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FATO E VERDADE

Não importa quão verídico seja um fato ou quão inegável seja sua historicidade: o critério último de
sua verdade não reside aí. Afinal, mesmo que verdadeiras, que importância têm as notícias do jornal
de ontem? E os inúmeros fatos que se sucedem, um após outro, na vida cotidiana – quais deles
realmente atingem aquele grau de verdade que os torna marcantes, memoráveis, capazes de nos
fazer rir ou chorar, ainda que muito depois de seu acontecimento? Aqueles que nos afetam, que nos
implicam, certamente. Ou seja, há um critério de verdade que escapa à factualidade, à facticidade da
vida. Pois não são os fatos, puros e simples, que nos marcam, mas o sentido que irrompe a partir
deles. Pela falta de sentido, há fatos que nos passam inteiramente despercebidos; enquanto que, pelo
sentido, outros, ainda que mais simples, são capazes de nos marcar até o mais profundo da alma.

Essa constatação, a saber, de que a verdade não coincide necessariamente com a factualidade do
real mais imediato, ou ainda, de que a verdade é muito mais ampla e que em certa medida até
ultrapassa a crueza dos fatos, é bastante incômoda para nós, homens e mulheres pós-iluministas e
pós-científicos. Porque, desde a revolução científica, nos acostumamos ao axioma de que é
verdadeiro somente o que pode ser comprovado pela observação empírica, matematizado pelas
ciências, descrito assertivamente numa experiência cujos pressupostos sejam “claros e distintos”. E
que tudo o quanto escape à racionalidade explicitativa ou ao crivo científico pertence à já
ultrapassada mentalidade do mito, do erro, da superstição, do engodo – despojos de um tempo que
não existe mais.

Felizmente, não parece ser assim. Pois, por mais que uma realidade seja investigada e
esquadrinhada pela observação e pela conceituação, no fim de tudo, esgotadas as razões, sempre
sobra um derradeiro “por quê?” que, em última instância, determinará a ação humana. Essa
pergunta última pelo sentido constitui, simultaneamente, a arte, a filosofia e a religião. Todas elas se
alimentam da dimensão de mistério que habita todas as coisas, latente, nem sempre enunciado,
embora sempre pressuposto. Admitir o sentido implica alargar consideravelmente nosso conceito
corriqueiro de verdade e libertá-lo do limite do fato.

Mesmo a historiografia contemporânea (cf. Jacques Le Goff e Eric Hobsbawm, p. ex.) concorda que
não existe fato bruto. O “fato” será sempre “feito” (em latim, essas palavras coincidem: factum) por
alguém, contado a partir de uma determinada experiência, reconstruído a partir de um horizonte de
sentido. A história será sempre hermenêutica, aberta a novas incursões e reinterpretações, que
gerarão novos textos (em latim, literalmente, “tecidos”): novas tramas, cujos fios dos fatos serão
entremeados pelo sentido. Dessa tessitura integral, e não só de sua parte fatual, emana sua verdade.
E, se a história e os fatos cotidianos são grávidos de sentido, fiados em novos textos, que dizer dos
textos bíblicos? Seria ingenuidade procurar na base desses textos, tão cuidadosamente tecidos,
simples “fatos brutos”. Pois, se esses textos são porta-vozes de experiências religiosas que
atravessaram séculos e modificaram a vida de povos inteiros, ou, ainda mais, se, pela fé, cremos que
essas páginas abrigam sob suas linhas e palavras humanas a Palavra de Deus, qualquer tentativa de
reduzi-los a relatos historiográficos (no sentido moderno da palavra) significaria um escandaloso
empobrecimento. Na prática, ler as Sagradas Escrituras como que à procura de simples fatos
históricos implica renunciar a seu sentido e sua verdade mais profundos e preciosos.

Não que a Bíblia esteja isenta de história ou não contenha fatos históricos. A fé de Israel nunca se
dirigiu para fora da história: Iahweh é Deus da história e, na história de seu povo, o salvou. Na
origem da experiência religiosa do Antigo Testamento não está uma ideia, mas uma história de
opressão feita liberdade. E, no Novo Testamento, tampouco a fé dos discípulos (tal como a nossa) se
dirige a um discurso ou a uma teoria, mas a um homem: Jesus de Nazaré, do qual afirmaram (como
nós também afirmamos) ser ele o Cristo de Deus. A revelação de Deus, em todos os tempos, se deu
mediada pela história, convertendo-a, a partir de dentro, em história da salvação.

Entretanto, os textos serão sempre testemunho dessa experiência, construídos com a limitação da
linguagem humana, cerceados pelos contextos da cultura humana, movidos por intencionalidades
humanas. E, assim cremos, não se separando dessas realidades humanas, mas assumindo-as
plenamente, Deus nos fala. E, como resultado literário dessa inspiração divina, os textos sagrados
carregam em si tudo o que os constitui: fatos e interpretações, esperanças e angústias, alegrias e
decepções, coragem e covardia, erros e acertos – pois foi desse modo autenticamente humano, de
coração a coração e no chão da nossa história, que Deus quis nos falar.

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