiro motor da economia.
Essa metamorfose da acumulação do capital não podia, evidentemente, ser realizada no
contexto da ordem estatal do "socialismo real" e, por conseguinte, seu colapso era inevitável.10 Do
ponto de vista ideológico do liberalismo, contudo, esse colapso se apresenta como se, na luta
concorrencial entre dois sistemas completamente diferentes, uma organização social superior tenha
prevalecido. O liberalismo - como o pensamento dominante em geral - não pode imaginar uma
sociedade desenvolvida sem que ela esteja fragmentada em produtores privados separados e sem
que a riqueza seja produzida sob a forma de mercadorias; é, portanto, fundamentalmente cego ao
fato de que o socialismo real (inclusive sob a forma das modernizações retardatárias [de rattrapage]
nos países "atrasados" em relação ao núcleo original do capitalismo) e o capitalismo ocidental não
representam senão duas variantes de uma mesma forma de socialização historicamente específica.
Em vez de compreender que o desastre dos países de Leste profetizava a insustentabilidade final da
forma de socialização baseada sobre a mercadoria, o dinheiro e o trabalho abstrato, que nós temos
agora sob nossos olhos, o liberalismo, ao contrário, via nele a prova da grandeza e da racionalidade
da sua própria variante do capitalismo.
A "teoria da crise" não é válida apenas para o terreno "econômico" em sentido estrito. O
desmoronamento da sociedade mercantil não toma necessariamente a forma de um colapso das
bolsas. A socialização através do valor apresenta-se como uma ditadura da dimensão econômica

10
Robert Kurz, L’Effondrement de la modernisation. De l’écroulement du socialisme de caserne à la crise de
l’économie mondiale (1991), que sairá nas edições Crise & Critique em 2021. [Edição brasileira: O colapso da
modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
N.T.].
sobre as outras esferas da vida, mas ela se manifesta igualmente na catástrofe ecológica, na
artificialização e empobrecimento da vida cotidiana, nas derivas da subjetividade,11 etc. Se ela é
examinada, encontra-se sempre em última análise a dominação da face abstrata do trabalho na
produção. Eis o motivo da "crítica da economia política" não ser nunca uma forma de análise ao
lado de outras, mas constituir a chave para compreender a sociedade contemporânea no seu
conjunto: certamente não é - mais uma vez - porque "tudo é economia" ou porque a economia
constitui a "base", como ensinava o "materialismo histórico", mas porque o trabalho, o valor e a
dissociação constituem um verdadeiro "fato social total".
Tudo isso que está no coração do regime de acumulação desde o final dos anos 1970 não é
mais estruturalmente um regime de acumulação autossustentável de mais-valor real. Para
sobreviver, a partir do final dos anos 1980 e sob os auspícios do neoliberalismo, o capitalismo de
crise não pôde fazer outra coisa senão se reestruturar em um novo regime de acumulação apoiado
na multiplicação exponencial do capital fictício, isto é, sobre a antecipação do mais-valor produzido
no futuro. No coração deste regime de acumulação encontra-se, assim, a inversão da relação entre
capital em funcionamento e capital fictício. Dessa maneira, no seu papel de agora em diante
estrutural de transferência no presente da riqueza capitalista futura, a multiplicação do capital
fictício via indústria financeira tornou-se não mais o elemento de arranque de um ciclo de
acumulação real (como era o caso com o endividamento público keynesiano para “ignição” do
boom fordista do pós-guerra, ou para as tentativas de modernização retardatária [de rattrapage]),
mas o motor principal do mercado global do capitalismo, restruturado em um neoregime de
acumulação sem substância real. Essa produção de mais-valor futuro já "consumido" nunca será,
finalmente, concretizada, devido à contradição interna e aos níveis de produtividade muito
elevados. Contudo, e é aqui que está o ponto sensível, a multiplicação do capital fictício torna-se
não mais exatamente uma potência independente, inexiste "escapatória do capital", como podia
pensar Jacques Camatte no início desta restruturação nos anos 1970. A multiplicação do capital
fictício certamente se autonomizou da produção de valor real em proporções desiguais em toda a
história do capitalismo, mas apenas na medida em que os produtos dos mercados financeiros
permaneceram mercadorias derivadas, que pressupõem que se encontrem portadores de esperança
suficientes na economia real de exploração do trabalho vivo, aos quais as expectativas de
rendimento possam ser associadas.
A história econômica da era neoliberal desde os anos 1980 pode ser compreendida como
uma sucessão de bolhas especulativas e de ondas de dívidas que cresceram em amplitude e em
impulso. São, desde então, essas bolhas, os circuitos deficitários e o endividamento generalizado

11
Sobre este último aspecto, em francês, ver Anselm Jappe, La société autophage. Capitalisme, démesure et
autodestruction, Paris, La Découverte, 2017. [Edições portuguesa e brasileira: A sociedade autofágica – capitalismo,
desmesura e autodestruição. Lisboa: Editora Antígona, 2019; São Paulo: Editora Elefante, 2021. N.T.].
que mantêm estruturalmente um simulacro de conjuntura econômica em crescimento relativo, mas
também a representação espacial dessa própria economia, a mundialização.12 O sistema não supera
mais o estouro em cadeia das bolhas especulativas sucessivas e os riscos de endividamento que
passam de uma imensa bolha para outra ainda mais aterradora, no seio de uma tendência ao
endividamento generalizado que aumenta incansavelmente.
Mais de dez anos após a crise de 2008, o crescimento mundial apoia-se, assim, sempre sobre
o endividamento exponencial. Desde 2008, o mundo precisou, dessa maneira, emitir 15.000 bilhões
de dólares de dívida com taxa de juros negativa, ou seja, um déficit orçamentário de uma amplitude
sem precedentes em tempo de paz. Essas políticas monetárias fora das normas e os estímulos fiscais
faraônicos (na China, assim como alhures) que mantêm sob perfusão o que resta de "crescimento
mundial" acabaram por finalmente fracassar no relançamento de um regime de acumulação
autossustentável de mais-valor através da exploração de força de trabalho. O intenso retorno do
suporte dos bancos centrais, depois da sua tentativa infeliz de retirada em 2018, adquire sempre nos
mercados de bolsa o carburante necessário à multiplicação exponencial do capital fictício. A
normalização do excepcional é levada a cabo em todos os lados, e, no entanto, o crescimento
mundial não decola mais. Com uma alta do endividamento mundial, agora estimada em 322% do
PIB mundial, no terceiro trimestre de 2019 (ou seja, 253.000 bilhões de dólares13), em particular
nos Estados Unidos, na China e nos países emergentes, o espectro do crash financeiro de 2007-
2008 assombra todas as cabeças. O FMI já prevê que este endividamento alcance mais de 342% do
PIB mundial em 2020, em razão da crise do coronavírus. Como revela um estudo publicado há
pouco, doravante a dívida do setor privado não está mais ancorada sobre empréstimos imobiliários e
hipotecários, como na crise de 2008, mas sobre os empréstimos às empresas. Um relatório recente
da OCDE indica ainda que, no final do mês de dezembro de 2019, o fundo mundial das dívidas das
empresas não financeiras atingiu um nível recorde de 13.500 bilhões de dólares, ou seja, o dobro em
termos reais do nível de dezembro de 2008.14 A alta mais marcante situa-se, mais uma vez, nos
Estados Unidos, onde o FED (o Banco Central norte-americano) estima que a dívida das empresas
passou dos 3.300 bilhões de dólares, antes da crise financeira, para 6.500 bilhões de dólares no
último ano.
Nos Estados Unidos, o ciclo de crescimento super-vitaminado, que começou de forma
precoce em 2009, foi invariavelmente sustentado em 2019 pelo consumo a crédito das famílias

12
A mundialização foi um processo de alargamento das esferas de produção e de circulação, contidas anteriormente na
forma-incubadora da nação, para os vastos blocos geográficos de livre-câmbio mais ou menos integrados (UE, ALENA,
MERCOSUL, ASEAN, etc.), para as formas de parcerias bilaterias privilegiadas de nação com nação, e ainda mais sob
a forma do espaço muito interpenetrado das economias avançadas e das suas periferias emergentes.
13
Ver a nota da OCDE de 19 de fevereiro de 2020: < https://www.oecd.org/fr/presse/la-dette-obligataire-des-
entreprises-continue-de-s-accumuler.htm > e John Plender, « The seeds of the next debt crisis », Financial Times, 4 de
Março de 2020.
14
Ibid.
(cujo otimismo era alimentado pela baixa regular do desemprego), pelo investimento mantido pela
política monetária flexível, que abasteceu continuamente o sistema financeiro mundial (o que,
associado à política de taxas de juros quase nulas, praticada há muito tempo, se traduziu pela mais
importante emissão de dinheiro em cinco séculos de história do sistema capitalista15), e pelo
crescimento vertiginoso da dívida do Estado. A reforma fiscal votada sob a administração Trump,
em dezembro de 2017, cujo pivô é a baixa dos impostos para as empresas (passando de 35% para
21%), vai desencadear uma baixa das receitas fiscais de 1.500 bilhões de dólares em dez anos. Esta
reforma é acompanhada de uma incitação para as empresas americanas repatriarem suas enormes
liquidezes (entre 2.500 e 3.000 bilhões de dólares), permitindo-lhes se beneficiar de uma carga
fiscal aliviada.16 A indústria financeira, a considerar os picos atingidos pelos preços das ações antes
do coronavírus, ainda é o motor (no primeiro trimestre de 2018 representava 32 vezes os lucros das
empresas, um nível atingido somente no momento da bolha especulativa dos valores da Internet, na
virada dos anos 2000). A reforma fiscal americana, assim, apenas injeta ainda mais ar em uma bolha
especulativa já consideravelmente inflada, cuja acumulação real da mais-valor pela exploração do
trabalho vivo não é mais o alicerce, mas o apêndice. Em 2019, a parte de crescimento que se
apoiava desde há anos sobre o sobreendividamento, graças às irrisórias taxas de juros, atingiu seu
fim. A desaceleração [ralentissement] americana começou verdadeiramente em 2020. O banco
central americano injetou novamente, a cada mês, mais liquidez, da qual o seu sistema bancário tem
enorme necessidade.
A zona do euro, atingida pelo "duplo choque" da crise econômica e financeira e da crise das
dívidas soberanas, foi marcada por uma ligeira alta, a partir de 2015, e uma nítida desaceleração, a
partir de 2018, para atingir 1,2% de crescimento do PIB em 2019.17 O crescimento italiano não
atinge senão 0,1% por trimestre desde o início de 2018, e a crise do coronavírus lhe dará o golpe de
misericórdia em 2020. Paolo Gentiloni, o novo comissário europeu para a economia, falava, antes
até mesmo da crise do coronavírus, do desafio de "um crescimento que poderia ser duradouramente
fraco" e o cenário dos stress tests dos bancos se estabelece de agora em diante sobre uma recessão
de 2,7% do PIB. Doravante não são somente os países do sul da Europa que estão comprometidos,
mas o conjunto do "circuito deficitário europeu" que está em pane.18 A economia alemã, um dos
seus principais motores, está no ponto morto desde 2019, assim como a totalidade de sua região

15
O FED, ou seja, o banco central dos Estados Unidos, recomprou entre 2009 e outubro de 2014 3.500 bilhões de
dólares em "valores" financeiros, operação que efetivamente permitiu estabilizar o sistema no curto prazo.
16
Os repatriamentos compensam, em parte, as perdas das receitas fiscais do Estado americano.
17
O crescimento da zona euro foi de 1,4% em 2014, 2,1% em 2015, 1,9% em 2016, 2,5% em 2017, 1,9% em 2018.
18
Certas regiões (antes de todas as do sul da Europa) tornaram-se locais de investimentos atrativos para o capital-
dinheiro, criando assim, em contrapartida, para outras regiões (antes de todas para a Alemanha e uma parte dos seus
vizinhos), a possibilidade de exportar massivamente mercadorias-materiais. A crise de 2008 pôs fim a esta constelação,
que beneficiou os dois lados e criou uma nova situação. Ver Robert Kurz, Vies et mort du capitalisme. Chroniques de la
crise, Paris, Lignes, 2011.
periférica de subcontratação na Europa do leste, derrubada pela guerra comercial entre os Estados
Unidos e a China e pelas sérias dificuldades do mercado de automóveis - crise do diesel, transição
elétrica, etc. O Banco Central Europeu (BCE) prosseguiu sua política monetária ultra-acomodatícia.
Mario Draghi, que deixou o seu posto de presidente do BCE no final de outubro de 2019, relançou
pouco antes de sua saída o programa de compra de ativos ("quantitative easing") e baixou a taxa de
depósitos para -0,5% (ela será reduzida para -0,6 depois do episódio do coronavírus).
Nas periferias o cenário é idêntico. Em um estudo publicado em dezembro de 2019,
intitulado "As ondas mundiais da dívida, suas causas e suas consequências", o Banco Mundial alerta
sobre o risco ligado ao endividamento massivo dos países pobres e emergentes (China incluída)
durante a década de 2010, o que já não é mais um fenômeno regional, mas sincrônico ao nível
mundial.19 A dívida dos países pobres e emergentes atingiu 168% de seu PIB no final de 2018, um
"recorde histórico", em contraste com 114%, oito anos antes. Mesmo que esta alta deva-se em
grande parte à China, ela concerne também outros países em desenvolvimento. O nível de
endividamento desses países, que, apesar de tudo, estabilizou-se no decorrer dos dois últimos anos,
atingiu o nível recorde de 107% de seu PIBno final de 2018.20 A gigantesca emissão monetária do
banco central americano pós-2008, que tinha como objetivo ultrapassar as consequências do estouro
da bolha imobiliária, favoreceu a formação de novas bolhas de endividamento nos países
emergentes: perante taxas de juros negativas nos centros do sistema mundial, o capital convergiu,
com efeito, para a semiperiferia à procura de rendimentos mais elevados. O crescimento relativo
dessa semiperiferia, longe de se tornar a "locomotiva da economia mundial", como muitos
comentadores acreditaram, é completamente permeado por esse crescimento massivo do
endividamento. Somente depois de o FED interromper o quantitative easing é que as bolhas nos
países emergentes ficaram sem ar, à medida que os fluxos financeiros mundiais retornavam mais
uma vez aos centros e que a acentuada alta do dólar pesava cada vez mais os serviços das dívidas
contraídas em dólares. A África subsaariana está em pane de acumulação e o preço do petróleo dita
ainda seu comportamento de crescimento, apesar do desenvolvimento do endividamento externo.
Nesse contexto, depois da época neoliberal, a nova configuração geoeconômica do
capitalismo é aquela do retorno da fronteira. Por todos os lados observa-se o retorno forçado à
nação, aos regionalismos, ao protecionismo, à reafirmação das ideologias de crise de exclusão (o
racismo, o antissemitismo, etc.), à constituição de territórios-fortaleza marcados por um
imperialismo de exclusão e à hipóstase das identidades culturais e religiosas (inclusive na esquerda
pós-moderna em curso de decomposição). As próprias relações interestatais são marcadas pela pane
19
Le Monde, 20 de dezembro de 2019.
20
Os países pobres e emergentes afastam-se dos grandes bancos internacionais, enfraquecidos pela crise de 2008, para
pedir empréstimos a bancos regionais e mercados de capitais. Os bancos chineses estiveram na origem de dois terços
dos empréstimos entre países emergentes entre 2013 e 2017, e contribuiram, na quase totalidade, para a duplicação dos
empréstimos contraídos pelas economias da África subsariana no mesmo período.
de instituições multilaterais como a UE, a OMC, as cúpulas climáticas, a retirada dos Estados
Unidos da Parceria Transpacífica (TPP), a ameaça, que acabou por ser abandonada, de uma retirada
dos Estados Unidos da zona NAFTA, etc. Todos os Estados-nações capitalistas estão agora de facas
afiadas diante das últimas migalhas do bolo. No caos da crise no seio das periferias, o imperialismo
de exclusão perdeu todo o controle para se assegurar do Oriente Médio bem como da África
subsaariana, onde vários Estados estão agora falidos, isto é, onde as condições de possibilidade
gerais de qualquer regime de acumulação volatilizaram-se. E a superpotência americana, ameaçada
pelo fim da sua própria hegemonia, já não quer mais desempenhar o papel de imperialista coletivo
ideal de um mundo agora multipolar e repleto de territórios devastados. Sob Donald Trump os
Estados Unidos, assim como outros estados, querem o fim do "multilateralismo" e da integração
mundial para substitui-los pela lei do mais forte na luta perpétua entre os Estados-nações.
Estimando que os Estados Unidos estariam perdendo no que diz respeito às trocas
comerciais,21 em seguida às suas promessas de campanha de 2016, o presidente americano lançou
uma série de medidas para taxar as importações no seu país e buscou contornar as instituições
multilaterais capitalistas que "regulam" a mundialização a favor do centro. Essa guerra comercial
tornou-se aberta a partir de 18 de março de 2018 com a China, depois com a Europa, a Rússia, o
México e o Canadá. Apesar das listas de "famílias de produtos" e as "réplicas comerciais”, essa
guerra comercial permanece na ordem das ninharias no que concerne à relação com a Europa
quando se olha para os volumes de trocas comerciais (as trocas transatlânticas estão na ordem dos
1.300 biliões de dólares por ano). Em 10 de dezembro de 2019 o tratado de livre-comércio entre os
Estados Unidos, o México e o Canadá, batizado de "USMCA" ("ACEUM" em francês), já pôs fim à
guerra comercial entre esses três países. Em contrapartida, a guerra comercial entre os Estados
Unidos e a China está bastante intensificada e ainda prossegue.22 Esse retorno das guerras
comerciais interestatais ilustra uma dimensão da viragem neonacionalista generalizada de vários
Estados capitalistas, desde a crise mundial de 2008, e a desaceleração sincrônica do crescimento

21
Notadamente com a China - a esse respeito, Trump evoca o déficit comercial das trocas de bens com Pequim (375,2
bilhões em 2017) e o roubo de propriedade intelectual de várias empresas americanas (que ele estima ser de 300
bilhões).
22
Em 20 de julho de 2018, Trump tinha ameaçado sobretaxar a quase totalidade das importações chinesas, ou seja, um
valor de 500 bilhões de dólares (as importações de produtos chineses para os Estados Unidos elevou-se a 505,6 bilhões
de dólares em 2017). Contudo, em setembro de 2018, 50 bilhões de importações chinesas foram taxadas em 25% e
outros 200 bilhões de importações foram taxadas em 10% até o dia 1º de janeiro de 2019, depois em 25% a partir de
maio de 2019. No dia 1º de setembro de 2019, uma taxa aduaneira de 15% foi aplicada a 125 bilhões de dólares de
importações chinesas suplementares. No dia 13 de dezembro de 2019, os dois países chegam a um acordo prévio e
Trump suspendeu uma nova rodada de taxas aduaneiras sobre cerca de 160 bilhões de dólares de bens chineses, que
deveria entrar em vigor no dia 15 de dezembro. Contudo, 370 bilhões de dólares de importações chinesas continuaram
ainda a ser sobretaxadas (em 25% sobre cerca de 250 bilhões de dólares, e em 15% sobre cerca de 120 bilhões de
dólares). Os Estados Unidos prometeram baixar as taxas de 15% a 7,5% sobre 120 bilhões de dólares em produtos. No
dia 15 de janeiro de 2020, foi assinado o acordo comercial da "fase 1". Segundo o Fundo Monetário Internacional, essas
tensões e seus efeitos secundários deveriam resultar na evaporação de 700 bilhões de dólares do PIB mundial, ou seja, o
equivalente à economia suíça, agora em 2020 (com a crise do coronavírus, o montante total da fatura se elevaria a 320
bilhões de dólares, segundo um estudo de Euler Hermes).
mundial.

A nova conflitualidade na era do capitalismo de crise

Esta situação de caos também provocou, certamente, resistências. A lista dos países onde
desde 2019 ocorreram protestos de rua em massa contra os poderes estabelecidos é bastante
impressionante: Chile, Colômbia e Equador, Argélia e Sudão, França, Líbano, Iraque, Irã, Hong-
Kong, para mencionar apenas os casos mais explícitos. A "quarta onda do feminismo" da América
Latina, cuja origem pode-se situar em 2011, em seguida ao assassinato da poeta mexicana Susana
Chávez, autora da expressão ni una mujer menos, ni una muerta más ("nem uma mulher a menos,
nem uma morta a mais"), igualmente cristalizou manifestações importantes na Argentina, no Chile,
no México, na Espanha, sem falar da Índia. Em certos países do centro do capitalismo, a onda do
"Me too" espalhou-se massivamente. A emergência do feminismo como movimento central entre os
novos movimentos sociais modernos na América Latina constitui em si um traço principal da nova
conflitualidade. Na França, é preciso também pensar nos “gillets jaunes” em novembro-dezembro
de 2018, um movimento que se prolongou por vários meses, e nos movimentos sociais contra a
"reforma" previdenciária, durante o inverno de 2019-2020, e na função pública hospitalar para obter
mais meios e efetivos.
Seria tentador, mas pouco prudente, somá-los e ver neles uma espécie de revolução mundial
em ato, com insurreições que, sob diferentes cores locais, iriam todas na mesma direção. Essa foi a
reação - que iria se revelar ilusória - de numerosos observadores em 2011 perante o aparecimento
conjunto das "primaveras árabes", do movimento "Occupy Wall Street" nos Estados Unidos e dos
"Indignados" na Espanha, que foram emulados em vários países. Essas diversas formas de críticas,
de protestos e de resistências nascem em contextos diferentes e são, na realidade, largamente
fragmentadas.
É por isso que algumas partes da esquerda tradicional tentaram recentemente reabilitar a
"classe operária" como categoria de síntese, e pôde-se falar de uma "nova luta de classes" (Slavoj
Žižek). Mas mesmo que a vontade de superar a fragmentação e de criar um novo movimento
transnacional anticapitalista-antipatriarcal seja pertinente, a categoria "classe" não tem a eficiência
que se gostaria de lhe atribuir. A categoria de classe operária é utilizada como uma "palavra
plástica" indefinida, quando não é mobilizada em razão de um simples reflexo identitário-afetivo,
como para uma grande parte do discurso de esquerda que deixou de lado a crítica da economia
política.23 Essas diferentes formas de críticas, de protestos e de resistências não estão senão

23
Ver Ernst Lohoff, « La classe, mot plastique », Jungle World, 7/2020: < http://www.palim-psao.fr/2020/04/la-classe-
mot-plastique-par-ernst-lohoff-5.html >; Norbert Trenkle, « Lutte sans classes. Pourquoi le prolétariat ne ressuscite pas
artificialmente ligadas umas às outras. O que as liga não é o fato de serem - aparentemente sem o
saber - todas produto de fragmentos de um sujeito-classe mundial, que bastaria reunir. Isso
implicaria um meta-interesse comum e positivo, e uma espécie de unidade de classe "em si" que
simplesmente não existe. Além disso, não somente a oposição do capital e do trabalho está longe de
ser uma contradição antagonista que demolirá necessariamente o capitalismo, tal como o jovem
Marx e Engels descreveram no Manifesto e como foi repetido sem cessar desde então, mas se trata
mais propriamente de um conflito de interesses imanente ao quadro social partilhado, que está
baseado na produção geral de mercadorias e no qual a riqueza social aparece sob a forma abstrata
do valor. O paradigma do antagonismo de classe não oferece, apenas por si próprio, uma explicação
adequada para apreender a multiplicidade de desenvolvimentos atuais da conflitualidade
generalizada no seio do capitalismo de crise. A moda da "interseccionalidade" (Kimberle Crenshaw,
etc.) apenas infunde o conceito superficial de "classe" extraído do marxismo tradicional, agregando-
lhe os conceitos de "gênero" e "raça", tirados das correntes culturalistas do pensamento pós-
moderno.24
O que liga de maneira subjacente as diferentes abordagens da crítica e do protesto reside em
um ponto de referência negativo: a essência social (negativa e a ultrapassar) da sociedade presente.
Essas formas de resistência são todas desencadeadas de maneiras diferentes pelas linhas de conflito
abertas e postas em movimento pelas correntes de convecção subjacentes que pertencem a esta
estrutura social fundamental que é a dinâmica objetiva e destrutiva da produção de riqueza abstrata
e a relação assimétrica entre os sexos a que está intrinsecamente vinculada – isto é, a relação de
valor-dissociação, e mais ainda pela crise global desta essência social. Esse vínculo permanece,
contudo, invisível lá onde não existe um conceito crítico dessa forma androcêntrica de produção de
riqueza abstrata historicamente específica - o conceito de valor-dissociação – ou, dito de outro
modo, a Economia-patriarcado, e a necessária teoria da sua crise fundamental, pois os efeitos desta
dinâmica de crise são muito distintos no plano empírico em diferentes domínios e dimensões da
sociedade global. Com efeito, cada um dos movimentos de protesto atuais nasce de um contexto
diferente e exprime incontáveis linhas de conflito em cada situação específicas da crise global da
relação de valor-dissociação. A totalidade social constituída por essa essência não é, todavia,
unidimensional, e não devora tudo sob seu princípio imperioso, e ela dá lugar a realidades sociais
que é necessário compreender de maneira específica.
Não se trata, no entanto, de desqualificar de forma absoluta as lutas imanentes que
permitiram a diminuição do tempo de trabalho, as lutas pela redistribuição do valor, pelo acesso aos
"direitos sociais" e, de maneira geral, as lutas que visam à melhoria da vida dos trabalhadores no

dans le procès capitaliste de crise », Jaggernaut. Crise et critique de la société capitaliste-patriarcale, nº 1. Crise &
Critique, 2019 [Tradução para o português disponível em: https://www.krisis.org/2015/luta-sem-classes/. N.T.].
24
Ver Roswitha Scholz, Le Sexe du capitalisme, op. cit.
capitalismo. Além disso, historicamente, em certos contextos culturais, na fronteira entre os mundos
proto-moderno e moderno, os aumentos de salário faziam com que os trabalhadores decidissem
trabalhar menos horas, ou investir seu dinheiro em ações coletivas, e não no aumento do consumo
de mercadorias. Enquanto o capitalismo existe, é preciso (sobre)viver, e a diminuição do sofrimento
em um tal contexto não é um pequeno avanço. Sendo este o caso, deve-se constatar que tais lutas
imanentes, redistribucionistas ou integracionistas (através da obtenção de "direitos" e dos últimos
trapos da forma do sujeito moderno), apesar de sua virtude temporária, são impotentes para superar
o desastre capitalista; elas não fazem outra coisa senão se inserir na dinâmica de crise. Elas não
abolem o sofrimento da reificação, de se ser somente um suporte intercambiável da execução da
relação-capital ou de se encarnar o lado obscuro dissociado e designado como "feminino", mas
reconduzem-no, finalmente, de maneira desesperante.
Em vários desses movimentos sociais essa fragmentação é suplantada ainda por outra
solidariedade social ilusória, que é cada vez mais considerada em função das categorias identitárias
tais como a etnia, a cultura ou a religião (pensa-se aqui nos estudos pós-coloniais, na corrente
"decolonial" e nas identity politics). Em todo o mundo a questão "Quem somos nós?" torna-se cada
vez mais importante. Isso encoraja não apenas as ideias e os populistas de extrema-direita, mas
conduz também a que correntes ditas progressistas entrem no trem da identidade para agregar um
eleitorado fragmentado - o populismo de esquerda ou a geração identitária de certo "antirracismo
político" que faz da cultura e da religião a nova "comunidade imaginária" dos ostracizados. Nessas
novas conflitualidades, nos centros como nas periferias do capitalismo, não é mais necessariamente
a Nação que está no coração do culturalismo contemporâneo. A passagem da comunidade
imaginária da Nação às comunidades imaginárias religiosas - o religionismo - e culturais, na
produção de identidades coletivas, marca uma nova etapa na crise da sociedade do valor e na crise
referente ao sujeito moderno.25 A partir dos anos 2000 uma parte desta esquerda culturalista, sob o
pano de fundo do esgotamento do nacionalismo laico, aceitou, por fim, a guerra dos islamistas
contra os judeus de Israel e começou a defender essas comunidades religiosas imaginárias, como já
tinha podido fazer Michel Foucault no seu apoio à revolução islamista do Irã em 1979.
Contudo, para além dessa fragmentação das causas e dos contextos, para uma ampla parte
desses movimentos sociais, no Norte assim como nos Suis, os elementos comuns são bastante
reconhecíveis. O primeiro traço que os une é a rejeição das "elites" políticas, dos governos locais,
quer sejam eleitos, como no Chile ou na França, quer abertamente ditatoriais, como no Sudão ou no
Irã. A principal censura dirigida às elites é sua corrupção: o poder político e o poder econômico
misturam-se para formar um mundo fechado, que se apodera dos recursos dos próprios países,

25
Sobre este tema, as edições Crise & Critique irão publicar no mês de janeiro de 2021 a compilação do grupo Krisis,
L’Exhumation des dieux. Religionisme islamique et fondamentalisme des « valeurs occidentales » à l’ère du capitalisme
de crise.
deixando uma grande parte da população em uma pobreza injustificável, se forem consideradas as
riquezas do país; o desemprego em massa dos jovens é geralmente o aspecto mais visível.
Certamente que esta acusação não traz em si nada de particularmente novo. O que é novo é que com
frequência as diferentes facções do poder, aparentemente opostas entre si (confissões religiosas no
Iraque ou no Líbano; direita e esquerda política na França ou na América Latina; reformadores e
militares na Argélia etc.), são rejeitadas em bloco e o seu antagonismo é agora considerado como
uma ficção que esconde a partilha do bolo entre colegas. "Que se vayan todos" é, com efeito, um
slogan que resume muitas reivindicações.
Isso quer dizer que esses protestos não são lançados por um grande partido ou sindicato, ou
qualquer outra associação forte - pelo contrário, toda organização já existente antes do início da luta
é vista com desconfiança e frequentemente paga caro pelas tentativas de tirar proveito da situação.
Assim, a maior parte dos “gillets jaunes” na França recusou, sem exceção, todos os partidos, da
extrema-direita à extrema-esquerda, passando pelo centro, que tentaram no início participar nas
manifestações com seus slogans, símbolos e representantes.26 Os xiitas do Iraque repudiaram os
seus líderes tradicionais quando estes pactuaram com o governo central. Os manifestantes não
caminham com as imagens dos seus chefes, nem fundam novas organizações. Há antes de mais
nada uma rejeição a qualquer figura de líder, até mesmo de um simples porta-voz. Em geral,
nenhuma negociação com o poder é considerada, e poucas reivindicações são levadas adiante: pede-
se, em primeiro lugar, que o poder em operação desapareça, porque se julga que ele caiu
completamente em descrédito e que ele não é, portanto, reformável.
Tudo isto tem um ar bastante "libertário" e parece quase constituir, através da rejeição de
representações, líderes e partidos, uma vingança do anarquismo em face às correntes leninistas, que
dominaram durante muito tempo os movimentos de contestação. Alguns atribuem um enorme papel
nessa evolução às novas tecnologias de comunicação, como, por exemplo, o celular, o Facebook ou
o Twitter. Essas tecnologias favoreceriam as estruturas horizontais, as comunicações entre todos os
participantes, os encontros marcados de última da hora. É, contudo, pouco provável que apenas
essas ferramentas tecnológicas possam explicar tais humores anti-hierárquicos.
Afirma-se amiúde que essas revoltas são todas dirigidas contra o "neoliberalismo",
entendido como dominação de uma elite transnacional proveniente do sistema financeiro que opera
um desmantelamento particularmente agressivo do que resta dos serviços públicos e dos direitos
dos trabalhadores, que são submetidos a um regime de precarização cada vez maior. No entanto,
aqui também reside o problema. Não é toda revolta que é automaticamente boa, é preciso observá-
las de perto em cada situação. Suas formas - sem chefe, horizontais - não estão necessariamente
ligadas aos seus conteúdos. É evidente que esses movimentos, na sua diversidade, reagem à crise

26
O que não impede certos "porta-vozes" de se afiliarem ao Rassemblement National, ou a Ruffin de estar envolvido.
global do capitalismo. Pode-se perguntar, porém, em nome de quê eles reagem a esta crise. Esta
crise pode produzir tanto potenciais de emancipação social quanto reações populistas,
conservadoras-identitárias ou religionistas, e por vezes essas tendências podem se misturar e se
entrelaçar.
No que diz respeito a esta abordagem difícil, mas que promete pôr em causa as relações
sociais fundamentais nas quais existimos, é muito mais fácil se limitar a personalizar as
responsabilidades do desastre global e culpar "as elites", para tratá-las como as únicas responsáveis.
O slogan do Occupy Wall Street, "Somos os 99%", era mais do que contestável; ele cria uma
oposição entre o "bom" povo, que não participa do mercado do capitalismo senão sob
constrangimento ou por ser manipulado, e uma pequena camada de "parasitas" - localizável,
sobretudo, na esfera financeira - que devasta o mundo para satisfazer sua avidez. Bastaria caçar esse
"um por cento" para que tudo ficasse bem.
Ainda que não nos deixemos deslumbrar por tudo o que se move na esfera social, não se
pode fechar os olhos em face a um possível deslizamento desse populismo "de esquerda" (que
encontra-se explicitamente reivindicado por autores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, o
jornal Le Monde Diplomatique e movimentos como Podemos na Espanha ou La France Insoumise
na França) para um populismo "de direita" e de extrema-direita (o que é, aliás, o cálculo de um
Steve Banon, que funda suas esperanças no fato de que uma parte dos simpatizantes de Bernie
Sanders possam se transferir para Trump em novembro de 2020). O que une as diferentes formas de
populismo, de tal maneira que se possa falar agora de um populismo produtivista transversal (ver
Jaggernaut nº1), é sobretudo uma crítica social que se limita apenas à esfera das finanças, dos
bancos e da especulação. O resto da sociedade capitalista é geralmente poupado de qualquer crítica,
ou explicitamente santificado nas figuras do "trabalhador honesto" e do "pequeno poupador". A
campanha recente de uma das coqueluches de uma parte da "esquerda radical" francesa, Bernie
Sanders nos Estados Unidos, concentrada na denúncia de uma "economia fraudada" pelas finanças,
é característica desta forma de altercapitalismo regressivo. Tal visão do capitalismo, mesmo quando
se acredita sinceramente de "esquerda", é um anticapitalismo truncado que mostra mais do que uma
coincidência objetiva com os discursos históricos da extrema-direita alemã que opunha o bom
"capital criativo" ao mau “capital de rapina", para em seguida identificar este último ao "capital
financeiro judeu".
Numerosos grupos da esquerda radical não levam a questão do conspiracionismo e do
antissemitismo a sério, quando eles não chegam mesmo a deixá-la de lado sob o pretexto de que
atrás destas ideologias encontrar-se-ia um protesto legítimo dos dominados, que seria preciso
apenas "reorientar" no bom sentido. O antissemitismo é, apesar disso, um risco inerente ao discurso
populista, e constitui sempre uma inclinação do anticapitalismo truncado da esquerda antineoliberal
ou identitário-culturalista, como se viu nos últimos anos em inúmeras ocasiões (desde apoios dados
à Dieudonné nos anos 2000, à Jean Bricmont e Houria Bouteldja, passando pelos "amigos de
esquerda" de Étienne Chouard). E mesmo onde esse não é o caso, com o populismo está-se sempre
na presença de um discurso que não se propõe a mudar o capitalismo na sua essência, mas que o
identifica primeiro somente à sua forma mais extrema, o neoliberalismo, para em seguida sonhar
com uma simples gestão melhorada, sem corrupção e com mais justiça social na sua versão de
esquerda, ou pretensamente sem corrupção e sem imigrantes, na sua versão de direita. A mesma
rejeição da "globalização" mostra estes dois lados: ela pode ser rejeição do capital globalizado, mas
também rejeição das migrações e desejo de recuperar uma (ilusória) "soberania nacional". Aliás,
esta última reivindicação une atualmente uma parte da esquerda e da extrema-direita, pelo menos na
Europa.

Gillets jaunes, a obediência está morta

Aqui está a razão pela qual é preciso considerar cada movimento social em seus detalhes, em
vez de dar a ele um cheque em branco. Os gillets jaunes na França são um exemplo nesse sentido.
O pensamento crítico não pode evidentemente se abster de exprimir reflexões críticas em
face ao que se apresenta como uma retomada massiva do conflito social na França desde o final de
2018, notadamente sob a forma do movimento dos gillets jaunes, em um primeiro momento, e de
greves e manifestações contra a reforma da previdência a seguir (mesmo que alguns, no campo da
"esquerda radical", sempre à procura de um sujeito revolucionário pronto a traduzir suas teorias em
realidade, não tenham perdido a ocasião de atacar a crítica do valor para lhe atribuir, mais uma vez,
uma atitude de "torre de marfim" que permaneceria sempre à distância das lutas "reais").
A dificuldade para avaliar esse gênero de movimentos do ponto de vista da emancipação
social é, não obstante, bem objetiva; o fato de adular cada forma de movimento social e de se
encontrar com os piores populistas constitui claramente, aos olhos da crítica do valor-dissociação
(de modo bem diferente da atitude de numerosos esquerdistas), um absurdo a evitar de maneira
absoluta, mas sem cair, em contrapartida, em uma atitude desdenhosa que nunca encontraria
pessoas na rua tão perfeitas como a teoria gostaria de encontrar. Se há pretensão de salvar a
possibilidade de emancipação social, é preciso, sem cessar, se proteger para não cair nas armadilhas
do ativismo e do taticismo, continuando, dessa maneira, prisioneiro da sociedade que se quer
transformar. Não é a falta de vontade de ação que bloqueia toda a transformação social consequente,
mas o fato de que as práticas, mesmo quando elas se pretendem transformadoras, não fazem mais
do que reproduzir as relações sociais existentes, e ainda o fato de que as teorias, construídas com as
melhores das intenções críticas, não fazem mais do que reproduzir o fechamento das práticas sobre
si mesmas.
O que está em jogo aqui é o papel das lutas "imanentes". Elas não constituem um problema
para os marxistas tradicionais, nem para as feministas do trabalho e da integração das mulheres
menorizadas na forma-sujeito moderna masculina, nem, ainda, para a maior parte dos esquerdistas,
segundo os quais se luta antes de tudo pelo salário, o pacote completo dos "direitos" do sujeito
moderno, o "salário familiar" para o "trabalhado doméstico", etc., para chegar, em seguida, por
etapas, à luta revolucionária. Esta estratégia quase nunca funcionou, mas a esquerda agarra-se a ela
na falta de uma melhor. Esse programa dos "pequenos passos" não terá sido, afinal, senão uma
forma de ideologia do progresso.
Uma visão mais radical sempre denunciou o fato de que a quase totalidade das lutas sociais
sob o capitalismo não era de lutas anticapitalistas nem antipatriarcais, mas visava somente uma
distribuição mais justa de categorias como dinheiro, valor, trabalho, ou os direitos do sujeito
moderno, que, enquanto tais, estavam já admitidos como "naturais", e colocavam problemas. Era já
este o caso para uma parte do movimento anarquista: como conciliar a oposição ao próprio
princípio do salário com a defesa do salário, a recusa do Estado com a defesa do hospital público
ameaçado de privatização, a crítica da escola com o protesto contra o seu desmantelamento, o ódio
à polícia com a demanda de que ela se empenhe mais contra os feminicídios, a crítica do trabalho
com a luta contra as demissões de trabalhadores, a espera pelo próximo colapso do capitalismo com
a defesa de uma aposentadoria longeva... Não há o risco, então, de reforçar a ideia de que as
categorias de base do capitalismo sejam o único horizonte possível da vida?
Certamente essas contradições são fáceis de compreender: o direito ao aborto, por exemplo,
ou o acesso gratuito aos cuidados, mesmo se eles se inscrevem na imanência da sociedade
capitalista, devem ser defendidos. Mas precisamente em um contexto estatal-capitalista, tais direitos
formais serão sempre mediados por categorias políticas e econômicas que os tornam precários,
instáveis, e que os modelam em função de exigências da reprodução-fetiche do conjunto da
sociedade capitalista-patriarcal. Apenas a superação efetiva do patriarcado produtor de mercadorias
tornaria possível a livre e duradoura disposição de cada uma e de cada um de seu próprio corpo, e o
acesso a cuidados de qualidade, definidos como fim em si. Mas isso pressupõe a abolição do direito
formal burguês, e das categorias de base do capitalismo.
Os gillets jaunes apareceram em novembro de 2018 de maneira absolutamente inesperada,
inicialmente para protestar contra uma alta do preço da gasolina. À parte das manifestações, as
ações mais notáveis foram o bloqueio de “rotatórias” fora das cidades: esse movimento
caracterizava-se por sua adesão no meio rural. Ele se apresentou como um protesto da "França
esquecida", das pessoas modestas cujos poderes não se têm nunca em conta, exceto para aumentar
seus impostos. A história dos gillets jaunes, e das suas diferentes tendências, seria longa para
relatar; limitamo-nos aqui a mencionar certos traços que os distinguem de todos os movimentos
anteriores na França. Em primeiro lugar, o caráter muito popular e "interclassista"; encontra-se entre
eles uma grande diversidade de pessoas e de idades: os jovens são relativamente pouco numerosos,
enquanto um número de pessoas de meia idade, em geral com um trabalho e uma família, é elevado,
tanto quanto o número de aposentados. Muitos entre eles nunca haviam se manifestado na sua vida,
nem militado. Em seguida, nota-se a recusa muito nítida de qualquer estrutura além das
assembleias; aqueles que tentaram se posicionar como porta-vozes foram desacreditados bastante
rapidamente; os representantes dos partidos, que queriam expressar a sua solidariedade, foram
ignorados. Sem relações com o poder: quando o primeiro-ministro pediu para se encontrar com uma
delegação dos gillets jaunes, quase ninguém apareceu, e quando o presidente Macron, após o
primeiro mês de manifestações, anunciou medidas econômicas que ele julgava capazes de satisfazer
os manifestantes, elas foram acolhidas com indiferença pelo menos por uma parte dos participantes.
Nenhuma orientação política clara prevaleceu, e se uma sensibilidade de esquerda parece
majoritária, sobretudo depois do arrefecimento do movimento na sequência do Natal de 2018,
encontram-se também pessoas de extrema-direita, soberanistas e conspiracionistas, inclusive à
esquerda e à extrema-esquerda. Curiosamente, todo mundo se tolera, e quase ninguém porta
símbolos de organizações nas manifestações. Falou-se muito da "violência" dos gillets jaunes (que,
de qualquer maneira, era bem menor do que a brutalidade contínua da polícia, que chocou até
mesmo numerosos observadores burgueses); o que é notável é o fato de que a oposição clássica
entre uma minoria violenta e "má" e uma grande maioria pacífica e "boa" - uma oposição de que o
Estado se serviu tantas vezes no passado para dividir e aterrorizar os contestadores, isolando os
"radicais" e pressionando os demais de volta para casa - já não funciona. A maior parte dos gillets
jaunes, com toda sua miscelânea de idades e situações, mostrou-se bastante determinada diante da
polícia e não desacreditou os que passaram aos atos. Essas pessoas, inicialmente muito "normais",
perderam pouco a pouco o seu respeito pela lei e pelo Estado, tradicionalmente tão forte na França.
Abrir as cancelas dos pedágios das rodovias, por exemplo, tornou-se uma prática importante. A
violência da repressão participou, entretanto, do refluxo do número de gillets jaunes na rua.
Em dezembro de 2019, o que restava do movimento misturou-se com as manifestações
sindicais contra a "reforma" da previdência, apesar de certa desconfiança recíproca. Distinguiam-se
de longe pelo seu ar bem mais ativo do que os grupos sindicais, mas também pelas bandeiras
francesas que muitos deles exibiam. Desde há muito tempo, somente a direita ou a esquerda ligada a
Melanchon as ostentam – eis o índice de uma grande confusão ideológica.
O número de participantes nas ações caiu bastante, sem dúvida. Mas outros grupos sociais
entraram em oposições duras e duradouras: os trabalhadores das ferrovias e do metrô de Paris, que
fizeram greve durante um mês e meio; os funcionários da saúde que reivindicam há mais de um
ano; os professores de liceu que se recusam a aplicar as novas modalidades de bacharelado; os
advogados que não participam mais dos processos... Enquanto os protestos contra a reforma da
previdência não conseguiram fazer o governo recuar com suas greves e manifestações, que seguem
velhos modelos baseados na participação das grandes massas, sem realmente conseguir obter
sucesso, são agora minorias bem decididas ("radicalizadas") que se instalam em uma atitude de
oposição durável e que muda facilmente de objeto, porque exprimem uma recusa generalizada do
funcionamento desta sociedade. A oposição obstinada de uma minoria, que é no entanto apoiada por
uma parte considerável da população, parece ser o traço comum que une os movimentos através do
mundo. Pode-se pensar na frase de Guy Debord: "Eis como se acendeu lentamente uma nova época
de incêndios, da qual ninguém vivo neste momento verá o fim: a obediência está morta". A época
em que os reformistas não podem mais ser ouvidos é uma época em que o capitalismo não é mais
reformável.
Quanto às lutas atuais na França, se é forçado a constatar uma identificação persistente, e
frequentemente orgulhosa, da grande maioria das pessoas com o trabalho e o seu mundo. Mas nem
tudo está perdido. Sem retomar a velha distinção lukácsiana entre "classe em si" e "classe para si"
proletárias, nem especular sobre os desejos implícitos e escondidos das populações, há sem dúvida
uma constatação a fazer: os milhões de pessoas que defendem o regime de previdência considerado
como relativamente "favorável aos trabalhadores" comparado com os de outros países, sobretudo no
que diz respeito à idade de aposentadoria, mostram-se de fato convencidos de que não é necessário
“perder toda sua vida para ganhá-la". Se eles aceitam trabalhar, e alegem [prétendent] até mesmo
amar seu trabalho, é preciso, no entanto, que exista um limite. O trabalho não é realização
[épanouissement], e a verdadeira vida começa quando não se trabalha. Este distanciamento em
relação ao trabalho na França é encorajador se for comparado, por exemplo, com a Alemanha, onde
a volta da idade para aposentaria definida em 67 anos passou sem grandes protestos da população,
de forma que agora o banco central e os liberais, encorajados, pedem uma elevação futura para 70
anos. A grande maioria dos alemães, contudo, escolhendo uma identificação masoquista com o
agressor, levanta e se escarnece daqueles que, como os franceses ou os gregos, podem às vezes se
aposentar aos 60 anos. Mesmo a opinião pública de esquerda muitas vezes só vê nisso uma espécie
de preguiça, e deserção da frente de batalha. Em vez de demandar a aplicação desses princípios nos
seus próprios países, querem os mesmos maus-tratos para todos. Portanto, a defesa tenaz dos
"regimes especiais" na França testemunha, pelo menos em retrospecto, certa "crítica do trabalho". A
luta por condições de vida decentes para a idade avançada também carece de perspectiva se ela for
conduzida do ponto de vista do trabalho. É um segredo de polichinelo que qualquer pessoa com
menos de 30 anos hoje em dia não receberá uma pensão aos 80 anos que lhe permita viver.
Do "Que fazer?" ao "O que fazer?"

Enquanto a cada dia novos incêndios ardem, novas regressões se anunciam, nossos flautistas
profissionais entoam o mesmo refrão: crescimento, crescimento, crescimento! "Nós somos o povo
que trabalha, que ama o trabalho e que encontra a sua dignidade no trabalho" (Bruno Lemaire,
ministro da economia francês27). Quanto à posição das "forças de esquerda" nesta situação, quase
vinte anos depois da publicação de Cauchemar de Don Quichotte28 por Matthieu Amiech e Julien
Mattern, é preciso ainda constatar "a insuficiência e impotência dos discursos críticos da maioria
daqueles que se dizem hostis ao curso atual das coisas".
Se hoje em dia o Partido Socialista, que tinha se deslocado nos últimos vinte anos para a
centro-direita do espectro político, foi duradouramente implodido, as posições da esquerda
altercapitalista e da "economia com um rosto humano" são agora assumidas pela France Insoumise,
Attac, Sud, uma parte do NPA, os Économistes Atterrés e intelectuais como Frédéric Lordon,
Bernard Friot, Thomas Porcher, Razmig Keucheyan ou Thomas Piketty. O rastro que deixa atrás de
si o colapso da social-democracia partidária e a crise do capitalismo não permite a esta neoesquerda
parlamentar ou de movimento obter qualquer benefício eleitoral. Em todos os lados a crise do
capitalismo é também a crise desse anticapitalismo truncado. Frédéric Lordon, figura incontornável
para certa "esquerda radical" desde o movimento Nuit debout, que acaba de lançar recentemente um
ensaio conhecido, Vivre sans?, já não é mais apresentado em oposição a um certo movimento ligado
às ZAD, à saída da economia e do Estado. Este número da Jaggeraut inclui um longo ensaio de
Benoît Bohy-Bunel que responde ao autor através de um vasto panorama crítico, apresentando a
quase integralidade da obra de Lordon e apontando notadamente para os problemas que ela coloca à
emancipação, seu espinosismo e sua crítica truncada do capitalismo.
À esquerda deste espaço altercapitalista, vê-se consolidar, nesta última década, a esquerda
extraparlamentar. Geralmente percebida do exterior como um movimento dito "anarco-autônomo",
esse contra-espaço público constituiu-se em torno de práticas de ação direta [cortèges de tête], de
uma dinâmica das correntes anarquistas, da autonomia das lutas, de uma "geração ingovernável"
ligada às publicações do Comité Invisible, do discurso wertkritisch, anti-industrial e comunizador.
Correntes e trajetórias teóricas diferentes mas que, ao contrário do "mudar de economia!" da
polaridade altercapitalista (título de uma publicação dos Économistes Atterrés), convergem em
grande parte para romper com a velha teoria da revolução e com a falsa radicalidade progressista.
Pelo menos alguns entre eles chegam a se unificar, ainda que às vezes, sobre a ruptura como "saída
da economia". A revolução como “freio de emergência" consiste então menos em colocar

27
Em 17 de abril de 2020, na Assembléia Nacional.
28
Matthieu Amiech e Julien Mattern. Le cauchemar de don Quichotte. Sur l’impuissance de la jeunesse d’aujourd’hui.
Castelnau-le-Lez, Climats, 2004.
unicamente a questão sobre as condições de trabalho do que sobre nossas condições de existência,
colocar no centro das nossas preocupações menos o controle da produção de mercadorias do que
inventar e arrancar na conflitualidade maneiras de viver diferentes, ligadas à constituição de uma
nova forma de síntese social que nos liberte do jugo da economia, do Estado e do patriarcado. Mais
do que reivindicações, trata-se da construção de um verdadeiro movimento social de reapropriação
direta.

Traduzido por João Costa Gaspar e Pedro Henrique de Mendonça Resende

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