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Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 307-318

O Eu-pele no Rorschach: A sua expressão


em adolescentes toxicodependentes (*)

MÁRCIO B. F. LINHARES (**)


CATARINA BRAY PINHEIRO (***)

INTRODUÇÃO 1999; Rausch de Traubenberg, Bloch-Laîné,


Boizou, Martin, & Poggionovo, 1988; Rausch de
A partir das descrições de Anzieu (1985/ Traubenberg, Bloch-Laine, Duplant, Martin, &
/1995) sobre o funcionamento dos envelopes Poggionovo, 1993). Neste sentido, propomos
psíquicos, propomo-nos estabelecer correspon- novas hipóteses de interpretação de elementos
dências entre a construção e elaboração do quantitativos e qualitativos deste instrumento,
símbolo-Rorschach, o trabalho das funções de ensaiadas na análise (cartão a cartão) dos
manutenção, continente e pára-excitação e os protocolos de dois adolescentes toxicodepen-
procedimentos de elaboração e redimensiona- dentes.
mento do espaço psíquico característicos da Os objectos externos (o grupo, o meio, os pais)
adolescência (Marques, 1999). Para tal, desenvol- são a plataforma, o espaço psíquico alargado
vemos uma análise do processo-resposta sobre o qual o adolescente abandona as funções
Rorschach a partir de elementos que reenviassem ainda insuportáveis para determinadas instâncias
para o trabalho do Eu-pele, de forma a destacar o do seu aparelho psíquico, constituindo-se como
processo que vai da captação dos perceptos e uma espécie de pseudo-pele psíquica (Bégoin-
construção do engrama ao tecer do fio projectivo. Guignard, 1989; Jeammet, 1980).
Ao longo do tempo, contribuições de dife- As manifestações adictivas são um dos modos
rentes escolas têm enriquecido a fundamentação privilegiados de expressão de determinados
teórica do Rorschach, transformando a sua conflitos próprios da adolescência, pelo que a
abordagem interpretativa e alargando a sua delegação de funções do Eu-pele no exterior
aplicabilidade, nomeadamente como meio de poderá inserir-se num contexto de risco inerente
acesso aos processos de desenvolvimento e aos comportamentos ordálicos, de procura de
crescimento característicos da adolescência limites e estruturação da identidade (Anzieu,
(Chabert, 1997/1998; Marques, 1991a,b, 1996, 1985/1995; Baudin, 2001; Dias, 2000; Jeammet,
1994).
Neste âmbito, a mobilidade e transgressão dos
(*) Artigo baseado na monografia de licenciatura
com o mesmo título, apresentada e defendida no limites é entendida como mais um aspecto
ISPA em 2004, na área de Psicologia Clínica. fundamental do processo adolescente (Marques,
(**) Psicólogo Clínico, Equipa Multidisciplinar de 2004). A transformação, (re)composição dos
Apoio aos Tribunais de Angra do Heroísmo. objectos internos e externos, conduz a novas
(***) Psicóloga Clínica, Hospital Fernando Fonseca. relações continente-conteúdo, operadas pelo/para

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o estabelecimento de uma nova barreira de pulsão, como força motriz do psiquismo,
contacto, que Dias (2004) traduz por espaço encontra a sua potência na pressão que exerce
psíquico, pele mental. Salienta-se, ainda, o contra os limites que encontra, enquanto que
carácter evolutivo destas condutas de risco, estes só adquirem a sua forma insuflados por um
deslocando-as do domínio exclusivo da psicopa- núcleo pulsional que os sustenha.
tologia para uma concepção normativa da Estes limites, não só contêm o interno como
adolescência, composta por oscilações entre protegem do externo, cumprindo uma função de
movimentos regressivos, desintegradores e pára-excitação. A superfície externa do Eu-pele
progressivos, integradores (Marques, 1999; deve ser suficientemente densa (para impedir a
Pinto, 2002). sobre-estimulação) e porosa (para permitir as
trocas com o exterior). O funcionamento
psíquico adequado pressupõe um espaço de
ENQUADRAMENTO TEÓRICO diferenciação entre estas superfícies interna e
externa, de forma a prevenir invasões exteriores
De um ponto de vista freudiano, todas as e/ou vazamentos do interior.
funções psíquicas têm uma ancoragem numa
função corporal, a partir da qual se desenvolve
um correlato mental. Para Anzieu (1985/1995) a METODOLOGIA
pele não só fornece ao aparelho psíquico as
representações constitutivas do Eu, como Centrada nas três funções supracitadas, a
também assegura as suas principais funções, metodologia consistiu na proposta de novos
nomeadamente: manutenção, contenção, pára- procedimentos de análise e interpretação da
excitação, individuação, intersensorialidade, prova Rorschach, tratando-se de um instrumento
suporte da excitação sexual, recarga libidinal, que permite reconstituir os processos de
inscrição dos traços e auto-destruição. pensamento que operam num aparelho psíquico
O Eu-pele assegura uma função de manuten- em mudança catastrófica (Marques, 1999).
ção do psiquismo, no sentido em que se apoia na No que concerne à função de manutenção,
interiorização do holding materno, fornecendo a propôs-se que as respostas alusivas ao eixo
solidez e unidade necessárias ao seu funciona- central, comum a todos os cartões (Chabert,
mento. A identificação primária ao objecto de 1997/1998), fossem interpretadas como a
suporte permite a aquisição de um eixo vertical expressão da actividade de manutenção, averi-
fálico sobre o qual se edifica a estrutura mental. guando-se o papel desse eixo na organização da
Permite também o desenvolvimento das imagem, ou seja, se constitui um suporte eficaz
representações de frente e verso, precursoras do para o engrama; se representa um suporte
dentro e fora, i.e., o sentimento de reforço e partilhado com outro objecto; ou se remete,
protecção das superfícies dorsal e ventral, como sugere Anzieu, para a acção da clivagem.
possibilita a criação de um espaço intermédio de No primeiro caso, há que ter em conta que
depósito, primeiro, de sensações, depois de determinados cartões, cuja configuração é mais
pensamentos. compacta e maciça (I, IV, V e VI), facilitam a
Isto corresponde já à segunda função descrita manifestação de um simbolismo ligado ao fálico,
por Anzieu (função continente), que tanto remete proporcionando a representação deste “falo
para um Eu-pele continente (superfície estável e interno” que fornece ao espaço mental o poder
imóvel, servindo de receptáculo passivo de de se manter. O emprego de um modo de
sensações, imagens e afectos), como para a apreensão global (G), numa imagem completa e
função contentor, de transformação, elaboração sólida, pode dar conta dessa capacidade para
e representação (descrita por Bion como função manter a arquitectura interna do Eu, revelando a
α). Ambas as dimensões são indispensáveis ao interiorização do holding, leia-se, da função de
desenvolvimento do aparelho psíquico, pela manutenção. Da mesma forma, os grandes
formação e transformação. Do mesmo modo, detalhes (D) íntegros, podem traduzir o
continente e conteúdo são indissociáveis: a reconhecimento dessa capacidade no próprio e

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no Outro. Esta solidez pode, contudo, alternar outras de sobrevalorização narcísica,
representar a calcificação de qualquer tentativa de idealização, que corresponderiam à delegação
de movimento, na medida em que os conteúdos da função no exterior, a construção externa de
revelem rigidificação ou desvitalização (da um Ideal do Eu a interiorizar (ou, por vezes, a
imobilidade fóbica à inanimada). No mesmo incorporar).
sentido, os elementos que indiciam normopatia Esta incompletude também se manifesta pela
(número elevado de Banalidades, F%, F+% e imposição de imagens do interior do corpo
H% elevados) podem revelar a maquinalização (partes do corpo humano, Hd, Anatomias),
da manutenção, sujeita a preceitos externos relacionadas com a reactivação da angústia de
“excessivamente” internalizados. Assim, holding castração, expressa pelos adolescentes de 17
deixa de ser traduzido como suportar, manter, anos (Marques, 1999). Apesar de (relativamente)
passando a significar constringir. alcançada a diferenciação figura-fundo do ponto
A presença de cinestesias (K) num protocolo de vista formal, ao nível dos conteúdos é
remete para a possibilidade de elaborar o revelada a fragilidade do eixo fálico, i.e., da
movimento de objectos e/ou personagens, pela função de manutenção.
mudança ou construção de novas posições, sobre As imagens de reflexo ou simetria também
a manutenção de elementos da posição anterior. sugerem uma certa diluição do Eu no Outro.
Outro elemento de cotação do Rorschach a Aqui, a manutenção é partilhada com uma figura
relacionar com esta função é a qualidade e de suporte anónima (porque igual). Os temas de
quantidade das respostas formais (F), que nos amparo, em que dois objectos dividem um eixo
remete para a distinção figura-fundo. A impor- comum (mais frequente nos cartões bilaterais),
tância do trabalho do negativo, facultado pelo podem remeter para a dificuldade em assegurar
branco do cartão e pelo destaque da mancha, individualmente o funcionamento do aparelho
solicita um trabalho de individualização, de psíquico. Por vezes, na própria comunicação
separação entre o dentro e o fora (Roman, 1996). com o clínico vemos apelos à certificação,
Por outro lado, a incapacidade para realizar este pedidos de permissão para criar, na tentativa
destaque figura-fundo pode revelar uma tendência (mesmo que transitória) de dividir com o Outro a
para a dispersão, ou para a diluição. Anzieu responsabilidade de simbolizar.
relaciona a deliquescência dos corpos, nas O eixo central também serve de sustentáculo
pinturas de Francis Bacon, com perturbações na para mecanismos de clivagem e identificação
função de manutenção, correspondentes à projectiva, para a cisão dos engramas em bom e
imagem do corpo do alcoólico. Esta liquefacção mau, amor e ódio, vida e morte, retratados na
dos conteúdos internos reenvia-nos para as bilateralidade de um cartão e/ou numa alter-
respostas associadas à excessiva porosidade dos nância que percorre o protocolo. Esta clivagem
continentes, revelando também a perturbação serve/reflecte as organizações mais arcaicas do
das funções continente e pára-excitação, numa Eu-pele, em que a manutenção do aparelho
configuração de Eu-pele passador, e para fortes psíquico se faz por oposição à indiferenciação, à
angústias de derramamento. fusão, num retorno ao bipartido como protecção
O branco intramacular (Gbl, D bl, Dd bl) contra o multipartido. Os movimentos de regres-
pode, também, representar a disfunção da são que permeiam a adolescência traduzem-se
manutenção, os núcleos vazios dentro do núcleo por uma forte “reactivação” destes mecanismos,
interno, os espaços por preencher, constituindo como defesa contra as fragilidades narcísicas que
uma “invasão do espaço psíquico por conteúdos decorrem das mudanças em curso. Estas
pouco diferenciados, em relação com o Id” especificidades do processo adolescente e suas
(Roman, 1996, p. 141), ou espaços evacuados traduções no Rorschach encontram-se documen-
porque insustentáveis. Pode questionar-se se tadas na literatura (Marques, 1999).
esta evacuação não corresponderá à exteriori- No que respeita à função continente, Anzieu
zação de partes do aparelho psíquico, cujo (1985/1995) utiliza uma definição bipartida,
manejo é provisoriamente incomportável. Assim, relacionada com o conceito de “continente”
a estas imagens de incompletude poder-se-iam (envelope, recipiente ou limite) e com o conceito

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de “contentor” (reportando para a função α tal implicar formar e o segundo transformar. Este
como descrita por Bion). Pressupõe-se que os conceito de mudança está presente nas variáveis
conteúdos sejam neutralizados e conservados desenvolvidas por Fischer e Cleveland (1958),
por um receptáculo “continente”, sendo depois nomeadamente, na referência a objectos
transformados e elaborados por um “contentor” escondidos ou cobertos, cotáveis como Envelope.
que os torna mais representáveis. Sobrepor algo a um objecto preexistente implica
Os elementos descritos por Chabert, que se uma acção delimitadora – transformação
baseia nos trabalhos de Anzieu para relacionar a operada pela função α.
qualidade dos determinantes formais e a do Contudo, na definição das imagens cotáveis
envelope psíquico, parecem reflectir de forma como Penetração verificam-se outras modifica-
mais evidente o funcionamento continente (do ções e intercâmbios entre interior-exterior, talvez
que contentor), até pela sua relação com as porque estes actos de mudança se caracterizem
variáveis Barreira e Penetração, muito ligadas à pela ruptura. No processo-resposta Rorschach
qualidade dos limites entre dentro e fora. As interessa compreender o valor desta ruptura na
próprias variáveis estabelecidas por Fischer e construção do fio projectivo: representa uma
Cleveland (1958) – apesar de concebidas noutro mudança progrediente ou fica-se pela regressão e
âmbito – estão profundamente ligadas à função afunda-se na disruptividade (Emmanuelli, 2001).
de delimitação do Eu-pele e suas perturbações. A diluição da fronteira dentro-fora, expressa
Segundo Chabert (1997/1998), verifica-se uma na imprecisão das formas, nas cinestesias que
boa capacidade de delimitação dos engramas, impliquem ruptura, na invasão dos perceptos
sendo o envelope psíquico eficaz na sua função pela cor, implica a permutabilidade dos
continente, quando os conteúdos referentes a conteúdos que procuram novos continentes, em
pele, membrana, ou superfície protectora estão torno do exercício da identificação projectiva e
associados a determinantes de boa qualidade do ensaio de novas configurações da barreira de
formal. contacto (conceito que, aliás, se articula mani-
No entanto, referências a objectos blindados, festamente com o de função contentor).
ou objectos cujas superfícies são reforçadas, A bilateralidade das manchas (presente
remetem mais directamente para o conceito de mesmo nos cartões mais fechados) permite a
segunda pele psíquica de E. Bick (1967/1991). produção de interacções entre personagens
Este reforço delimitador representa um trabalho humanas ou animais, nomeadamente através das
da função de pára-excitação (a que se alude cinestesias, que não só remetem para a
adiante), no sentido de assegurar uma pseudo- capacidade de definir os limites de cada uma das
-independência do objecto externo que desem- partes (o seu continente), como dão conta da
penha a função de pele-continente ou, na qualidade da comunicação entre elas, i.e., do
terminologia de Anzieu, a função de continente. funcionamento do envelope psíquico como
Como refere Roman (1996), esta ameaça à interface, permeável aos conteúdos.
integridade da folha interna do Eu-pele pode Os movimentos de objectos (kob), a
coincidir com uma rigidificação da folha comutação das formas (na sequência de
externa. respostas F- para F+, ou de FC para C, etc.) e
A substituição da função desempenhada pelo até, possivelmente, a sua fragmentação (nos
objecto de dependência parece também aparecer conteúdos Frag ou Expl), traduzem a neces-
na expressão Rorschach dos púberes, com o sidade de comunicação entre espaços, desem-
privilegiar do modo de apreensão global, ou a penhada pela função contentor (e autorizada
maior participação dos esbatimentos de textura pelas funções de pára-excitação e de inter-
(Marques, 1999). Neste sentido, os G estariam sensorialidade). Isto se a regressão permitir uma
ao serviço da delimitação e os E na procura progressão criativa, se a decomposição fornecer
regressiva de contacto com uma superfície os conteúdos para uma nova criação, um novo
continente, que desempenhe a função precária. símbolo. Caso contrário, a simbolização
A diferença do funcionamento de “continente” dissolve-se na confusão dentro-fora, submersa
e de “contentor” consiste no facto do primeiro nos elementos que a percepção evoca (a cor, o

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branco, o negro, etc.), perante a inconsistência A capacidade de evocar várias imagens a
do envelope e a sua inépcia em conter ou partir da mesma mancha, de não ficar preso
transformar. dentro do continente criado, de efectuar o
A confusão dentro-fora define o Eu-pele movimento de síntese implicado na construção
adesivo, descrito por Roman (1996), e implica de um G elaborado, ou um movimento de
uma relativa indiferenciação entre a função análise dos detalhes numa resposta inicialmente
continente e de pára-excitação. A diferenciação apreendida em G, determina a mobilidade das
destas duas funções permite estabelecer o fronteiras e abre espaço à criação de novos
intervalo entre as folhas interna e externa do Eu- espaços. É nesta evolução que se pode (a)testar a
-pele, um hiato entre os envelopes, definindo um capacidade de transformação através do processo
espaço nuclear, individualizante, isolado e/ou criativo, capacidade de estabelecer novas
isolável. O isolamento de D intramaculares, ou relações continente-conteúdo, de permitir-se a
mesmo pequenos detalhes (Dd), pode comunicar mudança catastrófica.
esta capacidade para definir um núcleo interno A eficácia da função continente depende da
bem contido, sobre a mancha que serve de articulação das dimensões contentor e
fundo, por sua vez bem destacada do fundo continente, e a criação do símbolo não pode
branco do cartão. acontecer sem o trabalho de delimitação e
Na inversão dos envelopes, as superfícies comunicação respectivos. O desfasamento entre
interna e externa do Eu-pele encontram-se o formar e o transformar verifica-se quando há
perfiladas de tal forma que podem surgir vivências apreensão de detalhes que, apesar de associados
de difusão dos conteúdos internos – o envelope a boas formas, não estabelecem qualquer tipo de
continente não se encontra bem protegido pelo de vínculo entre si, ou seja, estão completamente
pára-excitação. A predominância de uma temática isolados.
do olhar pode remeter para determinado tipo de Se a cotação de determinantes formais de
angústias de intrusão psíquica ou difusão do boa qualidade (F+) remete para a eficácia da
pensamento. A dificuldade em conceber os função continente, poderá subentender-se um
conteúdos internos isolados do exterior, deverá ser contributo da função de pára-excitação quando
tanto atenuada quanto for possível discriminar as se tratem de imagens apreendidas em zonas da
funções e integrá-las, de forma a que o trabalho da mancha que possuem uma valência pulsional
identificação projectiva não implique este “perder- particular (como é o caso dos vermelhos), ou
-se” no Outro. cujas características evocam reacções manifestas
A colagem dos envelopes, interno e externo ao longo do protocolo (como acontece quando
do Eu-pele, também sugere uma disrupção, mas há uma reactividade particular ao negro). Poder-
com origem na dificuldade em estabilizar o tal -se-á realizar o mesmo tipo de leitura em relação
núcleo interno assegurado pela função de aos elementos mistos de cotação (FC, FE e até
manutenção. Respostas do tipo FC ou FE podem mesmo FClob), tendo em conta que a qualidade
remeter para esta tentativa de conter o movi- formal do engrama revela o espaço facultado
mento pulsional interno, ou indiciar o recurso à pela pára-excitação aos envelopes de
função de pára-excitação para reduzir a excitabi- manutenção e continente (ou seja, a distância
lidade dos perceptos, moderando o acesso do entre as folhas interna e externa do Eu-pele).
externo ao interior. Perante o aumento das A relação entre a oralidade e a epiderme é o
tensões internas, o fantasma de esvaziamento protótipo de todas as relações figura-fundo. A
narcísico (liquefacção, explosão, etc.) determina partir do modelo oral, os orifícios tornam-se
a necessidade de recurso a esta espécie de zonas erógenas, como figuras ou pontos de
exosqueleto. prazer intenso e rápido sobre o fundo de
A função contentor participa na qualidade do sensualidade global da pele. Daí que a inversão
envelope de cada engrama isolado, mas também da relação figura-fundo possa estar relacionada
está presente na evolução dos limites de resposta com a (con)fusão entre as funções de pára-
para resposta, de cartão para cartão, ou seja, com a -excitação e de suporte da excitação sexual,
qualidade dos limites ao longo do fio-projectivo. uma perturbação fundada na oralidade (Anzieu,

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1985/1995). Esta interpenetração dos envelopes desta estratégia, conjugando outros elementos
está patente quando as formas dos engramas que remetem para a expressão directa (não
não resistem à invasão dos conteúdos externos, elaborada) da angústia. Do mesmo modo, é
como se verifica em alguns CF, em que um admissível que um manifesto abaixamento do
fundo de tensão pulsional determina a tempo de latência corresponda à falência da
(in)definição dos limites. pára-excitação, revelando uma permeabilidade
A labilidade, que caracteriza alguns processos- acrescida às estimulações externas.
-resposta, poderá também configurar uma forma Noutras proporções, esta interpretação é
(paradoxal) de protecção, através da inversão dos extensível à denegação, em que é criado espaço
envelopes de excitação sexual e de pára-excitação, para a elaboração do símbolo através da tentativa
permitindo a constituição de um ecrã de dispersão/ de distanciamento em relação ao projectado, ou
/imprecisão que impede o contacto directo com o seja, a denegação dos conteúdos internos solici-
objecto de angústia. A eficácia deste ecrã de tados, mas também à recusa, onde a acção de
afectos é limitada porque, apesar de lograr a irre- pára-excitação é levada ao extremo, impedindo a
presentabilidade do objecto, inviabiliza o desen- comunicação com o clínico (a permeabilidade
volvimento contido e sustentado dos processos de interior-exterior) ou, até mesmo, dificultando
construção, ligação e simbolização. os processos de pensamento (impermeabilizando
As cinestesias também são elementos as transferências entre continentes/conteúdos
importantes de avaliação da actividade de pára- internos).
-excitação, pelo facto de oferecerem uma medida
da flexibilidade dos limites, da barreira de
contacto. As imagens de movimento remetem SUJEITOS
para a permeabilidade desta barreira externa,
tanto mais quanto se trate de interacções humanas O P. tem 19 anos, frequenta o ensino superior
ou animais (K, kan), que revelam a comunicação (encontrando-se deslocado de casa). Foi internado
interno-externo e a inter-permutabilidade dos numa Unidade de Desabituação, cerca de 15 dias
conteúdos. antes da sessão de avaliação. Quatro meses antes
As cinestesias parciais (kp), pelo contrário, tinha tido um episódio alucinatório, na sequência
poderão dar conta do funcionamento restritivo da do consumo simultâneo de “pastilhas”, haxixe e
pára-excitação, quando as solicitações do percepto álcool. Manifestou a intenção de aproveitar o
sejam tão angustiantes que não permitam lidar internamento para deixar de consumir haxixe –
com uma representação integral. Da mesma sua substância de preferência, que consumia
forma, pode-se questionar se as cotações de diariamente. Disse preferir a “erva” que o acalma
figuras parciais (Ad, Hd) não poderão ser e associou os consumos de haxixe à produção
interpretadas como o trabalho da função de pára- artística, nomeadamente à pintura. Descreveu
excitação na restrição de conteúdos animais ou efeitos que se assemelham a uma produtividade
humanos demasiado angustiantes. Tal seria ainda quase alucinatória. Referiu consumos regulares
mais marcante se este funcionamento aparecesse de “pastilhas” e esporádicos de “ácidos”.
associado à cotação de G barrados, correspon- Renitente em reconhecer a necessidade de
dendo a uma restrição suplementar (desta feita, ao apoio terapêutico, aceitou realizar o teste na
nível perceptivo), que encontraria a sua expressão perspectiva de explorar essa possibilidade.
mais saliente no detalhe oligofrénico (Do). Estava visivelmente ansioso, algo que assumiu
No que concerne à construção do fio projectivo, como traço de personalidade.
o aumento evidente do tempo de latência pode A S. tem 18 anos, estatura média, olhos
constituir uma tentativa de criar um hiato bastante expressivos do seu estado de ânimo.
(temporal) entre o estímulo e as suas solicitações Iniciou processo em comunidade terapêutica,
mais imediatas, possibilitando uma (re)elaboração registando evolução na passagem para a segunda
das representações ou afectos evocados e evitando fase de tratamento. Nove meses após a admissão,
o choque, evidenciando o funcionamento da pára- foi expulsa, na sequência do incumprimento de
-excitação. O choque corresponderá à falência regras da instituição.

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Iniciou consumos de canabinóides aos 10 relacionar a boa qualidade formal dos engramas
anos. No início da adolescência, relata ter sido com a distinção figura-fundo e a eficácia das
vítima de tentativa de abuso sexual por parte de funções manutenção, continente e pára-
um tio e fez internamento após tentativas de -excitação. Por exemplo, no cartão II, “poderia
suicídio, por ingestão de fármacos. Diz ter ser uma borboleta”, denota-se a eficácia da
entrado em depressão profunda aos 15 anos, contenção e da pára-excitação perante a
após morte do pai, altura em que inicia o solicitação pulsional da mancha (apreendida no
consumo de “drogas duras”: cocaína e ecstasy. detalhe vermelho), numa figura cuja integridade
Deixa de se relacionar com os amigos de e formalidade são conseguidas, revelando
escola, pois sentia que nada tinha que ver com alguma capacidade de mediar o espaço entre as
“aquele tipo de pessoas normais”. Sentia-se bem, folhas interna e externa do Eu-pele.
salvo raras excepções, no seio do grupo de A integração dos detalhes brancos intrama-
“amigos de consumo”. culares aparece apenas no protocolo de P.,
parecendo remeter para a inversão dos envelopes,
nomeadamente na resposta adicional ao cartão X,
DISCUSSÃO em que “a cara é a parte branca” (D bl F- Hd). A
formulação da resposta surgiu associada a fragi-
A partir da interpretação dos dados dos lidades identitárias, numa procura ainda muito
protocolos e dos psicogramas, reflectiu-se sobre centrada no Eu. Estes elementos corroboram a
a pertinência dos procedimentos de análise proposta de que as restrições ao nível do conteúdo
propostos. (mais Ad do que Hd e Anat) podem traduzir
Verificou-se que nem sempre são a coesão e vivências de incompletude e fragilidade do eixo
integridade dos engramas que revelam a predo- de suporte, portanto, da função de manutenção.
minância da função de manutenção na sua As respostas também sugerem que são as
construção. A dificuldade em consentir a secção imagens de apoio, colagem e fusão, mais do que
da mancha nos seus detalhes constituintes, as imagens de simetria, espelho e/ou duplo, que
forçando uma figura única, às expensas da sua traduzem a necessidade de um objecto de
qualidade formal (“um rato esmagado”), pode análise, que desempenhe a função de suporte do
denunciar a fragilidade do núcleo de manuten- Eu-pele, como é evidente, mas pouco eficaz, no
ção. À construção global dos engramas, também protocolo de S.: “um animal, ou melhor, dois
pode subjazer a (con)fusão dos detalhes – “Duas animais idênticos pegados”. Alternativamente,
pessoas. Não, a mesma...” – relacionada com propôs-se que as representações especulares
fantasias de (re)encontro fusional com o objecto remetem para estratégias mais centradas na
de suporte, na partilha do mesmo espaço de procura de um continente emulado do Outro, que
manutenção. proteja o núcleo interno do Eu-pele (já assegurado
Os conteúdos rígidos ou desvitalizados, das por uma função de manutenção, relativamente,
respostas do P. ao cartão IV – “um tapete... consistente).
daqueles de ursos” e “uma árvore” – são repre- Verificou-se ainda que, em torno do eixo de
sentativos de estratégias de passividade (operadas manutenção se organizam mecanismos de
pelas funções manutenção e pára-excitação), clivagem e de identificação projectiva, operados
perante a ameaça da tensão pulsional que logo se sobre o eixo vertical das manchas, mas também
revela – “explosão nuclear”. Apesar de disrup- num eixo virtual, transversal ao processo-
tivos, estes movimentos sugerem capacidade de -resposta – no cartão I, “diabólico, fria” e no
exploração de várias dimensões – a tridimensio- cartão II, “pureza e ingenuidade”. No protocolo
nalidade do “sombreado” e a temporalidade da de S., em particular, o papel da identificação
cinestesia. projectiva foi preponderante no esbatimento das
Os dados dos psicogramas não permitiram fronteiras dentro-fora.
testar se os elementos que traduzem normopatia Nos dois protocolos, exemplos de boa
estão relacionados com o constrangimento da qualidade formal – “borboleta” (F+), no cartão II
função de manutenção. Contudo, foi possível – remetem para a eficácia da função continente,

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enquanto que a sua falência contrasta na quase perseveração, de um mesmo continente
construção de outros engramas – “... cara de um “cara” indicia uma tentativa de compensação
morcego (...) uma cara esquisita” (F-), no cartão desta carência da função.
VI. Neste aspecto, os dados dos protocolos e Respostas como “... é assustadora! Repre-
psicogramas vieram corroborar as propostas senta medo, escuridão e (...) parece um monstro”
avançadas, de que a qualidade formal dos (cartão IV de S.), revelam que as solicitações
engramas remete para a qualidade dos envelopes fantasmáticas do cartão e a excitabilidade do
psíquicos. percepto inviabilizam o funcionamento eficaz da
Quanto à interpretação dos esbatimentos de função de pára-excitação (ClobF), resultando na
textura como expressão da procura regressiva de imprecisão dos limites, numa má relação figura-
um envelope continente, a resposta de P., -fundo.
“tapete... daqueles de ursos... de pele”, parece Colocou-se em hipótese que os elementos de
elucidativa da eficácia, mesmo que provisória, cotação K e kan poderiam ser interpretados
da função continente, que antecede a ameaça dis- como “medida” de permeabilidade e flexibili-
ruptiva de “uma explosão nuclear” (cartão IV). dade do envelope de pára-excitação. No entanto,
No cartão V de P., propôs-se considerar a em qualquer dos protocolos, as cinestesias
delimitação eficaz de conteúdos acromáticos – humanas revelam uma certa porosidade, tradu-
“um insecto nocturno” (FC’) – como actividade zindo a carência e/ou mesmo falência da função
de contenção e transformação dos afectos – “Extraterrestres... Duendes, todos juntos numa
depressivos. Por outro lado, na análise do festa” (Inquérito) “... espaço que criam (...)
psicograma de P., propôs-se uma relação entre a para uma pessoa estar e parece que não está”.
percentagem de conteúdos humanos (H%=11) e Considerou-se importante aprofundar a inter-
a capacidade da função continente, estabele- pretação dos aumentos do tempo de latência, que
cendo os limites do Eu e contribuindo para a nos protocolos analisados surgiram contextuali-
definição da identidade. zados de formas distintas. A resposta “cara de
A partir das respostas “uma explosão nuclear” gato selvagem” (cartão III de P.) aparece associada
e “uma explosão”, respectivamente nos cartões a elementos que remetem para o funcionamento
IV e IX de P., sugeriu-se que as cinestesias de de pára-excitação – a delimitação formal da cor
ruptura e os conteúdos Explosão estariam (FC) e o “pôr em desenho” (Ad/Desen). Estas
associados ao funcionamento contentor (tradu- estratégias permitiram circunscrever as solicita-
zindo a necessidade de comunicação dentro- ções mais agressivas e denegar a sua origem,
-fora e de ensaio da barreira de contacto, o que criando um envelope de pára-excitação onde é
sabemos ser presente na adolescência). Aqui, manejada a angústia. Noutra resposta de P.,
essa transgressão dos limites e tentativa de “rato esmagado” (cartão VI), o aumento do
intercâmbio redundou na destruição total dos tempo de latência coincide com outros elementos
engramas, sem intento e/ou possibilidade de que caracterizam o choque (a falência formal e o
recuperação e sem criação de novas imagens. conteúdo fragmentado): a barreira de pára-
Analisando a sucessão formal do protocolo de -excitação não suportou o impacte do percepto.
P., encontram-se dados que permitem consolidar Por outro lado, o comentário de S. ao último
a hipótese de que os pólos formativo-transfor- cartão – “muita confusão, insegurança, coisas
mativo (continente-contentor) da função de muito ambivalentes” – é antecedido por uma
continente podem operar de modo distinto. O pausa incaracterística, o que exprime uma
processo-resposta de P. é construído numa intensa dispersão. Neste caso, a interpretação
perspectiva mais transformativa (contentor) – deve atender à falência da pára-excitação e das
com respostas variadas e sequenciais a um outras funções do Eu-pele.
mesmo cartão, diferenças relevantes entre o A resposta adicional de P. ao cartão X, “dois
espontâneo e o inquérito, e algumas cinestesias – cavalos-marinhos, cor-de-laranja, metidos entre
enquanto a qualidade dos continentes (forma- as algas”, possibilita uma análise de vários
tiva) fica para segundo plano – como é indicado procedimentos propostos, uma vez que repre-
pelos baixos valores de F% e F+%. A repetição, senta uma boa integração do trabalho das três

314
funções principais. Verifica-se uma boa distinção relação (idealizada) abre possibilidades de
figura-fundo e figura-figura, que preside ao interacção, mas impõe o anonimato dos
destaque dos detalhes. As figuras animais, bem intervenientes. A indefinição de géneros, perante
enumeradas e diferenciadas de forma coesa nos um materno-feminino ameaçador e um paterno-
seus envelopes (D FC), dão conta da capacidade -masculino esvaziado, dificulta a (re)integração
continente e de manutenção, apesar da solici- do casal parental combinado, do ser e do
tação agressiva que a cor teve no espontâneo: realizar. As progressões, nem sempre pacíficas,
“galos prontos para lutarem” e “uma explosão”. por vezes impõem uma agressividade demasiado
O conteúdo “algas” (Pl) representa uma segunda disruptiva para os recursos do seu Eu-pele.
folha constitutiva do engrama, contribuindo para No protocolo de S., a (con)fusão dos envelo-
envolver a cena num envelope de pára- pes significa, mais do que a falência da função
-excitação, que reforça a contenção formal do continente, a dependência da manutenção do
afecto (FC) na transformação do clima Outro. A individualidade contestada na indefini-
conflituoso do espontâneo – operada pela função ção dos limites dentro-fora, num “jogo de forças
de contentor, numa acção delimitadora, que entre mim e a minha mãe (...) como se não
esconde/envolve o conteúdo, modificando-o. houvesse diferença de hierarquia, luta constante
Os dados não permitiram observar a que não leva a lado nenhum”. Estar “pegado”
pertinência de alguns procedimentos propostos. significa partilhar envelopes, numa luta pela
Contudo, a sua ausência também poderá ser “liberdade”, que activa a angústia da pele rasgada,
significativa, conquanto possa traduzir a inaces- numa ambivalência tangencial à clivagem. Neste
sibilidade a determinado tipo de funcionamento. quadro, a inversão dos envelopes de excitação e
Por exemplo, nenhum dos sujeitos revelou pára-excitação tem a função de encobrir a
acesso ao processamento de um G elaborado, profundidade do vínculo ao objecto e a indispen-
para cuja construção concorre a actividade das sabilidade da sua manutenção.
três funções.
Foram também inexistentes as referências a
objectos blindados ou reforçados, cotáveis como CONCLUSÃO
Barreira, remetentes para o funcionamento
combinado continente/pára-excitação. No proto- A partir da discussão dos procedimentos de
colo de P., talvez porque as estratégias de reforço interpretação do Rorschach, elaborados através
narcísico se caracterizaram mais pela apreensão do organizador Eu-pele, procurou-se enquadrar a
global e individual dos perceptos, no de S., análise dos protocolos com as vivências de cada
porque se evidenciou precisamente o contrário, sujeito, com o intuito de compreender melhor
ou seja, a imprecisão dos limites e a indefinição o(s) seu(s) processo(s) adolescente(s) e perceber
das superfícies continentes. que função(ões) desempenha o consumo de
Resumindo, no que respeita a P., verificou-se substâncias.
que predominou a problemática da identidade, Apesar das vicissitudes, P. logrou responder à
na procura de um continente estável do Eu-pele situação projectiva num contexto de abstinência,
– expressa através de um conteúdo “cara”, tomando mão de elementos de ligação, comuni-
repetido e espelhado na sua forma “esquisita”. cação e simbolização. Adivinha-se-lhe a possibi-
Este singular (narcísico) alternou com imagens lidade de progredir no seu processo adolescente,
bilaterais reveladoras de fragilidades egóicas através da (re)construção e (re)organização dos
nucleares – na dependência do suporte e envelopes de manutenção, continente e de pára-
contenção do Outro – que lembram mais um -excitação, pela (re)interiorização das funções do
registo púbere do que propriamente adolescente. Eu-pele delegadas no espaço psíquico alargado.
Por outro lado, P. revela capacidades de criar, Este potencial, ainda diluído na multiplicidade e
de explorar limites e a expressão adequada dos mobilidade da sua expressão, é sugerido pelo
afectos (pela relativa integração da cor e dos Rorschach.
esbatimentos) e indicia potencialidades ao nível A criatividade, que P. atribui aos canabi-
da relação e da subjectividade. O desejo de nóides, permite-lhe manter um Eu-pele aplanado

315
e fantasiar novas possibilidades de ligação, sobre a estabilidade dos espaços entre o interno e
comunicação e simbolização, explorando novas o externo, sobre o jogo de contenção e transfor-
dimensões, alienígenas, mitológicas, psicadé- mação das tensões pulsionais e de redimensio-
licas. Esta atribuição de propriedades produtivas namento do espaço psíquico, que concorrem
às substâncias psicoactivas corresponde à para a manutenção de uma continuidade
delegação das funções do Eu-pele num objecto identitária, sem prejuízo para a exploração e
mágico que permite o acesso a dimensões expansão dos limites. Por outro lado, a análise
(aparentemente) inacessíveis. também proporciona referências ao espaço que o
Por outro lado, substâncias desinibidoras (tal sujeito (se) permite em relação ao Outro, à
como o álcool e o Ecstasy) podem ter a função flexibilidade da barreira de contacto, inclusive,
de facilitadores da relação, envolvendo-a numa na permeabilidade do envelope de pára-
atmosfera idílica, num envelope para as -excitação, e à delegação de algumas funções no
angústias que o encontro do/com o Outro evoca. espaço psíquico alargado.
Quanto a S., pode compreender-se o consumo Estes elementos constituem aspectos centrais
de estimulantes no âmbito de uma estratégia no desenvolvimento dos processos de pensa-
similar à de barreira de fumo – que passa pelo mento e do próprio processo adolescente. A
recurso à excitabilidade e à agitação psicomotora exploração de várias configurações e funciona-
como envelopes de protecção. A ineficácia deste mentos do envelope psíquico, remete para um
funcionamento é inibitória da progressão e trabalho caracterizado por avanços e recuos,
coloca S. face a uma representação de si equiva- construção e desconstrução, que ressalta através
lente a um “protótipo de como são as pessoas”, do processo-resposta Rorschach – de uma forma
limitada no seu ser e impossibilitada de realizar mais flexível e variada no caso de P. e com uma
o trabalho solicitado pela situação projectiva e instabilidade mantida no protocolo de S.
exigido pelo devir adolescente. O consumo de substâncias imiscui-se nestes
O externo, o grupo de “amigos de consumo”, processos, satisfazendo necessidades específicas
devolve uma imagem que S. não encontra junto de delegação de funções que o próprio Eu-pele
das “pessoas normais”, não fornece apoio ou não desempenha suficientemente bem. Num
continência suficientes para delimitar o Eu em caso, como elemento de verticalidade e pretenso
relação ao objecto familiar. A pseudo-pele “combustível” de criatividade (ou simbolização),
psíquica do objecto-grupo não oferece estabili- noutro como barreira de excitabilidade entre o
dade suficiente à delegação de funções ainda Eu e o objecto (alternativa à instabilidade da
(di)fundidas no espaço do objecto-materno. barreira de contacto).
Enquanto a indefinição um-dois sugere a No processo-resposta Rorschach, o símbolo
anulação de um autêntico espaço de individuali- pode encerrar múltiplos significados e sentidos,
dade, torna-se difícil construir o símbolo da e remeter para diferentes relações do sujeito
separação, cuja consequência fantasiada é a consigo próprio, com os outros, com as
laceração da pele comum a sujeito e objecto. substâncias, a compreender no contexto de
Conceber as funções do Eu-pele como processo individual.
ferramentas de interpretação do processo- Consideramos a vantagem em consubstanciar
-resposta Rorschach, permite recolher elementos a articulação dos conceitos de Eu-pele e
adicionais para a compreensão da relação entre o adolescência, nomeadamente numa perspectiva
Eu e o Outro. Tendo como eixos de referência as normativa, sob o enfoque da metodologia
dimensões da representação de si e da represen- projectiva, antes de tentar aprofundar as relações
tação da relação, estabelecem-se, assim, ligações entre o processo adolescente e o funcionamento
com uma leitura mais clássica do Rorschach, adictivo. Desta forma, sobressaíram associações
alargando as possibilidades clínicas deste que importaria explorar, nomeadamente: a
instrumento privilegiado na área da avaliação inflação do núcleo de manutenção, emprestado
psicológica. A análise do funcionamento de por algumas substâncias, num movimento de
manutenção e continente, principalmente, mas empoderamento; a autorização para formar e
também de pára-excitação, fornece-nos dados transformar (envelope continente-contentor)

316
concedida pelo consumo de alucinogénios; a restrição do conteúdo está associada a uma
contenção da angústia de contacto num envelope restrição do continente total – que, em certos
de pára-excitação (e eventualmente, de inter- casos, também implicaria a intervenção da
sensorialidade) fornecido por algumas subs- função de auto-destruição.
tâncias desinibidoras; a função dos estimulantes Por outro lado, seria interessante alargar o
na construção de uma barreira e fumo, autêntico conceito de operador dos processos de transfor-
envelope de protecção contra a diluição do Eu no mação, aqui associado à função de contentor,
Outro. explorando o carácter transformativo da função
Além destas interrogações sobre o sentido/ de pára-excitação, nomeadamente na passagem
/função de diferentes tipos de consumo para do espontâneo para o inquérito.
indivíduos no final da adolescência, o trabalho Propomos, ainda, que se explore como
com uma faixa etária restrita e elevada sugere a operam as funções do Eu-pele e que configu-
relevância de uma análise conjunta de protocolos ração dos envelopes psíquicos é expressa pelas
de adolescentes com várias idades e em Perserverações.
diferentes momentos do seu processo de Em relação às outras funções do Eu-pele
desenvolvimento. propostas por Anzieu – individuação, intersenso-
Sendo já controverso falar de dependência de rialidade, suporte da excitação sexual, recarga
substâncias na adolescência propriamente dita, libidinal, inscrição dos traços (e auto-destruição),
seria discutível fazê-lo em relação à puberdade. cujo estudo se chegou a considerar no âmbito
Não obstante, seria interessante estudar como se deste trabalho, sugere-se que sirvam como
vai movendo/alterando o sentido/função do pontos de partida para outros trabalhos baseados
consumo de substâncias psicoactivas ao longo na mesma metodologia.
dos movimentos do adolescer. Apenas um olhar Em suma, o referencial teórico estabelecido
clínico, num dado momento da vida de um por Anzieu, a aparente imprecisão das suas
sujeito, poderá dar conta desses sentidos. É esta definições é um apelo à exploração, ligação e
forma de acesso ao funcionamento psíquico, comunicação. O conceito de Eu-pele e das suas
aqui formulada na articulação entre o Eu-pele e o funções permite a exploração de uma multiplici-
Rorschach, que propomos seja transposta para dade de sentidos para a expressão do sujeito
outros momentos de desenvolvimento e através do Rorschach. Esta abertura, não só
psicopatologias. contribui para o desenvolvimento do corpo de
No que respeita às três funções do Eu-pele conhecimento que sustenta a utilização da
sobre as quais se desenvolveram os procedi- metodologia projectiva, como também fornece
mentos de análise, sobrevieram algumas elementos para uma melhor compreensão do
hipóteses que em seguida se discutem. sujeito psicológico, conquanto seja feita uma
Considera-se que a análise e interpretação leitura singular e contextualizada dos processos
dos protocolos teria beneficiado da cotação dos mentais que concorrem para a construção do
índices Barreira e Penetração (tal como é processo-resposta Rorschach.
preconizada e realizada por alguns autores como
Chabert, Roman e Emmanuelli), permitindo uma
apreciação mais completa e consistente de REFERÊNCIAS
alguns procedimentos propostos, em particular,
para o funcionamento continente-contentor. Anzieu, D. (1995). Le moi-peau. Paris: Dunod. (1ª
É essencial referir a importância de intersectar edição em 1985, Bordas)
os procedimentos de interpretação e significados Baudin, M. (2001). Empreintes de Didier Anzieu.
de cada uma das funções, pese embora aqui Psychologie Clinique et Projective, 7, 85-99.
surjam particionados. Neste sentido, questiona- Bégoin-Guignard, F. (1989). Enjeux de la symbolisation
se se as cotações Ad e Hd, interpretadas como à l’adolescence. Revue Française de Psychanalyse,
funcionamento de pára-excitação, não tradu- 6, 1755-1761.
zirão, também, uma confusão dos envelopes Bick, E. (1967/1991). A experiência da pele em relações
continente e pára-excitação, na medida em que a de objecto arcaicas. In E. B. Spillius (Ed.), Melanie

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Dias, C. A. (2004). Costurando as linhas da psicopato-
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Editores. RESUMO

Emmanuelli, M. (2001). Les processus de changement à


O conceito de Eu-pele, a estrutura e funcionamento
l’adolescence: Apports du Rorschach. Neuro-
dos envelopes psíquicos, em particular as funções de
psychiatrie de l’Enfance e de l’Adolescence, 49, 232-
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237.
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Importance et spécificité de leur articulation a clínico do Rorschach, como forma de acesso ao
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3-4, 482-521. de um sujeito. Neste sentido, a articulação entre o Eu-
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psychopathologie (pp. 687-726). Paris: Presses /função do consumo de substâncias psicoactivas ao
Universitaires de France. longo dos movimentos da adolescência.
Palavras chave: Adolescência, Eu-pele, Rorschach,
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Toxicodependência.
mecanismos adaptativos/defensivos nos Rorschach
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Marques, M.. E. (1991b). Transcrição no Rorschach das
expressões masculina e feminina da pré- ABSTRACT
-adolescência e da adolescência. Actas de
psicologia clínica (pp. 171-181). Lisboa: The Skin-Ego concept – on the psychic envelopes
Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica. structure and functioning, particularly on the
“holding”, “containing” and “protection against
Marques, M. E. (1996). Comunicação, interpretação e
stimuli” functions – served as a base for the
simbolização no/para o Rorschach. Análise
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Psicológica, 14(1), 39-44.
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Marques, M. E. (1999). A psicologia clínica e o analysis of the protocols of two drug addicted
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relevant to the expansion of Rorschach’s clinical
Marques, M. E. (2004). Avaliação psicológica do potential, as a form of access to psychic functioning, in
adolescente e o risco. (Artigo não publicado) a particular moment of a subject’s life. Therefore, the
Pinto, J. M. (2002). Adolescência e escolhas: À articulation between the Skin-ego and Rorschach
descoberta da singularidade. Coimbra: Quarteto might help clarify the meaning/function of the drug
Editora. use throughout the phases of adolescence.
Key words: Adolescence, Drug addiction,
Rausch de Traubenberg, N., Bloch-Laîné, F., Boizou,
Rorschach, Skin-ego.
M.-F., Martin, M., & Poggionovo, M.-P. (1988).

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