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FRANCISCO FERNÁNDEZ CARVAJAL

A IMAGINAÇÃO
FONTE: Hablar con Dios

I. Necessidade da mortificação para ter vida


sobrenatural.

II. Mortificação da imaginação.

III. O bom uso da imaginação na oração.

I. O EVANGELHO DA MISSA [1] relata-nos o


comovente diálogo entre Jesus e Nicodemos na
calada da noite. Este homem sente-se
impressionado pela pregação e pelos milagres
do Mestre e experimenta a necessidade de saber
mais. Mostra uma grande delicadeza para com
Jesus: Rabbi, meu Mestre, é como o chama.

Nicodemos interroga o Senhor sobre a sua


missão, talvez ainda sem saber ao certo se está
diante de mais um profeta ou do próprio
Messias: Sabemos – diz ele – que és um mestre
vindo da parte de Deus, pois ninguém pode fazer
os prodígios que fazes se Deus não estiver com
ele. E o Senhor responde-lhe de uma maneira
inesperada; Nicodemos pergunta-lhe pela sua
missão e Jesus revela-lhe uma verdade
assombrosa: É preciso nascer de novo. Trata-se
de um nascimento espiritual pela água e pelo
Espírito Santo: é um mundo inteiramente novo
que se abre ante os olhos de Nicodemos.

As palavras do Senhor constituem também um


horizonte sem limites para o progresso
espiritual de qualquer cristão que se deixe
conduzir docilmente pelas inspirações e moções
do Espírito Santo. Porque a vida interior não
consiste somente em adquirir uma série de
virtudes naturais ou em praticar determinados
atos de piedade. O que o Senhor nos pede é uma
transformação radical: Renunciai à vida
passada, despojai-vos do homem velho [2],
anunciava São Paulo aos fiéis de Éfeso.

Esta transformação interior é acima de tudo


obra da graça na alma, mas requer também a
nossa colaboração, através de uma séria
mortificação da inteligência e das recordações –
da imaginação –, que terá como fruto a
purificação das nossas potências, necessária
para que a vida de Cristo se desenvolva
plenamente em nós. Muitos cristãos não
avançam no seu relacionamento com Deus, na
oração, por descurarem esta mortificação
interior, sem a qual a mortificação externa perde
o seu ponto de apoio.

A imaginação é, sem dúvida, uma faculdade


muito útil, porque a alma, que está unida ao
corpo, não pode pensar sem imagens. O Senhor
falava às pessoas por meio de parábolas,
servindo-se de imagens para transmitir-lhes as
verdades mais profundas; acabamos de ver que
foi esse o caminho que seguiu na conversa com
Nicodemos. Neste sentido, a imaginação pode
ser de grande utilidade para a vida interior, pois
ajuda a contemplar a vida do Senhor, os
mistérios do Rosário... “Mas, para que seja
proveitosa e útil, deve ser governada pela reta
razão esclarecida pela fé. Caso contrário, pode
converter-se, como já foi chamada, na louca da
casa; afasta-nos da consideração das coisas
divinas e arrasta-nos para as coisas vãs,
insubstanciais, fantásticas e mesmo proibidas.
No melhor dos casos, leva-nos para o mundo dos
sonhos, de onde brota o sentimentalismo tão
oposto à verdadeira piedade” [3].

Dada a nossa condição depois do pecado


original, a submissão da imaginação à razão só
pode ser alcançada habitualmente pela
mortificação, que fará com que “deixe de ser a
louca da casa e se concentre no seu fim próprio,
que é servir a inteligência iluminada pela fé” [4].

II. DEIXAR A IMAGINAÇÃO à solta significa em


primeiro lugar perder o tempo, que é um dom de
Deus e parte do patrimônio que o Senhor nos
confiou. “Afasta de ti esses pensamentos inúteis
que, pelo menos, te fazem perder o tempo”,
aconselha-nos o autor de Caminho [5]. Além
disso, a imaginação perdida em sonhos
fantásticos e estéreis é um campo bem adubado
para que nele apareça um bom número de
tentações voluntárias, que convertem os
pensamentos inúteis em verdadeira ocasião de
pecado [6].

Quando não há essa mortificação interior, os


sonhos da imaginação giram freqüentemente
em torno dos nossos talentos, de uma
determinada atuação em que nos saímos bem,
da admiração – talvez também irreal – que
provocamos em certas pessoas ou no nosso
ambiente... E assim, aquilo que principiou por
ser um pensamento inútil começa a correr à
deriva, até chegar a comprometer a retidão de
intenção que se tinha mantido até aquele
momento; e a soberba, sempre à espreita, vai
ganhando corpo à custa daquilo que
inicialmente parecia inocente. Depois, se não a
detemos, essa soberba tende a destruir as coisas
boas que encontra à sua passagem. De modo
especial, destrói uma boa parte da atenção que
os outros merecem, impedindo de ver as suas
necessidades e de praticar a caridade. “O
horizonte do orgulhoso é terrivelmente limitado:
esgota-se em si mesmo. O orgulhoso não
consegue olhar para além da sua pessoa, das
suas qualidades, das suas virtudes, do seu
talento. O seu horizonte é um horizonte sem
Deus. E neste panorama tão mesquinho, nunca
aparecem os outros, não há lugar para eles” [7].

Em outros casos, quando se entretém a julgar o


modo de agir dos outros, é fácil que a
imaginação comece a emitir juízos negativos e
pouco objetivos, porque, quando não se olha para
os outros com compreensão, com desejo de
ajudá-los, passa-se a ter deles uma visão
injustamente parcial, julga-se a sua conduta
com frieza, sem perceber que podem ter tido
motivos para agir como agiram, ou atribuem-se
gratuitamente a essas pessoas intenções
retorcidas ou menos boas. Somente Deus
penetra nas coisas ocultas, só Ele lê a verdade
dos corações e dá o verdadeiro valor a todas as
circunstâncias. Por leviandade culposa, esses
pensamentos inúteis conduzem ao juízo
temerário, que nasce de um coração pouco reto.
A mortificação interior teria evitado esse tipo de
faltas contra a caridade, que afasta de Deus e dos
outros. “A causa de que haja tantos juízos
temerários é que se consideram como coisa de
pouca importância; e, não obstante, se se trata de
matéria grave, pode-se chegar ao pecado grave”
[8].

Freqüentemente, se não nos vigiarmos de modo


a cortar esses pensamentos inúteis e a oferecer
ao Senhor essa mortificação, a imaginação
girará em torno de nós mesmos e criará
situações fictícias, pouco ou nada compatíveis
com a vocação cristã de um filho de Deus, que
deve ter o coração posto nEle. Esses
pensamentos esfriam a alma, afastam de Deus e
depois tornam mais difícil o clima de diálogo
com o Senhor no meio das ocupações diárias.

Examinemos hoje na nossa oração como


vivemos essa mortificação interior que tanto nos
ajuda a conservar-nos sempre na presença do
Senhor, e que evita tantos inconvenientes,
tentações e pecados. Vale a pena meditar nisto
seriamente, com profundidade e com desejos de
chegar a propósitos eficazes.

III. A MORTIFICAÇÃO da imaginação traz


inúmeros bens à alma; não é tarefa puramente
negativa, não está na fronteira do pecado, mas
no terreno do Amor.

Em primeiro lugar, purifica-nos a alma e


inclina-nos a viver melhor na presença de Deus,
leva-nos a aproveitar bem o tempo dedicado à
oração, e a evitar as distrações quando mais
atentos devemos estar, como por exemplo na
Santa Missa, na Comunhão... Permite-nos ainda
aproveitar melhor o tempo no trabalho,
executá-lo conscienciosamente, santificá-lo; no
terreno da caridade, ajuda-nos a pensar nos
outros, em vez de ficar ensimesmados,
submersos num clima de sonhos e fantasias.
Por outro lado, a imaginação deve ocupar um
lugar importante na vida interior, no trato com
Deus: ajuda-nos a meditar as cenas do
Evangelho, a acompanhar Jesus nos seus anos
de Nazaré, junto de José e Maria, na sua vida
pública, seguido pelos Apóstolos. De modo
especial, ajuda-nos a contemplar
freqüentemente a Paixão do Senhor.

“Misturai-vos com freqüência entre as


personagens do Novo Testamento. Saboreai
aquelas cenas comoventes em que o Mestre atua
com gestos divinos e humanos, ou relata com
modos de dizer humanos e divinos a história
sublime do perdão, do Amor ininterrupto que
tem pelos seus filhos. Esses translados do Céu
renovam-se agora também, na perenidade atual
do Evangelho” [9].

“Se alguma vez não nos sentirmos com forças


para seguir as pegadas de Jesus Cristo,
troquemos palavras amigas com aqueles que o
conheceram de perto, enquanto permaneceu
nesta nossa terra. Com Maria, em primeiro lugar,
que foi quem o trouxe até nós. Com os Apóstolos.
Alguns gentios chegaram-se a Filipe, que era
natural de Betsaida da Galiléia, e fizeram-lhe
este pedido: Desejamos ver Jesus. Filipe foi e
disse-o a André; e André e Filipe disseram-no a
Jesus (Ioh XII, 20-22). Não é verdade que isto nos
anima? Aqueles estrangeiros não se atrevem a
apresentar-se ao Mestre, e procuram um bom
intercessor [...].

“Meu conselho é que, na oração, cada um


intervenha nas passagens do Evangelho, como
mais um personagem. Primeiro, imaginamos a
cena ou o mistério, que servirá para nos
recolhermos e meditar. Depois, empregamos o
entendimento para considerar este ou aquele
traço da vida do Mestre: o seu Coração
enternecido, a sua humildade, a sua pureza, o
seu cumprimento da Vontade do Pai. Depois,
contamos-lhe o que nos costuma ocorrer nessas
matérias, o que sentimos, o que nos está
acontecendo. É preciso permanecermos atentos,
porque talvez Ele nos queira indicar alguma
coisa: e surgirão essas moções interiores, o cair
em si, essas reconvenções” [10].

Assim imitaremos a Santíssima Virgem, que


conservava todas estas coisas – os
acontecimentos da vida do Senhor – e as
meditava no seu coração [11].

(1) Jo 3, 1-8; (2) Ef 5, 22; (3) R. Garrigou-Lagrange,


Las tres edades de la vida interior, Palabra,
Madrid, 1975, vol. I, pág. 398; (4) ib., pág. 399; (5)
Josemaría Escrivá, Caminho, n. 13; (6) cfr.
Josemaría Escrivá, Sulco, n. 135; (7) S. Canals,
Reflexões Espirituais, pág. 65; (8) Cura d’Ars,
Sermão sobre o juízo temerário; (9) Josemaría
Escrivá, Amigos de Deus, n. 216; (10) ib., n.
252-253; (11) Lc 2, 19.

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