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A ditadura do varejo 05/06/2002 ed.

768 Por Nelson Blecher

As grandes redes de supermercados brigam por preços baixos e tornam cada vez mais dura a
vida da indústria

"Não revele meu nome nem minha empresa. Seríamos jogados para fora do mercado. Quem
critica a maneira como as grandes redes agem sofre represália. Esteja certo disto: ou vão
punir todas as empresas citadas na reportagem, ou pegarão algumas para dar o exemplo. Se
você ficar refém das grandes redes, está perdido. A cada negociação de contrato elas vêm com
novas exigências de descontos e com taxas que corroem nossa margem. Essas redes nos
obrigaram a buscar alternativas. Dobramos nossa força de vendas e atendemos agora 60 000
clientes. Até dois anos atrás, 30% de nossa produção seguia para as prateleiras das grandes
redes. Hoje são pouco mais de 20%. O que estamos fazendo é limitar os volumes. Vamos
reduzir ainda mais essa dependência. É preciso jogar duro na negociação. Meu diretor de
vendas gasta mais de um terço de seu tempo em discussões exaustivas com o pessoal dos
supermercados, e nem poderia ser diferente. Acredite: mesmo não aceitando, algumas dessas
taxas são lançadas à revelia, nas duplicatas. É uma confusão. São milhares de notas, contas
que a tesouraria não tem como conciliar. Também tivemos de separar, no orçamento de
marketing, as despesas do ponto-de-venda das de publicidade. Hoje uma posição na ponta de
gôndola chega a custar 10 000 reais por mês. Como o ponto-de-venda é um aspirador de
dinheiro, acaba sobrando muito pouco para as campanhas publicitárias. As conseqüências de
tudo isso são margens achatadas e dificuldade para colocar produtos novos nas prateleiras,
para inovar."

O depoimento é do presidente de uma empresa do setor de alimentos que fatura na faixa de 2


bilhões de reais por ano. Garantido pelo compromisso do anonimato, o relato do executivo dá
uma boa idéia de quão complicadas e conflitivas estão hoje as relações dos grandes varejistas
com os fornecedores. Varejo e indústria nunca viveram exatamente uma lua-de-mel, é certo.
Trata-se de uma queda-de-braço que se mantém desde sempre. Nos anos de inflação elevada,
quem esperneava eram os supermercadistas, compelidos a aceitar sucessivos reajustes nas
viradas de tabela. Era pegar ou largar, quer dizer, ou ficar com as prateleiras desabastecidas.
A situação começou a se inverter no começo dos anos 90: a abertura da economia e a
estabilidade que seguiu ao Plano Real viabilizaram os investimentos estrangeiros no setor de
distribuição, dando partida a um amplo, inédito e fulminante processo de fusões e aquisições.
Grupos estrangeiros como o português Sonae, o francês Carrefour e o holandês Royal Ahold
foram às compras. O Sonae investiu 1 bilhão de dólares, engoliu sete redes e passou a
dominar o varejo na região sul do país. O Carrefour, o primeiro a chegar, em 1975, e que até
recentemente crescia construindo seus próprios hipermercados, comprou o Eldorado, a Lojas
Americanas e um punhado de cadeias regionais. O Royal Ahold desembarcou no Nordeste
associado ao Bompreço. Em 1999, o Casino, concorrente francês do Carrefour, adquiriu 25%
do capital do Pão de Açúcar, o que deu ao grupo do empresário Abilio Diniz fôlego para
absorver mais de uma dezena de redes nos anos seguintes.

Esse processo tem um nome: concentração. Em 1997, as cinco maiores redes varejistas (Pão
de Açúcar, Carrefour, Sonae, Bompreço/Ahold e Sendas) respondiam por 27% das vendas. No
ano passado, essa participação chegou a 39%. Essas empresas ganharam escala e
musculatura, que se traduzem em maior poder de negociação com os fornecedores. Passaram
a impor as regras no relacionamento comercial com mão-de-ferro, de forma ditatorial mesmo.
Estabeleceram contratos de longo prazo. Além do preço, da pontualidade na entrega e da
qualidade dos produtos, consolidou-se como rotina no mercado exigências de descontos para
lançamentos, promoções, vendas em datas especiais, bonificações e contribuições chamadas
"enxovais" para inaugurações de lojas. A crescente busca de vantagens por parte dos
distribuidores passou a gerar atritos. Primeiro com pequenos e médios fornecedores. "A
mudança foi muito rápida, não deu tempo para que nos preparássemos para enfrentar a
centralização dos negócios", diz o empresário Celso Gusso, presidente da Associação de
Fornecedores de Supermercados (Assosuper). Estabelecida em Curitiba, a instituição foi criada
há três anos para tentar neutralizar as pressões dos grandes varejistas. Gusso admite que a
entidade não conseguiu reduzir as exigências dos contratos e hoje atua no corpo-a-corpo
defensivo.
Abalados com a política comercial agressiva do Sonae, os fornecedores buscaram apoio na
Assembléia Legislativa do Paraná, que instaurou uma CPI para apurar as relações comerciais
na cadeia produtiva. Foram encontradas, no curso das investigações, 33 diferentes taxas (sete
delas eram comuns) cobradas pelos quatro grandes varejistas -- além do Sonae, Carrefour,
Wal-Mart e Extra. Outras CPIs pipocaram em mais sete estados, por causa das queixas de
produtores de leite, que também passaram a responsabilizar os varejistas pela queda da
remuneração paga pela indústria de laticínios (os produtores alegavam que, para compensar
os descontos concedidos às grandes redes, a indústria de laticínios reduziu os preços pagos a
eles). "O preço caiu 40% desde maio do ano passado", afirma o empresário Jorge Rubez,
presidente da Leite Brasil, a associação nacional dos produtores. "Três quartos dessa redução
ficou com o varejo, na forma de taxas."

Do arrocho não escapam nem mesmo fornecedores especializados em produzir artigos de


marca própria para os supermercados. Semanas atrás, a gaúcha Fontana, fabricante de
produtos de limpeza e higiene, decidiu romper o fornecimento de sabonetes ao Sonae.
Segundo Juliana Fontana, diretora de marketing, tornou-se impossível cumprir exigências cada
vez mais rígidas de prazo de entrega e de manutenção de preço. "Eles não aceitam negociar
aumentos nem querem saber se a matéria-prima encareceu", diz Juliana. Procurado por
EXAME, o Sonae recusou-se a dar entrevista.

A grande indústria já se habituou à queda-de-braço com o varejo. Um exemplo entre muitos:


por causa da divergência em torno de uma tabela com reajuste de preços, centenas de itens
da Nestlé foram retirados das gôndolas do Pão de Açúcar em junho do ano passado. Segundo
Luiz Antonio Fazzio, ex-diretor executivo do maior grupo varejista do país, o Pão de Açúcar, e
recém-contratado para presidir a C&A, os preços corrigidos lhe foram comunicados pelo então
presidente da Nestlé, Ricardo Gonçalves. "Expliquei que quando o mercado permitisse
adotaríamos a nova tabela", diz Fazzio. "Mas o pessoal da Nestlé respondeu que no dia
seguinte já não entregaria a mercadoria." Dos 700 itens da Nestlé, apenas 100 permaneceram
nas gôndolas do Pão de Açúcar. Fazzio então convidou a Mococa a fazer promoção de seu leite
condensado. O impasse durou dois meses, até que a Nestlé concordou em negociar com a
tabela antiga. Na versão do executivo Bernardino Costa, diretor comercial da Nestlé, as
gôndolas do Pão de Açúcar, nesse período, foram abastecidas com estoques remanescentes de
algumas de suas linhas de produtos. Tempos depois, Ivan Zurita, sucessor de Gonçalves na
presidência da Nestlé, teve um encontro com Abilio Diniz. Na ocasião, Zurita fez um discurso
sobre a importância para a rede de Diniz de ter uma marca forte como a Nestlé nas gôndolas.
"Eu mesmo respondi que antes de discutir isso era preciso saber a que preço meu cliente quer
comprar os produtos da Nestlé", afirma Fazzio. A um interlocutor, Zurita comentou que não
teria como ficar de fora de uma rede como o Pão de Açúcar, um dos principais clientes da
Nestlé.

A tensão anda tão à flor da pele que por vezes os conflitos extrapolam o ambiente fechado dos
escritórios. Ao topar com o executivo José Baeta Tomas, presidente do Sonae, num evento
social, o empresário gaúcho Carlos Tramontina, presidente da Tramontina, maior fabricante de
facas e talheres da América Latina, desandou a queixar-se, para quem quisesse ouvir, do
tratamento arrogante que dias antes recebera de um subordinado de Baeta. Colocado numa
saia-justa bem na frente de outros convidados, Baeta tentou contornar a discussão. Sugeriu a
Tramontina que iniciassem uma nova rodada de negociações.

A guerra declarada entre varejo e indústria se expressa à perfeição num "manual do


comprador", que há algum tempo circula no mercado. Conhecido por dez entre dez vendedores
da indústria, o manual tem sua origem atribuída a uma multinacional do setor. Eis algumas
pérolas:

 Considere o vendedor como nosso inimigo número 1.


 Nunca aceite a primeira oferta, deixe o vendedor implorar: isso dá margem a maior
barganha.
 Não tenha dó do vendedor, jogue o jogo dos maus.
 Não hesite em usar argumentos, mesmo que falsos. Por exemplo, o concorrente do
vendedor sempre tem melhor oferta e maior giro e prazo.
"A relação entre as duas partes, varejo e indústria, nunca esteve tão desequilibrada", afirma
Luiz Edmundo Klotz, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia).
"Qualquer discordância transforma o fornecedor num segregado. E 75% de nossas vendas
dependem do auto-serviço." Klotz, tempos atrás, vendeu ao sócio sua participação na
Liotécnica, fabricante de alimentos desidratados. Hoje atua na entidade como profissional e
não precisa temer represálias. "Já dei entrevistas e escrevi dezenas de artigos", afirma Klotz.
"Só que me mandaram calar a boca. Tenho de falar a política de meus associados." A Abia
acaba de criar um comitê com a missão de estabelecer um diálogo com a Abras, a associação
nacional dos supermercados, para discutir seus problemas de relacionamento. "Será a
tentativa derradeira", diz um diretor da Abia. E o que pensa o outro lado da trincheira? "Os
contratos obedecem à lógica de um mercado mais competitivo", afirma José Humberto Pires de
Araújo, presidente da Abras. "Mas concordo que é preciso buscar maior equilíbrio em alguns
setores, como o de alimentos, em que o varejo está na ponta mais fortalecida e dá as regras."

Um fator que confere força aos grandes varejistas é o excesso de oferta. "Como não há ainda
no Brasil muitos produtos com altíssima diferenciação, tanto faz ofertar a marca A ou B se a
percepção de qualidade for semelhante", diz o economista e consultor Nelson Barrizzelli. Pense
nas talibãs com suas marcas baratas que fizeram a festa depois do Plano Real. Ou na Coca-
Cola desafiada pelas tubaínas, que fizeram despencar o preço dos refrigerantes. Um indício de
que a oferta supera a demanda é a maneira como as negociações se desenrolam. "Os
varejistas colocam os fornecedores contra a parede ao longo do mês até que concedam os
descontos", diz Barrizzelli. O resultado se repete a cada mês: 60% da produção é entregue
entre os dias 20 e 30. O restante, a partir do dia 1o. Essa prática, comum nos tempos de
inflação (só que com o sinal trocado: em vez de aumentos, o que está em jogo são descontos),
encarece custos logísticos e de armazenagem para os dois lados. "É um círculo vicioso que
contraria todas as práticas modernas de reposição contínua", diz Barrizzelli. Ele teme que o
clima de beligerância dificulte a implantação do ECR (sigla inglesa para Resposta Eficiente do
Consumidor), um conjunto de ferramentas de gestão a quatro mãos, do varejo e da indústria,
que possibilita a eliminação de ineficiências na cadeia produtiva. "Ocorre que os processos do
ECR só podem ser viabilizados com transparência de informações dos dois lados", diz
Barrizzelli.

Os contratos aos quais os fornecedores são submetidos nada têm de ilegal, de acordo com
uma avaliação feita por profissionais da Manhães Moreira, escritório de advocacia empresarial
de São Paulo, a pedido de EXAME. "Mas podem ser classificados de leoninos e unilaterais, por
não permitirem alteração", afirma a advogada Lúcia Maria Messina, sócia do Manhães Moreira.
Ela cita uma cláusula do contrato do Sonae denominada Prêmio Fidelidade. Ali é dito que,
como o Sonae representa uma garantia de escoamento de uma parte da produção do
fornecedor, este concederá determinado percentual sobre o volume anual de vendas à rede.
"Bem, a fidelidade deve ser do fornecedor, mas o prêmio fica com o Sonae", ironiza Lúcia. A
despeito das críticas, os executivos do varejo não encontram dificuldade para justificar cada
item cobrado. Um enxoval (mercadorias que o fornecedor dá gratuitamente para abastecer
uma nova loja) é justificado pela necessidade de compartilhar custos elevados na compra de
equipamentos (refrigeradores e displays) e na divulgação da nova loja. "Erguer um
supermercado com área de 1 500 metros custa de 4 milhões a 6 milhões de reais", diz José
Roberto Tambasco, diretor da Divisão de Supermercados do Pão de Açúcar. "E depois de
aberto o novo ponto precisa manter preços baixos para atrair a clientela." Cobrar pela ponta de
gôndola -- posição privilegiada nas prateleiras que estimula as compras por impulso -- também
faz parte da normalidade, segundo o pessoal do varejo. "Como 70% das decisões de compra
ocorrem dentro do supermercado, é natural que ao dar destaque para um produto cobremos
do fornecedor", afirma Tambasco.

No Brasil e no mundo, a relação entre varejo e fornecedores é marcada por atritos (veja a
reportagem Eu Tenho a Força, na pág. 53). O que há de novo na crise atual é a reação da
indústria ao status quo, traduzida na resistência à renovação dos contratos anuais. "Os
fornecedores chegaram à conclusão de que ou peitam o varejo agora ou estão ferrados",
afirma Francis Liu, vice-presidente da consultoria Booz-Allen. "O que está havendo é uma
brutal transferência de valor econômico da indústria para o varejo." Para ele, a situação
chegou a um ponto-limite. O fato é que só recentemente as grandes companhias começaram a
fazer cálculos na ponta do lápis para avaliar em que grau sua margem está sendo corroída. "É
uma conta complicada porque os custos se espalham por toda a empresa", diz Liu. Quase
todos os fornecedores descobriram que a margem era diminuta. De cada 1 000 reais de
faturamento, de 150 a 200 reais ficam com o ponto-de-venda.

O cálculo foi feito por Liu para a subsidiária de uma multinacional do ramo de alimentos com
faturamento anual na faixa de 400 milhões de reais. Do total de suas vendas, 23% vão para
dez grandes varejistas, entre eles Pão de Açúcar, Carrefour, Bompreço e Sonae. O restante
está dividido entre vendas diretas (19%), distribuidores (55%) e representantes. A radiografia
mostrou que sua rentabilidade no grande varejo era negativa em 8%, ante 16% no
representante comercial e 12% na venda direta. Ou seja: vender para as grandes redes é
prejuízo na veia.

Com tudo isso, as indústrias estão se tornando vulneráveis em aspectos fundamentais de seu
negócio. Um estudo recente da consultoria americana PricewaterhouseCoopers (PWC) alerta
que os fabricantes de bens de consumo estão correndo o risco de se tornar "comoditizados"
em poucos anos. Ou seja, suas marcas empalidecerão aos olhos dos consumidores diante das
dos varejistas. De acordo com a publicação americana Advertising Age, os anúncios de
produtos de consumo representavam 45% dos investimentos de mídia nos anos 80. Hoje,
menos de 20%. Não é de estranhar que, das 74 marcas presentes nas listas das 100 maiores
do mundo nos últimos dois anos, segundo avaliação da consultoria britânica Interbrands, 41
perderam em média 5% de seu valor. Mais: apenas a Coca-Cola se manteve no grupo das dez
primeiras.

Hoje, de cada 100 dólares do orçamento de marketing das indústrias de bens de consumo, 61
vão para os supermercados, conforme revela o relatório da consultoria. São despesas que já
correspondem em média a 16% das vendas brutas de cada indústria. Sobra pouco dinheiro
para o trabalho de construção de marca. E qual o resultado desses esforços no ponto-de-
venda? Eis aí uma conclusão dilbertiana: oito de cada dez empresas são incapazes de avaliar o
retorno. "As campanhas cooperadas são fortemente controladas pelos varejistas", diz o
pesquisador americano Kevin Keller, um estudioso no campo das marcas. "Sua ênfase pode
recair na promoção, o que embaça aspectos de qualidade do produto". Segundo Keller, a
percepção positiva ou negativa a respeito de uma marca passa a depender da loja onde ela
está sendo comercializada.

No Brasil, a queda do investimento publicitário tornou-se mais dramática a partir de 1997 --


não por coincidência, o período em que teve início o processo de concentração do varejo. Um
levantamento da agência Talent mostrou que 16 entre 19 categorias de produtos
industrializados diminuíram seus investimentos publicitários. Apenas leite e derivados,
tratamento para a pele e vestuário ampliaram seus esforços na mídia nesse período. Houve, no
conjunto, uma redução de 45% dos investimentos publicitários. O pessoal da Talent
entrevistou em seguida 30 executivos de marketing. O que a agência descobriu? A maioria
deles, pressionada por resultados de curto prazo, prefere fazer ações de curto prazo e
empresta menor importância à construção da marca. Diante disso, o publicitário Júlio Ribeiro,
presidente da Talent, chegou a comparar as marcas no Brasil aos lemingues do círculo polar, a
única espécie animal que, de tempos em tempos, comete suicídio coletivo projetando-se num
precipício. "Empresas que deixam de investir em propaganda e comunicação estão
conscientemente provocando a morte de suas marcas", afirmou Ribeiro na apresentação da
pesquisa. "No longo prazo, possivelmente, a morte da própria empresa."

Parte considerável das verbas foi deslocada para o ponto-de-venda na forma de promoções,
propaganda cooperada e merchandising. Até mesmo a Unilever, a maior anunciante do país,
destina crescentes parcelas às atividades em supermercados, como promoções, compras de
gôndolas e displays. Foram 156 milhões de reais no ano passado -- pouco abaixo dos 180
milhões de reais que aplicou em comerciais de TV e anúncios impressos. Seu braço de
alimentos, a Bestfoods, já investe 70% de sua verba no trade. Reduziu a de publicidade. "É
perigoso porque não cria brand equity", reconhece Dantes Hurtado Júnior, presidente da
Unilever Bestfoods, ao se referir à blindagem que toda marca deve perseguir para realçar a
percepção de qualidade. Mundialmente, a corporação anglo-holandesa conduz um programa
que enxugará de 1 600 para 600 o número de suas marcas. Herança de uma era de
crescimento por aquisições, a proliferação de marcas acabou por se tornar um problemão com
o fortalecimento do canal de distribuição.

Empresas como a Unilever já constataram que não é mais a indústria quem fixa os preços dos
produtos, como acontecia até um passado recente. Eles são agora estabelecidos pelo varejo
com base, principalmente, numa ampla coleta de preços. No Pão de Açúcar, a tarefa cabe à
economista Mônica Hage, à frente de uma equipe de 22 pesquisadores. A cada semana, cerca
de 6 000 itens são pesquisados em 150 lojas da concorrência. Dessas, 50 pertencem a redes
médias e pequenas. Existe um acordo de cavalheiros entre o Pão de Açúcar e o Carrefour para
que seus pesquisadores possam ter acesso às lojas um do outro, munidos de crachás. "De
janeiro a maio observamos uma queda de 5% nos preços", diz Mônica.

O comportamento dos preços no varejo, por sinal, tem sido um instrumento de defesa do
varejo em sua disputa com a indústria. Segundo esse raciocínio, a intransigência das redes
diante dos aumentos pretendidos pelos fornecedores foi uma das âncoras do programa de
estabilização, principalmente por ocasião da desvalorização do real, no começo de 1999.
"Quem ainda duvida que o varejo é um dos principais fiadores do Real, que compare os índices
de preços no atacado com o índice de preços de varejo da Fipe", diz o consultor Barrizzelli.
Segundo ele, entre janeiro de 1998 e abril de 2002, o IPA, que reflete preços pedidos pelos
fabricantes, subiu 64%. Na ponta do varejo, apenas 9%.

Para Barrizzelli, a grande indústria está agora pagando a conta da concentração varejista que
ajudou a viabilizar. Compelidas a cortar custos desde meados dos anos 80, as empresas de
bens de consumo terceirizaram as vendas de milhares de clientes para atacadistas e
distribuidores. A maioria restringiu-se a negociar diretamente com os grandes do varejo. "O
paradigma era: mais volume significa menos custo e melhor lucratividade", diz Barrizzelli. "O
que a indústria não esperava era que as negociações fossem endurecer tanto. Quanto mais
forte se torna um canal, mais perdas terá o fornecedor." Diante disso, tornou-se muito mais
vantajoso para a indústria operar com as redes médias no lugar das grandes. Até porque
pesquisas divulgadas pelo instituto ACNielsen sinalizam mudanças do comportamento do
consumidor nessa direção. Nos últimos três anos, a participação do pequeno varejo e dos
supermercados de vizinhança (lojas com dez a 19 caixas, a maioria delas controladas por
redes independentes) avançou de 55,5% para 58,1% no faturamento do setor.

Essas mudanças estão sendo acompanhadas pela indústria. Atualmente não há grande
fabricante que não esteja armando estratégias para cativar os clientes de menor porte.
Algumas empresas, como a Johnson & Johnson, estão avançadas nesse processo. O que fez a
J&J? "Deixamos de tratar as vendas por categoria de produto e passamos a focar no perfil do
cliente e nas suas diferenças", diz José Justino, presidente da divisão de produtos de consumo
da J&J. Até 2000, a empresa concentrava boa parte de seus negócios na venda direta. Os
grandes varejistas eram responsáveis por 89% das vendas. Hoje é o canal indireto, formado
por distribuidores exclusivos e varejistas regionais, que predomina, com 58% das vendas. A
reestruturação comercial da J&J foi promovida por meio de um projeto batizado de Nova Era,
que consumiu 1 milhão de dólares em investimentos. Resultado: o faturamento da divisão de
consumo cresceu 11% e atingiu 1 bilhão de reais no ano passado.

A fuga da dependência excessiva das grandes redes estava por trás da decisão da americana
Bestfoods, dona da Refinações de Milho, Brasil, de pagar 752 milhões de dólares pelo controle
da Arisco no primeiro trimestre de 2000. Na época, os negociadores da empresa se
surpreenderam com a participação da Arisco nas prateleiras de caldo, maionese e ketchup --
bem superiores ao contabilizado nas pesquisas da Nielsen. O segredo da Arisco era seu
pulverizado canal de vendas diretas, representado por 12 000 clientes, responsável por 75%
dos negócios.

A experiência da Arisco fez escola: a Unilever, que depois absorveu a Bestfoods, decidiu
apostar no atendimento direto em 8 000 pontos-de-venda. Cerca de 600 vendedores
equipados com palmtop serão responsáveis pela tarefa. Isso possibilitará melhor distribuição
das vendas e, no médio prazo, a redução pela metade da dependência do grande varejo, que
responde atualmente por 20% de suas vendas. A exemplo da Unilever, a Nestlé também
aposta na ampliação de seus canais de venda. Em apenas um ano, o grupo suíço reforçou em
30% sua força de vendas e ampliou de 5 500 para 8 000 o número de pontos atendidos
diretamente. "As lojas de vizinhança ganharam importância", diz Bernardino Costa, diretor
comercial da Nestlé. "Sua participação em nossas vendas aumentou de 35% para 40%."

ARTIGOS “conexos”

Estão tentando nos enfraquecer

Abilio Diniz diz que a indústria só quer concentração para si Por Nelson Blecher

O empresário Abilio Diniz, presidente do Pão de Açúcar, a maior empresa varejista do país, diz
que o grau de concentração do varejo no Brasil é inferior ao oficialmente registrado. Isso
porque, segundo ele, o faturamento das pequenas e médias empresas é crescente e está
sendo subestimado. Em entrevista a EXAME, Diniz diz como os fabricantes multinacionais
agem para limitar o poder de fogo dos grandes varejistas.

As relações entre a indústria e o varejo voltaram a ficar tensas nos últimos tempos.
Por quê?

As relações entre os grandes do varejo e a indústria são tensas, sim. O que a indústria quer
em todo lugar e também aqui no Brasil? Quer uma grande concentração do lado dela e uma
grande dispersão do lado do varejo. Esse é o ideal da indústria. Olhe para o tamanho das
maiores empresas de alimentação no Brasil, sobretudo as globais. É um negócio monumental.
Olhe para a diversificação de linhas de uma Unilever ou de uma Nestlé, que produz mais de
700 itens. Elas procuram realmente enfraquecer o varejo. E conseguem: o Sé é uma empresa
que se tornou totalmente inviável, por isso está à venda. O Sonae vive a duras penas. E os
outros globais estão em imensas dificuldades de se confrontar com as redes menores. Nosso
grupo não tem a menor dificuldade de competir com os concorrentes globais. Agora, temos
imensas dificuldades de nos confrontar com os chamados pequenos da periferia de São Paulo.
É uma coisa surrealista. A maior empresa de distribuição do Brasil, talvez até da América
Latina, enfrenta um global do tamanho do Wal-Mart de igual para igual. Compete em
tecnologia da informação e logística. E não consegue competir com os chamados pequenos
supermercados.

Por que não, se hoje os grandes do varejo têm maior poder de negociação?

Apesar do poder de negociação, as indústrias não querem deixar os grandes varejistas


aumentar seu poder de fogo. Para isso, eles valorizam os pequenos, muitas vezes vendem
mercadoria, principalmente próximo da virada do mês, de maneira extremamente favorecida.
Não diretamente para os pequenos, mas por meio dos chamados "atacados". Com o sistema
tributário vigente, isso possibilita que a mercadoria chegue ao pequeno e seja vendida ao
consumidor a um custo abaixo do que pagamos à indústria.

Mas e todas aquelas taxas --enxovais, bonificações,


descontos --, não haveria aí um componente de custo do grande varejo?

Isso aí é uma grande hipocrisia por parte da indústria, principalmente a de alimentação. É


hipócrita porque não fala a verdade. Usam argumentos dizendo que estão esmagados. Depois
se revoltam com os chamados contratos que os grandes varejistas fazem, essas coisas que
você está chamando de enxoval, inauguração. São coisas normais que os grandes fazem nos
contratos. Também temos de nos curvar ao peso de ser grandes, temos de ter uma
organização diferente. Depois eles chegam aos pequenos, aos atacados e mostram os
contratos que fazem conosco e vendem por um preço menor. É surrealista, só que isso é
verdade.

Qual a estratégia do grupo diante da tendência de aumento de vendas nos


supermercados de vizinhança?

Estamos dando força a nossas três bandeiras. A estratégia da CBD é manter mais ou menos
50% de suas vendas nos hipermercados Extra e 50% nos supermercados Pão de Açúcar e
Barateiro. Estamos abrindo cinco Extra e um número maior de supermercados. Apesar das
dificuldades que enfrentamos na periferia de São Paulo, estamos conseguindo impor a marca
Barateiro, oferecendo aos clientes preços e serviços melhores do que os dos concorrentes.

A concentração dos cinco maiores varejistas deverá se manter em 40% ou há espaço


para concentrar mais?

O número oficial da Abras reflete corretamente as vendas dos grandes, mas não as vendas
verdadeiras dos pequenos. É uma estimativa frágil, já que as vendas dos pequenos estão
crescendo cada vez mais. A indústria vem alimentando a crença de que estamos esmagando o
pequeno varejo. Mas eles sabem muito bem que não temos condição de competir com
determinados varejistas na periferia nem no interior do estado de São Paulo, onde temos
imensa dificuldade em competir em preço. Temos de ser muito bons em termos de logística,
em tecnologia da informação. Temos de ter gente muito boa para competir com diferenças de
20%, 30% nos preços de custo, o que dá o somatório das coisas da indústria mais o sistema
tributário.

Vida de nanico
Como as pequenas e médias redes estão enfrentando a concorrência das grandes do varejo Por Lídia Rebouças

Faz quatro anos, mas a história marcou Angelo Salton Neto, presidente da Vinhos Salton, uma
das maiores vinícolas do sul do país. Na época, Salton deixou a filial da empresa, localizada em
Santana, na zona norte de São Paulo, para visitar a Coop, cooperativa voltada para
consumidores da classe C, em Santo André, na região do Grande ABC. "Fui preparado para
assinar um cheque. Tinha certeza de que me pediriam alguma coisa", diz Salton. Para sua
surpresa, quando chegou lá foi surpreendido com um lauto café da manhã e um encontro
cordial com os principais executivos da cooperativa. "Estranhei o bom tratamento e fiquei
esperando o momento da mordida, aquela taxa que o varejo normalmente cobra para a
abertura ou reforma de uma loja", diz Salton. Segundo ele, ninguém lhe pediu nada. Ao
contrário, ele saiu de Santo André com um relógio de pulso de cortesia.

Temos de tratar bem o fornecedor desde que pisa aqui. Não podemos correr o risco de perder
nossa clientela por falta de produto", diz o executivo Antônio José Monte, presidente da Coop.
Daquele café da manhã para cá, as relações entre a Salton e a Coop vêm se estreitando cada
vez mais, com troca de sugestões e promoções conjuntas. Resultado: no ano passado, as
vendas de bebidas da Salton cresceram 20% na Coop, contra 12%, em média, no mercado
nacional. Além dos lucros, tais resultados trouxeram outra certeza para Salton: "É nas redes
médias do varejo que eu garanto o equilíbrio das minhas contas. Hoje, mesmo se eu perder
um grande cliente, não quebro". (Os vinhos Salton também são vendidos pelas cinco maiores
redes de varejo, que respondem por 20% do faturamento de 100 milhões de reais da
empresa.) A Coop, por sua vez, também saiu ganhando. Em abril deste ano, a empresa
ganhou o Prêmio Supermercado Moderno de Excelência no Varejo na categoria de
relacionamento com fornecedores.

O que se passou entre Salton e a Coop tem sido vivido por muitos outros fornecedores no
Brasil. Aos poucos, eles estão descobrindo diferentes canais de distribuição e saindo da
dependência direta de um grande varejista. Os consumidores também vêm freqüentando mais
o formato de loja de vizinhança e pequeno varejo alimentar. De 1999 para cá, a participação
das pequenas e médias lojas no faturamento do setor avançou 3,5 pontos percentuais,
segundo dados da consultoria americana ACNielsen. Somente em 2001, enquanto o setor
varejista como um todo cresceu apenas 0,4% em vendas, as lojas com até duas caixas
registradoras cresceram 3,5%, segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras).
Mas como essas empresas conseguem crescer e sobreviver diante da concorrência das grandes
redes?

"O segredo está no modo como você trata o fornecedor. Em primeiro lugar, aqui não se paga
taxa exorbitante para entrar", diz Martinho Paiva Moreira, diretor do D'Avó Supermercados,
que atua na zona leste da capital paulista. "Opero com a menor margem possível e exponho
isso para o meu fornecedor", diz Moreira. "Não adianta ele me vender caro porque o meu
consumidor não tem renda para comprar."

Outros varejistas com o mesmo porte do D'Avó Supermercados -- a rede tem sete lojas e
faturou 285 milhões de reais em 2001 -- não fazem compras tão volumosas e por isso não
podem usar a escala para negociar preços mais baixos. Por atenderem consumidores das
classes B e C, essas redes se vêem obrigadas a oferecer produtos mais baratos. Para conseguir
alguma rentabilidade, tentam reduzir o máximo possível seus custos operacionais.

Essa foi a estratégia adotada pelo Bretas, rede com 34 lojas no interior de Minas Gerais e
Goiânia. "Aqui no Bretas nós trabalhamos dia e noite cortando custos. A única coisa que
exigimos dos fornecedores é 1,5% sobre suas vendas líquidas", diz Estevam Duarte de Assis,
presidente do Bretas. "Com estruturas mais enxutas, uma rede média de varejo tem custos
25% inferiores aos das grandes. Os preços, em média, são entre 3% e 16% mais baixos", diz
Monte, da Coop.

Mas não é somente entre os corredores e dentro das gôndolas dos supermercados que redes
como D'Avó, Bretas e Coop estão focando sua atenção. Há cada vez mais iniciativas sendo
tomadas do lado de fora das lojas. Segundo a Abras, existem no Brasil cerca de 84 associações
de varejistas, que se unem para fazer compras conjuntas, a preços competitivos. "Assim
podemos enfrentar a forte concorrência das grandes redes", diz Paulo César Lopes, presidente
da Associação dos Supermercados do Vale do Itajaí (Assuvali). A entidade, fundada em 1999,
em Blumenau, em Santa Catarina, reúne hoje 16 supermercadistas, espalhados por 11 cidades
da região. "Às vezes não conseguimos o mesmo preço que o que a indústria fecha com uma
grande rede, mas chegamos perto", diz Lopes.

Algumas vezes, porém, as negociações com as grandes redes são tão duras que o fornecedor
se vê obrigado a romper o relacionamento. Veja o que aconteceu com a Scala, fábrica de
massas com sede em Araçariguama, no interior de São Paulo. Até o início do ano passado, a
empresa direcionava 70% de suas vendas anuais para as gôndolas do Pão de Açúcar e do
Carrefour. "Os contratos me impossibilitavam de continuar fornecendo para eles. Num ato de
loucura, decidi parar de fornecer para as duas redes", afirma Elson Pellegrini, diretor de
operações da Scala. "O risco de quebrar a empresa era muito grande, mas não podia continuar
tão dependente." Para compensar o rompimento com os grandes, a Scala diversificou sua
clientela e passou a fornecer para redes como D'Avó e pequenos varejistas. Um mês depois,
graças a um intenso trabalho de vendas e de redução nos preços dos produtos, a Scala não
apenas recuperou os níveis de faturamento que tinha quando vendia só para o Pão de Açúcar e
para o Carrefour como também cresceu. No fim de 2001, a empresa faturou 12 milhões de
reais contra cerca de 7 milhões em 2000. No início deste ano, a Scala retomou as vendas para
o Pão de Açúcar, mas agora em outra condição. A empresa não depende mais do maior
varejista brasileiro para viabilizar seu negócio.

Crescer longe do grande varejo não chega a ser uma novidade para empresas do interior do
país. Há uma década, a mineira Vilma Alimentos decidiu apostar nas pequenas lojas de
vizinhança. Apenas 6% do faturamento mensal de 12 milhões de reais são obtidos em grandes
supermercados. "Conseguimos aumentar a rentabilidade de 3,5% para 4% nesse período", diz
Cezar Tavares, diretor de marketing da Vilma. De lá para cá, o número de clientes
quadruplicou e atingiu 11 500 só em Minas Gerais. Para reforçar a competitividade dos
pequenos varejistas, a Vilma Alimentos aboliu o pedido mínimo que antes condicionava as
encomendas. "Felizmente, a concentração do varejo não matou o mercado da periferia", diz o
executivo José Zeferino Pedrozo, presidente do Frigorífico Aurora, que vende 80% de sua
produção para pequenos e médios varejistas. Estabelecido em Chapecó, oeste de Santa
Catarina, o Aurora obtém metade de suas vendas (775 milhões de reais em 2001) no interior
paulista, onde detém 10% de participação de mercado.

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