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ISSN 2175-053X Cassira Lourdes de Alcântara; Cerise de Castro Campos

VIOLÊNCIA: RELAÇÕES DE PODER, AÇÕES DE ESTADO E OPINIÃO


PÚBLICA
Cassira Lourdes de Alcântra 1 VIOLÊNCIA E RELAÇÕES DE PODER

Possui graduação em Direito pela Pontifícia A temática da violência ocupa, atualmente,


Universidade Católica de Goiás (2001). Espe- campo de interesse de várias disciplinas, em face
da variedade de vertentes analíticas que a circunda.
cialista em Direitos Humanos (2002) e Docên-
Assim, ao longo dos séculos de história, nos quais
cia Universitária (2003). Mestranda do Progra-
a violência permeia a conduta humana como ins-
ma Interdisciplinar de Mestrado em Direitos trumento multifacetado foi empregado, admitida,
Humanos da Universidade Federal de Goiás – explorada, manipulada, criminalizada, dependendo
Núcleo de Direitos Humanos. Atualmente é pro- dos vieses que se abordam, constituindo elemento
fessora especialista do Centro Universitário de intrínseco ao fato social, presente em qualquer gru-
Goiás, atuando principalmente nos seguintes po humano. Como destaca Chauí (1996, p.336):
temas: Direitos Humanos, Cidadania, Seguran-
ça Pública e Prevenção. Advogada inscrita na (...) Desde a Antiguidade clássica (greco
-romana) até nossos dias, podemos per-
Ordem dos Advogados de Goiás, desde 2005,
ceber que, em seu centro, encontra-se o
atuando nos ramos de direito público e privado. problema da violência e dos meios para
evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes
Cerise de Castro Campos formações sociais e culturais instituíram
conjuntos de valores éticos como padrões
de conduta, de relações intersubjetivas, e
Professora adjunta da Faculdade de Odontolo-
interpessoais, de comportamentos sociais
gia da UFG; professora do Programa de Mes- que pudessem garantir a integridade física
trado Interdisciplinar em Direitos Humanos da e psíquica de seus membros e a conserva-
UFG; mestre em Medicina Tropical IPTSP da ção do grupo social. (CHAUÍ, 1994, p.336).
UFG; Doutora em Ciências da Saúde pela UNB.
Apesar das diversas formas pelas quais se
RESUMO manifesta, é inegável a inter-relação entre violência
e poder, seja na imposição, pela força física de um
O presente trabalho tem a pretensão de discutir a violên- ser humano sobre o outro, seja pelo uso que as au-
cia como elemento das relações de poder. Aborda tam- toridades fazem em nome da manutenção da ordem
bém a violência estrutural e a forma de perceber a vio- e do poder instituído, o que se denomina violência
lência pelo senso comum e pela opinião pública. A partir institucional ou estrutural, cujo conceito se torna
desta percepção, procura relacionar a violência empre- mais complexo ao se considerar a utilização das
gada pelo aparato estatal em nome da manutenção da estruturas do poder como estratégia de dominação.
ordem pública, em resposta à insegurança propagada Nestes moldes, toda relação de poder, através de
pelo imaginário do medo.
seus mecanismos, implica na imposição da presen-
ça do outro, institui-se na medida em que ambos - o
Palavras-chave: Violência. Poder. Dominação. Insti-
dominador e o outro subalterno – são percebidos
tuições e ordem.
mutuamente como sujeitos em uma interação. A re-
ABSTRACT lação de poder há de se exercer sempre com, e en-
tre tais sujeitos cuja presença é indispensável para
This study purports to discuss violence as an element estabelecer-se. O poder, muitas vezes invisível,
of power relations . Also addresses structural violence é claramente percebido em suas consequências.
and how to realize the violence by common sense and Ademais, o poder contém inegavelmen-
public opinion . From this perception , seeks to relate the te uma violência. Como exemplo: na esfera pú-
violence employed by the state apparatus in the name of blica, nas relações de poder entre os sujeitos,
maintaining public order , in response to the uncertainty quando se dá o monopólio dessas relações por
propagated by the imaginary fear .
um dos sujeitos ou um grupo, no qual o outro
acaba perdendo sua identidade, como sujeito e
Keywords: Violence. Power. Domination. Institutions
é subjugado, logo, tais relações se convertem em
and order.
atos de violência, dirigidos para suprimir o outro.
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O psicanalista argentino Berenstein (2001) mostrava a atuação de um poder essencialmente


conceitua a violência considerando as relações repressivo” (1982). Para o autor, poder pressupõe
de poder entre os sujeitos como: “[...] atos que liberdade: não há poder sem liberdade e sem possi-
se realiza entre o sujeito e o outro consistente no bilidade de revoltar-se contra o poder, uma vez que
despojo de seu caráter de alheio e na intenção de poder não pressupõe constrangimento físico.
transformá-lo em semelhante ou idêntico ao eu.
Se associa ao apagamento da subjetividade do O poder é exercido somente sobre sujeitos
outro (...) um desaparecer do eu como distinto”. livres e apenas enquanto são livres. Por isto,
Ainda no que concerne às relações en- nós nos referimos a sujeitos individuais ou
coletivos que são encarados sob um leque
tre poder e violência, cabe destacar o posiciona-
de possibilidades no quais inúmeros modos
mento de Hannah Arendt (1994), para quem o de agir, inúmeras reações e comportamen-
poder e a violência não ocupam o mesmo espa- tos observados podem ser obtidos. Onde
ço de dominação, ou seja, não podem coexis- os fatores determinantes saturam o todo
tir. Logo, a existência de um, depende da au- não há relação de poder; escravidão não é
sência do outro. E Hannah Arendt (1998) traz: uma relação de poder, pois o homem está
acorrentado (Neste caso fala-se de uma
Nem a violência nem o poder são fenôme- relação de constrangimento físico). Conse-
nos naturais, isto é, uma manifestação de quentemente, não há confrontação face a
processo vital; eles pertencem ao âmbito face entre poder e liberdade, que são mutu-
político dos negócios humanos, cuja qua- amente excludentes (a liberdade desapare-
lidade essencialmente humana é garanti- ceria sempre que o poder fosse exercido),
da pela faculdade do homem para agir, a mas uma interação muito mais complicada.
habilidade para começar algo novo. [...]. Nessa relação, a liberdade pode aparecer
Mais uma vez, não sabemos aonde estes como condição para exercício do poder (si-
desenvolvimentos podem nos conduzir, multaneamente sua pré-condição, já que a
mas sabemos, ou deveríamos saber que liberdade precisa existir para o ‘poder’ ser
cada diminuição no poder é um convite à exercido e, também, seu apoio uma vez
violência – quando menos já simplesmen- que sem a possibilidade de resistência, o
te porque aqueles que detêm o poder e o poder seria equivalente à determinação fí-
sentem escapar de suas mãos, sejam eles sica) (FOUCAULT, 1982, p. 221).
os governantes ou os governados, têm
sempre achado difícil resistir à tentação de O autor ainda destaca o papel desempe-
substituí-lo pela violência. (ARENDT, 1994) nhado pela violência de acordo com a sua acepção
de poder. Apesar de não descartar a possibilidade
Aliás, Arendt não associa violência, poder da utilização da violência por parte daqueles que
ou: “O poder é de fato a essência de todo o go- detêm o poder, Foucault (1982) afirma que a vio-
verno, mas não a violência” (1994, p. 40). Assim, lência não está ligada à essência do poder, à sua
contraria o posicionamento anteriormente posto, natureza. O poder atua de forma muito mais sutil,
que entrelaça o poder político com a organização não se exercendo necessariamente através da vio-
dos meios de violência, bem como que a violência lência, pois o poder tem um lado produtivo funda-
é a mais evidente manifestação de poder. Para a mental: “o que faz com que o poder se mantenha e
autora, apesar do poder e da violência não ocupar que seja aceito é simplesmente que ele não pesa
o mesmo espaço, não se pode ignorar que a estru- só como a força que diz não, mas que de fato ele
tura do Estado ou as instituições que integram a so- permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma sa-
ciedade, freqüentemente, querem dominar. Quan- ber, produz discurso” (Foucault, 1982, p. 8). Assim,
do se valem de mecanismos de coerção, inclusive o exercício do poder deve ser compreendido como
de um determinado discurso, exercem um tipo de uma maneira pela quais certas ações podem estru-
poder, ilegítimo de certa maneira, que acaba acar- turar o campo de outras possíveis ações.
retando o aumento das demandas sociais e, devido
à falta de políticas públicas direcionadas, é possível Em si mesmo o poder não é violência nem
concluir que o poder também pode ser empregado consentimento o que, implicitamente, é re-
para a manifestação de atos de violência. novável. Ele é uma estrutura de ações: ele
Foucault, por sua vez, distinguindo-se de induz, incita, seduz, facilita ou dificulta; ao
Arendt, analisa de forma peculiar as relações entre extremo, ele constrange ou, entretanto, é
poder e violência, abarcando uma concepção mais sempre um modo de agir ou ser capaz de
ações. Um conjunto de ações sobre outras
positiva do poder: “Já repeti cem vezes que a histó-
ações (FOUCAULT, 1982, p. 220).
ria dos últimos séculos da sociedade ocidental não
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Dessa forma, a dinâmica do poder é ex- coletivos, nem um poder administrativo ca-
plicada por meio da prerrogativa de que é exerci- paz de tomar decisões obrigatórias coleti-
do através de estratégias e que seus efeitos são vamente; ele é, ao invés disso, uma força
atribuídos a artifícios táticos e técnicos próprios. E autorizadora que se manifesta na criação
do direito legítimo e na fundação de institui-
acrescenta:
ções (HABERMAS, 1997, p. 197).
Quer isto dizer que se deve procurar o ca-
ráter próprio para as relações de poder na Na consolidação do Estado de Direito, a
violência, que deve ter sido sua forma primi- característica mais marcantemente introduzida foi
tiva, seu segredo permanente e seu último sem dúvida, o princípio da legalidade, pois, pratica-
recurso, que em sua análise final, aparece mente toda a estrutura normativa e institucional do
como sua natureza real quando ela é força- Estado de Direito se moldou tendo por base esse
da a tirar sua máscara e mostrar-se como princípio. Esta característica do regime, a previsão
realmente é? De fato, o que define uma re escrita das regras, de modo que essa autoridade
lação de poder é que ela é um modo de agir somente pudesse agir através de meios autoriza-
que não atua direta e imediatamente sobre
dos pela ordem jurídica vigente.
os outros. Ao invés, ele atua sobre suas
Mesmo sob a égide da legalidade que per-
ações: uma ação sobre outra ação, sobre
ações existentes ou sobre aquelas que po- meia a organização do Estado, a complexidade do
dem surgir no presente e no futuro. Uma conceito de violência estrutural se aflora quando as
relação de violência age sobre um corpo ou instituições públicas passam a servir ao poder eco-
sobre coisas; ela força, dobra, destrói ou fe- nômico, refletindo interesses da classe dominante,
cha a porta a todas as possibilidades. O seu tal como acontece no Brasil, por exemplo. Logo, a
pólo oposto pode ser apenas a passividade violência estrutural precisa ser compreendida no
e, ao se deparar com qualquer resistência, âmbito do contexto social e cultural para que se
sua única opção é tentar minimizá-la. Por possam elucidar os mecanismos pelos quais o Es-
outro lado, uma relação de poder somente
tado, em seus diferentes níveis e poderes, apesar
pode ser articulada com base em dois ele-
das irrisórias políticas de inclusão, cerceia o acesso
mentos que são indispensáveis tratando-se
realmente de uma relação de poder: que o da grande maioria da população aos direitos bási-
‘outro’ (aquele sobre quem o poder vai ser cos que lhe proporcionariam uma vida digna, ge-
exercido) seja plena mente reconhecido e rando dessa forma um grave quadro de exclusão
mantido até o fim como uma pessoa que social. Como enuncia Bruno (2003):
age; e que, em face de uma relação de po-
der, todo um campo de respostas, reações, Essa situação propicia todas as caracterís-
resultados, e possíveis invenções sejam ticas de uma prática de violência estrutural:
abertos. (FOUCAULT, 1982). não é natural, mas sim histórica e social-
mente produzida; possui raízes profundas
Portanto, sob a perspectiva de poder fou- nas relações de poder; apresenta resquí-
caultiana, o Estado não detém em si a faculdade cios de autoritarismo social; é política e
de ser o organizador ou gerador das relações de geograficamente demarcada; tem objetivos
poder. A dominação, com suas várias perspectivas determinados; define propositadamente
seus destinatários; afeta principalmen-
e relações de poder é anterior ao Estado, enquanto
te cidadãos com reduzida capacidade de
organização política. Entretanto, é a partir da con- defesa; alimenta a ostentação de poucos
solidação do Estado político e as complexidades com o sofrimento de muitos; amplia as dis-
de suas funções, que ocorre uma apropriação do paridades sociais; cerceia oportunidades e
poder pelo aparelho do Estado. legítimos projetos de vida; inibe a escolha
racional, favorecendo a escolha constrangi-
2 A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E A MANUTEN- da: mendicância, tráfico, delinquência, por
ÇÃO DA ORDEM PÚBLICA exemplo; fomenta preconceitos e causa da-
nos morais, psicológicos, físicos e a morte.
O Estado enquanto ordem constituída, po- (BRUNO, 2003)
lítica e juridicamente, que se denomina Estado de
Direito, oriundo desta inter-relação entre política, A violência estrutural é na verdade a matriz
poder e lei. Essa estreita vinculação fica evidente das demais formas de sua manifestação e, justa-
quando se afirma que o poder político. mente por ser exercida nas ações diárias de insti-
Não é um potencial para a imposição de tuições consagradas por sua tradição e poder, na
interesses próprios ou a realização de fins maioria das vezes não é contestada. Sua percep-
ção não é clara, vez que o senso comum nem che-
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ga a compreendê-la como uma forma de violência, o conceito “material” de Ordem pública até
mas sim como pura e simples incompetência de fazer incluir nele a execução normal das
governantes e responsáveis. funções públicas ou o normal funcionamen-
Em situações específicas e estratégicas, to das instituições como a propriedade, de
importância publicitária (ordem legal cons-
estipuladas por aqueles que representam o poder,
tituída). (...) cada ordenamento dará uma
certos interesses das classes exploradas são apa-
disciplina própria (ampla ou restrita) das hi-
ziguados, ou mesmo em parte satisfeitos, com o póteses de intervenção normativa e de ad-
intuito o de levá-las a acreditar que estão atingindo ministração direta tendentes a salvaguardar
seus direitos e de arrefecer seus ânimos exaltados. a Ordem pública. É importante sob o perfil
Assim tem-se a manutenção da alienação dos indi- das possíveis repercussões consequentes
víduos em face da violência a que são submetidos sobre a esfera jurídica dos vários sujeitos de
dia após dia. A ausência de conscientização leva um ordenamento (BOBBIO, 1998, p. 851).
os sujeitos sociais a sofrerem os efeitos dessa vio-
lência estrutural (pobreza, miséria, desigualdades, No que tange à ordem pública constitucio-
preconceitos, p. ex.), constituindo a gênese da ex- nal, Bobbio (1998, p. 851-2) tendo como bases os
clusão e da desigualdade socioeconômica. direitos de liberdade, resguardados numa Carta en-
Um dos instrumentos componentes do Es- quanto;
tado é a manutenção da ordem pública, intimamen-
te ligada ao princípio da legalidade, fundamental ao (...) limite ao exercício de direitos e assu-
conceito de ordem, por meio da mais visível mani- me particular importância quando referida
festação do poder institucional: o aparelho policial, aos direitos de liberdade assegurados pela
constituição: neste caso se indica que não é
sobretudo as polícias ostensivas.
possível questionar um limite de caráter ge-
Apenas como tentativa de conceituação ral ligado à chamada Ordem pública cons-
preliminar, ordem pública constitui: titucional— que parece fazerem coincidir
com o conjunto dos princípios fundamen-
O complexo das instituições, dispositivos tais de um ordenamento — porquanto dos
e regras que visam a manter o bom fun- princípios gerais não se poderiam originar
cionamento do serviço público, a segu- limites situados além dos já previstos no
rança e a moralidade nas relações entre âmbito da disciplina constitucional de cada
indivíduos e instituições, em princípio não um aos direitos. (BOBBIO, 1998, p. 851)
substituíveis por acordos ou convenções.¹
Logo, a concepção de ordem pública é pas-
De forma mais sistematizada, Bobbio (1998) sível de apropriações indevidas, conforme o mode-
propõe outra definição para ordem pública, englo- lo de Estado a que se refere, ou seja, é um concei-
bando dois aspectos distintos relevantes: a ordem to variável que perpassa entre regimes ditatoriais
pública material e a ordem pública constitucional. e democráticos e que, em termos práticos, pode
Em primeiro plano, a ordem pública material, toma- ampliar as garantias ou restringi-las, a depender do
da a partir das circunstâncias fáticas tendo como jogo ideológico em questão.
finalidade do ordenamento político e de Estado, es- O sistema econômico-político, que sempre
tipulada, assim, nas disciplinas de direito público e produziu meios de conservação da ordem pública
de organização estatal, e da contenção da violência, reduz o fenômeno da
violência a uma forma sutil, por vezes, até imper-
(...) como sinônimo de convivência orde- ceptível, ou do exclusivamente individual, fazendo
nada, segura, pacífica e equilibrada, isto é,
-o crescer cada vez mais. Ao sujeito, a violência so-
normal e conveniente aos princípios gerais
frida é imperceptível, vez que para a maioria deles,
de ordem desejados pelas opções de base
que disciplinam a dinâmica de um ordena- excluídos e subjugados pela lógica da dominação,
mento. (...) constitui objeto de regulamenta- a situação apenas se perpetua, pois vivem como
ção pública para fins de tutela preventiva, viviam seus pais, seus avós, seus antepassados
contextual e sucessiva ou repressiva, en- colonizados.
quanto que a jurisprudência tende a ampliar Cabe, ainda, uma pequena observação ao
conceito introduzido por Bourdieu (2001) de vio-
lência simbólica, que se traduz como um tipo de
________________ violência que é exercida em parte com o consen-
¹AULETE, Caldas. Dicionário digital contemporâneo da Língua Portu-
timento de quem a sofre, na qual as relações de
guesa. dominação não pressupõem necessariamente a

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violência física entre as pessoas e entre os grupos que se possui sem o haver procurado ou
presentes no mundo social. É gerada pela ação das estudado, sem a aplicação de um método
forças sociais e pela estrutura das normas internas e sem haver refletido sobre algo (...). O
do campo do mundo social em que os indivíduos se conhecimento popular caracteriza-se por
ser predominantemente: superficial, isto é,
inserem e que de certa maneira acabam se inserin-
conforma-se com a aparência, com aquilo
do, adequando. Tais estruturas são capazes de im- que se pode comprovar simplesmente es-
por realidades, de formar consenso acerca do sen- tando junto das coisas: expressa-se por
tido do mundo social, de excluir e incluir indivíduos, frases como “porque o vi”, “porque o senti”,
de determinar as noções de certo e errado. Essa “porque o disseram”, “porque toda a gente
noção de mundo é reproduzida incansavelmente o diz”; sensitivo, ou seja, referente a vivên-
através de um processo de induzir nos indivíduos cias, estados de ânimo e emoções da vida
determinadas ideologias e valores. diária; subjetivo, pois é o próprio sujeito que
organiza as suas experiências e conheci-
É enquanto instrumentos estruturados e mentos, tanto os que adquire por vivência
estruturantes de comunicação e de conhe- própria quanto os “por ouvir dizer”; assiste-
cimento que os sistemas simbólicos cum- mático, pois esta “organização das expe-
prem sua função política de instrumentos riências não visa uma sistematização das
de imposição ou de legitimação da domi- ideias, nem na forma de adquiri-las nem na
nação sobre outra (violência simbólica). tentativa de validá-las; acrítico, pois, verda-
(BOURDIEU, 2001) deiros ou não, a pretensão de que esses
conhecimentos o sejam não se manifesta
O cerne da violência simbólica estaria pre- sempre de uma forma crítica. (LAKATOS,
1986).
sente nos símbolos e signos culturais, especial-
mente no reconhecimento tácito da autoridade
Esclarecido o que seria senso comum, ca-
exercida por certas pessoas e grupos de pessoas.
lha esclarecer a confusão conceitual no que con-
Deste modo, a violência simbólica nem é percebida
cerne à opinião pública e o senso comum. Longe
como violência, vez que já foi assimilada e naturali-
de se aportar nas experiências ou nas generali-
zada, mas sim como uma espécie de interdição de-
zações próprias do senso comum, opinião pública
senvolvida com base em um respeito que se exerce
não se traduz na opinião da maioria, nem mesmo
de um para outro.
tem por base o conhecimento popular. Trata-se de
um construto muito mais complexo. Em artigo publi-
3 O SENSO COMUM E A PERCEPÇÃO DA VIO-
cado recentemente, Bourdieu (2012), traz
LÊNCIA PELA OPINIÃO PÚBLICA
É tacitamente a opinião de todos, da maio-
Por senso comum pode-se inferir o acúmulo ria ou daqueles que contam, daqueles que
de experiências que foram transmitidas ou adquiri- são dignos de ter uma opinião. Penso que
das na relação direta com o mundo, que se mani- a definição explícita, numa sociedade que
festa em comportamentos e vivências cotidianas. A se pretende democrática, ou seja, de que a
repetição dessas experiências acaba conferindo ao opinião oficial é a opinião de todos, escon-
senso comum credibilidade e confiança, que con- da uma definição latente, ou seja, que a opi-
duzem à generalização dos casos particulares em nião pública é a opinião daqueles que são
dignos de ter uma opinião. Há uma espécie
princípios e regras de atuação e julgamento. Laka-
de definição censuária da opinião pública
tos (1986) caracteriza com propriedade o senso co- como opinião iluminada, opinião digna des-
mum, que designou de conhecimento popular: se nome. (...) Quando se fala de opinião pú-
blica, joga-se sempre um duplo jogo entre a
O conhecimento vulgar ou popular, às ve- definição confessável (a opinião de todos)
zes denominado senso comum, não se dis- e a opinião autorizada e eficiente que se
tingue do conhecimento científico nem pela obtém como subconjunto restrito da opinião
veracidade nem pela natureza do objeto pública democraticamente definida: “É a
conhecido: o que os diferencia é a forma, opinião, a propósito de qualquer argumen-
o modo ou o método e os instrumentos do to de que se fale expressa pelas pessoas
“conhecer”. (...) Pode-se dizer que o co- mais informadas, mais inteligentes e mais
nhecimento vulgar ou popular, latu sensu, morais da comunidade. Ela é gradualmente
é o modo comum, corrente e espontâneo difundida e adotada por todas as pessoas
de conhecer, que se adquire no trato dire- dotadas de certa instrução e de um sentir
to com as coisas e os seres humanos: é o adequado a um Estado civilizado”. A verda
saber que preenche a nossa vida diária e de dos dominantes se torna aquela de to-
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dos. (BOURDIEU, 2012) tificando” atitudes como a legalização do porte de


armas, a criação de empresas de segurança e o
Com isso, a opinião pública se traduz numa apoio à privatização da polícia, uma verdadeira “in-
forma de discurso de autoridade. Tal discurso pode dústria da segurança”, que, por sua vez, fornece
ser construído por meio de especialistas, figuras mais proteção simbólica que real. Por fim, legitima
públicas das mais variadas, que, devido sua diver- discursos oficiais das autoridades de representa-
sidade, produzem um discurso de consenso, traja- ção mais diversa sobre o aumento da violência e
do de legitimidade. Legitimidade esta, que longe do da criminalidade, como resultado de uma socieda-
alcance da dúvida, ainda é reforçada por pesquisas de decadente em valores morais.
populares de opinião, tentando dar ares de objetivi- Paradoxalmente, nasce outro imaginário: o
dade à opinião subjetiva. Muitas delas são tão inó- da ordem, que se justifica numa dominação insti-
cuas, que o entrevistado sequer tem conhecimento tucional, uma gradativa redução dos espaços so-
acerca do tema pesquisado e se vale da opinião ciais, um enclausuramento paulatino e voluntário
pública ao formular sua resposta, fechando o ciclo das potenciais “vítimas”, cujos resultados podem
vicioso do consenso. Afinal, não seria a opinião pú- servir como combustível para o crescimento e a
blica a opinião de todos? continuidade do individualismo característico das
Daí é possível analisar a percepção da vio- sociedades modernas ou para a tribalização, para
lência pela opinião pública, que se traduz na verda- a organização de pequenos e fechados grupos.
de na opinião construída e difundida, naturalizada e O monopólio da força física pela organiza-
aceita, funcionando, para muitos como um “guia” de ção política e pelos poderes instituídos, que, sob
entendimento da realidade, legitimando, portanto, o a aparência de neutralidade, exercem, legalmente,
discurso das autoridades, fazendo-os prescindir de uma violência abstrata: concentrando tudo o que é
avaliação. Cabe aqui destacar as considerações de de ordem policial, na tentativa de estabelecer uma
Pastana (2007, p. 93): normalidade asséptica, anulando a impulsividade e
a agressão, consolida e “legitima” o emprego des-
Em outras palavras é através da opinião pú- sa violência.
blica que a dominação política pode desviar No estudo das sociedades modernas, o
a atenção popular de seus reais problemas.
antropólogo francês Balandier (1997) pontua que
Aí está uma grande armadilha democrática.
(...) Entendemos como opinião pública o
a violência é elemento sempre presente, a postos
pensamento determinante de um ou mais e sob controle: do homicídio aos confrontos civis
grupos sobre uma questão específica, e internos e à guerra; da violência simbólica da edu-
sua importância está no fato de ser funda- cação formadora, à oculta, sutil, ou aberta, mesmo
mental na difusão dos valores culturais e, que não contida inteiramente. “Ela é domesticada,
Consequentemente, das normas de condu- tratada ritualmente, como forma de prevenir-se
ta. Mostra-se assim de suma importância contra a sua subversão ou perturbação” (BALAN-
tal opinião na sua interação com as insti- DIER, 1997 p. 208). Considera ainda que nestas
tuições de controle social (como o Poder sociedades, ao lado da manutenção da violência já
Judiciário, por exemplo), em relação aos
conhecida, nascem novas manifestações, ligadas
anseios sociais. No entanto, essa opinião
está inserida no próprio pensamento hege-
às inconstantes e inéditas condições sociais e cul-
mônico que reproduz uma ideologia auto- turais.
ritária, pautada na disseminação do medo Assim, a violência é amplificada, tornando-
do crime e no recrudescimento do controle se mais visível e presente. Entretanto, nas socie-
social, principalmente do controle penal. dades modernas, o monopólio e a racionalização
(PASTANA, 2007) da violência conduzem, por um lado, ao imaginário
(do medo) de que nada é capaz de reprimi-la, fren-
4 VIOLÊNCIA, O IMAGINÁRIO DO MEDO E AS te ao aumento da criminalidade e da insegurança
AÇÕES DO ESTADO urbana, e, por outro, a internalização das normas,
que refletem as ações repressivas do aparato es-
A opinião pública contribui ainda na cons- tatal. Com isso, impede-se a exteriorização dos
trução do imaginário do medo, que permite ao Es- conflitos internos da sociedade, promovendo a ho-
tado medidas cada vez mais autoritárias, leis cada mogeneização do corpo social, como assevera Ma-
vez mais punitivas, aclamadas e apoiadas por de- ffesoli (1987) “(...) o que é a luta de todos contra os
mandas sociais de proteções reais e imaginárias, outros tende a se fragmentar em luta de cada um
principalmente de alguns setores da sociedade, contra todos, numa pequena guerrilha fundada
em especial, a classe média. Ademais acaba “jus- na atomização que faz com que a violência se
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dilua em agressividade mesquinha e cotidiana” com quem mantém estreita sintonia, ganha respal-
(1987, p. 19). do na opinião pública e nas instituições, como por
Sob influência weberiana, o autor apresenta exemplo, as polícias. Todavia, de acordo com Aren-
o fenômeno da violência como ingrediente social, dt, para quem “a violência pode ser justificável, mas
forma de luta pela vida ou confronto entre vontade e nunca será legítima” (ARENDT, 1994, p. 41), é im-
necessidade, transmutando-se num encadeamento possível se sustentar no poder quando alicerçado
de defesa de valores, surgindo nas “maneiras pa- na violência.
cíficas, como a diplomacia, a negociação, a regu- Por fim, admitindo ou não sua legitimidade,
lação, etc., ou ainda sob a forma de concorrência é inegável a inter-relação poder e violência, quer no
nos seus aspectos comerciais, culturais, científicos; campo da coação física ou moral, quer nas constru-
não são menos verdadeiros que ela sempre remete ções implícitas que incidem nas estruturas formais
à ‘seleção’ que opõe os indivíduos ou grupos entre de dominação. E que também os constituintes des-
si.” (MAFFESOLI, 1987). Considera, ainda que o sa relação – ordem, instituições, opinião pública,
monopólio e a conseguinte racionalização da vio- sujeitos - se entrelaçam e se combinam de acordo
lência a interioriza tornando-a tirânica e anônima. com a estratégia pretendida, mas remetem sempre
Do ponto de vista do poder, da lógica da do- a intermitente ligação aqui discutida.
minação, a violência assume de acordo com Maf-
fesoli (1987) três vertentes distintas: a totalitária, a
anômica e a banal. A segunda delas – a anômica REFERÊNCIAS
- reflete a resposta à violência e à imposição dos
poderes instituídos, no intuito de proteger a so-
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução
ciedade. O autor ainda acrescenta que a ten-
de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
são entre poder e violência é latente e permanente,
1994.
ou seja, o grupo se submete ao poder institucional
In:______. A condição humana. Rio de Janeiro:
pela impossibilidade de confronto, pela suposta or-
Forense Universitária, 1997.
dem mantida, mas que nos episódios de eferves-
cência o confronto eclode (revoluções, guerrilhas)
BERENSTEIN, Isidoro. El Sujeto Y El Outro De
rompendo o equilíbrio da relação poder-violência.
la ausência a la presencia. Buenos Aires: Paidós

Psicologia Profunda, 2001.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
________. Devenir outro com outro(s): ajenida-
A respeito da discussão travada entre vio-
de, presencia, interferência. Buenos Aires: Paidós
lência e poder, pode-se concluir que as estruturas
Psicologia Profunda, 2006.
de dominação, traçadas e empregadas ao longo
dos tempos, guardam estreita relação com a violên-
BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do
cia, explícita ou embutida nas estruturas, abarcada
movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
e aplicada por quem detém o poder, como forma de
legitimar as desigualdades e a exclusão.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUI-
A dominação somente se perfaz a partir do
NO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília:
momento em que o sujeito dominado, que muitas
Editora UnB, 1998.
vezes sequer percebe sua própria subjugação, en-
volvido numa gama de justificativas que explicariam
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio
sua situação de inferioridade, se submete, não so-
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
mente por sua vontade, à autoridade daquele que
domina.
________. “Sur l’Etat. Cours au Collège de Fran-
Nesse contexto, se insere as concepções
ce 1989-1992”. Raisons d’Agir-Seuil, Paris, 2012.
de ordem pública, como forma de resguardar o po-
der instituído, o qual, por várias vezes se vale da
BRUNO, L. D. Políticas Públicas. In: Alysson Car-
violência, implícita no tal exercício de manutenção
valho et.al. Organizadores. Ed. UFMG; PROEX,
da ordem, acaba por “legitimar” o emprego da força
Belo Horizonte: 2003.
para assegurar que as estruturas de poder se man-
tenham travestidas da concepção de necessidade
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo:
em nome da paz social.
Ática,1994.
Logo, o esforço de tornar legítima a violên-
cia empregada como forma garantidora do poder,
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