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Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética da imagem animada

Book · January 2006

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Marina Estela Graça


Universidade do Algarve
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Entre o olhar e o gesto
Elementos para uma poética da imagem animada
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Graça, Marina Estela
Entre o olhar e o gesto : elementos para uma poética da
imagem animada / Marina Estela Graça. – São Paulo : Editora
Senac São Paulo, 2006.

Bibliografia.
ISBN 85-7359-470-5

1. Animação (Cinematografia) – Crítica e interpretação


2. Filmes cinematográficos – Crítica e interpretação I.
Título.

05-9104 CDD-741.58
Índices para catálogo sistemático:
1. Arte da animação 741.58
2. Cinema de animação : Análise interpretativa :
Artes 741.58
3. Filme animado : Análise interpretativa 741.58
Marina Estela Graça

Entre o olhar e o gesto


Elementos para uma poética da imagem animada
ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SÃO PAULO
Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis Salgado
Superintendente Universitário: Luiz Carlos Dourado

EDITORA SENAC SÃO PAULO


Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis Salgado
Luiz Carlos Dourado
Darcio Sayad Maia
Clairton Martins
Marcus Vinicius Barili Alves

Editor: Marcus Vinicius Barili Alves (vinicius@sp.senac.br)

Coordenação de Prospecção Editorial: Isabel M. M. Alexandre (ialexand@sp.senac.br)


Coordenação de Produção Editorial: Antonio Roberto Bertelli (abertell@sp.senac.br)
Supervisão de Produção Editorial: Izilda de Oliveira Pereira (ipereira@sp.senac.br)

Edição de Texto: Silvana Vieira


Preparação de Texto: José Teixeira Neto
Revisão de Texto: Adalberto Luís de Oliveira, Jussara Rodrigues Gomes,
Katia Miaciro, Maria de Fátima C. A. Madeira
Trechos traduzidos do francês: Eric Roland René Heneault
Trechos traduzidos do inglês: Danielle Mendes Sales
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Fabiana Fernandes
Capa: Antônio Carlos de Angelo
Imagem da Capa: dope sheet elaborada por Norman McLaren para seu filme
C’est l’aviron (1944), pertencente ao espólio do autor conservado na Cinémathèque
Québécoise, Montreal, Canadá, que gentilmente autorizou sua utilização.
Impressão e Acabamento: ??

Gerência Comercial: Marcus Vinicius Barili Alves (vinicius@sp.senac.br)


Supervisão de Vendas: Rubens Gonçalves Folha (rfolha@sp.senac.br)
Coordenação Administrativa: Carlos Alberto Alves (calves@sp.senac.br)

Proibida a reprodução sem autorização expressa.


Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Senac São Paulo
Rua Rui Barbosa, 377 – 1o andar – Bela Vista – CEP 01326-010
Caixa Postal 3595 – CEP 01060-970 – São Paulo – SP
Tel. (11) 2187-4450 – Fax (11) 2187-4486
E-mail: editora@sp.senac.br
Home page: http://www.editorasenacsp.com.br

© Marina Estela de Vasconcelos Gonçalves Graça, 2006


Sumário

7
Nota do editor

Apresentação9
Aí d a Qu ei roz

Agradecimentos 11
Introdução 13
Filme animado e cinema

O que é cinema? 27
A representação fílmica do espaço e 53
do tempo reais: dispositivo conceptual

A colaboração do espectador interessado 79


A filosofia que sustém o ato de animar 95

Um autor específico: Norman McLaren 103

Poética ( manipulações)

Dinamização do espaço 123


“Espacialização” do tempo159

Conclusão 205
Bibliografia complementar 219
Índice geral 221
Nota do editor

A arte da animação está entre os segmentos que mais crescem


na indústria do audiovisual. Não só cinema e vídeo, mas tam-
bém jogos eletrônicos, publicidade, filmes animados para a internet,
além dos já tradicionais cartuns na televisão – toda essa diversidade
de campos produz uma demanda crescente de técnicos especializados
em dar alma a criaturas de desenho.

Há, no entanto, pouco material teórico dedicado à análise des-


se fazer, ao estudo da animação como linguagem e dos diferentes
resultados que o uso diferenciado da técnica produz em termos de
discurso – tal como acontece hoje com respeito ao cinema.

En tre o olhar e o gesto é uma tentativa de traçar uma sistemá-


tica interpretativa do filme animado, abordado sob os aspectos de
sua elaboração. É mais um avanço do Senac São Paulo na direção de
subsidiar a reflexão de profissionais e pesquisadores das áreas de
comunicação, artes e cinema, em especial os que atuam no mercado
de animação.
Apresentação

N ão é tarefa fácil buscar a teorização sobre uma linguagem de


comunicação que encerra, entre suas particularidades, o de-
senvolvimento de um processo de realização eminentemente práti-
co. Da concepção à finalização de um filme de animação, todas as
etapas, as quais se caracterizam pela aplicação de expressões artís-
ticas diversas, são resultantes de um processo de abstração não-teó-
rico, pode-se até dizer insano, ao qual o autor se entrega incondi-
cionalmente.

Durante a criação, as idéias, livres de quaisquer obstáculos téc-


nicos, percorrem de maneira desordenada um fio condutor permeado
por vislumbres remanescentes de imagens alocadas em nossa me-
mória. Idéias que só poderão ser executadas através da animação,
que exerce controle absoluto do tempo através da construção indivi-
dual dos fotogramas.

As idéias então podem assumir a forma de texto ou suprimir


essa etapa e se expressarem no story -board . Momento que muito
intimida o autor, pois tudo o que possui agora é o desafio de transpor
para o papel em branco as cenas que há pouco se animavam em sua
mente, com uma lógica nem sempre reconhecida ou assimilada pela
superfície bidimensional. Em raras ocasiões, o story -board não se
faz necessário, tratando-se de trabalhos experimentais. O que não
significa que outras definições possam ser preteridas, pois o essen-
cial planejamento requer a definição prévia de todos os elementos
necessários para se dar início ao processo de animação.
10 Irrompe a fase na qual a capacidade de abstrair do animador é
Entre o olhar e o gesto

um imperativo. É a partir dela que os elementos começam a ganhar


alma, vida, personalidade, sentimentos e movimentos. Nesse instan-
te o animador transfere sua performance de ator para a criatura e
forja do Criador o poder de “animar”. Momentos de plenitude. Como
animadora posso afirmar que nos tornamos dependentes viscerais
desses momentos e por isso, apesar de ser um processo por demais
laborioso e extenuante, desejamos que o ato de animar seja uma
constante no cotidiano.

Eis as reflexões e razões que me levam a frisar a importância


efetiva deste livro que insere a arte de animação no âmbito da pes-
quisa científica. À Marina Graça, o mérito de expor o cinema de ani-
mação à luz do estudo investigativo teórico, a exemplo de outras
linguagens de comunicação. Sua obra teórica exibe uma delicada
análise do objeto de estudo e reflexão em questão, propiciando ao
público leitor a oportunidade de perceber o cinema de animação como
uma expressão artística sofisticada e complexa. Essas características
podem fundamentar e propiciar o desenvolvimento de farto e impor-
tante material teórico para estudiosos. Marina, seguramente, parti-
lha com poucos a condição de inovadora e conhecedora do discurso
do cinema de animação autoral.

Aí d a Qu ei roz
Animadora, formada em belas-artes na Universidade
Federal de Minas Gerais, é sócia-diretora da produtora Campo 4
Desenhos Animados e membro da direção do Anima Mundi –
Festival Internacional de Animação do Brasil
Agradecimentos

E ste trabalho tem origem na tese de doutoramento que defendi


em 6 de junho de 2001 na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Desejo, por
isso e antes de mais, manifestar meu reconhecimento a seu Conse-
lho Científico e à Comissão Científica do Departamento de Ciências
da Comunicação por terem acolhido um projeto de investigação cir-
cunscrito a domínios que não têm, por enquanto, expressão acadê-
mica na universidade portuguesa.

Tanto a pesquisa como a organização dos dados apresentados


neste trabalho não poderiam ter sido realizadas sem o auxílio de al-
gumas pessoas e instituições. Quero agradecer, especialmente, às
seguintes:

a Universidade do Algarve, por ter considerado e proposto


minha candidatura ao Prodep, Medida 2, o que me possibilitou
uma licença para pesquisa com a duração de três anos;

o Serviço de Belas-artes da Fundação Calouste Gulbenkian, pela


atribuição de uma bolsa que, juntamente com a da Reitoria da
Universidade do Algarve, me permitiu uma investigação par-
celar na Cinémathèque Québécoise, em Montreal ( Canadá) ,
com a duração de dois meses;

a Cinémathèque Québécoise, que autorizou tanto a consulta


de suas coleções, a qual foi essencial na delimitação do núcleo
do presente trabalho de investigação, como a utilização da ima-
gem de Norman McLaren na capa, como exemplo de notação
12 fílmica; acrescento, ainda, uma profunda gratidão a seus fun-
Entre o olhar e o gesto

cionários, particularmente ao conservador de Animação, Mar-


co De Blois, pela disponibilidade e atenção que concederam a
meu trabalho;

Pierre Hébert, antes de mais pelas opções poéticas e teóricas


no domínio do filme animado; pela admiração e respeito que
me merece; pela disponibilidade e pela partilha do entusias-
mo; pela generosidade na cessão de manuscritos e outras in-
formações em primeira mão;

à minha filha Luzinha, pelo entusiasmo contagiante e por todos


os bocados de tempo de que prescindiu a favor de um trabalho
que nunca chegou a perceber bem para que servia;

finalmente, a todos os meus amigos e pessoas em geral que, de


um modo ou de outro, me demonstraram apoio ou estímulo e,
assim, contribuíram para a realização do presente trabalho.
Introdução

E ste trabalho apresenta-se como uma fase de consolidação de


1
estudos iniciados anteriormente e tem por objetivo a defini-
ção de uma sistemática interpretativa do filme animado de autor to-
mado pelo lado do fazer. Nasce da exigência de o explicar o mais
exaustivamente possível, enquanto fenômeno complexo e singular,
e de o pôr em evidência, levantando questões que se pretende se-
rem oportunas a seu melhor conhecimento. A exigüidade de traba-
lhos publicados sobre o assunto e a decorrente falta de discussão
levam, contudo, a que as análises e interpretações ora propostas não
possam senão constituir um primeiro, e ainda transitório, enquadra-
mento sistemático do filme animado, abordado sob certos aspectos
de sua elaboração. Pelas suas limitações, o estudo que aqui se expõe
corresponde a uma etapa ( ainda que avançada) de um trabalho em
processo e, por isso, não deve ser considerado completo e definitivo.
Tudo nele exige posterior análise, pesquisa, confronto.

Como se sabe, não existe até o momento uma teoria geral do


cinema que abranja o filme animado e as práticas fílmicas que pare-
cem constituir sua especificidade. Em geral, os textos de referência
ou são omissos ou apenas mencionam en passan t o cinema de ani-
mação, e como exceção a um qualquer corolário. Sem que se consti-
tuam em alternativa, no domínio desse cinema os estudos têm-se
mantido exclusivos – de índole técnica, biográfica ou histórica –, indo
buscar ao “outro” cinema ( aí designado habitualmente como de “ima-

1
Cf. Marina Estela Graça, Materialidade ex pressiva ( visu al) do cin em a de an im ação,
tese de mestrado ( Lisboa: FCSH/Departamento de Comunicação Social – Universidade
Nova, 1989) .
14 gem real”) apenas aqueles elementos que integram uma teoria da
Entre o olhar e o gesto

montagem ou a condição técnica do filme. Tirando os textos publica-


2
dos por Len Lye e Pierre Hébert, não se conhecem análises que
tenham abordado a poética ( e não a estética ou a técnica) específica
do filme animado, isto é, o estudo do filme animado do ponto de vista
da relação entre o autor e as possibilidades do discurso.

Assim, a questão principal deste trabalho corresponde àquela


que justificou, desde sempre, a demanda poética de Pierre Hébert:
3
“[…] procurar saber o que implica o gesto de animar”. Mostrar de
que forma o filme animado articula-se no interior do cinema, de que
forma dispõe os saberes e os dispositivos de vária ordem a fim de
constituir-se em discurso.

A investigação que aqui se apresenta, ainda que preliminar, pre-


tende carrear elementos para a discussão mais ampla que há de mos-
trar o filme animado no contexto das práticas fílmicas com a dignidade
que a inteira cultura cinematográfica merece e não tem qualquer in-
tenção de apresentar uma sua definição emblemática ou a história das
definições que pretenderam circunscrevê-lo; ou a descrição de suas
técnicas ou a história evolutiva de uma delas, ou de todas.

O filme animado nasce do dispositivo mesmo que funda o cine-


ma. Em sua própria essência e concomitantemente, encontramos,
contudo, a mão humana: o gesto que tenta recuperar um espaço-
tempo diferenciado e vivido no seio das próprias criações tecnológicas,
isto é, a partir do manuseamento poético – que é também crítico – da
instrumentalidade do dispositivo fílmico.

2
Dirigi esforços no sentido de conseguir informações sobre eventuais publicações em
línguas não européias com alguns autores que, pelo seu trabalho, poderiam deter esse
conhecimento. Mas não obtive nenhum resultado relevante.
3
Pierre Hébert, “Un nouveau départ”, entrevista, em Marcel Jean, Pierre Hébert, L’hom m e
an im é ( Quebec: Les 400 Coups, 1996) , p. 136. [Esta e outras citações foram traduzidas
diretamente da fonte sob encomenda da autora, exceto nos casos em que o nome do
tradutor é explicitamente informado. ( Nota do editor.) ]
Penso ser isso que a imagem animada é em sua singularidade: 15

Introdução
o modo de abrir a engrenagem fílmica para percebê-la e, assim, po-
der fazer alguma coisa com ela.

Este trabalho apóia-se tanto na análise crítica de filmes e no


exame das operações concretas de construção fílmica, como na refle-
xão que os autores fazem sobre aspectos importantes do próprio tra-
balho criativo. Não o faço, contudo, apenas do ponto de vista do
espectador. Minha prática enquanto animadora e o conhecimento pró-
ximo e prolongado que tenho de alguns entre a multiplicidade de pro-
cessos que possibilitam conduzir a produção de um filme animado,
estando na origem do entusiasmo que me levou a encetar este longo
empreendimento, serviram e servem-me na minha localização enquanto
sujeito do discurso, permitindo-me dispor de um ponto de apoio privi-
legiado a partir do qual me é possível confrontar não só o filme, mas
também o esforço, as expectativas e as análises dos autores.
4
Entre esses últimos, apenas Pierre Hébert propôs uma obra
teórica, de fundação rigorosa, na qual tentou discernir, delimitar e
sist e mat izar con h e cime n t os d o p on t o d e vist a d os mod os d e
codificação – como e com o quê –, e da mesma forma responder à
questão de por que fazer animação no contexto das tecnologias da
5
comunicação disponíveis. Len Lye redigiu alguns textos fundamen-
tais para a compreensão da origem cinestésica do filme animado,
dimensão que lhe é fundamental. De Norman McLaren, ainda que
nele não seja manifesta uma vontade de teorização, é notável o es-

4
De Pierre Hébert a obra mais notável é, sem dúvida, L’an ge et l’au tom ate, texto que tem
origem numa reflexão sobre La plan te hu m ain e ( 1996) , o seu longa-metragem, mas que
transborda para uma análise mais abrangente sobre sua atividade e sobre o filme animado.
5
Atualmente, os escritos de Len Lye foram disponibilizados também em tradução francesa
pelo Centro Georges Pompidou, sob a organização de Jean-Michel Bouhours e Roger
Horrocks, além de const arem do est udo biográfico que, sobre ele, foi recent ement e
publicado por este último. Cf. Jean-Michel Bouhours & Roger Horrocks ( orgs.) , Len Ly e
( Paris: Centre Georges Pompidou, 2000) .
16 forço que desde sempre fez no sentido de tornar acessíveis e abertas
Entre o olhar e o gesto

as novas abordagens do filme animado a que ia chegando. O valor


6
pedagógico de seus textos é inegável.

No decurso dos últimos anos, pude ter acesso a projeções ra-


ras e às vezes exclusivas. Dada, contudo, a pequena divulgação desse
tipo de filmes – as projeções sendo efetuadas sobretudo em festivais
ou em cinematecas –, recorri muitas das vezes a cópias em VHS ou,
mais recentemente, em DVD, o que, reconheço, só permite um acesso
mutilado ao filme.

Muitos dos estudos que abordam ou citam o filme animado e,


às vezes, pretendem descrevê-lo e caracterizá-lo, na medida em que
emergem no limiar de campos exteriores bem definidos – sobretudo
um certo modelo de cinema –, não têm por isso um espaço próprio
de operatividade no qual possam sentir-se confrontados. Por outro
lado, as práticas do filme animado apelam a noções que, sendo
homônimas, estão longe de ter o mesmo significado quando mudam
de campo operatório: esse é o caso da definição de imagem ou da de
movimento, entre outras, como veremos. Muitas outras são as no-
ções que atravessam erraticamente as ciências humanas fazendo sentir
7
a exigência de um rigor – enquanto “modo de representação”, e não
enquanto verdade universal objetiva do objeto – que não existe ain-
da e que aparece como uma condição indispensável à aplicação
interdisciplinar de modelos e metodologias. Assim, por vezes, foi
necessário deter-me na explicitação de certas noções – como a de
desenhar, por exemplo – antes de sentir que poderia delimitá-la no
filme animado.

6
Cf. transcrição de textos de Norman MacLaren em Alfio Bastiancich, Norm an McLaren :
précu rseu r des n ou velles im ages ( Paris: Dreamland, 1997) .
7
Henri Bergson, “Durée et simultanéité”, em Mélan ges ( Paris: PUF, 1972) , p. 213.
O discurso, no filme animado de autor, faz-se no âmbito das 17

Introdução
condições elementares subjacentes à produção de um filme: o dispo-
sitivo ( em evolução) que a suporta, os modos de codificação que se
vão disponibilizando e aparecendo como próprios num tempo e num
lugar determinados. Condições nas quais o autor aparece, fundamen-
talmente, como explorador e inventor. A postura deste último é a
daquele que examina e integra as margens da substância expressiva
singular que se apresenta a partir do próprio filme enquanto proces-
so. Embora realizado numa perspectiva de comunicação – porque
feito na expectativa do espectador –, o filme emerge como uma pos-
sibilidade ou conjunto de possibilidades significativas: voltado para a
exploração e invenção dos próprios meios de significação. Explicita-
mente, o filme animado de autor apresenta questões sobre a própria
substância expressiva fílmica, no contexto da qual se propõe, por
essa razão, como ocorrência crítica. Vacila, por isso e sempre, entre
uma possibilidade e uma impossibilidade comunicativas: “Eles [os ir-
mãos Quay] nos fazem questionar o sentido que as coisas têm entre
si a cada 1/24 de segundo, o que todo filme faria se olhássemos um
8
pouco mais de perto”.

No âmbito das produções mais ou menos comerciais, é visível


o maior ou menor respeito dos autores pelas convenções de linguagem
e pelas normas profissionais, procurando aproveitar essas possibi-
lidades – socialmente estabelecidas – a fim de produzirem fisica-
mente filmes que se constituem, sobretudo, como processos de co-
municação. Estes, assim como as regras, padrões técnicos e processos
convencionais que integram o todo do dispositivo fílmico, compõem
o contexto no qual é possível explorar, decifrar e experimentar pro-
cessos novos de linguagem fílmica. São a base a partir da qual é pos-
sível tentear percursos. Não há, portanto, filme animado de autor

8
Michael Atkinson, Ghosts in the Machin e: The Dark Heart of Pop Cin em a ( Nova York:
Limelight, 1999) , p. 34.
18 sem filme animado comercial ou, em sentido lato, cinema de massas,
Entre o olhar e o gesto

compreendido este na totalidade de seu aparato técnico e ideológi-


co. O trabalho do autor emerge da necessidade de ir integrando fi-
siologicamente o dispositivo em evolução, de chamar a si – às suas
próprias condições de sensibilidade e de mobilidade – aquelas que a
máquina abstratamente vai disponibilizando. A condição de fazer o
filme sozinho aparece como óbvia:
Para os animadores independentes ( em contraposição às linhas de
montagem dos estúdios) , fazer um filme é o mesmo que transcrever a
Bíblia à mão – ou seja, é um ato intensamente reservado, trabalhoso,
não-comercial –, e tais filmes freqüentemente sugerem obsessão ere-
mita, remontando a Ladislaw Starewicz, que já em 1912 começara a
fazer filmes animados utilizando corpos de insetos com esqueleto de
9
arame.

Observação que vai ao encontro da seguinte, de George Griffin,


animador independente nova-iorquino:
Um novo método de fazer filmes animados veio à tona na última déca-
da, e, com ele, uma nova geração de artistas que utilizam o meio prima-
riament e para a aut o-expressão. Os novos animadores assumem
responsabilidade direta por quase todos os aspectos do processo fílmico:
concepção, desenho, filmagem e até mesmo a construção da truca.
Essa reclamação da autoridade criativa contrasta bruscamente com o
sistema de linha de produção impessoal da indústria de desenhos ani-
mados dos estúdios e traz a animação de volta ao seu impulso experi-
mental original conforme corporificado nas obras de Windsor McCay,
10
Emile Cohl, Hans Richter e Oskar Fischinger.

A escolha da orientação teórica é, obviamente, crucial tanto no


estabelecimento das estratégias de investigação como na identifica-

9
Ibi d ., pp. 34-35.
10
George Griffin, depoimento ( 1978) , ap u d Kit Laybourne, Th e An i m ati on Book , New
Di gi tal Ed i ti on : a Com p lete Gu i d e to An i m ated Fi lm m ak i n g – From Fli p book s to
Sou n d Cartoon s to 3D An im ation ( Nova York: Three Rivers, 1998) , p. xi.
ção das questões relevantes. Freqüentemente, nos vários contextos 19

Introdução
da ciência, a pesquisa tende a seguir linhas tradicionais e dominan-
tes, implicitamente aceites pelos investigadores. Em teoria do cine-
ma, estas têm vindo a seguir a produção que domina – a que concebe
o filme enquanto longa-metragem comercial, fotográfico, de ficção,
narrativo e espetacular –, relegando outras práticas a uma zona mar-
ginal e indistinta. Pelo que o filme animado tem permanecido à mar-
gem, só acompanhado de indiferença e de ignorância. Não me é, por
isso, possível considerar seu estudo no âmbito de um enquadramento
teórico que não o contempla.

O conceito de poética que uso, no quadro conceptual que orienta


a argumentação do trabalho que aqui se apresenta, beneficia-se de
11
contributos provenientes do Discu rso sobre a estética, apresenta-
do pelo poeta e ensaísta francês Paul Valéry no Congresso de Estéti-
12
ca de 1937, assim como da tese que Henri Meschonnic faz advir da
13
crítica do étimo de “ritmo” estabelecido por Émile Benveniste. A
obra surgiria, assim, algures lá onde a “estésica e a […] poiética se
14
emaranham”. Nest e cont ext o propost o por Valéry, “est ésica”
corresponderia a “[…] tudo o que se relacione com o estudo das sen-
sações”, “excitações e […] reações sensíveis qu e n ão têm u m papel
fisiológico u n iform e e bem defin ido”, em resumo, a “modificações
sensoriais que o ser vivo pode experimentar” e nas quais apoiaria
tudo o que respeita à produção de sua obra, assim como “uma idéia
geral da ação hu m an a com pleta, desde as suas raízes psíquicas e
fisiológicas, até os seus empreendimentos sobre a matéria ou sobre
os indivíduos”. Est e últ imo conjunt o, ao qual Valéry chamaria
“poiética”, poderia ser subdividido em dois grupos: por um lado, o

11
Cf. Paul Valéry, Discu rso sobre a estética: poesia e pen sam en to abstracto ( Lisboa: Vega,
1995) .
12
Cf. Henri Meschonnic, Critiqu e du ry thm e ( Lagrasse: Verdier, 1982) .
13
Cf. Émile Benveniste, Problèm es de lin gu istiqu e gén érale, vol. I ( Paris: Gallimard, 1966) .
14
Paul Valéry, Discu rso sobre a estética... – , cit., pp. 46-47.
20 “estudo da invenção e da composição, o papel do acaso, o da refle-
Entre o olhar e o gesto

xão, o da imitação, o da cultura e o do meio” e, por outro, o “exame


e a análise das técnicas, procedimentos, instrumentos, materiais, meios
15
e auxiliares de ação”. Para Meschonnic, o discurso já não poderia
ser visto apenas como escolha e emprego de ocorrências num siste-
ma de signos convencional, que lhe é preexist ent e, mas como
atividade feita a partir de sujeitos.

Nesses dois autores, pareceu-me encontrar um campo de re-


ferências confluente com as observações escritas dos realizadores
que referi e com as minhas próprias e, por isso, adequado ao objeto
que pretendo estudar. Pelas quais o filme animado apareceria en-
quanto possibilidade de discurso na qual a forma da ação ( do corpo,
do gesto) é origem da mudança ( de tensão, posição, aspecto, valor)
da relação que mantemos com o mundo, considerado como inteiro,
pelo que não poderia decorrer daquilo que fazemos com ela, da fun-
cionalidade do discurso. O processo de criação, ainda que evoluindo
sem ordem aparente, não poderia nunca ser diferente, sendo aquilo
16
que possibilita os “saltos” sobre as rupturas epistemológicas, esta-
belecendo passagen s que poderão vir a condensar-se em conceitos:
configurações fisiológicas feitas de ação, sensibilidade e pensamen-

15
Ibi d em .
16
Ver “efeito de conhecimento” em Louis Althusser et al., “Introdução” ( 1965) , em Lire le
capital ( Paris: PUF, 1995) . Não me é possível retirar a presença da tecnologia – e, logo,
da ciência – da produção artística contemporânea. Nela o discurso científico é origem do
próprio discurso poético porquanto enforma a máquina que o produz. Discurso poético
que deverá explorar e quest ionar o modelo cient ífico de onde emerge enquant o se
constitui a si próprio. E, por isso mesmo, questionando quer o modelo de realidade, quer
o modelo de discurso que lhe é implícito. De resto, o fato de que os autores que referi
tenham-se empenhado também na redação de um trabalho de análise, o que os levou a
uma “prática teórica”, parece ir ao encontro das minhas convicções. Por outro lado e ainda,
o mecanismo da produção de conhecimento, de apropriação do real, no caso do filme
animado de autor, parece depender da diferença de ordem que se estabelece entre o
objeto real e o objeto de conhecimento que emerge na colisão entre a sensação produzi-
da no próprio corpo do animador e os modelos de linguagem de que dispõe e faz derivar
ou provoca. Ou que procura no alheio: assim se explicaria a estratégia de trabalho, em
comu n h ão, d e Nor man McLar e n ; o imp r oviso e m t e mp o r e al, e m d iálogo com
instrumentistas, escritores ou bailarinos, de Pierre Hébert; e a experimentação ampla de
Len Lye por várias práticas artísticas.
to. Pelo que a atividade do autor corresponderia a uma atividade 21

Introdução
real, sendo essa a origem única da factualidade do seu discurso.

Daqui decorreria não só uma posição crítica à noção de signo


como exterior a uma estética fundada na relação que, a partir do
Renascimento, a arte assumiu no contexto dos saberes e da produ-
ção de bens. “Porque o poema é o momento de uma escuta. E o
17
signo nada faz senão dar-nos a ver”, diz Meschonnic.

O discurso, assim tomado, far-se-ia pela auscultação da modifi-


cação interior, como expressão, prescindindo da delimitação objetiva
e da oposição de signos pressuposta no discurso enquanto represen-
tação de qualquer coisa sempre exterior e sempre inacessível. Pelas
razões expostas, não me é possível desenvolver este trabalho enquanto
pesquisa semiótica, isto é, como investigação que tome todos os fenô-
menos culturais na qualidade de fatos de comunicação, pela qual cada
mensagem se organizaria e se tornaria compreensível apenas em re-
18
ferência a códigos. Um filme como Free radicals, de Len Lye, no
qual a parte das imagens, em si mesma, é in significante, demonstra
exatamente o contrário. Alguns dos conceitos e articulações entre
elementos que a semiótica propõe são-me, contudo, queridos: a for-
mação de meu pensamento analítico orientou-se nela e, se hoje posso
ser-lhe crítica, é também graças à “musculação” intelectual que me
propiciou. Desse modo não abro mão de conceitos como o de “subs-
tância expressiva”, proveniente da teoria da linguagem proposta por
Louis Hjelmslev, que tomo como conjunto de possibilidades significa-
tivas apresentando-se como disponíveis à manipulação do autor du-
rante a elaboração de seu filme; nem, tampouco, das designações
“modos de codificação” ou “de significação”, que uso quando preten-

17
He n r i Me sch on n ic, Ma n i feste p ou r u n p a r ti d u r y th m e, d isp on íve l e m h t t p ://
www.berlol.net/mescho2.htm; acesso em outubro de 2005.
18
Ver Umberto Eco, La stru ttu ra assen te: la ri cerca sem i oti ca e i l m od o stru ttu rale
( 1968) ( Milão: Bompiani, 2002) .
22 do assinalar o trabalho de recorte e de transformação que o autor
Entre o olhar e o gesto

aplica em formas de expressão existentes.

A fim de explicar o modo segundo o qual ele próprio articulou


os procedimentos técnico-expressivos no filme Sou ven irs de gu erre
19
( 1982) , Pierre Hébert aponta três níveis de codificação: m an ipu -
lação da represen tação gráfica do real, represen tação do m ovi-
m en to e relação con tin u idade/descon tin u idade. Para tornar mais
abrangente este quadro de referência, que considero muito oportu-
no, permiti-me alterá-lo usando, em seu lugar, as seguintes designa-
ções, que explico no decurso do trabalho: manipulação dos modos de
codificação gráfica, manipulação da composição de movimento e ma-
nipulação da relação de continuidade/descontinuidade.

O filme animado de autor situa-se como prática irregular no


interior da produção cinematográfica, já que parte sistematicamente
da crítica e delimitação da instrumentalidade do próprio mecanismo
que sustém a ilusão fílmica, e não da subserviência à fiabilidade de
suas funções.

A posição aqui defendida é que, quando alguém faz um filme


usando técnicas de animação – e tem controle sobre o resultado
total –, inicia, ao mesmo tempo, um processo que, inequivocamente,
põe em questão a inteira produção de discurso fílmico, quer no nível
dos modos de expressão, quer no nível dos dispositivos técnicos que o
suportam, quer no nível da posição que a tecnologia ocupa nos modos
de comunicação. O autor construiria o discurso a partir da decifração e
incorporação do próprio dispositivo fílmico, processo no qual o filme
apareceria simultaneamente como discurso e meio de discurso.

19
Sobre este assunto, ver Pierre Hébert, “Quelques notes incongrues”, em Bu lleti n d e
l’Associ ati on In tern ati on ale d u Fi lm d ’An i m ati on , 16 ( 2) , Asi fa-Can ad a, Montreal,
1988, pp. 12-13.
Acredito que a justificação do faz er em animação advém da 23

Introdução
necessidade de ligar estruturalmente a atu ali d ad e h u m an a do
mundo: apanhar o mundo apanhando o eu nos dispositivos que alte-
ram a relação entre cada homem e seu contexto de vida. Acredito
que isso se faz com o corpo daquele que anima, pela interiorização
das lógicas de representação e de transformação de seu tempo, que,
desde o aparecimento da primeira ferramenta, foram transferidas
para a evolução tecnológica. Acredito que o filme, experimentado,
propõe-se como expressão dessa relação.

A atividade desenvolvida pelo autor de filme animado faz-se


num contexto tecnológico completo. Esse autor não procura repre-
sentar qu alqu er ou tra coi sa nem, tampouco, representar-se a si
mesmo, e há muito que a verdade da obra já não é detida pelo “par
20
de sapatos”, ou pela sua representação pictórica, mas pelas ferra-
21
mentas que serviram em sua produção.

Dividi este trabalho em duas partes. Na primeira, intitulada “Fil-


me animado e cinema”, abordei os modos teóricos dominantes que
omitem a imagem animada e de que forma essa ausência os torna
inconseqüentes do ponto de vista da eficácia que pretendem. Em-
preendi, igualmente, a delimitação do dispositivo que permite a ilusão
de movimento aparente, sobre a qual se estruturam todos os filmes,
com a intenção de quebrar a falsa equação entre imagem fílmica e
realidade, assim como entre discurso e montagem que, sub-repti-
ciamente, continua a invalidar qualquer tentativa que vá no sentido da
elaboração de uma teoria do cinema mais abrangente e mais atual.

20
Referência ao exemplo – a representação pictórica de um par de sapatos num quadro de
Vincent Van Gogh – apontado por Martin Heidegger em A or i gem d a obr a d e a r te
( Lisboa: Edições 70, 1992) .
21
Cf. Vilém Flusser, En saio sobre a fotografia: para u m a filosofia da técn ica ( Lisboa:
Relógio d’Água, 1998) .
24 Na segunda parte, acrescentei o subtítulo “Manipulações” ao
Entre o olhar e o gesto

título “Poética”, a fim de dar ênfase à presença física do autor na


origem do filme. Nesta, abordei a especificidade dos processos num
contexto que se define: a) pelo exterior, a partir de todas as possibi-
lidades de sentido tornadas disponíveis pelo dispositivo cinemato-
gráfico; b) pelo interior, a partir daquele que é o núcleo dos modos
de articulação dos elementos fílmicos e que se manifesta na incin-
dibilidade do tempo e do espaço, dimensões que estruturam a per-
cepção do filme e, portanto, a sua elaboração, e que organizei sob as
três axiologias já referidas: m an ipu lação dos m odos de codificação
gráfica, m an ipu lação da com posição de m ovim en to e m an ipu -
lação d a relação d e con tin u id ad e/d escon tin u id ad e.

No final, apresento uma conclusão reduzida e provisória. É


prematuro tentá-la de forma definitiva. A tese aqui proposta não de-
corre de investigações desenvolvidas nos limites de um campo teóri-
co predefinido em contexto universitário ( e, como tal, comporta
afirmações que não puderam nem poderiam ser confrontadas com
uma teoria geral) . Por outro lado, a hipótese que apresento tem im-
plicações não só sobre uma teoria generalizada do cinema ( no âmbi-
to de uma teoria geral que comporta apenas o cinema narrativo,
22
ficcional e fot ográfico) , como t ambém sobre a est ét ica ( quer
platônica, quer antiplatônica) e sobre a semiótica ( por criticar aber-
tamente uma teoria do signo) .

22
A designação “cinema fotográfico” ou “filme fotográfico” pertence a André Bazin, O qu e é
o cin em a? ( 1958) ( Lisboa: Horizonte, 1992) , p. 24.
Filme animado e cinema
O que é cinema?

O “cinema” é como a poesia. É loucura imaginá-


lo como um elemento isolado que se pudesse
recolher em uma lâmina de gelatina e projetar
na tela com um aparelho de aumento. O cine-
ma puro existe tanto combinado a um drama
lacrimoso quanto aos cubos coloridos de
Fischinger. O cinema não é uma matéria inde-
pendente qualquer, cujos cristais tivessem que
ser isolados a todo custo. É muito mais um es-
tado estético da matéria.
André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma?

E screver sobre cinema de animação impõe referir incessante-


mente um cinema distinto do conceito dominante de cinema e
1
que o excede e, do qual, ainda assim, faria parte integrante. Esta
situação paradoxal seria mantida difusa e encoberta pela teoria que,

1
É possível fazer animação sem que ela apareça numa tela ou, tampouco, tenha sido
registrada em filme ou vídeo graças ao uso de uma câmera ou de computadores. Entre
outras, existe a possibilidade de fazer filmes marcando diretamente a película, assim
como realizar fli p -book s, pequenos livrinhos em que a ação é desagregada em vários
desenhos, um por página, e o movimento é obtido pelo passar rápido e contínuo do
polegar pela margem das folhas. Estes costumam fazer parte dos programas letivos de
introdução ou de formação em imagem animada e é freqüente constarem das estratégias
de divulgação de filmes e museus de cinema. Este tipo de cinema de animação apela
indiscutivelmente para uma noção de cinema definitivamente distinta tanto da tecnologia
como de condições de exibição consideradas “normais”.
28 deliberadamente ou por omissão, e na sua quase totalidade, conside-
Filme animado e cinema

ra-se válida na condição de ignorar, ainda que provisoriamente, o


filme animado. E, no entanto, a presença deste tipo de filme nem
sequer é incerta ou refutável.

Os documentos audiovisuais que usam técnicas de animação


como modo de produção fazem parte do contexto sociocultural e
estão continuamente presentes: a ubiqüidade das séries televisivas,
por exemplo, é inegável. São menores, mas ainda assim muito evi-
dentes, a produção e distribuição de longas-metragens. É comum
em todo o mundo, não só em sua parte ocidental, a organização de
festivais com a exibição de curtas-metragens animados, produzidas
nos mais diversos contextos e condições. Menos óbvia, mas oni-
presente nos tempos que hoje correm, é a animação que nos passa
diante dos olhos, fora dos formatos habituais, e que é exibida conti-
nuamente nas pequenas telas dos celulares, em jogos de computador
ou sempre que abrimos uma página na internet: já não é possível
escapar às imagens animadas, da mesma forma que já não é permiti-
2
do que nos retiremos da cultura das mídias em geral.

Como explicar, então, a incongruência? Que tipo de relação é


possível estabelecer entre a animação e o cinema em geral? O que é
o cinema? O que é a animação?

Práticas dominantes
Quando pensamos em “cinema”, consideramos inevitavelmen-
te o edifício no qual podemos assistir a um espetáculo em que se
conta uma história durante cerca de hora e meia, por meio de sons e
imagens obtidos fotograficamente e projetados numa tela plana, com

2
Sobre este assunto, cf. Paul Watson, “Talking like Dinosaurs”, em An im ation UK, n o 3,
Bristol, outono de 2000, pp. 29-31; também disponível em http://asifa.net/SAS/12thCON/
report12.htm.
simulação de movimento, numa sala escura, ocupada por espectado- 29

O que é cinema?
res sentados com os olhos voltados na direção das imagens. Este
espetáculo corresponde àquilo que vulgarmente reconhecemos como
simplesmente “filme”. A opinião pública, generalizada, que identifi-
ca “filme” com o longa-metragem comercial, fotográfico, de ficção,
narrativo e espetacular, é sintomática da hegemonia que as suas prá-
ticas assumem no quadro da produção cinematográfica, em detri-
mento de outras formas fílmicas, na produção das quais há muitíssimo
menos investimento e, por conseguinte, também menor divulgação
e conhecimento.

É a part ir do excesso de presença e de impact o social e


econômico daquele cinema, até agora sempre dominante, que se
estabelece a relação de marginalidade que define todas as outras
práticas fílmicas, entre as quais se encontra o filme animado, particu-
larmente o de autor. A história do cinema – admitida a hipótese de
este poder afirmar-se enquanto atividade artística logo nos primei-
3
ros anos de vida – ir-se-á fazendo como história da prática canônica,
fílmica e cinematográfica, e dos conceitos considerados como gen u i-
n am en te cinematográficos. “O cânone consiste naquelas obras que
são constantemente discutidas e mencionadas ( como excelentes) ”,
afirma Jarvie logo no primeiro artigo da Revista de Com u n icação e
Lin gu agen s, dedicada ao cinema na época da comemoração de seu

3
Cf. Ricciotto Canudo, “La naissance d’une sixième art: – essai sur le cinématographe”
( 25-10-1911) , em Les En treti en s Id eali stes, trad. italiana Anna Paola Mossetto – em
Cin em a Nu ovo, n o 221, Florença, jan.-fev. de 1973, pp. 361-363 e 368-371; também em
Carlo Grassi ( org.) , Tem p o e sp az i o n el ci n em a ( Roma: Bulzoni, 1987) , pp. 185-191.
Nesta obra Ricciotto Canudo propõe o cinema enquanto “sétima arte”. Em 1916, Hugo
Münsterberg irá exaltar a capacidade do cinema para reproduzir a experiência mental
por meio da manipulação do espaço e do tempo, vedadas ao teatro. Na mesma obra
expõe a seguinte questão: “A arte da peça fotográfica desenvolveu tantas capacidades
específicas, as quais não têm sequer qualquer parecença com a técnica do palco, que a
questão se põe: não é essa realmente uma nova arte a qual há muito deixou para trás a
mera reprodução do teatro e que tem de ser reconhecida na sua própria dependência
estética?”, em The Film : a Psy chological Stu dy , The Silen t Photoplay in 1916 ( Nova
York: Dover, 1970) , p. 16.
4
30 centenário, pelo que conclui que a função de uma boa parte da crí-
Filme animado e cinema

tica seria constituir e simultaneamente legitimar o cânone, no que


designaria menos a arte que a ideologia dominante.

Será, igualmente, a partir desse quadro conceptual que, a par-


tir dos anos 1950, serão definidas, circunscritas e isoladas – sob a
influência da Film ologia, de Étienne Souriau, e na seqüência das
reflexões de Gilbert Cohen-Séat – as áreas acadêmicas de investiga-
ção fílmica, respectivos instrumentos e modelos propostos.

A “multidimensionalidade” do filme, tomado por Christian Metz


5
como “discurso significante ( texto) ”, é, então, distribuída pelos do-
mínios de investigação das ciências sociais e humanas, num esforço
de organização ordenada e rigorosa que tem por objetivo a constitui-
ção de uma teoria unitária capaz de explicar o “fato fílmico”. Desse
modo, a semiologia, à imagem da posição que a lingüística de Saussure
vem então assumindo no contexto da análise estrutural da lingua-
gem, é proposta como detentora dos princípios de pertinência e fer-
ramentas conceptuais adequadas ao estudo do filme “considerado
6
como uma linguagem”. A psicologia, a sociologia da comunicação, a
estética, a história e a psicanálise – no domínio estrito do “fílmico”
que não deve ser confundido com o “cinematográfico”, viriam juntar-
se-lhe como complementos de investigação igualmente oportunos e
necessários.

Como sabemos, todo o espetáculo cinematográfico – tanto no


nível da produção de filmes como de sua exibição – depende, obriga-
t or iame n t e , d e me can ismos e p r oce d ime n t os me d iad os p e la
tecnologia. É óbvio que os aspectos técnicos da produção fílmica –

4
I. C. Jarvie, “Qual é o problema da teoria do cinema?”, em Revista de Com u n icação e
Lin gu agen s – O qu e é o cin em a?, n o 23, Lisboa, dezembro de 1996, pp. 9-20.
5
Christian Metz, Lan gage et cin ém a ( Paris: Albatros, 1977) , p. 8. Na França, a investiga-
ção de Christ ian Met z – desde a publicação de “Le cinéma: langue ou langage”, em
o
Com m u n i cati on s, n 4, Paris, 1964, pp. 52-90 – marca o início efetivo da teoria do
cinema enquanto campo de estudos acadêmicos específico e autônomo.
6
Ibid., p. 10.
indecifráveis para o olho nu do espectador inexperiente, mas sem os 31

O que é cinema?
quais não há “fato fílmico” – devem ser considerados como prévios
no estudo do filme, pois é a partir deles que são determinados e
constituídos todos os elementos e modos de articulação do “discurso
fílmico”. Obviamente, a diferenciação em seu uso produz documen-
7
tos diferenciados. Sabemo-lo a partir da história das artes plásticas,
8
da poesia e das práticas artísticas em geral: as capacidades expressi-
vas e materiais do próprio dispositivo contam para uma dimensão
poética que é constitutiva tanto num plano histórico como conceptual.
De modo diferente, a teoria e a prática fílmicas entenderam a técni-
ca como n eu tra em si mesma, determinando que, a haver ideologia,
isto é, padronização dos modos de reconhecimento e de codificação,
ela deveria ser sempre procurada do lado da mensagem. Percebe-
se, desde logo, o interesse, ele mesmo ideológico, em reduzir os
dispositivos e procedimentos a meros aspectos operativos de caráter
invariante, inabordável, não pertinentes ou sequer discutíveis pelos
estudos fílmicos hegemônicos no âmbito de uma história do cinema.
São, mesmo, ostensivamente afastados de forma sumária por serem
vistos como algo que faz claramente parte do lado “cinematográfi-
9
co”, isto é, do lado do contexto tecnológico, econômico, sociológico
e industrial, necessário à produção de filmes, mas considerado como
não diretamente implicado nas escolhas formais específicas em cada
filme ou gênero de filmes. Evidentemente, daqui se deduz que a
teoria do cinema não encarou, ou não quis encarar, como admissível
a existência de práticas fílmicas – no plural – como necessariamen-
te decorrente da manipulação e manuseamentos diferenciados, lite-

7
Sobretudo a partir de 1910: não apenas a colagem como também as justaposições de
materiais e a inclusão de mecanismos. A pintura abandona o cavalete, e as modalidades
escultóricas abrem-se para incluir a dimensão cinética em obras mecanicamente articula-
das.
8
Na poesia francesa, tanto a obra de Antonin Artaud como a de Henri Michaud, entre outros
e como exemplo, apropriam-se dos interstícios que opõem linguagens e, nelas, os usos
e modos convencionados.
9
Cf., por exemplo, Christian Metz, Lan gage et cin ém a, cit., p. 11.
32 rais, dos mecanismos e dispositivos tecnológicos; não se sentindo,
Filme animado e cinema

em conseqüência, compelida a considerar eventuais distinções como


pertinentes ao estudo do discurso fílmico. Nem mesmo Jean-Louis
10 11
Baudry, quando considera o aparelho de base do cinema sem dis-
cutir o funcionamento dos seus mecanismos internos, para além da
prática do registro au tom ático da realidade visível e conseqüente
restituição sob a forma de representações.

O estudo oficial do “fato fílmico” não incluirá, por isso, a di-


mensão crítica da mão no interior dos dispositivos que suportam o
discurso fílmico, nem mesmo tendo como modelo as profundas trans-
formações pelas quais a pintura, por exemplo, passou nos primeiros
dez anos do século XX. Como sabemos, essas transformações leva-
ram o pincel e o gesto que o empunha, os materiais e os procedimen-
tos – ou as suas ausências – a tonarem-se tam bém parte irrevogável
do fato pictórico, questionado, então, em sua essencialidade:
A arte plástica, tanto pictural como escultural, é antes de mais gesto do
corpo, gesto do braço. E é em segundo lugar que é reevindicada pelo
olho. Antes de ser uma coisa a “ver”, a realidade ou a expressão pictural
é, portanto, gesto e movimento do corpo […], pelo qual se define o
12
espaço e o tempo,

10
Cf. o ensaio de Jean-Louis Baudry, “Ideological Effects of the Basic Cinematographic
Apparatus”, trad. Alan Williams, em Fi lm Qu aterly , 28 ( 2) , inverno de 1974-1975; ed.
original de Ci n éth i qu e, n o 78, 1970; houve uma edição revista em Bill Nichols ( org.) ,
Movies an d Methods, vol. II ( Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1985) ,
pp. 531-542; cf., igualmente, do mesmo autor, L’effet cin ém a ( Paris: Albatros, 1976) ; e
“Le d isp osit if: ap p r och e s mé t ap sych ologiqu e s d e l’imp r e ssion d e r é alit é ”, e m
Com m u n ication s, n o 23, Paris, 1975, pp. 56-72.
11
Cf. Jean-Louis Baudry, “Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de
réalité”, cit., pp. 58-59, em nota: “De um modo geral, distinguimos aparelho de base, que
tem a ver com o conjunto da aparelhagem e das operações necessárias à produção, do
d i sp osi ti v o, que tem a ver unicamente com a projeção e no qual o sujeito, a quem se
dirige a projeção, está incluído. Assim, o aparelho de base comporta tanto a película, a
câmera, a revelação, a montagem tomada no seu aspecto técnico, etc., quanto o disposi-
tivo de projeção. O aparelho de base é mais que a câmera à qual quiseram […] que o
limit asse”.
12
F e r n an d e Sain t -Mar t in , S tr u ctu r es d e l’esp a ce p i ctu r a l ( Qu e be c: Bibliot h è qu e
Québécoise, 1989) , p. 10.
poderá, mais tarde, afirmar a semióloga Fernande Saint-Martin. Foi, 33

O que é cinema?
de resto, por isso que se disse que a fotografia conduziu à libertação
da pintura: porque, assumindo as funções de representação do real
visível, a técnica fotográfica veio revelar o gesto de pintar como sen-
do, naquela, a raiz de sua singularidade. Assim, ao contrário do que
post eriorment e virá a acont ecer na semiologia da pint ura e na
13
semiologia das linguagens gráficas, a semiologia fílmica, enquanto
modelo dominante da teoria do cinema na época em que esta se tor-
nou instituição, irá prosseguir sem reclamar de seus investigadores –
ou propor aos realizadores – a integração prática, física, direta e ex-
periente de seus mecanismos, quer no nível de sua instrumentalidade
e funções específicas, quer enquanto dispositivo conceptual de caráter
ideológico. A “caixa-preta” que subtrai, ao conhecimento imediato,
o funcionament o das engrenagens que permit em o regist ro e a
projeção de imagens e que tornam possível a ilusão de movimento
aparente – esta sim, especificamente fílmica – nunca será aberta,
exibida e discutida no seio dos estudos fílmicos e cinematográficos
dominantes. E, contudo, já no início dos anos 1920, Malevitch augu-
rava que o cinema ultrapassasse o psicologismo do retrato pictórico
e se distanciasse de conteúdos ideológicos. À imagem das transfor-
mações então recentes ocorridas na pintura, o cinema deveria poder
refletir sobre seus próprios elementos materiais de expressão, en-
quanto tais. Afinal de contas, os cubistas tinham conseguido demons-
trar que a pintura podia existir sem imagem, sem cotidiano e sem a
14
face das idéias, argumenta.

Esperar-se-ia dos novos investigadores que, perante as recen-


tes mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo no interior dos dispo-

13
Cf. Manfredo Massironi, Ver pelo desen ho: aspectos técn icos, cogn itivos, com u n icati-
vos ( ed. italiana 1982) ( Lisboa: Edições 70, 1983) .
14
Cf. K. S. Malevitch, “Et ils façonnent des faces jubilatoires sur les écrans” ( 1925) , em Le
m i roi r su p rém ati ste: tou s les arti cles p aru s en ru sse d e 1913 a 1928, av ec d es
docu m en ts su r le su prém atism e, vol. II ( Lausanne: L’Âge de l’Homme, 1977) , p. 106.
34 sitivos e a partir dos quais hoje toma forma o fato fílmico, ponderas-
Filme animado e cinema

sem finalmente a possibilidade de considerar o cinema como lugar


de múltiplas práticas de codificação, no nível dos constituintes e
modos de articulação elementares que deles decorrem diretamente,
tornando sua presença essencial na definição. Que falassem, final-
mente, do film e enquanto tal.

Aparentemente, a ruptura epistemológica com a n orm al or-


ganização dos conceitos no âmbito da teoria parece ser ainda dema-
siado problemática, embora se anteveja, desde já, a impossibilidade
de continuar a identificar o caso especial do filme fotográfico sim-
plesmente como “cinema”. Isto é, a tecnologia digital vem quebrar
definitivamente a ligação, nunca antes solúvel ou discutida, entre o
discurso e os meios de discurso que funda a divisão das artes de acor-
do com a perspectiva modernista.

Assim, e apesar das mudanças no nível dos modos de constru-


ção tecnológica do discurso fílmico, os modelos continuam a ser os
do cinema que lhes é anterior. Pior: usando a separação das artes
como oportuna, apesar de todos os colapsos de linguagem, a argu-
mentação pressupõe como seu referente o modelo iluminista das
beau x -arts, finalmente institucionalizado pela Academia Real Fran-
cesa em 1803, contemporâneo da Revolução Industrial e anterior à
própria invenção da fotografia, o que, nesse contexto particular, pa-
rece bizarro, embora se compreenda a proximidade com o ideal
15
neoclássico de imitação da natureza. Isto para além da concepção,
indubitavelmente simplista, de animação, a qual vê a mão apenas no
domínio do fabrico da imagem, e não como essencial no controle
imediato de todas as engrenagens fílmicas de codificação. E, já ago-
ra, onde arrumaríamos a concepção e composição “musical” do mo-
vimento, que em tantos casos – Oskar Fischinger, Len Lye, Norman

15
Cf. abade Charles Batteaux, Les beau x -arts rédu its à u n m êm e prin cipe, s/l., s/ed., 1746.
McLaren, John e James Whitney, entre outros – encontra-se no cen- 35

O que é cinema?
tro do processo criativo? Diz Lev Manovich:
Vista sob esse contexto [isto é, do ponto de vista da história da imagem
animada em sentido lato], a construção manual de imagens no cinema
digital representa um retorno às práticas pré-cinemáticas do século
XIX, quando as imagens eram pintadas e animadas à mão. Na virada do
século XX, o cinema teve de delegar essas técnicas manuais para a
animação e definir a si mesmo como um meio de registro. Conforme o
cinema adentra a era digital, essas técnicas estão se tornando nova-
mente um lugar comum no processo fílmico. Conseqüentemente, o
cinema não pode mais ser claramente distinguido da animação. Já não
é mais uma tecnologia indexical das mídias, mas, em vez disso, um
16
subgênero da pintura.

Ressalvando embora a importância dos escritos de Lev Manovich


no contexto da utilização midiática da tecnologia digital, para nossa
discussão, e pelas perspectivas que abre no nível dos modos de
codificação específicos do cinema num contexto alargado, é muito mais
interessante a posição do realizador Larry Cuba, quando afirma:
Os problemas subjacentes do design em movimento são universais para
qualquer um que trabalhe nesta tradição, quer utilize um computador
ou não. Então, nesse sentido, o que eu faço não é “arte em computador”.
Por outro lado, a tecnologia é claramente importante. Se você pensar
sobre o processo utilizado em animação abstrata, torna-se importante
que você esteja utilizando um computador, pelo modo como isso afeta o
seu vocabulário. Porque, se você começar com essas estruturas mate-
máticas, poderá descobrir que há imaginários que você não pré-
17
visualizou, mas “achou” dentro das dimensões do espaço de busca.

16
Lev Manovich, “What Is Digital Cinema?”, em The Lan gu age of New Media ( Cambridge/
Londres: MIT Press, 2000) , p. 295; disponível, ainda, em http://www.manovich.net/text/
digital-cinema.html; acesso em outubro de 2005.
17
Larry Cuba, depoiment o ( 1976) , em Robert Russet t & Cecile St arr, Ex p er i m en ta l
An i m ati on , Ori gi n s of a New Art ( Nova York: Da Capo Press, 1988) , p. 28. Um dos
primeiros a ter dispensado a mão na elaboração das imagens necessárias ao filme animado
e a substituí-la pelo cálculo da máquina digital. Os seus trabalhos mais conhecidos são 3/
8 ( 1978) e Tw o Space ( 1979) .
36 É que, ainda que fictício, o espaço n-dimensional que se abre
Filme animado e cinema

para lá da tela do monitor existe e proporciona a observação de fatos


18
reais. É concebido como uma janela sobre um espaço-t empo
manipulável, embora de natureza conceptual. É, de fato, um proces-
so único, já que permite a materialização gráfica, rigorosa, de objetos
complexos que apenas t êm exist ência mat emát ica ou, ent ão, a
modelização de fenômenos reais que, pela sua escala, meio, nature-
za, etc., escapam à experiência perceptiva direta.

As “novas” mídias
Em 1954, Norman McLaren declarava:
[…] atrás de nós, temos somente sessenta anos de cinema, enquanto
adiante temos centenas, estamos então apenas na infância dessa arte.
As descobertas fundamentais já podem ter sido feitas, mas suas aplica-
ções ainda estão longe de ter sido todas exploradas, e muitas descober-
tas de importância menor ainda devem ser efetuadas. Existe uma
variedade tão incrível de temas até agora intactos e de métodos de
tratamento de filmes, que hoje é perfeitamente possível escolher te-
mas e buscar novos rumos na experimentação sem afastar do filme o
interesse do público e, o que também é muito importante, sem fazer ao
mesmo tempo um compromisso criativo ou artístico. Eu gostaria justa-
mente de recomendar essa problemática como um tema de discussão
19
válido.

18
O filme que Thomas Banchoff e Charles Strauss realizaram em 1979, na Universidade
Brown, com aspect os do moviment o de um hipercubo dent ro e fora de um espaço
tridimensional, permite visualizar diversas configurações mais ou menos complexas de
vértices e de arestas de outro modo apenas acessíveis por meio de métodos algébricos.
A diferença é que, ao contrário destes, a manipulação em tempo real das coordenadas
dimensionais com um joy stick, permite intuir, “sentir” o objeto. Cf. P. J. Davis & R. Hersh,
L’u n ivers m athém atiqu e ( Paris: Gauthier Villars, 1982) , p. 393.
19
Norman McLaren, “Homage à George Méliès”, intervenção no Second International Fes-
tival of Tomorow, Zurique; transcrito como documento do National Film Board/Office
National du Film ( NFB/ONF) , Ottawa, outubro de 1954, 3 pp.; transcrito depois em Alfio
Bastiancich, Norm an McLaren : p récu rseu r d es n ou v elles im ages ( Paris: Dreamland,
1997) , pp. 178-181.
Ora, McLaren é conhecido precisamente por ter agido de uma 37

O que é cinema?
forma sistemática no nível do próprio funcionamento do dispositivo
cinematográfico e por ter ostensivamente neglicenciado os modos
sen satos de fazer filmes. McLaren afirma aquilo que, de fato, afirma
e deve ser entendido no contexto de suas próprias práticas, e não no
da prática dominante.

O exemplo da obra de McLaren permite aceder a aspectos que


marcam a especificidade das práticas do filme animado no interior
do cinema e, igualmente, reservar alguma distância no que pode ser
o qualificar precipitado das recentes modificações tecnológicas que
suportam o audiovisual enquanto “novas mídias”.

Norman McLaren é conhecido pelas inúmeras t écnicas de


imagem animada que, se não inventou, pelo menos divulgou e con-
cretizou de modo surpreendente, revelando nelas possibilidades ex-
pressivas inesperadas. Este é, contudo e apenas, o aspecto mais óbvio
de sua obra. No universo dos dispositivos e meios de expressão fílmica
disponíveis em sua época, McLaren criou não apenas filmes, mas uma
poética, uma atitude crítica e de criação no seio do próprio cinema.
Sistemática e discretamente, ajudou a definir a identidade do cinema
de todos os filmes, tal como hoje se apresenta, enquanto modo de
expressão único no contexto das linguagens e práticas artísticas con-
temporâneas. Esse terá sido, em essência, o legado que nos deixou.
O gênio de Norman McLaren encontrar-se-ia tanto no caráter de sua
obra fílmica – no modo pelo qual a construiu com base num trabalho
meticuloso de exploração, análise e criação de elementos de expres-
são e de percepção, apetrechos e respectivas aplicações no nível do
discurso – como na atitude de gestão e de apropriação dos aspectos
relacionados com sua produção. A chave para o entendimento da
obra de Norman McLaren enquanto poética deverá ser procurada
em sua atitude, em como se conduziu e criou no seio de seu próprio
tempo, e da qual seus filmes não seriam mais que o resíduo sensível.
38 Da obra de McLaren sobressai o esforço continuado em explo-
Filme animado e cinema

rar exaustivamente todas as possibilidades expressivas dos elemen-


tos de codificação e de suporte do discurso fílmico. Isto para além do
limite exato marcado pelos esquemas fáceis do cinema de consumo
e das normas que promulgam o que se considera ser a legitimidade
da prática cinematográfica, e, assim mesmo, sem perder a atenção
do espectador e sua solicitude. Não é pouco. Equivale a situar-se
voluntariamente num lugar de fronteira entre um mundo organizado
sobre o convencionalismo dos signos, por um lado, e o espaço da não
referencialidade – ou daquela que, pela primeira vez, o próprio fil-
me vem propor – e fazer depender disso a sua sobrevivência, pelo
outro. “A revolucão prática de McLaren não é uma rebelião, mas a
escolha conscient e de uma direção diferent e”, propunha André
20
Martin. Uma direção que conduzia sistemática e regularmente à
irrupção do n ovo na linguagem fílmica. Tratava-se, de fato, de uma
diferença formal e de natureza: o novo revelado em sua obra perma-
nece novo, enquanto começo e recomeço no que afirma em cinema.
“O que é próprio ao novo, quer dizer, a diferença, é solicitar no pen-
samento forças que não são as do reconhecimento, nem hoje nem
amanhã, poderes de um outro modelo, numa terra in cogn ita jamais
21
reconhecida ou reconhecível”, escrevia Gilles Deleuze comentan-
do as considerações de Nietzsche sobre Schopenhauer educador. “A
dificuldade com os filmes de Norman McLaren”, acrescenta André
Martin, “é que eles nos obrigam a falar de coisas que ainda não co-
nhecemos muito bem e que, contudo, definem perfeitamente numa
22
língua que não tem nome”.

20
André Martin, “2. Secrets de la fabrication”, em Cahiers du Cin ém a, n o 81, Paris, março
de 1958; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
vol. 1 ( Paris: Dreamland, 2000) , p. 233.
21
Gilles Deleuze, Différen ce et répétition ( Paris: PUF, 1968) , p. 177.
22
André Martin, Catalogu e d e l’Ex p osi ti on , Festival d’Annecy ( Annecy: Musée de l’Île;
1965) ; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
cit., p. 255.
Na demanda de um cinema ostensivamente autônomo, Norman 39

O que é cinema?
McLaren irá levar seu esforço até extremos insuspeitados. Antes de
mais, irá promover a proximidade entre o autor e a obra, subtraindo
o controle da imagem, do som e da duração fílmica aos automatismos
específicos da máquina; libertando o filme dos formalismos e regras
que sancionam o que se considera ser a legitimidade das práticas
profissionais; desembaraçando-o do encadeamento dos procedimentos
que a tecnologia impõe à produção e reprodução cinematográficas.
O processo de codificação fílmica será, por sua vez, exaustivamente
sondado e reduzido a seus elementos mínimos: no nível da manipula-
ção dos modos de codificação gráfica e sonora; no nível da represen-
tação, composição e percepção de movimento; no nível da relação
entre continuidade e descontinuidade fílmicas. Irá, igualmente, libertá-
la da imposição da narrativa e da referencialidade, fazendo-as de-
pender apenas da p r esen ça do espect ador, enquant o element o
necessário em que o filme se faz.

Norman McLaren era especialmente rigoroso na atenção atri-


buída à sedimentação dos modelos propostos pela máquina e à forma
pela qual poderiam ser postos em situação de deriva. No essencial da
prática dos autores, em animação, sobrevém o desejo maior de deci-
frar ( anterior aos de experimentar e de mostrar) , o qual assume
relevância especial quando considerado no contexto dos dispositivos
que sustentam a indústria cinematográfica. O cinema não existe sem
o recurso a tecnologias, e a máquina, como se sabe, obedece a prin-
cípios de fiabilidade, pressupondo um mundo feito de causalidade e
efeitos, previsível, voltado para si mesmo, tautológico e sem frontei-
ras. Não há autor no processo controlado pela máquina: a essência
do processo criativo encontra-se na idealização da própria ferramen-
t a, e não naquilo que ela é capaz de produzir. Exist em apenas
utilizadores no contexto das qualidades e limites impostos pela con-
dição do objeto técnico. Pelo que, para quem com elas trabalha num
40 processo de criação, a obra não teria sentido senão como forma de
Filme animado e cinema

apropriação ( de auscultação e de expressão) do mundo a partir de


uma sensibilidade modificada pela ferramenta: decifrar o enigma sin-
gularmente atraente de um prazer inseparável de desenvolvimentos
que excedem o domínio da sensibilidade orgânica e a obrigam à pro-
dução continuada de modificações afetivas, das que se prolongam e
enriquecem nos domínios do intelecto, que conduzem ao empreen-
dimento de ações sobre a matéria, sobre os sentidos e no apelo do
espírito de outrem, exigindo o exercício combinado de toda a força
humana, de toda a experiência humana do mundo, como tentarei
demonstrar na segunda parte desta obra.

Daí que, em sua atividade, McLaren tenha pugnado sempre


pela tradução obstinada da contingência em necessidade. O recurso
ao irregular ( no limite: ao acidente e ao erro) re-humanizaria o pro-
cedimento, eximindo o trabalho expressivo da ostensividade previsí-
vel da máquina, proporcionando alternativas imprevistas nos processos
de atribuição de sentido, potenciando a abertura à transgressão dos
procedimentos protocolares, abrindo para resultados expressivos que
excedem o que o “programado” permite e a fiabilidade das funções
prescreve. Daqui decorre que a liberdade e a autonomia máximas,
na construção do discurso fílmico, só seriam possíveis pela delimita-
ção, questionamento e suspensão do caráter de exclusividade dos
dispositivos que suportam o cinema. É nesse quadro de referência
que assumem particular importância as declarações de McLaren so-
bre os princípios e fatores que definem seu trabalho:
Em resumo, a concepção e execução da maior parte das minhas obras
para o National Film Board provavelmente dependeu de quatro coisas:
( 1) Tentar manter o mínimo possível de mecanismos técnicos entre
minha concepção e a obra finalizada.
( 2) Manipular pessoalmente os mecanismos que de fato permanecem,
de modo tão íntimo quanto um pintor que trabalha em sua obra ou um
violinista que toca seu instrumento.
( 3) Fazer das muitas limitações desses mecanismos, quando trazidos 41

O que é cinema?
em contato com o tema, o ponto de crescimento das idéias visuais.

( 4) Certificar-se de uma oportunidade para improvisar no momento


23
de filmar ou desenhar.

Comunicar de novo
Nunca se falou tanto de comunicação como numa sociedade
centrífuga, que deixou de saber comunicar consigo própria, cuja coe-
são é contestada, cujos valores já não são unificados pelos símbolos
tradicionais, banalizados, e que, por isso, se desagregam. É no vazio
deixado pela falência das figuras simbólicas que nasce a comunica-
ção enquanto empresa desesperada que procura aproximar análises
especializadas e meios compartimentados até o limite. Emerge como
uma nova teologia, fruto da confusão de valores e de fragmentações
impostas pela miragem triunfalista de progresso, propondo-se a res-
tabelecer a sociedade por um acréscimo de técnicas denominadas
tecnologias da comunicação. Ora, a comunicação que tem a máquina
como meio e como modelo afirma inequivocamente a distinção emis-
sor/receptor e insere um canal entre eles. São, então, conferidos
poderes consideráveis, exclusivos, às mídias, e o mundo, assim re-
presentado, torna-se virtual e exterior à humanidade. Os objetos téc-
nicos – desumanizados – tornam-se, finalmente, nosso meio ambiente
24
“natural”, quando aceitamos a visão do mundo que eles induzem.

Obviamente, a situação é idêntica se os rejeitamos: a máquina


participa do próprio conceito de humanidade e não pode ser excluí-
da. A aparição da ferramenta marca precisamente a fronteira a partir
da qual, através de uma longa transição, a sociologia teria substituí-

23
Norman McLaren, “Animated Films”, em Docu m en tary Fi lm New s, 7 ( 65) , maio de
1948, pp. 52-53.
24
Sobre este assunto, cf. Lucien Sfez, La com m u n ication ( 1991) ( Paris: PUF, 1992) .
25
42 do, lentamente, o atraso da zoologia. O apetrecho teria aparecido
Filme animado e cinema

como uma verdadeira secreção do corpo e do cérebro dos hominídeos.


Em seu desenvolvimento, dos antropóides ao Hom o sapien s, os ins-
trumentos teriam seguido o ritmo da evolução biológica, como parte
integrante da fisiologia humana, acabando por propiciar o desenvol-
vimento da linguagem enquanto forma complexa de comunicação.

A questão estaria não em rejeitar ou, tampouco, sujeitarmo-


nos ao regime de comunicação a que a máquina desumanizada obri-
ga, mas em ( re) apropriarm o-n os dele. É desse modo que deve ser
entendida não só a relação de Norman McLaren com os dispositivos
que suportam o discurso fílmico, mas também sua atitude de traba-
lho no contexto dos modos, normas e relações profissionais. É disso
que fala Pierre Hébert:
[…] a idéia mclareniana de animação, idéia dominada pela atividade
pessoal e imediata do criador e pelo máximo de liberdade em relação à
aparelhagem técnica. O que teve como resultado que o estúdio não
tenha sido estruturado segundo uma hierarquia de funções ou de tare-
fas a cumprir, mas mais como uma comunidade de criadores, que
tenha sido caracterizado por um maior leque de escolhas técnicas com
uma nítida predominância de métodos artesanais, e que constante-
26
mente se tenha aberto àquilo que havia de novo.

Claramente, uma das aspirações maiores de McLaren seria a


de encarar o que verdadeiramente comunica ( comunga) no que de
mais essencial existe na humanidade de cada um. Isso é manifesto
nos princípios formais que estruturam sua obra, mas também em suas
relações de trabalho. Quase como se, progressivamente, seus filmes

25
Sobre este assunto, cf. capítulo III em André Leroi-Gourhan, Le geste et la parole: techn iqu e
et lan gage ( Paris: Albin Michel, 1964) , trad. portuguesa em O gesto e a p alav ra: 2
Mem ória e ritm os ( Lisboa: Edições 70, 1983) .
26
Pierre Hébert, “Un mot de Pierre Hébert, producteur responsable du studio d’animation
du Programme Français de l’Office National du Film du Canada”, s/d., disponível em
http://www.onf.ca; acesso durante o período em que geriu o estúdio do Programa Francês
do National Film Board.
fossem se tornando o modo para uma certa ligação produtiva, como 43

O que é cinema?
se a obra não tivesse sentido senão como forma de integração física
e afetiva da experiência humana, e esta não pudesse senão ser plural
e diferenciada: “Era uma experiência do tipo partilhado”, afirmava
Grant Munro, “você não trabalhava para o Norman, você sempre tra-
27
balhava com ele”.

A animação de McLaren veio propor não apenas uma obra


fílmica, na qual cada filme aparece como formalmente aquilo que é,
mas também um contexto no qual quer o discurso, quer o modo de
produção, quer o processo de comunicação ( que, no caso da anima-
ção, depende exclusivamente da máquina) , são postos em questão e
recriados enquanto expressão. O filme apareceria não como meio de
representação, como suporte de qualquer outra coisa, mas em si
mesmo: como presença. No modelo de comunicação que, em abstrato,
emerge deste modo de fazer animação – e que pode ser generaliza-
do sob as designações “animação experimental” ou “animação de
autor” – o m ediu m deixa de estar à parte, tradutor exclusivo de um
mundo inacessível para um receptor passivo e paralisado. O filme
estaria no mundo no mesmo nível do espectador, tal como o mundo
está no filme, naqueles que o observam e naqueles que o fizeram. A
expressão e a presença tomariam o lugar da representação.

Mais concretamente, a atitude de apropriação que orienta o


processo de produção de McLaren pressupõe uma poética voltada
simultaneamente para o trabalho de produção do discurso fílmico e
para o contexto histórico e cultural, no qual este emerge. Põe-se
como meio de diferenciação e compatibilização das diferentes rela-
ções prévias ao filme ( a auscultação da realidade interior e exterior,
a observação da singularidade e do emblemático; a exploração da

27
Grant Munro, depoimento em Cecile Starr, “Conversations with Grant Munro and Ishu
Patel: The Influence of Norman McLaren and the National Film Board of Canada”, em
An im atiom Jou rn al, 3 ( 2) , Santa Clarita, primavera de 1995, pp. 44-61.
44 especificidade e limites dos meios técnicos e expressivos; a signifi-
Filme animado e cinema

cação emersa a partir da projeção de experiências anteriores, bem-


sucedidas ou não; a inferência e inclusão da presença do espectador) ,
mas também como modo de apropriação do contexto fílmico modifi-
cado pelo próprio filme, enquant o circunst ância, at ualização e
( pre) texto que permite criar um espaço de possibilidades no seio do
estabelecido e do ( ainda) não percebido.

Retomando o problema da designação “novas mídias” no con-


texto das recentes mudanças tecnológicas, estas só podem ser consi-
deradas como críticas porque são manifestas exatamente no campo
dos dispositivos que suportam a hegemonia do cinema fotográfico,
de ficção, comercial. É por isso que, de uma forma exposta, obrigam
irrevogável e abertamente ao afrontamento dos conceitos que a fun-
dam. Pelo que a questão das “novas mídias” se anunciaria, por conse-
qüência, como ruptura dos modos de produção e de concepção formais
do cin em a, inviabilizando modelos conceptuais e econômicos domi-
nantes e conseqüentes modos e procedimentos protocolares, de onde
decorrem organizações, hierarquias, designações e rotinas profis-
sionais. Inversamente, ao ganhar distância, optando por considerar o
cinema a partir de seu dispositivo essencial, original, e daquilo que é,
de fato, fundamental em todas as suas práticas, as recentes modifi-
cações tecnológicas – tal como as anteriores – por-se-iam apenas
como passo evolutivo, sem que qualquer dos três grandes modos es-
senciais de codificação fílmica pudesse ter perdido oportunidade, a
saber, o modo de manipulação da imagem e do som, o modo de com-
posição do movimento, a relação de continuidade/descontinuidade
fílmica.

Não é o tipo de ferramenta que é essencial no discurso fílmico


e o diferencia, como propõe a perspectiva modernista, mas o modo
pelo qual seu esquema técnico e sua instrumentalidade são inquiri-
dos, manipulados e completados no e pelo exercício do fazer fílmico.
É essa, de resto, a posição de Pierre Hébert quando defende a 45

O que é cinema?
elaboração do conceito de “valor cinematográfico”. Este seria
[…] alguma coisa que tenha a ver com a construção de uma duração e
de um espaço, que transcenda as categorias de imagens de tomadas
reais e de imagens animadas, que provavelmente também transcenda
as questões de suporte técnico. Creio, na verdade, que é preciso parar
de presumir um elo necessário entre o termo “cinema” e o suporte
filme. Na minha opinião, a idéia do cinema ultrapassa o quadro técnico
que a governou em seu nascimento e no primeiro século de seu desen-
28
volvimento. E pode sobreviver a ele.

Insuficiências e obstáculos
Em nossos dias e de acordo com os postulados da teoria domi-
nante, obviamente que já não é possível juntar as experiências dos
irmãos Lumière e as mais recentes produções audiovisuais no mes-
mo modelo de cinema. A ruptura é demasiado evidente. E, contudo,
no plano técnico, a cisão terá sido maior quando as várias máquinas
que compõem o dispositivo fílmico foram subtraídas à manipulação e
sujeitas a protocolos e regras de estandardização que as blindaram,
n aqu e le qu e foi o p r ime ir o e sfor ço d e globalização t é cn ica e
econômica que o mundo conheceu. Disso mesmo já Hugo Münsterberg
tinha consciência quando, em 1916, afirmava: “O fato de cada produ-
tor tentar distribuir seus filmes para todos os países força uma pa-
29
dronização extrema em todo o mundo das imagens em movimento”.

Ao mesmo tempo em que, algumas linhas depois, descrevia a


câmera de filmar como um dispositivo ainda aberto e maleável, sob a
mão e a imaginação do seu operador:
Ele precisa apenas girar a manivela do aparato mais rapidamente e o
ritmo todo da perform an ce pode ser trazido a uma velocidade que

28
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate ( Quebec: Les 400 Coups, 1999) , p. 50.
29
Hugo Münsterberg, The Film : a Psy chological Stu dy ..., cit., p. 8.
46 pode acentuar o humor disparatado da cena de modo surpreendente.
Filme animado e cinema

E a partir daqui foi apenas um passo para o desempenho de ações que


não poderiam ser desempenhadas na natureza de maneira alguma
[…]. Como a manivela da câmera que puxa [a película com] as imagens
pode ser parada a qualquer momento e a rotação renovada somente
após alguma mudança completa feita no cenário, qualquer substitui-
30
ção pode ser realizada sem que o público saiba da quebra nos eventos.

Nessa altura, o mesmo instrumento ainda detinha as funções


de registro, de impressão de cópias ( optical prin ter) e de projetor
que – com o tempo, as imposições do mercado e a sonorização – se
foram dispersando em múltiplos procedimentos interdependentes.
Nesta interdependência teve origem a necessidade de protocolos,
imposição de normas de equalização e compatibilização de mecanis-
mos, funcionamentos e formatos que contribuíram para a uniformi-
zação e dominância do cinema fotográfico, espetacular, narrativo, de
ficção e essencialmente comercial.

Para o estudioso de cinema, que nunca considerou o filme do


ponto de vista de seus variados modos de codificação material, con-
frontado com a exibição poderosa das ferramentas digitais, a opção é
naturalmente difícil: ou o “genuinamente cinematográfico” teria vi-
sivelmente acabado, e isto seria assim por já não ser possível distin-
guir entre imagens “naturais” ou de “síntese”, porque os documentos
fílmicos já não têm exatamente o aspecto esperado enquanto “filme”
e, também, porque as estruturas narrativas alteraram-se, procuran-
do a dimensão da interatividade, por exemplo – três pilares funda-
mentais num edifício conceptual com poucas pernas –, ou, então,
restar-lhe-ia constatar o fato de estarmos a viver o fim da época na
qual o cinema apenas mal teria começado a gatinhar, tal como propu-
nha Norman McLaren. Época durante a qual teríamos assistido à as-
censão e fase crítica de uma prática que, tornada hegemônica, teria
ofuscado todas as outras até ser tomada pelo todo.
30
Ibi d ., pp. 14-15.
Nesta conformidade, seria de esperar que também a teoria do 47

O que é cinema?
cinema – a “oficial”, instalada em modelos estáveis, mas tornados
ost ensivament e escassos diant e do novo est at ut o mat erial de
codificação do fato fílmico dominante – se confrontasse com as pró-
prias insuficiências, entrando numa fase crítica de investigação na
demanda de modelos conceptuais mais abrangentes e eficazes. Mas,
aqui mesmo, o profundo e fundamental desconhecimento que, de
um modo geral, grassa nos departamentos universitários sobre a his-
tória da evolução técnica e da utilização irregu lar dos dispositivos,
assim como no âmbito de uma teoria da substância, idéias, modos e
ações subjacentes a estas outras práticas fílmicas, constitui obstácu-
lo. É sintomático e crucial o fato de, na origem de praticamente to-
dos os textos universitários sobre cinema, não ser possível encontrar
uma experiência, simultaneamente efetiva e in qu iridora, de mani-
pulação das engrenagens que compõem o aparelho fílmico, pondo
nesse gesto o fulcro de toda a prática. O clamor generalizado sobre
as “novas mídias” que, entretanto, estalou, na ausência de uma teoria
do cinema mais próxima de suas práticas, esquece ( e obscureceu) o
fato de que, no contexto da animação experimental, há algumas dé-
cadas que se experimenta com computadores; e que esta prática te-
ria sucedido a outras de manipulação de vários e distintos dispositivos,
na tentativa de explorar os limites do espectáculo cinematográfico.
As experiências de McLaren, no âmbito destas últimas, e as de John
e James Whitney com computadores analógicos, são apenas algumas
entre as muitas que se conhecem.

A indiferença e a ignorância promoveram a proliferação entu-


siasmada de discursos sobre “novas” mídias, assumindo as novas má-
quinas de uma forma sumária e exterior, não percebendo que, na
essência de sua novidade, está, sobretudo, o fato de esta expor ine-
quivocamente a imagem fílmica como o artifício que sempre foi, isto
é, enquanto resultado de procedimentos técnicos de aplicação de
modelos conceptuais de reconhecimento e de codificação, fundamen-
48 tados em textos científicos e subjacentes aos processos de represen-
Filme animado e cinema

tação mental e gráfica da realidade numa época pós-industrial.

A irrupção de uma nova modalidade tecnológica não justifica,


só por si, o aparecimento de uma nova prática de comunicação em
substituição de uma outra. Não se trata de uma tecnologia com pleta-
m en te n ov a , tal como aconteceu com a daguerreotipia e com o
cinematógrafo. No caso das tecnologias digitais, apenas o modelo
científico ( subjacente aos novos aparelhos) é novo. Os modos de
produção e de fruição do cinema estão a mudar, mas não é concebí-
vel que toda uma área humana de expressão desapareça apenas por-
que seus dispositivos dominantes de suporte entraram em colapso.
Já noutras ocasiões – por exemplo, na história da arte – assistiu-se a
mortes anunciadas que, após um período conturbado, verificou-se
terem acontecido apenas no nível do questionamento violento e vee-
mente dos modelos instituídos.

Acomodado a um modelo de análise que considera o “fato


fílmico” sobretudo no contexto narrativo e segundo um modelo de
comunicação como representação, isto é, enquanto articulação de
personagens, eventos e ambientes postos a veicular supostas por-
ções da realidade natural; colado a uma experiência de fruição es-
sencialmente dominada por interesses comerciais, no contexto da
qual as especifidades poéticas – não exclusivamente narrativas – têm
dificuldade em distinguir-se; referindo-se, implicitamente, ao esque-
ma de transmissão da informação entre um emissor e um receptor
através do canal que domina o processo; confrontado com a evidên-
cia de, na era das máquinas eletrônicas, não ser possível continuar a
considerar a fotografia como meio de validação da realidade natural;
à imagem da disposição que, anteriormente, separava o audiovisual
segundo sua tecnologia de suporte e que decorria da crise causada
pelo aparecimento e disseminação dos aparelhos de televisão do-
mésticos; ordinariamente, o investigador de cinema prefere pensar
que está perante ou tro meio, ignorando completamente as demons- 49

O que é cinema?
trações conceptuais, críticas, de toda a ou tra história do cinema, a
das experiências irregulares em que o filme animado se inscreve,
que conduzem direta e necessariamente a uma concepção diferente
de “fato fílmico”. Não apenas o tranqüilizante e, no próprio contex-
to, igualmente hegemônico cinema de Walt Disney, mas todos os Len
Lye e Norman McLaren; todas as experiências fílmicas na margem
da sinestesia, da matemática e da programação, como os filmes dos
Whitney; ou extremas como Wochen en de ( 1930) , de Walter Ruttman,
Dark Movie ( 1973) , de Jon Rubin, e Blu e ( 1993) , de Derek Jarman;
ou o Living Cinema, de Pierre Hébert; ou, simplesmente, a postura
elementar de quem constrói um filme a partir de seu próprio corpo:
do gesto da mão sobre a luz, o tempo e a máquina, envolvendo nele
a história da evolução humana.

As novas máquinas de imagens correspondem apenas à última


geração de uma longa linhagem de mecanismos e manuseamentos
31
técnicos da luz, da sombra e do som no tempo, que evoluem à ima-
gem das nossas sensibilidades modificadas e ampliadas por outros
mecanismos que, com aqueles, mantêm laços de parentesco. Inscre-
vem-se no longo processo de evolução social que entalha a tecnologia
na carne humana e, no qual, os animadores são apenas operadores
discretos. Entre os modos de produção e de reprodução de imagens,
e dada a forma rápida de sua divulgação mundial, o cinema fotográfi-
co apareceria unicamente como ocorrência transitória e recente, mas
de conseqüências críticas específicas e determinantes pela forma

31
Sobr e e st e assu n t o, cf. Br ian Win st on , Te ch n ologi es of S e e i n g: Ph ot ogr a p h y ,
Ci n em atograp h y an d Telev i si on ( Londres: British Film Institute, 1996) . No ano de
1996, igualmente, teve lugar no Centro Cultural de Belém ( em Lisboa) , uma importante
exposição de vários desses mecanismos, provenientes das coleções do Museu Nacional
de Turim, Itália, sob o título “A magia da imagem: a arqueologia do cinema através das
colecções do Museu Nacional do Cinema de Turim” e da qual se publicou um catálogo com
o mesmo título.
50 como – juntamente com a fotografia – alterou a nossa relação co-
Filme animado e cinema

mum com o real e com a obra de arte.

Não é o cinema que está em crise, mas o modelo que justifica a


dominância de uma de suas práticas e a identifica, obrigatoriamente,
com certa tecnologia, e não outra. A incerteza quanto ao futuro da-
quela deve ser atribuída apenas à constatação e conseqüências das
profundas mudanças que ocorrem tanto no nível das tecnologias de
suporte quanto na diminuição de importância atribuída à narrativa
fílmica, causada pelo aumento de popularidade de certos programas
de televisão – dos reality show s aos informativos – ou dos jogos de
computador. O cinema estaria, aparentemente, a diluir-se para adotar
modelos que não seriam os seu s. Mudanças que abalam, inevitavel-
mente, o caráter de “absoluto” que decorre de sua dominância. Mas,
para isso, contribuiria igualmente o desconhecimento geral sobre a
existência de outras formas fílmicas, assim como a distância entre
quem produz e quem consome, isto é, a subtração intencional da
evidência dos modos de produção àqueles que são seus consumido-
32
res. De fato, no processo de transição da tecnologia analógica para
a tecnologia digital, não mudam apenas os meios técnicos de comu-
nicação, mas também os meios de participação que diferem de uma
geração para outra.

Durant e cent enas de anos o cavalet e foi encarado como


insubstituível para a qualificação da pintura enquanto uma das belas-
artes, mas desde há um século seu estatuto mudou; ou o da tela e o
do pincel. Isto, obviamente, não conduziu ao desaparecimento da
pintura, mas a seu questionamento. Daqui deve ser deduzida a ne-
cessidade de quebrar definitivamente o elo de exclusividade que

32
E que também tem vindo, recentemente, a ser alterada com a inclusão de documentários
sobre os modos de produção utilizados – os famosos m akin g-of – na comercialização de
cópias em DVD dos filmes, assim como pela vulgarização de ferramentas e aplicações
digit ais.
submete a definição e elaboração do fato fílmico à mesma tecnologia 51

O que é cinema?
de suporte, a qual, tal como acontecia com as tecnologias tradicio-
nais na pintura, ainda justifica que seja tomado sobretudo na função
de representação da realidade visível assumida como natural.

A impressão de crise advém, assim e também, porque – nós,


espectadores atentos e interessados, num contexto definido por um
cinema que passa por transformações complexas e óbvias – nos con-
frontamos com teorias que nos foram sempre propostas como defini-
tivas, canônicas, e que, agora, finalmente, começam a mostrar-se nuas
em sua incompletude.

É nesse contexto que me cabe investigar a especificidade do


filme animado. Perante a impossibilidade de o fazer no interior de
uma noção restritiva de cinema, a qual me obrigaria a não mencionar
aquelas que são as práticas essenciais da animação, e sem as quais o
filme animado simplesmente não é; que não só não as reconhece
como nem sequer as menciona com propriedade quando muito ex-
cepcionalmente o faz.

Como refletir, simplesmente, sobre filme animado sem ter de


rever os fundamentos da teoria dominante que o omite? Como supe-
rar o modelo para o qual o cinema de animação é sumariamente to-
mado como gên er o art íst ico menor, indist int ament e colat eral,
supostamente gráfico, ou reduzido sumariamente a “subgênero da
pintura”, e, portanto, não genuinamente cinematográfico? Modelo
de onde decorre a convicção geral e comum de que sua função seria,
sobretudo, a de divertir crianças e, por vezes, a de proporcionar uma
distração ligeira e inconseqüente aos adultos. Ou, então, a de sua
utilidade enquanto técnica entre as que se incluem no repertório de
efeitos de trucagem necessários à produção do efeito de realidade.
No mais, o termo “animação” permaneceria confinado por historia-
d or e s e acad ê micos n u ma su bár e a, imp r e cisa, d e p r át icas
52 protocinemáticas. Caber-me-ia – como a outros antes de mim – pro-
Filme animado e cinema

duzir mais um texto associando a animação ao cinema avan t-garde,


experimental, absoluto… relevando a evidência excepcional ( em que
a regra não se verifica) de uma prática artística no seio da institui-
ção; ou, então, optar por mais uma descrição do filme animado defi-
n id o p or op osição ao cin e ma d e “image m r e al”. Re sp e it an d o,
tacitamente, o pacto de nunca abordar aquelas que são as questões
fundamentais: o que é, de fato, um filme? O que é que o distingue?
Como é que se faz? Quais são seus elementos mínimos e o que é que
sua articulação exprime? Como é que sua prática pode ser delimita-
da? Ou, nas palavras de Alain Badiou:
Um filme é o que expõe a passagem da idéia segundo a apreensão e a
montagem. Como é a idéia apreendida, ou, mesmo, surpreendida? E
como é ela montada? Mas, sobretudo: o que é que o fato de ser apreen-
dida e montada no suplemento heteróclito das artes, nos revela de
singular e que não podíamos anteriormente saber, ou pensar, dessa
33
idéia?

33
Alain Badiou, Petit m an u el d’in esthétiqu e ( Paris: Seuil, 1998) ; cf. também Meditações
filosóficas, vol. II ( Lisboa: Instituto Piaget, 1999) , p. 122.
A representação fílmica do
espaço e do tempo reais:
dispositivo conceptual

Cinema é aquilo que não pode ser contado.


René Clair, Le théâtre et la comoedia illustré

A pesar da evidência das práticas do filme animado, a discussão


teórica dominante no seio do cinema cingiu-se sempre à ques-
tão principal da representação fílmica do “real”, quer, com Eisenstein
ou Arnheim, se pusesse a tônica na composição formal dos fragmen-
tos ( plan os prévios à montagem) , considerando que “a sua caracte-
rística esteticamente mais significativa era a sua capacidade de
34
manipular a realidade”, quer fosse posta na relação do filme com o
“real”, como com Bazin ou Krakauer, para quem a “especificidade do
cinema não residiria na capacidade de manipulação da montagem,
mas em seu oposto, ou seja, no ajustamento plástico da imagem cine-
35
matográfica ao sentido da realidade”. Obviamente, tanto uma como
a outra posição partem de um modelo apoiado no pressuposto obri-
gatório e, para si mesmo, inquestionável da “naturalidade” da ima-
gem cinematográfica, que a toma como impressão direta da realidade
enquanto isenta de manipulação, e isto tanto no nível das engrena-
gens técnicas que a produzem, quanto no nível da própria codificação

34
Paulo Filipe Monteiro, “Fenomenologias do cinema”, em Rev i sta d e Com u n i cação e
o
Lin gu agen s – O qu e é o cin em a?, n 23, Lisboa, dezembro de 1996, p. 66.
35
Ibid., p. 67.
54 gráfica. Como conseqüência, este modelo exclui irrevogavelmente
Filme animado e cinema

quer as criações fílmicas não fotográficas de representação do real,


quer aquelas que são estranhas a qualquer regime de representação,
como muitos dos filmes de Norman McLaren ou de Len Lye, por
exemplo. Sobretudo, esta forma de assumir o filme sujeita-o – sujei-
tando-nos a todos – à concepção do dispositivo fílmico enquanto “cai-
xa-pret a”, numa dependência t écnica que o t oma t ant o como
“evidente” – e, logo, indiscutível, porque neutro – quanto como
inabordável. Esta assunção exprime não só uma ingenuidade e um
desconhecimento fundamental no relacionamento com a lista restri-
ta de possibilidades programadas que o dispositivo permite, como
também a renúncia a discutir o modelo conceptual – o programa –
que o define e o subtrai ao olhar.

Cinema gráfico ou cinematográfico


Aqueles que constroem imagens num contexto de representa-
ção – pintores, ilustradores, design ers, fotógrafos – sabem que, em
seu trabalho, a tomada de decisões é inevitável, constituindo parte
do processo de produção e variando segundo o tipo de documento
visual pretendido. Todos os modos de fabrico e codificação de uma
imagem int egram obrigat oriament e procediment os de seleção,
enfatização e exclusão de porções do real que lhe serve de referen-
te. Uma das condições prévias à representação gráfica é saber que,
porquanto fiel à realidade, proporcionada e precisa nos pormenores,
particularizada em cada uma de suas partes, aquela procede sempre
de uma interpretação, sendo, por isso e também, uma tentativa de
ex plicação da própria realidade.

Na história da arte e dos processos representativos, verificou-


se freqüentemente o equívoco de considerar que a finalidade desses
processos consistia no elaborar não de um sub-rogado, um substituto,
mas de uma reprodução verídica, fiel e equivalente à realidade figu-
rada. Embora atualmente todos concordemos nesta falácia das ima- 55

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


gens, ainda é possível detectar atitudes que, em seu confronto, dei-
xam transparecer ingenuidade ou completo desconhecimento. Como
interpretar os discursos que lamentam ou sublinham a atual e assumi-
da manipulação digital das imagens cinematográficas obtidas – ou não
– fotograficamente? Onde situar a famosa frase, proclamada por Jean-
Luc Godard no início de sua atividade e ecoada por tantas outras vo-
zes, entre elas a de Pasolini – “A fotografia é a verdade, e o cinema é
36
a verdade 24 vezes por segundo” –, afirmação que, ainda hoje, pare-
ce indiscutível a tanta gente que escreve sobre cinema? Atitude que
– pela sua ingenuidade – estaria no nível da do espectador que foge
da imagem do trem chegando projetada na tela ou que se horroriza
perante as cabeças e mãos “decepadas” pelos close-u ps.

Ora, no processo de fabrico das imagens são usadas ferramen-


tas e, em alguns casos, os procedimentos dependem da articulação
de mecanismos. Com a utilização das primeiras, o processo é osten-
sivamente imediato: o pincel prolonga o gesto na tela e não obsta à
proximidade entre o pintor e a obra, por exemplo. Nas outras, como
na fotografia, a elaboração das imagens é sempre mediada – no espa-
ço e no tempo – por dispositivos e procedimentos, em certa medida,
obscuros, que cumprem funções ou conjuntos de funções. Nos pri-
meiros casos, a produção assume-se como fisiológica e im ediata,
isto é, tanto a prótese como o procedimento que ela articula são
patentes, e cada uma de suas fases não procede senão da escolha
daquele que a faz: não só a utilização de pincéis, lápis ou buris, ges-
sos, tábuas, papéis ou telas com a respectiva preparação, redes,
lixívias, ácidos, gomas e pigmentos, mas também o uso de dispositi-
vos mais complicados, como réguas, transferidores, compassos e
pantógrafos de estirpe diversa, prensas, etc. O criador domina a

36
Jean-Luc Godard, Le petit soldat, realizado em 1960 e estreado em 1963.
56 instrumentalidade de suas ferramentas ao ponto de saber fazê-las,
Filme animado e cinema

segundo a necessidade. Nos outros casos, a produção assume-se como


m ecân ica e m ediada, sendo, em parte ou na totalidade, efetuada
por séries de procedimentos automáticos e necessariamente esqui-
vos ao olhar daquele que a controla apenas pelos resultados finais e
pela memória da experiência que vai acumulando. Nesta situação, a
origem da obra esconde-se no interior da engrenagem técnica, afas-
tando-se e criando obstáculo ao processo criativo.

De que modos é que o real se torna imagem?


Diz Arnold Hauser:
[…] o caráter essencialmente fotográfico do cinema impõe que deva
conservar por alterar alguns pedaços da realidade e permitir que “a
voz da natureza” seja ouvida mais diretamente do que no caso das
outras artes. Pois, por “naturalistas” que estas possam ser na sua esco-
lha de meios, nunca podem fazer mais do que imitar objectos naturais,
e nunca podem usá-los num estado bruto e original inalterado. […] o
cinema é a única forma de arte que toma posse de consideráveis frag-
mentos inalterados da realidade; interpreta-os, evidentemente, mas a
interpretação permanece fotográfica. Uma paisagem fotografada, ou
uma rua, uma frase ou gesto fotografados permanecem muito do que
37
são em si próprios.

Embora considere a “interpretação”, obviamente técnica, como


interveniente no processo de registro do real, Hauser não a toma
como origem de alteração, de transformação do real em artifício,
imitação de si mesmo, reservando esta característica como específi-
ca de “outras artes”, figurativas, naturalmente. Para esse autor, o
que vemos na tela ( implicitamente excluído o filme animado) são
“fragmentos inalterados da realidade”. Dir-se-ia que o filme opera
apenas pelo que retira do visível, e devido a isto a imagem seria o

37
Arnold Hauser, Teorias da arte ( 1958) ( Lisboa: Presença, 1978) , p. 402.
resultado das operações de recorte operadas pelo enquadramento e 57

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


pelo limite na duração.

Ora, nessa afirmação, Hauser parece classificar o procedimen-


to fotográfico da câmera de filmar também do lado das coisas natu-
rais, não manipuladas, não construídas pelo homem à imagem de seus
próprios códigos de reconhecimento e, portanto, neutro e irrelevante
do ponto de vista epistemológico; no contexto do qual, o termo “in-
terpretação” seria concebido apenas enquanto escolha prévia da
orientação e delimitação da configuração de luz proveniente dos
objetos reais, e não como processo de codificação, de transforma-
ção, a partir dessa mesma configuração enquanto substância mate-
rial e plástica entre outras.

Não é assim, como se sabe. Primeiro, porque a história da in-


venção técnica da fotografia acompanha a da invenção dos próprios
modelos de codificação gráfica que suportam o fabrico das imagens,
no contexto de dogmas culturais profundos no que se relaciona com
o sen tido e a verossim ilhan ça das representações. A imagem “vis-
ta” pela câmera fotográfica não corresponde à visão humana, já o
sabemos. É, de resto, por isso que foi inventada: para cumprir fun-
ções que não somos capazes de realizar. As de registro e permanên-
cia no tempo não são as únicas. Segundo, porque a execução de uma
boa fotografia implica uma competência simultaneamente técn ica e
poética, isto é, seu utilizador deve conhecer não apenas o repertó-
rio de boas práticas, como modo de acesso à lógica de funciona-
mento do dispositivo em si mesmo, mas também saber aplicar e
transcender esses mesmos critérios segundo modos ( que, à partida,
são normativos) de articulação dos componentes essenciais da ima-
gem fotográfica. Aquele que faz fotografia deve com preen der o dis-
positivo, isto é, ter interiorizado pela aprendizagem e pela experiência
os modos e contextos pelos quais é possível atingir a produção de
uma “certa” imagem de qu alidade com “aquele” aparelho ( caixa e
58 sistema de lentes e de obturação) e “aquela” película, específicos,
Filme animado e cinema

em função da porção de realidade que pretende registrar. Ainda que


não conheça os cálculos que levaram à construção das lentes e à
montagem destas em sistema óptico; ainda que dependa de técnicos
para o ajuste do sistema de obturação de sua câmera; sabendo ou não
emulsionar uma superfície de modo que ela se torne sensível à luz;
conhecendo ou não a influência da escolha dos líquidos e tempos de
revelação e de fixação no resultado final. O fotógrafo sabe que sua
imagem depende diretamente de um processo complexo de esco-
lhas arbitrárias e de sucessivas manipulações técnicas e padroniza-
das sobre a configuração de luz, refletida por objetos reais, que
escolheu.

E, ainda, do ponto de vista exclusivamente gráfico, a qualidade


da superfície do papel – ou qualquer outra matéria – que irá suportar
a fotografia e a da substância que o pode marcar são – essas, sim –
38
n atu rais e não se confundem com os componentes essenciais, tra-
ço e tipo de plano de representação, pelos quais se organiza qual-
quer fabricação gráfica. Simultaneamente, excedem e integram a
dimensão representativa da imagem. Assim devem ser, igualmente,
entendidas as qualidades físicas de transparência da película no filme
impressionado e, depois, daquela que é projetada em sala; a aparên-
cia física dos cristais que a pigmentam; a orientação, dimensão e pro-
priedades de reflexão da tela; a orientação, intensidade e temperatura
de cor da luz de projeção; o grau de deformação e luminosidade das
lentes do projetor, etc.

No filme fotográfico, entre a realidade objetiva – o mundo


material e visível – e a película em que aquela é registrada, ou entre

38
Os ensaios de Didi-Huberman sobre a histeria mostram com evidência, ainda que em
circunstâncias bem delimitadas, a importância da diferença entre o papel – aquele papel,
e não outro qualquer – enquanto elemento único, real, da imagem e o de sua utilização
enquanto suporte gráfico. Cf. Georges Didi-Huberman, In ven tion de l’hy stèrie: Charcot
et l’icon ographie photographiqu e de La Salpetrière ( Paris: Macula, 1982) .
esta e a projeção cinematográfica, existem certas operações, todo 59

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


um trabalho que tem como resultado o produto acabado. Por um
lado, todos estes procedimentos pressupõem escolhas de codificação,
as quais, na maior parte dos casos, encontram-se normalizadas se-
gundo valores ou fixadas em dispositivos automáticos ideologicamente
indiscutíveis ou mesmo fisicamente inacessíveis, de acordo com pro-
tocolos industriais; por outro, estão protegidos do olhar, não permi-
tindo a observação imediata das transformações que ocorrem no
processo. São raros os filmes nos quais “qualquer coisa” – um erro ou
um acidente – exibe ostensivamente o filme enquanto fabricação. Le
dix -septièm e parallèle ( 1968) , de Joris Ivens e Marcelline Loridan,
é um exemplo, no qual as imagens vão sendo suportadas por pelícu-
las de diferente sensibilidade e que, por isso, permitem “vê-la” na
passagem entre as diferentes texturas de “grão” ( os cristais micros-
copicamente “grandes” das películas mais sensíveis, “puxadas”) . Esta
“ingenuidade” técnica, originada pela exigüidade dos materiais e pela
urgência resultante de toda a situação gerada pela Guerra do Vietnã,
simultaneamente objeto e contexto de realização do próprio filme,
pela qual este – enquanto suporte físico das imagens – é oferecido à
39
observação, vem reforçar o valor de autenticidade documental do
filme citado. Mas, paradoxalmente, vem propô-lo igualmente como
obra poética, artifício, elaboração expressiva sobre uma matéria que
decorre da manipulação de uma realidade específica e não apenas

39
A exibição do grão da película é, atualmente, um dos artifícios habituais usados com o fim
de inspirar autenticidade. Sobre este assunto, cf. Michael Renov, Theoriz in g Docu m en tary
( Nova York/Londres: Routledge, 1993) , p. 8: “No que respeita à imagem em movimento
– usada para entreter, enquanto prova ou para venda –, indexicalidade e a transformação
em mercadoria permanecem historicamente ligadas. Em qualquer caso, o valor da ima-
gem depende de sua habilidade para inspirar crença em sua ‘real’ proveniência […] Ele-
mentos estilísticos trazidos do passado do documentário – quanto mais riscado e granuloso
melhor – são hoje adicionados rotineiramente aos comerciais televisivos para vender
sapatos, motos ou serviços telefônicos, enquanto antídoto para sua fraudulência implícita.
Se a produção independente de documentários encontra-se excluída das ondas de trans-
missão aérea da nação, seu aspecto low -tech ( um subproduto histórico do trabalho) foi
maciçamente apropriado por Madison Avenue – outro ingrediente especial acrescentado
num mercado saturado”.
60 pela “marca” que esta deixa na película; na qual a presen ça dos auto-
Filme animado e cinema

res no dispositivo assume-se por isso mesmo. Neste caso particular,


é óbvio o conflito entre a ilusão de tridimensionalidade do “real” –
captado pela câmera de filmar e projetado na tela – e a assunção da
imagem fílmica enquanto artifício construído sobre uma superfície
bidimensional. Veremos, tanto neste como no próximo capítulo, “A
colaboração do espectador interessado”, que o é sempre. Em todos
os casos, o espectador tem consciência daquilo que vê e daquilo que
se supõe que ele veja e om ita, não vivendo a conflitualidade da si-
tuação por esta ser considerada, pela maior parte dos realizadores,
40
como apenas problemática e perturbadora no processo de fruição.

No filme fotográfico, a velocidade do registro de imagens pro-


cede segundo uma relação mecânica, padronizada. A câmera, por
meio do sistema óptico e pelo funcionamento rigoroso e preciso de
seus mecanismos, realiza a análise das configurações luminosas, pro-
venientes do exterior, segundo uma série seqüencial de fotogramas
eqüidistantes na película, à razão calculada de 24 por segundo. O
realizador deste tipo de filmes não tem acesso ao controle do tempo
pontual que medeia a sensibilização de dois fotogramas consecuti-
vos. Neste contexto, apenas durante a fase de montagem existe a
41
possibilidade de cortar e justapor fotogramas. A seqüência dos pla-
nos das estátuas do leão, no fim da seqüência da escadaria de Odessa,
em O cou raçado Potem kin , de Sergei Eisenstein, é qu ase uma ani-
mação; quando tal acontece, o discurso fílmico deságua, obrigatoria-

40
A designação técnica para esta condição do espectador é, em inglês, su sp en si on of
disbelief. Foi criada pelo escritor britânico Samuel Taylor Coleridge na sua Biographia
literaria, de 1817, designando a aceitação do leitor/espectador em suspender sua facul-
dade crítica de modo a ignorar inconsistências óbvias e, assim, poder deixar-se envolver
pela obra de ficção.
41
Não é por acaso que o protagonista de Blow -ou t, de Brian de Palma, usa local e disposi-
tivos de animação para montar os “fotogramas” recortados da revista; a recomposição
visualizada no filme não corresponde, no entanto, ao resultado do procedimento visualizado,
já que a falta de fotogramas entre as imagens disponíveis, esparsas, não permitiria nunca
a sincronização com a banda sonora. O resultado provável seria uma seqüência demasiado
rápida, assíncrona e saltitante.
mente, numa relação expressiva diferente, alterada, entre o espaço 61

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


e o tempo, libertando efeitos inquietantes, emblematicamente i r-
reais, pela ruptura provocada. Digo que é quase uma animação por-
que não o é de fato: neste caso, o realizador parte de uma seqüência
padronizada de registro do objeto visível, uma progressão discreta,
mas contínua e eqüidistante de imagens aleatórias, que correspondem
a uma seqüência de instantes sucessivos, e que funciona como unida-
de, plan o. A esta porção de filme, posteriormente, irá subtrair ele-
mentos, para depois a montar numa progressão diferente, com outras
seqüências de fotogramas nas quais procedeu de igual modo e com
resultados obviamente diferentes dos habituais no nível da percep-
ção. A intenção do autor não é construir uma ilusão de movimento,
mas sugeri-la. Diferentemente, a animação parte sempre da própria
concepção da seqüência de imagens como sucessão de instantes to-
mados discretamente, não em si mesmos, mas como lim ite de um
intervalo simultaneamente de tempo e formal; como registro de uma
diferença intencional. A intenção do autor é a construção de uma
ilusão de movimento. Voltarei a este assunto mais adiante.

O desfilar uniforme, mas igualmente discreto, intermitente, das


imagens pelo sistema de projeção irá acrescen tar o movimento e a
ilusão de continuidade subtraídos aos objetos fotografados durante
a filmagem, conservados como seqüências de configurações gráfi-
cas, planas e estáticas sobre a película, repetindo a raz ão entre o
tempo de execução da ação real e o tempo de registro das imagens
pela câmera, e permitindo, assim, a aparente devolução do movi-
mento das ações registradas.

Filme
Só pode fazer sentido falar de filme no contexto definido por
todas as práticas fílmicas e, também, por aquelas outras que exibem
qualquer coisa que poderia ser definida como “valor cinematográfi-
62 co”, que constatamos estar presente em linguagens, objetos e acon-
Filme animado e cinema

tecimentos cuja singularidade foi marcada pela dimensão expressiva


e de conhecimento facultadas pelo cinema.

O modo de fazer cinema transcendeu a tecnologia fotoquímica


e já não é possível continuar a referir-se-lhe como origem absoluta,
abstrata, do cinema dominante. A quantidade de informação capta-
da pela objetiva já só é, assumidamente, apenas mais uma no univer-
so das subst âncias plást icas, mat eriais, suscept íveis de serem
transformadas, manipuladas. O cinema dominante m en te como sem-
pre m en tiu , só que agora seu dispositivo é ostensivamente plural e
incoerente:
As tecnologias que abrangem o campo de força do cinema ( filme, vídeo,
som, digital) e que são dedicadas ao espetáculo abrangente […] ao
mesmo tempo são constelações que não podem ser alinhadas ou coe-
rentes. Elas polarizam-se à volta de modos diferentes para conseguir
suas grandes ilusões; notadamente a descontinuidade fílmica – “os
flicks”, em que as imagens únicas parecem mover-se por exposição no
tempo –, e a continuidade eletrônica – “a tela de TV”, cujas imagens
aparentes são fluxos de sinais que registram a fragmentação da luz por
42
esquadrinhamento. Isto fá-lo romper com o real que tenta denotar.

Cada filme é uma atualização de algumas entre as possibilida-


des inscritas no dispositivo cinematográfico, quaisquer que sejam as
tecnologias de suporte. Estas correspondem a procedimentos que
cabem naquela que é considerada a boa prática, apresentando-se
convenientemente ordenadas nos manuais escolares e profissionais.
O realizador “escolhe”, entre as categorias disponíveis, as que lhe
parecem mais convenientes. Essa escolha é, contudo, sempre limita-
da pelo tipo de opções previstas no program a implícito na idealização
do dispositivo. O inteiro universo fílmico representa a realização de

42
A. L. Rees, A History of Ex perim en tal Film an d Video ( 1999) ( Londres: British Film
Institute, 2000) , p. 5.
algumas dessas virtualidades por interposta ação dos realizadores. 63

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


Estes não podem senão submeter-se à lógica do dispositivo que não
prevê a instauração de novas categorias. Em circunstâncias normais,
organizadas segundo a n orm a, o realizador vive o totalitarismo do
aparelho: suas decisões estão previstas entre um leque possível de
opções, sua consciência e sensibilidade são com preen síveis. Alguns
tentam, no entanto, combater a previsibilidade pela introdução de
elementos ou relações inesperadas, pugnando pela libertação do gesto
no contexto da progressiva imposição da norma, como era comum
durante o período do construtivismo russo, por exemplo, e, em ge-
ral, durante os primeiros trinta anos da história do cinema. Alguns
desses esforços excedem o aceitável e são rejeitados por não serem
reconhecidos como p róp rios da atividade; outros acabam por ser
recuperados pelo dispositivo, enquanto revelação de possibilidades
até então desconhecidas – possíveis enquanto toleradas, isto é, de
fato enquanto conjunto de im possibilidades –, sendo imediatamen-
te absorvidas e catalogadas no repertório admitido como boa prática.

Uma teoria do cinema – como aquela que aqui se pretende


apresentar – deve ter como função inquirir as condições e limites de
previsibilidade impostos pelo dispositivo, questionando modos e pro-
cessos de codificação. No caso do filme, isso pressupõe o exame dos
processos de manipulação da representação gráfica do real, mas, igual-
mente, dos de composição do movimento e dos que controlam a re-
lação continuidade/descontinuidade fílmica – já mencionados e que
trataremos na segunda parte deste livro: “Poética ( manipulações) ”.
Obriga, sobretudo, ao questionamento dos dispositivos técnicos e
ideológicos que estão na origem e suporte da linguagem fílmica.

O quadro enquanto janela


O cinema fotográfico aparece na seqüência de uma série de
estratégias técnicas e sociais de representação gráfica e de projeção
64 de imagens, que têm por objetivo o registro mais preciso possível da
Filme animado e cinema

realidade visual e sua observação, e que são tão antigas quanto a


humanidade. Suas origens próximas são at ribuídas aos irmãos
Lumière, franceses, que, em 1895, em Paris, realizam a primeira
projeção cinematográfica aplicando, para isso, uma série de disposi-
tivos e conhecimentos de diferente proveniência, então, disponíveis.
O germe da invenção é, contudo, tradicionalmente situado na Itália,
no início da segunda metade do século XVI, quando Giovanni della
Porta aperfeiçoa a cam era obscu ra – espécie de quarto escuro, até
aí usado pelos astrônomos na observação das manchas solares –, co-
locando um sistema de lentes em seu furo estenopeico – pequeno
buraco aberto no teto ou numa das paredes, por onde entrava a luz
do sol no auge de sua luminosidade. Deste dispositivo irão evoluir
quer os mecanismos cinematográficos de registro de imagem, que
conhecemos, quer os de projeção. O aperfeiçoamento das lentes – e
sua associação em sistemas ópticos – irá permitir tanto a captação
como a projeção focada das imagens e, logo, o controle da profundi-
dade de campo como função da distância focal e da quantidade de luz
refletida pelo objeto. Este aspecto da visualização das chamadas ima-
gens “naturais” – que acompanha a aplicação dos princípios determi-
nados por Leonardo no âmbito de uma perspectiva aérea – será o
primeiro no esforço pelo controle das produções gráficas obtidas por
este processo; o outro terá a ver com o coeficiente de deformação
das lentes que compõem o sistema óptico e que, segundo vários
43
registros, será uma das preocupações maiores daqueles que irão
usar esses dispositivos para a captação de representações – inicial-
mente apenas gráficas – do real.

43
Este tipo de preocupações técnicas de correção da diferença formal entre a impressão
visual direta ( do mundo físico) e a mediada por uma imagem, necessária ao registro
simulado do real – anacrônicas no domínio das artes plásticas contemporâneas porque
assumidas num contexto poético – manter-se-á atual e pertinente no contexto da produ-
ção cinematográfica dominante. Robert Bresson aconselhava: “Ser escrupuloso. Rejeitar
tudo aquilo que do real n ão se torn a verdadeiro ( A pavorosa realidade do falso) ”. Cf.
Robert Bresson, Notes su r le cin ém atographe ( 1975) ( Paris: Gallimard, 1988) , p. 139.
Durante a mesma época a lanterna mágica é aperfeiçoada pe- 65

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


los padres jesuítas, a fim de ser usada na exibição de imagens neces-
sárias à demonstração de conhecimentos obtidos pela observação
44
telescópica e microscópica, assim como na ilustração do texto bí-
blico durante as prédicas. Será a partir de um deles, Athanasius Kircher,
que será estabelecida a relação entre produtor, imagem e público
45
que, ainda hoje, se mantém inalterada. No funcionamento, trata-se
de um dispositivo semelhante à cam era obscu ra, mas no qual o sen-
tido da luz encontra-se invertido, partindo de seu interior e indo pro-
jetar-se numa superfície refletora exterior. Além de aspectos relacio-
46
nados com a capacidade narrativa das imagens projetadas, com as
lanternas mágicas foram, igualmente, questionados e experimenta-
dos alguns dos efeitos de movimento aparente a que hão de condu-
zir, passando por panoramas, dioramas, e outros mecanismos, tais
como o Teatro Óptico de Émile Reynaud, à invenção dos dispositivos
de vários tipos que constituem a pré-história imediata do espetáculo
cinematográfico.

A produção de imagens manteve, desde sempre, relações com


o real sensível, em termos tanto de representação como de sua ma-
nifestação direta. Os grafismos pré-históricos, presentes nas pare-
des de cavernas e rochas, distribuem-se por ambas as categorias:
representações de animais e de gente no primeiro caso; marcas de
mãos por impressão ou, em negativo, por aspersão do pigmento so-
bre a mão, no segundo.

A partir do Renascimento temos representações gráficas que


procuram ostensivamente respeitar e reproduzir, no plano do dese-
nho, a imagem projetada na retina daquele que observa. Os funda-

44
Cf. Ingrid D. Rowland, “The Ecstatic Journey: Athanasius Kircher in Baroque Rome”,
catálogo de exposição ( Chicago: University of Chicago Library, 2000) .
45
Cf. Brian Winston, Techn ologies of Seein g..., cit., p. 34.
46
Cf. Alain Lacasse, “La lanterne magique”, em Protée: Théories et Pratiqu es Sém iologiqu es,
19 ( 3) , outono de 1991, pp. 30-34.
66 mentos que explicam a visão das imagens, e que se vão organizando
Filme animado e cinema

sob o nome de perspectiva n atu ral, já tinham sido esboçados por


47
Biagio da Parma, embora, como se sabe, só com Brunelleschi, Leon
Battista Alberti e Piero della Francesca tenham sido depurados e
aplicados num método estável e rigoroso de representação gráfica: a
48
p ersp ecti v a arti fi ci al.

Os objetos, de acordo com as normas da perspectiva, são repre-


sentados deformados ou reduzidos segundo sua posição relativa ao
ponto central, que, no espaço, é ocupado pelo observador e é deno-
minado “ponto de vista”. No plano do desenho, a articulação dos ele-
mentos gráficos tem por base uma regulamentação geométrica que
controla a profundidade das coisas e, por conseqüência, a gradação
sistemática e hierárquica dos objetos no espaço segundo relações que
reúnem grandeza e distância, forma e inclinação, luminosidade e pro-
fundidade, etc. Aparece, pela primeira vez, um sistema que supõe
objetividade no interior dos modos de organização sintagmática dos
elementos que compõem a representação gráfica e que introduz as
noções de medida e de proporção, imprescindíveis, igualmente, aos
fundamentos da ciência emergente na época.

A tradução gráfica da profundidade não é só um modo de re-


presentar o mundo tridimensional sobre uma superfície bidimensional,
mas o modo que irá permitir sua observação e respectivas quanti-
ficação e hierarquização em planos: sua racionalização. A análise e a
memória tornam-se visuais, e o desenho é o único instrumento ade-
quado na conversão do sensível em inteligível. A geometria emerge,
necessária, na transição entre a subjetividade – presente no modo de
relacionamento empírico, pessoal, de caráter sensível, entre aquele

47
Cf. Biagio Pelacani, Qu aestion es perspectivae ( 1390) , apu d Robert Klein, La form e et
l’in telligible ( Paris: Gallimard, 1970) , pp. 238-239. Cf., igualmente, Pedro Miguel Frade,
Figu ras do espan to ( Porto: Asa 1992) , p. 210.
48
Cf. Hubert Damish, L’origin e de la perspective ( 1987) ( Paris: Flammarion, 1993) .
que observa e aquilo que, a uma dada distância, é por ele observado 67

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


– e a objetividade, pressuposta na estruturação de um sistema que
determina relações de correspondência entre dois outros sistemas:
um, constituído por veículos gráficos articulados entre si segundo
uma gramática estabelecida; o outro, por unidades perceptivas e cul-
turais codificadas, isto é, unidades pertinentes a um sistema semânti-
co que depende de uma precedent e codificação da experiência
perceptiva. No processo, assume particular relevância a concepção
prévia, depurada até a abstração, de um espaço puro, anterior em
relação aos objetos que nele, coerente e racionalmente, têm seu lu-
gar. A perspectiva aparece, assim, como o dispositivo espacial, geo-
métrico, visual, a partir do qual se organizam os elementos no espaço
de representação para logo se tornar ideológico, isto é, que funda a
estrutura conceptual a qual permite pensar a realidade e que, como
tal, irá conduzir a um modelo normativo – e que se omite enquanto
tal – subjacente a seus modos de representação.

A demonstração de que a perspectiva é não apenas um sistema


de pensar o real, mas de “produzi-lo”, sobrevém no barroco, época
durante a qual a aplicação rigorosa das regras perspécticas – que
também conduziu à geometria e à óptica – serve de base na multipli-
cação d e d isp osit ivos qu e p r od u ze m e e xibe m me t amor fose s,
anamorfoses e trom pe l’œ ils.

A metamorfose, em sua maior parte, corresponde à constru-


ção mecânica e/ou óptica – pelo uso de máquinas catóptricas – de
imagens animadas entre a figura humana e a de qualquer outro ser.
O domínio dos dispositivos ópticos, como lentes e espelhos, permite,
igualmente, ver fan tasm as nas trevas: a construção de modelos na
escala apropriada, que suportariam a projeção ou que a resguarda-
49
riam de um olhar mais curioso, firmaria a ilusão.

49
Cf. Jurgis Baltrušaitis, Le m iroir ( Paris: Elmayan/Le Seuil, 1978) .
68 A anamorfose é um dispositivo de desenho que usa as regras
Filme animado e cinema

da perspectiva, mas seu objetivo é-lhe contrário: nela o objeto re-


presentado não deve ser imediatamente identificável, e a imagem
exige do observador que assuma sua competência e coloque-se no
lugar que a linguagem lhe reserva, como é o caso no quadro de Hans
Holbein, Os em baix adores, de 1533.

O trom pe l’œ il aparece como outra das possibilidades de re-


presentação perspéctica: a representação apresenta-se como algo
que faz parte da realidade visual envolvente, revelando-se naquilo
que é quase imediatamente um truque produzido pelo efeito de ma-
ravilha que aparece no momento em que se deixa de ver e se come-
ça a com preen der.

Ao mesmo tempo que concretiza uma distância ( e uma hierar-


quia segundo planos) entre o homem e as coisas ( “em primeiro lugar
vem o olho que vê, em segundo lugar o objeto que é visto, em tercei-
50
ro lugar a distância intermediária”) , a perspectiva faz com que ela
desapareça da consciência pela integração psicomotora de seu dis-
positivo de representação.

A tela como janela


Conforme vimos, uma imagem em perspectiva apresenta-se,
simultaneamente, como extensão bidimensional – uma superfície –
e como conjunto organizado de informações que tem como objetivo
a simulação de uma cena tridimensional. Aquele que a vê não pode
evitar ter consciência de ambos. A imagem do filme fotográfico –
projetada na tela da sala de cinema – cabe neste contexto. As formas
gráficas estão dispostas na imagem segundo regras rígidas, conven-
cionais, que simulam a disposição de formas tridimensionais num es-

50
A. Dürer, apu d Erwin Panofsky, La perspective com m e form e sy m boliqu e ( Paris: Éditions
de Minuit, 1975) , p. 160.
paço cavo e aberto como uma janela perante aquele que observa. 69

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


Münsterberg explica o processo e mecanismos de percepção que
tornam possível a ilusão fílmica usando, como modelo, a experiência
do espectador de teatro:
Vamos imaginar que estamos sentados na orquestra de uma verdadei-
ra sala de teatro e vemos diante de nós o cenário de uma sala com
móveis e pessoas dentro dela. Agora nós estamos vendo os diferentes
objetos no cenário a diferentes distâncias, alguns perto, outros longe.
Uma das causas acabou de ser mencionada. Nós vemos tudo com nosso
olho direito ou nosso olho esquerdo de diferentes pontos de vista. Mas
se agora nós fecharmos um olho e olharmos para o cenário somente
com o olho direito, o efeito plástico não desaparece. As causas psicoló-
gicas para esta percepção de profundidade com um olho são essen-
cialme n t e as d ife r e n ças d e t aman h o ap ar e n t e , as r e laçõe s e m
perspectiva, as sombras e as ações realizadas no espaço. Agora todos
esses fatores que nos ajudam a ver os móveis enquanto sólidos e materi-
ais desempenham seu papel nada menos que na sala projetada na tela.
Estamos muito prontamente inclinados a imaginar que nosso olho pode
ver diretamente as diferentes distâncias a nosso redor. Temos, contu-
do, apenas de imaginar que uma placa de vidro larga é colocada no
lugar da cortina cobrindo o cenário inteiro. Agora vemos o cenário
através do vidro; e se olharmos para ele somente com um olho é evi-
dente que cada ponto único no cenário deve enviar sua luz para nosso
olho pelos raios de luz que cruzam a placa de vidro, o efeito no olho
seria necessariamente o mesmo se eles fossem originados a diferentes
distâncias atrás do vidro. Ocorre exatamente o mesmo no caso da tela.
Caso as imagens sejam bem tomadas e a projeção bem definida, ao nos
sentarmos a distância correta da imagem projetada, deveremos ter a
mesma impressão de como se olhássemos através de uma placa de
51
vidro para um espaço real.

A disposição simbólica da cena – em perspectiva – que se ofe-


rece ao espectador implica, por definição, a inclusão do ponto de

51
Hugo Münsterberg, The Film : a Psy chological Stu dy ..., cit., pp. 21-22.
70 vista ocupado por aquele que observa, e, portanto, que o sentido se
Filme animado e cinema

faz com ele. Como diz Münsterberg: “como se olhassemos através


de uma superfície de vidro para o espaço real”. Pelo que a bidimen-
sionalidade da tela, assim como a imobilidade desta e de cada um dos
espectadores, é necessária ao espetáculo cinematográfico. No en-
tanto, a rigidez desta relação entre o ponto de vista e a imagem ob-
servada deve ser mantida no plano convencional como não explícita.

Esquecendo que a imagem, qualquer imagem, é feita “tanto de


52
dissemelhanças quanto de semelhanças”, para Bazin, a imagem na
tela confirmava a existência natural da realidade, e não a do autor do
processo que levava ao filme ou a do espectador onde este aconte-
cia. Nada no ato de assistir ao filme deveria perturbar o caráter
“objetivo”, tido no processo como neutro, do funcionamento dos
mecanismos do registro e projeção da imagem. Bazin justificava a
possibilidade de observação e conhecimento das coisas do mundo
através da imagem fílmica pela abstração obrigatória de seu caráter
artificial. Sendo esta possível pela – suposta – fidelidade da imagem
fotoquímica e, também, por considerar não haver qualquer diferen-
ça entre a percepção visual do mundo natural e a imagem deste pro-
jetada na tela da sala de cinema, embora esta tivesse sido visivelmente
recortada, introduzindo uma segmentação que não existe na realida-
de. Para Bazin, o recorte que delimita a imagem projetada na tela
funcionaria como uma janela, e não como a moldura de um quadro:
“A tela não é uma moldura como a do quadro, mas um esconderijo
53
que só deixa ver uma parte do acontecimento”.

Esta funcionaria como uma abertura para aquele que vê. Para
aquele que filma presumiria clarividência: uma visão una, coerente e
homogênea do mundo. Sem contradição.

52
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., p. 65.
53
André Bazin, O qu e é o cin em a? ( 1958) ( Lisboa: Horizonte, 1992) , p. 172.
71
Uma janela cega

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


Em 1973, Jon Rubin inicia um programa de estudos fílmicos no
Bard College ( Nova York, Estados Unidos) com equipamento parte
trazido, por ele mesmo, do Massachusetts Institute of Technology
( MIT) e parte emprestado da Universidade Yale. Durante o verão
entrega-se à realização de testes com esse material que, como pri-
meiro objetivo, visavam a pô-lo em boas condições de funcionamen-
to. Algum tempo depois, convida os amigos para uma exibição em
54
sala. É Tom ( Ditto) DeWitt quem conta a experiência:
Não prestei muita atenção ao que Jon estava fazendo até que ele me
55
convidou para participar de uma p rem i ère de seu Black m ov ie.
Para tanto eu o acompanhei até a Suny em Binghamton, local onde ele
fora convidado a dar uma palestra para os alunos de Ken Jacobs.
Reunimo-nos em um cinema agradável com cadeiras reclináveis, em-
bora o projetor estivesse fazendo um barulho que ecoava no interior da
56
sala. As luzes enfraqueceram-se, e por três minutos nós ficamos olhan-
do uma tela vazia. Eu tenho muito bons olhos. Não havia um fóton
transmitido daquele projetor para a tela, embora fosse evidente que
uma bobina de filme de 100 pés estivesse rodando no projetor. Depois
que Jon parou o projetor, as luzes do lugar foram acesas. Alguma per-
gunta? […] Jon me conhecia bem o suficiente para não ser pego de
surpresa pelo fato de eu me encontrar muito chateado. Ele provocou-
me um pouco e então me convidou para assistir ao filme novamente…
não na tela, mas olhando diretamente no projetor. Sua lente é uma
lupa que permite que o espectador veja o fotograma de 16 mm de fora,
de onde estamos olhando. Nós não usamos projetores dessa maneira
porque a luz nos cegaria. Neste caso especial, contudo, o filme era
opaco e isso era possível.

54
Colaborador em Off-on (1968): “[…] um filme avan t-garde de referência, o primeiro a fundir
completamente vídeo com filme”, em brochura que acompanha a edição DVD intitulada
Treasu res from Am erican Film Archives (50 preserved film s), com notas de Scott Simmon
e Martin Marks (São Francisco: National Film Preservation Foundation, 2000), p. 30.
55
O título do filme – que não consta na película – é, de fato, Dark Movie, segundo informa-
ção prestada pelo realizador à autora em e-mail de 16 de janeiro de 2002.
56
De fato, 12 minutos, segundo o mesmo e-mail do realizador.
72 Eu estava espantado com o que via. […] ao forçar a revelação fotográ-
Filme animado e cinema

fica até os limites da emulsão, Jon havia realmente cristalizado os sais


de prata em um padrão regular, e esse padrão de cristais dançava
magicamente diante de meus olhos ( somente um olho aberto de cada
57
vez era permitido nestas circunstâncias) .

Entusiasmada pelas implicações que, de repente, pareciam


emergir dessa experiência, t ent ei localizar o aut or não só para
confirmá-la, mas, igualmente, para tentar saber mais. Esta é a descri-
ção que Jon Rubin faz da mesma experiência de projeção:
No momento em que as luzes se apagam, realmente não se pode ver
nada. Mas, conforme seus olhos se adaptam, é gradualmente possível
ver uma imagem emergir da tela. No entanto, como a imagem está
apenas no limiar da visibilidade, parece oscilar, em vez de estar clara-
mente localizada na tela. A peça tem 12 minutos de duração, de modo
que há tempo para o olho de alguém se adaptar totalmente, e em uma
apresentação ideal a platéia poderia mover-se e tentar localizar-se em
relação à tela. Uma das dificuldades da peça era que ela funcionava
melhor em uma sala ampla e escura – sem luzes de “Saída”, o que era
difícil de se conseguir numa exibição para um público convidado. Na
verdade, esperava-se que as pessoas pudessem ser tentadas a visualizar
o filme diretamente, olhando na lente do projetor, embora não houves-
se instruções para tal. Por essa razão o projetor tinha de ficar localiza-
58
do na sala e não na cabina de projeção.

A experiência teria sido repetida algumas vezes, geralmente


em contexto universitário. O filme não incluía qualquer indicação
sonora ou ostensivamente visível – como títulos ou genérico –, e,
inicialmente, não estava prevista ( ou considerada desejável) qual-
quer indicação introdutória, como é dito. Dada a surpresa e a relativa
confusão, que conduziriam a uma certa inibição, o autor, contudo,
acederia regularmente a instruir e orientar o público permitindo-lhe

57
Suny – State University of New York; mensagem enviada por Tom ( Ditto) DeWitt para o
fórum de discussão do IOTAcenter ( iotacenter@yahoogroups.com) , em 6-1-2002.
58
Texto de Jon Rubin enviado por e-mail à autora em 16-1-2002.
tirar, imediatamente, algum partido da experiência. De outro modo, 73

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


poucos se teriam atrevido a espreitar a lente do projetor.
[…] não era a intenção que a peça fosse altamente conceitual, mas, em
vez disso, uma experiência física da luz. Eu queria simplesmente criar
uma obra que estivesse tão no limite da percepção, que cada especta-
dor pudesse ter uma experiência diferente, a depender de como seu
próprio sistema visual trabalhasse. Fiquei impressionado com o efeito
do trabalho, mas os problemas práticos ao apresentá-lo a um público
limitaram sua vida […] a descoberta da imagem primária, dentro das
59
entranhas do projetor, era como achar uma agulha num palheiro.

Essa é uma experiência de exibição de filme – um espetáculo


cinematográfico – que, em tu do, é proposta e corresponde a uma
sessão normal de cinema, na qual todos os elementos e partes en-
contram-se presentes. A simples projeção na tela de uma película
completa e densamente sensibilizada – uma imagem negra – como
uma das possibilidades gráficas da imagem fílmica que, ainda que
extrema, é previsível, põe, contudo, toda a situação, por inteiro, como
prática subversiva em relação às “boas práticas” cinematográficas e
retira o espectador do lugar abstrato no qual a perspectiva – disposi-
tivo geométrico subjacente à imagem fotográfica – o tinha posto.
Nesse contexto, o espectador é convencionalmente situado no pon-
to de vista, como vimos. A projeção fílmica de uma imagem negra –
de uma “não imagem” – põe-no, concretamente, num ponto “cego”.

A invisibilidade da tela é uma das condições – convencionais –


de visibilidade do cinema. Ora, a invisibilidade da imagem torna o
espectador con scien te da presença manifesta da tela e, conseqüen-
temente, da sala de cinema e dos espectadores durante a sessão ci-
nemat ográfica. O espect ador deve mant er-se submisso, calado,
invisível e quieto em seu lugar, não apenas porque essa é a maneira
implícita e o lugar previsto pelo dispositivo para a fruição da imagem

59
Ibi d em .
74 projetada, mas também porque essas são as regras explícitas, estipu-
Filme animado e cinema

ladas, de bom comportamento na sala de cinema. A projeção cinema-


tográfica exige – de vários modos – o constrangimento físico e a
passividade do espectador, isto é, que prescinda da liberdade de ex-
p lor ar con cr e t ame n t e o e sp aço d a sala e , p or t an t o, d a su a
corporeidade. Para “ver”, literalmente, neste filme, o espectador terá,
contudo, de vencer o constrangimento e levantar-se: a surpresa ou a
irritação – como expectativa do autor do filme – deveriam poder
fazê-lo assumir-se claramente como sujeito de ação, rejeitar o esta-
do de entorpecimento previsto, e levá-lo – como possibilidade práti-
ca – a pôr um de seus olhos – apenas um, tal como para a perspectiva,
mas, desta feita, concretamente, enquanto sujeito – n a origem do
cone de luz que sai do projetor, ostensivamente presente e observável
na sala. Finalmente, o lugar de observador tornar-se-ia factualmente
único; real, porque, de fato, só poderia ser fisicamente ocupado por
uma pessoa de cada vez.

E, ainda, o único movimento que, de fato existe, durante a


projeção fílmica – o do projetor – assumiria, então e no processo,
p or su a p r e se n ça n a sala e p e la “e xp e r ie n ciação” fílmica qu e
d isp on ibiliza ao e sp e ct ad or, o sign ificad o p le n o d e e xp osição
emblemática do dispositivo inteiro:
O movimento tecnicamente mais característico do processo cinemato-
gráfico, entretanto, não deve ser contado entre os meios de expressão
de que a figura em movimento tira seu proveito: o deslocamento do
filme na câmera e no projetor não é experimentado diretamente pela
60
platéia.

O que é que nos perturba no movimento de outra pessoa du-


rante a projeção? Incomoda-nos que, com a presença de seu corpo,
obrigue-nos a tomar consciência do nosso, a acordar do torpor em

60
Rudolf Arnheim, Film as Art ( 1958) ( Londres: Faber & Faber, 1983) , p. 150.
que nos encontramos, quando nos constrange a levantarmo-nos para 75

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


lhe dar passagem. Incomoda-nos menos sua sombra projetada na tela,
mas, ainda assim, perturbadora da serenidade aparente da sala, onde
n ada deve manifestar sua existência para que tu d o possa existir
apenas no lugar virtual do filme.

O movimento do espectador, de cada espectador – contido como


possibilidade – expõe a ilusão da imagem fílmica como modo de per-
ceber, de aceder ao real. Modo que, tendo origem na perspectiva
como princípio de funcionamento, como vimos, prevê e inclui o es-
pectador como sujeito no lugar virtual de visão, do conhecimento.
Ora, o lugar da ação é sempre o lugar de nossa experiência, onde
experimentamos a presença manifesta de nosso corpo. Assumindo-
se verdadeiramente como sujeito a partir de si mesmo, entre todos
os outros espectadores, aglomerados anonimamente naquela sala e
naquele momento, à imagem de todas as salas e de todas as sessões
de cinema, todos, tal como ele, sujeitados num ponto virtual de visão
– o espectador, cada espectador, ao reagir faz ver que o dispositivo
geométrico da perspectiva, ainda que o seja no que respeita à orga-
nização visual do espaço fílmico, não o é de fato do ponto de vista
empírico, deixando exposto o dispositivo ideológico que o colocou, a
ele, espectador, como prótese da engrenagem nos mecanismos do
cinema, e que inverteu, assim, o sentido proclamado e desejável da
funcionalidade da tecnologia.

Aquilo que é, ou deveria ser, visto na tela – descoberto pelo


espectador surpreendido e irritado como, emblematicamente, o “não
filme” de todos os filmes – não é alterado pelo movimento de seu
corpo ( uma vez que seu lugar, apesar de previsto na representação,
como manda a regra perspéct ica, não o é concret ament e) . Na
projeção de Dark m ovie, excepcional, um segundo nível do disposi-
tivo fílmico ficaria exposto, assumindo-se como ideologicamente mais
próximo do sistema de projeções da geometria de Monge. Neste, o
61
76 observador é posto virtualmente no infinito e, portanto e por defi-
Filme animado e cinema

nição, considerado declarada e definitivamente exterior ( imperti-


nente) ao espaço da representação: observador como entidade não
definida por um lugar específico do espaço da representação, não
ocupado por um sujeito concreto e não necessário ao dispositivo grá-
62
fico. Pelo que se percebe a razão pela qual o espectador de cinema
aparece como destituído de sua individualidade física, tal como o
operário da Revolução Industrial, reduzido a um número contingen-
te, que só assume significado num total de bilhetes comprados ou de
mão-de-obra, conforme o caso. Assim ficaria a descoberto a diferen-
ça paradoxal e fundamental entre a fotografia e o cinema, no que
respeita à ideologia dos dispositivos respectivos.

Nas representações produzidas pela geometria de Monge, ou


descrit iva, o objet o real é desagregado – segundo as diret rizes
ortogonais que orientam um espaço agora absolutamente euclidiano
– numa soma de projeções bidimensionais que aparecem como “vis-
tas”, normalizadas, a fim de permitir atuar com toda uma série de
operações de recorte, quantificação e montagem, que fazem parte
de qualquer relação operativa, produtiva, de transformação concreta
da matéria-prima em produto. No deslize entre os dois dispositivos –

61
O conceito de infinito necessário à representação mongeana só foi possível depois que
Pascal e Leibniz tornaram a noção de infinito conceptualmente compreensível e manipulável
matematicamente.
62
Do ponto de vista histórico-econômico, a instituição da geometria descritiva, como méto-
do operativo, acontece na altura em que a acumulação capitalista leva à concentração da
produção em face da dispersão ( de acordo com o valor de uso de cada um dos objetos
produzidos) da oficina artesanal e transforma, definitivamente, o mestre artesão em
operário. E se no início – na época pós-renascentista – se poderia tratar de uma aristocra-
cia operária consciente do próprio profissionalismo, a distância esta iria tornar-se em
mão-de-obra indiferenciada, mercadoria sujeita ao puro valor de troca e ao “taylorismo” da
linha de produção. Eis então que o “ser aqui e agora” do Príncipe – visto como propósito
ideal no ponto de fuga da construção perspéctica – transforma-se numa “presença indefi-
nida” que se impõe com o paralelismo de suas regras, apresentadas como princípios
morais ( desde Os livros da fam ília, de Leon Battista Alberti) e por isso, enquanto tais,
provenientes do infinito e tendentes ao infinito, em analogia com os conceitos de “Liber-
dade, Igualdade, Fraternidade” propostos por uma burguesia ascendente e ciente de seu
poder político e econômico.
o da perspectiva renascentista e o da geometria descritiva nascido 77

A representação fílmica do espaço e do tempo reais: dispositivo coneptual


com a Revolução Industrial – apareceria também um dos aspectos da
verdadeira natureza do cinema dominante: como modo pelo qual se
é observado, devassado e desmembrado, local da operação, da ação
operativa, e não como meio que permite a observação, o conheci-
mento, a integração da experiência comunicativa como partilha, co-
munhão, tal como pretendia Dziga Vertov, por exemplo.

Finalmente, ao ocupar literalmente o único ponto concreto de


visão do filme com seu próprio corpo, o espectador não fica cego
como ficaria no contexto de uma projeção “normal”, mas vê: e vê a
coisa real, a verdadeira coisa fílmica, e não sua projeção, ou sequer
a representação fílmica de qualquer coisa, mas aquela que existe
apenas durante qualquer projeção cinematográfica e que n ão pode
ser vista diretam en te. Sua aquiescência no processo de conheci-
mento do dispositivo cinematográfico, assim revelado, leva-nos à única
origem real da imagem fílmica na sala de cinema: o projetor.

Essa experiência inscrever-se-ia, por isso, fisiologicamente na


vivência do espectador como prática antagônica, a partir da qual,
irrevogável e retrospectivamente, toda prática fílmica e, logo, toda
ideologia cinematográfica seriam suspensas e expostas.
A colaboração do
espectador interessado

O filme não existe, enquanto tal, senão no tempo em que é per-


cebido, isto é, quando dirigido aos mecanismos psicofisiológicos
de percepção do espectador acordado e atento. O espectador corres-
ponde, assim, ao lu gar no qual o filme acontece e é, por isso, tam-
bém considerado como algo que faz parte de seu dispositivo essencial.

A semiologia fílmica insistiu bastante na importância da com-


petência do espectador, no que respeita aos modos de codificação
que se articulam no discurso fílmico. Isso seria, contudo, esquecer
que tanto a ilusão de verossimilhança das configurações visuais quanto
a ilusão de movimento aparente acontecem sem que a aptidão de
articular linguagem seja requerida. O filme apresenta-se no tempo,
como expressão temporal, dirigindo-se antes de mais às capacidades
psicofisiológicas de equilíbrio e de localização de nosso próprio cor-
po no espaço. É no imediato, sem refletir, que o espectador respon-
de à solicitação de sua própria sensibilidade cinestésica.

Já avaliamos o fato fílmico do ponto de vista do dispositivo


subjacente aos modos de reconhecimento visual. Quanto à percep-
ção de movimento, crê-se que a ilusão de m ovim en to aparen te –
produzida por estímulos separados no tempo e no espaço, distinta da
percepção de movimento “real”, que procede da estimulação conti-
nuada de sucessivos receptores retínicos ( bastonetes) por uma con-
figuração luminosa em movimento – tem, nos animais, profundas raízes
biológicas decorrentes de uma sucessão de transformações fisiológi-
cas provocadas pela necessidade de adaptação a um mundo extrema-
80 mente hostil, onde o que quer que se movesse era ou predador ou
Filme animado e cinema

63
presa. Logo, a detecção de movimento, como a determinação ime-
diata do que se tinha movido, seria crucial no processo de sobrevi-
vê n cia e ficar ia, p ar a se mp r e , in t imame n t e con e ct ad a com a
capacidade de reagirmos pela deslocação imediata de nosso próprio
corpo. Antes mesmo de podermos articular um pensamento, de ter-
mos consciência do sucedido.

A capacidade de i n fer i r moviment o em lugar de imagens


esparsas – o perceber instantaneamente a diferença, ainda que míni-
ma, entre duas configurações visuais imediatamente consecutivas –
pode ser particularmente importante quando apenas partes exíguas
64
de um objeto são intermitentemente visíveis, como quando alguém
ou alguma coisa se move camuflada e sub-repticiamente no meio de
folhagem espessa ou por detrás de troncos de árvore.

É interessante associar aqui, pontualmente, a observação de


Walter Benjamin sobre aquilo que ele designa como “efeito de cho-
que” do cinema, que residiria na perturbação exercida pela sucessão
das imagens fílmicas sobre o processo de associação daquele que as
observa e que, tal como qualquer efeito de choque, deveria ser su-
portado por uma presença de espírito acrescida. Diz Benjamin:
O cinema é a forma de arte correspondente à vida cada vez mais
perigosa dos nossos contemporâneos. A necessidade de se submeter a
efeitos de choque é uma adaptação das pessoas aos perigos que as
ameaçam. O filme corresponde a alterações profundas do aparelho de
percepção, alterações como as com que se confronta, na sua existência
privada, qualquer transeunte no trânsito de uma grande cidade, ou

63
Cf. V. S. Ramachandran & S. M. Anstis, “The Perception of Apparent Motion”, em Scien tific
o
Am eri can , n 254, pp. 102-109; disponível t ambém em ht t p://psy.ucsd.edu/chip/pdf/
Percpt_Apprnt_Mot_Sci_Am.pdf.
64
Cf. Marina Estela Graça, Materialidade ex pressiva ( visu al) do cin em a de an im ação,
tese de mestrado ( Lisboa: FCSH/Departamento de Comunicação Social – Universidade
Nova, 1989) .
como as que, numa perspectiva histórica, actualmente, qualquer cida- 81

A colaboração do espectador interessado


65
dão experimenta.

A origem da funcionalidade do aparelho tecnológico subjacente


ao cinema, de invenção recente, radicaria numa capacidade de so-
brevivência específica e atávica do nosso corpo inerme, em tudo se-
melhant e ao do homem de Cro-Magnon, que cont inuaria a ser
reativada no contexto das sociedades urbanas.

Quando confrontado com uma sucessão rápida de imagens fi-


xas, o cérebro é levado a colmatar e a relacionar as diferenças for-
mais que existem entre elas imaginando ver um objeto em movimento
contínuo. Assim, por exemplo, uma série de setas em neon, ativadas
seqüencialmente, serão percebidas – apesar da evidência – como
uma única seta movendo-se através do espaço. Logo, nesse contex-
to, a impressão de movimento não será “vista”, mas in ferida, ainda
que de forma direta, instantânea. Para perceber imagens intermi-
tentemente visíveis como um único objeto em movimento contínuo,
o sistema visual deve detectar correspondências, isto é, tem de de-
66
terminar que partes das imagens em sucessão refletem a presença
de um único objeto em movimento. No caso da seta isso é fácil: a
configuração geométrica visível mantém-se independentemente da
alteração das coordenadas espaciotemporais. A relação entre ima-
gens e sua síntese diacrônica deve ser, contudo, também semelhante
àquela que existe entre sons e melodia – sendo a música a linguagem
que, neste contexto, lhe é mais próxima –, caso contrário, a aparên-
cia de movimento pode não acontecer. Basta estar consciente da ri-
queza que comportam todas as relações entre sons, imediatamente
consecutivos ou não, para compreender como a impressão que em

65
Walter Benjamin, Das Ku n stw erk im Zeitalter sein er techn ischen Reprodu z ierbarkeit
( 1936) ( Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1939) ; edição portuguesa: “Epílogo”, em Sobre
arte, técn ica, lin gu agem e política ( Lisboa: Relógio d’Água, 1992) , p. 107.
66
A essas “partes do objeto”, e de acordo com Gibson, chamaremos in varian tes e serão
tratadas na segunda parte desta obra. Cf. J. J. Gibson, The Ecological Approach to Visu al
Percep ti on ( 1979) ( New Jersey: Laurence Erlbaum, 1986) .
82 nós produz uma melodia, em sua simplicidade, não pode ter muito a
Filme animado e cinema

ver com a percepção das relações entre aqueles. A melodia apresen-


ta-se com genuíno imediatismo, espontaneamente em sua forma glo-
bal. O mesmo não é verdadeiro para as relações entre as partes:
devemos procurá-las. Não é possível, portanto, identificar literalmente
a forma melódica, global, com a percepção das relações entre as no-
67
tas musicais que a compõem.

Tal como com a linguagem musical, a percepção de imagens


não exige competências no domínio dos processos de decodificação;
exige, isso sim, uma experiência de apropriação das configurações
de invariantes visuais e cinestésicas que constituem o contexto espa-
cial que nos é comum.

Assim, para que haja ilusão de movimento, é necessário, por


um lado, e como já foi dito, que o cérebro possa estabelecer corres-
pondências entre elementos descontínuos permitindo a interpreta-
ção das informações recebidas como algo que tem origem no mesmo
objeto: o que pressupõe o reconhecimento de formas e implica, por
isso, um diferencial mínimo entre os estímulos, no espaço como no
tempo. Por outro lado, é indispensável que estes comportem dife-
renças com os precedentes e os seguintes, nem que estas existam
ap e n as n o n íve l d a localização visu al d a for ma n u m e sp aço
bidimensional. Diferenças que, embora imprescindíveis, não devem
ser percebidas como tais, isto é, enquanto ruptura na continuidade.
Para o animador, trata-se de conseguir, tecnicamente, o equilíbrio na
proporção das descontinuidades formais entre as partes diacrônicas
e a tensão global da continuidade do movimento percebido no mo-
mento de sua projeção luminosa.

O conceito que incluía o espectador no dispositivo cinemato-


gráfico, enquanto necessário ao fato fílmico, foi formulado pela pri-

67
Cf. D. Katz, La psicologia della form a ( 1948) ( Turim: Boringhieri, 1979) , p. 601.
meira vez, em 1916, pelo psicólogo Hugo Münsterberg. Por muito 83

A colaboração do espectador interessado


surpreendente que nos pareça agora, já então era perfeitamente cla-
ro que a percepção de movimento aparente não era produzida pela
famosa “persistência retínica” das imagens que, ainda hoje, vemos
ser usada distraidamente como explicação daquela ilusão fílmica. Para
esse psicólogo:
[…] o movimento aparente não é de modo algum o mero resultado de
uma pós-imagem, e a impressão de movimento é com certeza mais que
a mera percepção de fases sucessivas daquele. O movimento não é,
nestes casos, realmente visto de fora, mas é superadicionado, pela ação
da mente, a imagens paradas. […] a impressão de continuidade da
película resulta de um processo mental complexo pelo qual as várias
figuras são reunidas na unidade de um ato maior. Nada pode caracteri-
zar a situação mais claramente que o fato demonstrado por muitas
experiências, nomeadamente, que esta sensação de movimento não é
de maneira alguma perturbada pela consciência clara de que fases
importantes do movimento estão faltando. Ao contrário, sob certas cir-
cunstâncias nos tornamos ainda mais plenamente conscientes desse
movimento aparente criado por nossa atividade interna quando estamos
68
conscientes da interrupção entre as várias fases do fenômeno.

Münsterberg avançava, então, que o filme acontecia na mente


do espectador, sendo essa a sua materialidade específica. Para haver
fato fílmico, teria, obrigatoriamente, que haver investimento por parte
do espectador: não apenas na atribuição de sentido às configurações
de dados fornecidas pela imagem projetada, pressupondo um esfor-
ço de atenção, de memória, de imaginação e de emoção, mas tam-
bém na percepção da tridimensionalidade e do movimento, como
acabamos de ver. Sem este investimento, o filme seria apenas um
jogo de sombras mortas.

68
Hugo Münsterberg, The Film : A Psy chological Stu dy ..., cit., p. 29.
84
Um espectador específico
Filme animado e cinema

Um poeta – não fiqueis chocados com a minha


maledicência – não tem por função experimen-
tar o estado poético: isso é um assunto priva-
do. Ele tem por função criá-lo nos outros. Re-
conhece-se o poeta – ou, pelo menos, cada um
reconhece o seu – nesse simples fato de trans-
formar o leitor em “inspirado”. A inspiração é,
positivamente falando, uma atribuição graciosa
que o leitor faz a seu poeta: o leitor oferece-
nos os méritos transcendentes das potencia-
lidades e graças que nele se desenvolvem. Ele
procura e encontra em nós a causa maravilhosa
de seu espanto.
Paul Valéry, Discurso sobre a estética:
poesia e pensamento abstracto

A Norman McLaren cabe o feito de ter introduzido o especta-


dor comum, implicado pelo modelo dominante, na fruição de filmes
que escapam a um consumo fácil, convencional, tendo, por isso mes-
mo, acabado por influenciar a natureza dos esquemas discursivos do
filme em geral.

Na época, e graças às estratégias de produção e distribuição


de John Grierson, o espectador dos países de língua inglesa – parti-
cularmente no Reino Unido e no Canadá – não correspondia ao mo-
delo de espect ador comum em out ros cont ext os cult urais. Seu
propósito era claramente o de informar o público sobre o seu pró-
prio país usando o meio fílmico, fazendo-o envolver-se emocional-
mente com as estratégias do governo britânico:
Ele presumiu que, se as pessoas trabalhando em uma parte do Império 85

A colaboração do espectador interessado


fossem mostradas às pessoas nas outras partes, e se os serviços do
governo fossem apresentados à população em geral, um entendimento
e uma apreciação da inter-relacionalidade do mundo moderno e de
nossa dependência uns dos outros se desenvolveriam, e todos contri-
69
buiriam com sua parte para o melhor funcionamento do todo.

Nesse contexto desenvolveu estratégias de produção, de fi-


nanciamento e de distribuição específicas e inovadoras. Os documen-
tários produzidos nos organismos públicos que dirigiu, cujos custos
eram financiados por entidades privadas e empresas, eram habitual-
mente distribuídos fora das salas de cinema comercial, de modo que
atingissem audiências em escolas, fábricas, sindicatos e paróquias.
No interior do Canadá ainda são estas últimas, majoritariamente, a
assumir o esforço da distribuição cinematográfica. Por outro lado, no
âmbito dos organismos que dirigia, chamou a si gente nova – a maior
parte com estudos universitários concluídos em Cambridge e prove-
niente de uma classe média educada –, a quem formou não apenas
tecnicamente, mas, sobretudo, incutindo valores de caráter estético
e ideológico. Os jovens realizadores assim formados acabavam por
partilhar da filosofia e objetivos sociais de Grierson, desenvolvendo
uma lealdade e um comprometimento extraordinários.

Em 1941, Norman McLaren vem para o National Film Board


do Canadá, a convite de seu criador, John Grierson, que então detém
as funções de membro do governo na Canadian Film Commission. A
obra que McLaren aí desenvolve aparece e é norteada pela influên-
cia de Grierson, no contexto definido pelos objetivos de prestação
de serviço público que eram, e ainda são, os daquela instituição cana-
dense. É desse modo que se explica o fato de que seus filmes possam
ter tocado a grande audiência anônima, sendo objeto de uma distri-

69
Jack C. Ellis, John Grierson : Life, Con tribu tion s, In flu en ce ( Carbondale/Edwardsville:
Southern Illinois University Press, 2000) , p. viii.
86 buição regular. Estes são sempre, e pelas razões expostas, o resulta-
Filme animado e cinema

do decorrente de estratégias que têm a integração fílmica do espec-


tador como primeira finalidade, sendo a elaboração de cada filme
concebida em todos os casos de forma diferenciada, enquanto parte
de um processo de resolução de questões específicas não apenas
técnicas, financeiras ou administrativas, e que, de forma evidente,
excedem uma abordagem apenas funcionalista de serviço público.
Dadas, igualmente, as dificuldades de todo tipo vividas no período
inicial do National Film Board, que coincide com a Segunda Guerra
Mundial, cada um de seus filmes acabará por surgir essencialmente
como motivo e motivação para uma construção poética abrangente,
a partir de si mesmo, mas resultante de combinatórias inclusivas úni-
cas de elementos precários, contingentes e dispersos: processo de
integração de pessoas de culturas e línguas diferentes; de equipa-
mentos sofisticados ou limitados e gastos; de condições logísticas
casuais ou impróprias; de diferentes objetivos, concepções e filoso-
fias. Esta atitude acabará por constituir-se como origem fundamental
de todas as suas experiências fílmicas.

Ao tomarmos distância na consideração da obra de McLaren


no seio do National Film Board, verificamos, com clareza, que esta
não se deixou sedimentar segundo conveniências ou modelos pré-
vios e previsíveis. McLaren esforça-se por exibir ao espectador o
filme em si mesmo, em sua materialidade, estrutura e mecanismos,
conduzindo-o numa espécie de aprendizagem crítica, consciente, da
qual nem o espectador nem o cinema poderiam sair incólumes. Em
seus filmes, explorou as características psicofisiológicas da percep-
ção humana como se compusesse música para um instrumento ainda
obscuro, ao mesmo tempo que se aventurava na pesquisa dos aspec-
tos fundamentais de seu próprio desconhecimento. Vão nesse senti-
do as experiências que iniciou com Keep You r Mou th Shu t ( 1944) ,
e desenvolveu em Bli n k i ty Blan k ( 1955) , este último “criado in-
tencionalmente para investigar as possibilidades da an im ação in - 87

A colaboração do espectador interessado


70
term i ten te e d as i m agen s esp asm ód i cas”; ou em Arou n d Is
Arou n d ( 1951) , e Now Is th e Tim e ( 1951) , nos quais concretiza
investigações que vinha realizando a fim de delimitar os fatores que
proporcionam a percepção efetiva, estereoscópica, de um espaço
71
tridimensional construído a partir de representações bidimensionais.
Em Li n es-Ver ti ca l ( 1960) , Li n es-Hor i z on ta l ( 1961) e Mosa i c
( 1965) , a rotação da orientação dos fotogramas do primeiro para a
obtenção do segundo e posterior sobreposição dos dois primeiros
para a obtenção do terceiro, quando comparados entre si, fazem
emergir alguns dos princípios que regulam o modo pelo qual perce-
bemos o espaço em que nos movemos.

Perante a obra de Norman McLaren, damo-nos conta de como


convoca o espectador em toda a sua integridade fisiológica e cultu-
ral, não se limitando apenas a solicitar a sua sensibilidade acústica ou
visual, ou, tampouco, a sua competência na decodificação das figu-
ras, a sua complacência enquanto fruidor habituado e passivo. O es-
pectador do filme narrativo e fotográfico, que conhece as regras e
mecanismos pelos quais o discurso é mais ou menos previsível, acei-
ta assumir pacificamente o lugar que lhe é reservado pelo fluxo de
imagens e sons em troca de um prazer que, perversamente, supõe o
recalcamento dessas mesmas regras e mecanismos. Esta situação
corresponde, na prática, a uma convenção tacitamente admitida pelo
público do cinema fotográfico, bem ao contrário daquilo que afirma-
72
va André Bazin. Ora, os filmes de Norman McLaren parecem im-
próprios quando tomados neste contexto.

70
Norman McLaren, Blin kity Blan k, Techn ical Notes on the Visu als, nota distribuída no
lançamento do filme e fotocopiada para uso interno do National Film Board ( NFB) com o
n o 27, Ottawa, 25-2-1955. [Grifo no texto original.]
71
Cf. Nor man McLar e n , “L’an imat ion st é r é ogr ap h iqu e : syn t h è se d e la p r ofon d e u r
o
stéréographique à partir du dessin à deux dimensions”, em Cahiers du Cin ém a, n 14,
Paris, jul.-ago. de 1952, pp. 25-33. Extrato de um estudo publicado em The Jou rn al of
Society of Motion Pictu re En gin eers, dezembro de 1951.
72
Cf. André Bazin, O qu e é o cin em a?, cit., p. 174.
88 Consideremos o conflito entre a bidimensionalidade explícita
Filme animado e cinema

da imagem fílmica dominante e a ilusão de tridimensionalidade que,


simultaneamente, esta propõe. A tela de cinema “desaparece” en-
quanto superfície, conforme já vimos, para se “apresentar” como uma
janela aberta para além da qual a representação parece afundar-se,
sendo percebida como tridimensional e complexa. Assim, no proces-
so, a fruição fílmica exige a om i ssã o da t ela enquant o suport e
fenomênico e plano de representação da imagem, e, por isso, o es-
pectador é sutilmente conduzido a não considerar o conflito entre a
consciência da bidimensionalidade da imagem e a ilusão que lhe é
proposta. Se nada perturbar o processo, o espectador deixar-se-á
submergir na ilusão. Aquele que vê cinema pela primeira vez irá,
eventualmente, reagir confundindo imagem e realidade, hesitando
inconscientemente entre agregados contraditórios de informação
visual, sendo levado a escolher os dominantes. No momento seguin-
te, refeito do susto e consciente da excepcionalidade do contexto,
aceitará aprender a recalcar o conflito entre a evidência das imagens
planas – devolvidas pela tela e que cada um de seus olhos reconhece
como absolutamente iguais entre si – e a ilusão fílmica de profundi-
dade que o conduz e vai-se reiterando a si mesma, tranqüilizando-o.
Sua opção, que, como sabemos, irá deixando de ser consciente com
a repetição das experiências, será sempre recompensada.

As opções de McLaren vão no sentido de assumir esse conflito


como elemento próprio da codificação fílmica, sublinhando a evidên-
cia bidimensional da imagem no modo gráfico, arbitrário, de sua cons-
trução, mesmo quando a ilusão de profundidade é requerida. Isso é
completamente óbvio nos filmes Arou n d Is Arou n d ( 1951) , e Now
73
Is the Tim e ( 1951) , atrás mencionados. No primeiro, os objetos –

73
Arou n d Is Arou n d e Now Is the Tim e são filmes estereoscópicos realizados por Norman
McLaren para o Festival da Grã-Bretanha por encomenda da organização do festival, tendo
sido projetados no dia 4 de maio de 1951, em Londres. Sobre estes filmes, McLaren diz
o seguinte: “A tela para a qual os filmes em questão estavam previstos tinha 5 metros de
elementos geométricos obtidos pelo registro de imagens produzidas 89

A colaboração do espectador interessado


no visor de um osciloscópio – são assumidos bidimensionalmente e
postos a evoluir num espaço tridimensional. A visão estereoscópica
foi obtida dispondo formalmente o objeto, durante um primeiro
registro, como se fosse visto apenas por um dos olhos e, modificando
sua disposição geométrica, para um segundo registro, como se fosse
visto pelo outro. A atribuição de cor a cada um dos registros foi rea-
lizada, posteriormente, por impressão óptica durante a obtenção da
cópia negativa original. Em Now Is th e Ti m e, McLaren trabalhou
registrando fotograficamente desenhos recortados em papel e reali-
zando grafismos diretamente sobre a película. A estereoscopia foi
obtida manipulando o tamanho e a distância entre os objetos, assim
como a “velocidade” de deslocação de cada um deles, para cada uma
de múltiplas exposições, de forma que fosse simulada a visão daque-
les por cada um dos olhos. Neste filme, o som foi igualmente conce-
bido e registrado fotograficamente em duas bandas sonoras ópticas,
a fim de simular estereofonia. Nos dois exemplos, só o espaço é per-
cebido como tridimensional. Nada nas figuras gráficas exprime outra
dimensão que não a da própria bidimensionalidade.

Os sistemas de representação gráfica assumidos como produ-


ções bidimensionais sobre uma superfície de suporte são imensos.
Comecemos por relembrar a simples impressão da mão sobre a pa-

lado. Era a tela do Telecinema de Londres, onde dois projetores de 35 mm, sincronizados
em árvore, tinham sido montados de tal modo que seus eixos ópticos convergiam sobre
a superfície da tela”; cf. Norman McLaren, “L’animation stéréographique...”, cit. Dada a
dificuldade em reunir as condições técnicas requeridas, e segundo o chefe projecionista
responsável da Cinémathèque Québécoise, em que me foi dada a oportunidade de assistir
à sua projeção em 9 de março de 2000, os filmes não eram projetados havia cerca de 25
anos. Os filmes foram exibidos na Sala Claude Jutra, desta instituição, usando-se para isto
dois projetores sincronizados e equipados com filtros polarizantes. A tela tinha sido
coberta com uma superfície altamente refletora, metalizada, de forma que fosse evitada a
dispersão da luz polarizada, e os filmes foram vistos com óculos polarizantes, o que
garantiu a cada olho perceber apenas a imagem do projetor correspondente. A música
sintética tinha sido, igualmente, elaborada por McLaren para ser reproduzida em modo
est ereofônico.
90 rede da caverna e acabemos indicando os modelos gráficos que re-
Filme animado e cinema

presentam e demonstram modificações da realidade física, que estão


para lá da sensibilidade até mesmo dos instrumentos de precisão, e
que existem num universo completamente conceptual; recordemos
t odas as t axonomias, geomet rias e axonomet rias; e, ainda, os
pictogramas, os diagramas e todas as formas de grafos.

Na obra fílmica de Norman McLaren, as formas vão derivando


por vários sistemas gráficos, pondo, muitas vezes, a par as duas posi-
ções do plano de visão – inclinado ( que se afunda para lá da tela) e
74
frontal ( em que a imagem emerge para cá da tela) – produzindo
ambigüidade e evidenciando o conflito. Em Ry thm etic ( 1956) , o plano
que serve de base aos grafismos identifica-se com a tela e põe-se
como limite frontal do campo de visão do espectador. Os algarismos,
expostos em sua bidimensionalidade enquanto fabricação gráfica,
parecem emergir da superfície da tela, como se estivessem no espa-
ço da sala de cinema. O cinema que McLaren propõe expõe-se como
tan gí v el e parece oferecer-se a nosso corpo de espectador como
coisa física, acessível. Nos filmes desenhados diretamente na pelícu-
la as formas pictográficas, lineares, pelo uso das duas modalidades
de movimento aparente – a deslocação e a transformação – são pos-
tas, aqui e ali, a simular regras de perspectiva: interpõem-se, arru-
mam-se segundo relações proporcionadas de grandeza, modificam-se
como se realizassem movimentos de rotação ou translação num es-
paço tridimensional. McLaren diverte-se no jogo sutil de deriva e
conflito entre os dois modos de inferir o espaço. Já em Chairy tale
75
( 1957) , ou Pas de deu x ( 1967) , acontece o processo inverso: não

74
Sobre os conceitos de plano longitudinal e frontal, cf. J. J. Gibson, The Perception of the
Vi su al World ( Boston: Houghton Mifflin, 1950) .
75
No filme Pas de deu x , McLaren usou a seguinte técnica: numa primeira fase, os movimen-
tos de dois bailarinos, de branco contra um fundo negro, foram registrados em película de
alto-contraste, a uma velocidade de 48 fotogramas/segundo, para dar um leve efeito de
slow m otion . A multiplicação da imagem foi realizada mais tarde, em laboratório, com um
editor óptico de cópias positivas e inter-negativos. Do negativo foi feita uma cópia posi-
só a imagem fotográfica é apresentada em plano frontal e transferida 91

A colaboração do espectador interessado


para a superfície da tela, como a própria deslocação das formas no
tempo é concentrada em representações bidimensionais. Mesmo em
C’est l’av i ron ( 1944) , ou Sp h ères ( 1969) , os elementos gráficos
principais – a proa de um barco no primeiro e círculos no segundo,
ambos obtidos com desenho sobre papel recortado – assumem sua
natureza bidimensional na visibilidade dos contornos, na permanên-
cia da frontalidade das formas no tempo, entrando em confronto ób-
vio com a ilusão do avanço em profundidade obtida pela técnica de
animação por fusão de duas imagens, aplicada aos fundos, e pela al-
teração progressiva da dimensão e tratamento do claro-escuro dos
círculos em Sphères.

A obra inteira de Norman McLaren aponta para um regime de


construção do fato fílmico que não obriga a que o sistema de percep-
ção visual do espectador seja retirado do processo enquanto parte

tiva, que, por sua vez, foi projetada por contato numa cópia negativa, tantas vezes quantas
as necessárias: cada fotograma foi projetado primeiro em sua posição correta, sendo, nas
vezes sucessivas, atrasado um certo número de imagens. Assim, quando os dançarinos
alcançam uma posição de repouso, as exposições “fora do lugar” viriam reencontrar-se,
em sucessão, umas sobre as outras; mas, logo que os actores iniciassem um movimento,
cada uma das imagens “soltar-se-ia” novamente do conjunto, com alguns fotogramas de
atraso relativamente aos anteriores, criando um efeito de desmultiplicação fantasmática.
Segundo McLaren, neste filme, foi de 11 o número de exposições efetuadas para obten-
ção do negativo: o que, na tela, irá corresponder a onze “fantasmas” sobrepostos. O lapso
entre as imagens selecionadas podia variar. Um intervalo de 2 fotogramas ( na sucessão
inicial) tornava difícil a distinção entre os instantes tomados; de 20 fotogramas não
permitiria a associação das duas imagens como fases sucessivas do m esm o movimento.
Finalmente, foi escolhido um intervalo de 5 imagens, que, embora sobrepostas, eram
suficientemente distintas para serem identificadas separadamente. Dois métodos foram
usados para fundir a cadeia de imagens num único fotograma. Um dos quais, já menciona-
do, seria o de aproveitar uma pausa no movimento. No segundo, numa fase oportuna da
ação, proceder-se-ia à paragem óptica de um fotograma da seqüência original, suficiente-
mente longa para permitir a “chegada” de todas as exposições fantasmáticas, de modo
que, como no primeiro método, fossem fundidas numa só imagem, a partir do que seria
possível deixar prosseguir a ação sob a sua aparência normal. Tal como nos registros
cronofotográficos de Marey, neste tipo de técnica, é necessário ter cenários absoluta-
ment e negros e uma iluminação que possibilit e o desenho preciso dos cont ornos. A
iluminação frontal não permitiria a distinção entre as fases, dificultando a leitura, além de
tornar a imagem demasiado pesada relativamente à leveza dos movimentos de balé. Cf.
Norman McLaren, “Notes of the Multiple Image Technique of Pas d e d eu x ”, fotocópia
para circulação interna do NFB/ONF, Ottawa, janeiro de 1968.
92 ativa e prioritariamente responsável pelo mesmo. Daqui decorre um
Filme animado e cinema

cinema que apela a aspectos em geral pouco explorados pelo espec-


tador comum e que, abertamente, busca nele a consciência daquilo
que é e como é no interior do dispositivo fílmico.

McLaren abre um espaço de possibilidades para um especta-


dor que aprende a tomar consciência de si, descobrindo-se como
lugar de todas as percepções, que discute a “autoridade” daquilo que
lhe é proposto como filme, e que, segundo o grau de seu envolvimento,
pode captar e apreciar aspectos diferentes. No processo de resolu-
ção técnica e poética que persegue em cada um de seus projetos, é
claro o modo pelo qual requer e implica não só a percepção de movi-
mento aparente e de profundidade, mas também as condições e mei-
os pelos quais se percebem todas as imagens. Cada filme de McLaren
aparece como nova abordagem dos vários aspectos pelos quais o fil-
me se manifesta no sistema perceptivo do espectador.

Como mais tarde irá constatar Pierre Hébert acerca de seu


próprio modo de fazer, a projeção do filme na tela funciona como
uma membrana voltada de um lado para o autor e do outro para o
76
espectador. Uma superfície de contato. Suponho que era disso que
André Mart in t inha consciência quando afirmou: “Na verdade,
McLaren nunca foi um ‘diretor’ como a maioria de seus colegas; ele
está mais interessado naquilo que se passa em suas mãos ou no espí-
77
rito do espectador do que naquilo que se desenvolve na tela”.

Norman McLaren, tal como Pierre Hébert, entre outros auto-


res, usou os próprios filmes como instrumento de exploração da pró-
pria matéria de representação, trabalhando no nível dos códigos de
reconhecimento e dos sistemas que estruturam a percepção, mas
também no nível dos próprios artifícios gráficos, sondando-lhes os

76
Cf. Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., pp. 64-65.
77
André Martin, Catalogu e de l’ex position , cit., p. 260.
78
limites pelo lado de fora, “sempre à procura do vazio a completar”, 93

A colaboração do espectador interessado


na certeza de que animar seria trabalhar com aquilo que se perde do
79
desenho ou, até, que nunca terá existido em si antes de o ser na
película; que desaparece pela ilusão fílmica: porque aquilo que ve-
mos na tela não é, não tem correspondência direta com o faz er do
seu autor, como veremos mais adiante; os elementos da linguagem
que servem na expressão de seu desígnio, esses, cumprida sua fun-
ção, logo se desvanecem. São tornados presentes para que radical-
mente se transformem noutra coisa no espírito do espectador. O autor
só sabe se foi compreendido pelo fato notável de seu discurso não
mais existir nem permanecer: ter sido inteiramente substituído pela
sensação no espectador, isto é, por imagens, impulsos, reações ou
atos que só a ele pertencem; em suma, por uma modificação interior.
Daqui resulta que a perfeição dessa espécie de linguagem, cujo úni-
co destino é ser compreendida, consiste evidentemente na facilida-
de com que ela transforma-se em qualquer outra coisa.

78
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., p. 66.
79
Ibid., p. 68.
A filosofia que sustém
o ato de animar

[…] minha filosofia do filme simples, feito à mão


Norman McLaren, Animated Films

N o processo de fabricação do filme animado, o autor esforça-se


por recuperar para si mesmo, para seu próprio gesto, o con-
trole não só de todos os procedimentos técnicos, mas, igualmente, a
origem da ilusão fílmica que acontecerá graças à participação do es-
pectador. A realizadora e investigadora Leslie Bishko, no início do en-
saio em que reflete sobre o trabalho do animador, não tem dúvidas:
As qualidades poéticas que experimentamos em um trabalho de ani-
mação se originam da maneira na qual os animadores sintetizam suas
sensibilidades criativas com a tecnologia da mídia. Como a animação é
um modo de expressão que é baseado na tecnologia da ilusão cinemática,
as várias tecnologias de ferramentas, métodos e mídias são parceiras
80
no processo.

Não tendo origem fora do próprio faz er que, de modo simultâ-


neo, implica a mesma ação tanto o autor quanto o inteiro dispositivo,
as qualidades expressivas da ilusão do movimento e do fato fílmico
tomado em seu conjunto são, por isso, determinadas pela natureza
dessa relação. Não há recalcamento do dispositivo. Bem pelo contrá-
rio, o dispositivo é exposto, explorado, manipulado, integrado e su-
perado. A obra não se faz pela subtração e apagamento do dispositivo,

80
Leslie Bishko, “Expressive Technology: The Tool as Metaphor of Aesthetic Sensibility”,
em An im ation Jou rn al, s/n o, Santa Clarita, outono de 1994, pp. 74-91.
96 mas pela sua integração fisiológica. O filme animado é o processo
Filme animado e cinema

pelo qual o autor constrói uma presen ça – transitória – a partir da


assunção somática do dispositivo cinematográfico.

Assim, se, por um lado, o potencial artístico de qualquer obra


de animação depende profundamente da própria natureza do dispo-
sitivo técnico, por outro, advém da experiência cinestésica vital de
seu autor, do modo pelo qual vive o movimento das coisas e o de seu
próprio corpo; na medida em que a percepção do corpo vivo permi-
te-lhe quer o acesso ao real, quer o gesto com o qual investe a
materialidade expressiva de seu filme. No filme animado, não ape-
nas a visão se faz gesto, mas todo o corpo, enquanto registro vivo
t an t o d o movime n t o e sp on t ân e o d as coisas qu e , or gân ica ou
inorganicamente, se oferecem à sua sensibilidade, como das ações
com as quais transforma o mundo. Mesmo quando procura no real a
origem referencial de seu trabalho, o animador não o representa –
de forma exclusiva – nem por imitação, nem por análise objetiva,
como veremos detalhadamente mais adiante. Aquela provém de ope-
rações que tomam lugar em seu corpo e a partir dele. O animador
manifesta em filme aquilo que resta de impressões que o marcaram
e modificaram fisicamente. Diz, ainda, Leslie Bishko:
Métodos de animação feita à mão tendem a promover qualidades de
movimento que carregam sensações, enquanto uma abordagem mais
mecanizada da animação reflete as qualidades da máquina que a fez.
Os animadores intuem o comportamento físico das formas com base
em sua experiência cinestésica no mundo. A familiaridade da expe-
riência cinestésica fornece uma estrutura, ou referência, para as qua-
lidades de movimento que nos comunicam sensações. A utilização dos
métodos de animação, tais como desenho ou animação de objetos, é
uma tradição que permite aos animadores focar sua sensibilidade em
peso, tempo, espaço e formato, que coletivamente formam as qualida-
des cinestésicas do movimento.
Esses são métodos que promovem diretamente uma sensação de fluxo
no processo de animação. Chamo esse senso intuitivo de animação de
“sent ir ent re os fot ogramas”. […] A sensação int uit iva ent re os 97

A filosofia que sustém o ato de animar


fotogramas é o modo qualitativo do animador de relacionar-se com o
81
processo, por meio da utilização de mídias e ferramentas.

Neste “sentir entre as imagens” Pierre Hébert pôs o funda-


mento do “valor cinematográfico” do filme, noção que desenvolveu a
partir da de “texturas de duração”, que abordarei adiante.

Em termos sucintos e essenciais, o filme animado surge a par-


tir do modo segundo o qual todo o corpo vivo do animador interage
com toda prótese técnica de produção fílmica, sendo por isso ex-
pressão também do mundo e da natureza. É a atitude do animador no
interior da relação que é capaz de estabelecer com o dispositivo que
determina o filme. Mas essa não é exclusiva: não se trata de uma
relação voltada para si mesma. Tanto pela sensibilidade e capacidade
de ação do corpo modificado, quanto pela dimensão sobretudo cien-
tífica, econômica e social do objeto técnico, nessa relação estão im-
plicados tanto a humanidade em sua história quanto o caráter de coisa
cósmica dos elementos por nomear, por descobrir e organizar em
texturas espaciotemporais. É que,
ao se dizer “dispositivo”, já se fala de uma organização complexa feita
de tecnologia, de conhecimento e de relações sociais, que logo organiza
uma relação com o universo e que, no entanto, sempre produz outra
coisa que não uma imagem natural. Isso ainda é mais verdadeiro para
o cinema de animação, cuja maquinaria é manifesta e não dissimulada.
Então, a movimentação desses dispositivos que têm como argumento a
tecnologia, assim como sua vertiginosa mobilidade, chamada “progres-
so”, já têm por elas mesmas um certo sentido, ainda mais que elas
dramatizam isso que é o centro infernal da vida da humanidade mo-
82
derna, a experiência multiforme da tecnologia.

81
Ibi d em .
82
Pierre Hébert, “Higly Personal Reflections on the State of Animation/Considérations très
personnelles sur l’état du cinéma d’animation”, em Bu lletin de l’Association In tern ation ale
du Film d’An im ation , 14 ( 1) , Asifa-Canada, Montreal, 2001, pp. 9-13. A tese de Simondon
confirma as afirmações deste cineasta; cf. Gilbert Simondon, Du m ode d’ex isten ce des
objets tech n i qu es ( 1958/1969) ( Paris: Aubier, 1989) .
98
Mestria
Filme animado e cinema

Evidentemente que, por tudo o que se afirma aqui, o gesto do


animador não pode ser visto enquanto determinado por uma qual-
quer idéia de competência e mestria, que supõe um adestramento
habilitado, desejável, assim como o uso adequado e sensato dos equi-
pamentos no respeito de normas técnicas e administrativas. Não há
apetite pela construção de uma autoridade, um poder, nem exibição
de figuras identificadas com uma supremacia tecnológica qualquer
que seja. Permito-me lembrar que, no contexto desta dissertação,
não é levado em conta o filme de estudante, nem o são as obras com
fins comerciais ou, até, os trabalhos que em geral foram realizados
numa perspectiva servil e corporativa, pela introjeção de regras que
decretam quais os protocolos e boas práticas requeridos para que se
considere como apropriada e aceite a própria atividade, para os quais
as afirmações que aqui se fazem não podem ( nem pretendem) ser
verificadas. Até porque, como veremos, associado à prática da ani-
mação enquanto atividade de autor, à sua singularidade, está um pro-
cesso de desregramento não só do código que postula as “boas
práticas”, como, mais essencialmente, do espaço e do tempo enquanto
conceitos interiorizados, de cariz ideológico.

O trabalho da mão em meio à tecnologia cinematográfica deve


ser entendido por aquilo que é: o chamar a si do capital de informa-
ção detido pelo aparelho e pela sua instrumentalidade, como modo
de acesso a seu esquema técnico, do qual estes se apresentam como
ocorrência possível. São manifestas as ilações que excedem visivel-
mente a constatação simples da relação pessoal, física, entre o autor
e a máquina a fim de dar corpo a seu trabalho, e que vão no sentido
de a entenderem como uma maneira renovada de com preen der a
tecnologia, expondo a realidade humana contida na máquina, exibin-
do e reivindicando uma proximidade do e ao objeto técnico. Eis par-
te da tese de Gilbert Simondon:
As artes do artesão podem produzir uma continuidade de significado 99

A filosofia que sustém o ato de animar


para o conhecimento direto da função, especificada pela compreen-
são dos gestos. O conhecimento não verbal articulado pelas mãos e
pelos pés é a maneira pela qual o corpo pensa, assim como a burilada
das palavras a partir do som é a maneira pela qual o espírito entra em
contato. Nada incita tanto a integração harmoniosa do indivíduo hu-
mano quanto um colocar-se à disposição do outro, a não ser que haja
83
perda de habilidade nos dois.

Se a importância do gesto manual, da manipulação, parece es-


sencial no seio da máquina, por outro lado, seria interessante refletir
sobre os nexos que esta estabelece com a linguagem e, logo – dada a
relação filogenética e cerebral que esta detém no seio da comunica-
ção –, enquanto processo de aproximação a outrem, tal como sugere
André Leroi-Gourhan:
A diminuição do papel desempenhado por este órgão acidental que é a
mão não teria grande importância caso não se verificasse que a sua
atividade é estreitamente solidária do equilíbrio dos territórios cere-
84
brais com ela relacionados [os da linguagem].

E ainda:
[…] não ter de pensar com a mão equivale a não possuir uma parte do
pensamento normal e filogeneticamente humano. A partir deste mo-
mento, existe, portanto, à escala dos indivíduos, se não mesmo da
espécie, um problema de regressão da mão. […] o desequilíbrio ma-
nual já rompeu parcialmente o laço existente entre a linguagem e a
imagem estética da realidade, mostrando que não é por pura coinci-
dência que a arte não figurativa coincide com uma técnica “des-
85
manualizada”.

83
John Hart, prefácio, em Gilbert Simondon, Du m ode d’ex isten ce des objets techn iqu es,
cit., pp. VIII-IX.
84
André Leroi-Gourhan, Le geste et la p arole..., cit., pp. 54-55. Cf. citação no contexto
estabelecido por Pierre Hébert, “Égarements volontaires”, em Aline Gélinas ( org.) , Les
ven dredis du corps: le corps en scèn e, vision plu rielle ( Montreal: Cahiers du Théâtre
JEU/Festival International de Nouvelle Danse, 1993) , pp. 121-138.
85
Ibi d em .
100 Afirmações que, no contexto do objeto que proponho, suge-
Filme animado e cinema

rem a necessidade de pesquisa no nível da significação filosófica que


o filme animado poderá ter no contexto da evolução humana, ou da-
quele que poderá ser o conceito evolutivo de humanidade.

A partir do Hom o sapien s a evolução humana apresenta uma


separação cada vez mais acentuada entre a evolução fisiológica – um
86
corpo que “permaneceu na escala do tempo geológico” – e o de-
senvolvimento dos utensílios. Para a sobrevivência da espécie, afir-
ma Leroi-Gourhan, era, por isso, “necessária uma acomodação, que
não dizia apenas respeito aos hábitos técnicos, mas que, em cada
mutação, implicava a reformulação das leis de agrupamento dos indi-
87
víduos”. A humanidade mudaria um pouco enquanto espécie a “cada
88
vez que simultaneamente muda de utensílios e instituições”:
Ainda que seja específica do homem, a coerência das transformações
que afetam toda a estrutura do organismo coletivo é da mesma ordem
daquela que caracteriza as transformações que atingem todos os indi-
víduos de uma coletividade animal. Ora, as relações sociais adquirem
um novo caráter a partir da exteriorização ilimitada da força motriz:
um observador que não fosse humano, e que permanecesse estranho
às explicações a que a história e a filosofia nos acostumaram, separaria
o homem do século XVIII do século XX tal como nós separamos o leão
89
do tigre ou o lobo do cão.

E mais adiante:
Ao longo dos tempos, a instalação de um organismo social no qual o
indivíduo desempenha progressivamente o papel de célula especia-
lizada leva a que se torne cada vez mais clara a insuficiência do homem
90
de carne e osso, autêntico fóssil vivo, imóvel na escala histórica.

86
André Leroi-Gourhan, Le geste et la parole..., cit., p. 45.
87
Ibi d em .
88
Ibi d em .
89
Ibi d em .
90
Ibid., p. 46.
O objeto técnico, ao ser reapropriado fisiologicamente, permi- 101

A filosofia que sustém o ato de animar


tiria aceder – pela sensibilidade e pela ação – ao limite do conheci-
mento humano; recuperar a prótese, na medida em que não é tomada
nem como exterior nem como obstáculo, como “caixa-preta”.

O florescimento criativo de uma parte da expressão humana


não pode nem deveria pôr-se como restrito ou restritivo. Ora, a
criatividade no domínio da tecnologia é restritiva quando não se re-
laciona, ou é subtraída, a outras aspirações humanas. Os objetos téc-
nicos alienam, de qualquer maneira, se os esquemas técnicos neles
prefigurados não são incorporados, nomeados, isto é, se não respon-
dem a intenções contemporâneas, cotidianas e íntimas do querer
humano em seu t odo. É esse o valor que deve ser at ribuído à
criatividade técnica: o da fluidez e da transparência que devem do-
minar o modo pelo qual é posta a serviço do processo de comunica-
ção. Bem diferente é esta atitude da que hostiliza a máquina e daquela
que ostensivamente lhe é indiferente, ou até da que lhe faz a apolo-
gia acrítica e progressista, constituindo-se todas como signo de um
mundo desumanizado e amputado de suas próprias ações e de seu
próprio conhecimento. Diz Pirsig, num livro que marcou época:
O Buda, a divindade, reside muito confortavelmente tanto nos circui-
tos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão
de motocicleta, quanto no topo de uma montanha ou nas pétalas de
uma flor. Pensar de outra maneira é rebaixar o Buda – que é o mesmo
91
que rebaixar a si mesmo.

Como orientar, então, o gesto?

O interesse contemporâneo pelo corpo resultaria não tanto de


séculos de racionalismo, quanto dos efeitos de choque produzidos
pelo aparecimento do automatismo das máquinas – fato culminante
na história humana. Nunca antes a imagem do homem – que a si
91
Robert M. Pirsig, Zen an d the Art of Motorcy cle Main ten an ce: An In qu iry in to Valu es
( 1974) ( Londres: Vintage, 1989) , p. 27.
102 próprio se via como demiurgo, aquele cujas mãos modelam a nature-
Filme animado e cinema

za – teria sido tão abalada. Nem no confronto com o irracional nem


com o divino, presente na atividade artística quando tomada pela fi-
losofia como processo reconciliat ório. O Ser do ser humano é
suspenso quando a máquina é disponibilizada e assume-se como auto-
suficiente na relação entre o homem e seu espaço. Esse é um cho-
qu e d o qu al e st amos lon ge d e n os t e r mos r e st abe le cid o. As
representações do corpo que a ciência ou mesmo a arte nos propõe
são apenas isso, rumores e indícios sobre o corpo concreto que ape-
nas é percebido a partir de si mesmo, nos interstícios do que sente e
do que faz. Por meio da diferença produzida somaticamente pelo
mundo físico e por aquela que é capaz de imprimir no real a partir de
seu gesto. Na presença de outros.

Qual poderia ser, então, o processo pelo qual o homem assume


sua humanidade e a manifesta?
Um autor específico:
Norman McLaren

Esta é a questão. Um prazer que se aprofunda


às vezes até comunicar uma ilusão de compreen-
são íntima do objeto que o causa; um prazer
que excita a inteligência, a desafia e lhe faz
apreciar sua derrota; mais, um prazer que pode
irritar a estranha necessidade de produzir, ou
de reproduzir a coisa, o acontecimento, o objeto
ou o estado, ao qual parece irmanado, e que se
torna por isso uma fonte de atividade sem ter-
mo certo, capaz de impor uma disciplina, um
zelo, tormentos a toda uma vida, e de a preen-
cher, se não mesmo de a transbordar – propõe
ao pensamento um enigma singularmente
atraente que não podia escapar ao desejo e ao
amplexo da Hidra metafísica.
Paul Valéry, Discurso sobre a estética:
poesia e pensamento abstracto

O filme enquanto espaço de possibilidades e de


transfiguração
Um projeto de filme parte normalmente de uma questão ini-
cial, em volta da qual se estruturam idéias e tarefas. No final, o filme
104 apresenta-se simplesmente como “um conjunto de informação técni-
Filme animado e cinema

92
ca e de experiência”.

McLaren conduz a realização do filme como um meio de pes-


quisa, mas também como uma conjuntura única de pessoas e disposi-
t ivos, capaz de proporcionar uma vivência est ét ica, ist o é, uma
experiência sensível, partilhada, com sentido. A realização do filme
delimita-se a si mesma enquanto espaço de diálogo e de diferencia-
ção, voltado simultaneamente para o mundo e para as próprias con-
dições de possibilidade. Lugar de suspensão, aberto no limite exato
do convencional, e de revelação do que não é ainda comum. O funda-
mental é identificar os intercâmbios possíveis, as associações férteis
e ir diferenciando o papel dos elementos. Daí a importância de ou tros,
igualmente autônomos, no processo de criação, já que a expressão
aparece no lugar em que as linguagens confluem e confrontam-se,
como troca de energias, enquanto manifestação de uma identidade
emersa na diferenciação e transfiguração de valores e figuras: lugar
de separação, a partir do qual o autor, assim como cada um de seus
colaboradores, alcança uma maturação, a consciência de si mesmo e
da própria autonomia na consecução da obra; lugar de associação e
partilha, de comunicação, pela emergência do novo, aparição sur-
preendent e emersa dos esforços negociados ent re as pessoas
implicadas e que permanecem unidas pelo ato mesmo de criação
enquanto vivência sensível e inscrição definitiva.

A organização do estúdio de animação enquanto “comunidade


93
de criadores” emerge, obviamente e no caso específico da produ-
ção de McLaren, do contexto inicial criado pela Segunda Guerra
Mundial e pela filosofia de Grierson, no que respeita à polivalência, à

92
Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques: – As Developed at the National Film Board of
Canada 1940-1962”, fotocópia de circulação interna do NFB, Ottawa, 1962, 8 pp.; transcri-
to em Alfio Bastiancich, Norm an McLaren : précu rseu r des n ou velles im ages, cit., pp.
171-175.
93
Cf. comentário de Pierre Hébert sobre a animação de McLaren citado na p. 42 deste livro.
autonomia e à cooperação entre os funcionários do National Film 105

Um autor específico: Norman McLaren


Board. Mas é Norman McLaren que o transforma no lugar único e
improvável que ainda é: no qual a produção não é irrevogavelmente
condicionada nem pelas normas e dispositivos da profissão e da in-
dústria, nem tampouco pela maneira pseudo-romântica que situa o
au teu r como origem única da obra de arte, convenientemente arru-
mada em qualquer dos casos. No National Film Board, McLaren pôs
o filme no próprio filme, num espaço de possibilidades posto em de-
riva, como parte de uma ligação comunicativa ( como ex periên cia
partilhada e, por isso, comunicável) , fragmento de um processo, aber-
to algures, entre as suas referências: todas as linguagens, todos os
dispositivos, todas as colaborações, todos os espectadores.

A economia de meios
A exigüidade dos meios – tanto de produção como de expres-
são – ajudaria na delimitação e orientação do processo criativo, le-
vando o autor a concentrar-se naquilo que, tanto nos modos técnicos
como nos de linguagem, é essencial. Escrevia McLaren em 1955,
ano em que realizou Blin kity Blan k:
Eu certamente admito que sinto um prazer claro em fazer um filme com
a menor soma de dinheiro, equipamento e tempo possível […] a dádiva
de poupança do filme é que, se você o despe de todas as suas caracterís-
ticas secundárias, tais como cenários, fundos, propriedades, ilumina-
ção, figurino e até mesmo som, deixando apenas o esqueleto da ação, é
possível prender a atenção da platéia com firmeza. Tudo o que é real-
94
mente essencial é que a ação seja clara e planejada com habilidade.

E era com convicção que concluía: “[…] existe uma conexão


95
direta entre o orçamento baixo e a abordagem experimental”.

94
Norman McLaren, The Low Bu dget an d Ex perim en tal Film ( Ottawa: NFB, 1955) , foto-
cópia, s/p.
95
Ibi d em .
106 Três anos mais tarde voltaria a propor a mesma disciplina a
Filme animado e cinema

propósito da animação direta na película:


O artista descobrirá que a pequena escala em que está trabalhando o
forçará a simplificar todas as suas formas […] Essa é uma vantagem
real e deve ser encorajada. Isso o forçará a atingir seus objetivos prima-
96
riamente por meio de movimento, ação e gestos em si.

Na demanda de um cinema ostensivamente autônomo, Norman


McLaren irá levar seu esforço até extremos insuspeitados. Antes de
mais, promoverá a proximidade entre autor e obra, subtraindo o con-
trole da imagem, do som e da duração fílmica aos automatismos es-
pecíficos da máquina; libertando o filme dos formalismos e regras
que sancionam o que se considera a legitimidade das práticas profis-
sionais; desembaraçando-o do encadeamento dos procedimentos que
a tecnologia impõe à produção e reprodução cinematográficas. O
processo de codificação fílmica será, por sua vez, exaustivamente
sondado e reduzido a seus elementos mínimos. Irá, igualmente,
libertá-la da imposição da narrativa e da referencialidade, fazendo-
as depender da presen ça do espectador, enquanto elemento neces-
sário ao filme:
[...] hoje é perfeitamente possível escolher temas e buscar novos rumos na
experimentação sem afastar o filme do interesse do público e, o que tam-
97
bém é muito importante, sem comprometimento criativo ou artístico.

O rigor
Tal como a exigüidade de meios, o rigor na planificação da ação
fílmica e na realização material do filme ajudaria a evitar a experiên-
cia gratuita, inconseqüente, afirmando-se como condição necessária
quer à exploração das possibilidades expressivas dos dispositivos, quer
à sua aplicação segundo estruturas de relação complexa.

96
Norman McLaren, Cam eraless An im ation ( Ottawa: Information and Promotion Division-
NFB, 1958) , p. 7.
97
Norman McLaren, “Homage à George Méliès”, cit., p. 178.
McLaren procedia, com minúcia, em todos os níveis, à listagem 107

Um autor específico: Norman McLaren


exaustiva e rigorosa de cada elemento mínimo, à conjugação e expe-
rimentação sistemática de cada um em todas as formas de articula-
ção que prometiam poder vir a compor a substância de expressão
fílmica. Evelyn Lambart afirma-o claramente:
Norman filmaria dez alternativas, e o horrível era que ele queria ver
todas as alternativas montadas no conjunto. Assim que tivesse visto
todas, bem, então ele jogaria fora aquilo que não funcionasse, mas ele
era purista o suficiente para nunca descartar qualquer coisa sem real-
98
mente a editar olhando bem para ela.

O rigor, enquanto qualidade específica da atitude de criação


de McLaren, pode ser caracterizado como tendo dois aspectos: 1) no
nível da concepção e planificação fílmicas e 2) no nível da gestão do
processo criativo.

1) No n ível da con cepção e plan ificação fílm icas

Norman McLaren realizaria praticamente todos os seus filmes


tendo por base um sistema de relações de proporção a partir do qual
podia determinar a duração e a configuração dos elementos de luz
que, pelo filme, seriam projetados na tela. Isto faria com que muitas de
99
suas dope sheets tivessem o aspecto de partituras de uma espécie
fascinante de linguagem. Embora, nestas, a estrutura de relações
abstratas seja aparentemente óbvia, esta era a expressão de qualquer
coisa que só podemos circunscrever na memória da própria experiên-
cia fisiológica do mundo por parte do autor. Orgânica, portanto.

A obra de Len Lye foi construída sobre uma abordagem seme-


lhante. Len Lye fundou toda a sua poética sobre a análise das sensa-

98
Evelyn Lambart apu d Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an Interview with Joan Churchill”,
em Jayne Pilling ( org.) , Wom en in An im ation : A Com pen diu m ( Londres: British Film
Institute, 1992) , p. 30.
99
Dope sheets: folhas de papel em que, basicamente, cada fotograma é especificado indivi-
dualmente, segundo uma numeração progressiva, permitindo anotar todo tipo de infor-
mação técnica e dramática necessária a sua execução ou registro. Ver imagem da capa.
108 ções que acompanhavam seu cotidiano. Exercitava-se, desde muito
Filme animado e cinema

novo, em delimitar e localizar a origem e a intensidade da unidade


sensitiva em seu próprio corpo. Para este autor, o movimento era
100
tão-só a expressão daquilo que é vivo. Não deveria nunca ser en-
tendido enquanto aspecto formal externo, de caráter mecânico, mas
como aparência da própria existência física, projetada no exterior e
vista como manifestação de vida. Neste contexto, qualquer atividade
artística que tivesse por projeto a busca de um modo de materialização
plástica do movimento, subentenderia sempre um esforço de con-
centração na franja intersticial que delimita as grandes sensações, lá
onde flutuam e se entrecruzam os sentidos. Seria, por isso, necessá-
rio aprender a filtrar, destrinçar, conjugar e refinar sensações. Ob-
servava-se observando, tal como viria a constatar Merleau-Ponty a
propósito de Cézanne.

Nessa direção segue a proposta explícita, de Norman McLaren,


em encarar a memória muscular como alternativa ao cálculo das
101
calibration s na deslocação de uma forma, e o fato de, muito cedo
em sua produção, ter considerado essencial o tempo passado a obser-
102
var e a sen tir o movimento das coisas vivas. O filme pôr-se-ia como
laboratório de linguagem no qual poderiam ser experimentados os
mecanismos das sensações, assim como o espaço definido por e entre
elas, enquanto matéria-prima transformável. Considerado deste pon-
to de vista, e pelo tipo de estrutura que podem adotar no discurso os
elementos mínimos de significação, o filme apareceria como ex pres-

100
Len Lye, sem título, em Dan se Persp ecti v es, n o 30, verão de 1967, pp. 40-41; editado
também em Wystan Curnow & Roger Horrocks ( orgs.) , Fi gu res of Moti on : Selected
Writin gs ( Auckland: Auckland University Press, 1984) , p. 41.
101
Cf. o documentário An i m ated Moti on ( 1976-1978) . Cali brati on s: cada uma das fases
gráficas que o objeto assume numa curva geométrica que corresponde à sua trajetória.
102
Cf. comentários de Norman McLaren sobre a preparação para o filme Hen Hop ( 1942) no
documentário Creative Process ( 1990) , de Donald McWilliams. Pierre Hébert irá nomear
esse momento da criação “an im ation d’observation ”, aplicando-o concretamente a par-
tir de seu filme Étien n e et Sara ( 1984) .
103
são, enquanto “geometria experimental da vida”, espécie de nota- 109

Um autor específico: Norman McLaren


ção do moviment o enquant o linguagem universal; e enquant o
metalinguagem, na medida em que se mostra exibindo abertamente
sua própria substância expressiva e sua materialidade física. Comple-
104
mentar da “linguagem da natureza” de Marey, na qual as represen-
tações surgiriam, literalmente, como inscrições do movimento no
dispositivo inventado pelo cientista a partir da situação criada pela
observação. Gênero acidental de conhecimento e de escrita que po-
deríamos estabelecer como documento ( cristalização que se faz numa
dimensão exterior àquele que observa, como sintoma do objeto, emi-
tido indiretamente a partir do real) no apelo daquele outro, errático
e centrífugo, que se condensa em filme como sintoma do corpo da-
quele que experimenta. Conjugando-se em fronteira: ambos como
possibilidades poéticas arriscadas na expectativa de sentido.

O questionamento do sentir do movimento, no espaço inters-


ticial entre as sensações, traduzir-se-ia como um “sentido entre os
105
fotogramas”, fazendo com que o filme apareça como fluxo (“flow ”)
definido a partir da pressão que, sobre o tempo, exerce a diferença
formal entre imagens contíguas, alinhadas sobre a película:
[...] o filme, não como o suporte registrador indispensável de uma
imagem capaz de movimento, mas como uma fita modeladora de toda

103
André Martin, “III. On a touché au cinéma”, em Cahiers du Cin ém a, n o 82, Paris, abril de
1958; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
cit., pp. 244-245.
104
Vale a pena deixar, aqui, uma nota sobre a “linguagem da natureza” de Marey, de sua
intenção de criar um regime de signos visuais capaz de fixar os ritmos vitais inacessíveis
à observação direta. Tendo-o conseguido, nem por isso atingiu o domínio dos princípios
que os determinam: “Deslocar não é experimentar nem saber: não será necessário deslo-
car as aparências?”, comenta Dagognet a propósito. Cf. François Dagognet, Éti en n e-
Ju les Marey : la passion de la trace ( Paris: Hazan, 1987) , p. 47. Não basta aprender a
inscrever ( escrita) ; é necessário saber ler ou, melhor, decifrar ( escrita-leitura) : “Se fosse
absolutamente necessário [criar] uma metáfora, gostaria antes de comparar o estudo das
ciências naturais ao trabalho dos arqueólogos que decifram as inscrições escritas numa
língua desconhecida, que experimentam vez a vez muitos sentidos para cada signo”; cf. E.
J. Marey, Du m ou vem en t dan s les fon ction s de la vie ( 1868) , apu d François Dagognet,
Étien n e-Ju les Marey ..., cit., p. 48.
105
Leslie Bishko, “Expressive Technology...”, cit.
110 duração cinematográfica [...]. O desfilar, elemento técnico indiferente
Filme animado e cinema

no cinema corrente, torna-se a base de toda reconstituição do movi-


ment o a part ir de sucessivas posições dispost as sobre uma fit a
moduladora e o lugar de correspondências contínuas entre as grande-
zas e as formas que determinam a evolução dos elementos em movi-
mento. Toda distância espacial, todo desvio morfológico é expresso em
106
duração, portanto, em comprimento de filme.

A noção de expressão permite, aqui, evitar duas ilusões com-


plementares: a de imitação, que supõe um objeto que existiria antes
do filme e do qual este seria a representação, e a de fabricação, que
supõe uma intenção clara antes da execução deste e da qual o filme
seria a finalidade.
O rigor não depende do cumprimento de regras predetermi-
nadas, instituídas pela corporação, mas advém diretamente do com-
prometimento do autor no processo: o acaso é inevitável na relação
íntima com o programado, construído este sobre a previsibilidade e a
verossimilhança. Só o imprevisto permite ser preciso, mas inexato, e
não apenas no contexto de criação próprio ao filme animado: “Filmar
de improviso, com modelos desconhecidos, em lugares imprevistos,
107
próprios para me manter em um tenso estado de alerta”.
São inúmeros os autores que prescindem do argumento e do
roteiro – de qualquer orientação narrativa –, em troca de uma espécie
de “partitura” em que, ao mesmo tempo, tudo é minuciosamente pre-
visto e sobre a qual é possível improvisar. É esse o caso de Hans Richter,
Viking Eggeling, Lazlo Moholy-Nagy e, também, de Fernand Léger,
que publica um “gráfico de construções” no qual explica como o filme
Ballet m écan iqu e foi dividido em “7 partes verticais atravessadas por
108
penetrações horizontais, muito rápidas, de formas semelhantes”.

106
André Martin, “III. On a touché au cinéma”, cit.
107
Robert Bresson, Notes su r le cin ém atographe, cit., p. 31.
108
Fernand Léger, “Ballet m écan i qu e”, em L’Esp ri t Nou v eau , n o 28, Paris, 1925, ap u d
Patrick De Haas, Cin ém a in tégral: de la pein tu re au cin ém a dan s les an n ées vin gt
( Paris: Transédition, 1985) , p. 161.
Além do mais, e atendendo acima de tudo ao pragmatismo de 111

Um autor específico: Norman McLaren


Norman McLaren e de seus colaboradores mais próximos, como
Evelyn Lambart ou Grant Munro, essa postura teria vantagens clara-
mente práticas, permitindo fazer um filme rigorosamente sincroni-
zad o com u ma mú sica se m qu e e st a t ive sse sid o e scolh id a
antecipadamente – como foi o caso em Sphères ( 1969) , Neighbou rs
( 1952) , ou Pas de deu x ( 1967) –, ou respeitar a estrutura musical
ou narrativa preexistentes, como no caso dos filmes sobre canções
em língua francesa. Tornaria possível, também, o trabalho em situa-
ções de extrema complexidade, como aconteceu com quase todos os
seus filmes. Destaca-se, no entanto, Can on ( 1964) , um de seus fa-
voritos, mas também aquele que lhe trouxe mais dificuldades técni-
109
cas e que quase o fez desistir.

2) No n ível da gestão do processo criativo

Em seu trabalho, McLaren parte de situações de equilíbrio


fílmico equivalentes às do papel e tela brancos do pintor ( em suas
110
palavras: “o seu estado virgem”) : a continuidade insistente, reite-
rada, da tela branca ou negra que permanece. De resto, uma de suas
preocupações explicitamente expressas – mais uma vez – é procurar
e tentar manter um contato tão próximo com o dispositivo fílmico
quanto o do pintor com a tela: “Tentei preservar em meu relaciona-
mento com o filme a mesma proximidade e intimidade que existem
111
entre um pintor e seu quadro”.

Em cada filme essa parece ser uma questão essencial: “[…]


pensar em manter minha intimidade com o celulóide de alguma ou-
112
tra maneira”.

109
Grant Munro, em Cecile Starr, “Conversations with Grant Munro and Ishu Patel...”, cit., pp.
44-61.
110
Norman McLaren, “Animated Films”, cit., p. 52.
111
Ibi d em .
112
Ibi d em .
112 E, mais adiante:
Filme animado e cinema

Às vezes as solicitações de um tema ditavam uma técnica que era


remota à minha filosofia “pauzinho com pêlos de camelo”, como no
caso do canto popular C’est l’av i ron . Meu único desejo então era
chegar o mais próximo possível do mecanismo técnico e explorar com-
pletamente a intimidade – nesse caso, com as possibilidades de zoom
da truca, obturador e w in dback de uma câmera de animação. Mas, de
modo geral, foram evitados temas incompatíveis com a abordagem
113
“pêlo de camelo”.

McLaren tinha consciência da força com que a máquina impri-


me sua presença naquilo que realiza. Como forma de recuperar dela
a autoria de seu filme, era com empenho que mantinha um espaço de
possibilidades aberto a soluções poéticas libertadas pelo erro e pelo
imprevisto. Ainda que planificada com rigor, a intenção original do
projeto era, muitas vezes, esquecida em função de resultados mais
interessantes, prometidos por qualquer material ou ação fortuita. É
conhecida a origem dos contornos em branco nas figuras em seus
114
primeiros filmes desenhados diretamente na película, assim como
os percalços com a poeira na realização de Begon e d u ll ca r e
115
( 1949) . A propósito destes últimos, conta Evelyn Lambart:
Em um dado momento, estávamos desesperados porque a poeira na
sala estava insustentável, mas McLaren não queria eliminá-la porque
ela podia criar marcas interessantes sobre a película. Assim, tentamos
fazer ainda mais poeira. Depois McLaren descobriu que o projetor

113
Ibi d em . “Pauzinho com pêlos de camelo” é um pincel. Essa expressão é uma clara
referência à atitude de fazer um filme como um pintor pinta um quadro; w in dback é o
disposit ivo que permit e rebobinar e sobre-expor ou filmar por cima das imagens já
registradas.
114
Cf. entrevista com Norman McLaren conduzida por Janick Beaulieu, Gilles Blain, Léo
o
Bonneville e Patrick Schupp, em Séqu en ces, n 82, número especial dedicado à obra de
Norman McLaren, Montreal, outubro de 1975.
115
Cf. Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques...”, cit., pp. 171-175. Cf., igualmente, Evelyn
Lambart, em May Ebbitt Cutler ( 1965) , ap u d Alfio Bast iancich, Nor m a n McLa r en :
précu rseu r des n ou velles im ages, cit.; e também em Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an
Interview with Joan Churchill”, cit., pp. 30-32.
arranhava a película, então utilizou também esse inconveniente para 113

Um autor específico: Norman McLaren


116
criar novos signos.

E ainda:
Begon e du ll care foi um filme altamente inventivo e um de nossos
favoritos. Tínhamos duas moviolas para que o filme corresse da pri-
meira máquina cerca de vinte pés e então atravessasse até a próxima,
voltando ao início e fechando a volta. Colocaríamos tinta acrílica úmida
no filme, começando com a primeira moviola. Depois iríamos correr e
pular no chão em diferentes locais para produzir poeira. A poeira era
meio oleosa e, quando pousasse no filme, a pintura seria repelida,
criando um padrão muito interessante. Fizemos isso de maneira que se
produzisse ritmo. Outra vez nós sacudimos o filme para fora da janela
para que ele pegasse alguma sujeira da Spark Street… tudo isso está
117
no filme.

Ainda sobre este filme, Evelyn Lambart acrescenta:


As cores eram aplicadas em faixas, em manchas, em tramas, utilizando
qualquer material ao alcance da mão, [...] fazendo correr um pente fino
sobre a tinta ainda molhada, obtinha-se um resultado interessante, [...]
todo material que prometesse resultados interessantes era utilizado,
118
sem que a gente se preocupasse com sua finalidade original.

Como se disse anteriormente, a máquina caracteriza-se pelo


esquema técnico subjacente em sua fiabilidade. Este pressupõe um
conjunto previsto de possibilidades, e estas condicionam o resultado
de sua produção. Transformando os incidentes, erros e limitações
técnicas em fonte de novas possibilidades expressivas, o autor obri-
ga o aparelho a uma descontextualização que lhe altera o modo de
existência e, em conseqüência, o faz derivar. É desse modo que com-
pleta o vazio entre domínios da compreensão até aí separados; que

116
Evelyn Lambart apu d Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an Interview with Joan Churchill”,
cit., pp. 30-32.
117
Ibi d em .
118
Evelyn Lambart, em M. E. Cutler ( 1965) , ap u d Alfio Bastiancich, Norm an McLaren :
précu rseu r des n ou velles im ages, cit., p. 70.
114 estabelece o contato entre campos da ação e do saber humanos habi-
Filme animado e cinema

tualmente mantidos à parte; que promove a proximidade entre si


me smo e a r e alid ad e , su scit an d o o “e fe it o d e con h e cime n t o”
althusseriano.

Um outro autor, o realizador tcheco Jan Svankmajer, sendo ape-


lidado por uma entrevistadora como o alquimista do filme, dados os
modos pelos quais combina procedimentos técnicos, responde: “Sim,
alquimia é tentar conectar coisas que você não pode conectar, que
são ‘inconectáveis’. Poesia é um paralelo para alquimia, e alquimia é
119
um paralelo para poesia”.

É interessante a tarefa que esse autor tcheco reserva ao roteiro:


Ao criar cada um de meus filmes, sempre considerei mais essencial
que as “circunstâncias”, internas ou externas, forçassem a que a ver-
são em livro do script fosse abandonada. Se você vive com seu filme –
quero dizer que se você fica com ele 24 horas por dia, se vai dormir com
ele e acorda com ele, um estado que tende a estabelecer-se no primeiro
dia de filmagem –, então é natural que seu subconsciente comece a
influenciar a realidade do filme, e vice-versa. Nesse estado – algo como
um tipo de transe ( afetando tanto a nós mesmos quanto a realidade em
volta) –, um script escrito não é normalmente de uso de modo algum.
Você tem de começar de novo. Você muda o tamanho das tomadas e
ângulos da câmera, e também os movimentos dos atores, e aqui figuras
novas, inesperadas, “não-planejadas”, começam a insinuar-se no script,
e no conceito do filme. Estes são produtos de nosso subconsciente, que
se abre e começa a demolir a construção “racional” do script e suas
120
idéias “planejadas”.

E, mais adiante:

119
Wendy Jackson, “The Surrealist Conspirator: An Interview with Jan Svankmajer”, em
os
An i m ati on World Magaz i n e, n 2-3, junho de 1997 ; disponível também em http://
www.awn.com/mag/issue2.3pages/2.3jacksonsvankmajer.html.
120
Cf. prefácio do livro em que foi publicado o roteiro do longa-metragem Fau st ( 1994) , em
Jan Svankmajer, Fau st: The Script ( Trowbridge: Flicks Books, 1996) , p. v.
E então súbita e inadvertidamente você descobre que está fazendo um 115

Um autor específico: Norman McLaren


filme que não conhece, embora você seja seu único autor. Entretanto,
essa aventura de sua imaginação, que faz tanto o dramaturgo quanto o
produtor desaparecerem, é o que verdadeiramente faz de um filme
uma “declaração real”, em vez de uma construção de idéias ou uma
forma estetizada. Sempre preferi esse processo criativo “caótico”, e no
entanto autêntico, ao roteiro perfeitamente escrito que requer somen-
te realização profissional. As “estranhezas e erros dramatúrgicos” e a
“falta de profissionalismo” deste caminho são então ultrapassadas pela
121
autenticidade da experiência.

De algum modo, parece evidente que o roteiro do filme não


teria nunca existência poética válida, assumindo-se como indepen-
dente do próprio fato fílmico. A possibilidade de sobrevivência do
roteiro, enquanto documento, procede do sucesso do filme que dele
depende. Ora, este vive numa dimensão espaciotemporal incindível,
emersa de um aparelho complexo que só tem existência pelo filme e
através dele. Um aparelho que não se mostra totalmente em cada
filme mas que cada filme faria vacilar. O processo que leva ao filme
tem, por isso, caráter exploratório: pelo que o roteiro seria o mapa
do trajeto, um dispositivo que abre para o decurso da viagem e sobre
o qual é necessário improvisar, tentear, já que o ponto de chegada do
decurso não é perceptível em seu início. Neste contexto, e ainda que
sua reflexão restrinja-se ao documentário, as questões que Van Der
Keuken levanta sobre a importância do roteiro são incontornáveis:
[…] onde você põe a declaração, o argumento de seu filme, em relação
à energia puramente sensorial a que você aspira quando percebe que,
sem o argumento, não pode encontrar uma forma de montagem na
qual a energia é efetiva? Como você pode produzir tempo, movimento
e enquadramento do assunto de seu filme, como você pode abordá-lo
musical e geograficamente sem cair na frivolidade impressionista?
Como você pode criar uma composição autônoma que todavia produz

121
Ibid., p. vi.
116 uma afirmação sobre a realidade? Como você pode evocar um espaço
Filme animado e cinema

tridimensional percebido em uma superfície plana? Como um texto


insere-se nessa entidade e quão claro ele se torna se uma dimensão
política for adicionada à sua visão de mundo? Que discrepâncias exis-
tem então entre o texto e a composição inteira de signos visuais? Se um
ator aparece, como ele fala? Como ele se move? Que tipo de posição ele
assume? E se, com tudo isso, uma história desenvolve-se, isso perma-
nece na superfície do filme ou é ocultado em seu interior? Isso existe
em fragmentos formais da narrativa ou é projetado a partir dos bura-
122
cos, as imagens que faltam no filme?

O improviso permite a adequação e a abertura ao que antes


não se sabia. A descoberta mostra-se generosa enquanto conheci-
mento pertencente a um gênero diferente: abre, por diferença, para
um sentido antes improvável num tipo de conhecimento diverso que
obriga a uma experimentação tateada e à suspensão ( condicional)
do processo de pesquisa até aí seguido:
Tal seria a dupla via de toda pesquisa, seu duplo prazer ou sua dupla
tarefa: não perder a paciência do método, a longa duração da idéia
fixa, a obstinação das preocupações predominantes, o rigor das coisas
pertinentes; também não perder a impaciência ou a impertinência das
coisas fortuitas, o breve tempo dos achados, o imprevisto dos encon-
tros, até mesmo os acidentes de percurso. Tarefa paradoxal, difícil de
cumprir por suas duas finalidades – suas duas temporalidades – con-
traditórias. Tempo para explorar a via principal, tempo para sondar as
vias colaterais. Sendo o tempo mais intenso provavelmente este, cujo
apelo nos faz trocar de via principal, ou, melhor dizendo, nos faz desco-
brir aquilo que ela já era, e que ainda não compreendíamos. Nesse
momento, a desorientação do acidental faz surgir a própria substância
123
do percurso, sua orientação mais fundamental.

Um outro autor, Jean-François Laguionie, acrescentaria:

122 o
Johan Van Der Keuken, “Questions”, em Mi llen i u m Fi lm Jou rn al, n 22, intitulado
“Mythologies”, Nova York, inverno-primavera de 1989-1990, p. 40.
123
Georges Didi-Huberman, Ph asm es ( Paris: Éditions de Minuit, 1998) , p. 10.
Tenho dificuldade de inserir-me em um quadro, não consigo respeitar 117

Um autor específico: Norman McLaren


um plano de trabalho. Há tanto de improvisação na animação do papel
recortado! Essa improvisação necessita de uma certa disponibilidade
de espírito, e é isso que o desenho animado não permite, é por isso que
124
não gosto muito do desenho animado.

E ainda:
Para a viagem dos dois personagens de La traversée..., no início é
verdadeiramente um diário de bordo, dia após dia, para dar a impres-
são de que essa viagem realmente ocorreu, como os diários de bordo de
todos os navegadores que fazem travessias! Eu me inspirei em uma ou
duas narrativas de um personagem que havia se perdido na tempesta-
de e acabava atingindo a América nas geleiras, chamado Howard
Blackburn. A partir daí comecei a delirar completamente, e o filme a se
esticar por dois anos, eu não podia parar [...] dois anos na mesma
história! Então, em lugar de ter uma história rígida escrita de maneira
precisa, com roteiro e decupagem, terminei por improvisar à medida
que o filme avançava. Havia um fio condutor, e depois os personagens
envelheciam. Naturalmente eu também, ao mesmo tempo que eles, e a
viagem ocorria dessa maneira! Durante alguns meses, trabalhei sobre
uma tempestade, depois sobre as geleiras, a calmaria, etc. Era para
125
mim a maneira mais agradável de trabalhar.

Pelo que o filme se apresentaria como ocasião única, acesso,


possibilidade de poder experimentar em si mesmo os sobressaltos
do processo, como uma viagem. A criação estaria não no modo de
articulação dos elementos significantes que há de constituir o discur-
so fílmico, mas na criação da própria – para si, autor – possibilidade
de fazer ( experimentar) um filme como passagem para outro de si
mesmo, na apropriação de uma humanidade não imediatamente aces-
sível em si mesmo, em outrem e nas coisas do mundo.
No conjunto da obra fílmica, a invenção de novos processos
não poderia, assim, ser separada dos próprios filmes, já que aquilo
124 o
Jean-François Laguionie, entrevista, em Ban cTitre, n 47, Paris, janeiro de 1985, pp. 30-31.
125
Ibi d em .
118 que percebemos na tela não é senão a “pele” de uma existência que
Filme animado e cinema

não tem outros meios para ocorrer. A obra estaria, por isso e tam-
bém, no processo que leva ao filme, tomado este como percurso,
constatação, registro e prova da descoberta:
Ele [McLaren] elabora uma técnica e começa a servir-se dela, desen-
volvendo-a durante a elaboração do filme, que, uma vez terminado,
torna-se um conjunto de informação técnica e de experiência. Tudo
isso pode fornecer o ponto de partida para um outro filme, mas o mais
comum são algumas descobertas devidas ao acaso que abrem um cam-
po de pesquisa completamente novo. O novo filme pode começar desse
126
ponto e utilizar métodos relativos, mas diferentes.

E ainda:
Acredito que nunca fizemos dois filmes com uma técnica idêntica [...]
Quase todo o nosso trabalho efetuou-se a título experimental [...] Prati-
camente nunca trabalhamos segundo um roteiro estabelecido, e nos
esforçamos sempre no desenvolvimento de uma história tão flexível
quanto possível a fim de podermos incluir toda boa idéia que pudesse
127
surgir à medida que experimentávamos uma nova técnica.

Um filme estabelece, assim, com seu próprio contexto, com o


contexto do filme anterior e com o do próximo – com toda obra –,
uma relação de familiaridade que anula cada um deles como objeto
isolado, valendo por si mesmo. O conjunto da obra faz com que o
processo de construção de cada uma de suas partes apareça como o
ser de um sentido poético que se realiza segundo a casualidade de
suas ocorrências. Pelo que cada filme apareceria como uma pesquisa
posicionada sobre a verdade de seus próprios meios, que atualiza
localmente e da qual é, apenas, um apontamento finito. Os meios não
poderiam estar subordinados aos fins porque os meios são a própria
finalidade da obra. Os filmes não podem ser tomados como produtos

126
Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques...”, cit., p. 171.
127
Evelyn Lambart, depoimento, em Séqu en ces, n o 82, número especial dedicado à obra de
Norman McLaren, Montreal, 1975, p. 131.
finalizados, mas como resíduos, fragmentos observáveis de um pro- 119

Um autor específico: Norman McLaren


cesso que convoca, igualmente, o espectador.

Também aqui, do outro lado do filme, no lado de quem o faz,


por oposição a quem o vê, a perfeição dessa espécie de linguagem
parece consistir na facilidade com que ela corresponde à transfor-
mação de uma coisa noutra coisa. Não é estranho que o objeto de
cada filme transcenda, por isso, os limites do roteiro inicial.

Ao apresentar-se como aspecto efêmero da sensibilidade alte-


rada do autor, marca da passagem do mundo no corpo daquele que o
faz, e deste no mundo, feito à mão, ao encontro da sensibilidade
modificada do espectador, em que é recomposto e finalmente acon-
tece, o filme animado situa-se num espaço expressivo que é, simulta-
neamente, p rév i o e p osteri or em relação a todas as disposições
convencionais que o processo vem acumulando, questionando não só
a racionalidade do espaço e do tempo enquanto categorias que se
propõem pelas configurações gráficas e de duração dos objetos, ações
e contextos tornados presentes, como a racionalidade dos discursos
e esquemas nos quais aqueles se just ificam. E fá-lo a part ir do
questionamento do próprio dispositivo técnico, no seio de sua funcio-
nalidade enquanto prótese de seu corpo inerme.

Muito mais que uma técnica ou uma arte ( quer no sentido


iluminista, quer no romântico) , penso que a animação é uma atitude
estética, no sentido dado pela etimologia deste último termo. Talvez
a única na era da produção e reprodutibilidade técnica da imagem.
Perfeitamente adequada aos meios técnicos de nosso tempo, porque
continuamente emergente da própria essência fílmica.

A animação corresponde à atitude que parte dos dispositivos


técnicos que suportam a ilusão fílmica para, simultaneamente, fazer
a ligação entre a realidade física, enquanto ferramenta de investiga-
ção espaciotemporal, e a realidade histórica, aquela que advém do
120 texto escrito, que transformou imagens mentais da realidade em li-
Filme animado e cinema

nhas compostas por palavras, do qual as máquinas são a materialização


128
( particularmente do texto científico) . Pelo gesto da mão, pela
manipulação quer das linguagens quer dos dispositivos, o animador
( re) apropriar-se-ia tanto da sensibilidade ( no acesso ao real) como
da instrumentalidade da máquina, enquanto objeto social, humano,
modificador da relação que mantemos com a realidade. A experiên-
cia poética aparece a partir do prazer de experimentar esses novos
afetos, ser afetado e afetar: “Um poema é um ato de linguagem que
só tem lugar uma vez e recomeça sem cessar. Porque representa o
sujeito. Não pára de fazer o sujeito. Você. Quando ele é uma atividade,
129
não um produto”.

128
Neste parágrafo aproprio-me em parte da tese que Vilém Flusser desenvolve quando
analisa a essência tecnológica da fotografia. Cf. Vilém Flusser, En saio sobre a fotografia:
para u m a filosofia da técn ica ( Lisboa: Relógio d’Água, 1998) .
129
Henri Meschonnic, Man ifeste pou r u n parti du ry thm e, disponível em www.berlol.net/
mescho2.htm; acesso em outubro de 2005.

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