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questões retóricas

AÍ É LUTA, PATULÉIA!
Uma desavença fonética opõe a jovem guarda aos palindromistas tradicionais —
seria "Acena, Vanessa!" aceitável?, por Vanessa Barbara
Piauí, Edição 2, Novembro 2006

H á uma frase em latim que cura mordida de cobra e facilita o

parto. É “Sator Arepo Tenet Opera Rotas” (o semeador Arepo mantém o


curso com atenção), que ao ser lida da direita para a esquerda é literalmente
igual. Ou seja, é um palíndromo. Segundo Otto Lara Resende, uma
senhora mineira escrevia cada palavra dessa oração num pedaço de
papel, enfiava num bentinho e amarrava no pescoço dos doentes, dizendo
que, para coqueluche e asma, era tiro e queda. A frase é considerada o
palíndromo mais antigo do mundo, e além disso, se as palavras forem
dispostas em pilha, uma embaixo da outra, o sentido é preservado em
todas as direções. Há inúmeras traduções possíveis, como “Deus,
Criador, mantém com cuidado o mundo em sua rota”, mas ninguém sabe
ao certo o que ela quer dizer. O escritor pernambucano Osman Lins
baseou seu romance Avalovara nessas cinco palavrinhas enigmáticas.
Existem palíndromos atribuídos ao demônio. Alguns trazem azar. O
gramático Napoleão Mendes de Almeida, autor de Questões vernáculas,
diz que uma das provas de soberania entre os incas era que seus reis
tinham nomes palindrômicos, como Capac. Na década de 70, um casal de
Ohio, nos Estados Unidos, batizou seus filhos como Noel Leon, Lledo
Odell, Lura Arul, Loneya Ayenol, Norwood Doowron, Lebanna Annabel
e Leah Hael. A certa altura, alguém criou a palavra “aibofobia” para
designar o medo mórbido e irracional de palíndromos. O termo não tem
raiz grega ou latina, mas funciona de trás pra frente.
Junto a restos de churrasco, em uma mesa na calçada, um rapaz de
camiseta amarela olha intrigado para a palavra “gnus” escrita em um
papel. Ao lado dele, outro jovem rabisca nomes de ditadores numa folha:
Hitler, Stálin, Mussolini. De repente, Paulo Werneck descobre que “a
gnus” ao contrário dá “sunga”, e se põe a construir uma frase. Chico
Mattoso desiste dos totalitários e passa para a palavra “pires”. Naquela
tarde de outubro, na mesa de uma churrascaria em Santa Cecília, na
região central de São Paulo, a jovem guarda palindrômica trabalha com
afinco. Há quem diga que estamos vivendo os tempos áureos dos
palíndromos. Nunca se produziu tanto desde um certo período na década
de 90, quando um palindromista veterano sofreu um acidente de
automóvel e passou três meses de cama, ditando frases invertidas para a
esposa.
Por fim, uma garota sentada na outra ponta da mesa quebra o silêncio e
mostra um palíndromo: “. E amamos só mamãe.”, na linha terno-familiar.
Aos 25 anos, a moça de vestido longo, cabelos castanhos e voz suave é
um dos grandes nomes da jovem guarda de palindromistas. O garçom
vai buscar mais cerveja. Marina Wisnik diz que o segredo é não teimar
por muito tempo. Se em quinze minutos não deu palíndromo, é melhor
desistir e tentar outra palavra.

R epresentante da velha guarda palindômica, Rômulo Marinho, 74

anos, concorda com Marina: o importante é seguir tentando. Rômulo se


intitula rei do palíndromo. Nascido em Guaçuí, no Espírito Santo, o
advogado aposentado já compôs mais de 2002 frases. São de sua autoria
expressões como “A droga do dote é todo da gorda”, “O rio é de oiro”,
“Seco de raiva, coloco no colo caviar e doces” e “E até o papa poeta é”
(nos palíndromos, acentos não são levados em conta), além de um poema
de 123 letras chamado “Palíndromo do amor total”. Em 1998, publicou o
livro Tucano na CUT?, com 202 frases. “Quase todo dia, vendo televisão,
faço um palíndromo”, diz ele, “mas já não os anoto mais.” Nos três meses
em que ficou de cama, ditando frases para a esposa, chegou a produzir
cinco por dia.
Rômulo nasceu em 1932. Demorou mais de sessenta anos para fazer seu
primeiro versus cancrinus (em latim: aquele que se comporta como
caranguejo). Ele conta que, desde a infância, tinha a mania de ler palavras
ao contrário, esperando encontrar algum sentido. Foi quando descobriu
os bustrofédons, ou parapalíndromos, palavras que, lidas da direita para
a esquerda, formam vocábulos diversos, como amor (Roma), após (sopa),
assim (missa) e ar (rã). Pode-se dizer que o bustrofédon é um ponto de
partida para o palíndromo. Mesmo assim, Marinho não parou por aí:
continuou sem saber que existiam sentenças inteiras em espelho, embora
já conhecesse a famosa frase “Roma me tem amor”. Aos 25 anos, tornou-
se telegrafista, mais tarde engajou-se na militância sindical e política, foi
eleito deputado federal e exerceu inúmeros cargos públicos. Aos 40 anos,
formou-se em direito e, aos 59, ganhou o posto de juiz classista em
Taguatinga, nos arredores de Brasília. A essa altura, um cardiologista
obrigou-o a fazer longas caminhadas matinais. “Para esquecer a distância
e o tempo, tentei fazer palíndromos”, lembra. “Passaram-se meses, até
que um dia nasceu o primeiro: ‘A base do teto desaba’.” A vantagem
desse hábito foi que Rômulo Marinho nunca precisou de papel para criar
suas frases.
O palíndromo é uma arte sem planejamento, ou, nas palavras de Millôr
Fernandes, uma arte neurótica e maravilhosa, capaz de envergonhar
qualquer concretismo. Para começar uma frase (ou terminá-la, no caso),
não se deve ter um tema prévio, ou uma intenção a comunicar. “Pegue
uma palavra na qual duas consoantes não se encontrem e coloque no
meio de uma frase imaginária”, ensina Marinho. “A partir daí, da
esquerda para a direita ou vice-versa, vá construindo seu palíndromo.” É
a abordagem centrista, utilizada pela maioria dos criadores de
palíndromos, em que a frase vai abrindo para as pontas até ganhar
sentido. Devem-se evitar advérbios terminados em ente, gerúndios e
tritongos, além de letras mudas e a palavra “Volkswagen”.
Apesar da limitação imposta pelo método, os palíndromos não são
necessariamente aleatórios e desprovidos de sentido. Rômulo Marinho os
divide em “explicitus”, “interpretabiles” e “insensatus”, sendo que
os insensatus cuidam apenas de juntar letras ou palavras sem se
preocupar com o sentido, como: “Olé! Maracujá, caju, caramelo.”
Os interpretabiles têm coerência, mas requerem esforço intelectual do leitor
para entendêlos: “A Rita, sobre vovô, verbos atira.” Já os explicitus, mais
valiosos, trazem sempre uma mensagem direta, clara e inteligível, como :
“A diva em Argel alegra-me a vida.” Marinho se empenha para que os
seus tenham significado óbvio. De fato, poucos dos seus versos exigem
do leitor um esforço de interpretação. Além disso, segundo ele, “à
exceção de certos palindromistas americanos, que vivem em permanente
excitação atrás do recorde palindrômico, desprezando, na maioria das
vezes, o nexo, todos os palíndromos que se cristalizaram são
perfeitamente inteligíveis”. Em português, o mais famoso deve ser
“Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos”, de autoria anônima.
No Brasil, os azes da palindromia incluem Pedro Nava, Malba Tahan,
Afonso Arinos de Mello Franco, Eno Teodoro Wanke (autor de O livro dos
palíndromos, onde registra mais de 3 mil) e Millôr Fernandes, autor de
“Assim a aia ia à missa”, “A mala nada na lama” e “Olá, galo”. O
cartunista Laerte é outro que faz suas incursões. Numa de suas tirinhas,
uma família de cavalos está jantando e o potrinho diz: “Rir, o breve verbo
rir”, e o pai retruca: “Eu já te disse para não dizer palíndromos à mesa!”
Chico Buarque, por sua vez, demorou cinco horas para inventar o seu,
durante uma noite de insônia: “Até Reagan sibarita tira bisnaga ereta”,
que foi publicado em 1986, com ilustração de Chico Caruso. Nenhuma
dessas personalidades supera Rômulo Marinho em dedicação.

O veterano palindromista, que chegou a receber o grau de

Comendador na Ordem do Mérito de Brasília – mas não por causa de


seus palíndromos -, acredita que existe um bocado de gente devotada ao
ofício e atribui a si mesmo o crédito por boa parte dessa expansão. Todos
os anos, na Feira de Livros de Brasília, ele é escalado pelo Sindicato dos
Escritores para fazer uma palestra sobre o assunto. Pela internet, vende
de quatro a cinco livros por mês. Recebe, quase que diariamente, a
correspondência de novos palindromistas que encaminham seus
trabalhos para sua apreciação.
Um desses novos talentos é Marina Wisnik, a jovem da churrascaria. Há
seis anos, ela teve alguns de seus palíndromos musicados em uma canção
do pai, José Miguel Wisnik. Em “Relp”, a atriz colabora com os versos:
“Oi, rato otário”, “Eco: vejo hoje você”, “Ser cor e ser ocres”, “Ó mãe, tu
era réu. Te amo”, “Mima a mina e anima a mim”, “Só dote dádiva é a
vida de todos” e, o mais conhecido, “Lá vou eu em meu eu oval”, que
abre a canção. Marina começou a fazer palíndromos aos doze anos,
durante as aulas. A adolescência foi sua época mais produtiva, quando
compôs quase todos os palíndromos utilizados na música.
Seus versos seguem uma linha mais poética e filosófica, embora ela tenha
frases de diversas tendências, como a coloquial “.Ô Piauí! Viu? Aí, pô.”,
que ela criou em poucos segundos, sob encomenda. “É interessante
perceber que os palíndromos têm estilo”, afirma. “Quer dizer, se eles
partem de uma regra, supostamente eram para ser todos iguais, mas não
são: cada autor tem um jeito.” Como exemplo, Marina Wisnik mostra os
versos de Sofia Mariutti, 19 anos, estudante de letras na USP e especialista
em palíndromos coloquiais. Sofia é autora de “Ô padre, meu, que merda,
pô!”, “É pesado? Foda-se, pé!” e “Olé! Bacon no cabelo!”.

A jovem guarda palindrômica abriga representantes de todos os

tipos- do culto ao coloquial, do comportado ao sacana, todos com uma


característica em comum: palindromia desenfreada. No encontro da
churrascaria, foram criados em poucas horas dezenas de versos, na
modalidade engajada, como “Aí é luta, patuléia!”, de Paulo Werneck, “A
luta: tu lá”, de Marina, e na modalidade líricoembevecida, como “Ah,
larga gralha!” e “Ah, livre ervilha”, de Werneck. A pedidos, produziram
uma seqüência sobre cavalos. Paulo fez “Só lava cavalos” e “Seo Zala só
lava cavalos alazões”, embora a legitimidade do senhor Zala tenha sido
contestada, e o escritor Chico Mattoso veio com o coloquial “Ó lá! Vaca a
cavalo!”.
Mattoso, de 28 anos, formado em letras, é craque em palíndromos
eróticos, como “Alzira no colo: coloco nariz lá”, “O soro louco do cu
oloroso” e “Ó: meto anal, miss? Sim, lá não temo.” É também notável seu
poema lírico-terrorista Barab:
“Osama ama só
E, no nada, mama danone.”
Alguns de seus palíndromos coloquiais procuram captar o espírito da
época. É o caso de “A Ju, cara, mó maracujá” e “Lã, mina: animal!”, em
que um rapaz tenta cortejar uma moça exibindo o nobre material de suas
vestes.
Já o editor Paulo Werneck, também de 28 anos, possui um estilo mais
experimental, marcado pelos palíndromos insensatus: “É mala, salame!”,
“Só furado podar ufos”, “E volátil a palita: love”, “Os nós de Edson só” e
“Ela fede a gnus, a sunga, Ed! É, fale!”. No papel, ficaram inconclusas as
suas tentativas com as palavras “pinel”, “árvore”, “Fidel”, “pulôver”,
“Pol Pot”, “Churchill”, “pâncreas”, “apócrifo”, “diarréia”, “Abraão” e
“couve”.
Werneck é um dos pioneiros do controverso palíndromo fonético, nova
modalidade de frases que se pautam pela regra da oralidade. Os maiores
exemplos são: “Acena, Vanessa!”, em que de trás para frente os dois ss
substituem o cê, “Soluço sob os óculos”, em que o cê e o cê cedilha se
confundem, e “Osaka girava a Varig: acaso”, que além de fonético não faz
nenhum sentido.
“Jamais me passou pela cabeça que alguém iria, um dia, fazer um
palíndromo assim, só sonoramente palindrômico”, confessa, desgostoso,
Rômulo Marinho, um defensor da palindromia ortodoxa. “Para mim, que
a considero uma arte idiomática, não vale.” Ele acredita que fazer
palíndromos é uma distração destinada ao cultivo do idioma, e portanto a
transgressão é de mau gosto. “É simplista demais. De qualquer forma, da
mesma maneira que alguns fazem versos caipiras, com erros crassos da
nossa língua, fica a juízo e critério de seu produtor e de seus ouvintes o
julgamento. Eu, simplesmente, não vejo qualquer graça nisso. Quem sabe
o ‘seu Creysson’ gostaria”, ataca. Em sua defesa, Paulo Werneck bate na
mesa e observa que “a palindromia precisa se abrir para a oralidade. O
palíndromo fonético é uma realidade!” A discussão corre o risco de
terminar com o palíndromo “É a mãe! É a mãe!”.
Outra inovação trazida pela mocidade palindromista, e dessa vez
aclamada pelos veteranos, é o Palíndromo Plus 2002, do engenheiro
Pedro Mindlin, de 32 anos (http://www. larc.usp.br/ ~pmindlin/
palindromo.html). O programa serve para auxiliar na criação das
sentenças, pois possui os campos “Contrário”, em que a palavra escolhida
aparece às avessas, e “Espelho”, que ajuda a visualizar uma frase, já que
todo palíndromo é, sempre, espelhado, isto é, a primeira letra da frase é
igual à última, a segunda igual à penúltima e assim por diante, até chegar
à letra central, caso o número total de letras seja ímpar, ou letras centrais,
caso o número seja par. O Palíndromo Plus foi baseado na obra do
médico Manu Lafer, que lançou ano passado o CD Grandeza, com duas
músicas em palíndromo: “A cara rajada da jararaca” e “Bustrofédon”. O
próprio criador da ferramenta, Pedro Mindlin, possui palíndromos de sua
autoria, entre eles “O Pedro morde pó” e “O Pedro me morde, pô!”. E
também recebe, por email, frases de usuários do programa – como
Elizene Cássia, da cidade de Taió, Santa Catarina, que enviou
recentemente um palíndromo singelo: “Oi a todo Taió.”

Vanessa Barbara
Escritora e jornalista, é colaboradora do New York Times

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