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Acupuntura sim,

sexo não!

Mais uma vez um projeto de lei caminhando no calor às vezes interesseiro e


corporativista de algumas instituições, mas principalmente interpretados à luz da mais
pura ignorância por grupos pouco comprometidos com o conhecimento e a razão, nos
deixa de cabelos em pé. Trata-se do “Ato Médico”, Projeto de Lei n.º 7.703-C de 2006,
do Senado federal, (PLS n.º 268/2002, na Casa de origem).

Não que eu ache desnecessário ou menos importante tal ato legislativo. Muito
pelo contrário! Nada mais justo regular tão nobre e imprescindível ofício. Mas, neste
caso, é a ignorância e pequenez moral de certos coletivos que me impressionam e
justificam o eriçamento capilar!

Falemos primeiro da pobre ignorância!

Desde que tomou vulto a proposição que visa regulamentar a profissão médica,
uma grande parcela de brasileiros se investiu da condição de rábula militante,
perturbando a todos com impropérios e achismos jurídicos que “embasam” suas teorias
estapafúrdias de que a Acupuntura ficaria impedida de ser exercida por profissionais
não médicos, quando da promulgação de tal lei. Dizem que o ato médico é uma ameaça
aos praticantes da arte milenar chinesa, principalmente por dois pontos específicos
(além de outros menos relevantes).

O primeiro, e mais crítico, seria a proibição do ato de puncionar.

É realmente muito triste ver que o simples desconhecimento de palavras, não tão
esdrúxulas, pode levar ao desespero! O substitutivo aprovado recentemente no plenário
da Câmara diz, in verbis:

Art. 4º São atividades privativas do médico:

...

III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos,


terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as
endoscopias;

...

§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer
das seguintes situações:

I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;


II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação,
drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;

III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.

Mais uma vez fico muito feliz que a atividade médica esteja finalmente sendo
normatizada, mas, PELAMORDEDEUS (!!!), punção não tem nada a ver com
Acupuntura. Nem nunca terá! A não ser que manobrem o vernáculo técnico em
benefício (ou malefício) de alguns!

Punção é sim um ato médico específico e bem definido. Basta uma rápida
consulta a um dicionário médico qualquer; mas tem que ser necessariamente um
dicionário médico, pois os coloquialismos, regionalismos, neologismos e as aplicações
literárias hoje já pacificadas em quase todos os dicionários genéricos podem atrapalhar
o entendimento de uma atividade técnica específica. Isto posto, segue verbete:

Punção

Intervenção que consiste em introduzir uma agulha, um trocáter,


a ponta de um bisturi, numa cavidade natural ou patológica, para retirar
uma parte do seu conteúdo com a finalidade diagnóstica (punção
exploradora) ou terapêutica (punção evacuadora), ou para nela
introduzir uma substância (medicamento, produto de contraste em
radiologia, etc.).

Dicionário Médico Andrei - 7ª Ed.

Acho que fica, então, bem claro o fato de que Acupuntura não tem nada a ver
com punção, uma vez que esta última tem por finalidade a transfixação da pele por
agulha própria de punção, oca (com orifício interno), tipo cânula, com o objetivo de
inserir alguma substância química (medicamentos, contraste, etc.) ou retirar alguma
substância biologia (sangue, pus, etc.). A agulha de Acupuntura, por sua vez, é também
bem específica, não tendo nenhuma semelhança com a de punção, e tem por finalidade
“entrar seca e sair seca”, sem inserir ou retirar nada do corpo humano. Portanto, mais
uma vez afirmo: punção e Acupuntura são atos distintos, bem definidos e sem nada em
comum.

O segundo ponto crítico e também constantemente questionado e debatido é o


ledo engano de que o DIAGNÓSTICO (!!!) passaria a ser uma exclusividade médica.
Ora, e não foi, mais ou menos, sempre assim? A definição de uma entidade patológica
catalogada em um livro chamado Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde, vulgo CID, sempre foi uma exclusividade médica.

Na verdade o legislador foi até bastante consciente quanto a esse quesito.


Vejamos o trecho específico no projeto de lei em questão:
Art. 4º São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;
...

§ 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano,


aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão,
caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios:
I – agente etiológico reconhecido;
II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.
§ 2º Não são privativos dos médicos os diagnósticos psicológico, nutricional e
socioambiental e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva
e psicomotora.
§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão
atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

Bom... ...para rápida e óbvia conclusão:

- Qual é o diagnóstico exclusivo do médico?

A formulação do Diagnóstico Nosológico... (Art. 4º, inciso I)

- E, para os efeitos desta lei, o que é Diagnóstico Nosológico?

Diagnóstico Nosológico é a determinação da doença que acomete o ser


humano... (Art. 4º, § 1º)

- E, também, para os efeitos desta lei, o que é uma Doença?

As doenças, para os efeitos desta lei, encontram-se referenciadas na


versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde. (Art. 4º, § 3º)

É claro que o Conselho Federal de Medicina não pode registrar a propriedade


intelectual da palavra DIAGNÓSTICO, comprando e fazendo valer o seu direito de uso
em todos os dicionários e textos do planeta Terra. Acho até que alguns membros da
categoria gostariam de ver a aplicação: Diagnóstico®. Mas isso é realmente impossível.
Afinal de contas até um mecânico faz diagnósticos! O que é e sempre foi exclusividade
médica é o DIAGNÓSTICO NOSOLÓGICO formal com base no CID.

Mas atenção, Acupunturistas de todo Brasil, a Medicina Tradicional Chinesa é


uma racionalidade médica tradicional bem distinta da Medicina Ocidental
Contemporânea e está alicerçada sobre outro saber e outros fundamentos. E isto já é
ponto pacífico até mesmo no ortodoxo meio acadêmico.
Desde a década passada vários pesquisadores e eminentes acadêmicos dedicam-
se ao reconhecimento e determinação de outros saberes médicos. A Professora Doutora
Madel Therezinha Luz, por exemplo, vem sedimentando o conceito de “Racionalidades
Médicas”, para significar um sistema lógico e teoricamente estruturado, dotado de seis
dimensões interligadas: uma cosmologia definida, uma doutrina médica, uma
morfologia, uma fisiologia ou dinâmica vital, um sistema diagnóstico próprio e um
sistema terapêutico.1i

Isso quer dizer, por exemplo, que informar para um paciente que ele está
gripado, ou mesmo resfriado, é incorrer em exercício ilegal da medicina (Art. 282 – CP)
e atentar contra o ainda não instaurado “Ato Médico”. Pois, apesar de pouco
específicos, os termos gripe e resfriado fazem parte do vernáculo médico convencional
e têm entidades patológicas específicas que o definem no CID. Mas um Acupunturista
nunca se permitiria fazer tal diagnóstico por demais reducionais. Para a Medicina
Tradicional Chinesa poderia ser uma invasão de vento frio, uma invasão de vento calor
ou uma invasão de vento secura. Tudo pautado em métodos de diagnóstico
completamente diferentes da Medicina Ocidental Contemporânea e sem a mínima
alusão ao CID.

Então onde está o problema?

Punção é sim uma atividade médica e o diagnóstico nosológico, como definido


no projeto de lei, também. E precisavam ser descritos com tal e regulamentados. Acho
até que não a margem nenhuma para dupla interpretação quanto a esse dois pontos.

E é preciso frisar que nada foi aprovado, em definitivo, ainda. O “Ato Médico”
ainda não é uma lei! O que aconteceu foi que apenas o texto do substitutivo desse
projeto de lei, que teve origem no Senado Federal, foi aprovado pelo plenário da
Câmara dos Deputados. Agora todo o projeto de lei deve retornar para a Casa de origem
(Senado) para que seja novamente apreciado em plenário. E só depois de aprovado
nessa próxima instância e após promulgação pelo Presidente da República é que o “Ato
Médico” passa realmente a vigorar.

Agora... ...para os que vivem apavorados pela má interpretação de tudo que


lêem ou pela total incompetência para entender textos em seu próprio idioma, fica aqui
o alerta: o sexo passará a ser uma “atividade” exclusiva do profissional médico. Isso
mesmo! Vejamos:

Art. 4º São atividades privativas do médico:


...

III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam


diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as
endoscopias;
...
§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por
quaisquer das seguintes situações:
...

III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.

Pelo que sei, o útero é um órgão interno. E... ...INVASÃO DE ORIFÍCIOS


NATURAIS DO CORPO é, no mínimo, uma baita margem sugestiva para duplas e
triplas interpretações!
Brincadeiras a parte, na verdade não duvido que, fora a parcela da sociedade
composta pelos sem interesse direto ou indireto no assunto e os que não se preocupam
em tentar entender melhor o que lêem, uma segunda parcela, a dos rastejadores
oportunistas de baixa moral, pode querer se valer de tamanho desentendimento, que
pode acometer até uma pequena parcela de “causídicos” menos comprometidos, para
sorrateiramente tentar apoderar-se do que não lhe pertence. Mas, aí, já “são outros
quinhentos”!

É preciso, por último, salientar que me refiro aqui, mais especificamente, ao


exercício da Acupuntura (na sua forma mais tradicional e independente) e não a outras
áreas da saúde. Apesar de muitos dos pontos aqui abordados serem comuns a todas elas,
é bem possível que o referido projeto de lei possa, num primeiro momento, e por outros
pontos, vir a causar algumas complicações práticas no exercício dessas outras
profissões. E aproveito o ensejo para me manifestar solidário a todas elas, caso isso se
consubstancie realmente num fato. Mas ainda acho que esses “outros” pontos críticos
que poderiam atingir o cotidiano desses coletivos de saúde não-médicos acabariam por
trazer muito mais problemas para a própria medicina em si, fazendo recair sobre o
costado dos médicos atribuições que há muito não lhes são comuns ou que nunca foram.
E eu duvido que estes mesmos as assumissem de bom grado, com a devida presteza e
proficiência imediata!

Paz profunda e saúde a todos!

Ricardo Antunes
Diretor da Escola Nacional de Acupuntura – ENAc

i
1 - LUZ, Madel Therezinha (2000). Medicina e Racionalidades Médicas: Estudo comparativo
da Medicina Ocidental Contemporânea, Homeopática, Tradicional Chinesa e Ayurvédica. in
Ciências sociais e saúde para o ensino médico. A. M. CANESQUI: São Paulo,
HUCITEC/FAPESP.

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