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All content following this page was uploaded by Marina Estela Graça on 03 March 2019.
Bibliografia.
ISBN 85-7359-470-5
05-9104 CDD-741.58
Índices para catálogo sistemático:
1. Arte da animação 741.58
2. Cinema de animação : Análise interpretativa :
Artes 741.58
3. Filme animado : Análise interpretativa 741.58
Marina Estela Graça
7
Nota do editor
Apresentação9
Aí d a Qu ei roz
Agradecimentos 11
Introdução 13
Filme animado e cinema
O que é cinema? 27
A representação fílmica do espaço e 53
do tempo reais: dispositivo conceptual
Poética ( manipulações)
Conclusão 205
Bibliografia complementar 219
Índice geral 221
Nota do editor
Aí d a Qu ei roz
Animadora, formada em belas-artes na Universidade
Federal de Minas Gerais, é sócia-diretora da produtora Campo 4
Desenhos Animados e membro da direção do Anima Mundi –
Festival Internacional de Animação do Brasil
Agradecimentos
1
Cf. Marina Estela Graça, Materialidade ex pressiva ( visu al) do cin em a de an im ação,
tese de mestrado ( Lisboa: FCSH/Departamento de Comunicação Social – Universidade
Nova, 1989) .
14 gem real”) apenas aqueles elementos que integram uma teoria da
Entre o olhar e o gesto
2
Dirigi esforços no sentido de conseguir informações sobre eventuais publicações em
línguas não européias com alguns autores que, pelo seu trabalho, poderiam deter esse
conhecimento. Mas não obtive nenhum resultado relevante.
3
Pierre Hébert, “Un nouveau départ”, entrevista, em Marcel Jean, Pierre Hébert, L’hom m e
an im é ( Quebec: Les 400 Coups, 1996) , p. 136. [Esta e outras citações foram traduzidas
diretamente da fonte sob encomenda da autora, exceto nos casos em que o nome do
tradutor é explicitamente informado. ( Nota do editor.) ]
Penso ser isso que a imagem animada é em sua singularidade: 15
Introdução
o modo de abrir a engrenagem fílmica para percebê-la e, assim, po-
der fazer alguma coisa com ela.
4
De Pierre Hébert a obra mais notável é, sem dúvida, L’an ge et l’au tom ate, texto que tem
origem numa reflexão sobre La plan te hu m ain e ( 1996) , o seu longa-metragem, mas que
transborda para uma análise mais abrangente sobre sua atividade e sobre o filme animado.
5
Atualmente, os escritos de Len Lye foram disponibilizados também em tradução francesa
pelo Centro Georges Pompidou, sob a organização de Jean-Michel Bouhours e Roger
Horrocks, além de const arem do est udo biográfico que, sobre ele, foi recent ement e
publicado por este último. Cf. Jean-Michel Bouhours & Roger Horrocks ( orgs.) , Len Ly e
( Paris: Centre Georges Pompidou, 2000) .
16 forço que desde sempre fez no sentido de tornar acessíveis e abertas
Entre o olhar e o gesto
6
Cf. transcrição de textos de Norman MacLaren em Alfio Bastiancich, Norm an McLaren :
précu rseu r des n ou velles im ages ( Paris: Dreamland, 1997) .
7
Henri Bergson, “Durée et simultanéité”, em Mélan ges ( Paris: PUF, 1972) , p. 213.
O discurso, no filme animado de autor, faz-se no âmbito das 17
Introdução
condições elementares subjacentes à produção de um filme: o dispo-
sitivo ( em evolução) que a suporta, os modos de codificação que se
vão disponibilizando e aparecendo como próprios num tempo e num
lugar determinados. Condições nas quais o autor aparece, fundamen-
talmente, como explorador e inventor. A postura deste último é a
daquele que examina e integra as margens da substância expressiva
singular que se apresenta a partir do próprio filme enquanto proces-
so. Embora realizado numa perspectiva de comunicação – porque
feito na expectativa do espectador –, o filme emerge como uma pos-
sibilidade ou conjunto de possibilidades significativas: voltado para a
exploração e invenção dos próprios meios de significação. Explicita-
mente, o filme animado de autor apresenta questões sobre a própria
substância expressiva fílmica, no contexto da qual se propõe, por
essa razão, como ocorrência crítica. Vacila, por isso e sempre, entre
uma possibilidade e uma impossibilidade comunicativas: “Eles [os ir-
mãos Quay] nos fazem questionar o sentido que as coisas têm entre
si a cada 1/24 de segundo, o que todo filme faria se olhássemos um
8
pouco mais de perto”.
8
Michael Atkinson, Ghosts in the Machin e: The Dark Heart of Pop Cin em a ( Nova York:
Limelight, 1999) , p. 34.
18 sem filme animado comercial ou, em sentido lato, cinema de massas,
Entre o olhar e o gesto
9
Ibi d ., pp. 34-35.
10
George Griffin, depoimento ( 1978) , ap u d Kit Laybourne, Th e An i m ati on Book , New
Di gi tal Ed i ti on : a Com p lete Gu i d e to An i m ated Fi lm m ak i n g – From Fli p book s to
Sou n d Cartoon s to 3D An im ation ( Nova York: Three Rivers, 1998) , p. xi.
ção das questões relevantes. Freqüentemente, nos vários contextos 19
Introdução
da ciência, a pesquisa tende a seguir linhas tradicionais e dominan-
tes, implicitamente aceites pelos investigadores. Em teoria do cine-
ma, estas têm vindo a seguir a produção que domina – a que concebe
o filme enquanto longa-metragem comercial, fotográfico, de ficção,
narrativo e espetacular –, relegando outras práticas a uma zona mar-
ginal e indistinta. Pelo que o filme animado tem permanecido à mar-
gem, só acompanhado de indiferença e de ignorância. Não me é, por
isso, possível considerar seu estudo no âmbito de um enquadramento
teórico que não o contempla.
11
Cf. Paul Valéry, Discu rso sobre a estética: poesia e pen sam en to abstracto ( Lisboa: Vega,
1995) .
12
Cf. Henri Meschonnic, Critiqu e du ry thm e ( Lagrasse: Verdier, 1982) .
13
Cf. Émile Benveniste, Problèm es de lin gu istiqu e gén érale, vol. I ( Paris: Gallimard, 1966) .
14
Paul Valéry, Discu rso sobre a estética... – , cit., pp. 46-47.
20 “estudo da invenção e da composição, o papel do acaso, o da refle-
Entre o olhar e o gesto
15
Ibi d em .
16
Ver “efeito de conhecimento” em Louis Althusser et al., “Introdução” ( 1965) , em Lire le
capital ( Paris: PUF, 1995) . Não me é possível retirar a presença da tecnologia – e, logo,
da ciência – da produção artística contemporânea. Nela o discurso científico é origem do
próprio discurso poético porquanto enforma a máquina que o produz. Discurso poético
que deverá explorar e quest ionar o modelo cient ífico de onde emerge enquant o se
constitui a si próprio. E, por isso mesmo, questionando quer o modelo de realidade, quer
o modelo de discurso que lhe é implícito. De resto, o fato de que os autores que referi
tenham-se empenhado também na redação de um trabalho de análise, o que os levou a
uma “prática teórica”, parece ir ao encontro das minhas convicções. Por outro lado e ainda,
o mecanismo da produção de conhecimento, de apropriação do real, no caso do filme
animado de autor, parece depender da diferença de ordem que se estabelece entre o
objeto real e o objeto de conhecimento que emerge na colisão entre a sensação produzi-
da no próprio corpo do animador e os modelos de linguagem de que dispõe e faz derivar
ou provoca. Ou que procura no alheio: assim se explicaria a estratégia de trabalho, em
comu n h ão, d e Nor man McLar e n ; o imp r oviso e m t e mp o r e al, e m d iálogo com
instrumentistas, escritores ou bailarinos, de Pierre Hébert; e a experimentação ampla de
Len Lye por várias práticas artísticas.
to. Pelo que a atividade do autor corresponderia a uma atividade 21
Introdução
real, sendo essa a origem única da factualidade do seu discurso.
17
He n r i Me sch on n ic, Ma n i feste p ou r u n p a r ti d u r y th m e, d isp on íve l e m h t t p ://
www.berlol.net/mescho2.htm; acesso em outubro de 2005.
18
Ver Umberto Eco, La stru ttu ra assen te: la ri cerca sem i oti ca e i l m od o stru ttu rale
( 1968) ( Milão: Bompiani, 2002) .
22 do assinalar o trabalho de recorte e de transformação que o autor
Entre o olhar e o gesto
19
Sobre este assunto, ver Pierre Hébert, “Quelques notes incongrues”, em Bu lleti n d e
l’Associ ati on In tern ati on ale d u Fi lm d ’An i m ati on , 16 ( 2) , Asi fa-Can ad a, Montreal,
1988, pp. 12-13.
Acredito que a justificação do faz er em animação advém da 23
Introdução
necessidade de ligar estruturalmente a atu ali d ad e h u m an a do
mundo: apanhar o mundo apanhando o eu nos dispositivos que alte-
ram a relação entre cada homem e seu contexto de vida. Acredito
que isso se faz com o corpo daquele que anima, pela interiorização
das lógicas de representação e de transformação de seu tempo, que,
desde o aparecimento da primeira ferramenta, foram transferidas
para a evolução tecnológica. Acredito que o filme, experimentado,
propõe-se como expressão dessa relação.
20
Referência ao exemplo – a representação pictórica de um par de sapatos num quadro de
Vincent Van Gogh – apontado por Martin Heidegger em A or i gem d a obr a d e a r te
( Lisboa: Edições 70, 1992) .
21
Cf. Vilém Flusser, En saio sobre a fotografia: para u m a filosofia da técn ica ( Lisboa:
Relógio d’Água, 1998) .
24 Na segunda parte, acrescentei o subtítulo “Manipulações” ao
Entre o olhar e o gesto
22
A designação “cinema fotográfico” ou “filme fotográfico” pertence a André Bazin, O qu e é
o cin em a? ( 1958) ( Lisboa: Horizonte, 1992) , p. 24.
Filme animado e cinema
O que é cinema?
1
É possível fazer animação sem que ela apareça numa tela ou, tampouco, tenha sido
registrada em filme ou vídeo graças ao uso de uma câmera ou de computadores. Entre
outras, existe a possibilidade de fazer filmes marcando diretamente a película, assim
como realizar fli p -book s, pequenos livrinhos em que a ação é desagregada em vários
desenhos, um por página, e o movimento é obtido pelo passar rápido e contínuo do
polegar pela margem das folhas. Estes costumam fazer parte dos programas letivos de
introdução ou de formação em imagem animada e é freqüente constarem das estratégias
de divulgação de filmes e museus de cinema. Este tipo de cinema de animação apela
indiscutivelmente para uma noção de cinema definitivamente distinta tanto da tecnologia
como de condições de exibição consideradas “normais”.
28 deliberadamente ou por omissão, e na sua quase totalidade, conside-
Filme animado e cinema
Práticas dominantes
Quando pensamos em “cinema”, consideramos inevitavelmen-
te o edifício no qual podemos assistir a um espetáculo em que se
conta uma história durante cerca de hora e meia, por meio de sons e
imagens obtidos fotograficamente e projetados numa tela plana, com
2
Sobre este assunto, cf. Paul Watson, “Talking like Dinosaurs”, em An im ation UK, n o 3,
Bristol, outono de 2000, pp. 29-31; também disponível em http://asifa.net/SAS/12thCON/
report12.htm.
simulação de movimento, numa sala escura, ocupada por espectado- 29
O que é cinema?
res sentados com os olhos voltados na direção das imagens. Este
espetáculo corresponde àquilo que vulgarmente reconhecemos como
simplesmente “filme”. A opinião pública, generalizada, que identifi-
ca “filme” com o longa-metragem comercial, fotográfico, de ficção,
narrativo e espetacular, é sintomática da hegemonia que as suas prá-
ticas assumem no quadro da produção cinematográfica, em detri-
mento de outras formas fílmicas, na produção das quais há muitíssimo
menos investimento e, por conseguinte, também menor divulgação
e conhecimento.
3
Cf. Ricciotto Canudo, “La naissance d’une sixième art: – essai sur le cinématographe”
( 25-10-1911) , em Les En treti en s Id eali stes, trad. italiana Anna Paola Mossetto – em
Cin em a Nu ovo, n o 221, Florença, jan.-fev. de 1973, pp. 361-363 e 368-371; também em
Carlo Grassi ( org.) , Tem p o e sp az i o n el ci n em a ( Roma: Bulzoni, 1987) , pp. 185-191.
Nesta obra Ricciotto Canudo propõe o cinema enquanto “sétima arte”. Em 1916, Hugo
Münsterberg irá exaltar a capacidade do cinema para reproduzir a experiência mental
por meio da manipulação do espaço e do tempo, vedadas ao teatro. Na mesma obra
expõe a seguinte questão: “A arte da peça fotográfica desenvolveu tantas capacidades
específicas, as quais não têm sequer qualquer parecença com a técnica do palco, que a
questão se põe: não é essa realmente uma nova arte a qual há muito deixou para trás a
mera reprodução do teatro e que tem de ser reconhecida na sua própria dependência
estética?”, em The Film : a Psy chological Stu dy , The Silen t Photoplay in 1916 ( Nova
York: Dover, 1970) , p. 16.
4
30 centenário, pelo que conclui que a função de uma boa parte da crí-
Filme animado e cinema
4
I. C. Jarvie, “Qual é o problema da teoria do cinema?”, em Revista de Com u n icação e
Lin gu agen s – O qu e é o cin em a?, n o 23, Lisboa, dezembro de 1996, pp. 9-20.
5
Christian Metz, Lan gage et cin ém a ( Paris: Albatros, 1977) , p. 8. Na França, a investiga-
ção de Christ ian Met z – desde a publicação de “Le cinéma: langue ou langage”, em
o
Com m u n i cati on s, n 4, Paris, 1964, pp. 52-90 – marca o início efetivo da teoria do
cinema enquanto campo de estudos acadêmicos específico e autônomo.
6
Ibid., p. 10.
indecifráveis para o olho nu do espectador inexperiente, mas sem os 31
O que é cinema?
quais não há “fato fílmico” – devem ser considerados como prévios
no estudo do filme, pois é a partir deles que são determinados e
constituídos todos os elementos e modos de articulação do “discurso
fílmico”. Obviamente, a diferenciação em seu uso produz documen-
7
tos diferenciados. Sabemo-lo a partir da história das artes plásticas,
8
da poesia e das práticas artísticas em geral: as capacidades expressi-
vas e materiais do próprio dispositivo contam para uma dimensão
poética que é constitutiva tanto num plano histórico como conceptual.
De modo diferente, a teoria e a prática fílmicas entenderam a técni-
ca como n eu tra em si mesma, determinando que, a haver ideologia,
isto é, padronização dos modos de reconhecimento e de codificação,
ela deveria ser sempre procurada do lado da mensagem. Percebe-
se, desde logo, o interesse, ele mesmo ideológico, em reduzir os
dispositivos e procedimentos a meros aspectos operativos de caráter
invariante, inabordável, não pertinentes ou sequer discutíveis pelos
estudos fílmicos hegemônicos no âmbito de uma história do cinema.
São, mesmo, ostensivamente afastados de forma sumária por serem
vistos como algo que faz claramente parte do lado “cinematográfi-
9
co”, isto é, do lado do contexto tecnológico, econômico, sociológico
e industrial, necessário à produção de filmes, mas considerado como
não diretamente implicado nas escolhas formais específicas em cada
filme ou gênero de filmes. Evidentemente, daqui se deduz que a
teoria do cinema não encarou, ou não quis encarar, como admissível
a existência de práticas fílmicas – no plural – como necessariamen-
te decorrente da manipulação e manuseamentos diferenciados, lite-
7
Sobretudo a partir de 1910: não apenas a colagem como também as justaposições de
materiais e a inclusão de mecanismos. A pintura abandona o cavalete, e as modalidades
escultóricas abrem-se para incluir a dimensão cinética em obras mecanicamente articula-
das.
8
Na poesia francesa, tanto a obra de Antonin Artaud como a de Henri Michaud, entre outros
e como exemplo, apropriam-se dos interstícios que opõem linguagens e, nelas, os usos
e modos convencionados.
9
Cf., por exemplo, Christian Metz, Lan gage et cin ém a, cit., p. 11.
32 rais, dos mecanismos e dispositivos tecnológicos; não se sentindo,
Filme animado e cinema
10
Cf. o ensaio de Jean-Louis Baudry, “Ideological Effects of the Basic Cinematographic
Apparatus”, trad. Alan Williams, em Fi lm Qu aterly , 28 ( 2) , inverno de 1974-1975; ed.
original de Ci n éth i qu e, n o 78, 1970; houve uma edição revista em Bill Nichols ( org.) ,
Movies an d Methods, vol. II ( Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1985) ,
pp. 531-542; cf., igualmente, do mesmo autor, L’effet cin ém a ( Paris: Albatros, 1976) ; e
“Le d isp osit if: ap p r och e s mé t ap sych ologiqu e s d e l’imp r e ssion d e r é alit é ”, e m
Com m u n ication s, n o 23, Paris, 1975, pp. 56-72.
11
Cf. Jean-Louis Baudry, “Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de
réalité”, cit., pp. 58-59, em nota: “De um modo geral, distinguimos aparelho de base, que
tem a ver com o conjunto da aparelhagem e das operações necessárias à produção, do
d i sp osi ti v o, que tem a ver unicamente com a projeção e no qual o sujeito, a quem se
dirige a projeção, está incluído. Assim, o aparelho de base comporta tanto a película, a
câmera, a revelação, a montagem tomada no seu aspecto técnico, etc., quanto o disposi-
tivo de projeção. O aparelho de base é mais que a câmera à qual quiseram […] que o
limit asse”.
12
F e r n an d e Sain t -Mar t in , S tr u ctu r es d e l’esp a ce p i ctu r a l ( Qu e be c: Bibliot h è qu e
Québécoise, 1989) , p. 10.
poderá, mais tarde, afirmar a semióloga Fernande Saint-Martin. Foi, 33
O que é cinema?
de resto, por isso que se disse que a fotografia conduziu à libertação
da pintura: porque, assumindo as funções de representação do real
visível, a técnica fotográfica veio revelar o gesto de pintar como sen-
do, naquela, a raiz de sua singularidade. Assim, ao contrário do que
post eriorment e virá a acont ecer na semiologia da pint ura e na
13
semiologia das linguagens gráficas, a semiologia fílmica, enquanto
modelo dominante da teoria do cinema na época em que esta se tor-
nou instituição, irá prosseguir sem reclamar de seus investigadores –
ou propor aos realizadores – a integração prática, física, direta e ex-
periente de seus mecanismos, quer no nível de sua instrumentalidade
e funções específicas, quer enquanto dispositivo conceptual de caráter
ideológico. A “caixa-preta” que subtrai, ao conhecimento imediato,
o funcionament o das engrenagens que permit em o regist ro e a
projeção de imagens e que tornam possível a ilusão de movimento
aparente – esta sim, especificamente fílmica – nunca será aberta,
exibida e discutida no seio dos estudos fílmicos e cinematográficos
dominantes. E, contudo, já no início dos anos 1920, Malevitch augu-
rava que o cinema ultrapassasse o psicologismo do retrato pictórico
e se distanciasse de conteúdos ideológicos. À imagem das transfor-
mações então recentes ocorridas na pintura, o cinema deveria poder
refletir sobre seus próprios elementos materiais de expressão, en-
quanto tais. Afinal de contas, os cubistas tinham conseguido demons-
trar que a pintura podia existir sem imagem, sem cotidiano e sem a
14
face das idéias, argumenta.
13
Cf. Manfredo Massironi, Ver pelo desen ho: aspectos técn icos, cogn itivos, com u n icati-
vos ( ed. italiana 1982) ( Lisboa: Edições 70, 1983) .
14
Cf. K. S. Malevitch, “Et ils façonnent des faces jubilatoires sur les écrans” ( 1925) , em Le
m i roi r su p rém ati ste: tou s les arti cles p aru s en ru sse d e 1913 a 1928, av ec d es
docu m en ts su r le su prém atism e, vol. II ( Lausanne: L’Âge de l’Homme, 1977) , p. 106.
34 sitivos e a partir dos quais hoje toma forma o fato fílmico, ponderas-
Filme animado e cinema
15
Cf. abade Charles Batteaux, Les beau x -arts rédu its à u n m êm e prin cipe, s/l., s/ed., 1746.
McLaren, John e James Whitney, entre outros – encontra-se no cen- 35
O que é cinema?
tro do processo criativo? Diz Lev Manovich:
Vista sob esse contexto [isto é, do ponto de vista da história da imagem
animada em sentido lato], a construção manual de imagens no cinema
digital representa um retorno às práticas pré-cinemáticas do século
XIX, quando as imagens eram pintadas e animadas à mão. Na virada do
século XX, o cinema teve de delegar essas técnicas manuais para a
animação e definir a si mesmo como um meio de registro. Conforme o
cinema adentra a era digital, essas técnicas estão se tornando nova-
mente um lugar comum no processo fílmico. Conseqüentemente, o
cinema não pode mais ser claramente distinguido da animação. Já não
é mais uma tecnologia indexical das mídias, mas, em vez disso, um
16
subgênero da pintura.
16
Lev Manovich, “What Is Digital Cinema?”, em The Lan gu age of New Media ( Cambridge/
Londres: MIT Press, 2000) , p. 295; disponível, ainda, em http://www.manovich.net/text/
digital-cinema.html; acesso em outubro de 2005.
17
Larry Cuba, depoiment o ( 1976) , em Robert Russet t & Cecile St arr, Ex p er i m en ta l
An i m ati on , Ori gi n s of a New Art ( Nova York: Da Capo Press, 1988) , p. 28. Um dos
primeiros a ter dispensado a mão na elaboração das imagens necessárias ao filme animado
e a substituí-la pelo cálculo da máquina digital. Os seus trabalhos mais conhecidos são 3/
8 ( 1978) e Tw o Space ( 1979) .
36 É que, ainda que fictício, o espaço n-dimensional que se abre
Filme animado e cinema
As “novas” mídias
Em 1954, Norman McLaren declarava:
[…] atrás de nós, temos somente sessenta anos de cinema, enquanto
adiante temos centenas, estamos então apenas na infância dessa arte.
As descobertas fundamentais já podem ter sido feitas, mas suas aplica-
ções ainda estão longe de ter sido todas exploradas, e muitas descober-
tas de importância menor ainda devem ser efetuadas. Existe uma
variedade tão incrível de temas até agora intactos e de métodos de
tratamento de filmes, que hoje é perfeitamente possível escolher te-
mas e buscar novos rumos na experimentação sem afastar do filme o
interesse do público e, o que também é muito importante, sem fazer ao
mesmo tempo um compromisso criativo ou artístico. Eu gostaria justa-
mente de recomendar essa problemática como um tema de discussão
19
válido.
18
O filme que Thomas Banchoff e Charles Strauss realizaram em 1979, na Universidade
Brown, com aspect os do moviment o de um hipercubo dent ro e fora de um espaço
tridimensional, permite visualizar diversas configurações mais ou menos complexas de
vértices e de arestas de outro modo apenas acessíveis por meio de métodos algébricos.
A diferença é que, ao contrário destes, a manipulação em tempo real das coordenadas
dimensionais com um joy stick, permite intuir, “sentir” o objeto. Cf. P. J. Davis & R. Hersh,
L’u n ivers m athém atiqu e ( Paris: Gauthier Villars, 1982) , p. 393.
19
Norman McLaren, “Homage à George Méliès”, intervenção no Second International Fes-
tival of Tomorow, Zurique; transcrito como documento do National Film Board/Office
National du Film ( NFB/ONF) , Ottawa, outubro de 1954, 3 pp.; transcrito depois em Alfio
Bastiancich, Norm an McLaren : p récu rseu r d es n ou v elles im ages ( Paris: Dreamland,
1997) , pp. 178-181.
Ora, McLaren é conhecido precisamente por ter agido de uma 37
O que é cinema?
forma sistemática no nível do próprio funcionamento do dispositivo
cinematográfico e por ter ostensivamente neglicenciado os modos
sen satos de fazer filmes. McLaren afirma aquilo que, de fato, afirma
e deve ser entendido no contexto de suas próprias práticas, e não no
da prática dominante.
20
André Martin, “2. Secrets de la fabrication”, em Cahiers du Cin ém a, n o 81, Paris, março
de 1958; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
vol. 1 ( Paris: Dreamland, 2000) , p. 233.
21
Gilles Deleuze, Différen ce et répétition ( Paris: PUF, 1968) , p. 177.
22
André Martin, Catalogu e d e l’Ex p osi ti on , Festival d’Annecy ( Annecy: Musée de l’Île;
1965) ; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
cit., p. 255.
Na demanda de um cinema ostensivamente autônomo, Norman 39
O que é cinema?
McLaren irá levar seu esforço até extremos insuspeitados. Antes de
mais, irá promover a proximidade entre o autor e a obra, subtraindo
o controle da imagem, do som e da duração fílmica aos automatismos
específicos da máquina; libertando o filme dos formalismos e regras
que sancionam o que se considera ser a legitimidade das práticas
profissionais; desembaraçando-o do encadeamento dos procedimentos
que a tecnologia impõe à produção e reprodução cinematográficas.
O processo de codificação fílmica será, por sua vez, exaustivamente
sondado e reduzido a seus elementos mínimos: no nível da manipula-
ção dos modos de codificação gráfica e sonora; no nível da represen-
tação, composição e percepção de movimento; no nível da relação
entre continuidade e descontinuidade fílmicas. Irá, igualmente, libertá-
la da imposição da narrativa e da referencialidade, fazendo-as de-
pender apenas da p r esen ça do espect ador, enquant o element o
necessário em que o filme se faz.
O que é cinema?
em contato com o tema, o ponto de crescimento das idéias visuais.
Comunicar de novo
Nunca se falou tanto de comunicação como numa sociedade
centrífuga, que deixou de saber comunicar consigo própria, cuja coe-
são é contestada, cujos valores já não são unificados pelos símbolos
tradicionais, banalizados, e que, por isso, se desagregam. É no vazio
deixado pela falência das figuras simbólicas que nasce a comunica-
ção enquanto empresa desesperada que procura aproximar análises
especializadas e meios compartimentados até o limite. Emerge como
uma nova teologia, fruto da confusão de valores e de fragmentações
impostas pela miragem triunfalista de progresso, propondo-se a res-
tabelecer a sociedade por um acréscimo de técnicas denominadas
tecnologias da comunicação. Ora, a comunicação que tem a máquina
como meio e como modelo afirma inequivocamente a distinção emis-
sor/receptor e insere um canal entre eles. São, então, conferidos
poderes consideráveis, exclusivos, às mídias, e o mundo, assim re-
presentado, torna-se virtual e exterior à humanidade. Os objetos téc-
nicos – desumanizados – tornam-se, finalmente, nosso meio ambiente
24
“natural”, quando aceitamos a visão do mundo que eles induzem.
23
Norman McLaren, “Animated Films”, em Docu m en tary Fi lm New s, 7 ( 65) , maio de
1948, pp. 52-53.
24
Sobre este assunto, cf. Lucien Sfez, La com m u n ication ( 1991) ( Paris: PUF, 1992) .
25
42 do, lentamente, o atraso da zoologia. O apetrecho teria aparecido
Filme animado e cinema
25
Sobre este assunto, cf. capítulo III em André Leroi-Gourhan, Le geste et la parole: techn iqu e
et lan gage ( Paris: Albin Michel, 1964) , trad. portuguesa em O gesto e a p alav ra: 2
Mem ória e ritm os ( Lisboa: Edições 70, 1983) .
26
Pierre Hébert, “Un mot de Pierre Hébert, producteur responsable du studio d’animation
du Programme Français de l’Office National du Film du Canada”, s/d., disponível em
http://www.onf.ca; acesso durante o período em que geriu o estúdio do Programa Francês
do National Film Board.
fossem se tornando o modo para uma certa ligação produtiva, como 43
O que é cinema?
se a obra não tivesse sentido senão como forma de integração física
e afetiva da experiência humana, e esta não pudesse senão ser plural
e diferenciada: “Era uma experiência do tipo partilhado”, afirmava
Grant Munro, “você não trabalhava para o Norman, você sempre tra-
27
balhava com ele”.
27
Grant Munro, depoimento em Cecile Starr, “Conversations with Grant Munro and Ishu
Patel: The Influence of Norman McLaren and the National Film Board of Canada”, em
An im atiom Jou rn al, 3 ( 2) , Santa Clarita, primavera de 1995, pp. 44-61.
44 especificidade e limites dos meios técnicos e expressivos; a signifi-
Filme animado e cinema
O que é cinema?
elaboração do conceito de “valor cinematográfico”. Este seria
[…] alguma coisa que tenha a ver com a construção de uma duração e
de um espaço, que transcenda as categorias de imagens de tomadas
reais e de imagens animadas, que provavelmente também transcenda
as questões de suporte técnico. Creio, na verdade, que é preciso parar
de presumir um elo necessário entre o termo “cinema” e o suporte
filme. Na minha opinião, a idéia do cinema ultrapassa o quadro técnico
que a governou em seu nascimento e no primeiro século de seu desen-
28
volvimento. E pode sobreviver a ele.
Insuficiências e obstáculos
Em nossos dias e de acordo com os postulados da teoria domi-
nante, obviamente que já não é possível juntar as experiências dos
irmãos Lumière e as mais recentes produções audiovisuais no mes-
mo modelo de cinema. A ruptura é demasiado evidente. E, contudo,
no plano técnico, a cisão terá sido maior quando as várias máquinas
que compõem o dispositivo fílmico foram subtraídas à manipulação e
sujeitas a protocolos e regras de estandardização que as blindaram,
n aqu e le qu e foi o p r ime ir o e sfor ço d e globalização t é cn ica e
econômica que o mundo conheceu. Disso mesmo já Hugo Münsterberg
tinha consciência quando, em 1916, afirmava: “O fato de cada produ-
tor tentar distribuir seus filmes para todos os países força uma pa-
29
dronização extrema em todo o mundo das imagens em movimento”.
28
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate ( Quebec: Les 400 Coups, 1999) , p. 50.
29
Hugo Münsterberg, The Film : a Psy chological Stu dy ..., cit., p. 8.
46 pode acentuar o humor disparatado da cena de modo surpreendente.
Filme animado e cinema
O que é cinema?
cinema – a “oficial”, instalada em modelos estáveis, mas tornados
ost ensivament e escassos diant e do novo est at ut o mat erial de
codificação do fato fílmico dominante – se confrontasse com as pró-
prias insuficiências, entrando numa fase crítica de investigação na
demanda de modelos conceptuais mais abrangentes e eficazes. Mas,
aqui mesmo, o profundo e fundamental desconhecimento que, de
um modo geral, grassa nos departamentos universitários sobre a his-
tória da evolução técnica e da utilização irregu lar dos dispositivos,
assim como no âmbito de uma teoria da substância, idéias, modos e
ações subjacentes a estas outras práticas fílmicas, constitui obstácu-
lo. É sintomático e crucial o fato de, na origem de praticamente to-
dos os textos universitários sobre cinema, não ser possível encontrar
uma experiência, simultaneamente efetiva e in qu iridora, de mani-
pulação das engrenagens que compõem o aparelho fílmico, pondo
nesse gesto o fulcro de toda a prática. O clamor generalizado sobre
as “novas mídias” que, entretanto, estalou, na ausência de uma teoria
do cinema mais próxima de suas práticas, esquece ( e obscureceu) o
fato de que, no contexto da animação experimental, há algumas dé-
cadas que se experimenta com computadores; e que esta prática te-
ria sucedido a outras de manipulação de vários e distintos dispositivos,
na tentativa de explorar os limites do espectáculo cinematográfico.
As experiências de McLaren, no âmbito destas últimas, e as de John
e James Whitney com computadores analógicos, são apenas algumas
entre as muitas que se conhecem.
O que é cinema?
trações conceptuais, críticas, de toda a ou tra história do cinema, a
das experiências irregulares em que o filme animado se inscreve,
que conduzem direta e necessariamente a uma concepção diferente
de “fato fílmico”. Não apenas o tranqüilizante e, no próprio contex-
to, igualmente hegemônico cinema de Walt Disney, mas todos os Len
Lye e Norman McLaren; todas as experiências fílmicas na margem
da sinestesia, da matemática e da programação, como os filmes dos
Whitney; ou extremas como Wochen en de ( 1930) , de Walter Ruttman,
Dark Movie ( 1973) , de Jon Rubin, e Blu e ( 1993) , de Derek Jarman;
ou o Living Cinema, de Pierre Hébert; ou, simplesmente, a postura
elementar de quem constrói um filme a partir de seu próprio corpo:
do gesto da mão sobre a luz, o tempo e a máquina, envolvendo nele
a história da evolução humana.
31
Sobr e e st e assu n t o, cf. Br ian Win st on , Te ch n ologi es of S e e i n g: Ph ot ogr a p h y ,
Ci n em atograp h y an d Telev i si on ( Londres: British Film Institute, 1996) . No ano de
1996, igualmente, teve lugar no Centro Cultural de Belém ( em Lisboa) , uma importante
exposição de vários desses mecanismos, provenientes das coleções do Museu Nacional
de Turim, Itália, sob o título “A magia da imagem: a arqueologia do cinema através das
colecções do Museu Nacional do Cinema de Turim” e da qual se publicou um catálogo com
o mesmo título.
50 como – juntamente com a fotografia – alterou a nossa relação co-
Filme animado e cinema
32
E que também tem vindo, recentemente, a ser alterada com a inclusão de documentários
sobre os modos de produção utilizados – os famosos m akin g-of – na comercialização de
cópias em DVD dos filmes, assim como pela vulgarização de ferramentas e aplicações
digit ais.
submete a definição e elaboração do fato fílmico à mesma tecnologia 51
O que é cinema?
de suporte, a qual, tal como acontecia com as tecnologias tradicio-
nais na pintura, ainda justifica que seja tomado sobretudo na função
de representação da realidade visível assumida como natural.
33
Alain Badiou, Petit m an u el d’in esthétiqu e ( Paris: Seuil, 1998) ; cf. também Meditações
filosóficas, vol. II ( Lisboa: Instituto Piaget, 1999) , p. 122.
A representação fílmica do
espaço e do tempo reais:
dispositivo conceptual
34
Paulo Filipe Monteiro, “Fenomenologias do cinema”, em Rev i sta d e Com u n i cação e
o
Lin gu agen s – O qu e é o cin em a?, n 23, Lisboa, dezembro de 1996, p. 66.
35
Ibid., p. 67.
54 gráfica. Como conseqüência, este modelo exclui irrevogavelmente
Filme animado e cinema
36
Jean-Luc Godard, Le petit soldat, realizado em 1960 e estreado em 1963.
56 instrumentalidade de suas ferramentas ao ponto de saber fazê-las,
Filme animado e cinema
37
Arnold Hauser, Teorias da arte ( 1958) ( Lisboa: Presença, 1978) , p. 402.
resultado das operações de recorte operadas pelo enquadramento e 57
38
Os ensaios de Didi-Huberman sobre a histeria mostram com evidência, ainda que em
circunstâncias bem delimitadas, a importância da diferença entre o papel – aquele papel,
e não outro qualquer – enquanto elemento único, real, da imagem e o de sua utilização
enquanto suporte gráfico. Cf. Georges Didi-Huberman, In ven tion de l’hy stèrie: Charcot
et l’icon ographie photographiqu e de La Salpetrière ( Paris: Macula, 1982) .
esta e a projeção cinematográfica, existem certas operações, todo 59
39
A exibição do grão da película é, atualmente, um dos artifícios habituais usados com o fim
de inspirar autenticidade. Sobre este assunto, cf. Michael Renov, Theoriz in g Docu m en tary
( Nova York/Londres: Routledge, 1993) , p. 8: “No que respeita à imagem em movimento
– usada para entreter, enquanto prova ou para venda –, indexicalidade e a transformação
em mercadoria permanecem historicamente ligadas. Em qualquer caso, o valor da ima-
gem depende de sua habilidade para inspirar crença em sua ‘real’ proveniência […] Ele-
mentos estilísticos trazidos do passado do documentário – quanto mais riscado e granuloso
melhor – são hoje adicionados rotineiramente aos comerciais televisivos para vender
sapatos, motos ou serviços telefônicos, enquanto antídoto para sua fraudulência implícita.
Se a produção independente de documentários encontra-se excluída das ondas de trans-
missão aérea da nação, seu aspecto low -tech ( um subproduto histórico do trabalho) foi
maciçamente apropriado por Madison Avenue – outro ingrediente especial acrescentado
num mercado saturado”.
60 pela “marca” que esta deixa na película; na qual a presen ça dos auto-
Filme animado e cinema
40
A designação técnica para esta condição do espectador é, em inglês, su sp en si on of
disbelief. Foi criada pelo escritor britânico Samuel Taylor Coleridge na sua Biographia
literaria, de 1817, designando a aceitação do leitor/espectador em suspender sua facul-
dade crítica de modo a ignorar inconsistências óbvias e, assim, poder deixar-se envolver
pela obra de ficção.
41
Não é por acaso que o protagonista de Blow -ou t, de Brian de Palma, usa local e disposi-
tivos de animação para montar os “fotogramas” recortados da revista; a recomposição
visualizada no filme não corresponde, no entanto, ao resultado do procedimento visualizado,
já que a falta de fotogramas entre as imagens disponíveis, esparsas, não permitiria nunca
a sincronização com a banda sonora. O resultado provável seria uma seqüência demasiado
rápida, assíncrona e saltitante.
mente, numa relação expressiva diferente, alterada, entre o espaço 61
Filme
Só pode fazer sentido falar de filme no contexto definido por
todas as práticas fílmicas e, também, por aquelas outras que exibem
qualquer coisa que poderia ser definida como “valor cinematográfi-
62 co”, que constatamos estar presente em linguagens, objetos e acon-
Filme animado e cinema
42
A. L. Rees, A History of Ex perim en tal Film an d Video ( 1999) ( Londres: British Film
Institute, 2000) , p. 5.
algumas dessas virtualidades por interposta ação dos realizadores. 63
43
Este tipo de preocupações técnicas de correção da diferença formal entre a impressão
visual direta ( do mundo físico) e a mediada por uma imagem, necessária ao registro
simulado do real – anacrônicas no domínio das artes plásticas contemporâneas porque
assumidas num contexto poético – manter-se-á atual e pertinente no contexto da produ-
ção cinematográfica dominante. Robert Bresson aconselhava: “Ser escrupuloso. Rejeitar
tudo aquilo que do real n ão se torn a verdadeiro ( A pavorosa realidade do falso) ”. Cf.
Robert Bresson, Notes su r le cin ém atographe ( 1975) ( Paris: Gallimard, 1988) , p. 139.
Durante a mesma época a lanterna mágica é aperfeiçoada pe- 65
44
Cf. Ingrid D. Rowland, “The Ecstatic Journey: Athanasius Kircher in Baroque Rome”,
catálogo de exposição ( Chicago: University of Chicago Library, 2000) .
45
Cf. Brian Winston, Techn ologies of Seein g..., cit., p. 34.
46
Cf. Alain Lacasse, “La lanterne magique”, em Protée: Théories et Pratiqu es Sém iologiqu es,
19 ( 3) , outono de 1991, pp. 30-34.
66 mentos que explicam a visão das imagens, e que se vão organizando
Filme animado e cinema
47
Cf. Biagio Pelacani, Qu aestion es perspectivae ( 1390) , apu d Robert Klein, La form e et
l’in telligible ( Paris: Gallimard, 1970) , pp. 238-239. Cf., igualmente, Pedro Miguel Frade,
Figu ras do espan to ( Porto: Asa 1992) , p. 210.
48
Cf. Hubert Damish, L’origin e de la perspective ( 1987) ( Paris: Flammarion, 1993) .
que observa e aquilo que, a uma dada distância, é por ele observado 67
49
Cf. Jurgis Baltrušaitis, Le m iroir ( Paris: Elmayan/Le Seuil, 1978) .
68 A anamorfose é um dispositivo de desenho que usa as regras
Filme animado e cinema
50
A. Dürer, apu d Erwin Panofsky, La perspective com m e form e sy m boliqu e ( Paris: Éditions
de Minuit, 1975) , p. 160.
paço cavo e aberto como uma janela perante aquele que observa. 69
51
Hugo Münsterberg, The Film : a Psy chological Stu dy ..., cit., pp. 21-22.
70 vista ocupado por aquele que observa, e, portanto, que o sentido se
Filme animado e cinema
Esta funcionaria como uma abertura para aquele que vê. Para
aquele que filma presumiria clarividência: uma visão una, coerente e
homogênea do mundo. Sem contradição.
52
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., p. 65.
53
André Bazin, O qu e é o cin em a? ( 1958) ( Lisboa: Horizonte, 1992) , p. 172.
71
Uma janela cega
54
Colaborador em Off-on (1968): “[…] um filme avan t-garde de referência, o primeiro a fundir
completamente vídeo com filme”, em brochura que acompanha a edição DVD intitulada
Treasu res from Am erican Film Archives (50 preserved film s), com notas de Scott Simmon
e Martin Marks (São Francisco: National Film Preservation Foundation, 2000), p. 30.
55
O título do filme – que não consta na película – é, de fato, Dark Movie, segundo informa-
ção prestada pelo realizador à autora em e-mail de 16 de janeiro de 2002.
56
De fato, 12 minutos, segundo o mesmo e-mail do realizador.
72 Eu estava espantado com o que via. […] ao forçar a revelação fotográ-
Filme animado e cinema
57
Suny – State University of New York; mensagem enviada por Tom ( Ditto) DeWitt para o
fórum de discussão do IOTAcenter ( iotacenter@yahoogroups.com) , em 6-1-2002.
58
Texto de Jon Rubin enviado por e-mail à autora em 16-1-2002.
tirar, imediatamente, algum partido da experiência. De outro modo, 73
59
Ibi d em .
74 projetada, mas também porque essas são as regras explícitas, estipu-
Filme animado e cinema
60
Rudolf Arnheim, Film as Art ( 1958) ( Londres: Faber & Faber, 1983) , p. 150.
que nos encontramos, quando nos constrange a levantarmo-nos para 75
61
O conceito de infinito necessário à representação mongeana só foi possível depois que
Pascal e Leibniz tornaram a noção de infinito conceptualmente compreensível e manipulável
matematicamente.
62
Do ponto de vista histórico-econômico, a instituição da geometria descritiva, como méto-
do operativo, acontece na altura em que a acumulação capitalista leva à concentração da
produção em face da dispersão ( de acordo com o valor de uso de cada um dos objetos
produzidos) da oficina artesanal e transforma, definitivamente, o mestre artesão em
operário. E se no início – na época pós-renascentista – se poderia tratar de uma aristocra-
cia operária consciente do próprio profissionalismo, a distância esta iria tornar-se em
mão-de-obra indiferenciada, mercadoria sujeita ao puro valor de troca e ao “taylorismo” da
linha de produção. Eis então que o “ser aqui e agora” do Príncipe – visto como propósito
ideal no ponto de fuga da construção perspéctica – transforma-se numa “presença indefi-
nida” que se impõe com o paralelismo de suas regras, apresentadas como princípios
morais ( desde Os livros da fam ília, de Leon Battista Alberti) e por isso, enquanto tais,
provenientes do infinito e tendentes ao infinito, em analogia com os conceitos de “Liber-
dade, Igualdade, Fraternidade” propostos por uma burguesia ascendente e ciente de seu
poder político e econômico.
o da perspectiva renascentista e o da geometria descritiva nascido 77
63
presa. Logo, a detecção de movimento, como a determinação ime-
diata do que se tinha movido, seria crucial no processo de sobrevi-
vê n cia e ficar ia, p ar a se mp r e , in t imame n t e con e ct ad a com a
capacidade de reagirmos pela deslocação imediata de nosso próprio
corpo. Antes mesmo de podermos articular um pensamento, de ter-
mos consciência do sucedido.
63
Cf. V. S. Ramachandran & S. M. Anstis, “The Perception of Apparent Motion”, em Scien tific
o
Am eri can , n 254, pp. 102-109; disponível t ambém em ht t p://psy.ucsd.edu/chip/pdf/
Percpt_Apprnt_Mot_Sci_Am.pdf.
64
Cf. Marina Estela Graça, Materialidade ex pressiva ( visu al) do cin em a de an im ação,
tese de mestrado ( Lisboa: FCSH/Departamento de Comunicação Social – Universidade
Nova, 1989) .
como as que, numa perspectiva histórica, actualmente, qualquer cida- 81
65
Walter Benjamin, Das Ku n stw erk im Zeitalter sein er techn ischen Reprodu z ierbarkeit
( 1936) ( Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1939) ; edição portuguesa: “Epílogo”, em Sobre
arte, técn ica, lin gu agem e política ( Lisboa: Relógio d’Água, 1992) , p. 107.
66
A essas “partes do objeto”, e de acordo com Gibson, chamaremos in varian tes e serão
tratadas na segunda parte desta obra. Cf. J. J. Gibson, The Ecological Approach to Visu al
Percep ti on ( 1979) ( New Jersey: Laurence Erlbaum, 1986) .
82 nós produz uma melodia, em sua simplicidade, não pode ter muito a
Filme animado e cinema
67
Cf. D. Katz, La psicologia della form a ( 1948) ( Turim: Boringhieri, 1979) , p. 601.
meira vez, em 1916, pelo psicólogo Hugo Münsterberg. Por muito 83
68
Hugo Münsterberg, The Film : A Psy chological Stu dy ..., cit., p. 29.
84
Um espectador específico
Filme animado e cinema
69
Jack C. Ellis, John Grierson : Life, Con tribu tion s, In flu en ce ( Carbondale/Edwardsville:
Southern Illinois University Press, 2000) , p. viii.
86 buição regular. Estes são sempre, e pelas razões expostas, o resulta-
Filme animado e cinema
70
Norman McLaren, Blin kity Blan k, Techn ical Notes on the Visu als, nota distribuída no
lançamento do filme e fotocopiada para uso interno do National Film Board ( NFB) com o
n o 27, Ottawa, 25-2-1955. [Grifo no texto original.]
71
Cf. Nor man McLar e n , “L’an imat ion st é r é ogr ap h iqu e : syn t h è se d e la p r ofon d e u r
o
stéréographique à partir du dessin à deux dimensions”, em Cahiers du Cin ém a, n 14,
Paris, jul.-ago. de 1952, pp. 25-33. Extrato de um estudo publicado em The Jou rn al of
Society of Motion Pictu re En gin eers, dezembro de 1951.
72
Cf. André Bazin, O qu e é o cin em a?, cit., p. 174.
88 Consideremos o conflito entre a bidimensionalidade explícita
Filme animado e cinema
73
Arou n d Is Arou n d e Now Is the Tim e são filmes estereoscópicos realizados por Norman
McLaren para o Festival da Grã-Bretanha por encomenda da organização do festival, tendo
sido projetados no dia 4 de maio de 1951, em Londres. Sobre estes filmes, McLaren diz
o seguinte: “A tela para a qual os filmes em questão estavam previstos tinha 5 metros de
elementos geométricos obtidos pelo registro de imagens produzidas 89
lado. Era a tela do Telecinema de Londres, onde dois projetores de 35 mm, sincronizados
em árvore, tinham sido montados de tal modo que seus eixos ópticos convergiam sobre
a superfície da tela”; cf. Norman McLaren, “L’animation stéréographique...”, cit. Dada a
dificuldade em reunir as condições técnicas requeridas, e segundo o chefe projecionista
responsável da Cinémathèque Québécoise, em que me foi dada a oportunidade de assistir
à sua projeção em 9 de março de 2000, os filmes não eram projetados havia cerca de 25
anos. Os filmes foram exibidos na Sala Claude Jutra, desta instituição, usando-se para isto
dois projetores sincronizados e equipados com filtros polarizantes. A tela tinha sido
coberta com uma superfície altamente refletora, metalizada, de forma que fosse evitada a
dispersão da luz polarizada, e os filmes foram vistos com óculos polarizantes, o que
garantiu a cada olho perceber apenas a imagem do projetor correspondente. A música
sintética tinha sido, igualmente, elaborada por McLaren para ser reproduzida em modo
est ereofônico.
90 rede da caverna e acabemos indicando os modelos gráficos que re-
Filme animado e cinema
74
Sobre os conceitos de plano longitudinal e frontal, cf. J. J. Gibson, The Perception of the
Vi su al World ( Boston: Houghton Mifflin, 1950) .
75
No filme Pas de deu x , McLaren usou a seguinte técnica: numa primeira fase, os movimen-
tos de dois bailarinos, de branco contra um fundo negro, foram registrados em película de
alto-contraste, a uma velocidade de 48 fotogramas/segundo, para dar um leve efeito de
slow m otion . A multiplicação da imagem foi realizada mais tarde, em laboratório, com um
editor óptico de cópias positivas e inter-negativos. Do negativo foi feita uma cópia posi-
só a imagem fotográfica é apresentada em plano frontal e transferida 91
tiva, que, por sua vez, foi projetada por contato numa cópia negativa, tantas vezes quantas
as necessárias: cada fotograma foi projetado primeiro em sua posição correta, sendo, nas
vezes sucessivas, atrasado um certo número de imagens. Assim, quando os dançarinos
alcançam uma posição de repouso, as exposições “fora do lugar” viriam reencontrar-se,
em sucessão, umas sobre as outras; mas, logo que os actores iniciassem um movimento,
cada uma das imagens “soltar-se-ia” novamente do conjunto, com alguns fotogramas de
atraso relativamente aos anteriores, criando um efeito de desmultiplicação fantasmática.
Segundo McLaren, neste filme, foi de 11 o número de exposições efetuadas para obten-
ção do negativo: o que, na tela, irá corresponder a onze “fantasmas” sobrepostos. O lapso
entre as imagens selecionadas podia variar. Um intervalo de 2 fotogramas ( na sucessão
inicial) tornava difícil a distinção entre os instantes tomados; de 20 fotogramas não
permitiria a associação das duas imagens como fases sucessivas do m esm o movimento.
Finalmente, foi escolhido um intervalo de 5 imagens, que, embora sobrepostas, eram
suficientemente distintas para serem identificadas separadamente. Dois métodos foram
usados para fundir a cadeia de imagens num único fotograma. Um dos quais, já menciona-
do, seria o de aproveitar uma pausa no movimento. No segundo, numa fase oportuna da
ação, proceder-se-ia à paragem óptica de um fotograma da seqüência original, suficiente-
mente longa para permitir a “chegada” de todas as exposições fantasmáticas, de modo
que, como no primeiro método, fossem fundidas numa só imagem, a partir do que seria
possível deixar prosseguir a ação sob a sua aparência normal. Tal como nos registros
cronofotográficos de Marey, neste tipo de técnica, é necessário ter cenários absoluta-
ment e negros e uma iluminação que possibilit e o desenho preciso dos cont ornos. A
iluminação frontal não permitiria a distinção entre as fases, dificultando a leitura, além de
tornar a imagem demasiado pesada relativamente à leveza dos movimentos de balé. Cf.
Norman McLaren, “Notes of the Multiple Image Technique of Pas d e d eu x ”, fotocópia
para circulação interna do NFB/ONF, Ottawa, janeiro de 1968.
92 ativa e prioritariamente responsável pelo mesmo. Daqui decorre um
Filme animado e cinema
76
Cf. Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., pp. 64-65.
77
André Martin, Catalogu e de l’ex position , cit., p. 260.
78
limites pelo lado de fora, “sempre à procura do vazio a completar”, 93
78
Pierre Hébert, L’an ge et l’au tom ate, cit., p. 66.
79
Ibid., p. 68.
A filosofia que sustém
o ato de animar
80
Leslie Bishko, “Expressive Technology: The Tool as Metaphor of Aesthetic Sensibility”,
em An im ation Jou rn al, s/n o, Santa Clarita, outono de 1994, pp. 74-91.
96 mas pela sua integração fisiológica. O filme animado é o processo
Filme animado e cinema
81
Ibi d em .
82
Pierre Hébert, “Higly Personal Reflections on the State of Animation/Considérations très
personnelles sur l’état du cinéma d’animation”, em Bu lletin de l’Association In tern ation ale
du Film d’An im ation , 14 ( 1) , Asifa-Canada, Montreal, 2001, pp. 9-13. A tese de Simondon
confirma as afirmações deste cineasta; cf. Gilbert Simondon, Du m ode d’ex isten ce des
objets tech n i qu es ( 1958/1969) ( Paris: Aubier, 1989) .
98
Mestria
Filme animado e cinema
E ainda:
[…] não ter de pensar com a mão equivale a não possuir uma parte do
pensamento normal e filogeneticamente humano. A partir deste mo-
mento, existe, portanto, à escala dos indivíduos, se não mesmo da
espécie, um problema de regressão da mão. […] o desequilíbrio ma-
nual já rompeu parcialmente o laço existente entre a linguagem e a
imagem estética da realidade, mostrando que não é por pura coinci-
dência que a arte não figurativa coincide com uma técnica “des-
85
manualizada”.
83
John Hart, prefácio, em Gilbert Simondon, Du m ode d’ex isten ce des objets techn iqu es,
cit., pp. VIII-IX.
84
André Leroi-Gourhan, Le geste et la p arole..., cit., pp. 54-55. Cf. citação no contexto
estabelecido por Pierre Hébert, “Égarements volontaires”, em Aline Gélinas ( org.) , Les
ven dredis du corps: le corps en scèn e, vision plu rielle ( Montreal: Cahiers du Théâtre
JEU/Festival International de Nouvelle Danse, 1993) , pp. 121-138.
85
Ibi d em .
100 Afirmações que, no contexto do objeto que proponho, suge-
Filme animado e cinema
E mais adiante:
Ao longo dos tempos, a instalação de um organismo social no qual o
indivíduo desempenha progressivamente o papel de célula especia-
lizada leva a que se torne cada vez mais clara a insuficiência do homem
90
de carne e osso, autêntico fóssil vivo, imóvel na escala histórica.
86
André Leroi-Gourhan, Le geste et la parole..., cit., p. 45.
87
Ibi d em .
88
Ibi d em .
89
Ibi d em .
90
Ibid., p. 46.
O objeto técnico, ao ser reapropriado fisiologicamente, permi- 101
92
ca e de experiência”.
92
Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques: – As Developed at the National Film Board of
Canada 1940-1962”, fotocópia de circulação interna do NFB, Ottawa, 1962, 8 pp.; transcri-
to em Alfio Bastiancich, Norm an McLaren : précu rseu r des n ou velles im ages, cit., pp.
171-175.
93
Cf. comentário de Pierre Hébert sobre a animação de McLaren citado na p. 42 deste livro.
autonomia e à cooperação entre os funcionários do National Film 105
A economia de meios
A exigüidade dos meios – tanto de produção como de expres-
são – ajudaria na delimitação e orientação do processo criativo, le-
vando o autor a concentrar-se naquilo que, tanto nos modos técnicos
como nos de linguagem, é essencial. Escrevia McLaren em 1955,
ano em que realizou Blin kity Blan k:
Eu certamente admito que sinto um prazer claro em fazer um filme com
a menor soma de dinheiro, equipamento e tempo possível […] a dádiva
de poupança do filme é que, se você o despe de todas as suas caracterís-
ticas secundárias, tais como cenários, fundos, propriedades, ilumina-
ção, figurino e até mesmo som, deixando apenas o esqueleto da ação, é
possível prender a atenção da platéia com firmeza. Tudo o que é real-
94
mente essencial é que a ação seja clara e planejada com habilidade.
94
Norman McLaren, The Low Bu dget an d Ex perim en tal Film ( Ottawa: NFB, 1955) , foto-
cópia, s/p.
95
Ibi d em .
106 Três anos mais tarde voltaria a propor a mesma disciplina a
Filme animado e cinema
O rigor
Tal como a exigüidade de meios, o rigor na planificação da ação
fílmica e na realização material do filme ajudaria a evitar a experiên-
cia gratuita, inconseqüente, afirmando-se como condição necessária
quer à exploração das possibilidades expressivas dos dispositivos, quer
à sua aplicação segundo estruturas de relação complexa.
96
Norman McLaren, Cam eraless An im ation ( Ottawa: Information and Promotion Division-
NFB, 1958) , p. 7.
97
Norman McLaren, “Homage à George Méliès”, cit., p. 178.
McLaren procedia, com minúcia, em todos os níveis, à listagem 107
98
Evelyn Lambart apu d Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an Interview with Joan Churchill”,
em Jayne Pilling ( org.) , Wom en in An im ation : A Com pen diu m ( Londres: British Film
Institute, 1992) , p. 30.
99
Dope sheets: folhas de papel em que, basicamente, cada fotograma é especificado indivi-
dualmente, segundo uma numeração progressiva, permitindo anotar todo tipo de infor-
mação técnica e dramática necessária a sua execução ou registro. Ver imagem da capa.
108 ções que acompanhavam seu cotidiano. Exercitava-se, desde muito
Filme animado e cinema
100
Len Lye, sem título, em Dan se Persp ecti v es, n o 30, verão de 1967, pp. 40-41; editado
também em Wystan Curnow & Roger Horrocks ( orgs.) , Fi gu res of Moti on : Selected
Writin gs ( Auckland: Auckland University Press, 1984) , p. 41.
101
Cf. o documentário An i m ated Moti on ( 1976-1978) . Cali brati on s: cada uma das fases
gráficas que o objeto assume numa curva geométrica que corresponde à sua trajetória.
102
Cf. comentários de Norman McLaren sobre a preparação para o filme Hen Hop ( 1942) no
documentário Creative Process ( 1990) , de Donald McWilliams. Pierre Hébert irá nomear
esse momento da criação “an im ation d’observation ”, aplicando-o concretamente a par-
tir de seu filme Étien n e et Sara ( 1984) .
103
são, enquanto “geometria experimental da vida”, espécie de nota- 109
103
André Martin, “III. On a touché au cinéma”, em Cahiers du Cin ém a, n o 82, Paris, abril de
1958; editado também em Bernard Clarens ( org.) , An dré Martin : écrits su r l’an im ation ,
cit., pp. 244-245.
104
Vale a pena deixar, aqui, uma nota sobre a “linguagem da natureza” de Marey, de sua
intenção de criar um regime de signos visuais capaz de fixar os ritmos vitais inacessíveis
à observação direta. Tendo-o conseguido, nem por isso atingiu o domínio dos princípios
que os determinam: “Deslocar não é experimentar nem saber: não será necessário deslo-
car as aparências?”, comenta Dagognet a propósito. Cf. François Dagognet, Éti en n e-
Ju les Marey : la passion de la trace ( Paris: Hazan, 1987) , p. 47. Não basta aprender a
inscrever ( escrita) ; é necessário saber ler ou, melhor, decifrar ( escrita-leitura) : “Se fosse
absolutamente necessário [criar] uma metáfora, gostaria antes de comparar o estudo das
ciências naturais ao trabalho dos arqueólogos que decifram as inscrições escritas numa
língua desconhecida, que experimentam vez a vez muitos sentidos para cada signo”; cf. E.
J. Marey, Du m ou vem en t dan s les fon ction s de la vie ( 1868) , apu d François Dagognet,
Étien n e-Ju les Marey ..., cit., p. 48.
105
Leslie Bishko, “Expressive Technology...”, cit.
110 duração cinematográfica [...]. O desfilar, elemento técnico indiferente
Filme animado e cinema
106
André Martin, “III. On a touché au cinéma”, cit.
107
Robert Bresson, Notes su r le cin ém atographe, cit., p. 31.
108
Fernand Léger, “Ballet m écan i qu e”, em L’Esp ri t Nou v eau , n o 28, Paris, 1925, ap u d
Patrick De Haas, Cin ém a in tégral: de la pein tu re au cin ém a dan s les an n ées vin gt
( Paris: Transédition, 1985) , p. 161.
Além do mais, e atendendo acima de tudo ao pragmatismo de 111
109
Grant Munro, em Cecile Starr, “Conversations with Grant Munro and Ishu Patel...”, cit., pp.
44-61.
110
Norman McLaren, “Animated Films”, cit., p. 52.
111
Ibi d em .
112
Ibi d em .
112 E, mais adiante:
Filme animado e cinema
113
Ibi d em . “Pauzinho com pêlos de camelo” é um pincel. Essa expressão é uma clara
referência à atitude de fazer um filme como um pintor pinta um quadro; w in dback é o
disposit ivo que permit e rebobinar e sobre-expor ou filmar por cima das imagens já
registradas.
114
Cf. entrevista com Norman McLaren conduzida por Janick Beaulieu, Gilles Blain, Léo
o
Bonneville e Patrick Schupp, em Séqu en ces, n 82, número especial dedicado à obra de
Norman McLaren, Montreal, outubro de 1975.
115
Cf. Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques...”, cit., pp. 171-175. Cf., igualmente, Evelyn
Lambart, em May Ebbitt Cutler ( 1965) , ap u d Alfio Bast iancich, Nor m a n McLa r en :
précu rseu r des n ou velles im ages, cit.; e também em Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an
Interview with Joan Churchill”, cit., pp. 30-32.
arranhava a película, então utilizou também esse inconveniente para 113
E ainda:
Begon e du ll care foi um filme altamente inventivo e um de nossos
favoritos. Tínhamos duas moviolas para que o filme corresse da pri-
meira máquina cerca de vinte pés e então atravessasse até a próxima,
voltando ao início e fechando a volta. Colocaríamos tinta acrílica úmida
no filme, começando com a primeira moviola. Depois iríamos correr e
pular no chão em diferentes locais para produzir poeira. A poeira era
meio oleosa e, quando pousasse no filme, a pintura seria repelida,
criando um padrão muito interessante. Fizemos isso de maneira que se
produzisse ritmo. Outra vez nós sacudimos o filme para fora da janela
para que ele pegasse alguma sujeira da Spark Street… tudo isso está
117
no filme.
116
Evelyn Lambart apu d Joan Churchill, “Evelyn Lambart, an Interview with Joan Churchill”,
cit., pp. 30-32.
117
Ibi d em .
118
Evelyn Lambart, em M. E. Cutler ( 1965) , ap u d Alfio Bastiancich, Norm an McLaren :
précu rseu r des n ou velles im ages, cit., p. 70.
114 estabelece o contato entre campos da ação e do saber humanos habi-
Filme animado e cinema
E, mais adiante:
119
Wendy Jackson, “The Surrealist Conspirator: An Interview with Jan Svankmajer”, em
os
An i m ati on World Magaz i n e, n 2-3, junho de 1997 ; disponível também em http://
www.awn.com/mag/issue2.3pages/2.3jacksonsvankmajer.html.
120
Cf. prefácio do livro em que foi publicado o roteiro do longa-metragem Fau st ( 1994) , em
Jan Svankmajer, Fau st: The Script ( Trowbridge: Flicks Books, 1996) , p. v.
E então súbita e inadvertidamente você descobre que está fazendo um 115
121
Ibid., p. vi.
116 uma afirmação sobre a realidade? Como você pode evocar um espaço
Filme animado e cinema
122 o
Johan Van Der Keuken, “Questions”, em Mi llen i u m Fi lm Jou rn al, n 22, intitulado
“Mythologies”, Nova York, inverno-primavera de 1989-1990, p. 40.
123
Georges Didi-Huberman, Ph asm es ( Paris: Éditions de Minuit, 1998) , p. 10.
Tenho dificuldade de inserir-me em um quadro, não consigo respeitar 117
E ainda:
Para a viagem dos dois personagens de La traversée..., no início é
verdadeiramente um diário de bordo, dia após dia, para dar a impres-
são de que essa viagem realmente ocorreu, como os diários de bordo de
todos os navegadores que fazem travessias! Eu me inspirei em uma ou
duas narrativas de um personagem que havia se perdido na tempesta-
de e acabava atingindo a América nas geleiras, chamado Howard
Blackburn. A partir daí comecei a delirar completamente, e o filme a se
esticar por dois anos, eu não podia parar [...] dois anos na mesma
história! Então, em lugar de ter uma história rígida escrita de maneira
precisa, com roteiro e decupagem, terminei por improvisar à medida
que o filme avançava. Havia um fio condutor, e depois os personagens
envelheciam. Naturalmente eu também, ao mesmo tempo que eles, e a
viagem ocorria dessa maneira! Durante alguns meses, trabalhei sobre
uma tempestade, depois sobre as geleiras, a calmaria, etc. Era para
125
mim a maneira mais agradável de trabalhar.
não tem outros meios para ocorrer. A obra estaria, por isso e tam-
bém, no processo que leva ao filme, tomado este como percurso,
constatação, registro e prova da descoberta:
Ele [McLaren] elabora uma técnica e começa a servir-se dela, desen-
volvendo-a durante a elaboração do filme, que, uma vez terminado,
torna-se um conjunto de informação técnica e de experiência. Tudo
isso pode fornecer o ponto de partida para um outro filme, mas o mais
comum são algumas descobertas devidas ao acaso que abrem um cam-
po de pesquisa completamente novo. O novo filme pode começar desse
126
ponto e utilizar métodos relativos, mas diferentes.
E ainda:
Acredito que nunca fizemos dois filmes com uma técnica idêntica [...]
Quase todo o nosso trabalho efetuou-se a título experimental [...] Prati-
camente nunca trabalhamos segundo um roteiro estabelecido, e nos
esforçamos sempre no desenvolvimento de uma história tão flexível
quanto possível a fim de podermos incluir toda boa idéia que pudesse
127
surgir à medida que experimentávamos uma nova técnica.
126
Evelyn Lambart, “McLaren’s Techniques...”, cit., p. 171.
127
Evelyn Lambart, depoimento, em Séqu en ces, n o 82, número especial dedicado à obra de
Norman McLaren, Montreal, 1975, p. 131.
finalizados, mas como resíduos, fragmentos observáveis de um pro- 119
128
Neste parágrafo aproprio-me em parte da tese que Vilém Flusser desenvolve quando
analisa a essência tecnológica da fotografia. Cf. Vilém Flusser, En saio sobre a fotografia:
para u m a filosofia da técn ica ( Lisboa: Relógio d’Água, 1998) .
129
Henri Meschonnic, Man ifeste pou r u n parti du ry thm e, disponível em www.berlol.net/
mescho2.htm; acesso em outubro de 2005.