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Banca Examinadora:

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Dissertação defendida e aprovada em _____/_____/_____.


São Paulo/SP
Esta dissertação verifica as características da construção narrativa que possibilitam à
produção midiática audiovisual transitar entre diferentes meios. O estudo foi feito sobre a
obra “O Auto da Compadecida” dirigida por Guel Arraes para a televisão em 1999, e sua
montagem cinematográfica, realizada em 2000. Através de uma análise descritiva, foi
possível observar três componentes narrativos: o roteiro, a imagem e a montagem das
produções realizadas tanto para a televisão quanto para o cinema. As teorias do hibridismo e
da multiplicidade, tão bem traçadas por Arlindo Machado, Raymond Bellour e Lúcia
Santaella, bem como as teorias de roteiro e montagem propostas por Doc Comparato, Syd
Field, Graeme Turner, Maria de Fátima Augusto, Ken Dancyger e D. W. Griffith, deram o
direcionamento na realização da pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo. A pesquisa foi
fundamental para a reflexão do que foi aqui considerado como narrativa intermultimidiática
ou audiovisual contemporânea, um estilo de produção que graças ao experimentalismo
utilizado nos principais componentes narrativos, confere ao produto uma condição de
adaptação aos diversos meios, em especial à televisão e ao cinema. Foi conferido também na
produção o uso das células dramáticas – que são aqui definidas como histórias com início,
meio e fim, inseridas dentro da história central, que podem ser manuseadas como blocos,
compondo diferentes montagens a partir do mesmo roteiro e mesma filmagem. A pesquisa se
mostra relevante diante das inovações percebidas nas atuais produções audiovisuais, que estão
modificando a maneira de fazer e a maneira de perceber as produções audiovisuais atuais,
bem marcadas pela inter-relação entre as técnicas e meios.

Palavras-chave: Guel Arraes; O Auto da Compadecida; narrativa audiovisual contemporânea;


célula dramática; montagem.
This dissertation verifies the narrative construction characteristics which allow the
mediatic audiovisual production transitate along different media. The study was developed on
the audiovisual production called “O Auto da Compadecida”, an originally TV production
made in 1999 and cinematographically edited in 2000, directed by Guel Arraes. Through a
descriptive analysis it was possible observe three narrative compounds: the script, the image
and editing, used for both television and movie production. The hybridism and multiplicity
theories so well structured by Arlindo Machado, Raymond Bellour and Lucia Santaella, as the
script and editing theories proposed by Doc Comparato, Syd Field, Graeme Turner, Maria de
Fátima Augusto, Ken Dancyger and D. W. Griffith gave the path for the qualitative
bibliographic research. This research was fundamental for the reflection of what was
considered here as contemporary audiovisual or intermultimidiatic narrative, a production
style that gives the product a various media adaptation condition, specially television and
cinema, thanks to the experimentalism used on the main narrative compounds. It was also
analyzed the use of dramatic cells – here defined as stories with beginning, development and
end, inserted into the main story, witch can be handled as sketches, composing different
editions from the same script and same setting. The research shows its relevancy facing the
innovations detected on the recent audiovisual productions, witch are changing the way of
understanding the actual audiovisual productions, well defined by its inter-relation between
techniques and the media.
- Ao meu Vôzinho, que tantas coisas me ensinou e de quem tantas coisas herdei, com muitas
saudades... E minha avó, por todas as suas orações.
- A Gêra, minha mãe, de quem aprendi a ser filha.
- A minha querida família Dó, Re, Mi: Pai, Cida, Thuga e Barbarela – pela paciência e vários dias de
ausência.
- Aos How, minha segunda família, por todo amor e carinho, mesmo estando tão distante.
- A Pam e Allan, pelo carinho no início da minha nova jornada.
- A Joli, por absolutamente TUDO.
- Ao meu grande amigo, co-orientador, incentivador e “negão” Lê, que me acompanhou e ajudou
nesse ritual de passagem.
- A Professora Luciana Borges, que me mostrou o caminho da vida acadêmica.
- A minha amada Professora Noemi, eterna coordenadora pedagógica, a quem devo muito,
especialmente o incentivo para iniciar o mestrado.
- A UNIC, em especial a pessoa do Professor Alexandre Frigeri, diretor e amigo, por toda a ajuda,
paciência e apoio nesse período tão importante da minha vida.
- Aos meus queridos alunos da UNIC, com quem aprendo muito a cada dia.
- Aos amigos e também Professores da UNIC: Ilso - que me ajudou a montar a primeira versão do
projeto de pesquisa, Ao Rey – por sua amizade e apoio incondicionais, Ao Maurídes, Emanuel,
Haroldo, Evandro, Selma, Luiz, Ilze, Regina e Simone – por sua torcida, A querida Bena, que realizou
a primeira leitura e a primeira correção deste trabalho.
- Ao Di, por sua amizade.
- A cidade de São Paulo e a PUC, pelo acolhimento e grande ensinamento.
- A Professora Leda Tenório, que despertou tantas paixões.
- A nossa grande Cidinha, secretária, conselheira e amiga, sempre me ajudando a ficar mais
fortalecida a cada nova fase.
- Ao Professor Arlindo Machado, por acolher minha dissertação e ter tanta paciência comigo.
- Aos Professores Rogério Ferraraz e Christine Mello, por concederam seu tempo e conhecimento,
ajudando no desenvolvimento desse trabalho tanto na qualificação quanto em sua finalização.
- Ao Guel Arraes por seu trabalho tão sedutor.
- A Nossa Senhora, a grande Compadecida.
- Ao meu anjo da Guarda, amigo inseparável.
- Ao meu eterno aluno Luciano Marino pelo layout e diagramação.
- Ao Dr. João Fernando, por me pôr para cima nos momentos mais difíceis.
- As minhas amigas, Samantha, Gisele, Claire, Andréa, Janã, Nel, Keiko e Verónique, pelo apoio e
paciência em minhas ausências.
- A Professora Eliete Hugueney de Figueiredo, que revisou essa dissertação.
“Aprender a pensar com as imagens – mas também com as palavras e os
sons, pois o discurso das imagens não é exclusivista e sim integrador e multimídia –
talvez seja a condição sine qua non para o surgimento de uma verdadeira e legítima
civilização das imagens e do espetáculo”. (Arlindo Machado, 2001)
O cenário midiático tem sofrido muitas mudanças. O surgimento de novas mídias1 e a
evolução das tecnologias são alguns pontos influenciadores desse processo de transformação
que possibilitou o desenvolvimento de produções intermultimidiáticas2 ou audiovisuais
contemporâneas3.

O surgimento de novas mídias sempre intimidou aquelas já existentes. Assim foi com
o livro e o surgimento do jornal, a fotografia e o cinema, o cinema e o vídeo4, citando as de
maior abrangência. Porém, o que o tempo tem demonstrado é que, ao invés da previsão de
uma mídia extinguir a outra, elas estão adquirindo um caráter de intercomplementariedade.
Isso não significa que não haja uma competição entre as mídias, e sim que, apesar dela, há
uma tendência de se criar redes, em que cada mídia, graças a sua natureza, possui uma função
diferenciada na emissão das mensagens5. “Quando uma nova mídia surge, geralmente provoca
atritos, fricções, até que gradativamente as mídias anteriores vão, com o passar do tempo,
redefinindo as prioridades de suas funções” (SANTAELLA, 2003, p.40).

O “diferente” é a característica técnica de cada meio, que imprime à mensagem


veiculada aspectos de profundidade, simultaneidade e interatividade, criando uma mobilidade
da mensagem, evidenciando um dos principais pilares da cultura das mídias. Quanto maior o
número de mídias, maior o leque de opções e pontos de vistas em cima da mesma informação,
possibilitando ao receptor uma absorção mais consciente da mensagem, pois ele possui, à sua
disposição, múltiplas interpretações. Segundo Santaella (2003),

1
Todo suporte de difusão da informação que constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir
mensagens.
2
O termo usado aqui foi renomeado ampliando o conceito proposto por Santaella (2003: 43) de que as
mensagens produzidas pelas mídias se organizam no entrecruzamento e na inter-relação de diferentes códigos de
processos sígnicos diversos, compondo estruturas de natureza altamente híbrida.
3
Termo utilizado por Bezerra em seu artigo Bakhtin e a estética audiovisual contemporânea, referindo-se as
produções que se organizam no trânsito de linguagens entre os meios.
4
Termo usado para designar as imagens codificadas em linhas sucessivas de retículas luminosas, incluindo-se a
televisão, segundo Arlindo Machado, 1988.
5
Fato que não modifica a proposta de Mcluhan de que o meio é a mensagem, ou seja, “as conseqüências sociais
e pessoais de qualquer meio... constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou extensão de nós mesmos”, pois a “mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de
escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas”, segundo McLuhan..
“A audição de uma notícia no boletim radiofônico, por exemplo, na maior parte das
vezes, desperta a curiosidade do ouvinte, levando-o a buscar o noticiário da TV em busca de
maiores detalhes e, principalmente, das imagens vivas da notícia para a qual foi despertado.
Assim também, o noticiário noturno da TV, muitas vezes, leva o espectador a buscar o jornal
impresso do dia seguinte na expectativa de encontrar nele esclarecimentos e maior
detalhamento analítico e interpretativo” (p. 37 e 38)

Quanto mais as mídias se diferenciam entre si, mais os meios vão aprendendo o que as
novas mídias trazem e descartando o que passa a ser obsoleto. Um meio está absorvendo o
que o outro tem de melhor, tanto em técnica quanto em tecnologia. Pode-se observar
claramente o rompimento com as formas fixas e classificatórias. A interseção entre vídeo,
literatura, cinema, teatro, computação gráfica e quadrinhos está mais presente nas produções,
o que dificulta cada vez mais a classificação dos trabalhos em gêneros e linguagens
específicas. Christine Mello (2005), em seu artigo “Extremidades: desconstrução,
contaminação e compartilhamento do vídeo no Brasil”, analisa os deslocamentos e os
movimentos híbridos do vídeo em três pontas extremas: A desconstrução – em que há a
negação do meio e em seguida a expansão dos seus limites criativos; a contaminação – em
que há o diálogo do vídeo com outras linguagens, possibilitando associações com outros
processos comunicativos; e o compartilhamento – em que há uma completa descentralização
da linguagem do vídeo. Nessa extremidade o vídeo se constitui em um “campo
desterritorializado e nômade”. A proposta de Mello pode ser expandida também à análise das
outras mídias.

Essa miscelânea está reinventando as mídias, a maneira de fazer as produções e a


maneira de receber. Arlindo Machado (2005), em seu artigo “Convergência dos Meios”
(2005), propõe uma visão da cultura como um mar de acontecimentos e que, para efeito de
visualização e argumentação, dá aos meios de comunicação a forma de círculos que compõem
esse mar. Segundo ele, os círculos definem os meios e possuem bordas de fronteiras
transponíveis, denominadas zonas de interseção, com uma concentração crescente e variante
da borda para o núcleo. Elas permitem que os conceitos passeiem de um círculo ao outro.

Durante muito tempo, os meios e seus críticos, inclusive os mais elitistas, que
defendiam a pureza e a supremacia de um meio em particular, trataram as mídias de forma
independente, como algo com características exclusivas e homogêneas. Mas os conteúdos dos
meios começaram a sair de suas limitações, permeando outros círculos, ou, conforme
Machado, os repertórios dos meios estão em expansão geométrica, redefinindo o pensamento
e a prática da mídia.

A expansão proporciona aos meios uma mobilidade e uma possibilidade de novas


modelagens. Eles perdem o formato engessado e entram em um processo de metamorfose e
metástase. As produções dos meios passam a ser mestiças, onde parte é fotografia, parte é
vídeo, parte é desenho, parte é cinema, parte é texto, aliados a um novo componente
modelador, a digitalização.

Para alguns estudiosos, como Wilson Dizard Jr. (2000), a mídia está passando por sua
terceira transformação, que:

“envolve uma transição para a produção, armazenagem e distribuição de informação e


entretenimento estruturadas em computadores. Ela nos leva para o mundo dos computadores
multimídia, compact discs, bancos de dados portáteis, redes nacionais de fibras óticas,
mensagens enviadas por fax de última geração, páginas de web e outros serviços que não
existiam há vinte anos. ” (p.53 e 54)

A mídia entrou na era digital, com todas as informações geridas e gerenciadas por um
sistema binário6. Ele registra valores que são atributos das coisas que estão a ser codificadas,
não analogias delas, o que torna a informação codificada de forma digital uma “matéria”,
pronta a sofrer todas as metamorfoses, a aceitando todos os envolventes e deformações. O
autor acima citado esclarece:

“Os sinais digitais necessários para telecomputadores e outras máquinas de alta


tecnologia são mais flexíveis. Baseados em dígitos binários, esses sinais não fazem qualquer
distinção entre transmissões de vídeo, som ou dados. Podem lidar com todos eles num único
fluxo, originando, armazenando, editando, transmitindo ou recebendo mensagens em
velocidades de computador cada vez maiores” (p. 66 e 67).

Dizard também evidencia que o mundo está passando por um “surto tecnológico”, e
que o ponto mais forte é a transição da tecnologia analógica para digital, o que aumenta as
possibilidades de interseções entre as mídias e suas intercomplementariedades. Mas esse fato

6
Termo utilizado por Lévy, 1993.
causa reações diversas nos seus receptores, dependendo do meio que utiliza para o seu
transporte e absorção. Fazer uma produção para o cinema ou vídeo pode ser indiferente, pois a
construção narrativa utilizada poderá ser a mesma. A diferença vai estar no receptor, ao
decodificar a mensagem, que em cada mídia utilizará diversos sentidos receptores, o que
produzirá efeitos psicofísicos e cognitivos distintos, tanto para uma mídia quanto para outra.

A inter-relação entre as mídias causa uma sinestesia que resulta em processos de


comunicação híbridos na sua estrutura, no seu conteúdo e na sua recepção. Hoje muitos
conteúdos são elaborados dentro de meios em que há uma constante convergência midiática e
de linguagens. Segundo Santaella (2003), as formas híbridas de linguagem

“...nascem na conjugação simultânea de diversas linguagens. Suas mensagens são


compostas na mistura de códigos e processos sígnicos com estatutos semióticos diferenciais.
Daí se poder afirmar que todas as mídias, desde o jornal, são por natureza intermídias e
multimídias” ( p. 43)

A expansão dos meios e, conseqüentemente, a hibridização de seus conteúdos e


linguagens permite observar o surgimento de um novo tipo de produção, composto por vários
signos e códigos que podem se adaptar a qualquer tipo de mensagem a ser produzida, assim
como a mensagem se ajusta a qualquer tipo de mídia a ser veiculada. Uma produção
camaleônica, com caráter intermídia e multimídia, classificada, aqui, como narrativa
audiovisual contemporânea.

A narrativa audiovisual contemporânea é constituída por componentes narrativos


híbridos que estão presentes no roteiro, na filmagem e na montagem. Essa miscelânea de
estruturas, formatos, gêneros e meios há muito tem despertado curiosidade. Entre os
estudiosos da convergência e expansão dos meios, pode-se citar Gene Youngblood (1970),
Raymond Bellour (1997) e Ivana Bentes (2003). Já entre os profissionais, trocas de técnicas e
mistura de linguagens, feitas em pequena, mas significativa escala, são realizadas desde a
década de 1960 por diretores como Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman e Frederico Fellini.
Mas, foi a partir de 1980, segundo Arlindo Machado (1997b, p. 240), que surgiu uma geração
eclética, que será detalhada mais adiante, com profissionais trabalhando simultaneamente em
diversos meios como cinema, televisão e vídeo. Essa nova geração passou a explorar de forma
mais intensa as possibilidades de junções.
No Brasil o grande “gerador” de cultura é a televisão. Por mais banalizado que o meio
esteja, por mais críticas que receba e por todos os abusos praticados, para a maioria dos
brasileiros ela exerce o papel de livro, cinema e teatro. Fato que se deve a diversos fatores e,
talvez, o principal deles, seja a grande extensão do país e sua diversidade cultural. Com um
alcance maior, custo muito mais baixo que os outros meios e uma maior rentabilidade aos
seus produtores, graças à publicidade que “patrocina” os programas, a TV obteve mais
incentivos, por motivos econômicos e políticos, chegando rapidamente a quase todos os lares
brasileiros, levando informação, entretenimento e cultura, em um processo que envolveu
todas as classes sociais.

A partir de 1980, as emissoras de televisão começaram a rever a sua programação,


buscando mais qualidade e identidade nacional, o que também foi percebido em outros
ambientes, como o teatro. Foi nesse momento que surgiu a nova geração de profissionais
citados por Arlindo Machado. De um lado os “filhos da televisão” (aqueles que cresceram
assistindo TV e posteriormente se dedicaram ao meio), do outro os “filhos do cinema”, alguns
que diante da crise do meio encontraram alento, boa receptividade e espaço para inovações na
televisão e no meio os que já visualizavam o enriquecimento cultural da miscigenação dos
meios. Dentre os pioneiros estão Cassiano Gabus Mendes (idealizador da TV de Vanguarda7,
novelista e criador de séries como Alô Doçura), Walter George Durst (diretor e roteirista da
TV de Vanguarda e autor de adaptações para a televisão como Gabriela, Memórias de um
Gigolô, Anarquistas graças a Deus e Grandes Sertões Veredas) Walter Avancini (diretor que
escreveu novelas como A indomável e dirigiu novelas, como Gabriela, e especiais, como
Anarquistas graças a Deus), Daniel Filho (participou do Cinema Novo8, dirigiu novelas como
Irmãos Coragem, Pecado Capital e Dancin` Days. Realizou séries como Malu Mulher,
Confissões de Adolescente e Mulher. Ajudou a criar a Globo Filmes9,

7
Produzido pela TV Tupi, de 1952 a 1967, o TV de Vanguarda foi uma das mais arrojadas tentativas de se fixar
uma linguagem televisual ao tentar reproduzir na tela, uma estética cinematográfica. A utilização de metáforas e
redes metafóricas detectáveis por intermédio da repetição, de formas de insistência ( primeiros planos,planos
longos, ângulos insólitos,ou de ampliação ( deformações visuais, aumentos, efeitos sonoros etc) da imagem não-
diegética, à figura diegetizada, isto é, plenamente integrada no mundo representado; tudo isso eram recursos de
uma cartilha fílmica que foram assimilados pelos diretores de TV.
8
O cinema novo é a versão brasileira de estéticas cinematográficas nascidas após a II Guerra Mundial, como o
neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa, que contestavam as grandes produções da época, o
artificialismo, e se recusavam a ser apenas diversão. Primeira experiência importante no cinema do terceiro
mundo, pretendia promover a discussão política com filmes que enfocavam problemas sociais.
9
A empresa Globo Filmes foi criada no final de 1997 para dar continuidade à estratégia estabelecida pela TV
Globo de ampliar a participação da empresa nas áreas de comunicação e entretenimento. Seus principais
objetivos são: reforçar a indústria brasileira audiovisual unindo-se ao esforço dos produtores e realizadores
além de diretor de Programação da TV Globo, dirigiu filmes como A Partilha e Se Eu Fosse
Você).
Entre os mais novos, destacam-se primeiramente, Sandra Kogut (que trabalha com
simultaneidade e mestiçagem dos meios, desde 1984 realiza performances, programas de TV,
vídeos e filmes publicitários. Um dos destaques de seu trabalho é Parabolic People), João
Moreira Salles e Walter Salles (iniciaram seus trabalhos com documentários. Realizaram
importantes projetos para a TV como a série Japão, uma viagem no tempo. João continua
fazendo documentários como Notícias de Uma Guerra Particular e Walter migrou para a
ficção levando a base documental. Dentre seus principais trabalhos estão Central do Brasil e
Abril Despedaçado). Outros destaques são Jorge Furtado (um dos criadores da Casa de
Cinema POA10, roteirista e diretor de TV e Cinema. Dentre seus trabalhos estão os filmes O
Homem que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara), Marcelo Tas (que participou da criação de
programas inovadores na TV brasileira como Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum e Vitrine. É
um dos membros fundadores da produtora independente Olhar Eletrônico), João Falcão (que
faz roteiros para o teatro, TV e cinema. O Auto da Compadecida, A Comédia da Vida
Privada, Sexo Frágil e A Dona da História figuram entre seus trabalhos) e Guel Arraes
(criador, autor, produtor e diretor de teatro, TV e Cinema) nomes que deram uma grande
contribuição ao desenvolvimento audiovisual brasileiro.

Dos profissionais citados, destaca-se Guel Arraes, que em 1999 gravou a minissérie O
Auto da Compadecida, sendo lançada também no cinema em 2000. Miguel Arraes de Alencar
Filho nasceu no estado de Pernambuco e teve a vida tumultuada quando no ano de 1964 o seu
pai, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, foi cassado e exilado pela ditadura por
conta de suas atividades políticas. Arraes ficou cinco anos morando no subúrbio de Recife
sem ver o pai e, em 1969, desembarcou na Argélia junto com os irmãos para reencontrar o
pai.

nacionais, através da produção ou co - produção de uma carteira de filmes que primem pela qualidade e valor
artístico, e aumentar a sinergia entre cinema e TV.
10
A Casa, criada em 1987, já foi uma cooperativa de 11 realizadores reunidos em 4 pequenas produtoras,que
passaram a ter um espaço comum para trabalhar a distribuição dos filmes já realizados e o planejamento e
realização dos próximos projetos, hoje é uma produtora independente, com 6 sócios.
Na Argélia, as diferenças culturais o levaram a se refugiar nos livros e a vivenciar
intensamente as discussões políticas que faziam parte do cotidiano de sua casa. Após três
anos, mudou-se para Paris e cursou Antropologia na Universidade de Paris VII. Arraes iniciou
seu aprendizado em cinema com um amigo de seu irmão mais velho, que fazia filme em
super-8. E foi assim, sem grandes pretensões, que começou a sua carreira. Ingressou no
Comitê de Filme Etnográfico, que era dirigido por Jean Rouch, mestre do Cinema Verdade11,
trabalhando como projecionista, arquivista e montador e chegando a ter uma breve
experiência como Assistente de Jean-Luc Godard. Seus primeiros trabalhos foram
documentários gravados em super-8. Dirigiu quatro curtas e um media-metragem, intitulado
Barbes Palace, em parceria com Ricardo Lua em 1979, mesmo ano em que retornou ao
Brasil.

Em 1981, Guel Arraes foi convidado para um estágio na televisão pelo diretor Paulo
Ubiratan. O que iria ser mais uma experiência antes de começar a fazer cinema, o seu grande
sonho, já dura mais de 20 anos. Em entrevista à revista SET em 2001, Guel Arraes mencionou
que a televisão foi muito generosa com ele, onde fez os filmes que quis e que, considerando
que no Brasil, a televisão é uma produtora tão boa, sempre se perguntava o que teria feito se
estivesse o mesmo período no cinema.

A marca registrada de Arraes é a linguagem ultraveloz, carregada de humor, que salta


aos olhos e ouvidos. Esse perfil surgiu da necessidade de mostrar serviço após seu início na
TV com as novelas, que possuem por natureza, um ritmo de lentidão. São características do
seu trabalho a dinâmica da encenação, a interpretação caricatural, a releitura de clichês e o
hibridismo de formato e gênero.

O estilo Guel Arraes reúne o uso de planos curtos e uma edição ágil, a mistura de
elementos ficcionais e não-ficcionais. Explora recursos técnico expressivos do sistema linear
– cortes, fades, fusões, e etc. – e os processamentos digitais das imagens em sistema não
linear – controle de cor, recortes, colagens, etc. Conforme Fechine (2003), Arraes possui um
tipo de montagem em que o sentido das seqüências, editadas a partir de cortes sempre muito
rápidos, depende das associações e contraposições criadas pelo modo como relaciona recursos
gráfico-visuais e sons com a mise en scène dos atores num contínuo jogo de

11
Método de trabalho de documentário
intertextualidade com outros meios (cinema, quadrinhos, teatro, etc). São recorrentes no
trabalho de Arraes as similaridades temáticas, a repetição de elementos do seu estilo visual
nos diferentes trabalhos, bem como o uso e abuso das cores fortes e vibrantes. Ele é um
mestre na liberalidade e audácia da experimentação.

A velocidade na produção lhe permite um controle de praticamente todos os elementos


inerentes ao processo de trabalho. Ele possui um controle do ator até o ponto em que um
diretor deve controlar e em sua atuação, mostra que possui o domínio de todos os âmbitos do
set de filmagem, estando atento a todos os detalhes.

Nas gravações de O Auto da Compadecida, chegou a rodar setenta planos por dia, um
ritmo alucinante de produção, o que exige perfeita sintonia do diretor com a sua equipe. Guel
Arraes ensaia tudo com muita antecedência e na hora da ação, se transforma em uma espécie
de “crooner”12, entrando em perfeita sintonia com toda a equipe e atores.

A distância de Guel Arraes em seu período de exílio do país não o afastou das suas
raízes nordestinas. As sandálias de couro e o sotaque fazem parte do seu cotidiano, assim
como o gosto por histórias ambientadas no nordeste, de onde ele resgata com muita maestria o
humor e a forma mais leve de viver.

Como criador, produtor e diretor, Guel Arraes é um dos nomes mais ligados à
renovação da dramaturgia e humor na televisão brasileira. Desde o seu início na TV renovou
as bases do humor e da comédia. Em 1993 deu início ao Projeto de Dramaturgia Especial,
voltado para inovadoras adaptações de clássicos da literatura e do teatro. Seus principais
trabalhos foram:

1981 – Jogo da Vida (direção juntamente com Jorge Fernando e Roberto Talma)
1982 – Sétimo Sentido e Sol de Verão (direção juntamente com Jorge Fernando e Roberto
Talma)
1983 – Guerra dos Sexos (direção juntamente com Jorge Fernando)
1984 – Vereda Tropical (direção juntamente com Jorge Fernando)
12
Cantor de música popular que canta com orquestra ou conjunto instrumental.
1985 / 1988 – Série Armação Ilimitada
A série jovem inovou a linguagem televisiva no Brasil, fazendo uso do humor satírico e do
tom surreal conferido a algumas cenas, sendo considerada uma das mais completas traduções
das histórias em quadrinhos para a televisão no Brasil, com balões, recorte de quadros, edição
clipada, recorte de cores, citações da cultura pop, som, fúria e estilos de vida incomuns.

1988 / 1990 e 1992 – Série TV Pirata


Programa humorístico que tinha a proposta de satirizar a televisão brasileira. Além de um
elenco fixo com nomes como Cristina Pereira, Ney Latorraca, Diogo Vilela, Regina Casé,
Marco Nanini e Denise Fraga, possuía a colaboração nos textos de nomes como Mauro Rasi,
Luis Fernando Veríssimo, Patrícia Travassos, Vicente Pereira, Pedro Cardoso, Felipe Pinheiro
e os atuais ‘Cassetas’ Humbert, Bussunda, Cláudio Manoel, Reinaldo, Hélio de La Pena, Beto
Silva e Marcelo Madureira. Em 1988 ganhou o prêmio da APCA de melhor humorístico e, em
1990 foi escolhido melhor diretor e Diogo Vilela eleito melhor comediante no mesmo prêmio.

1991 – Série Dóris Para Maiores


O programa não foi dirigido por Arraes, mas foi criado, produzido e dirigido pelo núcleo Guel
Arraes (coordenado por Arraes), que é formado por roteiristas, atores, técnicos, produtores e
diretores.

1991 – Série Programa Legal


O programa era uma mistura inovadora de ficção, documentário, humor e jornalismo.

1993 – Projeto de Dramaturgia Especial


O ano marcou o início de uma série de adaptações inovadoras dos clássicos da literatura e do
teatro como Memórias de um Sargento de Milícia’, O Besouro e a Rosa, O Mambembe,
Lisbela e o Prisioneiro, O Coronel e o Lobisomem.

1994 / 1997 – Série Comédia da Vida Privada


Inspirada na obra homônima de Luis Fernando Veríssimo.
1999 – Minissérie O Auto da Compadecida
A minissérie também fez parte do Projeto de Dramaturgia Especial e foi adaptada da peça
teatral de mesmo nome de Ariano Suassuna, mas teve o acréscimo de personagens e episódios
de mais três peças do mesmo autor: ‘A pena e a Lei’, ‘Farsa da Boa Preguiça’ e ‘O Santo e a
Porca’. A minissérie foi rodada em película.

2000 – Minissérie A Invenção do Brasil


Minissérie criada em parceria com Jorge Furtado para a comemoração dos 500 anos de
descobrimento do Brasil. Foi rodada em HDTV.

Outras séries dirigidas ou supervisionadas por Guel Arraes foram: Os Normais, Brava Gente e
A Grande Família.

2000 – O Auto da Compadecida


Adaptada para a televisão, a série rodada em película foi editada e se transformou em filme.
Essa foi a terceira adaptação audiovisual da peça. Na década de 1960, George Jonas fez a
primeira adaptação para o cinema e, na década de 1980, Roberto Farias fez a segunda,
contando com a participação dos Trapalhões. O filme recebeu vários prêmios, dentre eles o de
melhor longa-metragem, no 5º Festival de Cinema Brasileiro de Miami, melhor diretor,
melhor roteiro e melhor ator no Grande Prêmio Cinema Brasil.

2001 – Caramuru - A invenção do Brasil


O primeiro filme rodado em HDTV no Brasil. É uma comédia romântica histórica narrada em
tom de fábula. O filme, apesar de ser uma adaptação da minissérie ‘A Invenção do Brasil’
para o cinema, é mais leve e mais popular.

2003 - Lisbela e o Prisioneiro


O Filme descrito como uma ‘comédia de erros’, foi baseado na obra homônima de Osman
Lins. A primeira adaptação da obra feita por Guel Arraes foi para o Projeto de Dramaturgia
Especial para a TV. Em seguida, ele montou e dirigiu a peça para o teatro e agora a adaptação
foi feita para o cinema, resultando em um filme leve e divertido.
Um dos grandes exemplos da construção narrativa intermultimídia é a obra O Auto da
Compadecida, de Guel Arraes. A obra, que se passa na cidade de Taperoá, foi gravada na
região do Cariri Velho, a 200km de João Pessoa, na cidade de Cabaceiras, uma das poucas
que mantém a arquitetura típica da década de 1920. O Auto retrata o sertão nordestino, seus
tipos, costumes, estilo de vida e luta para sobreviver à miséria e às armadilhas cotidianas de
ser pobre e sem recursos. Os protagonistas, João Grilo e Chico, são dois amigos inseparáveis
que fazem mil artimanhas para viver e tentar escapar das explorações dos mais ricos e
poderosos da cidade, como o fazendeiro, também conhecido como major, o padeiro, um
próspero comerciante, e os representantes da Santa Igreja Católica, o Padre e o Bispo.

Tecendo uma rede de mentiras e golpes de sorte, a história vai envolvendo todos os
personagens na busca pelo dinheiro e poder. A ganância e a esperteza dão um toque final,
promovendo um encontro no purgatório, tendo de um lado as portas do inferno e de outro os
ares do céu, sediando um julgamento, cujos atos dos réus dão pontos extras ao diabo. Somente
Nossa Senhora para compadecer e interceder pelos ali julgados, lembrando da mazela de ser
humano, de conviver com a fome e sobreviver à pobreza.

O Auto foi adaptado da obra de Ariano Suassuna. Todos os componentes narrativos


foram pensados para a realização de uma minissérie, que foi gravada em película visando a
qualidade do produto final. As gravações duraram 37 dias. Ao final das gravações, com o
material em mãos, Guel Arraes vislumbrou a possibilidade de uma versão para o cinema, que
acabou sendo lançado no ano de 2000.

Esta dissertação é composta de três capítulos e as considerações finais, além da


introdução. No primeiro capítulo, foi analisado o componente narrativo roteiro de O Auto da
Compadecida, que começa pela adaptação realizada da obra literária para o roteiro
audiovisual, passando pela análise dos personagens, pelo estudo e classificação da estrutura
do roteiro, a formação de duas obras audiovisuais com apenas um roteiro e termina com a
explicação do conceito aqui desenvolvido de células dramáticas e o seu uso no Auto.
O segundo capítulo evidenciou o componente narrativo imagem. Foi feito um estudo,
utilizando os conceitos de Graeme Turner, de como a mise-en-scène foi montada, dando
ênfase aos elementos de cenografia, figurino e caracterização, objetos importantes e as
relações espaciais. O estudo da cena foi dividido no uso de cena/seqüência, segundo os
conceitos de Marcos Rey e, contou também com a contribuição de Doc Comparato, que
ajudou a estabelecer uma análise dos diversos planos utilizados e suas aplicações na televisão
e no cinema. Há a citação das Histórias de Chicó e a análise do uso de Elementos ficcionais e
não ficcionais.

O terceiro capítulo abordou o componente narrativo montagem. Esse capítulo fez um


estudo sobre os métodos de montagem do Auto, utilizando como base os conceitos
Griffitinianos. Mostrou a importância do ritmo e clareza dramática para a compreensão da
história. Fez também uma análise dos gêneros utilizados, e falou sobre a narrativa linear e a
montagem não-linear.
1.1 – A adaptação

O roteiro de O Auto da Compadecida foi adaptado da peça teatral homônima de Ariano


Suassuna. A peça, escrita em 1927, foi baseada em romances populares anônimos do nordeste
brasileiro, como O Castigo da Soberba, O Enterro do Cachorro e História do Cavalo que
Defecava Dinheiro. Histórias simples e ingênuas, fruto da literatura de Cordel13, que povoam
o imaginário nordestino transmitindo o jeito de ser e viver das pessoas, contos que embalam
as crianças e que estão tão longínquos dos contos de fada presentes na infância das crianças
de outras regiões do Brasil.

A peça O Auto da Compadecida possui um enredo leve e contagiante, impregnado de


crendices, ‘causos’, maracutaias e muita fé. A história se passa na cidade de Taperoá, no
sertão da Paraíba. Na peça, há seis núcleos que regem a história. O primeiro é composto pelos
personagens principais João Grilo, um miserável sertanejo pobre, com uma inteligência
aguçada, mas sem perspectiva de uma vida melhor, e Chicó, medroso, cheio de ‘causos’,
melhor amigo e comparsa de João Grilo em suas armações.

O segundo núcleo é o da paróquia. Dele fazem parte o Bispo, de caráter arrogante,


presunçoso e cheio de soberba; o Padre João, cujo perfil é igual ao do Bispo, com a agravante
da preguiça. O Sacristão, que cheio de hipocrisia, conduz e rouba a igreja, e o Frade, herança
do antigo Bispo - mantido no cargo por consideração - o único com decência, moral e ética,
mas, uma pessoa figurativa e sufocada pela presunção do Bispo.

O terceiro núcleo é composto pelo padeiro e sua mulher. O padeiro, um homem avarento
que só pensa em ganhar dinheiro; e a mulher, esnobe e com duas fraquezas: bichos de
estimação e compulsão por adultério.

13
Publicações populares, geralmente em versos, assim chamadas pela forma como são vendidos os folhetos,
dependurados em barbantes (cordão), nas feiras, mercados, praças e bancas de jornal, principalmente das cidades
do interior e nos subúrbios das grandes cidades.
O quarto núcleo traz apenas o Major Antônio de Moraes, rico e poderoso fazendeiro
da região.

No quinto núcleo, estão Severino de Aracaju, cangaceiro, e um comparsa, chamado


apenas de Cangaceiro. Homens sem escrúpulos que vagueiam pelo sertão, roubando e
matando.

O último e sexto núcleo é o Céu, do qual fazem parte um demônio, o Encourado


(diabo), que aparece conforme uma crença do sertão nordestino: um homem moreno vestido
de vaqueiro, Nossa Senhora e Manuel, Jesus Cristo que vem como um homem negro.

A história de Suassuna começa com Chicó e João Grilo tentando convencer o Padre
João a benzer o cachorro de seus patrões, o padeiro e sua mulher. À custa de um testamento
inventado por João Grilo, o Sacristão enterra o cachorro em latim e todos na Igreja, com
exceção do Frade, recebem alguns contos de réis. Na consumação da partilha, entram em
cena, com objetivo de assaltar a igreja, Severino de Aracajú e seu comparsa. Salvando-se
Chicó e o Frade, todos acabam mortos aguardando julgamento, cujo promotor é o Encourado
(o diabo), o defensor é Nossa Senhora e o Juiz é Manuel (Jesus Cristo). Repleta de situações e
diálogos engraçados, especialmente com as armações de João Grilo, a peça é envolvente e
traz à discussão a pobreza, soberba e misericórdia.

O roteiro da adaptação para a minissérie foi escrito por Adriana Falcão, Guel Arraes e
João Falcão. Segundo Syd Field (1995):

“Adaptar” significa transpor de um meio para outro. A adaptação é definida como a


habilidade de fazer “corresponder ou adequar por mudança ou ajuste” – modificando alguma
coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma, que produz uma melhor
adequação. (p. 174)

A adaptação de O Auto da Compadecida foi baseada no livro homônimo de Suassuna


e em mais três outras peças do autor: ‘A Pena e a Lei’, ‘O Santo e a Porca’ e ‘A Farsa da
Preguiça’. Apesar da adaptação ter criado um roteiro original, basicamente todas as falas de O
Auto (peça) foram mantidas na íntegra. Há no roteiro da adaptação a inserção de outros
núcleos e outros personagens, vindos ou inspirados nas outras peças, deixando a história mais
ampla, mais detalhada e com um ingrediente novo, uma história de amor.

O roteiro foi adaptado para a produção de uma minissérie televisiva, com


aproximadamente três horas de duração. A minissérie fez parte do Projeto de Dramaturgia
Especial da Rede Globo de Televisão, que adaptou de forma inovadora vários clássicos da
literatura e do teatro para a televisão. Como a peça possui um tempo menor de duração que o
exigido por uma minissérie, foi necessário aumentar a história sem fugir do estilo narrativo
utilizado, trazendo elementos de outras histórias da cultura popular nordestina, optando-se,
assim, pelas peças do próprio Suassuna que, além da estrutura parecida, também se passam na
cidade de Taperoá.

A adaptação é composta por sete núcleos e praticamente todos os personagens


mantidos preservam suas características. O primeiro, assim como na peça, traz João Grilo e
Chicó, sem alterações. O segundo núcleo tem a participação apenas de Padre João e do Bispo,
ficando de fora os personagens Sacristão e Frade. O terceiro núcleo, da padaria, é composto
por Eurico, o padeiro, Dora, a mulher do padeiro e por Bolinha, a cachorra. O quarto núcleo,
que não está presente na peça, é o dos valentões da cidade. Nele, estão o Cabo Setenta,
delegado de polícia, e Vicentão, o homem mais valente de Taperoá. O núcleo fazenda, quinto
núcleo, traz o major Antônio de Moraes e sua filha Rosinha. O sexto núcleo é o dos
cangaceiros. O núcleo possui alguns cangaceiros comandados por Severino de Aracaju e seu
braço direito, o Cabra. E o último núcleo da adaptação também é o céu. Dele, foi extraída a
figura do demônio, presente no livro, e modificada a figura do diabo, que na peça é chamado
de Encourado. As figuras de Nossa Senhora e Emanuel (Jesus Cristo) permanecem.

A história do roteiro adaptado começa com a exibição de um filme na paróquia,


emprego de “bico” de João Grilo e Chicó. João, com sua astúcia, consegue emprego na
padaria para ele e Chicó. Um dia, após comer a comida dos “amarelos”14, Bolinha passa mal e
João Grilo e Chicó vão atrás de padre João para benzer a cachorra. Assim como na peça,
Bolinha morre e é enterrada em latim, após a “descoberta” do testamento, que beneficia o
padre e depois o Bispo. Dora, cujo marido já está desconfiado de seus casos extraconjugais,

14
Forma que Suassuna usa para designar o sertanejo, na história João Grilo e Chicó - caracterizando a pessoa
sem valor, quase moribunda - mantido no roteiro adaptado.
além de ser amante de Vicentão, seduz Chicó. A cena da perseguição dos amantes (Chicó e
Vicentão) por Eurico, foi adaptada da peça Farsa da Boa Preguiça.

Severino de Aracaju, disfarçado de mendigo (fato inspirado na peça Farsa da Boa


Preguiça) ronda a cidade. A polícia, comandada por cabo Setenta, chega na cidade após o
ataque dos cangaceiros. Ao mesmo tempo, chega de Recife, Rosinha, filha do major Antônio
Moraes. Na peça há menção de um filho do major, mas na adaptação Rosinha foi inspirada na
peça O Santo e a Porc’. Cabo Setenta e Vicentão (os valentões da cidade foram extraídos da
peça A Pena e a Lei) ficam apaixonados por Rosinha, que tem com Chicó um caso de amor à
primeira vista, fato também inspirado na peça O Santo e a Porca, assim como a armação
criada por Grilo para a concessão do casamento dos apaixonados pelo major Antônio Moraes
e o dote dentro do cofre em forma de porca, deixado para Rosinha por sua avó.

Através de uma de suas invenções, João Grilo arma uma disputa entre cabo Setenta e
Vicentão para provar quem é o mais valente, já que ambos querem o amor de Rosinha. Além
do duelo, há os presentes, ambos tirados de A pena e a Lei.

O fato de Grilo querer “transformar” Chicó em um valentão e, posteriormente, se


vestir de Severino, é uma criação livre dos roteiristas, assim como dar mais personalidade ao
Cabra de Severino.

Após a confusão na igreja, morte de alguns, ressuscitação de Grilo, casamento de


Chicó e Rosinha, e expulsão dos três da fazenda pelo major Antônio Moraes, eles se
encontram com Jesus, em pele de um homem negro disfarçado de mendigo pedindo uma
esmola, fato inspirado na Farsa da Boa Preguiça.

A adaptação consegue manter a originalidade da peça de O Auto da Compadecida,


apesar de estar envolta em outras ações como brigas de valentões, perseguições de amantes e
casos de amor.
1.2 – Os Personagens

Como visto, no roteiro adaptado de O Auto da Compadecida, existem personagens que


não estão presentes na peça. São personagens retirados de outras peças de Suassuna. Há o
caso também de personagens que ganharam mais vida na adaptação, receberam nome e uma
composição repleta de características peculiares. Os próprios protagonistas ficaram mais
profundos.

é o protagonista na peça e um dos protagonistas na adaptação. É um


personagem caricato, de características físicas típicas do sertão nordestino. Baixo, moreno,
ligeiramente vesgo, dentes amarelados e com um sotaque bem carregado. Um homem pobre,
retirante sem família e de poucos amigos, aliás, seu único amigo é Chicó. Dono de uma
inteligência aguçada, preconceituoso e com o dom da manipulação, ambiciona mudar de vida,
ser rico e não ter que ser mais explorado ou ter que ficar vagando pelo sertão. É cheio de
preconceito racial. No roteiro adaptado, há um aumento de seu convívio com outros
personagens. É um anti-herói cujas armações repletas de histórias são enriquecidas aguçando
o tom de sátira da obra.

é o melhor amigo de João Grilo e, como ele, é um anti-herói. Ganha na


adaptação o status de protagonista. Possui um ar bobo, até mesmo infantil. É também um
retirante nordestino pobre, sem família e amigos. Seu traço marcante é ser extremamente
medroso e contador de “causos” mirabolantes. Ganha mais espaço na trama e vive um caso de
amor quase impossível com Rosinha. Participa e ajuda Grilo em todas as suas armações.

é a filha do major Antônio Moraes. Essa personagem não existe na peça. Ela
substitui o filho do major, apenas citado na peça, que está doente e vai de Taperoá para o
Recife fazer tratamento, e ganha espaço na história. A moça mora no Recife e quando chega
em Taperoá encanta a todos os homens com sua beleza e formosura. Vive um caso de amor à
primeira vista com Chicó. Rosinha precisa driblar o pai, que decide arrumar um casamento
com um homem rico e doutor para ela. É um personagem secundário inteligente e sensível,
que desenvolve um forte elo de ligação com João Grilo e Chicó.
é o homem mais rico da região. Personagem secundário que
ganhou mais espaço na adaptação. Homem alto, sério e que não faz questão de agradar
ninguém. Mora em uma fazenda próxima a Taperoá, e seu poder se faz presente até mesmo na
igreja.

não está presente na peça.Ele é o homem que comanda a polícia local..


É um dos valentões da cidade. É um personagem secundário que se apaixona por Rosinha e
disputa o seu amor e a honra de sua valentia com Vicentão.

também não está presente na peça. Na adaptação, é um personagem


secundário com um ar bem caricato de cabra macho do sertão, que pra tudo “puxa” a peixeira.
É amante de Dora, a mulher do padeiro. Fica apaixonado por Rosinha e tenta conquistá-la
através da fama de sua valentia.

é o padeiro, um dos homens mais avarentos do nordeste. É um dos antagonistas


da história. A única pessoa por quem tem caridade é sua mulher Dora. Muito ciumento e
desconfiado, vive tentando pegar Dora no flagrante de adultério. Eurico e Dora são os piores
patrões de Taperoá.

recebeu este nome na adaptação. Ela está presente na peça, mas aparece apenas
como a mulher do padeiro. Sua personagem, que é uma antagonista, foi trabalhada de maneira
mais rica na adaptação. Mulher bonita e vaidosa possui três fraquezas, os animais de
estimação, dinheiro e um homem bravo. Entre os seus casos extraconjugais estão Vicentão e
Chicó.

é o nome da cachorra de estimação de Dora. Na peça o cachorro de Dora é


macho e se chama Xaréu. Apesar de sua curta participação, na adaptação, Bolinha é o agente
que introduz a exposição do problema.

é outro antagonista da história. Seu personagem, já bem trabalhado na peça, não


sofreu nenhum tipo de adaptação. Homem alto, arrogante e com semblante fechado, cheio de
caridade com os ricos e completamente soberbo com os pobres.
teve sua personalidade um pouco alterada na adaptação. Adquiriu parte
das tarefas do sacristão, mas recebeu um toque de humanização. Baixinho e até mesmo
simpático, padre João é outro antagonista. Não chega a ser soberbo, mas é movido pelo
interesse.

é um dos personagens mais caricatos. Inspirado na figura de


Lampião, o chefe dos cangaceiros é alto, forte, destemido, sem piedade e possui apenas um
olho. Apesar de seu estilo de vida, é muito temente a Padre Cícero e Nossa Senhora. É o
último dos antagonistas.

é o braço direito de Severino de Aracaju. Apenas citado na peça, tem uma


participação maior na adaptação. Vive como cangaceiro, apesar de não gostar de matar, e é
muito leal ao capitão (Severino). Seu personagem é um componente dramático de ligação.

, chamado de Encourado na peça, é um componente dramático de solução.


Implacável e louco por mais almas no inferno, é o promotor do julgamento. Sua aparência foi
mudada apresentando um misto de bem e mal. Alto, de face branca e olhos claros, mostra sua
verdadeira face monstruosa apenas em alguns momentos.

ou Jesus Cristo vem para o julgamento no papel de juiz. A fim de causar


impacto nos que sofrem de preconceito de raça, aparece na pele de um homem de cor negra. É
dócil, meigo, justo e muito firme. Seu personagem é um componente dramático de solução.

, a Compadecida, é uma mulher cheia de ternura que representa o


advogado de defesa no julgamento. A personagem também é um componente dramático de
solução. Na adaptação, aparece como uma mulher mais velha, caracterizando bem o seu papel
de mãe.
1.3 – Estrutura do roteiro

Para facilitar o entendimento da estrutura do roteiro de O Auto da Compadecida15,


será realizado um primeiro corte, em que a análise feita mostra as marcações do filme de uma
forma global. Essa marcação geral evidencia que o roteiro possui uma estrutura16 dramática
clássica divida em três atos e dois pontos de virada.

O roteiro é dividido em 27 cenas17 que contam o início, o desenvolvimento e o fim da


história. As cenas são:
1. Créditos iniciais
2. Cinema na igreja
3. Emprego na padaria
4. Confissão de Dora
5. Benção para a cachorra
6. Major Antônio Moraes
7. A morte da cachorra
8. O testamento
9. Explicações para o bispo
10. Encontro com Chicó
11. O gato que “descome” dinheiro
12. A morte de João Grilo
13. Pedindo Emprego ao Major

15
O roteiro de O Auto da Compadecida citado neste estudo, refere-se a adaptação da peça feita para as
produções cinematográfica e televisiva de Guel Arraes.
16
Estrutura dramática clássica proposta por Syd Field
17
Segundo as Notas de Produção que acompanha os DVDs da minissérie e do filme (ver anexo).
14. A chegada de Rosinha
15. Presentes para Rosinha
16. Duelo com Chicó
17. Pretendente
18. Uma noite com Dora
19. Divisão do dinheiro com o Bispo
20. Invasão dos cangaceiros
21. Gaita milagrosa
22. O julgamento final
23. Apelando para Nossa Senhora
24. A volta de João Grilo
25. Chicó e Rosinha casados
26. O dinheiro da porca
27. Créditos finais

A apresentação dos personagens começa na cena Cinema na igreja, em que os


protagonistas João Grilo e Chicó são apresentados juntamente com o padre João. A cena
mostra a amizade dos protagonistas e a miséria em que vivem. Mostra também a exploração
do padre João junto aos menos favorecidos. A cena seguinte mostra a aproximação de João
Grilo e Chicó com o padeiro e sua mulher.

A premissa dramática do roteiro trata da miséria e subserviência dos protagonistas


pelos ricos e poderosos de uma cidade pequena, pobre e castigada pela seca. Mostra também
como os protagonistas enfrentam e driblam a situação buscando a sobrevivência, seja com
ações lícitas e corretas, seja com ações ilícitas e incorretas.

A situação que conduz a trama, ou as circunstâncias que giram em torno da ação, está
sempre relacionada aos protagonistas. As histórias inventadas, os planos e armações de João
Grilo e Chicó pela melhoria de vida - uma maneira de se tirar vantagem dos outros
personagens - a soberba de padre João e do Bispo, a ganância de Dora e Eurico como patrões,
os casos de amor de Dora e o ciúme de Eurico, e a história de amor vivida por Chicó e
Rosinha recheiam a trama e enriquecem o roteiro.

A subserviência marca o relacionamento dos protagonistas junto aos demais


personagens, sendo o elemento de base que sustenta quase todas as circunstâncias que giram
em torno da ação.

A cena Benção para a cachorra faz a exposição do problema da trama. Nela, João
Grilo faz uma armação envolvendo o nome do Major Antônio Moraes, para que Bolinha, que
está doente, seja benta pelo padre. A cena pontua bem a situação de que “pode mais” quem
“tem mais”, trabalhada constantemente na história.

Após a morte de Bolinha, Dora decide enterrá-la com acompanhamento feito pelo
padre e a benção dada em latim na cena A morte da cachorra. Frente à recusa do padre é
armada uma situação de conflito entre Dora e padre João. A promessa de guerra à igreja
começa com a ameaça da demissão de Eurico da Irmandade das Almas, juntamente com o não
fornecimento de pão gratuito e o dinheiro para a reforma da igreja, como também a devolução
da vaca emprestada ao padre para o fornecimento de leite. Para apaziguar a situação, João
Grilo inventa a história do testamento de Bolinha, que deixa três contos de réis para a igreja se
for enterrada como cristã.

O conflito aparece na cena Explicações para o bispo. Nela, o bispo censura a postura
de padre João frente ao Major Antônio Moraes, pedindo explicações por ter chamado sua
esposa e filha de cachorras. A fim de se desenrolar da história – armação de Grilo – padre
João acaba ainda mais enrolado com o acontecimento do enterro em latim, outra armação de
Grilo.

O ponto de virada, que reverte a ação em outra direção e marca a entrada da história
no segundo ato, é a cena Encontro com Chicó. Nela, Dora está em casa e demonstra seu
interesse por Chicó. Uma confusão é armada quando Vicentão, seu outro amante, aparece.
Para piorar a situação, Eurico bate à porta enquanto os dois amantes de Dora estão dentro de
casa.
O segundo ato, que marca a confrontação, tem início com a cena O gato que
“descome” dinheiro. Nela, Grilo tenta enganar os patrões da padaria vendendo um gato que,
segundo ele, defeca dinheiro. A cena traz vários obstáculos aos protagonistas.

Com a complicação da situação criada por Grilo com o gato, a saída é simular sua
própria morte, na cena A morte de João Grilo, que tem Chicó como cúmplice. A idéia era que
todos acreditassem em sua morte para que Grilo conseguisse fugir de Taperoá com o dinheiro
da venda do gato. Em meio ao seu cortejo, a situação piora, pois a cidade é invadida por
cangaceiros, o que faz com que Grilo “ressuscite” e salve a cidade.

João Grilo arma outras situações como o casamento de Chicó e Rosinha, o duelo de
Chicó com os valentões cabo Setenta e Vicentão, uma noite de amor de Chicó com Dora e
uma armação envolvendo padre João e o Bispo, na simulação de morte de Chicó. A essa
altura, a situação dos protagonistas está mais do que enrolada e piora na cena Invasão dos
cangaceiros, quando Severino de Aracaju retorna a Taperoá e toma a cidade.
Severino manda seu Cabra matar o padre, o bispo, o padeiro, Dora, João Grilo e
Chicó. Quando chega a hora de Grilo e Chicó morrerem, há uma tentativa de normalização na
cena A gaita milagrosa, em que João inventa à Severino a história de uma gaita benta por
Padre Cícero, que possui o poder de ressuscitar os mortos. João convence Severino a ir
“conhecer” o Padre Cícero, já que a gaita poderá ressuscitá-lo. Severino obriga seu Cabra a
dar-lhe um tiro no peito, acreditando que poderia conhecer Padre Cícero e voltar a viver.

João acaba morto também pelo Cabra de Severino. Os seis personagens, Grilo,
Severino, Padre João, o Bispo, Eurico e Dora acabam se encontrando no céu. A crise se
instaura na cena Julgamento final, quando o Diabo aparece e quer levar todos para o inferno.

O ponto de virada que marca a entrada da história no terceiro ato é a cena Apelando
para Nossa Senhora, em que João Grilo convoca Nossa Senhora para ser a advogada de
defesa dos seis réus no julgamento.
A resolução da trama tem início com a solução do Julgamento. A apelação de Nossa
Senhora a Emanuel absolve Severino de Aracaju, que vai para o céu. Padre João, o bispo, o
padeiro e sua mulher conseguem uma vaga no purgatório e João Grilo, cuja situação era a
mais difícil dos seis, ganha uma segunda chance, retornando à terra.

Grilo volta antes que Chicó faça seu enterro. O protagonista não possui recordação de
seus momentos no céu e acha que o tiro que levou o atingiu apenas de raspão, fazendo com
que ele estivesse desmaiado durante todo tempo.

A história entra no seu clímax na cena Chicó e Rosinha casados, pois Chicó precisa pagar
dez contos de réis ao Major para poder se casar com a filha de Antônio Moraes. Rosinha tem
a idéia de usar o dinheiro da porca-cofre, que vai ganhar de herança da sua bisavó no dia de
seu casamento, para Chicó poder saldar a dívida com o Major.

A resolução da trama acontece na cena O dinheiro da porca. Após o casamento, João,


Chicó e Rosinha descobrem que o dinheiro que estava dentro da porca havia sido recolhido há
muitos anos e não valia nem um centavo. Quando o Major chega para cumprir o contrato da
dívida, que dizia dez contos de réis ou uma tira de couro de Chicó, Rosinha e João, agora
parceiros na inteligência, tentam descobrir uma maneira de “salvar” Chicó. Descobrem uma
brecha no contrato que dizia apenas tira de couro, sem nenhuma gota de sangue. O major
poupa Chicó, mas expulsa os três da fazenda, que acabam a história perambulando pelas
estradas do sertão nordestino e têm um encontro com Jesus disfarçado de mendigo pedindo
esmola, o que encerra a análise da adaptação, através do diagrama da estrutura clássica18.

18
Diagrama proposto por Doc Comparato, 1995.
1.4 – Duas produções, um roteiro

O roteiro de O Auto da Compadecida foi elaborado para uma minissérie de televisão.


Segundo Guel Arraes19, desde o princípio o roteiro foi concebido para ser uma minissérie
televisiva. A idéia de que a produção pudesse virar um filme veio nas filmagens, onde foram
tomadas uma ou duas providências, caso houvesse a chance de transformar a minissérie em
cinema, sem haver a modificação do roteiro.

Alguns veículos de comunicação20 chegaram a divulgar que dois roteiros haviam sido
concebidos. O roteiro da minissérie seria baseado apenas na obra de Suassuna e o roteiro do
filme teria influência de obras clássicas como Decameron de Bocaccio, com cenas inéditas.

Na verdade, após a análise do roteiro da adaptação, pode-se observar que as duas


produções são frutos de um único roteiro, sendo que a minissérie possui, segundo as Notas de
Produção, vinte e sete cenas e o filme é composto de vinte cenas. Para fazer o filme, segundo

19
Entrevista com Guel Arraes em Recife/PE, em 03/11/2004 (ver anexo).
20
Os sites www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm e
www.edukbr.com.br/leituraeescrita/junho01/oauto.asp (ver anexo)
o que pode ser observado nas Notas, e que será averiguado mais adiante no capítulo 3, Arraes
extraiu algumas cenas da minissérie, mas não escreveu e/ou incluiu nenhuma cena inédita no
filme.

As cenas do filme são:

01. Créditos iniciais


02. Emprego na padaria
03. Benção para a cachorra
04. Major Antônio Moraes
05. A morte da cachorra
06. Explicações para o Bispo
07. Encontro com Chicó
08. Pedindo Emprego ao Major
09. A chegada de Rosinha
10. Presentes para Rosinha
11. Duelo com Chicó
12. Pretendente
13. Invasão dos cangaceiros
14. Gaita milagrosa
15. O julgamento final
16. Apelando para Nossa Senhora
17. A volta de João Grilo
18. Chicó e Rosinha casados
19. O dinheiro da porca
20. Créditos finais

Segundo as Notas de Produção, as cenas excluídas da minissérie para a concepção do


filme foram: Cinema na igreja, Confissão de Dora, O testamento, O gato que “descome”
dinheiro, A morte de João Grilo, Uma noite com Dora e Divisão do dinheiro com o Bispo.

Fazendo uma análise de forma geral, o roteiro do filme continua sendo de estrutura
clássica, tendo apenas algumas poucas modificações, como a antecipação do problema que
acontece no primeiro ato com a cena O testamento e que passa a ser a cena A morte do
cachorro, que também marca a promessa.

No segundo ato, o obstáculo que acontece com a cena O gato que “descome” dinheiro
passa a acontecer na cena Pedindo emprego ao major, que também vai pontuar a complicação
do problema.

As demais composições da estrutura, bem como os dois principais pontos de virada,


continuam sendo os mesmos.

O roteiro foi inteiramente aproveitado sem inserções ou cuidados especiais para


posteriormente, ser usado em uma obra cinematográfica. Então como um mesmo roteiro pôde
ser utilizado em duas produções? O que é nitidamente visível assistindo às duas versões, é a
montagem realizada por Arraes e a edição, que retirou uma hora na versão cinematográfica.
Mas essa uma hora extraída da minissérie para a concepção do filme, ao contrário do que
mostram as Notas de Produção, não foram apenas das cenas presentes na minissérie e
ausentes no filme. O principal indício, conforme será detalhado na análise de montagem
realizada no capítulo 3, é que várias cenas deixaram sobras que foram somadas a outras cenas,
e algumas tiveram incluídas em seu miolo, partes de cenas que haviam sido extraídas. Isso foi
possível porque os atos são constituídos pelo que aqui será chamado de células dramáticas.

1.5 – Células Dramáticas

A seqüência é o elemento que move a história, ela tem início, mas não tem uma
conclusão. No decorrer da história, a mudança de seqüências move personagens e
acontecimentos para o final. Em O Auto da Compadecida, pode-se notar um elemento novo,
que será chamado aqui de célula dramática. Ela é uma ou várias histórias dentro de uma
história central. A história, como visto, é dividida em atos, com inicio meio e fim que tem a
seqüência como força motriz. A célula dramática é uma história com início, meio e fim, que
compõe partes da história central, não interferindo no eixo principal da história. As células
encorpam a história, mas podem ser movidas sem perda de sentido e coesão.
As células dramáticas estão presentes no Auto do início ao fim da obra. Pode-se constatar
que a maior parte das cenas excluídas do filme integra uma célula dramática. O uso das
células contribuiu para o estilo de edição e montagem21, utilizados no Auto.

A minissérie possui sete importantes células dramáticas22:

1. Filme na igreja
2. Os cangaceiros na cidade
3. A visita do major
4. O gato e a morte de João
5. O duelo
6. Uma noite com Chicó
7. Dispensa da promessa

Nenhuma dessas células permaneceu intacta no filme. Elas foram entrecortadas e


remontadas. As células não interferem na história do eixo principal, como mostra o filme, e
sim dão mais ferramentas para a montagem e edição.

A fim de detalhar o papel da célula dramática no Auto, segue a análise da célula


dramática dois, Os cangaceiros na cidade:

Na minissérie, a célula dois começa quando Severino de Aracaju se disfarça de


mendigo e fica rondando Taperoá para conhecer melhor a cidade, seus habitantes e a ação da
polícia. Severino entra em contato com alguns personagens pedindo esmola.

Severino volta para o sertão e reencontra seu bando decidindo atacar a cidade. O
ataque de Severino acontece em meio ao “enterro” de João Grilo – cena que compõe também
a célula quatro, O gato e a morte de João. João Grilo ressuscita e diz a Severino que Padre
Cícero o mandou de volta para pedir que a interrupção do ataque à Taperoá. Severino, muito
temente a Padre Cícero, acata a ordem do “Santo”. Alguns dias após a festa da Padroeira, ele
volta a atacar a cidade, dessa vez, concluindo seu ataque e ainda matando o Bispo, o padre, o

21
Ver capítulo III
22
A identificação das células aqui citadas foi realizada através da minha análise.
padeiro e sua mulher e perdendo a vida graças a uma tramóia de João – cena que compõe
também a célula sete, Dispensa da promessa.

A célula dramática dois está presente no filme, mas com a exclusão de algumas partes.
Ela começa quando Severino de Aracaju se disfarça de mendigo e fica rondando Taperoá para
conhecer melhor a cidade, seus habitantes e a ação da polícia. Severino entra em contato com
alguns personagens pedindo esmola. Mostra parte do encontro de Severino com seu bando no
sertão. O primeiro ataque é inteiramente excluído e o final acontece como na minissérie,
alguns dias após a festa da Padroeira, Severino ataca a cidade, matando o Bispo, o padre, o
padeiro e sua mulher e perde a vida graças a uma tramóia de João.

As células dramáticas possuem um caráter múltiplo, o que permite trabalhar o roteiro


de acordo com a produção a ser finalizada, permitindo a supressão ou inclusão nas seqüências
sem interferir na compreensão da história.
]
2.1 - Mise-en-scène

A mise-en-scène, segundo Graeme Turner (1997, p. 65 e 66), é um termo que


compreende tudo o que está no quadro de uma tomada, envolvendo montagem do cenário,
figurino, objetos importantes e relações espaciais. A mise-en-scène possibilita a leitura dos
significados sociais, que vão desde o reconhecimento de núcleo, situação socioeconômica
cultural, personalidade, caráter e intenções do personagem, sendo um dos pilares da estrutura
narrativa.

O cenário de O Auto da Compadecida mostra uma cidade pobre e castigada pela seca.
As casas e suas fachadas são simples, bem como a maioria dos objetos de cena. A única casa
requintada é a casa do major Antônio Moraes.

Na cidade não há carros e o transporte é realizado a pé, a cavalo, burro, jegue,


charrete ou carro de boi. As cenas externas mostram o solo árido, com uma vegetação pobre, e
pequenos animais como cachorros circulando livremente pela cidade.

A caracterização do cenário exigiu um local de filmagem bem realista, já que muitas


cenas do filme são externas. A cidade de Taperoá – PB, cenário original da peça, já estava
com a arquitetura utilizada na década de 1920, período em que a peça foi escrita,
descaracterizada, o que impossibilitou seu uso.

A cidade escolhida para a realização das filmagens foi Cabaceiras, na região do Cariri
Velho, a 200 km de João Pessoa. A cidade ainda tinha as características arquitetônicas da
utilizada na década de 1920 preservadas, especialmente o centro histórico. Ainda assim, a
produção precisou adaptar as fachadas de cinqüenta e nove casas, trocar vinte e dois postes de
iluminação e esconder os cabos telefônicos. Apenas a igreja foi totalmente pintada. Segundo
Graeme Turner,
“inconscientemente, aprendemos muito com a mise-en-scène. Quando reconhecemos o
interior de uma residência como sendo de classe média, cheia de livros e ligeiramente
antiquada, estamos lendo os signos da decoração para lhes dar um conjunto de significados
sociais... a construção de um universo social é autenticado pelos detalhes da mise-en-scène”.
(p. 66)

As cenas de O Auto da Compadecida são um transporte para o sertão nordestino,


carregadas de informações a respeito das mazelas sofridas pelas pessoas que moram na
região. A seca, a fome, a pobreza são claramente percebidas nas ruas da cidade, nas
instalações dos protagonistas, que dormem no chão forrado com uma esteira de palha, em
uma espécie de mezanino, nos fundos da padaria.

O maior desafio cenográfico de O Auto da Compadecida foi a idealização do céu –


purgatório – inferno. A solução23 foi tirada da cena Gaita milagrosa em que João Grilo leva
um tiro no peito do Cabra de Severino ao fechar as portas da igreja, morrendo dentro dela. O
conjunto inferno-purgatório-céu é representado por aquele cenário, quando Grilo acorda. Do
outro lado da porta, do lado de fora da igreja é o inferno, de onde o diabo surge para realizar o
julgamento. O interior da igreja é o purgatório, cheio de pessoas em romaria, e acima do altar,
está localizado o céu tridimensional. Guel Arraes, em depoimento nas notas de produção diz:

“Nós tínhamos uma dica de um céu, porque é o céu imaginado por João Grilo. Assim
mostramos o céu propriamente dito, com nuvens, e ainda anjos, Jesus, Nossa Senhora, com
aspectos de pintores primitivos italianos que seriam enriquecidos por tons de dourado.
Notamos ainda que as cores do céu eram as mesmas do sertão, com o ouro, barro, vermelho,
palha, palha queimada”.

Todos os figurinos usados no Auto receberam um cuidado especial em sua confecção


seguindo o mesmo conceito da cenografia. O estilo utilizado foi o arcaico com um tom

23
Segundo as Notas de Produção
nordestino. As roupas em sua maioria são de algodão, linho e rendas. As exceções ficam por
conta dos figurinos do Bispo, padre João, Diabo, Nossa Senhora e Emanuel.

Personagens como João Grilo e Chicó - os mais pobres da história - tiveram suas
roupas fervidas em um caldeirão, tingidas e lixadas várias vezes. As roupas de Rosinha foram
feitas de toalha de mesa e rendas como labirinto, renascença e filé.

A caracterização dos personagens misturou aspectos físicos com toques das


personalidades de cada um deles:

- Chicó, cuja personalidade é mansa, usou um chapéu de palha trançada e roupas


jogadas com bolsos para que o personagem pudesse colocar as mãos dando um ar de
tranqüilidade. Teve a pele escurecida, os dentes amarelados e a barba sempre por
fazer, além do sotaque característico.

- João Grilo recebeu uma prótese com dentes amarelos e irregulares. A pele também
foi escurecida. Teve a barba por fazer e os olhos ligeiramente vesgos. Seu sotaque
característico ficou ainda mais forte com o uso de expressões populares.

- Rosinha possui a aparência de uma personagem saída de contos de fada. Sua beleza é
realçada por sua meiguice, doçura e gentileza. Suas roupas, feitas de toalhas de mesa
rendadas, evidenciam sua personalidade.

- Severino de Aracaju ganhou prótese dentária de ouro, um olho de vidro e cabelos


longos. As roupas e o chapéu de couro pesavam cerca de 8 kg.

- O padeiro recebeu uma peruca e o tom mais claro nos cabelos.

- Dora usava roupas coloridas e com muitos tons de vermelho, além é claro do uso
constante de batom vermelho.

- O major Antônio Moraes usou roupas de linho, botinas de couro e teve as


sobrancelhas arreadas, além de ganhar costeletas.
- O Diabo teve os cabelos longos armados como uma gueixa. Usou lentes de contato
claras e pele alva quando estava normal e uma máscara com lentes de contato
vermelhas quando virava monstro. Suas vestes eram em estilo medieval.
- Nossa Senhora ganhou vestes ricamente bordadas, cheias de rendas e miçangas.

- Emanuel usou vestes longas em tons claros com detalhes típicos de gravuras da
época medieval, com um toque de vestes de peça teatral, como o sagrado coração
rodeado de espinhos feito de tecido colado na túnica.

Alguns objetos se tornam importantes na narrativa. No Auto, pode-se destacar:

- A porca: um cofre cheio de moedas em formato de uma porca que simboliza a


possibilidade de casamento para Chicó com Rosinha e o enriquecimento para João
Grilo.

- O anel do Bispo: representa o poder, quando é usado por ele sendo beijado pelas
outras personagens, e a perda de poder, quando é retirado dele por Severino.

- A figura de Nossa Senhora é representada por objetos diversos como o pôster na


casa de Severino, o escapulário de Severino e o escapulário de Chicó, a imagem da
santa no altar na igreja e a imagem da santa pintada nos fundos da Igreja, onde
quatro dos personagens foram mortos, representando a fé e a esperança.

Algumas relações espaciais são marcantes, especialmente as que acontecem na cena


Julgamento final. A primeira é João Grilo em pé de igualdade social junto aos outros
personagens – Severino, Eurico, Dora, padre João e o Bispo – marcados nas cenas anteriores
em posição de superioridade.

A segunda acontece quando o Diabo aparece e todos se colocam em uma situação de


submissão, quebrada apenas por João Grilo que o chama de catimbozeiro.

A terceira se dá quando Emanuel e Nossa Senhora surgem em cena. O Diabo se recusa


a olhá-los de frente, conduzindo o julgamento de costas o tempo todo para o altar do céu,
lugar mais alto, ocupado por Jesus e Nossa Senhora.

2.2 – A Cena

Os conceitos de cena variam de acordo com as diversas linhas estudadas e praticadas


tanto no cinema quanto na televisão. Em O Auto da Compadecida, o conceito utilizado por
Guel Arraes é o mesmo definido por Marcos Rey (1997, p. 49) de que cena, tanto para
televisão como cinema, é uma seqüência de takes – tomadas – “que equivalem aos parágrafos
de um romance” e cada take divide-se em shots ou planos. Esse conceito é aceito por Doc
Comparato (1995, p.302) apenas para o cinema. Para a televisão, segundo ele, a cena é
determinada pelo lugar concreto.

Como visto no capítulo 01, O Auto minissérie é dividido em vinte e sete cenas e O
Auto filme em vinte cenas. As cenas - seqüências – são formadas por takes obtidos em
diferentes locais. Algumas cenas são formadas por takes que misturam também os temas.

A cena Uma noite com Dora está presente apenas na minissérie. João Grilo e Chicó
estão andando na rua voltando da casa do major após Chicó ter pedido a mão de Rosinha em
casamento. Chicó está devendo dez contos de réis para o major e se não tiver o dinheiro, o
major vai tirar-lhe uma tira de couro para saldar a dívida.

Chegando à padaria, Chicó – que está todo arrumado – ao entrar se encontra com
Dora, que elogia Chicó e se insinua a ele. Como Chicó está muito preocupado com sua tira de
couro, ele entra em outro cômodo da padaria fazendo uma desfeita a Dora, que fica indignada.
Então João Grilo lhe explica que agora Chicó só tem olhos para Rosinha.

Dora faz uma proposta a João. Se ele conseguir convencer Chicó a passar a noite com
ela, receberá dez contos de réis. João aceita o trato e vai até a área de produção da padaria
para convencer Chicó. A princípio ele fica feliz, pois é a chance de conseguir o dinheiro para
pagar o major e se casar com Rosinha, mas então ele se lembra da promessa feita a Nossa
Senhora, de que não se deitaria com mulher nenhuma, apenas Rosinha. João tem uma de suas
idéias e convence Chicó a se encontrar com Dora à noite.

Chicó vai à casa de Dora e ela o carrega para o quarto. Enquanto isso, João Grilo se
encontra com Eurico na rua e pergunta se o patrão vai para casa. Eurico responde que não e
entra em um bar. João faz Eurico pensar que Dóra está com outro homem em casa e os dois
saem andando pela rua.

Quando Eurico chega em casa com João, Dora esconde Chicó no armário. Eurico e
João entram no quarto. Eurico ameaça Dora enquanto João o faz pensar que o amante de Dora
é Chicó e que este estará atrás da igreja esperando por Dora. Eurico sai de casa vestido com as
roupas de Dora para encontrar Chicó.

Chicó sai de dentro do armário e vai se encontrar com Eurico. Chegando lá, ele
começa a bater em Dora/Eurico, e faz Eurico acreditar que ele estava era tentando salvar o
patrão da reputação de ‘corno’. Eles fazem tanto barulho que padre João vem ver o que está
acontecendo.

Enquanto isso, na casa de Dora, João cobra o dinheiro por ter trazido seu amante de
volta, ter livrado ela do flagrante e ainda ter feito Eurico acreditar que ela é uma esposa digna.
Dora coloca João Grilo para fora de casa e diz que não vai pagar nada, pois o trato era dez
contos de réis por uma noite de amor e que ela havia ficado apenas com o calor. Caso João
trouxesse Chicó de volta, ela pagaria o dinheiro.

No dia seguinte, João e Chicó estão na área de produção da padaria tentando bolar um
novo plano para arrumar o dinheiro do major.
A cena/seqüência A volta de João Grilo começa quando João está no céu descendo
para a terra, e sem lembrança de sua passagem no céu, vê abaixo de si Chicó cavando uma
vala. João se pergunta o que Chicó está fazendo lá embaixo, depois se pergunta o que ele,
João, está fazendo lá em cima e novamente o que ele, o corpo de João, está fazendo lá
embaixo.

João acorda e vê que está deitado na carroça enquanto Chicó cava um buraco. João
começa a fazer ruídos e Chicó acredita que a alma do amigo está rondando o local. João
conversa com Chicó e diz que ainda está vivo, mas Chicó não acredita.

João Grilo convence Chicó de que está vivo e ambos comemoram que João não está
morto e que agora estão ricos24. Chicó começa a se lamentar e conta a João que havia feito
uma promessa a Nossa Senhora. Se João escapasse da morte, ele doaria todo o dinheiro para a
santa. João diz que o problema é dele e pede a Chicó a sua parte do dinheiro. Chicó entrega o
dinheiro a João e diz que ele é que vai fazer o acerto com a santa depois.

João volta atrás e vai junto com Chicó até a igreja para pagar a promessa. Chegando
lá, Chicó se lembra do dinheiro prometido ao major e pensa em desistir do pagamento da
promessa. João conversa com o amigo e eles depositam o dinheiro na caixa de doações do
altar de Nossa Senhora.

24
Durante a invasão dos cangaceiros, Severino roubou dinheiro de várias pessoas, e quando Severino morreu,
Grilo pegou o dinheiro para si. Após a morte de Grilo, Chicó “herda” o dinheiro de Grilo.
2.3 – Os Planos

Os planos ou shots utilizados em O auto da Compadecida não seguem uma regra ou


uma convenção de uso. Há a presença de todos os tipos de plano, do primeiríssimo plano ao
plano geral, tanto nas cenas utilizadas apenas na minissérie como nas cenas que são comuns
às duas produções.

Para Doc Comparato (1995, p. 314), os hábitos dos espectadores e dos diretores têm
produzido alterações na leitura e escrita dos planos, especialmente os subsequentes. Fato que
pode ser observado em produções televisivas, como A casa das Sete Mulheres25 e em
produções cinematográficas , como Thelma e Louise26. A interação das técnicas não mais
habilita a convenção do uso dos planos de forma diferenciada. Um plano, como diz Syd Field
(1995, p.156), é o que a câmera vê, e a câmera pode ter uma visão tão geral ou específica
quanto à produção da peça.

Esse dado é facilmente visível em uma produção intermultimídia, cuja estrutura em


todos os âmbitos é marcada pela hibridização dos sistemas.

A cena 12, A morte de João Grilo, começa com padre João executando os serviços
fúnebres para João Grilo, que em mais um de seus planos está se passando por morto. Após a
saída de Padre João, Grilo começa a conversar com Chicó tramando como será realizado seu
enterro.

Chicó leva a carroça com o corpo de João Grilo para ser sepultado na cidade em que
ele nasceu. Esse é o pretexto para que, segundo os planos de João, o cortejo desista de seguir
o enterro e João possa fugir com sua parte do dinheiro da venda do gato que descomia
dinheiro.

25
Produção da Rede Globo de Televisão, direção de Jaime Monjardim.
26
Filme de Ridley Scott.
Quando o cortejo entra na estrada saindo de Taperoá, os cangaceiros iniciam um
ataque à cidade e levam os moradores que estavam na rua para dentro da igreja, inclusive o
corpo de Grilo. Na hora em que o Cabra de Severino vai cutucar a boca do defunto à procura
de dente de ouro, João simula sua ressurreição, dizendo a Severino que Padre Cícero o
mandou de volta para pedir que o ataque a Taperoá fosse interrompido imediatamente.

Com a retirada dos cangaceiros, a cidade entra em festa e João se torna o herói. Na
festa, Eurico e Dora levam João e Chicó à padaria para tirar satisfação a respeito da venda do
gato e resgatar o dinheiro. João pede sua demissão e sai feliz para curtir a festa.

O Bispo vai até a fazenda explicar ao major a confusão feita por padre João quando
chamou equivocadamente Rosinha e sua mãe de cachorras. Enquanto isso, a festa da
padroeira começa na cidade e Eurico e Dora contam a Vicentão, que estava viajando, o
acontecido com os cangaceiros.
A chegada de Rosinha é uma cena/seqüência que está presente na minissérie e no
filme. A cena começa com a chegada da polícia à cidade de Taperoá na noite da festa da
padroeira. Eurico, Dora e Vicentão se apresentam ao Cabo Setenta. Rosinha chega à cidade e
vai cumprimentar Eurico e Dora.

Rosinha segue para a igreja para receber a benção do Bispo. Vicentão e Cabo Setenta
vão atrás dela. No caminho, há uma queima de fogos e Rosinha e Chicó se encontram pela
primeira vez. Rosinha fica encantada por ele. João aparece para conduzi-la à igreja. Ela pede a
João para lhe comprar um confeito e tenta voltar para perto de Chicó. No caminho se encontra
com Vicentão e depois com cabo Setenta, solicitando a ambos a compra do confeito. Quando
chega até Chicó, ele lhe entrega um confeito. Ao final da missa, Chicó dedica uma canção a
Rosinha, dando início à história do Auto.
2.4 - As histórias de Chicó

No decorrer de O Auto da Compadecida, Chicó conta diversas histórias “vividas” por


ele. Usando uma mistura de desenho e filme, com cenas surreais que parecem ter sido tiradas
de um vídeo clipe, Arraes mostra as histórias de Chicó. É o uso da animação criativa com a
ação real. Na cena tudo é fake, é animação, exceto o próprio Chicó, inserido no contexto de
cada história.

A minissérie apresenta cinco histórias:

> História de Chicó: Pacas


>História de Chicó: Cavalo Bento
>História de Chicó: Pirarucu
>História de Chicó: Passagem do Riacho de Cosme Pinto
>História de Chicó: Papagaio que pregava.

2.5 - Elementos ficcionais e não-ficcionais

Como citado na introdução, é característica do trabalho de Arraes a mistura de


gêneros, e em O Auto fica registrado o trânsito do ficcional para o não ficcional na cena 23 da
minissérie e 16 do filme, quando Nossa Senhora, apelando a seu Filho em favor de João Grilo,
fala das dificuldades e mazelas de ser humano, da fome, da desigualdade e do sofrimento de
viver em uma terra árida, assim como eles já haviam vivido. Para ter o efeito desejado, Arraes
mistura à comédia uma dose de documentário, inserindo fotos reais, que expressam as
palavras da Santa.

São incluídas dez fotos no filme e nove na minissérie:

1ª crianças trabalhando com palha


2ª criança chupando água de um cacto
3ª pessoa idosa com a mão na cabeça
4ª fila de pessoas caminhando
5ª homem sentado na calçada
6ª mulher sentada no chão, apoiada em um banco
7ª senhora sentada em um banco apoiada em uma bengala
8ª pessoa caminhando
9ª MÃE SEGURANDO UM BEBÊ (presente apenas no filme)
10ª homem sertanejo
3.1- As Cenas

As cenas que serão aqui analisadas compõem a seleção efetuada por Arraes e sua equipe,
na minissérie e no filme. Essa escolha está descrita nas Notas de Produção e são visualizadas
no DVD através do menu, em seleção de cenas.

A análise obedece à numeração e nomenclatura propostas nas Notas, tanto na minissérie


quanto no filme.Tendo a minissérie como base, já que o filme é uma produção posterior à
mesma, e considerado por seu autor uma edição da minissérie, o primeiro objetivo é verificar
se não há diferença das cenas de mesmo nome que estão presentes nas duas produções. Como
visto no capítulo 1, sete cenas da minissérie foram excluídas na montagem do filme e
teoricamente, elas não deverão estar presentes no filme. São elas: Cinema na igreja - cena 2,
Confissão de Dora – cena 4, O testamento – cena 8, O gato que “descome” dinheiro – cena
11, A morte de João Grilo – cena 12, Uma noite com Dora – cena 18 e Divisão do dinheiro
com o Bispo – cena 19.

Na análise que se segue, as cenas foram ordenadas por número e nome27. A primeira
coluna traz a minissérie e a segunda o filme. Cada cena descrita traz a pontuação de seu
início, meio e fim, sendo possível a visualização de supressões, inclusões e qualquer outro
tipo de alteração realizada na montagem das duas produções.

Minissérie Filme

Cena 1 (créditos iniciais) Cena 1 (créditos iniciais)

Início: créditos iniciais


Início: créditos iniciais
Final: mostra a tela exibindo o filme A
Final: Aproveitamento de parte da cena 2 da
Paixão de Cristo.
minissérie. traveling nas pessoas que estão
27
Conforme as Notas de Produção
assistindo o filme. Corte para padre João
contando dinheiro e Chicó passando o filme.
Cena 2 (cinema na igreja)
Cena 2 (emprego na padaria)
Início: traveling nas pessoas que estão
assistindo ao filme A Paixão de Cristo.
Supressão: > História de Chicó: Pacas
Final: Chicó e João Grilo no meio do sertão
tentando caçar algo para comer. Início: João e Chicó entrando na padaria
para pedir emprego.
> História de Chicó: Pacas
Final: Eurico aceita João e Chicó como
empregados na padaria.
Cena 3 (emprego na padaria)
Supressão:
Início: Chicó e Grilo estão caminhando em
direção a padaria para procurar emprego. Cena 3 (bênção para a cachorra)
Final: Briga de Dora e Eurico com a
intervenção de Padre João. Início: João e Chicó comendo sua
“gororoba”.

Cena 4 (confissão de Dora) Supressão 1: João e Eurico falando do


suposto “rato” que anda beliscando os pães
Início: João está na padaria tirando os pães na padaria.
do forno.

Final: Dora imprensa Eurico para saber onde Supressão 2: Dora manda Grilo e Chicó
ele havia passado a noite. chamar o padre. Eles interrogam Dora sob o
padre benzer uma cachorra. Eles vão à igreja
e Dora com Bolinha no colo fica brigando
Cena 5 (bênção para a cachorra) com Eurico.

Final: João e Chicó convencem o padre a


Início: João e Chicó estão comendo sua benzer a cachorra, mas o padre pensa que a
“gororoba”. mesma é do major Antônio Moraes.

>História de Chicó: Cavalo Bento


Cena 4 (major Antônio Moraes)
Final: João e Chicó saindo da igreja.

Supressão 1: João e Chicó saem da igreja e


Cena 6 (major Antônio Moraes) entram na padaria conversando sobre a
armação com o nome do major Antônio
Início: João e Chicó entram na padaria
conversando sobre a armação de João para o Moraes para o padre benzer a cachorra.
padre benzer Bolinha, a cachorra de Dora.
Início: Major Antônio Moraes chega a
Final: João e Padre João estão conversando. padaria chamando Eurico.
Padre João encontra Severino vestido de
mendigo e lhe nega ajuda. Supressão 2: Após a saída do major da
igreja, Grilo tenta convencer o padre a
Cena 7 (a morte do cachorro) benzer a cachorra da mulher do padeiro. Na
porta da igreja, padre João se depara com
Início: Dora está chorando ao lado de Severino vestido de mendigo pedindo uma
Bolinha, que agoniza na cama, enquanto
João entra para dizer que o padre não irá cuia de farinha.
benzer a cachorra.
Final: Major Antônio Moraes saindo da
>História de Chicó: Pirarucu Igreja.
Final: Severino se encontra com seu bando,
que está escondido no sertão. Cena 5 (a morte do cachorro)

Cena 8 (o testamento) Supressão 1: Dora está chorando no quarto


junto a Bolinha, quando João chega dizendo
Início: João vai à igreja buscar a vaca que foi que o padre não irá benzer a cachorra.
emprestada ao padre.

Final: >História de Chicó: Passagem do Início: Dora, Eurico e João estão na igreja
Riacho. conversando com o padre.

>História de Chicó: Pirarucu

Cena 9 (explicações para o Bispo) Supressão2: Severino se encontra com seu


bando, que está escondido no sertão.
Início: Padre João entra na igreja contando o
dinheiro recebido do “testamento” e Inclusão 1: apesar de não constar na lista de
encontra o Bispo a sua espera.
cenas, a cena do testamento se encontra no
Final: João leva o dinheiro do “testamento” filme com as seguintes exceções:
de Bolinha ao Bispo.
Supressão2: Encontro do Bispo com o major
Cena 10 (encontro com Chicó)
Antônio Moraes.

Início: Chicó vai até a porta conversar com Supressão 3: Acerto do enterro entre o padre,
Dora, que está sentada do lado de fora em Dora e Eurico.
uma cadeira.
Supressão 4: João e Chicó falam sobre
>História de Chicó: Papagaio que pregava. assombração e Chicó conta a sua história da
Final: Dora, após quase ter sido pega em passagem do Riacho.
flagrante, chama Eurico para o quarto.
Final: Acerto do enterro da cachorra entre
Cena 11 (o gato que “descome” dinheiro) João e o padre. Essa cena faz parte da cena
8 da minissérie – o Testamento.
Início: João leva o gato que descome
dinheiro para Dora. Cena 6 (explicações para o Bispo)
Final: João simula a própria morte.
Início: Padre João entra na igreja contando o
dinheiro recebido do “testamento” e
Cena 12 (a morte de João Grilo) encontra o Bispo a sua espera.

Supressão 1: João está no balcão da padaria,


Início: Padre João dando extrema-unção ao
“corpo” de João Grilo. quando padre João entra e fala a respeito da
farsa da “cachorra do major”.
Final: Eurico, Dora e Vicentão passeando
pela praça no início da festa da padroeira
falando sobre o ataque dos cangaceiros Supressão 2: João pergunta ao Bispo se ele
sofrido pela cidade.
vai mesmo suspender o padre João, e ele diz
que vai porque o padre desrespeitou o
Cena 13 (pedindo emprego ao major)
Código Canônico artigo 1627, parágrafo

Início: João vai a fazenda do Major Antônio único, letra K.


Moraes pedir emprego.
Final: Padre e o Bispo vão deliberar a
Final: João ganha o emprego e vai até a respeito do enterro da cachorra e consultar o
cidade buscar Rosinha que está chegando de código canônico.
Recife.
Supressão 3: Padre e o Bispo consultam o
Código Canônico e descobrem que, segundo
Cena 14 (a chegada de Rosinha)
o artigo 368, parágrafo 3º, letra B, o padre
Início: Chegada da tropa da polícia, que se agiu corretamente ao enterrar a cachorra.
apresenta à cidade de Taperoá durante a Enquanto isso João entra na igreja para
festa da padroeira.
entregar o dinheiro do testamento ao Bispo.
Final: João convence Chicó a fazer parte de
um plano para conquistar Rosinha e se tornar
o valentão da cidade. Cena 7 (encontro com Chicó)

Cena 15 (presentes para Rosinha) Início: Chicó vai até a porta conversar com
Dora, que está sentada do lado de fora em
uma cadeira.
Início: João coloca seu plano em andamento
e vai até a delegacia falar com o cabo >História de Chicó: Papagaio que pregava.
Setenta.
Final: Chicó se encontra com Rosinha e lhe Supressão 1: Vicentão pergunta a Dora se
dá o par de brincos e o broche (presente dos tem mais alguém em casa, enquanto ele
valentões cabo Setenta e Vicentão) como se fecha o zíper de seu vestido.
fosse dele.
Final: Dora, após quase ter sido pega em
flagrante, chama Eurico para o quarto.
Cena 16 (Duelo com Chicó)
Cena 8 (pedindo emprego ao major)
Início: João volta à delegacia e fala com
cabo Setenta a respeito do duelo com Chicó.
Início: João vai a fazenda do Major Antônio
Final: Após o truelo, a fama de Chicó como Moraes pedir emprego.
valente se espalha. Eurico comenta o fato
com padre João durante a missa. Inclusão 1: João vai a padaria buscar seus
pertences. ESSA CENA NÃO ESTÁ NA
MINISSÉRIE.
Cena 17 (pretendente)
Inclusão 2 / Final: Parte da cena em que
Severino se encontra com seu bando, que
Início: João leva Chicó à fazenda do major está escondido no sertão – ESSA CENA É O
disfarçado de fazendeiro e doutor. Chicó se FINAL DA CENA 7 NA MINISSÉRIE.
apresenta como pretendente a pretendente da
mão de Rosinha.
Cena 9 (a chegada de Rosinha)
Final: Chicó marca a data do casamento e o
major empresta a ele dez contos de réis para
que a igreja seja reformada para o Início: Chegada da tropa da polícia, que se
casamento. Chicó assina um contrato com o apresenta à cidade de Taperoá durante a
major, dando uma tira do seu próprio couro festa da padroeira.
como garantia de pagamento.
Final: João convence Chicó a fazer parte de
Cena 18 (uma noite com Dora) um plano para conquistar Rosinha e se tornar
o valentão da cidade.
Início: João e Chicó chegando à padaria após
a entrevista com o major. Cena 10 (presentes para Rosinha)
Final: Chicó e João discutem na área de
produção da padaria como vão arrumar os Início: João coloca seu plano em andamento
dez contos de réis para pagar o major. e vai até a delegacia falar com o cabo
Setenta.

Cena 19 (divisão do dinheiro com o Bispo) Final: Chicó se encontra com Rosinha e lhe
dá o par de brincos e o broche (presente dos
valentões cabo Setenta e Vicentão) como se
Início: Padre João e o Bispo estão na fosse dele.
sacristia dividindo o dinheiro dado por Chicó
para as reformas antes do casamento.

Final: Chicó e Rosinha estão juntos. Ele


conta à ela da promessa feita à Nossa Cena 11 (duelo com Chicó)
Senhora, conta da proposta feita por Dora –
dez tostões por uma noite de amor – e que
mesmo o Bispo o desobrigando da promessa, Início: João volta a delegacia e fala com
ele não poderia ficar com outra mulher. cabo Setenta a respeito do duelo com Chicó.

Supressão 1: Na porta da igreja, Dora


Cena 20 (invasão dos cangaceiros) interroga Cabo Setenta e Vicentão.

Início: João e Chicó estão na área de Final: Após o truelo, Chicó recebe jura de
produção da padaria. João diz à Chicó que amor de Rosinha.
suas idéias acabaram e que agora além de
pobre, ele também é burro. Supressão 2: a fama de Chicó como valente
se espalha. Eurico comenta o fato com padre
Final: Severino, Cabra, Padre João, Bispo,
João Grilo e Chicó estão dentro da Igreja. João durante a missa.
Cabra leva padre João e o Bispo para fora da
igreja.
Cena 12 (pretendente)
Cena 21 (gaita milagrosa)
Supressão 1: João e Chicó estão na padaria.
João leva roupas novas para Chicó ir pedir a
Início: Ainda dentro da Igreja, Severino
mão de Rosinha ao major.
pergunta os nomes de João Grilo e Chicó
enquanto vai levando-os para fora.
Início: João leva Chicó à fazenda do major
disfarçado de fazendeiro e doutor. Chicó se
Final: Chicó coloca uma vela nas mãos sobre
apresenta como pretendente a pretendente da
o corpo de João Grilo que está estendido no
mão de Rosinha.
chão da igreja.
Inclusão 1 - PARTE DO INÍCIO DA CENA
Cena 22 (o julgamento final) 18 DA MINISSÉRIE: João e Chicó
chegando à padaria após a entrevista com o
Início: João acorda no Purgatório – que se major.
materializa como o interior da igreja.
Supressão 2 – RESTANTE DO INÍCIO DA
Final: Após as diversas acusações, o diabo CENA 18 DA MINISSÉRIE: Dora faz uma
diz que o caso de Grilo é perdido e que ele proposta a João Grilo, dez contos de réis se
será o primeiro a ir para o inferno. ele conseguir convencer Chicó a passar uma
noite de amor com ela.
Cena 23 (apelando para Nossa Senhora)
Inclusão 2 / Final – INÍCIO DA CENA 19
DA MINISSÉRIE: Padre João e o Bispo
Início: João diz que não vai se entregar com estão na sacristia dividindo o dinheiro dado
facilidade e pede à Jesus para apelar a Nossa por Chicó para as reformas antes do
Senhora. casamento.
INCLUSÃO DE FOTOS Cena 13 (invasão dos cangaceiros)

1ª crianças trabalhando com palha Início: João e Chicó estão na área de


2ª criança chupando água de um cacto produção da padaria. João diz à Chicó que
3ª pessoa idosa com a mão na cabeça suas idéias acabaram e que agora além de
4ª fila de pessoas caminhando pobre, ele também é burro.
5ª homem sentado na calçada
6ª mulher sentada no chão, apoiada em um Supressão 1: parte da cena em que João
banco conta a Chicó que a falsa morte acontecerá
7ª senhora sentada em um banco apoiada em na porta da igreja e que já está tudo
uma bengala combinado com o padre e o Bispo.
8ª pessoa caminhando
9ª homem sertanejo Supressão 2: Parte em que Padre João e o
Bispo estão na igreja a espera do falso
>>>>>>>>Nesta cena, são usados planos cangaceiro que irá “atacar” Chicó, enquanto
diferentes. Plano Americano no filme e a cidade está realmente sendo atacada por
Plano Geral na Minissérie. Severino.

>>>>>>>>Há diferenças nas nuances no Supressão 3: parte em que Severino entra na


céu do Céu. Na minissérie há dia e noite. E igreja e pede a benção ao padre.
as cores também possuem tonalidades
diferentes. No filme o céu fica azul todo
tempo, as vezes mais claro, às vezes mais Inclusão 1 – PARTE EXTRAÍDA DA CENA
escuro mas, sem configurar noite. 12 DA MINISSÉRIE: Entre a cena de
Severino invadindo a padaria e voltando a
igreja, há uma cena de pessoas correndo na
Final: João é mandado de volta para terra e rua.
Jesus diz a Nossa Senhora que, se ela
continuar a interceder por todos, o inferno Supressão 4: Após a descoberta de Grilo
vai virar uma repartição pública. Existe, como “cangaceiro”, ele tenta se livrar ( e a
mas, não funciona. Chicó) da morte, dizendo que não tem
dinheiro para dar a Severino porque a
mulher do padeiro não cumpriu o
Cena 24 (a volta de João Grilo) combinado, revelando a proposta dela de
uma noite com Chicó a troco de dez contos
de réis.
Início: João chegando pelo céu vendo Chicó
cavando um buraco para enterrar um corpo. Supressão 5: quando o Cabra leva Dora e
Eurico para fora da igreja, Grilo e Chicó
Final: João e Chicó pagam o dinheiro dizem que Dora é safada, mas é valente.
prometido a Nossa Senhora.
Final: Cabra vai pega o padre e o Bispo para
levar para fora da igreja.

Cena 25 (Chicó e Rosinha casados) Cena 14 (gaita milagrosa)

Início: O cabra já está quase na porta da


Início: João e Chicó vão à fazenda do Major
igreja com o padre e o Bispo. Severino diz
Antônio Moraes para falar do casamento e
do pagamento da dívida. ao Bispo para acabar com a frouxura de
morrer, e diz ao Cabra para acabar com a
Final: Chicó e Rosinha se casam na igreja. frouxura de matar.

Cena 26 (o dinheiro da porca) Final: Chicó coloca uma vela nas mãos sobre
o corpo de João Grilo, que está estendido no
chão da igreja.
Início: Após o casamento, Chicó, Rosinha e
João quebram a porca (cofre) para obter o Cena 15 (o julgamento final)
dinheiro e pagar a dívida com o major.

Final: Expulsos da fazenda, Chicó, Rosinha Início: João acorda no Purgatório – que se
e João param na estrada para comer um materializa como o interior da igreja.
pouco de bolo. Jesus, disfarçado de mendigo
e de pele negra, pede comida ao grupo. Final: Após as diversas acusações, o diabo
Rosinha dá um pouco do bolo e diz que as diz que o caso de Grilo é perdido e que ele
vezes Jesus se disfarça para testar a bondade será o primeiro a ir para o inferno.
das pessoas, e João diz que aquele podia ser
qualquer um, menos Jesus.
Cena 16 (Apelando para Nossa Senhora)
>História de Chicó: um sujeito que
encontrou Jesus no céu.
Início: João diz que não vai se entregar com
facilidade e pede à Jesus para apelar a Nossa
Cena 27 (créditos finais) Senhora.

Supressão 1: Quando Nossa Senhora


Início: Rosinha, Chicó e João Grilo andando aparece, ela cumprimenta Jesus e diz que ele
pela estrada. ficou muito bonito com a pele na cor negra.

Final: sobem os créditos finais. >>>>>>>>Nesta cena, são usados planos


diferentes. Plano Americano no filme e
Plano Geral na Minissérie.

>>>>>>>>Há diferenças nas nuances no


céu do Céu. Na minissérie há dia e noite. E
as cores também possuem tonalidades
diferentes. No filme, o céu fica azul todo
tempo, às vezes mais claro, às vezes mais
escuro, mas sem configurar noite.

INCLUSÃO DE FOTOS

1ª crianças trabalhando com palha


2ª criança chupando água de um cacto
3ª pessoa idosa com a mão na cabeça
4ª fila de pessoas caminhando
5ª homem sentado na calçada
6ª mulher sentada no chão, apoiada em um
banco
7ª senhora sentada em um banco apoiada em
uma bengala
8ª pessoa caminhando
9ª MÃE SEGURANDO UM BEBÊ (essa foto
não está presente na minissérie)
10ª homem sertanejo

Final: João é mandado de volta para terra e


Jesus diz a Nossa Senhora que, se ela
continuar a interceder por todos, o inferno
vai virar uma repartição pública. Existe, mas
não funciona.

Cena 17 (a volta de João Grilo)

Início: João chegando pelo céu vendo Chicó


cavando um buraco para enterrar um corpo.

Final: João e Chicó pagam o dinheiro


prometido a Nossa Senhora.

Cena 18 (Chicó e Rosinha casados)

Início: João e Chicó vão à fazenda do Major


Antônio Moraes para falar do casamento e
do pagamento da dívida.

Supressão 1: Parte em que Chicó explica ao


major que tinha o dinheiro, mas o havia
prometido a Santa, caso João escapasse da
morte. O major fala que sem dinheiro não há
casamento.

Final: Chicó e Rosinha se casam na igreja.

Cena 19 (o dinheiro da porca)

Início: Após o casamento, Chicó, Rosinha e


João quebram a porca (cofre) para obter o
dinheiro e pagar a dívida com o major.

Final: Expulsos da fazenda, Chicó, Rosinha


e João param na estrada para comer um
pouco de bolo. Jesus, disfarçado de mendigo
e de pele negra, pede comida ao grupo.
Rosinha dá um pouco do bolo e diz que às
vezes Jesus se disfarça para testar a bondade
das pessoas, e João diz que aquele podia ser
qualquer um, menos Jesus.

História de Chicó: um sujeito que encontrou


Jesus no céu.

Cena 20 (créditos finais)

Início: Rosinha, Chicó e João Grilo andando


pela estrada.

Final: sobem os créditos finais.

Na análise das cenas, pode-se observar que o pensamento inicial de que essa uma hora
excluída da minissérie para a formatação do filme, seria composta pelas sete cenas excluídas
conforme as Notas28. Isso não é verdadeiro. O mesmo pode-se dizer com relação à edição das
cenas. Há cenas que foram filmadas por diferentes câmeras e para cada montagem foi
escolhida uma posição de câmera diferente. Há ainda o caso das cenas que estão no filme,
mas não estão na minissérie.

Pode-se observar ainda que, apesar do mesmo nome, nem todas as cenas foram
montadas da mesma forma. No filme há supressões de trechos de algumas cenas, e inclusões
de trechos de outras cenas, inclusive das sete que figuram como excluídas do filme, em cenas
diferentes das propostas pela minissérie. Esse fato reforça o conceito das células dramáticas
proposto no capítulo 1. As imagens são manuseadas como convém ao diretor/montador para
que sua história tenha o ritmo e a clareza necessários à sua compreensão por parte do receptor,
independente de seu formato. As imagens são tomadas como blocos de cores distintas que
unidos, formam seqüências de cores diferentes. Os blocos podem ou não seguir uma
seqüência de mesma cor. Desde de que haja sentido e coerência, o formato dos blocos permite
montagens diversas. O grande desafio passa a ser trabalhar com uma quantidade de planos
que permitam a concepção de cenas que darão continuidade à história.

28
Notas de Produção
Arraes consegue trabalhar com seus blocos de forma diversa sem prejuízo à
compreensão da história.

3.2 - Ritmo e Clareza Dramática

Griffith trouxe para o cinema uma série de experimentos, que foram ao longo do
tempo tomando forma, influenciando de forma marcante as produções cinematográficas e
inspirando o trabalho de diversos diretores. Maria de Fátima Augusta, em seu livro A
Montagem Cinematográfica29, faz um estudo das formas de montagem Griffithianas auxiliada
por teóricos como Deleuze e Arlindo Machado. Griffith fez a organização das imagens-
movimento, mostrando através de elementos inovadores, como criar um maior impacto
dramático.

Augusta traz os apontamentos de Deleuze (DELEUZE, 1983, apud Augusta 2004, p.


57 - 59) em que ele aponta que Griffith criou três formas de montagem: a montagem paralela
– que é uma alternância das partes diferenciadas tomadas em relações binárias, uma
fragmentação de cenas que permitem ao público sentir um instante de forte emoção. A
montagem com a alternância das dimensões relativas, conferindo um uso variado de planos à
cena, utilizando de forma singular o primeiro plano de rostos e objetos, a fim de extrair efeitos
dramáticos do ângulo de visão, fazendo o público entrar gradualmente na emoção da história.
E por último, a montagem das ações convergentes, em que há a alternância de duas situações
que vão se encontrar em um mesmo fim.

As experimentações de Griffith, como corte contínuo, close-up (além de dar maior


intensidade, ajuda a eternizar momentos), planos gerais, médios e próximos misturados,
intercalações de planos de cenas diferentes (que permite ao tempo dramático substituir o
tempo real), o uso de planos curtos (o que aumenta a dramaticidade), o uso de insert, o uso da
câmera subjetiva e a ordenação da história transformaram o filme, gerando emoção e

29
2004
cumplicidade entre o público e a obra. Griffith deixou como herança a junção da montagem e
a construção dramática.

Essas técnicas foram evoluindo com o passar do tempo, sendo absorvidas, utilizadas e
transformadas por diversos diretores, dando base até mesmo para a criação de estilos de
montagens divergentes das desenvolvidas por Griffith, que possivelmente, não tinha noção de
como o seu experimentalismo iria modificar o fazer, o ver e o sentir das produções
subseqüentes. Suas influências são visíveis nas obras de diversos momentos históricos do
cinema, como também em obras de outros meios, como a televisão.

A análise do trabalho de Guel Arraes permite a constatação de que o diretor é, antes de


tudo, um grande experimentador. A base de seu trabalho possui traços marcantes do estilo
griffithiano, com o uso constante das vertentes de montagem de Griffith. A montagem do
Auto mistura montagem paralela, montagem com a alternância das dimensões relativas,
montagem das ações convergentes, além de outras fontes como a fantasia de Federico
Fellini e a repetição estilizada e metafórica vindas do teatro e do não realismo, adaptadas por
Ingmar Bergman (DANCYNGER, 2003).

Arraes constituiu seu estilo de montagem como um “caldeirão repleto de ingredientes


diversos”, misturando meios, estilos e gêneros, tomando o cuidado de fazer nas suas
montagens, um trabalho claro, veloz (que possui um ritmo envolvente, cuja quantidade de
informação determina a duração dos planos), mas com uma continuidade que faz com que o
público fique envolvido na história, não se sentindo perdido ou confuso. Ele possui muita
habilidade quando estabelece um sentido de direção das seqüências, usando deixas visuais
para a perfeita “emenda” de um plano ao outro, construindo uma continuidade lúdica,
permitida pelo uso de planos que relacionam a ação de um plano com a de outro. A
continuidade visual, o significado e a similaridade no ângulo e na direção são a essência da
célula dramática, que permite a montagem em diferentes sentidos sem perder a lógica e o eixo
principal da história. Dancyger (2003, p.384) diz que
Compreender tanto a narrativa quanto os objetivos subtextuais de uma seqüência
permitirá também que o montador acompanhe e module a montagem de forma a esclarecer e
enfatizar a narrativa mais do que confundir. O montador estará habilitado a determinar qual a
duração dos planos na tela e quanta modulação é necessária para fazer a seqüência clara. O
montador estará, portanto, apto a usar as mais dinâmicas ferramentas, como a montagem
paralela, para o mínimo, e o plano geral, para o máximo efeito.

3.3 - Gênero

O Gênero comédia, cujo propósito é divertir pelo tratamento cômico das situações, dos
costumes e dos personagens, é composto basicamente por quatro tipos distintos:

- A comédia de personagem, em que os papéis dos personagens cômicos são associados a


uma personae particular.
- A comédia de situação, mais comum tanto na TV quanto no cinema, tende a ser realista e
depende dos personagens. Ela possui uma forte característica verbal, que concorre para um
desfecho anedótico.
- A comédia tipo sátira traz uma variação que vai da fantasia absurda ao cinema verdade,
explora uma composição poética jocosa ou indignada contra as instituições, os costumes e as
idéias contemporâneas. .
- A comédia tipo farsa permite resultados impossíveis e absurdos, usando a grosseria das
situações, da linguagem e dos gestos para provocar o riso.

A classificação oficial do gênero de O Auto da Compadecida é a comédia. Na obra,


fica perceptível a mistura da comédia de situação, com a sátira e a farsa. A comédia apresenta
o elemento da surpresa, e seu grau vem da profundidade da meta do humor. O ritmo é outro
fator norteante. Frank Capra, que foi um mestre na direção desse gênero, acreditava que o
tempo rápido era crucial para o seu trabalho. A atenção deve ser dada ao ritmo dos planos e ao
ritmo entre os planos. Item bem explorado por Arraes.

A comédia traz o humor verbal e o humor visual. No Auto, ambos são bem trabalhados
e bem dosados. O humor verbal depende basicamente do roteiro e da interpretação do ator. Já
o humor visual, depende do olho do diretor para explorar as imagens da melhor maneira
possível, tanto na filmagem, quanto na montagem. Quando os dois elementos conseguem uma
união equilibrada, o resultado é um trabalho apetitoso, envolvente e refinado. O Auto
conseguiu ser sucesso na televisão como minissérie e logo em seguida, foi um dos filmes
nacionais de maior bilheteria30 (mais de dois milhões de espectadores), apesar da história não
apresentar nenhum elemento novo por ter sido assistida gratuita e primeiramente na televisão.

Um dos fatos curiosos detectados neste trabalho foi, a forma como o público
‘percebeu’ as duas produções. O próprio Guel Arraes31 destacou como era interessante
quando as pessoas comentavam a respeito das duas produções com ele. Era como se fossem
trabalhos totalmente diferentes, e o mais interessante, incansáveis de serem vistos, tamanho o
envolvimento que proporcionaram ao público.

Além da mistura dos tipos de comédia, Arraes traz à sua produção a mistura de
gêneros, inserindo um “quê” de documentário ao Auto. O gênero documentário traz a
exposição de um tema. O enfoque não é o ator e sim o tema a ser explorado, usando pessoas
reais, em situações reais. Com raras exceções, o documentário ganha forma na montagem e
não na filmagem (e suas diversas possibilidades de exploração) como na comédia. Nas cenas
23 da minissérie e 16 do filme (apelando para Nossa Senhora), Arraes ilustra as palavras de
Nossa Senhora com fotos reais que retratam a miséria, a força, a garra e a esperança do povo
brasileiro, em especial do povo nordestino. A Santa passa de personagem a narradora da
história.

3.4 - Narrativa Linear, Montagem Não Linear

O Auto possui uma narrativa linear que é composta por códigos como o objetivo do
personagem principal – João e Chicó tentam se livrar da pobreza e da exploração, o
antagonista tão superior em seu contra-objetivo, faz do protagonista um herói – O padre, o
Bispo, o padeiro e sua esposa, diante de todas as situações dão à João e Chicó esse status, a

30
fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/auto-da-compadecida/auto-da-
compadecida.htm#Curiosidades- 16/03/2006
31
Entrevista com Guel Arraes em Recife/PE, em 03/11/2004.
trama variando do ponto ao contra-ponto em velocidade acelerada e a resolução que justifica
todos os acontecimentos.

Além da narrativa linear, o Auto foi filmado em película, mas seu processo de montagem
não obedeceu aos padrões da linearidade. Como posto na introdução deste trabalho, a
digitalização promoveu uma revolução tecnológica, o que permitiu a Arraes o transporte da
produção em película para o computador, realizando a montagem da obra de forma não-linear.

Esse processo permite variações de todos os tipos, mas, o que será aqui analisado, é a
possibilidade no sentido técnico de agilizar o trabalho e conseguir os resultados esperados
com economia de tempo e conseqüentemente de dinheiro.

A tecnologia digital proporciona a integração de sons de origens diversas, misturando sons


naturais a sons eletrônicos. A ampliação do arranjo cromático, misturando cores e nuances
diversas, permitindo uma mobilidade das cores na tela, como a representação do céu no Céu
de o Auto. Há também a possibilidade de exploração de composições complexas, como o uso
de transparências, efeitos de espelhos e fusões.

Augusto (2004, p. 132) fala de uma nova estruturação do plano e da montagem, trazendo
exemplos da obra de Peter Greenaway, que segundo ela

Marca a dissolução das fronteiras formais e materiais entre os suportes e entre as


linguagens: parte é vídeo, parte é fotografia, parte é desenho, parte é gerado em computador. E
tal estrutura é a prova da capacidade do cinema de interagir com diferentes mídias, apresentando-
se como um território sem fronteiras aberto a invenção de cada autor.

É nesse território que o audiovisual contemporâneo está se constituindo, permitindo a


elaboração de produtos como O Auto da Compadecida, que podem se montar, moldar e
circular entre os meios graças as suas características múltiplas, graças aos avanços
tecnológicos e a visão experimentalista de realizadores como Guel Arraes.
A hipótese de como a produção O Auto da Compadecida consegue transitar entre os
meios pôde ser observada na análise realizada nos principais componentes narrativos
estudados.

A concepção do roteiro, uma adaptação do livro homônimo de Ariano Suassuna, com a


junção de outras histórias do mesmo autor, a caracterização dos personagens, a utilização de
uma estrutura clássica, abriram a possibilidade do uso das células dramáticas – histórias
completas dentro de uma história central, possibilitando seu livre manuseio na hora da
montagem.

O cuidado com a coleta das imagens em múltiplos planos, trabalhando com o conceito de
cena / seqüência e a ênfase à mise-en-scène, contribuíram para a montagem das células
dramáticas.

Na montagem é visível a mistura de estilos e a forte inspiração experimentalista


griffithiana de Guel Arraes. Na minissérie pode-se ver a construção das seqüências e das
células dramáticas e na edição da minissérie para o filme, a construção de novas seqüências
com a desconstrução e remontagem das células.

Esses elementos permitiram a elaboração de trabalhos, cuja construção narrativa é


intermultimídia, ou audiovisual contemporânea, e que traz uma convergência entremeios. Em
entrevista à Revista de Cinema32 (ano I, n. 6, outubro de 2000), Arraes declara que:

“Discute-se muito a questão da estética da TV e do cinema, e eu acredito que em muitos


produtos não existe uma diferença e que o resultado pode transitar entre os dois veículos. Não
digo que esse trânsito se aplique a todos os produtos da TV, mas no caso de O Auto da
Compadecida”, e também o início de “O Rei do Gado”, a série “Engraçadinha”, “Agosto”,
“Luna Caliente”, entre outros, pela ‘linguagem de cinema’ poderiam perfeitamente ir para a
tela grande.”

32
Ver anexo
A essa ‘linguagem de cinema’ a que Arraes se refere, deve-se levar em consideração toda
história audiovisual e as influências de um meio no outro, trabalhadas na dissertação.

Há o fato da narrativa ter sofrido uma montagem não linear, facilitando efeitos, cores e
fusões.

Todos esse pontos são relevantes para os novos modelos de estruturação das produções,
permitindo misturas diversas de técnicas, gêneros e principalmente de meios. Assim, nota-se
que falar em narrativa intermultimídia ou narrativa audiovisual contemporânea, já não é ser
vanguardista, e sim estar atento às novas possibilidades cada vez mais inovadoras. O Auto é
apenas uma expressão desse movimento audiovisual, que além dos elementos citados, ainda
contou com a tecnologia digital.

Várias serão as facetas que esse momento do audiovisual vai mostrar e desenvolver. Hoje
estamos falando de uma obra que consegue circular livremente entre os meios, mas não há
uma previsão certeira dos caminhos que serão trilhados e muito menos das possíveis direções
que os experimentalistas vão tomar. Sabe-se apenas que tudo está em transformação e
movimento.

O que chama a atenção para o que foi aqui analisado, é antes de tudo, a proximidade com
o público que toda essa mistura proporcionou. Raras são as produções que conseguiram ser
tão intimistas como O Auto, e raros são os personagens que conseguiram ser tão próximos e
inesquecíveis como Grilo e Chicó, seja na televisão, seja no cinema.
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