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Aluna do segundo termo do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo.
E-mail: beatriz.estrella@unifesp.br
“On ne naît pas femme, on devient femme” é a revolucionária frase que Simone
de Beavouir2 inicia O segundo sexo (1949), com a tradução original brasileira para
“Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Ela defende que as visões misoginas e
patriarcais que a sociedade atribuiu a natureza feminina ao longo dos séculos concerniu
algo culturalmente estruturado e reproduzido, ou seja, as mulheres não nascem fragéis,
irracionais e submissas, trata-se de um papél aprendido através da socialização onde o
homem limita seu comportamento para se manter dominante. Ela complementa:
“Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário...” (BEAUVOIR, Simone de. 1967 O Segundo Sexo, Volume 2, pg. 9)
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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014, pg 20.
4
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2013, pg 115.
3
A misoginia é o preconceito mais antigo de todos. Esteve presente na Bíblia, no
alcorão, em todos os textos clássicos e sagrados. Como a mitologia grega, a curiosidade
de Pandora foi a causa das desgraças humanas. Em Atena, no berço da democracia, era
impossibilitado qualquer tipo de envolvimento intelectual feminino, excluindo-as
completamente da vida pública e subjugando-as para a vida doméstica, no gineceu. No
livro Política,5Aristóteles afirma que “a relação entre homem e mulher consiste no facto
que, por natureza, um é superior e a outra inferior, um, governante, outra governada”.
Em Gênesis 2,7, 18-23 jeovista “Da costela, que tinha tirado de Adão, formou o
Senhor Deus uma mulher; e a levou a Adão. E Adão disse: eis aqui agora osso de meus
ossos e a carne de minha carne; ela se chamará Virago, porque do varão foi tomada.”
Evidência desde o começo do mundo, que a mulher seria a derivação do homem, seu
complemento. Filósofos medievais como Agostinho e Jerônimo, enxergavam o
aparecimento sequencial dos sexos de forma totalmente hierárquica. Para Margaret
Miles6,” a ‘ordem da criação – o homem primeiro, a mulher em segundo’ – foi
compreendida como refletindo a ordem cósmica e estipulando a ordem social”.
Na Idade Média, o período entre o século X e XV revelou o cristianismo como a
maior fonte de hostilização contra as mulheres, caracterizando-as como nefastas e
diabólicas, permitindo-se realizar uma das maiores atrocidades da humanidade: A
Inquisição, famosa “caça às bruxas”. Uma campanha de tortura totalmente legal e
financiada pela Igreja.
Tanto isso é verdade, que em 1484, a Igreja publicou o livro Malleus
Maleficarum, que se tornou conhecido como Martelo das Bruxas. Nesse
livro, tido como Santo Manual da Inquisição, as mulheres eram apontadas
como fontes carnais de todo o mal. Seguindo as ordens da Igreja, os homens
infligiam, de forma sádica, torturas horrendas a milhões de mulheres, tidas
como bruxas. Nessas (...) perseguições bárbaras a mulheres, a maioria delas
acabou sendo condenada à dor excruciante da morte lenta na fogueira.
(MONTEIRO, 2008,p.27)
5
Aristóteles. Política, I, 5, 1254b 12-13. Doravante Pol.
6
MILES, Margaret. Carnal Knowing, Boston: Beacon Press, 1989,p. 17.
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que toma forma e se torna uma autoridade moral e um privilégio para qualquer
realização, sejam os títulos, as propriedades ou conquistas pessoas.
Cada local houve uma ascensão diferente para o patriarcado surgir, mas é
notório que através da Idade Moderna, com revolução urbana e as atividades de
comércio foram instaladas as classes e hierarquias sociais. Desde Engels (1884) e Max
Weber (1947), permeia este núcleo familiar composto pelo padrão “pai, mãe, filhos”,
onde o capitalismo utilizava as diferenças femininas como estratégia para sua
manutenção e divisão sexual do trabalho, onde eram subordinadas e vistas com
desprestigio. A socióloga e feminista brasileira Heleieth Saffioti definiu o patriarcado
como o sistema que tornou as mulheres "objetos de satisfação sexual dos homens,
reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras." para ela, dois
fatores marcaram as bases de constituição do patriarcado:7
1. A produção de excedente econômico, núcleo do desenvolvimento da
propriedade privada e, portanto, do domínio e da exploração do homem sobre o
homem/mulher, no caso, ainda mais fortemente sobre a mulher.
2. A descoberta da participação dos homens na procriação, já que antes isso
era entendido como um poder divino das mulheres
Já o termo machismo parece ser uma denominação dos antropólogos modernos,
porém entendendo-se tal nominação como “opressão sexista masculina”, se pode pensar
que suas origens remontam à sociedade burguesa gestada após o fim da Idade Média e,
é resultado da decadência da Moral Tradicional 8. Mas uma coisa é clara: O machismo
não nasce com capitalismo, na realidade, tal sistema é forjado sobre o pensamento
machista. E o machismo mata. É a opressão que se opõe a igualdade entre gêneros,
favorecendo apenas o masculino, enxergando a distinção entre homens e mulheres como
uma forma de promover a violência e o ódio. Por se uma crença enraizada na cultura da
sociedade, crianças são ensinadas desde cedo os diferentes papéis que cada um deve
desempenhar, fazendo com que, ao crescerem, ambos os sexos perpetuem essa ideia.
Dessa forma, as mulheres não estão imunes a reproduzir e perpetuar o machsimo.
Com a Revolução Francesa, que pregava ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, o homem burguês foi desestabilizado e contradito. Surge uma preocupação
com uma possível feminilização e um maior culto a masculinidade, que foi a rocha
sobre a qual a sociedade burguesa construiu boa parte de sua auto-imagem, mas a
7
CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. Cortez Editora. 2015 p. 74.
8
QUEIROZ, MJ. El hombre-macho e a hombria: variações em torno do conceito de machismo, 2011
5
imagem idealizada da masculinidade parece igualmente para a evolução da chamada
sexualidade anormal, em grande parte, denominada pela contra-imagem que a fazia
representar9. O iluminismo, como movimento filosófico e cultural que visava a
autonomia e emancipação por meio da razão, favoreceu, no século XVIII, o acesso da
mulher à educação formal e assim as ondas feministas foram ganhando vida.
Posterior a Revolução Industrial e as guerras mundiais, a mulher atingiu o papel
de trabalhadora assalariada, ainda com remunerações muito inferiores ao dos homens.
Ademais, essa conquista não a modificou de seus afazeres domésticos, obrigando-a
conciliar uma dupla jornada. Com o movimento sufragista concedendo maior
visibilidade a voz feminina e clamando o seu direito ao voto, as mulheres se organizam
e se unem por uma mesma causa mostrando ao mundo sua força. Entretanto, em alguns
países a revolução continuava lenta e inalcançável. No Brasil, durante o Período
Colonial, a educação da mulher era feita em casa, e a primeira escola inaugurada em
1863 eram para famílias ricas e misóginas e na constituição de 1824 a mulher sequer era
considerada “cidadã”. Somente no 3º período da Revolução Industrial, com a chegada
de fábricas têxteis no país, a mão-de-obra feminina finalmente teve seu momento de
ação, e o voto universal apenas se tornou realidade no ano de 1932, com a elaboração do
primeiro Código Eleitoral do Brasil.
E assim a mulher se moldou até os dias de hoje, conquistando cada vez mais
espaço e local de fala, buscando igualdade, equidade e sororidade em um mundo
individualista. Mas como saber se elas realmente conseguiram? Como saber se todos os
objetivos foram atingidos?
O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio, segundo o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O assassinato
de mulheres é apenas a ponta do iceberg da toda a violência sofrida cotidianamente, o
machismo, a cultura do estupro, objetificação do corpo feminino em inúmeras
propagandas, onde a mulher está ali como um objeto para agradar e satisfazer o homem.
Desde meninas, somos levadas a acreditar pelos filmes e contos de fadas que uma
mulher só estará verdadeiramente realizada se estiver casada e com filhos. No Oriente
Médio, os muçulmanos ainda mantêm o regime poligâmico; o homem pode ter até
quatro mulheres desde que possua condições econômicas e possa ampará-las e na
África, a masturbação é vista como um pecado em muitas religiões, sendo necessário
9
MOSSE, G. L. (1998) Masculinidade e Decadência IN PORTER, Roy & Teich, Mikulás (orgs.) pg 34.
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mutilar os órgãos genitais da mulher, para ela pode proporcionar prazer somente ao
homem.
Sendo assim, há muito o que lutar. Há muito o que gritar, espernear, até
escutarem. O feminismo é necessário para a liberdade da mulher, não é frescura, não é
“mimimi” e não é o oposto do machismo. O feminismo prega a igualdade de gênero,
defende uma sociedade onde mulheres e homens tenham, de fato, os mesmos direitos.
Defende a capacidade das mulheres decidirem o que fazer com o corpo delas que
pertence somente a elas, defende que as mulheres possam ganhar o mesmo salário que
os homens ao desempenhar a mesma função, e ele desfaz a ideia patriarcal de que
mulheres devem ser rivais entre si.
Em tese, a negação histórica e a falta de reflexão nos impossibilitaram de
evoluir. O governo comandado por homens continua nos cegando, perpetuando falas
machistas e nos impedindo de termos nosso lugar na política. São apenas consequências
de séculos sendo caladas e diminuídas, escondendo a luta feminista e enfrentando
pessoas que foram incapazes de questionar sua forma de pensar. Por fim, Mary Del
Priore, historiadora brasileira, em sua apresentação do livro História das Mulheres no
Brasil.
A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da
criança, do trabalho, da mídia, da leitura. É a história do seu corpo, da sua
sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos
seus amores e dos seus sentimentos.
DEL PRIORE, Mary, História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto/Ed. UNESP, 1997, 678 p.
REFERÊNCIAS
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ARISTÓTELES, Política. Trad. e notas de A. C. Amaral e C. C. Gomes. Edição
bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2016.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2014.
CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. Cortez Editora, 2015.
DEL PRIORE, Mary, História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Ed.
UNESP, 1997.
MILES, Margaret. Carnal Knowing, Female Nakedness and Religious Meaning in the
Christian West, Boston: Beacon Press, 1989.
MOSSE, G. L. Masculinidade e Decadência IN PORTER, Roy & Teich, Mikulás
(orgs.) 1998
MONTEIRO, Christiane Schorr. As conquistas e os paradoxos na trajetória
dasmulheres na luta por reconhecimento. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões, Santo Ângelo, 2008.
QUEIROZ, MJ. El hombre-macho e a hombria: variações em torno do conceito de
machismo, Caligrama: Rev Est Românicos, 2011
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2013