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O surgimento de novas mídias sempre intimidou aquelas já existentes. Assim foi com
o livro e o surgimento do jornal, a fotografia e o cinema, o cinema e o vídeo4, citando as de
maior abrangência. Porém, o que o tempo tem demonstrado é que, ao invés da previsão de
uma mídia extinguir a outra, elas estão adquirindo um caráter de intercomplementariedade.
Isso não significa que não haja uma competição entre as mídias, e sim que, apesar dela, há
uma tendência de se criar redes, em que cada mídia, graças a sua natureza, possui uma função
diferenciada na emissão das mensagens5. “Quando uma nova mídia surge, geralmente provoca
atritos, fricções, até que gradativamente as mídias anteriores vão, com o passar do tempo,
redefinindo as prioridades de suas funções” (SANTAELLA, 2003, p.40).
1
Todo suporte de difusão da informação que constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir
mensagens.
2
O termo usado aqui foi renomeado ampliando o conceito proposto por Santaella (2003: 43) de que as
mensagens produzidas pelas mídias se organizam no entrecruzamento e na inter-relação de diferentes códigos de
processos sígnicos diversos, compondo estruturas de natureza altamente híbrida.
3
Termo utilizado por Bezerra em seu artigo Bakhtin e a estética audiovisual contemporânea, referindo-se as
produções que se organizam no trânsito de linguagens entre os meios.
4
Termo usado para designar as imagens codificadas em linhas sucessivas de retículas luminosas, incluindo-se a
televisão, segundo Arlindo Machado, 1988.
5
Fato que não modifica a proposta de Mcluhan de que o meio é a mensagem, ou seja, “as conseqüências sociais
e pessoais de qualquer meio... constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou extensão de nós mesmos”, pois a “mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de
escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas”, segundo McLuhan..
“A audição de uma notícia no boletim radiofônico, por exemplo, na maior parte das
vezes, desperta a curiosidade do ouvinte, levando-o a buscar o noticiário da TV em busca de
maiores detalhes e, principalmente, das imagens vivas da notícia para a qual foi despertado.
Assim também, o noticiário noturno da TV, muitas vezes, leva o espectador a buscar o jornal
impresso do dia seguinte na expectativa de encontrar nele esclarecimentos e maior
detalhamento analítico e interpretativo” (p. 37 e 38)
Quanto mais as mídias se diferenciam entre si, mais os meios vão aprendendo o que as
novas mídias trazem e descartando o que passa a ser obsoleto. Um meio está absorvendo o
que o outro tem de melhor, tanto em técnica quanto em tecnologia. Pode-se observar
claramente o rompimento com as formas fixas e classificatórias. A interseção entre vídeo,
literatura, cinema, teatro, computação gráfica e quadrinhos está mais presente nas produções,
o que dificulta cada vez mais a classificação dos trabalhos em gêneros e linguagens
específicas. Christine Mello (2005), em seu artigo “Extremidades: desconstrução,
contaminação e compartilhamento do vídeo no Brasil”, analisa os deslocamentos e os
movimentos híbridos do vídeo em três pontas extremas: A desconstrução – em que há a
negação do meio e em seguida a expansão dos seus limites criativos; a contaminação – em
que há o diálogo do vídeo com outras linguagens, possibilitando associações com outros
processos comunicativos; e o compartilhamento – em que há uma completa descentralização
da linguagem do vídeo. Nessa extremidade o vídeo se constitui em um “campo
desterritorializado e nômade”. A proposta de Mello pode ser expandida também à análise das
outras mídias.
Durante muito tempo, os meios e seus críticos, inclusive os mais elitistas, que
defendiam a pureza e a supremacia de um meio em particular, trataram as mídias de forma
independente, como algo com características exclusivas e homogêneas. Mas os conteúdos dos
meios começaram a sair de suas limitações, permeando outros círculos, ou, conforme
Machado, os repertórios dos meios estão em expansão geométrica, redefinindo o pensamento
e a prática da mídia.
Para alguns estudiosos, como Wilson Dizard Jr. (2000), a mídia está passando por sua
terceira transformação, que:
A mídia entrou na era digital, com todas as informações geridas e gerenciadas por um
sistema binário6. Ele registra valores que são atributos das coisas que estão a ser codificadas,
não analogias delas, o que torna a informação codificada de forma digital uma “matéria”,
pronta a sofrer todas as metamorfoses, a aceitando todos os envolventes e deformações. O
autor acima citado esclarece:
Dizard também evidencia que o mundo está passando por um “surto tecnológico”, e
que o ponto mais forte é a transição da tecnologia analógica para digital, o que aumenta as
possibilidades de interseções entre as mídias e suas intercomplementariedades. Mas esse fato
6
Termo utilizado por Lévy, 1993.
causa reações diversas nos seus receptores, dependendo do meio que utiliza para o seu
transporte e absorção. Fazer uma produção para o cinema ou vídeo pode ser indiferente, pois a
construção narrativa utilizada poderá ser a mesma. A diferença vai estar no receptor, ao
decodificar a mensagem, que em cada mídia utilizará diversos sentidos receptores, o que
produzirá efeitos psicofísicos e cognitivos distintos, tanto para uma mídia quanto para outra.
7
Produzido pela TV Tupi, de 1952 a 1967, o TV de Vanguarda foi uma das mais arrojadas tentativas de se fixar
uma linguagem televisual ao tentar reproduzir na tela, uma estética cinematográfica. A utilização de metáforas e
redes metafóricas detectáveis por intermédio da repetição, de formas de insistência ( primeiros planos,planos
longos, ângulos insólitos,ou de ampliação ( deformações visuais, aumentos, efeitos sonoros etc) da imagem não-
diegética, à figura diegetizada, isto é, plenamente integrada no mundo representado; tudo isso eram recursos de
uma cartilha fílmica que foram assimilados pelos diretores de TV.
8
O cinema novo é a versão brasileira de estéticas cinematográficas nascidas após a II Guerra Mundial, como o
neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa, que contestavam as grandes produções da época, o
artificialismo, e se recusavam a ser apenas diversão. Primeira experiência importante no cinema do terceiro
mundo, pretendia promover a discussão política com filmes que enfocavam problemas sociais.
9
A empresa Globo Filmes foi criada no final de 1997 para dar continuidade à estratégia estabelecida pela TV
Globo de ampliar a participação da empresa nas áreas de comunicação e entretenimento. Seus principais
objetivos são: reforçar a indústria brasileira audiovisual unindo-se ao esforço dos produtores e realizadores
além de diretor de Programação da TV Globo, dirigiu filmes como A Partilha e Se Eu Fosse
Você).
Entre os mais novos, destacam-se primeiramente, Sandra Kogut (que trabalha com
simultaneidade e mestiçagem dos meios, desde 1984 realiza performances, programas de TV,
vídeos e filmes publicitários. Um dos destaques de seu trabalho é Parabolic People), João
Moreira Salles e Walter Salles (iniciaram seus trabalhos com documentários. Realizaram
importantes projetos para a TV como a série Japão, uma viagem no tempo. João continua
fazendo documentários como Notícias de Uma Guerra Particular e Walter migrou para a
ficção levando a base documental. Dentre seus principais trabalhos estão Central do Brasil e
Abril Despedaçado). Outros destaques são Jorge Furtado (um dos criadores da Casa de
Cinema POA10, roteirista e diretor de TV e Cinema. Dentre seus trabalhos estão os filmes O
Homem que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara), Marcelo Tas (que participou da criação de
programas inovadores na TV brasileira como Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum e Vitrine. É
um dos membros fundadores da produtora independente Olhar Eletrônico), João Falcão (que
faz roteiros para o teatro, TV e cinema. O Auto da Compadecida, A Comédia da Vida
Privada, Sexo Frágil e A Dona da História figuram entre seus trabalhos) e Guel Arraes
(criador, autor, produtor e diretor de teatro, TV e Cinema) nomes que deram uma grande
contribuição ao desenvolvimento audiovisual brasileiro.
Dos profissionais citados, destaca-se Guel Arraes, que em 1999 gravou a minissérie O
Auto da Compadecida, sendo lançada também no cinema em 2000. Miguel Arraes de Alencar
Filho nasceu no estado de Pernambuco e teve a vida tumultuada quando no ano de 1964 o seu
pai, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, foi cassado e exilado pela ditadura por
conta de suas atividades políticas. Arraes ficou cinco anos morando no subúrbio de Recife
sem ver o pai e, em 1969, desembarcou na Argélia junto com os irmãos para reencontrar o
pai.
nacionais, através da produção ou co - produção de uma carteira de filmes que primem pela qualidade e valor
artístico, e aumentar a sinergia entre cinema e TV.
10
A Casa, criada em 1987, já foi uma cooperativa de 11 realizadores reunidos em 4 pequenas produtoras,que
passaram a ter um espaço comum para trabalhar a distribuição dos filmes já realizados e o planejamento e
realização dos próximos projetos, hoje é uma produtora independente, com 6 sócios.
Na Argélia, as diferenças culturais o levaram a se refugiar nos livros e a vivenciar
intensamente as discussões políticas que faziam parte do cotidiano de sua casa. Após três
anos, mudou-se para Paris e cursou Antropologia na Universidade de Paris VII. Arraes iniciou
seu aprendizado em cinema com um amigo de seu irmão mais velho, que fazia filme em
super-8. E foi assim, sem grandes pretensões, que começou a sua carreira. Ingressou no
Comitê de Filme Etnográfico, que era dirigido por Jean Rouch, mestre do Cinema Verdade11,
trabalhando como projecionista, arquivista e montador e chegando a ter uma breve
experiência como Assistente de Jean-Luc Godard. Seus primeiros trabalhos foram
documentários gravados em super-8. Dirigiu quatro curtas e um media-metragem, intitulado
Barbes Palace, em parceria com Ricardo Lua em 1979, mesmo ano em que retornou ao
Brasil.
Em 1981, Guel Arraes foi convidado para um estágio na televisão pelo diretor Paulo
Ubiratan. O que iria ser mais uma experiência antes de começar a fazer cinema, o seu grande
sonho, já dura mais de 20 anos. Em entrevista à revista SET em 2001, Guel Arraes mencionou
que a televisão foi muito generosa com ele, onde fez os filmes que quis e que, considerando
que no Brasil, a televisão é uma produtora tão boa, sempre se perguntava o que teria feito se
estivesse o mesmo período no cinema.
O estilo Guel Arraes reúne o uso de planos curtos e uma edição ágil, a mistura de
elementos ficcionais e não-ficcionais. Explora recursos técnico expressivos do sistema linear
– cortes, fades, fusões, e etc. – e os processamentos digitais das imagens em sistema não
linear – controle de cor, recortes, colagens, etc. Conforme Fechine (2003), Arraes possui um
tipo de montagem em que o sentido das seqüências, editadas a partir de cortes sempre muito
rápidos, depende das associações e contraposições criadas pelo modo como relaciona recursos
gráfico-visuais e sons com a mise en scène dos atores num contínuo jogo de
11
Método de trabalho de documentário
intertextualidade com outros meios (cinema, quadrinhos, teatro, etc). São recorrentes no
trabalho de Arraes as similaridades temáticas, a repetição de elementos do seu estilo visual
nos diferentes trabalhos, bem como o uso e abuso das cores fortes e vibrantes. Ele é um
mestre na liberalidade e audácia da experimentação.
Nas gravações de O Auto da Compadecida, chegou a rodar setenta planos por dia, um
ritmo alucinante de produção, o que exige perfeita sintonia do diretor com a sua equipe. Guel
Arraes ensaia tudo com muita antecedência e na hora da ação, se transforma em uma espécie
de “crooner”12, entrando em perfeita sintonia com toda a equipe e atores.
A distância de Guel Arraes em seu período de exílio do país não o afastou das suas
raízes nordestinas. As sandálias de couro e o sotaque fazem parte do seu cotidiano, assim
como o gosto por histórias ambientadas no nordeste, de onde ele resgata com muita maestria o
humor e a forma mais leve de viver.
Como criador, produtor e diretor, Guel Arraes é um dos nomes mais ligados à
renovação da dramaturgia e humor na televisão brasileira. Desde o seu início na TV renovou
as bases do humor e da comédia. Em 1993 deu início ao Projeto de Dramaturgia Especial,
voltado para inovadoras adaptações de clássicos da literatura e do teatro. Seus principais
trabalhos foram:
1981 – Jogo da Vida (direção juntamente com Jorge Fernando e Roberto Talma)
1982 – Sétimo Sentido e Sol de Verão (direção juntamente com Jorge Fernando e Roberto
Talma)
1983 – Guerra dos Sexos (direção juntamente com Jorge Fernando)
1984 – Vereda Tropical (direção juntamente com Jorge Fernando)
12
Cantor de música popular que canta com orquestra ou conjunto instrumental.
1985 / 1988 – Série Armação Ilimitada
A série jovem inovou a linguagem televisiva no Brasil, fazendo uso do humor satírico e do
tom surreal conferido a algumas cenas, sendo considerada uma das mais completas traduções
das histórias em quadrinhos para a televisão no Brasil, com balões, recorte de quadros, edição
clipada, recorte de cores, citações da cultura pop, som, fúria e estilos de vida incomuns.
Outras séries dirigidas ou supervisionadas por Guel Arraes foram: Os Normais, Brava Gente e
A Grande Família.
Tecendo uma rede de mentiras e golpes de sorte, a história vai envolvendo todos os
personagens na busca pelo dinheiro e poder. A ganância e a esperteza dão um toque final,
promovendo um encontro no purgatório, tendo de um lado as portas do inferno e de outro os
ares do céu, sediando um julgamento, cujos atos dos réus dão pontos extras ao diabo. Somente
Nossa Senhora para compadecer e interceder pelos ali julgados, lembrando da mazela de ser
humano, de conviver com a fome e sobreviver à pobreza.
O terceiro núcleo é composto pelo padeiro e sua mulher. O padeiro, um homem avarento
que só pensa em ganhar dinheiro; e a mulher, esnobe e com duas fraquezas: bichos de
estimação e compulsão por adultério.
13
Publicações populares, geralmente em versos, assim chamadas pela forma como são vendidos os folhetos,
dependurados em barbantes (cordão), nas feiras, mercados, praças e bancas de jornal, principalmente das cidades
do interior e nos subúrbios das grandes cidades.
O quarto núcleo traz apenas o Major Antônio de Moraes, rico e poderoso fazendeiro
da região.
A história de Suassuna começa com Chicó e João Grilo tentando convencer o Padre
João a benzer o cachorro de seus patrões, o padeiro e sua mulher. À custa de um testamento
inventado por João Grilo, o Sacristão enterra o cachorro em latim e todos na Igreja, com
exceção do Frade, recebem alguns contos de réis. Na consumação da partilha, entram em
cena, com objetivo de assaltar a igreja, Severino de Aracajú e seu comparsa. Salvando-se
Chicó e o Frade, todos acabam mortos aguardando julgamento, cujo promotor é o Encourado
(o diabo), o defensor é Nossa Senhora e o Juiz é Manuel (Jesus Cristo). Repleta de situações e
diálogos engraçados, especialmente com as armações de João Grilo, a peça é envolvente e
traz à discussão a pobreza, soberba e misericórdia.
O roteiro da adaptação para a minissérie foi escrito por Adriana Falcão, Guel Arraes e
João Falcão. Segundo Syd Field (1995):
14
Forma que Suassuna usa para designar o sertanejo, na história João Grilo e Chicó - caracterizando a pessoa
sem valor, quase moribunda - mantido no roteiro adaptado.
além de ser amante de Vicentão, seduz Chicó. A cena da perseguição dos amantes (Chicó e
Vicentão) por Eurico, foi adaptada da peça Farsa da Boa Preguiça.
Através de uma de suas invenções, João Grilo arma uma disputa entre cabo Setenta e
Vicentão para provar quem é o mais valente, já que ambos querem o amor de Rosinha. Além
do duelo, há os presentes, ambos tirados de A pena e a Lei.
é a filha do major Antônio Moraes. Essa personagem não existe na peça. Ela
substitui o filho do major, apenas citado na peça, que está doente e vai de Taperoá para o
Recife fazer tratamento, e ganha espaço na história. A moça mora no Recife e quando chega
em Taperoá encanta a todos os homens com sua beleza e formosura. Vive um caso de amor à
primeira vista com Chicó. Rosinha precisa driblar o pai, que decide arrumar um casamento
com um homem rico e doutor para ela. É um personagem secundário inteligente e sensível,
que desenvolve um forte elo de ligação com João Grilo e Chicó.
é o homem mais rico da região. Personagem secundário que
ganhou mais espaço na adaptação. Homem alto, sério e que não faz questão de agradar
ninguém. Mora em uma fazenda próxima a Taperoá, e seu poder se faz presente até mesmo na
igreja.
recebeu este nome na adaptação. Ela está presente na peça, mas aparece apenas
como a mulher do padeiro. Sua personagem, que é uma antagonista, foi trabalhada de maneira
mais rica na adaptação. Mulher bonita e vaidosa possui três fraquezas, os animais de
estimação, dinheiro e um homem bravo. Entre os seus casos extraconjugais estão Vicentão e
Chicó.
15
O roteiro de O Auto da Compadecida citado neste estudo, refere-se a adaptação da peça feita para as
produções cinematográfica e televisiva de Guel Arraes.
16
Estrutura dramática clássica proposta por Syd Field
17
Segundo as Notas de Produção que acompanha os DVDs da minissérie e do filme (ver anexo).
14. A chegada de Rosinha
15. Presentes para Rosinha
16. Duelo com Chicó
17. Pretendente
18. Uma noite com Dora
19. Divisão do dinheiro com o Bispo
20. Invasão dos cangaceiros
21. Gaita milagrosa
22. O julgamento final
23. Apelando para Nossa Senhora
24. A volta de João Grilo
25. Chicó e Rosinha casados
26. O dinheiro da porca
27. Créditos finais
A situação que conduz a trama, ou as circunstâncias que giram em torno da ação, está
sempre relacionada aos protagonistas. As histórias inventadas, os planos e armações de João
Grilo e Chicó pela melhoria de vida - uma maneira de se tirar vantagem dos outros
personagens - a soberba de padre João e do Bispo, a ganância de Dora e Eurico como patrões,
os casos de amor de Dora e o ciúme de Eurico, e a história de amor vivida por Chicó e
Rosinha recheiam a trama e enriquecem o roteiro.
A cena Benção para a cachorra faz a exposição do problema da trama. Nela, João
Grilo faz uma armação envolvendo o nome do Major Antônio Moraes, para que Bolinha, que
está doente, seja benta pelo padre. A cena pontua bem a situação de que “pode mais” quem
“tem mais”, trabalhada constantemente na história.
Após a morte de Bolinha, Dora decide enterrá-la com acompanhamento feito pelo
padre e a benção dada em latim na cena A morte da cachorra. Frente à recusa do padre é
armada uma situação de conflito entre Dora e padre João. A promessa de guerra à igreja
começa com a ameaça da demissão de Eurico da Irmandade das Almas, juntamente com o não
fornecimento de pão gratuito e o dinheiro para a reforma da igreja, como também a devolução
da vaca emprestada ao padre para o fornecimento de leite. Para apaziguar a situação, João
Grilo inventa a história do testamento de Bolinha, que deixa três contos de réis para a igreja se
for enterrada como cristã.
O conflito aparece na cena Explicações para o bispo. Nela, o bispo censura a postura
de padre João frente ao Major Antônio Moraes, pedindo explicações por ter chamado sua
esposa e filha de cachorras. A fim de se desenrolar da história – armação de Grilo – padre
João acaba ainda mais enrolado com o acontecimento do enterro em latim, outra armação de
Grilo.
O ponto de virada, que reverte a ação em outra direção e marca a entrada da história
no segundo ato, é a cena Encontro com Chicó. Nela, Dora está em casa e demonstra seu
interesse por Chicó. Uma confusão é armada quando Vicentão, seu outro amante, aparece.
Para piorar a situação, Eurico bate à porta enquanto os dois amantes de Dora estão dentro de
casa.
O segundo ato, que marca a confrontação, tem início com a cena O gato que
“descome” dinheiro. Nela, Grilo tenta enganar os patrões da padaria vendendo um gato que,
segundo ele, defeca dinheiro. A cena traz vários obstáculos aos protagonistas.
Com a complicação da situação criada por Grilo com o gato, a saída é simular sua
própria morte, na cena A morte de João Grilo, que tem Chicó como cúmplice. A idéia era que
todos acreditassem em sua morte para que Grilo conseguisse fugir de Taperoá com o dinheiro
da venda do gato. Em meio ao seu cortejo, a situação piora, pois a cidade é invadida por
cangaceiros, o que faz com que Grilo “ressuscite” e salve a cidade.
João Grilo arma outras situações como o casamento de Chicó e Rosinha, o duelo de
Chicó com os valentões cabo Setenta e Vicentão, uma noite de amor de Chicó com Dora e
uma armação envolvendo padre João e o Bispo, na simulação de morte de Chicó. A essa
altura, a situação dos protagonistas está mais do que enrolada e piora na cena Invasão dos
cangaceiros, quando Severino de Aracaju retorna a Taperoá e toma a cidade.
Severino manda seu Cabra matar o padre, o bispo, o padeiro, Dora, João Grilo e
Chicó. Quando chega a hora de Grilo e Chicó morrerem, há uma tentativa de normalização na
cena A gaita milagrosa, em que João inventa à Severino a história de uma gaita benta por
Padre Cícero, que possui o poder de ressuscitar os mortos. João convence Severino a ir
“conhecer” o Padre Cícero, já que a gaita poderá ressuscitá-lo. Severino obriga seu Cabra a
dar-lhe um tiro no peito, acreditando que poderia conhecer Padre Cícero e voltar a viver.
João acaba morto também pelo Cabra de Severino. Os seis personagens, Grilo,
Severino, Padre João, o Bispo, Eurico e Dora acabam se encontrando no céu. A crise se
instaura na cena Julgamento final, quando o Diabo aparece e quer levar todos para o inferno.
O ponto de virada que marca a entrada da história no terceiro ato é a cena Apelando
para Nossa Senhora, em que João Grilo convoca Nossa Senhora para ser a advogada de
defesa dos seis réus no julgamento.
A resolução da trama tem início com a solução do Julgamento. A apelação de Nossa
Senhora a Emanuel absolve Severino de Aracaju, que vai para o céu. Padre João, o bispo, o
padeiro e sua mulher conseguem uma vaga no purgatório e João Grilo, cuja situação era a
mais difícil dos seis, ganha uma segunda chance, retornando à terra.
Grilo volta antes que Chicó faça seu enterro. O protagonista não possui recordação de
seus momentos no céu e acha que o tiro que levou o atingiu apenas de raspão, fazendo com
que ele estivesse desmaiado durante todo tempo.
A história entra no seu clímax na cena Chicó e Rosinha casados, pois Chicó precisa pagar
dez contos de réis ao Major para poder se casar com a filha de Antônio Moraes. Rosinha tem
a idéia de usar o dinheiro da porca-cofre, que vai ganhar de herança da sua bisavó no dia de
seu casamento, para Chicó poder saldar a dívida com o Major.
18
Diagrama proposto por Doc Comparato, 1995.
1.4 – Duas produções, um roteiro
Alguns veículos de comunicação20 chegaram a divulgar que dois roteiros haviam sido
concebidos. O roteiro da minissérie seria baseado apenas na obra de Suassuna e o roteiro do
filme teria influência de obras clássicas como Decameron de Bocaccio, com cenas inéditas.
19
Entrevista com Guel Arraes em Recife/PE, em 03/11/2004 (ver anexo).
20
Os sites www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm e
www.edukbr.com.br/leituraeescrita/junho01/oauto.asp (ver anexo)
o que pode ser observado nas Notas, e que será averiguado mais adiante no capítulo 3, Arraes
extraiu algumas cenas da minissérie, mas não escreveu e/ou incluiu nenhuma cena inédita no
filme.
Fazendo uma análise de forma geral, o roteiro do filme continua sendo de estrutura
clássica, tendo apenas algumas poucas modificações, como a antecipação do problema que
acontece no primeiro ato com a cena O testamento e que passa a ser a cena A morte do
cachorro, que também marca a promessa.
No segundo ato, o obstáculo que acontece com a cena O gato que “descome” dinheiro
passa a acontecer na cena Pedindo emprego ao major, que também vai pontuar a complicação
do problema.
A seqüência é o elemento que move a história, ela tem início, mas não tem uma
conclusão. No decorrer da história, a mudança de seqüências move personagens e
acontecimentos para o final. Em O Auto da Compadecida, pode-se notar um elemento novo,
que será chamado aqui de célula dramática. Ela é uma ou várias histórias dentro de uma
história central. A história, como visto, é dividida em atos, com inicio meio e fim que tem a
seqüência como força motriz. A célula dramática é uma história com início, meio e fim, que
compõe partes da história central, não interferindo no eixo principal da história. As células
encorpam a história, mas podem ser movidas sem perda de sentido e coesão.
As células dramáticas estão presentes no Auto do início ao fim da obra. Pode-se constatar
que a maior parte das cenas excluídas do filme integra uma célula dramática. O uso das
células contribuiu para o estilo de edição e montagem21, utilizados no Auto.
1. Filme na igreja
2. Os cangaceiros na cidade
3. A visita do major
4. O gato e a morte de João
5. O duelo
6. Uma noite com Chicó
7. Dispensa da promessa
Severino volta para o sertão e reencontra seu bando decidindo atacar a cidade. O
ataque de Severino acontece em meio ao “enterro” de João Grilo – cena que compõe também
a célula quatro, O gato e a morte de João. João Grilo ressuscita e diz a Severino que Padre
Cícero o mandou de volta para pedir que a interrupção do ataque à Taperoá. Severino, muito
temente a Padre Cícero, acata a ordem do “Santo”. Alguns dias após a festa da Padroeira, ele
volta a atacar a cidade, dessa vez, concluindo seu ataque e ainda matando o Bispo, o padre, o
21
Ver capítulo III
22
A identificação das células aqui citadas foi realizada através da minha análise.
padeiro e sua mulher e perdendo a vida graças a uma tramóia de João – cena que compõe
também a célula sete, Dispensa da promessa.
A célula dramática dois está presente no filme, mas com a exclusão de algumas partes.
Ela começa quando Severino de Aracaju se disfarça de mendigo e fica rondando Taperoá para
conhecer melhor a cidade, seus habitantes e a ação da polícia. Severino entra em contato com
alguns personagens pedindo esmola. Mostra parte do encontro de Severino com seu bando no
sertão. O primeiro ataque é inteiramente excluído e o final acontece como na minissérie,
alguns dias após a festa da Padroeira, Severino ataca a cidade, matando o Bispo, o padre, o
padeiro e sua mulher e perde a vida graças a uma tramóia de João.
O cenário de O Auto da Compadecida mostra uma cidade pobre e castigada pela seca.
As casas e suas fachadas são simples, bem como a maioria dos objetos de cena. A única casa
requintada é a casa do major Antônio Moraes.
A cidade escolhida para a realização das filmagens foi Cabaceiras, na região do Cariri
Velho, a 200 km de João Pessoa. A cidade ainda tinha as características arquitetônicas da
utilizada na década de 1920 preservadas, especialmente o centro histórico. Ainda assim, a
produção precisou adaptar as fachadas de cinqüenta e nove casas, trocar vinte e dois postes de
iluminação e esconder os cabos telefônicos. Apenas a igreja foi totalmente pintada. Segundo
Graeme Turner,
“inconscientemente, aprendemos muito com a mise-en-scène. Quando reconhecemos o
interior de uma residência como sendo de classe média, cheia de livros e ligeiramente
antiquada, estamos lendo os signos da decoração para lhes dar um conjunto de significados
sociais... a construção de um universo social é autenticado pelos detalhes da mise-en-scène”.
(p. 66)
“Nós tínhamos uma dica de um céu, porque é o céu imaginado por João Grilo. Assim
mostramos o céu propriamente dito, com nuvens, e ainda anjos, Jesus, Nossa Senhora, com
aspectos de pintores primitivos italianos que seriam enriquecidos por tons de dourado.
Notamos ainda que as cores do céu eram as mesmas do sertão, com o ouro, barro, vermelho,
palha, palha queimada”.
23
Segundo as Notas de Produção
nordestino. As roupas em sua maioria são de algodão, linho e rendas. As exceções ficam por
conta dos figurinos do Bispo, padre João, Diabo, Nossa Senhora e Emanuel.
Personagens como João Grilo e Chicó - os mais pobres da história - tiveram suas
roupas fervidas em um caldeirão, tingidas e lixadas várias vezes. As roupas de Rosinha foram
feitas de toalha de mesa e rendas como labirinto, renascença e filé.
- João Grilo recebeu uma prótese com dentes amarelos e irregulares. A pele também
foi escurecida. Teve a barba por fazer e os olhos ligeiramente vesgos. Seu sotaque
característico ficou ainda mais forte com o uso de expressões populares.
- Rosinha possui a aparência de uma personagem saída de contos de fada. Sua beleza é
realçada por sua meiguice, doçura e gentileza. Suas roupas, feitas de toalhas de mesa
rendadas, evidenciam sua personalidade.
- Dora usava roupas coloridas e com muitos tons de vermelho, além é claro do uso
constante de batom vermelho.
- Emanuel usou vestes longas em tons claros com detalhes típicos de gravuras da
época medieval, com um toque de vestes de peça teatral, como o sagrado coração
rodeado de espinhos feito de tecido colado na túnica.
- O anel do Bispo: representa o poder, quando é usado por ele sendo beijado pelas
outras personagens, e a perda de poder, quando é retirado dele por Severino.
2.2 – A Cena
Como visto no capítulo 01, O Auto minissérie é dividido em vinte e sete cenas e O
Auto filme em vinte cenas. As cenas - seqüências – são formadas por takes obtidos em
diferentes locais. Algumas cenas são formadas por takes que misturam também os temas.
A cena Uma noite com Dora está presente apenas na minissérie. João Grilo e Chicó
estão andando na rua voltando da casa do major após Chicó ter pedido a mão de Rosinha em
casamento. Chicó está devendo dez contos de réis para o major e se não tiver o dinheiro, o
major vai tirar-lhe uma tira de couro para saldar a dívida.
Chegando à padaria, Chicó – que está todo arrumado – ao entrar se encontra com
Dora, que elogia Chicó e se insinua a ele. Como Chicó está muito preocupado com sua tira de
couro, ele entra em outro cômodo da padaria fazendo uma desfeita a Dora, que fica indignada.
Então João Grilo lhe explica que agora Chicó só tem olhos para Rosinha.
Dora faz uma proposta a João. Se ele conseguir convencer Chicó a passar a noite com
ela, receberá dez contos de réis. João aceita o trato e vai até a área de produção da padaria
para convencer Chicó. A princípio ele fica feliz, pois é a chance de conseguir o dinheiro para
pagar o major e se casar com Rosinha, mas então ele se lembra da promessa feita a Nossa
Senhora, de que não se deitaria com mulher nenhuma, apenas Rosinha. João tem uma de suas
idéias e convence Chicó a se encontrar com Dora à noite.
Chicó vai à casa de Dora e ela o carrega para o quarto. Enquanto isso, João Grilo se
encontra com Eurico na rua e pergunta se o patrão vai para casa. Eurico responde que não e
entra em um bar. João faz Eurico pensar que Dóra está com outro homem em casa e os dois
saem andando pela rua.
Quando Eurico chega em casa com João, Dora esconde Chicó no armário. Eurico e
João entram no quarto. Eurico ameaça Dora enquanto João o faz pensar que o amante de Dora
é Chicó e que este estará atrás da igreja esperando por Dora. Eurico sai de casa vestido com as
roupas de Dora para encontrar Chicó.
Chicó sai de dentro do armário e vai se encontrar com Eurico. Chegando lá, ele
começa a bater em Dora/Eurico, e faz Eurico acreditar que ele estava era tentando salvar o
patrão da reputação de ‘corno’. Eles fazem tanto barulho que padre João vem ver o que está
acontecendo.
Enquanto isso, na casa de Dora, João cobra o dinheiro por ter trazido seu amante de
volta, ter livrado ela do flagrante e ainda ter feito Eurico acreditar que ela é uma esposa digna.
Dora coloca João Grilo para fora de casa e diz que não vai pagar nada, pois o trato era dez
contos de réis por uma noite de amor e que ela havia ficado apenas com o calor. Caso João
trouxesse Chicó de volta, ela pagaria o dinheiro.
No dia seguinte, João e Chicó estão na área de produção da padaria tentando bolar um
novo plano para arrumar o dinheiro do major.
A cena/seqüência A volta de João Grilo começa quando João está no céu descendo
para a terra, e sem lembrança de sua passagem no céu, vê abaixo de si Chicó cavando uma
vala. João se pergunta o que Chicó está fazendo lá embaixo, depois se pergunta o que ele,
João, está fazendo lá em cima e novamente o que ele, o corpo de João, está fazendo lá
embaixo.
João acorda e vê que está deitado na carroça enquanto Chicó cava um buraco. João
começa a fazer ruídos e Chicó acredita que a alma do amigo está rondando o local. João
conversa com Chicó e diz que ainda está vivo, mas Chicó não acredita.
João Grilo convence Chicó de que está vivo e ambos comemoram que João não está
morto e que agora estão ricos24. Chicó começa a se lamentar e conta a João que havia feito
uma promessa a Nossa Senhora. Se João escapasse da morte, ele doaria todo o dinheiro para a
santa. João diz que o problema é dele e pede a Chicó a sua parte do dinheiro. Chicó entrega o
dinheiro a João e diz que ele é que vai fazer o acerto com a santa depois.
João volta atrás e vai junto com Chicó até a igreja para pagar a promessa. Chegando
lá, Chicó se lembra do dinheiro prometido ao major e pensa em desistir do pagamento da
promessa. João conversa com o amigo e eles depositam o dinheiro na caixa de doações do
altar de Nossa Senhora.
24
Durante a invasão dos cangaceiros, Severino roubou dinheiro de várias pessoas, e quando Severino morreu,
Grilo pegou o dinheiro para si. Após a morte de Grilo, Chicó “herda” o dinheiro de Grilo.
2.3 – Os Planos
Para Doc Comparato (1995, p. 314), os hábitos dos espectadores e dos diretores têm
produzido alterações na leitura e escrita dos planos, especialmente os subsequentes. Fato que
pode ser observado em produções televisivas, como A casa das Sete Mulheres25 e em
produções cinematográficas , como Thelma e Louise26. A interação das técnicas não mais
habilita a convenção do uso dos planos de forma diferenciada. Um plano, como diz Syd Field
(1995, p.156), é o que a câmera vê, e a câmera pode ter uma visão tão geral ou específica
quanto à produção da peça.
A cena 12, A morte de João Grilo, começa com padre João executando os serviços
fúnebres para João Grilo, que em mais um de seus planos está se passando por morto. Após a
saída de Padre João, Grilo começa a conversar com Chicó tramando como será realizado seu
enterro.
Chicó leva a carroça com o corpo de João Grilo para ser sepultado na cidade em que
ele nasceu. Esse é o pretexto para que, segundo os planos de João, o cortejo desista de seguir
o enterro e João possa fugir com sua parte do dinheiro da venda do gato que descomia
dinheiro.
25
Produção da Rede Globo de Televisão, direção de Jaime Monjardim.
26
Filme de Ridley Scott.
Quando o cortejo entra na estrada saindo de Taperoá, os cangaceiros iniciam um
ataque à cidade e levam os moradores que estavam na rua para dentro da igreja, inclusive o
corpo de Grilo. Na hora em que o Cabra de Severino vai cutucar a boca do defunto à procura
de dente de ouro, João simula sua ressurreição, dizendo a Severino que Padre Cícero o
mandou de volta para pedir que o ataque a Taperoá fosse interrompido imediatamente.
Com a retirada dos cangaceiros, a cidade entra em festa e João se torna o herói. Na
festa, Eurico e Dora levam João e Chicó à padaria para tirar satisfação a respeito da venda do
gato e resgatar o dinheiro. João pede sua demissão e sai feliz para curtir a festa.
O Bispo vai até a fazenda explicar ao major a confusão feita por padre João quando
chamou equivocadamente Rosinha e sua mãe de cachorras. Enquanto isso, a festa da
padroeira começa na cidade e Eurico e Dora contam a Vicentão, que estava viajando, o
acontecido com os cangaceiros.
A chegada de Rosinha é uma cena/seqüência que está presente na minissérie e no
filme. A cena começa com a chegada da polícia à cidade de Taperoá na noite da festa da
padroeira. Eurico, Dora e Vicentão se apresentam ao Cabo Setenta. Rosinha chega à cidade e
vai cumprimentar Eurico e Dora.
Rosinha segue para a igreja para receber a benção do Bispo. Vicentão e Cabo Setenta
vão atrás dela. No caminho, há uma queima de fogos e Rosinha e Chicó se encontram pela
primeira vez. Rosinha fica encantada por ele. João aparece para conduzi-la à igreja. Ela pede a
João para lhe comprar um confeito e tenta voltar para perto de Chicó. No caminho se encontra
com Vicentão e depois com cabo Setenta, solicitando a ambos a compra do confeito. Quando
chega até Chicó, ele lhe entrega um confeito. Ao final da missa, Chicó dedica uma canção a
Rosinha, dando início à história do Auto.
2.4 - As histórias de Chicó
As cenas que serão aqui analisadas compõem a seleção efetuada por Arraes e sua equipe,
na minissérie e no filme. Essa escolha está descrita nas Notas de Produção e são visualizadas
no DVD através do menu, em seleção de cenas.
Na análise que se segue, as cenas foram ordenadas por número e nome27. A primeira
coluna traz a minissérie e a segunda o filme. Cada cena descrita traz a pontuação de seu
início, meio e fim, sendo possível a visualização de supressões, inclusões e qualquer outro
tipo de alteração realizada na montagem das duas produções.
Minissérie Filme
Final: Dora imprensa Eurico para saber onde Supressão 2: Dora manda Grilo e Chicó
ele havia passado a noite. chamar o padre. Eles interrogam Dora sob o
padre benzer uma cachorra. Eles vão à igreja
e Dora com Bolinha no colo fica brigando
Cena 5 (bênção para a cachorra) com Eurico.
Final: >História de Chicó: Passagem do Início: Dora, Eurico e João estão na igreja
Riacho. conversando com o padre.
Início: Chicó vai até a porta conversar com Supressão 3: Acerto do enterro entre o padre,
Dora, que está sentada do lado de fora em Dora e Eurico.
uma cadeira.
Supressão 4: João e Chicó falam sobre
>História de Chicó: Papagaio que pregava. assombração e Chicó conta a sua história da
Final: Dora, após quase ter sido pega em passagem do Riacho.
flagrante, chama Eurico para o quarto.
Final: Acerto do enterro da cachorra entre
Cena 11 (o gato que “descome” dinheiro) João e o padre. Essa cena faz parte da cena
8 da minissérie – o Testamento.
Início: João leva o gato que descome
dinheiro para Dora. Cena 6 (explicações para o Bispo)
Final: João simula a própria morte.
Início: Padre João entra na igreja contando o
dinheiro recebido do “testamento” e
Cena 12 (a morte de João Grilo) encontra o Bispo a sua espera.
Cena 15 (presentes para Rosinha) Início: Chicó vai até a porta conversar com
Dora, que está sentada do lado de fora em
uma cadeira.
Início: João coloca seu plano em andamento
e vai até a delegacia falar com o cabo >História de Chicó: Papagaio que pregava.
Setenta.
Final: Chicó se encontra com Rosinha e lhe Supressão 1: Vicentão pergunta a Dora se
dá o par de brincos e o broche (presente dos tem mais alguém em casa, enquanto ele
valentões cabo Setenta e Vicentão) como se fecha o zíper de seu vestido.
fosse dele.
Final: Dora, após quase ter sido pega em
flagrante, chama Eurico para o quarto.
Cena 16 (Duelo com Chicó)
Cena 8 (pedindo emprego ao major)
Início: João volta à delegacia e fala com
cabo Setenta a respeito do duelo com Chicó.
Início: João vai a fazenda do Major Antônio
Final: Após o truelo, a fama de Chicó como Moraes pedir emprego.
valente se espalha. Eurico comenta o fato
com padre João durante a missa. Inclusão 1: João vai a padaria buscar seus
pertences. ESSA CENA NÃO ESTÁ NA
MINISSÉRIE.
Cena 17 (pretendente)
Inclusão 2 / Final: Parte da cena em que
Severino se encontra com seu bando, que
Início: João leva Chicó à fazenda do major está escondido no sertão – ESSA CENA É O
disfarçado de fazendeiro e doutor. Chicó se FINAL DA CENA 7 NA MINISSÉRIE.
apresenta como pretendente a pretendente da
mão de Rosinha.
Cena 9 (a chegada de Rosinha)
Final: Chicó marca a data do casamento e o
major empresta a ele dez contos de réis para
que a igreja seja reformada para o Início: Chegada da tropa da polícia, que se
casamento. Chicó assina um contrato com o apresenta à cidade de Taperoá durante a
major, dando uma tira do seu próprio couro festa da padroeira.
como garantia de pagamento.
Final: João convence Chicó a fazer parte de
Cena 18 (uma noite com Dora) um plano para conquistar Rosinha e se tornar
o valentão da cidade.
Início: João e Chicó chegando à padaria após
a entrevista com o major. Cena 10 (presentes para Rosinha)
Final: Chicó e João discutem na área de
produção da padaria como vão arrumar os Início: João coloca seu plano em andamento
dez contos de réis para pagar o major. e vai até a delegacia falar com o cabo
Setenta.
Cena 19 (divisão do dinheiro com o Bispo) Final: Chicó se encontra com Rosinha e lhe
dá o par de brincos e o broche (presente dos
valentões cabo Setenta e Vicentão) como se
Início: Padre João e o Bispo estão na fosse dele.
sacristia dividindo o dinheiro dado por Chicó
para as reformas antes do casamento.
Início: João e Chicó estão na área de Final: Após o truelo, Chicó recebe jura de
produção da padaria. João diz à Chicó que amor de Rosinha.
suas idéias acabaram e que agora além de
pobre, ele também é burro. Supressão 2: a fama de Chicó como valente
se espalha. Eurico comenta o fato com padre
Final: Severino, Cabra, Padre João, Bispo,
João Grilo e Chicó estão dentro da Igreja. João durante a missa.
Cabra leva padre João e o Bispo para fora da
igreja.
Cena 12 (pretendente)
Cena 21 (gaita milagrosa)
Supressão 1: João e Chicó estão na padaria.
João leva roupas novas para Chicó ir pedir a
Início: Ainda dentro da Igreja, Severino
mão de Rosinha ao major.
pergunta os nomes de João Grilo e Chicó
enquanto vai levando-os para fora.
Início: João leva Chicó à fazenda do major
disfarçado de fazendeiro e doutor. Chicó se
Final: Chicó coloca uma vela nas mãos sobre
apresenta como pretendente a pretendente da
o corpo de João Grilo que está estendido no
mão de Rosinha.
chão da igreja.
Inclusão 1 - PARTE DO INÍCIO DA CENA
Cena 22 (o julgamento final) 18 DA MINISSÉRIE: João e Chicó
chegando à padaria após a entrevista com o
Início: João acorda no Purgatório – que se major.
materializa como o interior da igreja.
Supressão 2 – RESTANTE DO INÍCIO DA
Final: Após as diversas acusações, o diabo CENA 18 DA MINISSÉRIE: Dora faz uma
diz que o caso de Grilo é perdido e que ele proposta a João Grilo, dez contos de réis se
será o primeiro a ir para o inferno. ele conseguir convencer Chicó a passar uma
noite de amor com ela.
Cena 23 (apelando para Nossa Senhora)
Inclusão 2 / Final – INÍCIO DA CENA 19
DA MINISSÉRIE: Padre João e o Bispo
Início: João diz que não vai se entregar com estão na sacristia dividindo o dinheiro dado
facilidade e pede à Jesus para apelar a Nossa por Chicó para as reformas antes do
Senhora. casamento.
INCLUSÃO DE FOTOS Cena 13 (invasão dos cangaceiros)
Cena 26 (o dinheiro da porca) Final: Chicó coloca uma vela nas mãos sobre
o corpo de João Grilo, que está estendido no
chão da igreja.
Início: Após o casamento, Chicó, Rosinha e
João quebram a porca (cofre) para obter o Cena 15 (o julgamento final)
dinheiro e pagar a dívida com o major.
Final: Expulsos da fazenda, Chicó, Rosinha Início: João acorda no Purgatório – que se
e João param na estrada para comer um materializa como o interior da igreja.
pouco de bolo. Jesus, disfarçado de mendigo
e de pele negra, pede comida ao grupo. Final: Após as diversas acusações, o diabo
Rosinha dá um pouco do bolo e diz que as diz que o caso de Grilo é perdido e que ele
vezes Jesus se disfarça para testar a bondade será o primeiro a ir para o inferno.
das pessoas, e João diz que aquele podia ser
qualquer um, menos Jesus.
Cena 16 (Apelando para Nossa Senhora)
>História de Chicó: um sujeito que
encontrou Jesus no céu.
Início: João diz que não vai se entregar com
facilidade e pede à Jesus para apelar a Nossa
Cena 27 (créditos finais) Senhora.
INCLUSÃO DE FOTOS
Na análise das cenas, pode-se observar que o pensamento inicial de que essa uma hora
excluída da minissérie para a formatação do filme, seria composta pelas sete cenas excluídas
conforme as Notas28. Isso não é verdadeiro. O mesmo pode-se dizer com relação à edição das
cenas. Há cenas que foram filmadas por diferentes câmeras e para cada montagem foi
escolhida uma posição de câmera diferente. Há ainda o caso das cenas que estão no filme,
mas não estão na minissérie.
Pode-se observar ainda que, apesar do mesmo nome, nem todas as cenas foram
montadas da mesma forma. No filme há supressões de trechos de algumas cenas, e inclusões
de trechos de outras cenas, inclusive das sete que figuram como excluídas do filme, em cenas
diferentes das propostas pela minissérie. Esse fato reforça o conceito das células dramáticas
proposto no capítulo 1. As imagens são manuseadas como convém ao diretor/montador para
que sua história tenha o ritmo e a clareza necessários à sua compreensão por parte do receptor,
independente de seu formato. As imagens são tomadas como blocos de cores distintas que
unidos, formam seqüências de cores diferentes. Os blocos podem ou não seguir uma
seqüência de mesma cor. Desde de que haja sentido e coerência, o formato dos blocos permite
montagens diversas. O grande desafio passa a ser trabalhar com uma quantidade de planos
que permitam a concepção de cenas que darão continuidade à história.
28
Notas de Produção
Arraes consegue trabalhar com seus blocos de forma diversa sem prejuízo à
compreensão da história.
Griffith trouxe para o cinema uma série de experimentos, que foram ao longo do
tempo tomando forma, influenciando de forma marcante as produções cinematográficas e
inspirando o trabalho de diversos diretores. Maria de Fátima Augusta, em seu livro A
Montagem Cinematográfica29, faz um estudo das formas de montagem Griffithianas auxiliada
por teóricos como Deleuze e Arlindo Machado. Griffith fez a organização das imagens-
movimento, mostrando através de elementos inovadores, como criar um maior impacto
dramático.
29
2004
cumplicidade entre o público e a obra. Griffith deixou como herança a junção da montagem e
a construção dramática.
Essas técnicas foram evoluindo com o passar do tempo, sendo absorvidas, utilizadas e
transformadas por diversos diretores, dando base até mesmo para a criação de estilos de
montagens divergentes das desenvolvidas por Griffith, que possivelmente, não tinha noção de
como o seu experimentalismo iria modificar o fazer, o ver e o sentir das produções
subseqüentes. Suas influências são visíveis nas obras de diversos momentos históricos do
cinema, como também em obras de outros meios, como a televisão.
3.3 - Gênero
O Gênero comédia, cujo propósito é divertir pelo tratamento cômico das situações, dos
costumes e dos personagens, é composto basicamente por quatro tipos distintos:
A comédia traz o humor verbal e o humor visual. No Auto, ambos são bem trabalhados
e bem dosados. O humor verbal depende basicamente do roteiro e da interpretação do ator. Já
o humor visual, depende do olho do diretor para explorar as imagens da melhor maneira
possível, tanto na filmagem, quanto na montagem. Quando os dois elementos conseguem uma
união equilibrada, o resultado é um trabalho apetitoso, envolvente e refinado. O Auto
conseguiu ser sucesso na televisão como minissérie e logo em seguida, foi um dos filmes
nacionais de maior bilheteria30 (mais de dois milhões de espectadores), apesar da história não
apresentar nenhum elemento novo por ter sido assistida gratuita e primeiramente na televisão.
Um dos fatos curiosos detectados neste trabalho foi, a forma como o público
‘percebeu’ as duas produções. O próprio Guel Arraes31 destacou como era interessante
quando as pessoas comentavam a respeito das duas produções com ele. Era como se fossem
trabalhos totalmente diferentes, e o mais interessante, incansáveis de serem vistos, tamanho o
envolvimento que proporcionaram ao público.
Além da mistura dos tipos de comédia, Arraes traz à sua produção a mistura de
gêneros, inserindo um “quê” de documentário ao Auto. O gênero documentário traz a
exposição de um tema. O enfoque não é o ator e sim o tema a ser explorado, usando pessoas
reais, em situações reais. Com raras exceções, o documentário ganha forma na montagem e
não na filmagem (e suas diversas possibilidades de exploração) como na comédia. Nas cenas
23 da minissérie e 16 do filme (apelando para Nossa Senhora), Arraes ilustra as palavras de
Nossa Senhora com fotos reais que retratam a miséria, a força, a garra e a esperança do povo
brasileiro, em especial do povo nordestino. A Santa passa de personagem a narradora da
história.
O Auto possui uma narrativa linear que é composta por códigos como o objetivo do
personagem principal – João e Chicó tentam se livrar da pobreza e da exploração, o
antagonista tão superior em seu contra-objetivo, faz do protagonista um herói – O padre, o
Bispo, o padeiro e sua esposa, diante de todas as situações dão à João e Chicó esse status, a
30
fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/auto-da-compadecida/auto-da-
compadecida.htm#Curiosidades- 16/03/2006
31
Entrevista com Guel Arraes em Recife/PE, em 03/11/2004.
trama variando do ponto ao contra-ponto em velocidade acelerada e a resolução que justifica
todos os acontecimentos.
Além da narrativa linear, o Auto foi filmado em película, mas seu processo de montagem
não obedeceu aos padrões da linearidade. Como posto na introdução deste trabalho, a
digitalização promoveu uma revolução tecnológica, o que permitiu a Arraes o transporte da
produção em película para o computador, realizando a montagem da obra de forma não-linear.
Esse processo permite variações de todos os tipos, mas, o que será aqui analisado, é a
possibilidade no sentido técnico de agilizar o trabalho e conseguir os resultados esperados
com economia de tempo e conseqüentemente de dinheiro.
Augusto (2004, p. 132) fala de uma nova estruturação do plano e da montagem, trazendo
exemplos da obra de Peter Greenaway, que segundo ela
O cuidado com a coleta das imagens em múltiplos planos, trabalhando com o conceito de
cena / seqüência e a ênfase à mise-en-scène, contribuíram para a montagem das células
dramáticas.
32
Ver anexo
A essa ‘linguagem de cinema’ a que Arraes se refere, deve-se levar em consideração toda
história audiovisual e as influências de um meio no outro, trabalhadas na dissertação.
Há o fato da narrativa ter sofrido uma montagem não linear, facilitando efeitos, cores e
fusões.
Todos esse pontos são relevantes para os novos modelos de estruturação das produções,
permitindo misturas diversas de técnicas, gêneros e principalmente de meios. Assim, nota-se
que falar em narrativa intermultimídia ou narrativa audiovisual contemporânea, já não é ser
vanguardista, e sim estar atento às novas possibilidades cada vez mais inovadoras. O Auto é
apenas uma expressão desse movimento audiovisual, que além dos elementos citados, ainda
contou com a tecnologia digital.
Várias serão as facetas que esse momento do audiovisual vai mostrar e desenvolver. Hoje
estamos falando de uma obra que consegue circular livremente entre os meios, mas não há
uma previsão certeira dos caminhos que serão trilhados e muito menos das possíveis direções
que os experimentalistas vão tomar. Sabe-se apenas que tudo está em transformação e
movimento.
O que chama a atenção para o que foi aqui analisado, é antes de tudo, a proximidade com
o público que toda essa mistura proporcionou. Raras são as produções que conseguiram ser
tão intimistas como O Auto, e raros são os personagens que conseguiram ser tão próximos e
inesquecíveis como Grilo e Chicó, seja na televisão, seja no cinema.
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