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Alienação parental

Comentário PsiRelacional

9.02.2018

Tudo isto começa habitualmente com perda da pessoa amada que produz aquilo que,
contrapondo-se à dor física (no corpo), chamamos de dor psíquica: uma fratura do
vínculo amoroso com o outro, uma dissociação relacional, mais precisamente daquele
objeto de desejo que foi idealizado como destinado a ser vivido para sempre.

A expressão dessa dor, no entanto, em regra, assume uma dimensão existencial, que
coloca em questão o próprio sentido da vida e, às vezes, pode conduzir a uma angústia
e desespero, sentida como um dilaceramento da alma.

A dor da perda parece imprimir impressões que são gravadas como memórias, que
serão depois muitas vezes recordadas e reprocessadas pelo afecto. E assim o afecto é
sempre um eterno retorno, uma reedição de um evento primitivo, uma repetição do
passado, que no fundo não é tao passado porque ainda é vivido no presente.

E quando o outro se transforma em objeto de desejo, é-lhe atribuído um enorme


poder. Mas se as coisas correm mal esse poder acaba por gerar vulnerabilidade, uma
dependência que é sentida como prejudicial. Através dos mecanismos inconscientes,
entre eles a negação ou a formação reactiva, a paixão amorosa pode se transformar
numa paixão odiosa.

“Em todo o amor existe, latente, um germe de rivalidade, capaz de se transformar em


ódio. Nada há tão semelhante ao abraço como o estrangulamento”.

Parece que odiando, se pode prescindir do outro e entretanto, para que isso se
cumpra, é necessário atacá-lo e destruí-lo. O ódio passa a ser, então, a sombra do
amor. Já não se morre de vida, mas vive-se de morte.

Isto talvez nos ajude a pensar no litigio que existe em algumas das exigências dos
processos de Regulação das responsabilidades Parentais que observamos nos
Tribunais, onde se origina um palco de disputas manifestas e materiais mas que trazem
consigo outros litígios latentes, que proveem das profundezas do inconsciente. Dai a
importância dos Tribunais estarem também cientes destes caminhos inconscientes,
que podem servir de causa subjacentes nos processos judiciais.

Atualmente observamos que o conceito de família se alterou. De acordo com


Roudinesco (2003) existem três períodos: a família “tradicional”, onde os casamentos
eram arranjados e as relações afectivas não eram relevantes, e a família era submetida
à autoridade patriarcal; a família “moderna”, organizada numa lógica mais afectiva,
fundada no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e desejos, onde se
valoriza a divisão do trabalho entre os cônjuges; e a família “contemporânea” ou “pós-
moderna” que une, por um período de tempo relativo, dois indivíduos que procuram
uma relação mais íntima ou a realização sexual, e que desta forma a transmissão da
autoridade é mais enfraquecida e o poder mais descentralizado, numa uma lógica mais
horizontal.

Homens e mulheres parecem já não tolerar relacionamentos insatisfatórios e


procuram o prazer noutras relações, noutros companheiros.

Diante disso, no momento da separação e quando existem os filhos, torna-se de


fundamental importância, considerar a diferença entre conjugalidade e parentalidade.
Isso porque, após a dissolução conjugal o que passa a existir é o casal parental.

Se entendermos que a parentalidade é importante para o desenvolvimento psíquico


dos filhos, então as funções materna e paterna devem ser mantidas independente da
dissolução conjugal. Esta ideia remete a noção de parentalidade suficientemente boa
de Winnicott, na qual as funções tanto do pai quanto da mãe estão impressas no
cuidado suficientemente bom ao bebé, e que são essenciais para o desenvolvimento
da criança.

Assim, há o entendimento de que tanto o pai quanto a mãe são fundamentais nos
cuidados dos filhos e que a continuidade do exercício parental após o divórcio é muito
importante para a manutenção dos vínculos filio-parentais.

Os casamentos desfazem-se e refazem-se com grande rapidez, e com as mudanças nos


vínculos afectivos, conjugais e parentais, surge também a necessidade de se reflectir
sobre quais os recursos existentes para abordar estes conflitos que surgem durante a
após as separações, principalmente quando crianças e jovens são atingidas e ficam
vulneráveis e dependentes das decisões, dos discursos e dos actos dos seus
responsáveis e não nos podemos esquecer aqui do tão falado tempo da criança.

Como sabemos no desenvolvimento da criança é imprescindível a atenção, os cuidados


e a proteção dos adultos e quando estes falham, por negligência das suas necessidades
e interesses, é necessária a intervenção do sistema judicial.

No caso de os sentimentos de abandono, traição, rejeição, assim como a necessidade


de disputa, punição e vingança que não foram elaborados pelos pais durante a ruptura
do laço amoroso, os filhos nesta luta podem ser manipulados nestes conflitos entre os
pais.

Quando um dos pais ou mesmo os dois dificultam ou impedem a convivência dos filhos
com o outro e ou com os familiares, observamos a chamada Alienação parental, aqui
descrita e tão bem exposta pelo Dr. Jaime Roriz.
As crianças são inseridas nos conflitos parentais e expostos aos processos jurídicos.
Esta situação de não convivência com um dos seus progenitores, até ali um dos seus
protectores, pode revelar-se num processo profundamente angustiante em que
aparecem sintomas como por exemplo o baixo rendimento escolar, as inibições, as
crises de agressividade, as dificuldades de relacionamento, a tristeza, as somatizações,
as fobias, a enurese nocturna, os distúrbios de sono etc., todos eles reveladores
daquilo que podemos chamar de um sofrimento causado por um mau trato psíquico.

Há bem pouco tempo ouvimos aqui a Dra. Manuela Porto falar-nos da importância, de
num processo de separação, existir um processo terapêutico ainda antes do judicial
entre as partes envolvidas, que seria talvez uma forma de se conseguir prevenir estas
situações aqui descritas, e que poderiam amenizar o sofrimento psíquico, e apaziguar
os conflitos parentais que atingem os filhos.

No brasil, do que tenho lido, existe um modelo de mediação familiar, que eu entendo
como hibrido, já que o mediador é também um terapeuta (psicanalítico), que quando
trabalha com estas famílias, tenta compreender os conflitos intrapisquicos de origem
infantil que se repetem e são reeditados na vida adulta, e que se revivem nesta
situação, e com alguma delicadeza no acto da mediação dos relacionamentos
conflituosos parentais tem como objectivo retirar a criança do objecto de manipulação
dos pais.

A criança é então vitima de um mau trato psicológico, não só porque temos uma
criança sujeita à manipulação por forma a se aliar a um dos seus pais na destruição do
outro, e como se isso não bastasse, também fica sujeita ao abuso de poder e a uma tal
desorganização emocional dos seus pais que acaba por não perceber quais os
comportamentos sociais aceitáveis e os inaceitáveis, não compreendendo as
interações sociais, sentindo-as todas como perigosas e o outro também como
perigoso, numa lógica de constante desconfiança.

A este propósito, importa ressalvar que não é a ausência e vinculação afectiva que o
alienante mantém com o filho, mas a forma perversa como exerce a parentalidade,
sujeitando a criança a uma série de provas de lealdade, em que para não desiludir o
pai com quem vive é quase obrigada a confirmar a sua pretensão.

Se formos olhar para a criança mais profundamente vemos que não podemos olhar
para o diagnóstico de alienação parental feito apenas com base na criança e nos
sintomas.

Vejamos, a criança não nasce sozinha, não está sozinha, ela é fruto de um desejo entre
o Homem e a mulher, depois chamado parentalidade. Existe uma subjectividade que
depende da ideia que o homem e a mulher funcionam além das suas funções de
procriação. O ser humano é o único entre os animais que não concebe a morte sem
uma sepultura, porque se identifica com algo mais do que a carne, ele é também
detentor de uma história.

Esta condição da historicidade, de linha condutora, existe porque o homem é também


marcado pelo desejo, desejo esse que é inicialmente sustentado pelas figuras
parentais e com a qual a criança se identificará no trilho da sua vida. Esta estrutura
simbólica que ultrapassa o domínio biológico é instaurada pelo desejo da mãe e pela
função paterna.

Stolorow diz-nos que não existe uma psique isolada não existe um ser isolado da
natureza, do meio social, de si mesmo e da sua subjetividade. O sujeito insere-se
nestes contextos ao longo da sua vida e não apenas no inicio.

É a triangulação permite ao sujeito o acesso à sua individualidade, poder dizer “eu


sou”, e que faz dele mais do que um animal e mais humano.

Considerar o estatuto da criança como sujeito implica não fazê-la uma mera vitima,
como se fosse um sujeito passivo, assexuado, um ser puro apenas possível de
corromper pelo social.

Ora a criança enquanto sujeito aparece como responsável tanto pelo seu prazer e
como sendo objecto do outro. Embora na estrutura a posição original da criança é a de
objecto, ela torna-se pessoa, pelo pai que faz um corte no prazer materno e liberta a
criança para o seu desejo.

A criança pequena, é capaz de interpretar os pedidos da mãe, diferenciando-os do seu


querer e apresentar a sua resposta que é única. Assim não pode ser lida como um
reflexo exclusivo das ordens dos seus pais – há sempre uma abertura para o que é
novo. E isto permite compreender porque é que algumas crianças são mais resistentes
à alienação parental do que outras e como podemos entender aquilo que vai ser a
nossa intervenção.

Com isto não quero dizer que se pode responsabilizar de igual modo a criança ao
adulto que aliena, mas apenas que constatamos que há diversos tipos de respostas da
criança ao adulto que provoca a alienação.

Na Alienação parental uma das figuras parentais é apresentada como perigosa,


prejudicial, incapaz e negligente. Porém não se resume a uma alienação em relação a
uma das figuras parentais, as suas consequências são mais amplas do que a exclusão
concreta de um dos pais da vida quotidiana dos filhos.

Há uma procura ligada ao amor, pois a criança sente-se amada enquanto corresponde
ao progenitor alienante e se formos pensar bem isto é próprio da nossa primeira
relação e de algum modo volta a ser reforçado gerando um efeito patológico que
elimina o outro progenitor como representante do Outro.
O progenitor alienante transforma-se no tudo para aquela criança, é o seu único
objecto e a criança deixa de conseguir se voltar para fora, para o outro, e questionar-se
inclusivamente o que o Outro poderá quer dele. Deixa de haver uma resposta ao
investimento do outro.

Deixa de haver desejo de relação e o alienante acaba por impedir a vivência da


separação e a criança, para ser amada, submete-se, tornando o discurso do alienante,
como sendo o seu. O efeito mais complexo disto vemos quando a criança passa a
recusar tudo o que vem do alienado, sejam palavras, gestos, presentes, família, mesmo
que ele não esteja presente.

Lembro-me de um caso que tive na comissão em que a criança depois de ter estado
com o pai na nossa presença, saiu da sala com um sorriso, para a sala de espera onde
estava a mãe, e esta de imediato lhe disse foi para isto que te trouxe aqui, como é que
és capaz de me fazer uma coisa destas? Esta menina fazia uma recusa total da comida
que o pai tinha em casa e não podia brincar com nada que existia em casa do pai,
porque estava tudo enfeitiçado.

Na Alienação parental há um sobre-investimento narcísico na criança pelo alienante.


Para isto ele torna-a como um ser excepcional e único, servindo a criança como um rei,
com total submissão às suas vontades, tornando até a criança num pequeno tirano.

Não é raro observarmos que estas crianças apresentam muitas vezes dificuldades em
reconhecer os limites, o outro semelhante e até mesmo a lei, podendo mesmo a ter
níveis elevados de crueldade (geralmente em relação ao pai que é alienado).

Parece haver um fascínio da criança pelo alienante e o ódio pelo alienado, sintoma
este definido por Gardner (o 1º psiquiatra a descrever a AP) como ausência de
ambivalência.

Se o pai que está a ser alienado tenta quebrar este ciclo de fascínio e de ausência do
Outro, parece que o odia acaba por se reforçar e penso que até conseguimos
compreender a eficácia da campanha de desmoralização e a sustentação deliberada da
criança ao lado do alienante diante do conflito parental.

O alienante aprisiona a criança numa relação dual cujo amor encobre o desejo da
posse. Há muitas vezes um discurso do amor em relação à criança que pode acabar por
confundir os Tribunais principalmente se o outro progenitor demonstrar alguma
fragilidade no seu papel de cuidador.

Mas agora surgem algumas questões que nos fazem pensar como deve ser abordada
esta questão. Se considerarmos a criança como um sujeito como deveremos abordar
as visitas ao progenitor alienado? A recusa da criança pode ser genuína e
representativa do seu desejo?
Talvez aqui o papel do direito e do Juiz seja o de validar o corte da posse do alienante
para que este liberte a criança da necessidade de responder com a recusa ao outro
progenitor.

Nos casos em que a criança não recusa completamente o outro progenitor a


intervenção parece mais fácil e menos arriscada, porque se consegue com maior
probabilidade desfazer a alienação em pouco tempo juntamente com o progenitor
alienado.

Mas nas outras situações? A que responde a criança, que recusa é esta? Há que se
fazer um diagnostico de tudo isto para que a intervenção não provoque mais danos
ainda.

Mais do que a discussão que existe hoje sobre se a alienação é uma síndrome ou não,
ou se pode ser considerada como uma categoria científica, parece-me que poderíamos
pensar como é que os profissionais de saúde mental e obviamente os psicólogos e
terapeutas se devem posicionar nas questões da abordagem ao tratamento.

Hoje falamos de direitos da criança e a criança sendo ela um sujeito de direito e de


como a lei encara a parentalidade como algo mais do que biológico, mas também
cívico. Mas isto levanta muitas questões sobre o modo como vemos a sociedade entrar
para dentro das famílias e o seu papel.

Questões essas que gostaria também de ver aqui discutidas, qual o nosso papel
enquanto terapeutas na relação com o outro, que tipo de pareceres damos aos
tribunais, que perícias fazemos, onde nos colocamos como observadores ou como
interventores?

Parece-me que é urgente pensarmos numa melhor estrutura dos Tribunais para que
lidem com níveis mais amplos da problemática e é inegável a necessidade de
acompanhamento dessas famílias, e talvez mesmo a criação de outras formas de
serviços de saúde e de apoio aos Tribunais.

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