Você está na página 1de 9

O homem, o Mito e o Medo: Um estudo sobre o emprego do medo

em narrativas mitológicas e sua participação no controle do


comportamento social1.

Camilla Keilhany de Sousa Caetano


Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE

RESUMO
Este artigo tem como objetivo fazer um comentário acerca do emprego do medo
dentro de narrativas mitológicas. Iniciando com uma análise acerca do conceito de
mito e suas funções na sociedade e avançamos com uma leitura acerca do medo e
suas características tanto coercitivas quanto reforçadoras sob um viés psicológico.
Observamos que tais características atuam de forma fundamental dentro da estrutura
mitológica, tanto na função de perpassar a cultura e impor regras sociais, através do
medo coercitivo, quanto na função catártica e lúdica do mito, através do medo
excitante. Conclui-se portanto que o emprego do medo dentro narrativas mitológicas
não se dá de forma arbitrária mas de um modo basilar às composições para que estas
alcancem suas funções.
* Palavras chaves: Mito, medo, vida social, ...

APRESENTAÇÃO
Seja o homem um animal racional, um animal político, um ser de linguagem ou
qualquer outra descrição que lhe possa ser atribuída, a contação de histórias vem
acompanhando a humanidade desde suas origens até a atualidade. Histórias que
saem de relatos pragmáticos e mergulham em uma fantasia exagerada, que
independente de ser considerada como realidade ou ilusão, atraem, fascinam e
comunicam. Mas, o que são exatamente essas histórias que chamamos de mitos?
Qual a sua função na vida social?
Desde os contos infantis narrados pelos Grimm, passando pelas tragédias
gregas até os contos orientais cheios de espíritos vingativos, por que nos

1 1 Trabalho apresentado no X Encontro de Alunos e Ex-Alunos do Curso de Mitologia, realizado de 27 a 30 de


julho de 2016.
1
interessamos tanto por esses contos que fazem nossos corações baterem mais
rápido, narrativas cheias de tragédias, monstros terríveis e assombrações? Por que
continuamos repetindo antigas histórias, criando réplicas atualizadas adaptadas às
novas gerações? Afinal, as creepypastas da internet estão aí para mostrar que o terror
nunca sai de moda.
Finalmente, por que o medo e o terrível acompanham as histórias mitológicas
lado a lado? Seria apenas uma atribuição arbitrária ou existe uma função por trás de
tudo isso?

1. AS FUNÇÕES DO MITO: SOCIEDADE E MUNDO PARTICULAR.


Uma jovem sem namorado aparece grávida em uma casa da região norte do
Brasil, o pai furioso pergunta quem foi o culpado da barriga mas a garota diz ter sido
encantada pelo Boto cor de rosa, se fosse em outra região do Brasil ela poderia ter
acusado o Kurupi ou o Pombero, principalmente se a criança nascesse com muitos
pelos, mas essa criança também poderia ser obra de alguma divindade disfarçada de
humano como era de hábitos dos contos gregos e nórdicos.
Porém, mais que história de romances ocultos e relações sexuais fecundas, os
mitos são narrativas construídas pelo imaginário humano para explicar, para dar
resposta, àquilo que não possui explicação. A mística misteriosa que atormenta pelo
seu desconhecido, um sentido para a existência particular. Os mitos podem ser
descritos como tento três funções:
a) Explicar o mundo natural, seus fenômenos e suas origens, porque a natureza
se comporta de determinada forma, os ciclos da lua, da chuva e do sol, as mudanças
nas estações, a composição da fauna e da flora, porque os homens são como são.
Os estudiosos Maria Leach e Jerome Fried definem a mitologia como:
[Um mito é] uma história, apresentada como tendo realmente
ocorrido em uma era anterior, explicando as tradições cosmológicas
e sobrenaturais de um povo, seus deuses, heróis, traços culturais,
crenças religiosas, etc. O objetivo do mito é explicar, e Como disse
Sir GL Gomme, os mitos explicam as questões da “ciência em uma
era pré-científica”. Assim, os mitos contam a criação do homem, dos
animais, dos locais sagrados; eles dizem por que um certo animal
tem suas características (por exemplo, porque o morcego é cego ou
voa apenas à noite), porque ou como certos fenômenos naturais

2
surgiram (por exemplo, por que o arco-íris aparece ou como a
constelação Orion chegou ao céu), e porque rituais e cerimônias
começaram e por que eles continuam. (778)

b) A segunda função do mito seria repassar a cultura. O mito apresenta uma


justificativa para ritos, leis, valores e comportamentos de um determinado povo. Desde
preconceitos e concepções ideológicas de uma determinada sociedade até a própria
técnica, determinando “porque algo é feito de um determinado jeito e não de outro”,
porque se deve preferir uma virtude e não outra, o que é socialmente aceitável o que
é condenável, a ética e a moralidade local. Na perspectiva social o mito repassa
símbolos que permitem ao indivíduo compreender seu papel na sociedade, ritos de
passagem, regras de hierarquia e status.
c) Catarse & Lúdico. Mesmo que ignoremos concepções místicas que são
amplamente discutidas e estudadas como a ideia de que o Mito possui uma relação
íntima com o inconsciente coletivo de Carl Jung, o mito estabelece leis de referência
para a vida particular e emocional do indivíduo, orientações que vão além do espectro
social mas que se figuram no âmbito pessoal. Ao acompanharmos o mito
identificamos experiências que estão além do tempo ou do lugar no qual ele foi escrito,
mas que se identificam com as próprias emoções humanas, o medo da morte, a busca
por amor, como lidar com o desespero e a desilusão, medo e felicidade, conquista e
vitória. O mito nos arrasta através da história, sofremos e vibramos, somos
transformados por ela.
Tais concepções não se aplicam apenas à grandes construções mitológicas de
culturas antigas, mas também aos novos mitos criados em pequenas comunidades
sociais. Ao superar um teste de coragem em uma “casa mal assombrada” um jovem
eleva seu status dentro da sua pequena comunidade, as brincadeiras e insultos que
ele pode ou não receber tornam-se outros, suas interações com seus companheiros
se alteram e mesmo sua visão sobre si mesmo se modifica. Desse modo “a casa mal
assombrada” possui uma significativa função dentro daquela comunidade de amigos
e em paralelo uma função no desenvolvimento psicológico do próprio indivíduo. Não
é meramente a casa que faz essa mudança, seus tijolos sejam eles de pedra ou de
barro não possuem esse poder, o que faz a mudança no local social do indivíduo é a

3
mitologia em volta da casa, os símbolos que são à ela atribuídos, a mitologia e
histórias construídas em seu entorno.
Para Campbell os mitos ensinam significado. A mitologia explica, fortalece,
estabiliza e eleva a vida de uma existência mundana para uma imbuída de significado
eterno.
Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de
significação, através dos tempos. Todos nós precisamos contar
nossa história, compreender nossa história. Todos nós precisamos
compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos
de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte.
Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno,
compreender o misterioso, descobrir o que somos. (O poder do mito)

Em seus estudos, Campbell dividiu os Mitos em três categorias conforme suas


características estruturais são eles:
Mitos Etiológicos: Mitos que explicam a realidade, porque o mundo é como é.
O mal e o sofrimento foram liberados no mundo porque uma jovem de nome Pandora
abriu a caixa que os continha, as mulheres sentem dores ao dar à luz porque uma
jovem de nome Eva desobedeceu sua divindade, o casamento existe porque uma
deusa de nome Nuwa cansou de criar os humanos um a um e instituiu o casamento
para que os humanos pudessem se reproduzir por si próprios.
Mitos Históricos: Mitos históricos recontam um evento do passado, mas
elevam-no com um significado maior do que o evento real (se é que isso aconteceu).
Como exemplos desse tipo de narrativa temos o Cerco de Tróia e sua queda, como
descrito na jornada de Ilíada ou Ulisses, de Homero, na Odisséia, nas aventuras de
Enéas na obra de Virgílio ou mesmo nas batalhas do rei Arthur ou Boudica. Se as
batalhas ocorreram de fato como foram descritas é irrelevante, seu poder está nos
símbolos que elas evocam, na mensagem que transmitem.
Mitos Psicológicos: Os mitos psicológicos apresentam uma viagem do
conhecido para o desconhecido que, de acordo com Jung e Campbell, representa
uma necessidade psicológica de equilibrar o mundo externo com a consciência interna
dele. Seja como for, a história do próprio mito geralmente envolve um herói ou heroína
em uma jornada na qual eles descobrem sua verdadeira identidade ou destino e, ao
fazê-lo, resolvem uma crise ao mesmo tempo em que fornecem um público com algum
4
valor cultural importante. Provavelmente o mito mais conhecido desse tipo é o de
Édipo, o príncipe que, tentando evitar a previsão de que ele iria crescer para matar
seu pai, deixa sua vida para trás para viajar para outra região onde, sem saber, acaba
matando o homem que foi seu pai real que o abandonou no nascimento, numa
tentativa de contornar essa mesma previsão.
Em “O poder do mito” Campbell explana acerca da diferença entre religião e
mitologia no tocante a rigidez que a religião assume em contraste com as narrativas
mitológicas. O autor coloca a mitologia como algo fluido, onde não raramente os mitos
contradizem a si mesmos sem perder sua validade, a teologia então teria essa
característica de engessamento do pensamento, “Mitologia é poesia, e a linguagem
poética é muito flexível. (...) A religião transforma a poesia em prosa”.
No campo da mitologia, não é necessário acreditar que houve um rei Artur para
apreender o significado das histórias da Távola Redonda. A mensagem do mito
contém uma verdade não pautada na realidade factual. Para o mundo antigo o
propósito de um mito era fornecer ao ouvinte uma verdade que o indivíduo
interpretasse por si próprio dentro de sua experiência pessoal, encontrando
autonomamente valores expressos nos mitos, em vez de ter essa realidade
interpretada por uma figura de autoridade.

2. O MEDO PRIMITIVO E O MEDO PSICOLÓGICO.


Todo os organismos, de acordo com suas espécies, nascem com aparatos
biológicos naturais adaptados a interagir com seu ambiente. Uma espécie de
“protocolo de sobrevivência” que o corpo segue quando algo específico acontece,
como – por exemplo – como contraímos o músculo quando algo pontiagudo nos
espeta ou como piscamos quando algo se aproximar do nosso olho, ou mesmo a
própria dilatação da pupila que se autorregula de acordo com a luz. Tais reações são
involuntárias e concorrem mais rápido do que somos capazes de nos dar conta delas.
De modo similar, nosso organismo já nasce com algumas respostas emocionais
estabelecidas e, igualmente, na presença de um contexto que elicia tais emoções todo
o aparato hormonal se ajusta de forma involuntária.

5
Quando estamos na presença (ou na iminência) de algo que nos ameaça a vida
nosso corpo inicia o “protocolo” de um conjunto de reações à qual nomeamos
geralmente como medo: uma descarga de adrenalina percorre nosso organismo
preparando o corpo para um pico de atividade física, a pressão arterial aumenta, o
metabolismo acelera, os brônquios pulmonares são expandidos, a respiração
aumenta de frequência, as pupilas são dilatadas facilitando a visão para ambientes
escuros, a coagulação sanguínea fica mais rápida assim como a atividade cerebral.
Ao mesmo tempo, o corpo fica mais alerta, boa parte do nosso sangue se dirige aos
músculos maiores, como as pernas, a fim de ter energia suficiente para escapar se
necessário enquanto alguns processos, como a digestão, reduzem seu desempenho
para direcionar a energia dispendida, o próprio sistema imunológico interrompe suas
tarefas porque o cérebro não considera seu trabalho essencial. Todo o corpo se
prepara em milésimos de segundos para fugir ou atacar.
Dessa forma, o Medo tem a função de garantia da vida uma vez que ele nos
afasta e nos dá ferramentas para superar a ameaça, seja de um perigo imediato ou
previsto. Com o desenvolvimento do organismo e o aumento da complexidade do
meio com o qual interage, os perigos deixaram de ser apenas contextos de ameaças
físicas iminentes, ser excluído de um grupo ou comunidade pode ser uma ameaça tão
perigosa à existência quanto dormir sem abrigo em uma floresta hostil. O medo
adaptou-se a isso, ampliando suas guardas às ameaças de cunho psicológico e social.
Comumente o medo atua como um alarme para fugir ou evitar uma situação:
uma vez que sentimos medo de uma rua, iremos evitá-la sempre que possível, se
temos medo da fúria de alguém, tendemos a evitar encontrar com essa pessoa ou a
emitir qualquer comportamento que colabore para que a pessoa permaneça calma.
Nosso instinto de preservação nos orienta a evitar nos expor à situações de
risco sendo o medo seu principal agente de continência. Ele é rápido e eficaz, porém
as vezes esse “alarme de perigo” é acionado mesmo em situações em que não nos
encontramos em um risco real, quando tomamos um susto com um barulho alto ou
algo similar nosso corpo se prepara para a fuga iniciando todas as respostas de medo,
o cérebro, entretanto, rapidamente identifica pelo restante do contesto que nos
encontramos em segurança e libera uma alta carga de outros hormônios para acalmar
6
o corpo do estresse causado pelo medo. Endorfina e dopamina preenchem o
organismo dando uma sensação de alivio e prazer.
Devido a esse jogo hormonal, muitas pessoas procuram se colocar em
situações de medo controlado como assistir filmes de terror ou mesmo praticar
esportes radicais. O próprio dia das bruxas em muitos países é um dia dedicado ao
medo, por outro lado, a cultura de sentar em roda e contar histórias geralmente
aterrorizantes é algo que por gerações permeiam como um costume de comunidades
mais rurais.

3. O EMPREGO DO MEDO POR NARRATIVAS MITOLÓGICAS.


Como vimos, o medo tanto tem características aversivas (que inibem um
comportamento) como excitantes (reforçadoras: aumentam a frequência do
comportamento).
Sendo um ator aversivo, o medo age como um elemento coercitivo dentro das
histórias mitológicas. O terror e o medo são evocados como consequências para
ações não desejadas pela sociedade. Assim demonstra-se que caso o sujeito realize
determinada ação a consequência temida irá se suceder, resultando em uma esquiva
do comportamento.
Tal característica é aplicada principalmente por mitos que tem a função de
passar a cultura. Em geral, nessas histórias um personagem é apresentado realizando
o comportamento execrável e sendo punido por isso, seja uma punição divina, seja
no encontro com uma monstruosidade ou transformando-se em tal criatura, de uma
forma ou de outra a punição é exagerada de modo a explorar o mais profundo terror
naqueles que acompanham o conto, colocando o ouvinte sob controle do medo, desta
forma ao fazer um paralelo com o personagem o indivíduo aprende por modelação
(observação/ linguagem) que aquele comportamento é algo que não deve ser
realizado, ou ainda que ele deve se comportar de uma maneira específica para evitar
a punição.
Por outro lado, o medo também possui características excitantes que reforçam
o comportamento de buscar o próprio medo como foi visto.

7
Contos de Catarse costumam utilizar essa característica para fazer o ouvinte
acompanhar a viagem da personagem sentir o medo primordial e superá-lo, ficando
com a sensação de euforia e satisfação. Mesmo em histórias nas quais o personagem
não goza de um momento de superação, compreender-se como um indivíduo à parte
que não está subjugado às tragédias do personagem já traz ao ouvinte a satisfação
da segurança.

CONCLUSÃO.
Observamos que o os mitos se utilizam dos recursos do medo para acessar e
influenciar os indivíduos em suas emoções mais básicas e primitivas. Como recursos
pedagógicos, eles amedrontam para controlar o comportamento social, como recursos
lúdicos eles nos impactam revivendo terrores, nos arrastando ao submundo e nos
tirando de lá.
A leitura das histórias mitológicas, ainda hoje, evocam discussões e reflexões
em grande parte porque aquilo que nos assusta nos deixa alarmados e bem vimos
que nosso “protocolo de segurança” é bem treinado para lidar com o que nos assusta.
Então precisamos conversar sobre aquilo, entende-lo, analisar se aquilo do que
falamos é de fato uma ameaça.
O que nos amedronta recebe nossa atenção, e os mitos usam bem isso.

8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

MARK, Joshua J. Mythology. Ancient History Encyclopedia. Disponível em:


<https://www.ancient.eu/mythology/>. Acesso em: 04 de agosto de 2019.

CAMPBELL, Joseph.O poder do mito / Joseph Campbell, com Bill Moyers, tradução
de Carlos Felipe Moisés. - São Paulo: Palas Athena, 1990

MOREIRA, Marcio Borges Princípios básicos de Análise do comportamento. Porto


Alegre: Artmed, 2007.

Você também pode gostar