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Bispo do Rosário

Athur Bispo do Rosário (1909 – 1989) nasceu e viveu boa parte da adolescência na cidade de
Japaratuba, Sergipe. Jovem, alistou-se na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Sergipe, trabalhando na
manutenção da limpeza a bordo. Um ano depois, foi transferido para o Quartel Central de Marinheiros, na
cidade do Rio de Janeiro onde permaneceu até o fim da vida. Dos seus 15 anos aos 23 anos, manteve-se na
função de sinaleiro.
Por volta de 1933, passou a trabalhar na Light onde ocupou os cargos de lavador de bondes e
borracheiro. No dia 23 de fevereiro de 1937, foi demitido, pois se recusou a cumprir ordens de um
encarregado, bem como o ameaçou. Ainda nesse ano, conheceu o advogado Humberto Leone, que o
representou juridicamente ao mover uma ação contra a Light. Naquela situação, Arthur Bispo do Rosário
conseguiu não só uma indenização, mas também a amizade desse advogado, para o qual trabalhou mais
tarde.
Em dezembro de 1938, afirmou ter visto Cristo no quintal da casa dos Leone acompanhado de sete
anjos azuis. Depois dessa visão, seguiu perambulando pelas ruas por cerca de dois dias. Na sua procissão
passou pela Igreja de São José e, por fim, pelo Mosteiro de São Bento, locais onde pretendia avisar sobre sua
missão. Os monges, por sua vez, chamaram a Polícia Civil que o levou para o Hospício Nacional dos
Alienados, localizado na Praia Vermelha em 22 de dezembro. No dia 25 de janeiro de 1939, foi transferido
para a Colônia Juliano Moreira. Ele foi alojado no Pavilhão 11 do Núcleo Ulisses Viana, onde estavam
reunidos doentes considerados agressivos e perigosos. Arthur Bispo era considerado um deles, pois chegou
bastante agressivo. Sua força física logo lhe proporcionaria um lugar privilegiado perante todos no Hospital.
Em 1964, Arthur Bispo do Rosário retornou definitivamente para a Colônia. Os médicos lhe
atribuíam um diagnóstico de Esquizofrenia Paranóide, e entre seus sintomas delírios místicos e de grandeza.
Ele, contudo, afirmava que obedecia a ordens celestes. Durante esse tempo, isolou-se dos outros internos
afim de se dedicar a produção artística que lhe era soprada aos ouvidos pelas vozes celestiais. A sua prática
poder-se-ia denominar de terapia, desígnios divinos ou ainda urgência existencial. O que se sabe, de fato, é
que através dos seus trabalhos, Arthur Bispo do Rosário ergueu o seu castelo.
Segundo Lima (2015), Rosário nasceu em uma cidade predominantemente católica e, portanto,
cultivava alguns hábitos pregados por tal religião. Ao longo do ano, passava por períodos de auto-exílio,
momentos em que também praticava o jejum. Do mesmo modo, quando estava se transformando, ou seja,
quando estava à beira de uma crise provocada por seu transtorno mental, pedia aos funcionários da Colônia
que o isolassem. Nessas fases, a arte se multiplicava. Arthur Bispo do Rosário ficou internado na Colônia
Juliano Moreira por 50 anos. Durante esse período, se manteve muitas vezes distante da rotina de vida no
hospital psiquiátrico, a fim de se concentrar numa missão divina: Recriar o mundo.
Segundo Oliveira (2014), pode-se definir Rosário da seguinte maneira:
“Bispo, negro proveniente de uma população de escravos recém-libertos, sem família, um excluído
social que tem como agravante o quadro de esquizofrenia paranoide diagnosticado, em condição de
retido manicomial, só encontrou uma saída para a reorganização de um mundo mais justo. As leis dos
homens não foram suficientes para salvá-lo. Recorreu às divinas, e escolheu trilhar esse percurso e
embelezá-lo com seu talento e sua dedicação. Cada um desses objetos escolhidos é ressignificado pelas
mãos de Bispo. É um bordado minucioso em que coisas aparentemente insignificantes convivem
adquirindo novas cores, nova vida. Dividem harmoniosamente o espaço num outro mundo, melhor e
perfeito. Assim como ele próprio, seus objetos abandonam a posição à qual tinham sido originalmente
vocacionados e assumem um posto nobre e digno.”
No período de internação, Bispo do Rosário se dedicou incessantemente a produção artística, grande
parte com materiais recicláveis. Suas obras tomaram notoriedade e foram expostas em diversos lugares.
Rosário, entretanto, não se vangloriava dos seus feitos e atribuía as suas obras as vozes que ouvia.

REFERÊNCIAS

LIMA, Ana Celma Dantas; JOHANN, Rejane Lucia Veiga Oliveira. Arthur Bispo do Rosário: a arte
enquanto linguagem da esquizofrenia. Rev. Psicol. Saúde,  Campo Grande ,  v. 7, n. 2, p. 99-107, dez.  2015
.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-
093X2015000200003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  31  jan.  2017.

OLIVEIRA, Solange de. Arthur Bispo: memórias de uma salvação. Ide (São Paulo),  São Paulo ,  v. 36, n.
57, p. 179-189, jun.  2014 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0101-31062014000100014&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  31  jan.  2017.

Profeta Gentileza

José Datrino, nasceu em 1917 em Cafelândia, SP, segundo filho de uma família de 11 irmãos. Desde
a infância apresentava alguns fenômenos alucinatórios, porém como ele vivia em uma família muito
religiosa, tais eventos eram interpretados como 'fenômenos espirituais'. Em 1937 saiu de sua cidade natal
rumo a São Paulo, depois ao Rio de Janeiro. Para a família, teria sido levado por um guia espiritual. Ficou
quatro anos sem dar notícia, até que pediu à mãe para mandar seus documentos. Em 1941, casou-se, tendo
cinco filhos. Estabelecendo-se trabalhando com fretes até construir sua empresa de 3 caminhões de
transportadora de cargas.
Guerra e colaboradores (2006), descrevem um episódio na trajetória de José que o transformaria em
um novo homem:

“Segundo sua filha, em torno de seus quarenta anos, após a visita de um senhor que lhe propõe
sociedade no negócio de transportes, sucedeu o episódio da lama em que se despe, liberta todos os
pássaros da casa e, nu, deita-se na lama para fazer-se um novo homem.”

Após um grande incêndio de um circo numa cidade vizinha à que habitava (Niterói) — no qual
morreram mais de 400 pessoas numa tragédia nacional —, diz receber a mensagem de um destino a cumprir.
Ele tinha, então, em torno de 40 anos. Datrino conta que sentiu uma “reação” e depois de sete dias antes do
Natal, dia 17 de dezembro, recebeu o aviso astral de Deus: 1) de que ele deveria deixar todos os seus
negócios materiais para cumprir o desígnio espiritual na Terra; 2) de que deveria vir como São José para
apresentar Jesus de Nazaré à Terra; 3) e perdoar toda a humanidade, ensinar o perdão e mostrar o caminho
da verdade, que é nosso Pai. Já é possível aqui vislumbrar um uso do Pai, certa versão do Pai, ao lado de seu
trabalho delirante e de sua criação artística na escrita.
Assim, realizou tudo o que lhe foi destinado. Abandonou a família e os negócios e começou uma
vida de peregrinação e de pregação. Durante este período, chegou a ser internado em hospitais psiquiátricos
por três vezes, tendo sido diagnosticado como 'paranóico'. Recusou, porém, qualquer forma de tratamento.
Para Guerra e colaboradores (2008), aos poucos, transformou seu nome próprio, forjando uma
nomeação a partir do trabalho significante em torno de dois pares binários que ele mesmo estabeleceu: 1)
favor-gentileza e 2) obrigado-agradecido. E trabalhou esses significantes na direção de uma transposição da
obrigação para a escolha, da dívida para a gentileza, pois Deus quer nossa liberdade, sem nada demandar em
troca, gratuitamente. Da experiência com as palavras, José passa a assinar seu nome com a grafia neológica
que inventa: Jozze Agradecido e depois Profeta Gentileza. Consegue construir um ponto real de estofo, de
limite à significação delirante, conferindo-lhe uma inscrição em torno da qual toda sua existência passará a
se consolidar.
Paralelamente a esse trabalho com os pares significantes, José Datrino mudou seu nome para Jozze
Agradecido e depois para Profeta Gentileza. É ele mesmo quem diz que: "estas duas palavras, 'por
gentileza' e 'agradecido', não tem dinheiro que as pague. Elas são minha vida". Ele criou verdadeiramente
um sistema delirante que se organiza em torno da luta contra o 'capeta-capital' — que está destruindo o
mundo — e em torno da defesa do princípio ético da gentileza, de onde se originam todas as demais
virtudes, como o amor e a bondade. Muitas vezes ele foi tomado como um mito contemporâneo por
denunciar a expropriação do capital e a globalização e por defender um mundo mais humano e justo.
O Profeta viajou durante cerca de 30 anos pelo Brasil, perfazendo um círculo — pois como ele
cantava em suas modinhas: "o circo é redondo, e o mundo é arredondado". E, quando mais idoso, sem
condições físicas de prosseguir sua missão itinerante, restabeleceu-se no Rio de Janeiro, cidade na qual
havia se instalado com a família. Lá pintou 54 pilastras próximas à Rodoviária Grande Rio para manter sua
mensagem de pregação.
As pilastras trazem suas mensagens de pregação, escritas com uma grafia absolutamente original.
Também porta simbolismos, como aviões e estrelas entre as palavras, ou o acréscimo de letras nas palavras,
que é uma das grandes marcas da escrita de Gentileza, conferindo a elas novas significações, diferentes das
em geral partilhadas entre os homens. Além disso, as palavras em sua escrita se acomodam numa seqüência
de pautas, como as notas musicais numa partitura, sendo o movimento interno do texto assegurado por setas
ou pássaros/aviões, que religam as palavras, movimentando o texto internamente, seja remetendo a leitura
para a linha seguinte, seja ligando uma palavra à outra, criando uma estética intertextual absolutamente
original em sua caligrafia. Interessante também notar a brasilidade como aspecto cultural absorvido por sua
estética. Ele alterna, nas pautas de marcação de seu texto, as cores verde e amarela sobre fundo branco,
escrevendo suas palavras e signos em azul, e pousando a bandeira nacional ao final da primeira linha de
cada escrito no Viaduto.
E, para além desse trabalho artístico (ou artesanal) com as letras e a linguagem na grafia que
inaugura, ele promoveu também uma metaforização do corpo, utilizando uma indumentária tão singular
quanto sua escrita: vestia uma bata e calçava alpargatas, ambas bordadas por ele mesmo, bem como portava
um estandarte pleno de alegorias (como cata-ventos para arejar a cabeça dos homens) e simbolismos com
sua mensagem escrita. Com o estandarte em punho, encimado por um punhado de flores que migraram do
"Paraíso Gentileza", ele se apresentava como representante de Deus e anunciador de um novo tempo. Seu
estandarte parecia funcionar como uma espécie de carteira de identidade mítica.
As pilastras que ele pintou no Rio de Janeiro foram tombadas como patrimônio cultural do
município, tendo havido todo um trabalho de restauração das mesmas, que se encontravam perdidas sob a
tinta cinza da qual nos fala a cantora Marisa Monte na canção sobre o nosso personagem. Gentileza foi tema
de escola de samba com Joãozinho Trinta; foi entrevistado na TV Globo por Jô Soares; e é conhecido por
todas as pequenas cidades por onde andou levando sua mensagem, pois se fazia apresentar nas rádios locais
ao chegar, convidando a todos para o ouvirem nas praças públicas.

REFERÊNCIAS

GUERRA, Andréa Máris Campos et al . A função da obra na estabilização psicótica: análise do caso do
Profeta Gentileza. Interações,  São Paulo ,  v. 11, n. 21, p. 29-56, jun.  2006 .   Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
29072006000100003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  31  jan.  2017.
GUERRA, Andréa Máris Campos et al . Sujeito e invenção: a topologia borromeana na clínica das psicoses.
Ágora (Rio J.),  Rio de Janeiro ,  v. 11, n. 2, p. 283-297,  Dec.  2008 .   Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982008000200008&lng=en&nrm=iso>.
acessos em  31  jan.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200008

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