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Revista do Núcleo

de Estudos
Afro-Asiáticos
da UEl
Expediente sumário
Universidade Estadual de Londrina Editor executivo
Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) Carlos Alexandre Guimarães
Reitora
Nádina Aparecida Moreno Secretaria Editorial
Flávio Carrança
Vice-reitora
Berenice Quinzani Jordão Capa, projeto gráfico e diagramação
Naima Almeida e Natália Tudrey
6 EDUCAÇÃO, CORPORALIDADE E
Coordenadora do NEAA RACISMOS CONTEMPORÂNEOS
Rosane da Silva Borges Revisão Editorial Rosane da Silva Borges
Flávio Carrança

Coordenações de área do NEAA

Educação e Ações Afirmativas


Nguzu – Ano 1, n. 1, março/julho de 2011
Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA)
Dossiê Temático
Maria Gisele de Alencar da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Rodovia Celso Garcia Cid | Pr 445 Km 380 | Campus 10 O CORPO NEGRO: SENTIDOS E SIGNIFICADOS
Arte e Cultura Universitário Isildinha Baptista Nogueira
Marcia Dermindo Cx. Postal 6001 | CEP 86051-980 | Londrina – PR
Fone: (43) 3371-4000 | Fax: (43)3328-4440 14 PERSONAGENS EM POSIÇÕES HIPOTÉTICAS: CONSUMO,
Comunicação Email: neaa@uel.br CORPO E SUBJETIVAÇÃO NA CULTURA DAS MÍDIAS
Silvia de Castro Laura Guimarães Corrêa

Pesquisa e Documentação Conselho Editorial 22 RACISMO E BIOPODER: UM CASO NO RIO DE JANEIRO


Carlos Alexandre Guimarães e Rosane da Silva Borges 1. Alex Ratts (UFG) CONTEMPORÂNEO
2. Álvaro Roberto Pires (UFMA) Renato Noguera e Carla Cristina Campos da Silva
Articulação Comunitária 3. Amauri Mendes Pereira
Manoela Fernanda Silva Matos 4. Ari Lima (Uneb) 28 CORPOS NEGROS EDUCADOS: NOTAS ACERCA
5. Carlos Benedito Rodrigues da Silva (UFMA) DO MOVIMENTO NEGRO DE BASE ACADÊMICA
Relações Internacionais 6. Maria Aparecida Moura (UFMG) Alex Ratts
Dejair Dionísio 7. Denise Botelho (UFRPE)
8. Edna Rolland 40 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL: PRETINHO (A)
Secretaria 9. Edson Lopes Cardoso (SEPPIR) EU? DISCUTINDO O PERTENCIMENTO ÉTNICO
Cibele Candeo Leite 10. Elena Andrei (UEL) Ralime Nunes Raim
Dirce Meneguelli de Sá 11. Flavia Matheus Rios (USP)
12. Heloísa Pires 50 REFLEXÕES SOBRE NOSSAS CONSTRUÇÕES INTELECTUAIS
Assistente de Educação e Documentação 13. Joselina da Silva (UFC) E POLÍTICAS ACERCA DE “RAÇA”
Vaudice Donizete Rodrigues 14. Kabengele Munanga (USP/SP) João Batista de Jesus Felix
15. Kia Lilly Caldwell (Univ. North Carolina at Chapel Hill)
Estagiária de biblioteconomia 16. Leda Martins
Elza Ribeiro Bueno 17. Ligia Ferreira (Unifesp)
18. Lucia Helena Oliveira (UEL)
19. Marcelo Paixão (UFRJ)
Propostas Pedagógicas
Comitê Editorial 20. Maria Nilza da Silva (UEL)
21. Matheus Gato de Jesus (USP) 62 POR QUE ENSINAR A HISTÓRIA DO NEGRO NA ESCOLA
Coordenação 22. Nei Lopes BRASILEIRA?
Carlos Alexandre Guimarães 23. Nelson Inocêncio (UnB) Kabenguele Munanga
Rosane da Silva Borges 24. Nilma Lino Gomes (UFMG)
25. Roberto Borges (CEFER-RJ) 68 O ensino de sociologia e a lei 10.639/03:
Editora científica 26. Sueli Carneiro (Geledés/SP) cultura afro-brasileira no livro didático
Rosane da Silva Borges 27. Wilson Mattos (Uneb) Crisângela Biassi de Almeida
76 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
EM SALA DE AULA: UMA POSSIBILIDADE?
Claudia Vanessa Bergamini

85 A ENUNCIAÇÃO DO POSSÍVEL: AS COTAS RACIAIS E A LEI


10.639/03 TRANSFORMANDO A REALIDADE DA POPULAÇÃO
NEGRA EM LONDRINA
Márcia Figueiredo Tokita e Maria Gisele de Alencar

Negras Reflexões

94 DO DIREITO À PALAVRA AO PODER DE ENUNCIAÇÃO


DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL
Jacques D’Adesky

106 RAÇA E GÊNERO: ENTRELACES RACISTAS VERSUS


AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA NEGRA
Maria Anória de Jesus Oliveira

116 A REDENÇÃO DO OLHAR: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA


Nelson Inocêncio

Entrevista

126 ANHAMONA DE BRITO

Poesia

132 DEUSA DO RIO IEWÁ


Ricardo Nonato Almeida de Abreu Silva
Educação, plosivo e, o que é pior ainda, a vitimização entre jovens
negros tem índices muito altos, beirando um cenário de
De um modo ou de outro, podemos entrever essas
reflexões nos textos de Isildinha Baptista, psicanalista e
“extermínio”. Após uma década (1998-2008), continua doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo;

Corporalidade praticamente inalterada a marca histórica de 92% da


masculinidade nas vítimas de homicídio.
de Laura Guimarães Correa, professora adjunta do cur-
so de Comunicação Social da Universidade Federal de
Em seu número de estreia, a revista Nguzu toma, Minas Gerais; do professor de filosofia e educação da
e Racismos Rosane da Silva
desse modo, o corpo como um vasto território mar-
cador de sentidos e significados. Convertendo-se em
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
Renato Nogueira, e da mestranda Carla Cristina da Sil-
Borges uma das primeiras fronteiras de violação do humano, é va, também da UFFRJ; do professor doutor Alex Ratts,
Contemporâneos Professora Doutora, coordenadora do Nú-
pelo corpo que se circunscreve as (im)possibilidades do
ser, é por ele que se classifica e se categoriza as pessoas.
da Universidade Federal de Goiânia; da socióloga e co-
ordenadora do Programa Diversidade Étnico-Racial na
cleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) e
coordenadora editorial da revista Nguzu. Com as informações emitidas pelo corpo, esculpimos Educação de Montes Claros/MG, Ralime Nunes Raim;
o outro, traço por traço. Muniz Sodré já nos advertira: e do professor doutor João Batista de Jesus Félix, da
Universidade Federal do Tocantins (UFT).
A estética negativa do estrangeiro lastreia sempre os Além do dossiê temático, a Nguzu apresenta na
julgamentos na prática do Gesichtskontrolle (contro- seção “Propostas Pedagógicas” os textos do professor
le de rostos), ou seja, a decisão cotidiana sobre quem doutor Kabengele Munanga, do Departamento de
pode entrar em clubes, boates, restaurantes de luxo ou Antropologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciên­
mesmo ser aceito para seguros de automóveis. O nome cias Humanas da USP; da pós graduanda em Letras
da prática é alemão, mas sua incidência é transnacional da UEL, Cláudia Vanessa Bergamini; das pesquisado-
(1999, p. 33). ras graduadas pela UEL, Marcia Figueiredo Tokita e
Maria Gisele de Alencar; e da socióloga pós-graduada
Em tempos de narrativas hipermidiáticas, onde os múltiplas faces da discriminação racial vêm denun- Como reposicionar o debate em meio às emergen- pela UEL, Crisângela de Almeida. No tópico “Negras
textos encontram abrigo preferencialmente no espaço ciando sistematicamente, pelo menos desde a década tes reflexões que apontam para a superação do corpo reflexões” contamos com os artigos do professor dou-
virtual, a revista Nguzu é também manufaturada no su- de 1970, a incidência majoritária de assassinatos nessa e ascensão do pós-humano? De que maneira reinserir tor Jacques d’Adesky, pesquisador do Centro de Estu-
porte impresso. Com o tema Educação, Corporalidade faixa etária. O mencionado quadro, como sabido, não a gramática corporal como um vetor importante para dos das Américas da Universidade Cândido Mendes
e Racismos Contemporâneos, Nguzu, uma publicação constitui nenhuma novidade. O que causa espécie é pensarmos na sustentação do racismo? e professor da UNESA; da professora doutora Maria
do NEAA (Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos), órgão que essas estatísticas convivem, paradoxalmente, com Uma pequena mostra de artigos referentes ao tema Anória de Jesus, da Universidade do Estado da Bahia
da Universidade Estadual de Londrina (UEL), institui- argumentos enviesados que, com verniz de seriedade, demonstra nesta publicação a diversidade de aborda- (UNEB) e do professor Nelson Inocêncio, docente do
-se como um espaço demarcado para dar visibilidade afirmam solenemente ser o Brasil um país isento de gens da corporalidade e dos racismos contemporâneos, Departamento de Artes Visuais vinculado ao Instituto
às reflexões e pesquisas ancoradas no campo das rela- práticas racistas. Tais afirmações, mesmo resultando em vistos em conjugação, sob uma perspectiva educativa, de Artes da Universidade de Brasília – UnB e coordena-
ções raciais no Brasil e em outros países da diáspora. triste eloquência, ainda são sustentadas por frações da crítica e analítica. Os artigos aqui reunidos sobre o tema dor do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB. Na
Colhemos da língua banto o nome da publicação, que intelligentsia brasileira, agremiações políticas, forma- buscam problematizar e aprofundar questões teóricas, seção “Interlocuções”, a nossa convidada é a doutora
significa energia. dores de opinião pública e apresentam-se como uma tornam públicos os resultados de investigações empí- Anhamona Silva de Brito, secretaria de Ações Afirma-
A escolha desse dossiê temático foi motivada por reação conservadora à adoção de políticas públicas que ricas e estabelecem diálogos com outras áreas de co- tivas da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
episódios contemporâneos que revelam a pertinácia tomam a discriminação racial como nexo prioritário nhecimento capazes de contribuir para a compreensão da Igualdade Racial (SEPPIR). E na seção “Literartes”,
do racismo em sua ação implacável de abater corpos para a superação das assimetrias no Brasil. Enfileiram- das singularidades do racismo na contemporaneidade. apresentamos a poesia do escritor Raimundo Nonato,
negros, fundamentada em uma leitura racial, portanto -se argumentos propugnando uma práxis política que Muito se tem insistido de que o corpo e, por- da Universidade Estadual da Bahia.
educativa, do que esses corpos significam e represen- se desvencilhe de qualquer recorte racial. tanto, a noção de sujeito e subjetividade derivada do Como qualquer iniciante, Nguzu espera manter
tam (os assassinatos do dentista negro em São Paulo Sem nos estendermos sobre essa contenda, o que cartesianismo estão, sob a chave da pós-modernidade energias, por definição, próprias de sua concepção edi-
quando retornava para casa em Guarulhos e do office- importa destacar das altercações são as relutâncias em e da cibernética, em franca decadência, em constan- torial para dar continuidade ao compromisso de ser um
-boy pelos seguranças do banco Itaú integram uma lista admitir a centralidade do racismo nas ações discrimi- te interrogação. De Descartes, passando por filósofos canal difusor das pesquisas, estudos e reflexões sobre
significativa). Tais episódios fizeram-se razoavelmente natórias impulsionadas por um fundamento racial. No como Michel Foucault e Gilles Deleuze, pelos aportes relações raciais. Oxalá cumpramos esse papel.
presentes na agenda dos suportes informativos, espe- entanto, os exemplos aqui elencados – do dentista e do da medicina e da psicanálise, incluindo-se aí também Uma ótima leitura e até o próximo número.
cialmente de jornais impressos e televisivos com capi- office-boy – não deixam margem a dúvida. O que pre- as contribuições do Laboratório de Inteligência Artifi-
laridade nacional, e vêm estimulando a renovação do senciamos na paisagem cotidiana é desalentador: os ín- cial do MIT, as concepções sobre o corpo passaram por
debate por meio de fóruns concernentes ao racismo e dices exorbitantes de mortalidade de jovens negros não radicais avaliações. Em perspectiva da epistemologia
à violência no Brasil. somente permanecem, como crescem vertiginosamente africana, outros contributos não menos importantes
referência
O assunto, como era de se esperar, alcança di- a cada ano. Segundo reportagem do jornal “O Estado ampliam o painel. Visto como um elemento vital para bibliográfica
mensões exponenciais, e nos conduz, irremediavel- de São Paulo”, “o Mapa da Violência 2011 mostra que a equilíbrio de algumas sociedades, ponto ordenador das
mente, para os elevados índices de mortalidade entre vitimização juvenil por homicídios continua a crescer. estruturas sociais, o corpo é categoria importante na SODRÉ, Muniz. Claros e escuros. Rio de Janeiro: Vozes,
os jovens negros. Organizações anti-racistas atentas às O número de homicídios entre a população negra é ex- definição das relações sociais africanas. 1999.

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O Corpo Negro:
Sentidos e
Significados RESUMO RESUMÉ
Este artigo tem como objetivo refletir a dimensão psíquica da Ce article se propose à réfléchir sur la dimension psychique du ra-
questão do racismo, partindo da hipótese de que essa realidade cisme, à partir de l’hipothèse suivante: que cette realité historique
histórico-social determina, para os negros, configurações psíqui- sociale determine, pour les noirs, des configurations psychiques
Isildinha Baptista cas peculiares. particuliéres.
Nogueira Refletir sobre a condição do negro como produto da interação De cette réflexion, j’essaye de definir la condition du noir en tant
dialética entre, de um lado, as representações sociais ideologi- que produit de l’interaction dialectique entre, d’une part, les repre-
Psicanalista. Doutora em Psicologia pelo camente estruturadas, as estruturas sócio-econômicas que as sentations sociales ideologiquement structurees sócio-economiques
Departamento de Psicologia Escolar e do produziram e as reproduzem e, de outro, as configurações que qui les ont produit et continuent à les réproduire et, d’autre part, les
Desenvolvimento Humano da Universi- formam o universo psíquico. configurations que constituent l’univers psychiques.
dade de São Paulo, com o tema: Signi-
ficações do corpo negro. Assessora do
Instituto AMMA Psique e Negritude. Palavras chave: negros, histórico social, sócio-econômica, ra- Les Mots Clé: noirs, historique sociale, sócio-economiques, ra-
cismo, universo psíquico. cisme, univers psychiques.

periências para além de um terreno anteriormente in- turação é uma consequência natural na relação entre
INTRODUÇÃO diferenciado, e fixam os limites dos comportamentos culturas diferentes, obrigadas a conviver. Ao perderem
dos indivíduos e dos grupos, que são ideologicamente suas identidades originais, ganham nova identidade,
estruturados; cada sistema cria seus teóricos que o jus- resultado da transculturação, como forma de resistir à
Como falar acerca de representações psíquicas e ex- tifiquem. opressão causada pelo processo de escravização.
periências diárias e dizer que, a despeito das lutas por Vivendo em péssimas condições nas senzalas,
melhores condições de acesso à cidadania, as represen- brutalizados e animalizados pelos senhores, os negros
tações sobre o negro e o seu lugar na sociedade não se viam destituídos da sua condição de humanos; não
mudaram?
SER HUMANO faltaram estudos que os compararam aos animais, justi-
A sociedade é, fundamentalmente, uma concep- E SER NEGRO ficando, assim, as condições em que viviam como sendo
ção, uma construção do pensamento, uma entidade “naturais”.
com sentido e significação. Como seres humanos, nos A noção de “ser humano” que temos hoje, teve origem A promulgação da “Lei Áurea” que supostamente
destacamos por nossa capacidade de dar significados no Renascimento, onde se criaram novos conceitos; os libertaria do cativeiro, foi antecedida por mudanças
às coisas. Construímos uma cultura, um conjunto de o homem passa a ser visto como centro e modelo do na ordem econômica e política, que colocavam obstá-
crenças e costumes, que criaram olhares específicos, mundo. Isto é possível porque o ser humano se “concei- culos à existência de um país escravagista no cenário
próprios de cada grupo étnico social, que demandará tualiza”, se pensa e se percebe de uma época para outra; mundial. Os abolicionistas mostravam grande indigna-
princípios de conduta, isto é, uma ética que permita e por ser histórico, consequentemente, seus valores, cos- ção pelas condições de cativeiro dos negros, mas não
garanta a cada um dos indivíduos pertencentes a um tumes e leis, mudam. puderam pensá-los como indivíduos que deveriam ser
determinado grupo, a necessidade que lhe é natural, de Por mais de três séculos, as principais atividades inseridos na sociedade. Supunham que, saindo da con-
pertencimento a essa organização. econômicas mercantes brasileiras basearam-se no tra- dição de escravo, o negro trabalharia como mão de obra
O conjunto das representações que constituem a balho do negro escravizado. Entre cativos e mortos, a remunerada para seu auto-sustento.
cultura está condicionado a uma lógica que determina África perdeu 70 milhões de pessoas do século XV ao
que viver em sociedade é estar “sob a dominação des- XIX1. Foram 320 anos de escravidão. Libertos, os ex-escravos vagavam desorientados,
sa lógica”; os indivíduos se comportam segundo essa Trazidos de diferentes regiões, falando, portanto, sem condições para seu auto-sustento e sem trabalho
lógica, sem terem consciência desse mecanismo. Em línguas diferentes, tendo cultura, tradições e religiões no campo, que começava a ser feito pelos imigrantes.
consequência, a vida coletiva, assim como a vida psíqui- diversas, os negros tinham portanto a comunicação e Dadas suas condições de vida, foram comparados a
ca dos indivíduos e dos grupos sociais constituem um a organização entre os semelhantes dificultadas, o que animais e vistos como incompetentes, preguiçosos e
complexo processo que não corresponde a uma relação favorecia o controle dos senhores de escravos. A acul- indolentes, quando comparados aos europeus que para
causal simples, mecanicista, empírica, mas depende dos cá vieram trabalhar. Restava aos negros o trabalho do-
mais diversos fatores. méstico, situação que perpetuava a imagem anterior,
As representações sociais funcionam como uma 1. ALENCAR, Chico (org.). Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: em que o negro, tal como besta fera domesticada, tra-
rede onde as malhas estabelecem os domínios das ex- Garamond, 2001, pg. 24. balhava em troca de ração.
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Embora juridicamente capazes de ocupar um espa- Negar e anular o próprio corpo nos torna o su-
ço na sociedade, os negros eram, de fato, dela excluídos jeito “outro”, visto que só existimos como sujeitos em
e impedidos de desfrutar de qualquer benefício social; relação ao outro, à alteridade; portanto, ser sujeito é
foram marginalizados, estigmatizados, marcados pela ser outro, e ser o outro é não ser o próprio sujeito, no
cor que os diferenciava e discriminados por tudo quan- caso do negro.
to essa marca pudesse representar.
Desde essa época, livres do cativeiro, mas jamais
da condição de escravos, de um estigma, os negros têm O QUE SOMOS
sofrido toda sorte de discriminação que tem como base
a ideia de que são seres inferiores e, portanto, não me- NÓS, NEGROS?
recedores de possibilidades sociais iguais.
O negro pode ser consciente de sua condição, das Ser branco significa uma condição genérica: ser branco
implicações histórico-políticas do racismo, mas isso constitui o elemento não marcado, o neutro da huma-
não impede que ele seja afetado pelas marcas que a re- nidade. Nasce em nós, portanto, o desejo de “brancu- racistas que parecem grotescas, absurdas, totalmente O preconceito é próprio da natureza humana, é
alidade sócio-cultural do racismo deixaram inscritas ra”. A brancura, vista da perspectiva do olhar do negro incabíveis legalmente − já que criminosas, em termos aquilo que me diferencia do outro; a discriminação é
em sua psique. oprimido, transcende qualquer falha do branco; a bran- de “direitos civis” − é mais forte que ele: o negro acaba aquilo que pretensamente autoriza o indivíduo à exclu-
Sabemos que as condições sócio-econômicas e a cura se contrapõe ao mito negro. A ideologia racial, sempre por sucumbir a todo um processo inconsciente são do outro, com base na biologia de conhecimento
ideologia moldam as estruturas psíquicas dos homens. portanto, se funda e se estrutura na condição univer- que, alheio à sua vontade, entrará em ação. científico; o racismo é a expressão violenta da discri-
Tal processo não é imediatamente verificável, pois as sal e essencial da brancura, como única via possível de Como seres humanos, contraditórios e instáveis, minação, onde o indivíduo se autoriza à eliminação do
representações psíquicas não são puro reflexo das con- acesso ao mundo. temos a capacidade de estabelecer princípios, leis e outro. Estarmos cientes dessas diferenças é importante
dições objetivas. Suas estruturas psíquicas são contami- Embora o negro saiba que sua condição é o resul- declarações e também a capacidade de contradizê-los, para que, enquanto profissionais, não importando a
nadas pelas condições objetivas - que recebem no plano tado das atitudes racistas e irracionais dos brancos, o pois nossas reações são relativas à demanda de um dado área específica de atuação e conhecimento, estejamos
inconsciente elaboração própria - a partir das quais são ideal de brancura permanece. A “brancura” passa a ser momento histórico e econômico. Faz parte da natureza conscientes de que nenhum de nós existe à parte das
assimiladas e incorporadas, tornando-os sujeitos cati- parâmetro de pureza artística, nobreza estética, majes- do ser humano o preconceito, sentimento formado sem estruturas de poder e dominação.
vos e mantenedores de tais condições. tade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o branco suficiente conhecimento, mas forte o bastante para que,
É o que analiticamente (para a psicanálise) se dá encarna todas as virtudes, a manifestação da razão, do de maneira apaixonada, cada qual defenda sua cultura
no processo de identificação, em que o sujeito intro- espírito e das ideias: a cultura, a civilização, isto é, a pró- como a melhor forma de organização social. É eviden-
jeta, parcial ou totalmente, através da imitação ou da pria “humanidade”. É evidentemente confuso esse pro- te que essa defesa apaixonada se dá por comparação,
Referências
incorporação, o objeto amado ou odiado, ou ambas cesso psicológico da ordem do inconsciente, pelo qual onde as diferenças e semelhanças são negadas, enquan- Bibliográficas
as coisas simultaneamente, reagindo, assim, ao amor os negros passam; ser sujeito no outro, significa não ser to diversidades e especificidades da outra cultura. E o
ou ódio pela incorporação das propriedades do obje- o real do seu próprio corpo, que deve ser negado, para critério para a compreensão passa a ser o da superio-
to. Esse mecanismo é o que a psicanálise caracteriza que se possa ser o outro. Mas esta imagem de si, forjada ridade ou inferioridade que, supostamente baseadas ALENCAR, Chico. Direitos mais humanos. Textos de
como a identificação com o agressor, que desta forma na relação com o outro − e no ideal de brancura − não em “conhecimentos científicos”, passam a garantir essa Frei Betto, Nilton Bonder, Jorge Werthein, Luis
é internalizado; não se faz necessária a presença física só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu diferença pela “desconstrução” da outra cultura. Isto, Eduardo Soares, Arthur Dapieve, D. Pedro Ca-
do agressor, o negro passa a se auto-rejeitar. corpo próprio, mas é por este negada, estabelecendo-se que a princípio seria natural no ser humano, pode e saldaliga, Graciela Rodriguez. Rio de Janeiro:
O “ser negro” corresponde a uma categoria inclu- aí uma confusão entre o real e o imaginário. na maioria das vezes acaba por atravessar os limites da Garamond.
ída em um código social que se expressa dentro de um Esse processo despersonaliza e transforma o sujei- diversidade, resultando no que seria a base do racismo, NOGUEIRA, Isildinha Baptista. Significações do corpo
campo etnossemântico onde o significante “cor negra” to em um autômato: ele se paralisa e se coloca à mercê expressão violenta da diferença que parte da descons- negro. Tese (Doutorado em Psicologia) – Univer-
encerra vários significados. da vontade do outro. O sujeito, assim fragilizado, en- trução e da eliminação do outro, baseado na suposta sidade de São Paulo, 1998.
O signo “negro” remete não só às posições sociais vergonhado de si, se vê exposto a uma situação em que inferioridade de certas etnias. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, cien-
inferiores mas, também, a características biológicas nada separa o real do imaginário, as fantasias estão, O intuito, nesta breve reflexão acerca de questões tistas, instituições e questões raciais no Brasil, 1870-
supostamente aquém do valor das propriedades bioló- simultaneamente, dentro e fora, tão complexas quanto essas que envolvem a discrimina- 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
gicas atribuídas aos brancos. Se o que constitui o sujeito É justamente porque o racismo não se formula ção em relação aos negros, seus sentidos e significados, SODRÉ, Muniz. Claros e escuros. Identidade, povo e
é o olhar do outro, como fica o negro que se confronta explicitamente, mas antes sobrevive em um devir in- foi o de contribuir enquanto psicanalista, com a expla- mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
com o olhar do outro, que mostra reconhecer nele o terminável, enquanto uma possibilidade virtual, que o nação do modo como a realidade sócio-histórico-cultu- VENTURI, Gustavo; TURRA, Cleusa. (Orgs.) Racismo
significado que a pele negra traz enquanto significante? terror de possíveis ataques (de qualquer natureza, des- ral do racismo e da discriminação se inscreve na psique cordial, a mais completa análise sobre o preconceito
Resta ao negro, para além de seus fantasmas, ine- de física a psíquica) por parte dos brancos, cria para o do negro. Visto que costumamos, via de regra, confun- de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.
rentes ao ser humano, o desejo de recusar esse signifi- negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e dir preconceito, discriminação e racismo, utilizando
cante, que representa o significado que ele tenta negar, se impõe inexoravelmente. esses termos como se tivessem um só significado, penso
negando-se dessa forma a si mesmo, pela negação do Ainda que lançando mão de um arsenal racio- que seja adequado nos lembrarmos que cada um desses
próprio corpo. nal lógico, o negro possa desconsiderar tais ameaças termos determina e demanda diferentes sentidos.

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Personagens em
posições hipotéticas:
consumo, corpo
e subjetivação na RESUMO ABSTRACT
cultura das mídias Este trabalho trata das relações que três personagens femininas
colhidas da literatura estabelecem com a cultura midiática em
This article deals with the dialogue that three female characters
from literature - Pecola, Macabéa and Claudia - have with the
que estão imersas. Nos dois romances analisados, as relações que media culture in which they are immersed. In both novels chosen,
Pecola, Macabéa e Claudia travam com o mundo do consumo e the relations that these young women establish with the world of
com os discursos hegemônicos da mídia para o corpo mostram- consumption and the hegemonic discourses about the bodies are
Laura Guimarães -se centrais para a constituição de suas subjetividades e do modo central to the constitution of their subjectivities and to the way
Corrêa como se colocam diante de si mesmas, do outro e da sociedade. they see themselves in society. To reflect upon these relations and
Para a discussão sobre essas relações e seus desdobramentos, são their ramifications, we apply Stuart Hall’s concept of the three hy-
Professora adjunta do curso de Comu- utilizadas as três posições hipotéticas de decodificação propostas pothetical positions for the reader. We also consider Judith Butler´s
nicação Social da UFMG. Integra o GRIS por Stuart Hall, assim como as reflexões de Judith Butler sobre concept of “bodies that matter” as an important approach to de-
(Grupos de Pesquisa em Imagem e Socia- os “corpos que pesam”. velop this theme.
bilidade) e o GrisPop (Grupo de pesquisa
sobre interações midiáticas e práticas
culturais contemporâneas), na UFMG. Palavras chave: mídia, consumo, corpo, subjetividade. Key words: midia, consumption, body, subjectivity.

do romance O olho mais azul, escrito pela estaduni- mostra-se fundamental para a reflexão sobre os pro-
INTRODUÇÃO dense Toni Morrison, e Macabéa, protagonista d’A hora cessos identitários.
da estrela, de Clarice Lispector. A relação que as três Mesmo considerando a proliferação e a complexi-
jovens estabelecem com os produtos e as figuras da mí- dade dos discursos midiáticos, assim como sua natu-
Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas dia é central para a constituição de suas subjetividades reza agonística, podemos dizer que, ainda assim, estes
mim, preciso dos outros para me manter de pé, e do modo como se colocam diante de si mesmas, do tendem a ser normativos e a operar com representações
tão tonto que sou, eu enviesado (...). outro e da sociedade. hegemônicas já solidificadas, com estereótipos, com
Rodrigo S. M., o narrador d’A Hora da Estrela situações-padrão. Para Stuart Hall, o ponto de vista
hegemônico é aquele
A edição d’A Hora da Estrela que tenho em mãos, de
1999, traz, além do nome da autora e do título da obra, (a) que define dentro de seus termos o horizonte men-
uma imagem que não ocupa mais que um quarto da
Sujeito e discursos tal, o universo de significados possíveis e de todo um
capa. Em técnica mista, essa imagem mostra, em pri- midiáticos setor de relações em uma sociedade ou cultura, e (b)
meiro plano, a figura de uma jovem de olhos fechados que carrega consigo o selo da legitimidade – parece
que ouve rádio, com um varal de roupas e uma paisa- Partimos da premissa de que o sujeito é construído coincidir com o que é ‘natural’, ‘inevitável’ ou ‘óbvio’ a
gem urbana ao fundo. O olhar mais atento vai descobrir nas relações estabelecidas com os outros sujeitos. O respeito da ordem social. (HALL, 2003, p.401)
que os prédios são feitos de colunas de jornal e que o processo de subjetivação só pode ser entendido dentro
rádio tem um inesperado nariz. Macabéa, a moça re- da sociedade, quando o indivíduo se confronta com os O autor acredita que em toda sociedade existem
presentada na capa, protagonista do romance de Clarice valores e as instituições sociais - esse sistema de sig- sentidos dominantes ou preferenciais, que organizam
Lispector, está envolta pela mídia. O rádio, na concep- nificações feito de códigos e rituais que dá sentido à domínios discursivos através de códigos sociais. As-
ção da ilustradora, tem vida. A moça aconchega-se ao vida do ser humano, que nos situa e nos constitui como sim, Hall entende que a leitura dos produtos midiá-
aparelho humanizado e quase sorri, como num namo- sujeitos e agentes da vida social. ticos pode ser classificada de acordo com o grau de
ro. Os prédios da pequena ilustração têm palavras, têm Nas interações comunicativas que se estabelecem concordância ou de adesão aos sentidos preferenciais,
sentido. As peças no varal – um vestido, um terno, um nos contatos com a mídia, cada sujeito interpreta os uma vez que, no processo comunicacional, “não existe
lençol - parecem dançar. Na capa do livro, o mundo discursos de acordo com sua história, sua cultura, sua uma necessária correspondência entre codificação e
urbano e midiático em que Macabéa se encontra tem visão de mundo. Os sujeitos produzem e reproduzem decodificação” (Hall, 2003, p. 399-400), isto é: na troca
significados, recados e afetos, encarnados em coisas os discursos da mídia, em permanente estado de movi- comunicativa, não há garantias de que aquilo que se
antes inanimadas. mento e tensão. Na conformação discursiva da comu- diz/escreve/mostra será recebido exatamente como se
A proposta deste trabalho é pensar o diálogo que se nicação midiática, valores, corpos, ideias e padrões de esperava no momento da codificação. Há várias articu-
dá entre três personagens femininas e a cultura midiáti- comportamento são propostos, negociados, construí- lações possíveis para a combinação entre a codificação
ca na qual elas estão inseridas. As personagens literárias dos. Portanto, a atenção às interações dos indivíduos e a decodificação de produtos da comunicação. Em
escolhidas para instigar a reflexão são Claudia e Pecola, e grupos da sociedade com os dispositivos da mídia sua análise de produtos jornalísticos televisivos, Hall

15
dossiê temático

(2003) identifica três posições hipotéticas de leitura. Na para a imagem de Temple, para o lugar da vida perfeita, saída encontrada por esse sujeito destituído de todos causa - da experiência de um cotidiano triste durante
primeira delas, há concordância frente ao sentido he- tão distante de seu cotidiano de pobreza, violência e os atributos propagandeados pelos discursos hegemô- o dia, Macabéa se apoia na vida harmoniosa do cinema
gemônico conotado. Na segunda hipótese, a do código abuso. Há uma contemplação que extrapola o mundo nicos da mídia foi a identificação e a admiração frente e da publicidade à noite:
negociado, as definições hegemônicas são aceitas, mas físico – o leite que ela toma da xícara é o que menos às imagens idealizadas que lhe eram oferecidas: uma
o/a receptor/a cria suas próprias regras para decodifi- alimenta: ela bebe simbolicamente Shirley Temple e sua solução aparentemente contraditória, mas que, anco- Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por
car a mensagem. No terceiro caso, a leitura é oposta, promessa de felicidade. Mas trata-se de um sonho que rada na esfera da fantasia, oferecia pouca possibilidade uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem
contestatória: reconhece o sentido hegemônico, mas tranquiliza e destrói ao mesmo tempo. Pecola deseja de negação ou de frustração, ao contrário do seu árduo baixinho para não acordar as outras, ligava invaria-
discorda deste. então deixar de ser. De que matéria-prima ela podia cotidiano. Por fim, Pecola resolve ter olhos azuis e pro- velmente para a Rádio Relógio, que dava ‘hora certa
Nossa proposta neste artigo é utilizar as categorias dispor para a construção de sua subjetividade, se tudo cura o charlatão que supostamente poderia realizar tal e cultura’, e nenhuma música, só pingava em som de
criadas por Hall para pensar a apreensão, a leitura e o o que era valorizado na esfera midiática e na sociedade sonho: gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E
consumo, por nossas anti-heroínas, de outros tipos de em que vivia lhe era contrário? Pecola fazia força para sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos
produtos culturais: estrelas de cinema, anúncios publi- desaparecer: Aquele era o pedido mais fantástico e, ao mesmo tem- entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comer-
citários, programas de rádio, objetos industrializados. po, o mais lógico que já lhe tinham feito. Ali estava uma ciais – ela adorava anúncios. (LISPECTOR, 1999, p.37)
“Por favor, Deus.”, sussurrou na palma da mão, “por menina feia pedindo beleza. (...) Uma menina negra
favor, me faça desaparecer”. Fechou os olhos com força. que desejava alçar-se para fora do fosso de sua negri- E por que Macabéa adorava anúncios? Provavel-
Pequenas partes do seu corpo se apagaram. Ora lenta- tude e ver o mundo com olhos azuis. (MORRISON, mente pelo mundo próprio que criam, pela promessa
Pecola e Shirley Temple mente, ora de chofre. Lentamente de novo. Sumiram os 2003, p.175). de felicidade guardada em um produto, por interpelar
– a contemplação do dedos um por um. Depois os braços até os cotovelos. a ouvinte com a intimidade e o carinho que lhe faltam
oposto ideal Os pés agora. Sim, era bom aquilo. As pernas, de uma É possível fazer aqui, em Pecola, uma comparação na vida real, por transportá-la para longe dali. Segundo
vez só. Acima das coxas era mais difícil. Ela precisava direta com a posição hegemônico-dominante descrita Joan Scott (1999, p. 27), “não são os indivíduos que
No romance O Olho mais Azul, Toni Morrison escreve ficar completamente imóvel e fazer força. O estômago por Stuart Hall (2003, p. 400), “quando o telespectador têm experiência, mas os sujeitos é que são constituí-
sobre a realidade dura de personagens negros e pobres não ia. Mas, por fim, também desapareceu. Depois o se apropria do sentido conotado (...) de forma direta e dos através da experiência.” Macabéa tem experiências
nos Estados Unidos dos anos 1940. No centro da histó- peito, o pescoço. O rosto também era difícil. Quase lá, integral, e decodifica a mensagem nos termos do có- constituintes de sua subjetividade quando se relaciona
ria está Pecola Breedlove, menina de doze anos que se quase. Só restavam os olhos, bem, bem apertados. Eram digo referencial no qual ela foi codificada, podemos com esses produtos midiáticos.
encontra dentro (e fora) de uma família completamente sempre os olhos que sobravam. Por mais que tentasse, dizer que o telespectador está operando dentro do códi- Como prática social institucionalizada, a publici-
desestruturada. Para o olhar hegemônico daquela épo- nunca conseguia fazer os olhos desaparecerem. (MOR- go dominante.” Pecola não questiona o ideal de beleza, dade é um sistema cultural e simbólico que organiza
ca e lugar – que não se mostra muito diferente hoje e RISON, 2003, p.52) que é lido como natural, óbvio, incontestável, absoluto. sentidos, oferece classificações, gera identificações,
aqui -, Pecola vale menos, de qualquer ângulo que se Ela decodifica as mensagens da mídia com aceitação, constituindo-se como poder estruturante e, portanto,
olhe. Além da exclusão por ser negra, criança, pobre e Ela nem precisava fazer tanta força assim, pois já concordância, alinhamento. Mas aceitar desse modelo como um dos sistemas de construção da realidade con-
mulher, Pecola é descrita como uma menina muito feia, era praticamente invisível. Nas palavras da narradora, requer a não aceitação de si mesma. Não há contradição temporânea. Os discursos publicitários atingem a todos
de uma feiúra que se confundia com todos os outros “como alguém poderia ver uma menina negra?” (MOR- na sua recepção das imagens da mídia, mas, dessa for- os que estão expostos a ele, tenham ou não a necessi-
motivos para que ela fosse ridicularizada, desrespeitada RISON, 2003, p.52). ma, a menina negra anula seu próprio corpo. Para lidar dade ou as condições de consumir o produto ou ser-
ou simplesmente ignorada. Em sua fragilidade, Peco- De acordo com as ideias que Judith Butler (1999) com as consequências dos abusos sofridos, em todas as viço anunciado. Além desse aspecto disseminador, há
la apoia-se numa fantasia de admiração pela menina apresenta em Corpos que pesam, há normas no discurso esferas, Pecola cria uma imagem de si descolada da rea- ainda uma pesada carga simbólica, uma extensa gama
perfeita dos musicais do cinema americano: rica, bela, de dominação que traçam a linha entre aqueles seres lidade insuportável, num processo de dessubjetivação, de significados, representações e padrões de compor-
talentosa, loira, de olhos azuis. Ela era tudo aquilo que que interessam a uma sociedade e aqueles que podem dissolvendo-se em psicose. A literatura traz aqui uma tamento intrínsecos às imagens e textos publicitários
Pecola não podia ser, fato esse que não a protegia do ser descartados, os que são abjetos. No título original personagem impotente na relação com a família, com (CORRÊA, 2006).
encantamento: Bodies that matter, a autora explora os dois significados a sociedade e com os produtos da cultura midiática. As produções de sentido operadas por essa forma
do significante matter: o verbo importar, no sentido de comunicação mostram-se abundantes e ricas para a
Frieda lhe trouxe quatro bolachas num pires e leite de ter importância, e o substantivo matéria. Assim, a investigação sobre os fenômenos sociais e as ideologias
numa xícara branca e azul com a Shirley Temple. Ela expressão pode ser lida também como “corpos que im- que os perpassam. Jean Baudrillard (1995) sugere que
demorou longo tempo para tomar o leite, olhando portam”. Pecola estava completamente fora da norma
MACABÉA E OS ANÚNCIOS – o objetivo primeiro da publicidade não é a promoção
ternamente para a silhueta do rosto com covinhas de reguladora, ela tinha um corpo que não era visto, não A ASTÚCIA DE UM CONSUMO de vendas. Para o autor, a função econômica da pu-
Shirley Temple. Frieda e ela conversaram, enternecidas, era considerado, quase desmaterializado: um corpo que SUBVERSIVO blicidade é secundária, isto é, a adesão aos objetos é
sobre como a Shirley Temple era lindinha. (MORRI- não importava. Não importava para as outras pessoas, e apenas uma consequência - desejável, certamente - da
SON, 2003, p.22,23) é exatamente no encontro com o outro que os sujeitos No romance de Clarice Lispector, Macabéa é uma ala- função global de integração e coesão social através da
são construídos. goana pobre que trabalha como datilógrafa numa ci- glorificação da mercadoria e do mito da felicidade e do
Shirley Temple habitava um domínio adorado e Os discursos cristalizados da mídia chocavam-se dade grande. Tem dezenove anos, não tem família, não bem-estar coletivo na sociedade de consumo.
sacralizado pela mídia: o reino da beleza, da pureza, da contra a realidade em que vivia a personagem Pecola. tem instrução, às vezes não tem o que comer e masca A publicidade representa situações cotidianas
brancura. No romance, essa figura exerce um fascínio A discrepância evidente entre os dois mundos não era, bolinhas de papel. A moça tem uma espécie de namora- como se estas constituíssem experiências memoráveis,
acalentador sobre a personagem. Pecola sorri ao olhar para ela, motivo de revolta ou de tristeza imediata. A do, que a trata mal e a troca pela colega. Apesar - e por completas, únicas. Construídas, fotografadas, filma-

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dossiê temático

zesse com a boneca: embalá-la, inventar historinhas em


torno dela, até dormir com ela. Os livros de figuras esta-
CLAUDIA E AS CRIANÇAS vam cheios de garotinhas dormindo com suas bonecas.
ADORÁVEIS – A VONTADE (...) Eu ficava enojada e secretamente assustada com
DE RESISTÊNCIA aqueles olhos redondos imbecis, a cara de panqueca e o
cabelo de minhocas laranjas. (MORRISON, 2003, p.23)
das e impressas, essas situações são perpassadas por cabéa subverte aquilo que recebe. Se Pecola absorvia Claudia é a menina narradora do romance O Olho
demonstrações de sentimentos positivos de ternura, tudo com encantamento e passividade, Macabéa ins- mais Azul. Das três personagens analisadas, é a que Claudia não aceitou a norma de um comporta-
amor, sucesso, alegria. Por mais frustrante que seja a creve sua marca, junta, mistura e rearranja significados, apresenta mais claramente a surpresa e a indignação mento de gênero que lhe era imposta e que é ofere-
relação de Macabéa com seu namorado Olímpico, é dialogando com os discursos e produtos da sociedade por estar fora dos padrões e das normas reguladoras cida repetidamente a crianças – meninas e meninos
na representação de um amor ideal, experimentada no do consumo. estabelecidas pelo discurso hegemônico da sociedade - pelos mais variados discursos. Por ter nascido com
cinema ou na publicidade, que ela se sustenta para viver É possível aqui traçar um paralelo com a versão em que vive. Claudia, pré-adolescente ainda, vê com características físicas que a fazem pertencer à categoria
sua experiência de quase-amor. negociada proposta por Hall: nesse caso, decodificar olhos críticos a exclusão a que são submetidas as pes- discursiva do gênero feminino, Claudia se vê coagida
Além de anúncios, Macabéa gostava de estrelas de soas negras e pobres. Nas mais diversas sociedades, em pelos/as adultos/as e pelas representações nas figuras
cinema. “Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa (...) contém uma mistura de elementos de adaptação e constante transformação, podem-se perceber conflitos, dos livros a aceitar e interpretar (to perform) o papel
mulher deve ser a mulher mais importante do mundo.” de oposição: reconhece a legitimidade das definições conquistas, permanências e avanços dos grupos mino- de mãe. Para Butler, “(...) a performatividade deve ser
(LISPECTOR, 1999, p.64). A fala da personagem Ma- hegemônicas para produzir as grandes significações ritários na luta por visibilidade e respeito. Toni Morri- compreendida não como um ‘ato’ singular ou delibe-
cabéa coincidentemente toca no tema do “corpo que (abstratas) ao passo que, em um nível mais restrito, si- son, a autora do livro, diz através da voz de Claudia de rado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e
importa” quando trata da importância de Greta Gar- tuacional (localizado), faz suas próprias regras – fun- sua resistência a uma sociedade que não reconhece os citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele
bo, uma figura midiática com extrema visibilidade, ao ciona com as exceções à regra. (HALL, 2003, p.401). grupos marcados pelas diferenças de gênero, classe e et- nomeia.” (BUTLER, 1999, p. 154). Portanto, o gênero
contrário de Macabéa, que é quase invisível. Garbo, aos nia. A resistência de Claudia fica evidente no desprezo não é um dado, mas é aprendido por meio de constan-
olhos de Macabéa, tem um corpo que vale a pena ser Trata-se de uma leitura atravessada por contradi- por um produto industrializado, uma boneca carregada tes repetições de modelos. E um dos mais poderosos
olhado, cuidado, admirado. ções. Longe de tomar qualquer atitude política, Maca- de normas e significados: modelos representacionais para a mulher é o que liga
A subjetividade de Macabéa é construída por sua béa apenas encontra uma maneira própria de se rela- inexoravelmente a feminilidade à maternidade. Com
experiência frente aos modelos e representações de mu- cionar com os produtos da mídia. O presente grande, especial, dado com muito carinho, clara inspiração beauvoriana, Butler afirma que:
lheres ideais, de relações ideais. Mas nota-se na curta É sabido que a publicidade reveste produtos e era sempre uma Baby Doll grande, de olhos azuis. Pela
vida de Macabéa um espaço de subversão quase diver- serviços de atributos emocionais, sensuais, sensoriais, tagarelice dos adultos, eu sabia que a boneca represen- A garota torna-se uma garota, ela é trazida para o domí-
tida, como estratégia de sobrevivência: valendo-se do discurso persuasivo e sedutor para atrair tava o que eles pensavam que fosse o meu maior dese- nio da linguagem e do parentesco através da interpela-
e conquistar seus públicos. Mas é preciso escapar da jo. Fiquei pasmada com a coisa e com a aparência que ção do gênero. Mas esse tornar-se garota da garota não
Mas tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estre- armadilha de pensar essa comunicação como unilateral, tinha. (MORRISON, 2003, p.23) termina ali, pelo contrário, essa interpelação fundante
mecente sob o lençol de brim, costumava ler à luz de como uma imposição de cima para baixo, em que a é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários
vela os anúncios que recortava dos jornais velhos do recepção é passiva, e as pessoas são sempre vítimas de É importante lembrar que objetos industrializados, intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse
escritório. É que fazia coleção de anúncios. Colava-os manipulação. Louis Quéré (2007), ao falar sobre o ca- como produtos humanos, são embebidos pela cultura. efeito naturalizado. (BUTLER, 1999, p.161)
no álbum. Havia um anúncio, o mais precioso, que ráter impessoal da experiência, afirma que as emoções Os objetos – principalmente brinquedos - carregam
mostrava em cores o pote aberto de um creme para são fenômenos públicos, compartilhados e comparti- história e ideologia, são signos e objetivações de cada Para a autora, os sistemas de classificação binária
pele de mulheres que simplesmente não eram ela. lháveis. O que ativa uma experiência emocional não sociedade, nos “falam” através de sua forma, suas cores, impõem modelos culturais de existência do corpo:
Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os é um sentimento solitário, algo que parte do interior seu formato (CORRÊA, 2011). O assombro e o descon-
olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era do sujeito que é afetado: o engajamento numa situa- tentamento de Claudia frente a esse objeto não estavam A produção discursiva do corpo materno como pré-
tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo ção, no contato com um produto de comunicação, por apenas na percepção de um racismo representado pelo -discursivo é uma tática de auto-ampliação e ocultação
não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso exemplo, se dá a partir de uma convergência de valores modelo único e normativo de bonecas de olhos azuis, das relações de poder (...). o corpo materno seria en-
sim, às colheradas no pote mesmo. É que lhe faltava sociais. Essa adesão consiste numa atividade, num ato mas também pelo modelo de comportamento de gêne- tendido como efeito ou consequência de um sistema de
gordura e seu organismo estava seco que nem saco do sujeito que sofre a experiência (DEWEY, 1980). ro que se esperava de uma menina-mulher para com sexualidade em que se exige do corpo feminino que ele
meio vazio de torrada esfarelada. Tornara-se com o Assim como cremes de beleza não são feitos para uma miniatura plástica de criança: assuma a maternidade como essência do seu eu e lei do
tempo apenas matéria vivente em sua forma primária. se comer, anúncios não foram feitos para serem recor- seu desejo. (BUTLER, 2003, p.138).
Talvez fosse assim para se defender da grande tentação tados e colados em álbuns. Ouvir a Rádio Relógio e Eu devia fazer o que com aquilo? Fingir que era a mãe?
de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. (LISPECTOR, colecionar anúncios, esses pequenos recortes de prazer, Eu não tinha interesse por bebês nem pelo conceito Os personagens adultos do romance analisado,
1999, p.38) são formas encontradas por Macabéa, moça simplória, de maternidade. Estava interessada somente em seres ao presentear Claudia com uma boneca, reiteram uma
para entender e suportar a dura experiência de estar no humanos da minha idade e tamanho, e não conseguia prática, instruem a menina quanto à sua posição e seu
Um ponto importante que diferencia Macabéa de mundo. É através da leitura e (re)criação desses discur- sentir entusiasmo algum ante a perspectiva de ser mãe. comportamento frente à sociedade, isto é, atuam na
Pecola é a maneira particular pela qual a personagem sos da mídia que Macabéa experimenta o mundo e se Maternidade era velhice e outras possibilidades remo- construção de uma subjetividade marcada por gênero e
de Clarice se relaciona com os produtos da mídia. Ma- constrói como sujeito. tas. Mas aprendi depressa o que esperavam que eu fi- raça. Mas Claudia não adere a essa “verdade”, ela resiste

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dossiê temático

é atropelada pela realidade e Claudia sobrevive para


narrar histórias. Obviamente não se pode simplificar a
reflexão a ponto de afirmar que a relação das persona-
Referências
gens com os discursos da mídia é o ponto que define bibliográficas
o destino de cada uma delas. Mas é possível observar
que a personagem que apresenta a postura mais crítica BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de
e protesta a seu modo contra a norma, desconstruindo em relação aos sentidos preferenciais de decodificação Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70, 1995.
fisicamente a boneca branca, num misto de vingança é aquela que consegue se constituir como sujeito, pro- BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites
e curiosidade:
CONSIDERAÇÕES tagonizando sua história. discursivos do sexo. In LOURO, Guacira L. (org.)
FINAIS As imagens e textos midiáticos invocam signifi- O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Eu tinha uma única vontade: desmembrá-la. (...) Não cados compartilhados e consensuais, reafirmando as Horizonte: Autêntica, 1999.
conseguia gostar dela. Mas podia examiná-la para ver Para Foucault não interessa encontrar o que existe es- verdades, as tradições e as crenças do grupo ao qual ____________. Problemas de gênero: feminismo e sub-
o que era que todo mundo dizia que era adorável. Se condido por trás das palavras e sim entender o porquê pertencem os agentes do discurso. É preciso lembrar versão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
eu quebrasse os dedos minúsculos, dobrasse os pés da emergência de certos discursos em certas épocas. que geralmente esses discursos vêm dos grupos he- Brasileira, 2003.
chatos, soltasse o cabelo, girasse a cabeça (...). Se eu Trata-se de “substituir o tesouro enigmático das ‘coi- gemônicos, dos grupos não-marcados, o que exclui CORRÊA, Laura G. De corpo presente: o negro na pu-
lhe removesse o olho frio e estúpido, continuava ba- sas’ anteriores ao discurso pela formação regular dos aqueles corpos, aqueles comportamentos, aquelas vidas blicidade em revista. Dissertação (mestrado em
lindo “Ahhhhhh”; se arrancasse a cabeça, sacudisse a objetos que só nele se delineiam” (Foucault, 1987, p.54). que não estão dentro das representações dos grupos Comunicação Social) - Universidade Federal de
serragem para fora, rachasse as costas contra a grade de Essa perspectiva está focada na análise e apreensão que detêm o poder. No posfácio d’O Olho mais Azul, Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
metal da cama, ela continuava balindo. (MORRISON, das práticas discursivas e das relações entre as falas, a autora reflete sobre a interpelação que faz com que CORRÊA, Laura G. Mães cuidam, pais brincam: nor-
2003, p.23) localizadas social e historicamente, sobre os objetos e a norma - no caso do livro citado, a desigualdade e a mas, valores e papéis na publicidade de homenagem.
os acontecimentos da vida humana. Foucault chama hierarquia racial - seja internalizada na construção da Tese (doutorado em Comunicação Social) - Uni-
Assim, Claudia rompe com a norma branca e he- a atenção para a importância de se considerar o que subjetividade da menina Pecola: versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizon-
terossexual representada pelo brinquedo. Sabe-se que vem à tona, o que os textos dão a ver: te, 2011.
as relações de poder estão implicadas na construção Implícita em seu desejo estava a aversão por si mesma, DEWEY, John. Art as experience. New York: Perigee
das subjetividades, mas notam-se espaços – difíceis, Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa se- de origem racial. E vinte anos depois eu continuava me Books, the Berkeley Publishing Group, 1980.
sem dúvida – para a resistência e a transformação. A mi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar perguntando como é que se aprende isso. Quem disse a FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de
contestação de Claudia, mesmo que solitária, silenciosa por que não poderia ser outro, como exclui qualquer ela? Quem a fez sentir que era melhor ser uma aberra- Janeiro: Forense-universitária, 1987.
e talvez inconsequente, faz parte de sua constituição outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado ção do que ser o que ela era? Quem a tinha olhado e a HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações
como sujeito. Sua ativa insubmissão, de certa forma, a a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A achado tão deficiente, um peso tão pequeno na escala culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, Brasília:
salva de um destino triste como o de Pecola. questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim da beleza? (MORRISON, 2003, p. 210). Representação da Unesco no Brasil, 2003.
A atitude de Claudia pode ser vista como exemplo formulada: que singular existência é esta que vem à LISPECTOR, Clarice. A Hora da estrela. Rio de Janeiro:
de recepção/decodificação que opera dentro do código tona no que se diz e em nenhuma outra parte? (FOU- As perguntas de Morrison são muito pertinentes Rocco, 1999.
de oposição. Segundo Hall (2003, p. 402), nessa hipó- CAULT, 1987, p.31). para a reflexão sobre as relações raciais e de gênero na MORRISON, Toni. O olho mais azul. São Paulo: Com-
tese de leitura, o receptor “decodifica a mensagem de sociedade contemporânea. Vimos que os modelos cor- panhia das Letras, 2003.
maneira globalmente contrária. Ele ou ela destotaliza Os dois romances emergem em dada época, em porais oferecidos pelos produtos midiáticos disseram QUÉRÉ, Louis. Reflexões sobre a experiência pública
a mensagem no código preferencial para retotalizá-la dado lugar. Retratam e revelam relações desiguais entre muito às personagens dos romances citados. Cada in- (Curso ministrado no Programa de Pós-Gradua­
dentro de algum referencial alternativo.” O autor afir- homens e mulheres, brancos/as e negros/as, adultos/as divíduo consumiu e dialogou à sua maneira com esses ção em Comunicação Social da UFMG, 2007. In-
ma ainda que essa atividade de recepção oposta pode e crianças, belos/as e feios/as, em discursos atuantes discursos hegemônicos, que apresentam caráter peda- formação verbal)
desencadear crises de naturezas diversas. Poderíamos nessas sociedades não muito distantes no tempo e no gógico e formador, com forte influência nos processos SCOTT, Joan. Experiência. In SILVA, Alcione, LAGO,
acrescentar que esses momentos de crise e transgressão espaço. São histórias de três jovens diferentes, mas pa- de subjetivação. Mara e RAMOS, Tânia. Falas de gênero: teorias,
revelam-se muitas vezes como oportunidades para a recidas. Todas as três, Pecola, Macabéa e Claudia, são A mídia apresenta constantemente normas regula- análises, leituras. Ilha de Santa Catarina: Editora
criação, para a reinvenção. Se reconhecemos Claudia sujeitos marginais porém imersos na cultura envolvente doras dos corpos de homens e mulheres. Suas constru- Mulheres, 1999.
como alter ego da autora do romance, Toni Morrison, e poderosa das mídias. Nenhuma delas se reconhece ções discursivas são perpassadas pelas lutas de poder,
esta termina por produzir um discurso literário pró- nas imagens oferecidas, entretanto, cada uma reage preconceitos e contradições presentes na sociedade.
prio, deslocado da norma, reconhecido e premiado, a de forma particular no momento do consumo dessas Trata-se, assim, de um lugar privilegiado para a ob-
partir do sentimento de indignação presente desde a representações. Modelos são assimilados, aceitos, mo- servação crítica das relações sociorraciais na contem-
infância. dificados ou recusados. Pecola enlouquece, Macabéa poraneidade.

20 21
dossiê temático

Renato
Nogueira
Racismo e biopoder: Professor de filosofia e educação da
UFRRJ, lotado no Departamento de Edu-
um caso no cação e Sociedade do Instituto Multidisci-
plinar, coordenador do Grupo de Pesquisa
Rio de Janeiro Afroperspectivas, Saberes e Interseções
(Afrosin) e vice-coordenador do Curso de

contemporâneo Pós-Graduação Lato Sensu do Laborató-


rio de Estudos Afro-Brasileiros (Leafro). RESUMO ABSTRACT
O artigo trabalha com o pensamento político de Michel Foucault The article work with the political thought of Michel Foucault.
e tem como objetivo enriquecer o debate contemporâneo sobre Aiming to enrich contemporary debate about anti-black racism
o racismo anti-negro e seus diversos dispositivos, em especial no and its various devices, especially with regard to the technologies
Carla Cristina que diz respeito às tecnologias de segurança pública próprias do of biopower own public safety. In order to confront the anti-black
Campos da Silva biopoder. Para problematizar essa importante questão na socie- racism in contemporary Brazilian society through biopower, our
dade brasileira contemporânea, nossa análise incide sobre ações analysis focuses on police actions and speeches of the state. The
Estudante de graduação do Curso de Pe- policiais e discursos do Estado. O destaque vai para uma ação highlight is a police action that occurred on September 25, 2009 in
dagogia do Departamento de Educação policial que ocorreu em 25 de setembro de 2009 na cidade do Rio the city of Rio de Janeiro. The event ended with a black man killed
e Sociedade do Instituto Multidisciplinar, de Janeiro, evento que terminou com um homem negro morto by military police.
da UFRRJ, membro do Grupo de Pesquisa pela Polícia Militar.
Afroperspectivas, Saberes e Interseções
(Afrosin). Estuda e pesquisa sob orienta- Keywords: racism, biopower, violence, Rio de Janeiro.
ção do Professor Renato Noguera. Palavras chave: racismo, biopoder, violência, Rio de Janeiro.

fico e político. Nesse caso, o poder intervém e interfere exerce sobre a população, considerando o aumento e
INTRODUÇÃO sobre a população, por isso vai ser preciso que o Estado diminuição dos riscos e interdições dentro de uma so-
reúna de modo articulado uma série de saberes aptos ciedade para alguns por meio de critérios raciais.
a fazer medições, aferir constantes, fornecer e avaliar Com efeito, o biopoder é um modo de gestão que
Nosso artigo é resultado de uma pequena pesquisa so- dados estatísticos. Em outros termos, fazer com que inclui o genocídio da própria população, exercício
bre violência e racismo no Rio de Janeiro, investigação as tecnologias que servem para controlar e gerenciar racista sustentado por critérios técnicos e científicos.
que tem sido realizada pelo Grupo de Pesquisa Afro- a população funcionem em favor do Estado. O go- Foucault tomou como exemplo o nazismo. “Tem-se,
perspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), integrante verno investido da visibilidade das relações de poder pois, na sociedade nazista (...) uma sociedade que
do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (Leafro) da define o segmento populacional que deve receber um generalizou absolutamente biopoder” (FOUCAULT,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). tipo específico de tratamento, promovendo alguns e/ 2002, p.311). Nosso objetivo é problematizar, dentro
O trabalho reúne, dentro de uma leitura foucaultiana, ou contendo outros, visando um determinado funcio- dos pressupostos foucaultianos do biopoder, o racismo
análises do fenômeno de violência urbana e racismo, namento de um sistema social, tal como a repartição anti-negro. Uma leitura cuidadosa da obra de Foucault
problematizando a racialização da violência através ou concentração de determinados benefícios. É neste não deixa dúvidas: o racismo anti-negro não esteve na
do biopoder como modo de gestão estatal contem- contexto que o conceito de raça passa a funcionar como sua pauta de pesquisa. Nosso intuito é pensar com os
porânea dominante. O objetivo do artigo é fazer uma uma categoria-chave para o biopoder. Porque à medida instrumentos teóricos de Foucault. Dito de outro modo,
apresentação introdutória do conceito de biopoder e que o biopoder encerra um conjunto de tecnologias que não se trata, somente, de comentar seus textos. Mas, de
problematizá-lo no contexto do Rio de Janeiro, levando dizem respeito à vida, a segmentação da população em pensar a partir a pertinência do biopoder foucaultiano
em consideração alguns eventos de 1993 até 2009. A raças e o racismo passa a se constituir como um “me- para a compreensão do racismo anti-negro moderno e
pesquisa tem caráter introdutório, em busca de fomen- canismo fundamental do poder”. contemporâneo, especificamente o racismo na socieda-
tar um debate profícuo em torno da violência urbana e Para Foucault, a emergência do biopoder é condi- de brasileira na primeira década do século 21.
racializada no Rio de Janeiro contemporâneo. ção necessária para inserção do racismo nos mecanis-
mos estatais das sociedades modernas. De tal modo que Nossos tempos, assim, têm alicerçado muitas relações
“quase não haja funcionamento moderno do Estado hegemônicas de poder fundamentando-as em justifica-
que, em certo momento, em certo limite e em certas tivas e metáforas de caráter biológico e médico, onde o
BIOPODER E RACISMO condições, não passe pelo racismo” (FOUCAULT, 2002, que está em jogo é a defesa da ordem social e da vida,
ANTI-NEGRO NO p. 304). É importante frisar que o racismo está ligado contra os perigos biológicos, desagregadores e desorde-
RIO DE JANEIRO ao funcionamento de um Estado. “A função assassina nadores, que certos tipos de pessoas carregam consigo
do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado (CASTELO BRANCO, 2009, p.32)
Michel Foucault fez uma profícua pesquisa sobre funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOU-
os modos de gestão do poder nas sociedades ocidentais CAULT, 2002, p.306). Pois bem, conforme Foucault Um dos resultados do biopoder é a possibilidade
desde o século XVIII. Com os processos de instalação o que é específico no racismo moderno é o exercício de eliminação de criminosos. Por exemplo, as chacinas
do biopoder, a população passa a ser problema cientí- do biopoder. Ou seja, o direito de morte que o Estado são, em certa medida, efeitos do biopoder. A chacina

23
dossiê temático

da Candelária, na madrugada do dia 23 de julho de que ratificou o exercício do biopoder numa entrevis- economista Marcelo Paixão (veja gráficos em anexo), é um exemplo da profilaxia sociorracial na socieda-
1993, próximo às dependências da Igreja de mesmo ta. “Um tiro em Copacabana é uma coisa. Um tiro na encontramos um cuidadoso estudo que identifica os de brasileira, uma estratégia do biopoder. Com isso,
nome, localizada no centro da cidade: seis adolescentes Coréia (periferia) é outra. À medida que se discute efeitos assimétricos do biopoder entre negros (pretos não estamos dizendo que estelionato, porte ilegal de
e dois jovens sem teto foram brutalmente assassinados essa questão do enfrentamento, isso beneficia a ação e pardos). De acordo com o Mapa da Violência, em arma, furto e assalto são atividades ou opções para os
por policiais militares. Vale lembrar que eram todos do tráfico de drogas” (G1, 23/10/2007). O Secretário mais de 90% desses casos de homicídio as vítimas eram excluídos; mas, queremos problematizar a ausência de
negros. Apesar das especulações sobre o caso, e após estava defendendo a ação policial na Favela da Coréia homens e os mais atingidos foram os negros: se em titubeios, o prazo de negociações. Ou seja, a convicção
dezoito anos passados, as reais razões do desbunde de na semana anterior. A operação policial foi responsá- 2002 morriam 46% mais negros do que brancos, em de que a vida criminosa pode ser eliminada.
crueldade não são colocadas. A história hoje contada, vel pela morte de 13 pessoas, incluindo uma criança. 2007 a proporção cresceu para 108%” (CORREIO DO O biopoder tem um postulado, “se você quer vi-
como toda a história do Brasil, é passada com mui- A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) comentou BRASIL, 30/03/2010). A pesquisa Mapa da Violência ver, é preciso que o outro morra” (FOUCAULT, 2002,
tas lacunas, que a covardia dos homens os impede de que o governo do estado do Rio de Janeiro “assumiu 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil foi feita pelo p.305). O que está em jogo é que a “morte da raça ruim,
contar. Levantam-se hipóteses de vingança, por razões publicamente que, para o governo, o morador de classe sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz do Instituto Sangari. da raça inferior (...) é o que vai deixar a vida em geral
distintas, porém a mais próxima da verdade parece ser a média da Zona Sul recebe tratamento diferente e tem mais sadia” (Ibidem). Com efeito, no Rio de Janeiro,
que ainda hoje vemos nos noticiários. Policiais contra- direitos de cidadania que o trabalhador que mora na considerando as declarações do Governo no ano de
tados para fazer “limpezas” em certas áreas da cidade. favela não tem” (G1, 23/10/2007). 2007, as ações anteriores já citadas, ao lado do caso
Sete anos depois, Sandro Barbosa do Nascimento nos O biopoder é “uma espécie de estatização do bio-
O BIOPODER NO CASO em foco de 2009, a raça ruim é a população que vive
relembra da atrocidade cometida naquele dia, um ato lógico ou, pelo menos, uma certa inclinação (...) que SERGINHO nas periferias/subúrbios e favelas, o que aponta para a
violento que marca mais uma vez a história do Rio de se poderia chamar de estatização do biológico” (FOU- população negra.
Janeiro. Ainda no ano de 1993, no vigésimo nono dia CAULT, 2002, p.286). As tecnologias do biopoder e suas Em 25 de setembro de 2009, um evento na cidade Rio Serginho era o símbolo e a manifestação do que
do mês de agosto, novo massacre, agora na favela de técnicas são aplicadas conjuntamente por meio de uma de Janeiro merece especial atenção, porque se encaixa deve ser eliminado: homem, negro e jovem. Como já
Vigário Geral: cerca de cinquenta homens encapuzados gestão estatal que incide sobre a vida. Este modo de dentro do que foi proposto pelo nosso trabalho: o exer- foi dito, o Estado faz uso da “eliminação das raças e
invadiram o bairro durante a madrugada, arrombando gestão impele o Estado a gerenciar “a proporção dos cício do racismo através da emergência do biopoder. O a purificação da raça para exercer seu poder sobera-
casas e alvejando vinte e um moradores. É oportuno nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fe- ápice foi vivido por três pessoas: Sérgio Ferreira Pinto no” (FOUCAULT, 2002, p.309). Serginho foi mais um
registrar que todos eram pretos e pardos (negros). A cundidade de uma população” (FOUCAULT, 2002, Júnior, o Serginho, na época com 24 anos, negro e que exemplo. Afinal, “os Estados mais assassinos são, ao
motivação para os homicídios foi uma suposta vingan- p.290). Em entrevista publicada na página de notícias fugia após ter cometido o crime de assalto; Ana Cristina mesmo tempo, forçosamente os mais racistas” (Ibi-
ça pela morte de outros policiais. Em 15 de abril de do G1 em 24 de outubro de 2007, o então governador Garrido, com 48 anos em 2009, mulher branca e refém dem). A tese que o Estado racista defende é de que a
2005, no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Sérgio Cabral afirmou que “Você pega o número de de Serginho; major João Jaques Busnello, na ocasião preservação da ordem social estaria garantida à medida
vinte e nove pessoas foram mortas, novamente a notícia filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, com 39 anos, lotado no 6º BPM (Tijuca), homem bran- que a força de coerção eliminasse os criminosos. Os
foi dada e as investigações aconteceram, colocando sob Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na co que estava representando o Estado em sua extensão eliminados e elimináveis são, conforme os dados em
suspeita agentes de segurança pública. É forçoso lem- Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica coercitiva. anexo, jovens negros.
brar que mais de 80% dos mortos eram negros. de produzir marginal” (G1, 24/10/2007). Na época, o Serginho tinha o ensino médio completo, estava Serginho representou e encerrou o signo do que
O que estamos problematizando é o aparente pa- governador estava defendendo uma política de ligadura desempregado desde o nascimento da sua filha – com deve ser combatido. Numa ação filmada e aplaudida
radoxo de que forças de segurança do Estado, de modo de trompas para mulheres de bairros como a Rocinha, três anos na época – e tinha passagem pelo sistema pela população tijucana (moradores de um bairro de
extra-oficial, fazem exercícios de “limpeza sociorracial”. onde a população negra é superior a 50%. A analogia a prisional. Óbvio que não se trata de sugerir que sua classe média da zona norte), Serginho foi o vilão perfei-
Vale ressaltar que todas as crianças e adolescentes as- países africanos como contraponto a países europeus alternativa, o assalto, seja uma opção a ser considerada to. Afinal, o roteiro já estava lá antes da sua chegada. As
sassinadas na Candelária eram negros(as), isto é, raça denota a racialização do fenômeno da taxa de natali- diante das constantes negativas de inserção no mercado justificativas já estavam garantidas, se a opinião pública
é um critério para o genocídio autorizado ou não auto- dade. O discurso do Estado fluminense, assim como de trabalho. Ele já tinha sido usuário do sistema peni- retrucasse, solicitando um prazo de negociação maior,
rizado. Ou seja, o biopoder funciona numa via dupla. o seu planejamento e suas práticas, é um exercício do tenciário durante nove meses, motivos: porte ilegal de as bases para a réplica e tréplica tinham vindo anos
Por um lado, o direito de matar do Estado está assegu- biopoder. Uma análise de discurso do governador e do arma, estelionato e furto. As dúvidas são sobre o tempo antes, nas entrevistas do governador e do secretário de
rado no combate que é definido como guerra contra o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro no de negociação. O coronel Mário Sérgio, da Polícia Mi- Segurança do Rio de Janeiro no ano de 2007. O coronel
crime. Por outro, de modo desautorizado, a violência ano de 2007 aponta para uma perfeita adequação aos litar do Estado do Rio de Janeiro (PM), disse nos blogs Mário Sérgio fez questão de comparar com o caso do
é dirigida para uma parte da população que compar- mecanismos do biopoder, o que por sua vez implica http://marius-sergius.blogspot.com/ e http://pmerj.org/ ônibus 174 alguns anos antes, informando que “pou-
tilha a ascendência africana e um histórico de discri- numa estratégia racista. No caso do Estado do Rio de blog/: “Numa ocorrência com refém, o Estado, que deve par o lobo significaria sacrificar a ovelha” em http://
minação. Ou seja, o monopólio da violência é exercido Janeiro significa dizer que jovens negros têm chances preservar vidas, corre o risco de sacrificar a vida ino- marius-sergius.blogspot.com/. Serginho estava no meio
duplamente, dentro dos cânones legais e fora deles. Em significativamente maiores de morrer em conflitos ar- cente ameaçada se agir com vacilações a pretexto de de uma ação ilegal, disso ninguém duvida. Mas, a cons-
2007, o secretário de Segurança Pública do Estado do mados do que jovens brancos. No Relatório Anual das preservá-las, todas, a qualquer custo”. O Major Busnello trução social racista que insistia em marginalizá-lo foi
Rio de Janeiro era o delegado José Mariano Beltrame Desigualdades no Brasil 2007 – 2008, organizado pelo da PM foi o responsável pelo tiro certeiro. Essa ação decisiva para que 40 minutos fossem suficientes para

24 25
dossiê temático

que o comando da operação autorizasse o disparo. Nos- foucaultiana que opera como racismo antissemita para Razão de mortalidade por formas especificadas de homicídio da população residente acima de cinco anos de
sa observação é que o racismo foi o fator decisivo na o racismo anti-negro no Brasil. Alguns trechos de en- idade segundo os grupos de cor ou raça (branca e preta & parda) e sexo, Brasil, 2005 (por mil habitantes)
decisão que culminou com o tiro fatal do Major Bus- trevistas de representantes do poder público fluminense Homens Brancos Homens Pretos & Pardos
nello. Vale registrar que não estamos tratando de ações e ações policiais foram colocadas à luz dos operadores Ano Homicídaios por Homicídios por Outras formas de Homicídios por Homicídios por Outras formas de
individuais; o que está em jogo não é a ação isolada do conceituais foucaultianos, propiciando um entendi- arma de fogo arma branca homicídios arma de fogo arma branca homicídios
disparo. Estamos tratando de uma política de Estado, mento do racismo como uma política de Estado, um 1999 22,0 3,5 10,4 33,3 6,0 12,6
de um modo de gestão que ultrapassa o ato de apertar conjunto de políticas constitutivas do Estado brasileiro,
2000 27,2 3,9 8,4 42,6 7,5 9,9
o gatilho. especialmente na sociedade fluminense, em favor da
maximização da vida de alguns a partir do assassina- 2001 29,7 4,8 7,5 46,6 8,8 8,9
to direto, como em função a ampliação de riscos. Em 2002 29,0 4,7 8,1 48,4 9,4 9,9
outros termos, o difícil acesso aos programas e aten-
CONSIDERAÇÕES FINAIS dimentos de saúde, a baixa qualidade da escola públi-
2003 30,4 4,6 6,9 49,9 9,2 9,0
2004 26,4 4,5 5,8 46,1 8,7 7,9
ca, etc. Entre as ações policiais extra-oficiais e oficiais, 2005 24,2 4,6 5,0 45,0 9,4 7,1
O escopo deste trabalho é trazer algumas contribuições destacamos o “caso Serginho”. Um caso que exemplifica
Mulheres Brancas Mulheres Pretas & Pardas
para os estudos das relações étnico-raciais no Brasil no como as estratégias racistas do biopoder funcionam.
Ano Homicídaios por Homicídios por Outras formas de Homicídios por Homicídios por Outras formas de
que diz respeito à violência. Com este intuito, procura- Um olhar, uma perspectiva que busca sublinhar alguns
arma de fogo arma branca homicídios arma de fogo arma branca homicídios
mos descrever, partindo de um repertório focaultiano, dispositivos dos mecanismos de funcionamento do ra-
1999 1,7 0,5 1,1 2,0 0,8 1,2
como o biopoder funciona e seu vínculo indissociável cismo estatal na sociedade fluminense e, de modo mais
com o racismo. Um desafio é a transposição da pesquisa geral, na sociedade brasileira. 2000 2,1 0,7 1,0 2,6 0,9 1,1
2001 2,0 0,7 1,0 2,6 1,1 1,0
2002 2,0 0,7 1,0 2,5 1,0 1,1
2003 2,1 0,8 0,9 2,6 1,0 1,1
2004 2,0 0,7 0,9 2,3 1,0 1,0
Razão de mortalidade da população residente acima de cinco anos de idade por homicídio segundo
2005 1,8 0,8 0,9 2,5 1,1 0,9
os grupos de cor ou raça (branca e preta & parda), Brasil, 1999-2005 (por 100 mil habitantes)

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dossiê temático

Corpos negros
educados:
notas acerca do
movimento negro
de base acadêmica RESUMO
Neste ensaio, abordo a formação do movimento negro de base
RESUMÉ
Dans cet essai, j’aborde la formation du mouvement noir acadé-
acadêmica na década de 1970. Em seguida, discuto brevemente mique dans la décennie de 1970. Ensuite, je discute brèvement la
a constituição dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros entre os constituition des Noyaux d’Études Afro-Brésiliennes entre les années
Alex Ratts anos 1980 e 1990 e faço referência à criação dos Coletivos de 1980 et 1990 et fais de la référence à la création des Collectifs d’Étu-
Antropólogo. Professor dos cursos de Estudantes Negros/as na década seguinte, período concomitante diants Noirs dans la décennie suivante, période concomitante à la
graduação e pós-graduação em Geografia à discussão e implementação de Ações Afirmativas e das cotas discussion et mise en oeuvre d’Actions Affirmatives et des quotas
e do mestrado em Antropologia da Uni- raciais. Na conclusão, trato da entrada de “corpos negros educa- raciales. Dans la conclusion je reflète concernant l’entrée de « corps
versidade Federal de Goiás. Coordenador dos” no espaço acadêmico, com significativa atuação individual noirs instruits » dans l’espace académique, avec significative perfor-
do Laboratório de Estudos de Gênero, e coletiva. mance individuelle et collective.
Étnico-Raciais e Espacialidades do Ins-
tituto de Estudos Sócio-Ambientais da
Universidade Federal de Goiás. Palavras chave: negros, movimento negro acadêmico, intelec- Les Mots Clé: mouvement noir académique, intellectuels noirs,
tuais negros, corpos educados. corps instruits.

1974 e 1975, e para a Quinzena do Negro, organizada fera religiosa com grupos como os Agentes de Pastoral
INTRODUÇÃO na Universidade de São Paulo, em 1977, pelo sociólogo Negros e o Movimento Negro Evangélico.
Eduardo Oliveira e Oliveira. Este fenômeno exige algumas considerações acerca
Depois discorro brevemente acerca da formação da pluralidade interna do movimento negro. Nos pri-
O debate público acerca das ações afirmativas para de grupos acadêmicos nos anos 1980 e 1990, os cha- meiros anos da reorganização do movimento negro, Lé-
grupos sociais historicamente discriminados com foco mados Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) lia Gonzalez (1982) chama a atenção para a pluralidade
para as cotas raciais pode ser inserido numa discussão e, por fim, faço referência à criação de Coletivos de de organizações e para a sua unidade. Posteriormente,
acerca da relação entre educação e corporeidade. Há Estudantes Negros/as (CENs) nos anos 2000, período Joel Rufino dos Santos amplia para o passado e o pre-
um notório incômodo com os corpos negros, corpos concomitante à discussão e implementação de Ações sente a gama de entidades com base em levantamento
que pensam, que propõem esse debate, e com as cor- Afirmativas e das cotas raciais. A conclusão aponta para de Paulo Roberto dos Santos (1984):
poreidades negras que estão adentrando a universidade a entrada e permanência de corpos negros discentes
brasileira de forma coletiva e organizada. e docentes no espaço acadêmico, com significativa (...) a melhor definição de movimento negro é: todas
Os anos 1970, período considerado de surgimento atuação individual e coletiva, como portadores de um as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de
do movimento negro contemporâneo, são, para mim, projeto político acadêmico que tem memória e história. qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que
também a época de formação do que denomino de visavam à autodefesa física e cultural do negro], fun-
movimento negro de base acadêmica (RATTS, 2009). dadas e promovidas por pretos e negros (...). Entidades
Ele se caracteriza pela ação organizada de docentes e religiosas [como terreiros de candomblé, por exemplo],
discentes, por vezes de técnicos administrativos, que
A MOVIMENTAÇÃO NEGRA assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas
se afirmam negros/as no espaço acadêmico e, na con- NO ESPAÇO ACADÊMICO [como “clubes de negros”], artísticas [como os inúme-
temporaneidade, constituem grupos de atuação como ros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia], cultu-
os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) e os Desde a criação das universidades brasileiras, voltadas rais [como os diversos “centros de pesquisa”] e políticas
Coletivos de Estudantes Negros, dentre outros. para uma elite social, até o último quartel do século XX, [como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mo-
Neste ensaio, que advém de pesquisas e obser- a presença de acadêmicos/as negros/as é uma exceção bilização política, de protesto anti-discriminatório, de
vações que tenho realizado individualmente ou em que confirma a regra. Nos anos 1970, podemos dizer aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos
conjunto com outros/as pesquisadores/as acerca das que alguns/umas ativistas que participam da reorgani- artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda essa complexa
trajetórias de intelectuais ativistas negros (RATTS, zação do movimento negro contemporâneo, também se dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou
2007, 2009; RATTS & RIOS, 2010), primeiramente situam no interior de algumas universidades públicas cotidiana, constitui movimento negro. (SANTOS, J.
apontamos aquele que consideramos um momento e privadas e chegam a constituir grupos de estudo e de 1994b: p. 157).
inicial de constituição deste campo. Os destaques vãos intervenção neste âmbito, o que me leva a afirmar a Ampliar este quadro não aponta necessariamen-
para o Grupo de Trabalho André Rebouças formado existência de um movimento negro de base acadêmica te para uma compreensão, pois nem todos os grupos
pela historiadora Beatriz Nascimento e por estudantes ou mais simplesmente um movimento negro acadêmi- negros (ou de maioria negra) culturais, recreativos e
negros/as na Universidade Federal Fluminense entre co para o período, a exemplo do que se observa na es- religiosos conhecidos se identificam como movimento

29
dossiê temático

deste processo e ministrou cursos em vários estados ou seja, a pessoa negra passa a ter voz própria no mun-
brasileiros. É difícil estimar a proporção de pessoas gra- do acadêmico, como sujeito coletivo e como individua-
duadas entre os/a fundadores das entidades negras nos lidade forte (SANTOS, M. 1999). No contexto de uma
estados no período em foco. Parte significativa dos/as discussão acerca da noção de quilombo, estes novos
ativistas negros/as que fundaram as referidas entidades sujeitos são chamados de “ideólogos negros, teorica-
não tinham passagem pela universidade, tanto que em mente filiados às ciências sociais ou por elas influen-
algumas situações se instaura uma tensão em torno do ciados, preocupados em criar bandeiras de combate,
risco de embranquecimento dos/as acadêmicos/as ne- pontas de lança de ação, ideias arregimentadoras de
negro ou são reconhecidos pelos fóruns políticos ne- Esta citação é interessante por três razões: 1) capta a gros/as (RATTS, 2007; 2009). consciências e atuações políticas” (BORGES PEREIRA,
gros. O dilema entre cultura e política se instaura par- noção consensual do que significa movimento negro; No caso do movimento negro de base acadêmica, 1983b: XIV)1.
ticularmente aí, porém, no meu entendimento, trata-se 2) descreve em linhas gerais seus tipos organizativos e, nos anos 1970 e 1980, poucos grupos se identificaram Este é o período em que alguns/umas mestres e
de voltar-se para os critérios de identificação e para o 3) estabelece uma periodização para um movimento ou foram identificados como tal. É o caso do Grupo doutores/as que hoje são referência dos estudos de re-
campo e forma de atuação de cada grupo. Alguns auto- negro de tipo mais “político”. De fato, boa parte da lite- de Trabalho André Rebouças, criado na Universidade lações raciais e das culturas negras, se inseriam nas uni-
res como Márcio André O. dos Santos (2009) preferem ratura sobre este movimento social fala de uma “reno- Federal Fluminense, bem como do GTPLUN (Grupo versidades, sobretudo públicas, a exemplo de Kabengele
a expressão no plural – movimentos negros – como se vação” ou “retomada” dos movimentos negros no final de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Munanga, Muniz Sodré e Joel Rufino dos Santos, pos-
o singular previsse uma harmonia, assertiva com a qual dos anos 70. No entanto, outros trabalhos apontam que Negros) de São Paulo e do Grupo Negro da PUC-SP teriormente de Leda Maria Martins, Maria de Lourdes
não concordo, optando pela denominação de Gonzalez o “movimento negro moderno” data do início dos anos (SANTOS, I. 2006). Siqueira, Helena Theodoro Lopes, Henrique Cunha Jr.,
e Rufino e, mais recentemente, de Rios (2009). 30, transformando-se continuamente (...). (SANTOS, A transformação provocada no momento da atu- Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Outros/as inte-
J. Santos sintetiza o quadro do período: M. 2009: p. 237). ação relativamente conjunta de intelectuais ativistas lectuais negros/as ativistas traçam caminhos distintos,
negros/as ou de negros/as intelectuais como prefere como é o caso de Clóvis Moura, reconhecido pelos seus
Foi nos anos setenta que a luta organizada contra o ra- O autor provavelmente está tratando de entidades Sales Augusto dos Santos (2007), é pontuada por Rios pares nas universidades.
cismo desembocou, enfim, num movimento negro de como Frente Negra Brasileira (FNB), União dos Ho- (2009), que indica que este quadro se verifica em outros O movimento negro de base acadêmica se sinto-
amplitude nacional e claramente destacado de outros mens de Cor (UHC) e Teatro Experimental do Negro movimentos sociais na América Latina: niza com as outras organizações no enunciado da exis-
movimentos sociais e políticos. Aquilo que os próprios (TEN), que atuam na primeira metade de século XX tência do racismo no Brasil, no repensar a nação em
militantes negros convencionaram chamar de movimen- (DOMINGUES, 2007), período durante o qual não (...) os estudos que engrossam a produção sobre mo- plena ditadura militar, e pela busca de uma narrativa
to negro, no entanto, são na verdade cerca de 400 enti- identifico uma articulação negra de base acadêmica. vimento negro a partir dos anos 70 são feitos, em própria, de histórias e memórias negras. O cenário traz
dades, de diversos tipos, frouxamente articuladas entre Uma citação a mais de J. Santos contribui para a grande medida, por intelectuais negros, nacionais e também o quadro das relações entre pesquisadores/as
si – há quem prefira mesmo designá-lo por “movimen- percepção da entrada, ainda que reduzida e por vezes estrangeiros, engajados na luta anti-racista. Isso não brancos/as e negros/as que merece levantamentos e
tos negros”, no plural. Há desde organizações políticas superestimada, de jovens negros/as no meio acadêmico: foge, pois, a uma tendência da geração desse período: estudos mais aprofundados no que se refere a grupos
rígidas (como o Movimento Negro Unificado, o MNU, muitos militantes e simpatizantes de diversos movi- e eventos, a exemplo do GT “Temas e problemas da
a mais notória), até instituições semi-acadêmicas (como É preciso lembrar, em seguida, que os movimentos ne- mentos sociais tornam-se pesquisadores dessa forma população negra” da Associação Nacional de Pesquisa
o Grupo André Rebouças, na Universidade Federal Flu- gros são filhos do “boom” educacional dos anos setenta de ação coletiva em toda a América Latina, como foi e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) e no
minense), passando por centros autônomos de pesquisa – proliferação de faculdades particulares estimulada muito bem notado por Cardoso (1989) e Gohn (2004). tocante à relação entre orientadores/as brancos/as e
histórica e cultural do negro (como o Centro de Cultura pelo estado como solução para a “crise de vagas no ensi- No caso do movimento negro, esse fato torna-se mais orientandos/as negros/as.
Negra do Maranhão, por exemplo). (1994a: p. 94). no superior”, considerado, geralmente, um ponto crítico decisivo nos anos 80 em diante, pois na década ante- A trama das trajetórias pessoais e coletivas fica a
das relações sociedade-governo desde 1960. rior ainda podemos verificar uma transição, um mo- merecer maiores reflexões. Flávia Rios (2009), ao cote-
J. Santos se refere a um momento em que há pou- De fato, os jovens que fundam, nos anos setenta, enti- mento ainda mesclado pelos padrões de pesquisadores jar artigos de Lélia Gonzalez, Joel Rufino dos Santos e
cas entidades nacionais como o MNU, mas também a dades negras de luta contra o racismo, são invariavel- e perspectivas analíticas antigos, juntamente com as Hamilton Cardoso da primeira metade dos anos 1980,
União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), o Grupo mente desta geração universitária. Geração, primeiro, novas tendências tidas como críticas que ameaçavam deixa uma indagação e faz uma afirmação acerca destes
de União e Consciência Negra (fundado entre 1978 e do Rio e de São Paulo, onde a proliferação de faculda- aparecer. (p. 266-267) sujeitos: “Quem são eles? O que mais chama a atenção
1980, no seio da igreja católica, com a qual rompe logo des privadas foi maior, mas também dos estados, em nessa produção é o fato dos negros deslocarem-se do
depois) e os Agentes de Pastoral Negros (APNs), orga- que a fuga de candidatos brancos para centros mais Para o período em foco, na literatura específica, lugar de informantes dos pesquisadores estabelecidos
nização criada em 1983 (SANCHIS, 1999: p. 63-64). No adiantados de ensino abria vagas para negros – é o caso são conhecidos os nomes de Beatriz Nascimento, Lé- para a posição de ensaístas e intelectuais” (p. 266).
entanto, desde meados dos anos 1980, pode-se dizer por exemplo do Maranhão e do Rio Grande do Sul, lia Gonzalez, Eduardo Oliveira e Oliveira e Hamilton
que a ação em escala nacional do MNU e das orga- onde o grande número de “negros doutores” causa es- Cardoso. É preciso ressaltar que Abdias Nascimento,
nizações mencionadas é seguida pela regionalização e panto e gera atritos peculiares (1994a, p. 96). Guerreiro Ramos e Clóvis Moura são pensadores que
nacionalização de outras coletividades, a exemplo dos têm produção escrita desde décadas anteriores. Todos 1. João Batista Borges Pereira foi o orientador de Kabengele Mu-
encontros de negros Norte e Nordeste e dos encontros Além da irônica expressão “negros doutores”, que estes/as intelectuais, que acabam por se aproximar e, nanga, Marlene de Oliveira Cunha e Eduardo Oliveira e Oliveira,
nacionais de mulheres negras. remete à presença de licenciados/as e bacharéis no muitas vezes, atuar em conjunto, produziram um ponto que não concluiu a dissertação em virtude de sua morte. A dis-
Márcio André dos Santos comenta o trecho acima movimento, merece relativização esta afirmação de J. de inflexão em que o sujeito negro não deseja ter sua cussão racializada e ideologizada em torno da noção de quilombo
de J. Santos: Santos que, como intelectual reconhecido participou voz suplantada ou infantilizada (GONZALEZ, 1983), é abordada em Ratts (2003).

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dossiê temático

para que compreendamos na diversificação dos temas


Quadro 1 – Colaboradores/as do Grupo quais são as preocupações do grupo: história do negro
nas Américas e no Brasil, relações raciais, desigualdades
de Trabalho André Rebouças (1976 – 1978)
raciais, cultura negra e religiões afro-brasileiras.
Carlos A. Hasenbalg Sociólogo É relevante destacar, por meio das palavras do
Décio Freitas Historiador próprio Grupo de Trabalho André Rebouças, detalhes
Eduardo de Oliveira e Oliveira Sociólogo do contexto que aproxima a entidade da mobilização
a Contribuição do Negro na Formação Social Brasi- João Baptista Borges Pereira Antropólogo política negra de então, a exemplo da eleição do dia 20
UM PROJETO DE leira”. Neste encontro o grupo convida autoridades e José Bonifácio Rodrigues Historiador de novembro como data de referência positiva, pro-
especialistas na área das Ciências Humanas ligadas às Juana Elbein Antropóloga posta pelo Grupo Palmares de Porto Alegre e adotada
NEGRITUDE ACADÊMICA: questões relativas ao Negro brasileiro atual, dentro de Leni Silverstein Antropóloga consensualmente depois de 1978: “No ano de 1977, a
O GTAR NA UFF uma abordagem das relações raciais. Manuel Nunes Pereira Antropólogo 3ª. Semana de Estudos Sobre a Contribuição do Negro
A tentativa de realizar este trabalho foi iniciado [sic] em Maria Beatriz Nascimento Historiadora na Formação Social Brasileira foi organizada e trans-
Na cidade do Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, 1973 no Centro de Estudos Afro-Asiáticos pela profes- Maria Maia de Oliveira Berriel Antropóloga ferida para novembro em homenagem a ZUMBI, Rei
um grupo de pessoas se reúne aos sábados no Centro sora Maria Beatriz Nascimento e alguns jovens negros Michael Turner Historiador dos Palmares, tendo por objetivos os mesmos do ano
de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido interessados em formar um grupo de estudos. Peter Fry Antropólogo anterior” (p. 01).
Mendes e no Teatro Opinião, em Ipanema. Deste co- (...) O grupo tem por preocupação quanto aos temas Reginaldo Guimarães Historiador Cabe ressaltar a vontade de reconhecimento e o
letivo formam-se 3 grupos fluminenses: o Grupo de apresentados no decorrer das semanas de estudos a de Roy Glasgow Historiador processo de institucionalização da Semana de Estudos
Trabalho André Rebouças (GTAR), a Sociedade Inter- mostrar uma nova forma de abordar as Relações Raciais Vicente Salles Antropólogo e do próprio Grupo de Trabalho André Rebouças que
nacional Brasil África (SINBA) e o Instituto de Pesqui- concernentes ao negro brasileiro enquanto raça e de sua Yvone Maggie Alves Velho Antropóloga vem por intermédio de uma portaria do Ministério de
sas das Culturas Negras (IPCN).2 Hanchard (2001: p. implicação no seu todo social (GTAR, 1978: p. 01). Fonte: GTAR, 1976, 1977, 1978. Educação e Cultura de setembro de 1978:
110), que não menciona o GTAR, entra no mérito das Devido a este reconhecimento, o grupo de alunos ne-
divergências entre IPCN e SINBA - que ele traduz como Estando situado no espaço acadêmico, chama a Naquele período, além de estudiosos renomados gros sentiu necessidade de organizar-se juridicamente
americanistas e africanistas - e registra a continuidade atenção a precisão do propósito teórico e político do como João Baptista Borges Pereira, Nunes Pereira e Vi- com o nome de “Grupo de Trabalho André Rebouças”
da primeira entidade até os dias de hoje. GTAR, nem sempre nítido aos olhos contemporâneos. cente Salles, aparecem dois intelectuais com perspectiva aglutinando intelectuais, ex-alunos e alunos negros que
Participante das referidas reuniões, Beatriz Nasci- negra que se tornam referências para os/as jovens do participam das semanas de estudos sobre a contribui-
mento conclui sua graduação em História na Univer- Na realização das semanas de estudos o grupo de alunos GTAR: Beatriz Nascimento (1974a, 1974b), que pensa ção do Negro na Formação social Brasileira.
sidade Federal do Rio de Janeiro e se dedica pesquisar negros universitários tiveram como propósitos [sic]: in- o estudo das relações raciais e a produção historiográ- A proposta do de “Grupo de Trabalho André Rebouças”
elementos de continuidade na organização social da troduzir gradualmente na Universidade créditos especí- fica; e Eduardo Oliveira e Oliveira (1974, 1977), que é a de manter uma continuidade do trabalho desenvol-
população negra dos quilombos do período escravista, ficos sobre as Relações Raciais no Brasil, principalmente pesquisa acerca da ideologia racial e dos movimentos vido na universidade, cujos resultados fortaleceram os
como parte de sua especialização também em história nos cursos que abrangem a área das Ciências Humanas; negros, além de escrever sobre a necessidade de uma objetivos destes alunos negros de continuar mantendo
na Universidade Federal Fluminense. Participando das tentar uma reformulação do programa de Antropologia produção acadêmica. São dois dos/as intelectuais mais uma linha de atuação acadêmica que os beneficiou du-
reuniões acima mencionadas, ela estimula a criação de do Negro brasileiro no Instituto de Ciências Humanas reconhecidos/as pelo movimento negro emergente nos plamente, ou seja, por um lado, no sentido de conhe-
um grupo de estudos do qual participam sua irmã Rosa e Filosofia (já foi reformulado); atualizar a bibliografia estados de Rio de Janeiro e São Paulo (CUNHA JR., cimento científico, e por outro lado no sentido de se
Virgínia Nascimento, estudante de Geografia, sua amiga no que diz respeito ao assunto adotado pelo corpo do- 2002: p. 22). preparar para uma ação voltada para a comunidade de
e companheira de trabalho de campo, Marlene de Oli- cente e discente da Universidade e estabelecer contato Alguns intelectuais brancos/as (ou não negros/as) onde procedem (GTAR, 1978: p. 2).
veira Cunha, que cursa Ciências Sociais, e outros colegas entre professores que desenvolvem teses sobre Relações iniciam sua carreira acadêmica naquele momento, a
das áreas de Humanidades, mas também das Exatas. raciais fora da UFF com o corpo docente do Instituto exemplo de Maria Maia de Oliveira Berriel, então di- O GTAR se constituiu como um projeto de ne-
Nos seus documentos, os membros do GTAR nar- de Ciências Humanas e Filosofia (GTAR, 1978: p. 01). retora do ICFH-UFF, que refaz uma bibliografia sobre gritude acadêmica, formando acadêmicos ativistas,
ram seu processo de formação e deixam explícitos seus o negro para uma das “semanas de estudos” (BERRIEL, alguns/umas dos/as quais se tornaram pesquisadores/
objetivos acadêmicos: Definido como um “grupo de alunos negros uni- 1977) e desenvolve sua dissertação acerca de preconcei- as das relações raciais, a exemplo de Marlene de Oli-
versitários”, o GTAR estava, na expressão do próprio to e ideologia racial no Brasil (BERRIEL, 1975). Desta- veira Cunha e posteriormente Andrelino de Oliveira
Atualmente, um grupo de alunos negros dos cursos de grupo, “em busca de espaço” (GTAR, 1982). Para co também Carlos Hasenbalg cujos estudos de desigual- Campos. Na dissertação de Cunha (1986) acerca da
História, Geografia, Ciências Sociais, Química e Física tanto, fez articulações internas na UFF e com pesqui- dades raciais despontam àquela época3. A bibliografia linguagem gestual no candomblé Angola, ela indica
da Universidade Federal Fluminense organiza um en- sadores/as sobretudo do Sudeste. Cabe ressaltar que dos/as colaboradores/as do GTAR também contribui que a escolha do tema se dá em meio a seu curso de
contro que denominou de “Semana de Estudos Sobre cada convidado/a colaborava com a produção de uma Ciências Sociais na UFF, o que a leva à organização das
comunicação que era publicada em apostila, distribu- 3. Como contraponto deste quadro merece comentário a postura
“Semana de Estudos” e à criação do GTAR com colegas
ída a quem participava do evento. Um quadro dos/as atual de Yvonne Maggie e Peter Fry contrários à adoção da variá- e amigos/as. Na introdução do seu trabalho, ela reflete
2. Este processo está em relatos de ativistas negros/as fluminen- intelectuais nacionais e estrangeiros/as que colabora- vel raça nas políticas identitárias e nas políticas públicas, particu- a situação de pesquisadora negra com um orientador
ses do período (CONTINS, 2005; ALBERTI & PEREIRA, 2007). ram com o GTAR entre 1976 e 1978 contribui para que larmente na implementação de ações afirmativas para a população branco, tensão que em grande parte se dissolve na ami-
Acerca da SINBA, ver o artigo de Joselina da Silva (2009) aquilatemos a amplitude do projeto acadêmico. negra, sobretudo da reserva de vagas para estudantes negros/as. zade construída ao longo da pesquisa (p. 11-12).

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dossiê temático

O seu ponto de partida com o “objeto de estudo” é proposta por quem era objeto de estudo de médicos, Para ele e para ela os/as estudantes e intelectuais particular ao cientista negro), manter uma neutralidade
vem de um circuito próximo, de seu ambiente familiar folcloristas, antropólogos, sociólogos e que fora objeto negros/as não devem se distanciar das coletividades ne- valorativa” (OLIVEIRA, 1977, p. 26).
com parentes e amigos/as que são lideranças religiosas: de intervenção de mercadores, latifundiários, religio- gras, quaisquer que sejam e onde quer que estejam: bai- Para o autor a experiência deve balizar a constru-
“percebi que havia uma forte identificação entre mim sos, senhoras e senhores de toda ordem. les Black, escolas de samba, terreiros, favelas. Para ele, ção de uma ciência para e não tanto sobre o negro, ou,
e o grupo que pesquisava. Sentia que fazia parte do Cabe destacar que na Quinzena do Negro aconte- o nome construído e a titulação são importantes, mas por exemplo, de uma sociologia, historiografia, eco-
mesmo processo” (p. 18). Os escritos de Beatriz Nas- ce uma mesa redonda com estudantes afro-brasileiros deve-se ter o cuidado de não se submeter ao segmento nomia ou antropologia negras, como reação e como
cimento e o estudo de Marlene Oliveira Cunha – que com a participação de Rafael Pinto, que cursava Ci- racialmente hegemônico: “Hoje, depois de dez anos ou construção face ao quadro das ciências humanas no
aborda corpo e linguagem – exemplificam uma parte ências Sociais na USP, Hamilton Cardoso, estudante doze de trabalho, já me mandam entrar e sentar, porque tocante aos estudos de relações raciais7. O autor pros-
do projeto político acadêmico do Grupo de Trabalho de jornalismo, e mais dois nomes mencionados como eu sou Eduardo Oliveira e Oliveira que tenho um título, segue propugnando a ideia de uma “ciência negra” e,
André Rebouças. Márcio e Andrada. Na plateia há militantes de uma que não pretende ser doutor, que não se branqueou, por conseguinte, de “cientistas negros”:
geração anterior, pesquisadoras e pesquisadores das mas que usa disso como instrumento de trabalho para
culturas negras e das relações raciais. se afirmar como negro e ajudar outros negros a se afir- Os cientistas negros, influenciados pessoalmente por
Como parte do evento, Beatriz Nascimento profere marem como tal”6. sua experiência de negros, devem estabelecer uma in-
“NÓS TEMOS DIREITO A ESSA a conferência Historiografia do Quilombo. Ela era ami- Em termos de faixa etária, estes/as intelectuais não vestida “perceptiva”, tentando conhecer os fenômenos a
INSTITUIÇÃO”: A QUINZENA ga de Eduardo Oliveira e Oliveira com quem já havia são tão jovens: Beatriz está com 33 anos, Eduardo tem serem estudados como sujeito/objetos que são de suas
DO NEGRO NA USP trabalhado nas “semanas de estudos” do GTAR na UFF. 49 e Hamilton 24 anos. Têm artigos e ensaios publicados abordagens. Convém também lembrar que a ciência
Na conferência a pesquisadora e ativista demarca sua e participam de circuitos intelectuais e políticos de rela- que fez do negro um objeto de estudo, jamais pensou
Em outubro de 1977, o então mestrando em Antro- posição face ao que se discutia e produzia na historio- tiva visibilidade para o período. Nos estados de Rio de que este objeto questionaria sua suposta “objetivida-
pologia na USP, Eduardo Oliveira e Oliveira, organiza grafia brasileira: “Quando cheguei na universidade a Janeiro e São Paulo organizam debates e outros eventos de” quando detivesse os instrumentos necessários para
a Quinzena do Negro naquela instituição. O evento, coisa que mais me chocava era o eterno estudo sobre o em que acadêmicos/as e ativistas problematizam suas avaliá-la (1977, p. 26).
do qual existem registros impressos e audiovisuais, é escravo. Como se nós só tivéssemos existido dentro da demandas de formação e de atuação social. São questio-
composto por mesas, conferências e exposição, com nação como mão de obra escrava, como mão de obra nadores/as qualificados/as do racismo brasileiro. Con- O interesse do sociólogo e ativista, neste caso, é
divulgação na imprensa paulista.4 É necessário lembrar pra fazenda e pra mineração” (NASCIMENTO, 1989). tudo, não falavam em uníssono, têm individualidade. a formação e o posicionamento do intelectual negro:
que o evento ocorre durante a ditadura militar. O que ela propõe não é uma simples troca de termos, Em artigo de 1974, Beatriz Nascimento propugna
No texto/manifesto do evento, Oliveira indica que de “escravo” por “negro”. A escravidão de africanos e “uma história do homem negro” em que fosse colocada Em que medida o “intelectual negro” deve se libertar
um dos propósitos é “revelar alguns brasileiros que têm africanas por sua extensão espacial e temporal mar- também a subjetividade do pesquisador/a: “Devemos dos clichês relativos ao problema negro? O intelectual
contribuído para a história pátria (...) – e que têm per- cou indelevelmente a experiência negra na África, na fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando lato-sensu é um homem que contribui com idéias ori-
manecido à margem desta história, porque seus cro- América, na Europa. Mas a interpretação do “indivíduo nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos comple- ginais, novas descobertas e informações no conjunto
nistas, aqueles que com ela se identificam, não tiveram escravizado” como um ser coisificado é um ônus ex- xos, estudando-os, não os enganando” (NASCIMEN- já existente do conhecimento. Um “intelectual negro”
até agora os meios exigidos para que se tornem arautos cessivamente pesado, que dificulta a compreensão do TO, 1974b, p.44). Por seus escritos, presumo que não é uma espécie à parte. Nos ombros dele recai uma ou-
dessas verdades” (OLIVEIRA, 2001, p. 287). O autor e indivíduo negro como pessoa. se trata de fazer uma auto-análise em todos os textos e tra tarefa, a de descolonizar sua mente de maneira que
ativista identifica as difíceis condições da formação de A ênfase na diferença questiona a subsunção do sim trazer elementos da reflexividade. possa guiar outros intelectuais e estudantes na procura
um pensamento negro: a falta de meios para produção “negro” ou da “raça” na variável classe ou no rol de No mesmo ano, Eduardo Oliveira e Oliveira pu- da liberdade. (IDEM, p. 26, grifo do autor).
da verdade. Por verdade, entendo não “A Verdade” ab- outras identidades, perspectiva com a qual ainda nos blica uma resenha crítica do livro de Carl Degler (Nem
soluta que paira acima dos seres humanos, mas a vonta- debatemos. À semelhança de Oliveira, o propósito de preto nem branco: escravidão e relações raciais no Brasil O autor segue apontando o que seriam para ele os
de de verdade, posicionada, voz própria que emerge em Nascimento é o reposicionamento da pessoa negra e nos Estados Unidos), apontando a dificuldade de en- elementos deste processo que deve levar a uma trans-
territórios discursivos. Voz de pensadores/as negros/ como sujeito na ocupação de espaços sociais, no caso, tendimento da desigualdade preto/branco pelo “mu- formação social: “O cientista negro precisa se tornar
as. “Voz que vem do interior”, como indico em outro o acadêmico. Na intervenção, após a conferência de Be- lato” face ao mito da democracia racial (OLIVEIRA, um teórico e precursor da mudança social, a partir de
artigo (RATTS, 2003). atriz Nascimento, Eduardo Oliveira e Oliveira enuncia 1974). Na comunicação intitulada Etnia e compromisso seu próprio grupo, para o que necessita, além de enga-
Nesse sentido, Eduardo Oliveira e Oliveira sinte- mais um aspecto do projeto político: “Nós temos direito intelectual, datada do mesmo ano da Quinzena do Ne- jamento pessoal, desenvolver novas técnicas e perspec-
tiza o propósito maior do evento: “um aspecto que nos a essa instituição. Sobretudo essa aqui [a USP] que é gro, o autor faz algumas indagações acerca de quem tivas” (IDEM, p. 26).
parece da maior relevância – revelar o negro como cria- pública. E o fato de fazer [a Quinzena do Negro] den- é (e de quem pode ser) intelectual no Brasil e da ne-
dor e criatura. Numa palavra: Sujeito” (IDEM). Vemos tro dessa universidade é porque a universidade assume cessidade de afirmação do intelectual negro, sem ne- 7. Oliveira relata que defendera esta proposição em vários eventos,
que a constituição de um lugar de fala enquanto sujeito a sua possibilidade de universidade para formar mais gar sua condição social: “Vivemos num mundo onde inclusive na 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o
negros”5. a cor, a etnicidade e a classe social são de primordial Progresso da Ciência (realizada em São Paulo, de 6 a 13 de julho
4. Fez parte da semana uma exposição organizada por Marian- importância, sendo assim impossível ao cientista (e em de 1977), no simpósio “Brasil Negro” por ele coordenado, por meio
no Carneiro da Cunha, então diretor do Museu de Arqueologia e 5. Transcrição do filme Ori. Direção de Raquel Gerber. Angra fil- de uma comunicação intitulada “De uma ciência Para e não tanto
Etnologia da USP. mes, 1989. 6. Idem. Sobre o negro” (IDEM: p. 22).

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Oliveira se referencia em uma assertiva de Roger realizam projetos de extensão e de qualificação de pro- tem para a população negra e também porque podem anulado, tem que passar despercebido” (2001, p. 115).
Bastide que merece citação: de que “o sábio que se de- fessores/as para a educação das relações étnico-raciais abrigar discentes de outras universidades, do ensino Para a autora, este afastamento do corpo como assunto
bruçar sobre os problemas afro-brasileiros encontra- (no espírito da lei 10639/03) e elaboram propostas de médio ou não se circunscrever ao público estudantil. escolar e acadêmico, implica, de certo modo, no dis-
-se, pois, implicado, queira ou não em um problema ações afirmativas para a população negra. Desde 2001 surgem: Enegreser, na UnB em Brasília; tanciamento de temas que remetem à subjetividade, à
angustiante” e que deve proceder “no decorrer de sua A presença de professores/as e estudantes negros/ Coletivo de Estudantes Negros e Negras Beatriz Nasci- emoção, à paixão:
pesquisa, uma outra pesquisa, paralela, sobre ele mes- as se torna mais organizada e articulada. São reali- mento (CANBENAS), na UFG em Goiânia; na Bahia,
mo; uma espécie de auto-psicanálise intelectual, e isto, zados eventos como o I Encontro de Docentes, Pes- o Núcleo de Estudantes Negras e Negros na UFBA e o Não há muito ensino ou aprendizagem apaixonada
seja ele branco ou negro” (BASTIDE apud OLIVEIRA, quisadores e Pós-Graduandos Negros, na Faculdade de UBUNTU – Núcleo de Estudantes Negros e Negras na na educação superior hoje em dia. Mesmo onde estu-
1977, p. 27). O autor conclui: “O negro ‘intelectual’, en- Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista UNEB, o Coletivo Denegrir na UERJ, Rio de Janeiro. dantes estão desesperadamente desejando ser tocados
curralado na sua condição primeira e primeva de raça, (UNESP) - Campus Marília, em 1989, e o Seminário Neste sentido, ainda que contem com o apoio de um/a pelo conhecimento, professoras e professores ainda têm
sujeito/objeto de seu trabalho, não tem outra opção. Nacional de Universitários Negros, em Salvador, no ou outro/a docente, os Coletivos de Estudantes Negros medo do desafio, ainda deixam que suas preocupações
Não está lidando com um assunto (é preciso que ele ano de 1993, que tem como tema “A universidade que marcam com expressão própria o cenário de algumas sobre perda de controle prevaleçam sobre seus desejos
saiba), mas uma causa” (IDEM, p. 27, grifos do autor). o povo negro quer”. Este processo culmina em 2000, instituições de ensino superior, particularmente as uni- de ensinar.
Para o/a intelectual negro/a ativista a escolha do em Recife, na UFPE, com a organização do I Con- versidades públicas. Em 2004, no III Congresso Brasi- Ao mesmo tempo, aqueles e aquelas de nós que ensina-
campo de estudos e pesquisas vem acompanhada da gresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, no qual é leiro de Estudantes Negros há a tentativa de criação de mos os mesmos velhos assuntos das mesmas velhas ma-
reflexividade de suas condições e de seus posiciona- criada a Associação Brasileira de Pesquisadores Ne- uma Associação Nacional de Estudantes Negros que neiras estamos, muitas vezes, intimamente aborrecidos
mentos. O sujeito “faz parte da matéria investigada” gros (ABPN), proposição do engenheiro e educador não logra efeito. – incapazes de reacender paixões que um dia podíamos
(NASCIMENTO, 1978, p. 41). Afirmar-se racialmente Henrique Cunha Jr.. Como participantes deste cená- Os NEABs, presentes em todo o território nacio- ter sentido (hooks, 2001, p.122-123)
na academia não implica em ter certezas inquestioná- rio, estão graduandos/as e pós-graduandos/as que nal, em instituições de ensino superior, públicas e pri-
veis ou facilidades no estudo das relações raciais. Este posteriormente assumem a docência e participam da vadas, marcados pela presença de intelectuais negros/as Temas ligados à questão étnico-racial, mas tam-
é um complexo processo de orientação, balizamento consolidação e criação de NEABs, situação na qual me ativistas e qualificados como núcleos de ensino, pesqui- bém ao gênero e à sexualidade, por exemplo, remetem
e formação. incluo, o que me permite tecer considerações como sa e extensão, nem sempre se definem e são reconheci- ao campo da subjetividade, e, para alguns/umas pes-
observador participante. dos como grupos negros, posto que podem contar em quisadores/as negros/as são apaixonantes, comoventes,
Criado em 2004, no III Congresso Brasileiro de maior ou menor grau com a presença de pesquisadores sem necessariamente incorrer em sentimentalismo.
Pesquisadores Negros, realizado na UFMA em São Luís e professores/as de outros segmentos étnico-raciais. Os Sem essencialismo, o corpo é uma das principais
CORPOS DOCENTES do Maranhão, o Consórcio de NEABs e grupos correla- Coletivos de Estudantes são identificados prontamen- referências da raça (mas também do gênero e da sexu-
E DISCENTES NEGROS: tos conta inicialmente com a participação de 16 grupos te como grupos negros e demonstram a preocupação alidade). O corpo é “educado” e na educação formal
OS NEABs E OS CENs e hoje soma 76 núcleos8. Alguns/umas pesquisadores/ com sua qualificação profissional e o ativismo, posto temos corpos – docentes e discentes, mais usados como
as dos NEABs, concentrados/as na área das Humani- que muitos/as realizam seus trabalhos de conclusão de metáforas, distantes do significante corpóreo. Professo-
dades, tornam-se referência no campo dos estudos das curso no campo das relações raciais, encaminhando-se ras/es e estudantes têm corpo (hooks, 2001), são corpos
O quadro desenhado por ativistas negros/as no espaço relações raciais, muitas vezes abordados na perspectiva para a pós-graduação, defrontando-se por vezes com a em processo de educação, são corpos educados. Corpos
acadêmico nos anos 1970 reverbera no Rio de Janeiro da interseccionalidade com as variáveis classe, gênero falta de orientação nas suas áreas de formação. Ambas docentes e discentes.
e em São Paulo, como é o caso da influência de Beatriz e outras. Um processo de internacionalização dos/as as coletividades estão a merecer uma observação de Nas escolas e nas universidades transitam, se en-
Nascimento e Eduardo Oliveira e Oliveira e também de pesquisadores/as negros brasileiros/as está em curso. maior acuidade. contram e se confrontam corpos femininos e masculi-
Lélia Gonzalez, Joel Rufino dos Santos e outros/as que Iniciativas dos/as ativistas preocupados/as com o nos, negros e brancos, heterossexuais e homossexuais
também percorriam o país num processo de formação acesso à universidade se inserem neste quadro, a exem- em construção e, em algumas situações, sem definição
para além dos espaços educação formal contando com plo da Cooperativa Stive Biko de Salvador e dos Cur- de raça, gênero ou orientação sexual. Nem sempre
intelectuais “locais”. sinhos Pré-Vestibulares para Negros e Carentes (SAN-
CORPOS NEGROS EDUCADOS: acontece o necessário e adequado reconhecimento das
Nos anos 1980, são criados alguns Núcleos de Es- TOS, R., 2006). Neste sentido, observa-se por todo o UMA DIGRESSÃO A TÍTULO identidades, das diferenças, das culturas, dos corpos
tudos Afro-Brasileiros, protagonizados por mestres e país um processo de discussão e implementação das DE CONCLUSÃO diferenciados (racializados, etnicizados e generificados)
doutores negros/as e com a colaboração de intelectuais Ações Afirmativas para a população negra e particu- e também das incertezas, das indefinições, das trans-
brancos/as e outros. É o caso do NEAB-UFAL, NEAB- larmente das cotas raciais, a partir sobretudo de 2001. formações corpóreas.
-UFMA, CEAB-UCG (PUC-GO). Outros são criados Neste contexto surgem Coletivos de Estudantes A expressão que dá título a este artigo advém da relei- Os corpos racializados estão no currículo, nos li-
na década seguinte: NEAB/UFSCar, PENESB-UFF, Negros (CENs) que se estendem por vários estados, tura do título e do conteúdo do livro organizado por vros didáticos e paradidáticos (tanto nos textos quanto
NUPE-UNESP e NEN-SC. mantendo uma posição de crítica e de participação Louro (2001): O corpo educado. Nos espaços escolares nas ilustrações), nos vídeos, nas músicas, na educação
Tais coletivos podem ter sido formados por uma em relação às instituições de ensino superior nas quais e acadêmicos é rara a discussão acerca da corporeida- física, nas apresentações artísticas. Neste âmbito, é pos-
quase totalidade de pesquisadores/as negros/as ou se situam, posto que fazem pressão pelas Ações Afir- de dos segmentos que os compõem, pois parecem ser sível identificar e confrontar estereótipos ou imagens
contar com a colaboração de estudiosos/as de outros mativas e por políticas do conhecimento que se vol- a-corporais e, por extensão, sem lugar para as subjeti- ardilosas acerca das pessoas negras que permeiam toda
pertencimentos étnico-raciais. Vários NEABs se cons- vidades e para as trajetórias pessoais e coletivas, como a sociedade, segundo Edimilson de Almeida Pereira e
tituem como “territórios negros no espaço branco” 8. http://br.groups.yahoo.com/group/consorcio_neabs/attach- afirma bell hooks: “o mundo público da aprendiza- Núbia Pereira Gomes (2001). Os corpos racializados de
acadêmico, se tornam grupos de estudos e pesquisas, ments/folder/1036087237/item/list gem institucional é um lugar onde o corpo tem de ser professores/as, gestores, funcionários/as e estudantes

36 37
dossiê temático

estão presentes nos vários ambientes da escola: nos cor- CUNHA, Marilene Oliveira. Em busca de um espaço:
redores, nos pátios, nas copas e cozinhas, mas, sobretu- a linguagem gestual no candomblé de Angola. Dis-
do, e de maneira frequente e demorada na sala de aula. sertação de mestrado em Antropologia Social. São
Na sociedade brasileira, de passado escravista e Paulo, USP, 1986.
presente racista, o corpo negro é interpretado total- CUNHA JR. Henrique. Contexto, antecedente e prece- PEREIRA. Amauri Mendes & SILVA, Joselina da RATTS, Alex. & RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Pau-
mente subdividido, como nos indica Nelson Inocêncio dente: o curso pré-vestibular do Núcleo de Cons- (org’s). Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre lo: Selo Negro, 2010.
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dossiê temático

RELAÇÕES ÉTNICO-
-RACIAIS NO BRASIL:
PRETINHO (A) EU? RESUMO abstract
DISCUTINDO O No presente artigo, começaremos por expor os elementos teóri-
cos mais gerais sobre pertencimento étnico, cor/raça nos censos
In this paper, we will begin by exposing some theoretical general ele-
ments about ethnical belongness, color/race in the Brazilian census,
brasileiros, a classificação de “cor ou raça” do Instituto Brasileiro the classification of “color or race” of the Instituto Brasileiro de Geo-
PERTENCIMENTO ÉTNICO Ralime Nunes Raim
de Geografia e Estatística - IBGE, através de uma ressignifica-
ção crítica dos conceitos presentes nas discussões sobre relações
grafia e Estatística – IBGE, through of a critical reinterpretation of
those concepts present in the discussions about relationships ethnic-
étnico-raciais no Brasil. Discutiremos ainda sobre diferença, pre- race in Brazil. Still, on this research, we will discuss about differences,
Especialista em Desenvolvimento Social
conceito e discriminação no espaço escolar. Pretendemos que esse preconception and discrimination in school area. It’s intended that
“Eu acordo e vou dormir todos os dias tendo consciência de que sou e em Sociologia. Bacharela e licenciada
texto se torne objeto de discussão e análise da questão de raça no this article represents a discuss and analysis’s object of question of
negro. Vivo num grande estado de alerta”. Bukassa Kabengele1 em Ciências Sociais. Professora de His-
Brasil, que, não podemos negar, envolve elementos de identidade, race in Brazil, that, we can’t deny, involve elements of identity, ap-
tória e Sociologia na Educação Básica;
pertencimento e percepção. O referencial teórico adotado para pertain and perception. The theoritical used to review bibliography,
coordenadora do Programa Diversidade
revisão bibliográfica, como veremos, constituiu-se dos estudos de as we will see the long in the text, it constituted to studies by: Fúlvia
Étnico-Racial na Educação, da Secretaria
Fúlvia Rosemberg, Rafael Guerreiro Osório, Stuart Hall, Antônio Rosemberg, Rafael Guerreiro Osório, Stuart Hall, Antônio Sérgio
Municipal de Educação de Montes Claros/
Sérgio Alfredo Guimarães, Kabengele Munanga, dentre outros. Alfredo Guimarães, Kabengele Munanga, among others.
MG. Experiência em Educação para as
Relações Étnico-Raciais (leis 10.639/03
1. O ator e bailarino Bukassa Kabengele é filho de Kabengele e 11.645/08). Como pesquisadora, desen-
Palavras chave: relações étnico-raciais, pertencimento étnico, Keywords: relationships ethnic-race, belong ethnical, identity,
Munanga - antropólogo e intelectual negro do Zaire (Congo) volve estudos desde 2005, sobre a Ques-
identidade, classificação racial, cor/raça. race classification, color/race.
que atualmente trabalha na USP. tão Cor/Raça no Censo Escolar do MEC.

ainda não conseguimos ter uma resposta satisfatória à Não há, portanto, uma identidade natural, inata,
INTRODUÇÃO pergunta: o que é identidade?” mas sim, um conjunto de significados baseados nas di-
Sendo assim, compreender o termo identidade em ferenças. “Do ponto de vista antropológico ou socioló-
seus multifacetados aspectos, é, na realidade, uma tare- gico, as identidades são todas construídas” (PAULA,
A discussão da questão de raça no Brasil envolve ele- fa difícil, por isso trataremos do termo aqui, de maneira 2005, p.191) e essa construção identitária é marcada
mentos de atribuição de identidade, pertencimento e sucinta, remetendo-o à ideia de percepção e pertenci- pelos traços culturais, como a língua, a religião, os
percepção. Quem ratifica a afirmativa acima é o próprio mento coletivo. rituais, os comportamentos alimentares, as tradições
IBGE. De acordo com esse Instituto, em seus critérios De acordo com Jacques (1998, p.149), são vários populares.
de classificação racial, a denominação é de “cor ou raça” os sentidos atribuídos, popularmente, ao termo iden- No entanto, na construção da identidade não se
e não apenas de “cor” ou apenas “raça”, porque as cate- tidade, o que o torna “sujeito a inúmeras variações”. pode levar em conta somente o aspecto cultural. Para
gorias que englobam podem ser entendidas de forma Além disso, ele sustenta que “os estudos dessa temática entender a construção da identidade, é importante con-
bastante diversa, envolvendo elementos de atribuição costumam ser classificados como identidade pessoal siderar, também, os níveis sócio-político e histórico de
de “identidade” e de “percepção”. (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade so- cada sociedade. A identidade vista de uma forma mais
Torna-se, então, necessário discutir relações iden- cial (atributos que assinalam a pertença a um grupo ou ampla e genérica é invocada quando um “grupo reivin-
titárias, no presente trabalho. categoria)” (Jacques, 1998, p.161). A identidade, assim dica uma maior visibilidade social face ao apagamento
pensada, tem relação tanto com a individualidade do a que foi, historicamente, submetido” (Novaes, 1993,
Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir sujeito, quanto com o grupo de referência desse sujeito, p. 25).
“identidade”. A identidade é simplesmente aquilo que afirmando sua identidade coletiva. Se acrescentarmos ao termo identidade, os adjeti-
se é: “sou brasileiro”, “sou negro” “sou heterossexual”, Por isso, ao falarmos sobre identidade neste tra- vos étnica, negra, de gênero, entre outros, socialmente
“sou jovem”, “sou homem”. A identidade assim conce- balho, não estamos nos referindo a identidade de um isolados e, na maioria das vezes, vistos por nossa socie-
bida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”), indivíduo isolado, único, à parte. Estamos tratando do dade como diferentes, podemos observar melhor esse
uma característica independente, um “fato autônomo”. indivíduo “como um ser social, como sujeito inserido processo. Dessa forma, evidenciar a identidade signi-
(SILVA, 2000, p.74) em um contexto de relações e, que, como tal, influencia fica, também, evidenciar a diferença.
e é influenciado por elas” (SOUSA, 2005, p.115). Para Hall (2003, apud PAULA, 2005, p.190), o que
Na perspectiva citada por Silva (2000), parece real- Por isso mesmo, caracteriza os seres e as sociedades humanas não é a
mente fácil definir identidade, uma vez que ela só tem a similaridade e sim a diferença. Ele afirma que “é essa
si própria como referência. De acordo com esse autor, é importante perceber que o conceito de identidade diferença que nos unifica como seres humanos”. Por-
“ela é auto-contida e auto-suficiente”. deve ser investigado e analisado não porque os antro- tanto, podemos afirmar que,
Porém, Gleason (1980, apud GOMES, 2005, p.40), pólogos decretaram sua importância (diferentemente
ao aprofundar-se um pouco mais na discussão sobre do conceito de classe social, por exemplo), mas porque as identidades são construídas por meio da diferença
o tema, sustenta que “apesar das inúmeras produções ele é um conceito vital pra os grupos sociais contempo- e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radi-
existentes e apesar de todos os esforços empenhados, râneos que o reivindicam (NOVAES, 1993, p.24) calmente perturbador de que é apenas por meio da

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dossiê temático

relação com o outro, da relação com aquilo que não é, e desinteressadas. Segundo Hall (2003, p.33), “elas são O sistema de classificação racial do Brasil é con- não “amarelas” ou “outras”). Nota-se um deslizamento
com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem relações de poder, nas quais os grupos agem para que siderado, pelos estudiosos do assunto, bastante enig- das categorias “negro” e “mulato” para “preto” e “pardo”
chamado de seu exterior constitutivo, que o significado seus significados particulares sempre prevaleçam aos mático, uma vez que “é resultante da combinação de (FRY apud ROCHA & ROSEMBERG, 2007, p.3)
“positivo” de qualquer termo – e, assim, sua “identida- dos outros grupos. O campo dessa produção de signi- elementos de aparência: cor da pele, formato do nariz
de” – pode ser construído (DERRIDA, 1981; LACLAU, ficados é, por essência, conflituoso e disputado. É uma e da boca, tipo de cabelo; aliado à origem regional e Telles (apud ROCHA & ROSEMBERG, 2007, p.7),
1990; BUTLER, 1993, apud HALL, 2003). luta por hegemonia e por predomínio”. social do sujeito” (Rosemberg & Piza apud ROCHA & considera também três modos de classificação racial:
Nessas relações de poder, foram construídas a re- ROSEMBERG, 2007, p. 6). Ou seja, “a aparência geral, o modo oficial (IBGE), o popular múltiplo e o binário.
Nesse sentido, a identidade, enquanto pertenci- presentação e o significado do que é ser negro. Assim, “a composta pela combinação do estilo de vida (o jeito), o “O terceiro modo é o que vem sendo utilizado pelos
mento, busca uma interação. Assim, “o meu mundo, o representação do ser negro foi criada à sombra do que grau de instrução, a renda, o estilo em matéria de moda Movimentos Negros, que, de há muito, usam um sis-
meu eu, a minha cultura, são traduzidos também através é ser branco, num processo marcado pela significação (cabelos, roupas, carros) e até a simpatia ou antipatia tema de classificação com apenas dois termos – negro
do outro, de seu mundo e de sua cultura, do processo de quem é superior e de quem é inferior. Ser inferior do falante pela pessoa em questão” (Sansone apud RO- e branco - adotando, dessa forma, o modo binário de
de decifração desse outro, do diferente” (Gomes, 2005, implica não ter poder” (RIBEIRO, 2005, p.6). CHA & ROSEMBERG, 2007, p.6). classificação racial”.
p.42). Portanto, nenhuma identidade se constrói no iso- Isso reafirma que, em uma sociedade como a É da Europa Ocidental do século XVIII, o uso do Jacques D’Adesky, por sua vez, evidencia cinco mo-
lamento e “tanto a identidade pessoal quanto a iden- brasileira, as questões relacionadas à percepção e ao critério cor da pele para diferenciar as chamadas raças dos de classificação racial:
tidade socialmente derivada são formadas em diálogo pertencimento norteiam o processo de construção da humanas. E é de Blumenbach, fisiologista e antropó-
aberto” (D’ADESKY, 2001, apud GOMES, 2005, p.42). identidade negra. Ainda de acordo com Ribeiro, logo alemão (1752-1840), a ideia de classificar as ra- ... o sistema do IBGE, usado no censo demográfico, com
Esse é também o processo pelo qual passa a identi- ças humanas. Ele associou a cor da pele com a região as categorias branco, pardo, preto e amarelo; o sistema
dade negra, na sua trajetória de construção. Uma refle- (...) reconhecer-se ou assumir-se negro no Brasil é uma geográfica de origem, definindo cinco tipos: branca branco, negro e índio, referente ao mito fundador da
xão sobre a construção da identidade negra não pode decisão de coragem, pois quem quer se identificar ape- ou caucasiana; negra ou etiópica; amarela ou mongol; civilização brasileira; o sistema de classificação popular
furtar-se da discussão sobre a identidade enquanto nas com um passado de escravizado, pautado na ciência parda ou malaia; vermelha ou americana. Vários outros de 135 cores, segundo dados da Pesquisa Nacional por
processo mais amplo e complexo, pois, a justificativa biológica para tal condição? Quem quer países, inclusive o Brasil, adotaram a terminologia de Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE
ser o limite na hierarquia que divide os humanos dos classificação racial de Blumenbach. em 1976; o sistema bipolar branco e não branco, utili-
assim, como em outros processos identitários, a iden- ‘quase animais’? Quem quer ser considerado feio e por- Esse vocabulário racial, referendado pela cor da zado por grande número de pesquisadores de ciências
tidade negra se constrói gradativamente, num movi- tador de uma cultura inferior? ( 2005, p.8). pele, já estava presente no Brasil desde o período co- humanas; o sistema de classificação bipolar branco e
mento que envolve inúmeras variáveis, causas e efeitos, lonial e aqui faz morada até os dias atuais, permane- negro proposto pelo Movimento Negro. (2001, p.135
desde as primeiras relações estabelecidas no grupo so- Dessa forma, a construção de uma identidade cendo com as mesmas categorias de cor adotadas para apud ROSEMBERG, 2007, p.7)
cial mais íntimo, no qual os contatos pessoais se esta- negra positiva, em uma sociedade que nos ensina que os inquéritos populacionais do primeiro Censo demo-
belecem permeados de sanções e afetividades e onde se “para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um de- gráfico de 1872, salvo algumas poucas variações. “Isto Fúlvia Rosemberg defende que, dependendo do
elaboram os primeiros ensaios de uma futura visão de safio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros” não significa, porém, que o mesmo termo, por exemplo, contexto institucional, pode ser acionado um “repertó-
mundo. Geralmente este processo se inicia na família (GOMES, 2005, p.43). branco ou preto, evoque os mesmos sentidos nos dife- rio lingüístico” específico, associado ou não a um mo-
e vai criando ramificações e desdobramentos a partir Por tudo isso, a (a)firmação da identidade, aqui rentes contextos sociais e históricos em que têm sido delo binário ou múltiplo de classificação racial. Sendo
das outras relações que o sujeito estabelece (GOMES, defendida, não está sendo pensada como fixa, acabada, empregados para diferenciar grupos humanos” (RO- assim, “mesmo em sistemas classificatórios semelhantes
2005, p.43). mas como um processo gerado no interior das repre- CHA & ROSEMBERG, 2007, p.5). ao do IBGE, podem ser empregados vocabulários dife-
sentações, onde se estabelecem as relações de poder e as A maneira de lidar com o sistema de classifica- renciados em instrumentos de classificação racial pro-
É preciso lembrar, também, que “o processo de posições, valorizando as diversas categorias de sujeitos ção racial, por sua vez, gera controvérsia entre os es- duzidos pelo Estado Brasileiro”. Como afirma a autora:
construção da identidade negra em nosso país é muito sociais envolvidos. tudiosos: “seria ele binário (branco versus negro) ou
complexo, sendo possível que algumas pessoas com múltiplo, pressupondo um contínuo de categorias?” O modelo de denominação/classificação racial usado
traços fisionômicos europeus, em virtude de ter o pai (ROCHA & ROSEMBERG, 2007, p.6). em documentos do Estado brasileiro não parece ser
ou mãe negros, se declarem negros e outros com traços De acordo com Fry (apud ROCHA & ROSEM- monolítico. Assim, os termos preto e pardo, possivel-
físicos africanos se identifiquem brancos” (Brasil, 2005,
COR/RAÇA NOS BERG, 2007), “adotaríamos ambos os modos: o modo mente por razões diferentes, não entram no vocabulário
p.35). Não nos esqueçamos do uso do termo negro de CENSOS BRASILEIROS binário seria predominante nas classes médias intelec- de leis e decretos contemporâneos, nas provas do MEC
forma pejorativa, para designar os escravos. Termo esse, tualizadas urbanas, enquanto o múltiplo, evocado de até 2003, apesar de serem vocábulos consagrados pelo
ressignificado pelo Movimento Negro, atribuindo-lhe “(...) Quase não pude acreditar no que lia. O formulá- acordo com as situações e circunstâncias, seria encon- IBGE para a classificação racial no plano demográfico
um sentido político e positivo. rio, além de minha identificação e da de minha filha, trado nas camadas populares”. E além deles, Fry assi- da população brasileira (ROSEMBERG, 2007, p.8).
A identidade negra se afirma aqui, portanto, como perguntava, em forma de múltipla escolha, qual a cor/ nala um outro modo:
uma construção social. É o olhar de um grupo étnico- raça dela – amarela, branca, indígena, parda ou preta, Não podemos deixar de considerar também o em-
-racial, ou de sujeitos a ele pertencentes sobre si mes- além de uma última opção: “Opto por não declarar nes- ... uma espécie de redução do modo múltiplo, ou am- prego de diferentes vocábulos raciais em contextos so-
mos, a partir da relação estabelecida com o outro. te momento tal informação”. O MEC estava pedindo pliado do modo bipolar , que inclui três categorias: ciais distintos. Sendo assim, a expressão afro-brasileiro,
Nesse contexto, podemos afirmar que as relações para uma menina de sete anos “declarar” sua cor/raça!” negro, branco e mulato. Este é também o modo oficial ou afro-descendente está mais relacionada a contextos
sociais não se constituem somente como relações puras (GOLDEZON, 2007, p.151). do censo brasileiro, que pede às pessoas que se classi- culturais e religiosos, enquanto o termo negro se asso-
fiquem como “pretas”, “brancas” ou “pardas” (quando cia mais à ideia de discriminação e preconceito.

42 43
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Considerando que todo o Brasil participou do No entanto, é na “variação social da cor” (Osó- Justamente por isso, estudiosos do assunto con-
A CLASSIFICAÇÃO DE “COR Censo do IBGE/2010 e respondeu ao quesito cor/ rio, 2004, p.94) que a identificação por autoatribuição sideram que “no Brasil não se pode falar em ‘grupos
raça, ao mesmo tempo em que um número cada vez encontra maior problema, pois, até mesmo a vasta li- raciais’, mas, sim, em ‘grupos de cor” (Guimarães, 2005,
OU RAÇA” DO IBGE maior de brasileiros reconhece que o recorte racial nas teratura disponível sobre classe e/ou raça insiste em p.43). Desta forma, Nogueira (apud ROCHA & RO-
pesquisas censitárias é extremamente importante, já afirmar, em uníssono, que a ascensão social é fator de SEMBERG, 2007, p.4), sustenta que, em nosso meio,
Marcílio (1974, p.23), propõe a existência de três perí- que representa uma maneira de se apurar, entender e embranquecimento. Conforme Osório (2004), há ocorrência, não do ‘preconceito de origem’ (raça/
odos distintos para se pensar a coleta de dados censi- melhorar a condição dos diferentes grupos étnicos que ascendência), mas, sim, do ‘preconceito de marca’.
tários no Brasil: fazem parte do nosso país, reforçando o retrato do Bra- sabendo-se que, à luz do ideal de branquitude vigente, Osório (2004) afirma que
sil como nação multiétnica, que o Censo IBGE/2010 é de se esperar que as pessoas que carregam menos
O primeiro, pré-estatístico, vai do início da coloni- cuidou muito bem de registrar. traços negros em sua aparência tendam a se considerar onde vige o preconceito racial de marca, a origem não
zação até a metade do século XVIII e caracteriza-se Sendo assim, o sistema classificatório do IBGE brancas, e que essa tendência varia de acordo com a si- importa, apenas quantos traços, ou marcas, do “fenó-
pelas poucas estimativas gerais, normalmente aceitas emprega cinco categorias de “cor ou raça” na sua clas- tuação socioeconômica, com as pessoas mais abastadas tipo” do grupo discriminado são portados pela vítima
pelos demógrafos, apesar de não incluírem a popula- sificação, definindo, a partir destas, “igual número de também tendendo à escolha do branco, o fato de que potencial. O preconceito racial de marca não exclui
ção de índios que vivia fora do contato com o branco. grupos raciais e a identificação racial é realizada por a classificação de cor é realizada por auto-atribuição completamente, mas desabona suas vítimas. Portar os
O segundo momento- proto-estatístico- inicia-se na intermédio do uso simultâneo dos métodos de auto- pode se afigurar problemático. (OSÓRIO, 2004, p. 95). traços do grupo discriminado constitui inferioridade,
segunda metade do século XVIII e termina com o pri- -atribuição e de heteroatribuição de pertença” (OSÓ- e faz com que os sujeitos ao preconceito sejam sistema-
meiro recenseamento geral, em 1872. O terceiro perí- RIO, 2004, p.86). Seria possível afirmar então, que heteroatribuição ticamente preteridos em relação aos demais. (OSÓRIO,
odo, chamado de era estatística, tem início em 1872 e Ainda de acordo com Osório (2004, p.86), “um da cor dos sujeitos, pelos entrevistadores ou pelos res- 2004, p. 109).
reproduz-se na série de censos realizados posterior- método de identificação racial é um procedimento ponsáveis em fornecer a informação, seria uma forma
mente, mantendo-se a data de 1940 para a inclusão do estabelecido para a decisão do enquadramento dos in- de contornar o problema, inclusive conferindo maior Pode-se concluir que esses grupos buscam, através
Brasil entre os países que realizam censos periódicos, divíduos em grupos definidos pelas categorias de uma objetividade à classificação? Não se tem nenhuma ga- da posse de outras características ‘afirmativamente’ va-
por métodos modernos de coleta e publicados sistema- classificação, sejam estas manifestas ou latentes”. rantia de que os entrevistadores não venham a branque- lorizadas, como educação, projeção social, poder polí-
ticamente por um órgão especializado – o IBGE (apud São três os métodos de identificação racial de que ar os entrevistados, principalmente os mais abastados. tico e bens materiais, uma forma de compensar, ainda
ROSEMBERG, 2003, p.94) se tem conhecimento: a auto-atribuição de pertença, Há menor garantia, ainda, por parte dos respon- que parcialmente, estas marcas.
onde o próprio sujeito interrogado escolhe o grupo sáveis em fornecer a informação, que teriam maior di-
Em meio à grande variedade de termos, três vocá- do qual se considera membro; a heteroatribuição de ficuldade em identificar esses fenótipos e, ao mesmo
bulos raciais sempre se destacaram como os principais pertença, onde outra pessoa é que define o grupo do tempo, motivos de ordem diversa para mudar a linha
designadores das categorias de classificação racial: pre- sujeito e a identificação de grandes grupos raciais “a que de cor que lhes foi conferido atribuir a determinado
CONVERSA SOBRE
to, pardo e branco. teriam pertencido os ancestrais de uma pessoa” (Osó- sujeito. DIFERENÇA, PRECONCEITO E
No primeiro Censo oficial brasileiro, realizado em rio, 2004, p.87), através do uso de técnicas biológicas, Considerando que o Ministério da Educação - DISCRIMINAÇÃO NA ESCOLA
1872, além das três categorias acima citadas, utilizou-se como a análise do DNA. MEC utiliza, no censo escolar anual, a autoatribuição
a categoria “caboclo”, alusiva ao grupo dos indígenas. Buscando atingir os objetivos propostos nesta pes- para coletar os dados de cor/raça dos alunos maiores de
Sendo que as categorias preta e parda “eram as únicas quisa, analisaremos apenas os métodos de auto e de 16 anos e a heteroatribuição para os alunos abaixo desta - Posso me sentar ao seu lado? – pergunta-me uma lin-
aplicáveis à parcela escrava da população, embora pu- heteroatribuição de pertença, empregados pelo IBGE faixa etária é inequívoco considerar que pertencimento da menina negra de cabelos trançados e seus sete anos.
dessem também enquadrar pessoas livres, assim nas- na coleta de dados de cor ou raça. O método de auto- e percepção, palavras-chave deste artigo, são elementos - Claro, mas por que quer sentar-se aqui? – pergunto-
cidas ou alforriadas” (Osório, 2004, p.105). O segundo atribuição é recomendado por órgãos internacionais, de extrema relevância, quando se pensa a classificação -lhe intrigada, já que sou a única adulta na sala de aula
Censo do Brasil, de 1890, substituiu o termo pardo por quando se trata de pesquisas que realizam coleta de dos sujeitos feita por intermédio destes dois métodos da 1ª série e há vários grupos de crianças pela sala.
mestiço e os Censos seguintes, até o de 1940, ignoraram dados, com o objetivo de captar a raça ou etnia dos de identificação racial. Tanto assim que Osório (2004, - É que você é a única igual a mim – disse-me, voltando
a questão de raça. indivíduos. Mesmo assim, há, por parte dos estudiosos, p.96) afirma: “[...] no fundo, a opção pela auto ou pela seus olhos para a sua pele. (Depoimento de uma pro-
A partir do Censo de 1940, portanto, a cor da po- discordâncias com relação à adequação desse método heteroatribuição de pertença racial é uma escolha entre fessora negra do estado de São Paulo/2002).
pulação brasileira voltou a ser coletada, obedecendo para o Brasil. subjetividades: a do próprio sujeito da classificação, ou
praticamente às mesmas categorias de 1872. Sendo que A polêmica desenvolve-se em torno da categoria a do observador externo”. Fatos semelhantes a esse nos permitem ilustrar
o termo pardo volta a substituir o mestiço e a categoria parda. Telles e Lim (apud OSÓRIO, 2004, p.95), pos- Finalizando, sobre a peculiaridade da classificação como não é fácil construir uma identidade negra po-
amarela é criada para atender aos imigrantes asiáticos. tulam que racial brasileira, pode-se afirmar que ela, bem como a sitiva no espaço escolar e nos levam a inferir algumas
Essas categorias foram empregadas também no Censo de alguns países latino-americanos, é determinada pela consequências negativas, para as crianças negras, ad-
de 1970. na América Latina os mulatos seriam menos discri- aparência e não pela ascendência, ou seja, “diferente- vindas do preconceito e da discriminação de que são
De 1940 até 1990 a classificação era só de cor, a par- minados do que nos Estados Unidos, gozando de uma mente do que ocorreu nos Estados Unidos, o Brasil, vítimas nesse ambiente, como: rejeição, desvalorização,
tir daí, com o emprego da categoria indígena no Censo posição intermediária entre os pretos e os brancos. após a abolição da escravidão, não adotou legislação sentimento de culpa e solidão. E ainda a produção cien-
de 1991, a classificação ganha status de “cor ou raça” e Desta forma, a dicotomia racial importante seria entre racial segregacionista, nem produziu um sistema de tífica, principalmente das décadas de 80 e 90, afirma
consolida as cinco categorias empregadas pelo IBGE nos pretos e não-pretos, ao invés de brancos e não-brancos. classificação racial legal e baseado na origem ou hipo- que o preconceito racial influencia negativamente no
dias atuais: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. (OSÓRIO, 2004, p. 95). descendência” (ROCHA & ROSEMBERG, 2007, p.4). rendimento escolar dessas crianças.

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Dias (2005, p.5) argumenta que “espaços sociais temos a desvalorização da identidade negra, temos de presentes em nosso cotidiano de trabalho e, por conse- a discriminação racial é fruto do mito da democracia
como o da família e da escola têm enorme potencial outro a valorização da identidade branca” (TEIXEIRA, guinte, na prática escolar” (ITANI, 1998, p.127). racial de um país que se gaba de não adotar práticas ra-
para produzirem as resistências ao racismo, ao precon- 1992). Consequentemente, a prática da diferença e as ciais preconceituosas, e, muito menos, discriminatórias.
ceito e à discriminação, mas, de uma maneira geral, Munanga (2005, p.15), afirma que os privilégios atitudes de preconceito e discriminação marcam pre- A autora nos alerta que “a discriminação racial pode
ainda não estão cumprindo esse papel”. O que não deixa foram concedidos à identidade branca, porque muitos sença no espaço escolar. “Como professores, nós os ser originada de outros processos sociais, políticos e
de ser compreensível, pois “são instituições sociais per- profissionais não receberam, em sua educação e for- praticamos e os transmitimos, mesmo quando não psicológicos que vão além do preconceito desenvolvido
meadas pela ideologia do racismo” (DIAS, 2005, p.5) mação, o preparo suficiente para lidar com questões queremos ou mesmo quando proferimos o discurso pelo indivíduo” (TEIXEIRA, 1992, p.23).
A ideologia racista deixa as famílias negras em problemáticas ligadas ao desafio da convivência com a de que somos contra tais práticas discriminatórias” Analisar os indicadores de desigualdade entre os
extrema dificuldade para melhorar seu capital social, diversidade e com as manifestações de discriminação (ITANI, 1998, p.128). grupos constitui-se em uma boa maneira de tornar vi-
cultural e econômico. Segundo Dias (2005, p.6), o racis- dela resultantes. Ainda de acordo com Munanga: Considerando assim, acreditamos que é de bom sível este tipo de discriminação e de buscar superá-la.
mo, além de operar de forma individual, faz parte das tom, ao final desta conversa, definir alguns conceitos: Justamente por isso, ao lembrarmos das palavras do
estruturas da sociedade brasileira e as crianças negras Essa falta de preparo, que devemos considerar como ex “Ministro da Classificação Racial” (Magnoli, 2007,
são herdeiras da desigualdade e da exclusão social pro- reflexo do nosso mito de democracia racial, compro- O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos p.135), Tarso Genro, para quem “o quesito cor/raça re-
vocadas por esse racismo institucional. mete, sem dúvida, o objetivo fundamental da nossa membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia presenta um passo importante para o conhecimento de
A escola, por sua vez, tem sido um espaço de pro- missão no processo de formação dos futuros cidadãos ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro situações de injustiças e discriminações e para o esta-
dução da rejeição, pois, para as crianças negras, as inten- responsáveis de amanhã. Com efeito, sem assumir ne- papel social significativo. Esse julgamento prévio apre- belecimento de políticas de correção das desigualdades
sas interações que ali se dão são quase sempre negativas. nhum complexo de culpa, não podemos esquecer que senta como característica principal a inflexibilidade, e de promoção da cidadania” (Caderno do Censo do
Gomes (2003) chama a atenção para a crise de somos produtos de uma educação eurocêntrica e que pois tende a ser mantido sem levar em conta os fatos MEC, 2005, p.1), foi-nos forçoso admitir que ao Con-
identidade que acomete muitas crianças negras, vítimas podemos, em função desta, reproduzir consciente ou que o contestem (GOMES, 2003, p.54). versarmos sobre Diferença, Preconceito e Discriminação,
desta rejeição, afirmando que: inconscientemente os preconceitos que permeiam nos- não podemos nos furtar a uma análise dos indicadores
sa sociedade. (MUNANGA, 2005, p. 15). Trata-se, portanto, de conceito ou opinião formada de educação entre negros e brancos.
Geralmente a discriminação racial na escola se dá pela antecipadamente, sem maior ponderação ou conheci-
aparência: é o cabelo, a pele, o nariz, enfim são os atri- Podemos compreender, então, como o preconceito mento dos fatos. Inclui a relação entre pessoas e grupos “(...) as extremas desigualdades no acesso a oportuni-
butos físicos os escolhidos pelos discriminadores para enraizado na cabeça do professor, somado à sua dificul- humanos e a concepção que o indivíduo tem de si mes- dades socioeconômicas mantêm e intensificam dramas
depreciarem o negro. Em muitos casos a criança incor- dade de lidar profissionalmente com a diferença, além mo e também do outro. como a miséria em que vivem as comunidades indíge-
pora essa depreciação evitando sua identidade negra e do teor preconceituoso de muitos livros e materiais Bernd (1987) argumenta que o indivíduo precon- nas, a marginalização da população de cor em alguns
tudo que a remeter a ela. E as professoras nem sempre didáticos e das relações entre os alunos, desestimulam ceituoso é aquele que se fecha em uma determinada países, a subordinação da mulher, portadores de defici-
reagem pedagogicamente a essas situações discrimina- o negro e comprometem seu aprendizado. Os dados opinião, deixando de aceitar o outro lado dos fatos, ências e dos idosos. De tudo isso, surge uma sociedade
tórias (GOMES, 2003, p.56). sobre repetência e evasão escolar do alunado negro sendo o preconceito, “uma posição dogmática e sec- com grandes fraturas, que geram exclusão social e com
comprovam essa afirmativa. tária que impede nos indivíduos o desenvolvimento freqüência, ideologias intolerantes que visam justificar
Em função disso, tornou-se muito comum ouvir- Na batalha contra o racismo, esta é a luta da da necessária e permanente abertura ao conhecimento tais fraturas” (KLIKSBERG, 2001).
mos frases como “o próprio negro é racista, ele não se educação: não aceitar como pronta e acabada a lógica mais aprofundado da questão, o que poderia levá-los
aceita como negro”. Convém esclarecer que introjeção apoiada na razão científica que diz que biologicamente à reavaliação de suas posições” (BERND, 1987, p.11). Os dados e informações produzidos pelo IBGE e
do preconceito racial é o termo usado para designar a somos todos iguais, nem a moral cristã que nos eleva a Sendo assim, é possível compreender que atitudes pelo IPEA reforçam as palavras, registradas na citação
pessoa que não se aceita como negra. Ou seja, a pes- todos para a mesma natureza divina. Até porque, isso preconceituosas não são inatas. São aprendidas social- acima, de um dos grandes teóricos do Desenvolvimento
soa negra aceita a ideia de inferioridade atribuída à sua não mudará as mentes de nossos alunos, a fim de que mente. O ser humano não nasce preconceituoso. Ele Social, Bernardo Kliksberg, no que diz respeito às “ex-
condição racial e, para livrar-se disso, nega-se como deixem de pensar de forma preconceituosa. Munanga aprende a sê-lo. Afinal, “nossa trajetória de socialização tremas desigualdades no acesso a oportunidades” da
negra. “E isso jamais pode ser considerado uma atitude (2005, p.19), afirma que “como educadores, devemos se inicia na família, vizinhança, escola, igreja, círculo de população negra, expressando, com clareza, a “perversi-
racista. Se assim o fosse, estaríamos culpando a vítima saber que, apesar da lógica da razão ser importante nos amizades e se prolonga até a inserção em instituições dade da chamada questão racial no Brasil” (JACCOUD
pelo crime. Portanto, quem tem o poder de dominar, processos formativos e informativos, ela não modifica, profissionais ou atuando em comunidades e movimen- & THEODORO, 2005, p.104).
de comandar a situação, é que pode ser considerado ra- por si, o imaginário e as representações coletivas negati- tos sociais e políticos” (BERND, 1987, p.12). As diferenças de oportunidade de educação para
cista. E isto quem herda são as pessoas brancas”. (DIAS, vas que se tem do negro e do índio na nossa sociedade”. É no contato com o mundo adulto que as crian- negros e brancos também são tema deste artigo. Os
2005, p.5). O preconceito, a priori, não existe. Ele é parte da ças elaboram seus primeiros julgamentos raciais. De negros, considerados nestes indicadores como o so-
Para melhor compreensão de como estão postas as atitude das pessoas em relação a alguém ou a alguma acordo com Gomes (2003, p.55), as atitudes raciais de matório dos pretos e pardos, mantêm-se, em geral, em
relações raciais no espaço escolar, Teixeira (1992), tem coisa, manifestando um imaginário social. Dessa forma, caráter negativo tendem a ganhar mais força na medida uma condição social significativamente pior que a da
apontado a necessidade de discutir para além de como o significado da palavra preconceito é “opinião adotada em que a criança vai convivendo em um mundo que população branca. Além dos expressivos diferenciais
a criança negra é afetada pela diferença, preconceito e sem exame nem conhecimento prévio” (LAROUSSE, a coloca constantemente diante do trato negativo dos no que diz respeito à renda, os negros são sempre os
discriminação. De acordo com a autora, “é necessário 2004, p.791). negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais, mais penalizados em termos de acesso e permanência
discutir o legado branco dessa relação”. Como já foi dito Podemos afirmar, então, que se os seres humanos dos idosos e das pessoas de baixa renda. nos bancos escolares.
aqui, a população branca de qualquer nível social tem baseiam sua conduta num conjunto de representações São esses julgamentos raciais negativos que dão lu- Vejamos o que mostram as análises realizadas a
tido privilégios que não se quer discutir. “Se de um lado sociais, “essas noções e teorias coletivas estão também gar à discriminação racial. Teixeira (1992) registra que partir dos dados da pesquisa Retrato das desigualdades

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de Gênero e Raça, estudo elaborado pelo Instituto de por se encontrar nos estratos de menor renda, é mais D’ADESKY, Jacques. Racismos e anti-racismos no Bra- NOVAES, Silvia Caiuby. Jogo de espelhos. São Paulo:
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), pela Secretaria cedo pressionada a abandonar os estudos e ingressar sil. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Rio de EDUSP, 1993.
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e pelo no mercado de trabalho. Janeiro: Pallas, 2001. OSÓRIO, Rafael Guerreiro. O sistema classificatório de
Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a As diferenças regionais também são significativas DIAS, Lucimar Rosa. Quantos passos já foram dados? “cor ou raça” do IBGE. In: BERNARDINO, Joaze;
Mulher (UNIFEM), cuja publicação da 3ª edição ocor- na reprodução dessas desigualdades. Na região Nordes- A questão de raça nas leis educacionais – da LDB GALDINO, Daniela (orgs.) Levando a raça a sério:
reu em dezembro de 2008, trazendo uma interpretação te, que apresenta as maiores taxas de analfabetismo no de 1961 á Lei 10.639 de 2003. In: ROMÃO, Jeruse. ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: Co-
dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Do- país, 24,5% dos homens negros com 15 anos ou mais História da educação do negro e outras histórias. leção Políticas da Cor. 2004.
micílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia de idade não eram capazes de ler um bilhete simples, Brasília: Ministério da Educação Continuada, al- PAULA, Cláudia Regina de. Magistério, reinações do
e Estatística (IBGE). em 2006, ao passo que, na região Sul, essa taxa era de fabetização e Diversidade. 2005. p. 49-62. (Coleção feminino e da brancura: a narrativa de um pro-
A pesquisa citada acima teve por objetivo visuali- 9,2. No caso dos homens brancos, nas mesmas regiões, Educação para todos). fessor negro. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
zar, de forma clara e compreensível, as enormes desi- tinha-se, respectivamente, 18,4% e 4,3%. GOLDENZON, Sidney. Eles deveriam pedir descul- CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVER-
gualdades que se manifestam entre negros e brancos e É certo que a média de anos de estudo vem au- pas, de joelhos. In: PETER, Fry. Divisões perigosas: SIDADE. História da Educação do negro e outras
entre homens e mulheres nos mais diferentes espaços mentando para os dois grupos ao longo do período Políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de histórias. Brasília: 2005. p.187-200.
sociais: educação, mercado de trabalho, acesso a bens e estudado. Porém, ao observarmos os estudos feitos por Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.149-153. RIBEIRO, Eliana Marques. Cor e Raça no Censo Escolar.
serviços, entre outros. Maria Inês da Silva Barbosa, do Albenarez et alli (apud JACCOUD & THEODORO, GOMES, Nilma Lino. Uma dupla inseparável: cabelo 2005: O que é ser preto, branco, pardo?. Disponível
UNIFEM, argumenta que “é preciso evidenciar as de- 2005, p.109), que analisam o desempenho educacional e cor de pele. In: BARBOSA, Lucia M. A. (org.) et em: elianamrc@ig.com.br. Acesso em abril 2008.
sigualdades para que elas não existam mais, a pesquisa dos alunos brancos e negros, de 8ª série do ensino fun- al. De preto a afro-descendentes: trajetos de pesquisa ROCHA, Edmar José da; ROSEMBERG, Fúlvia.
recorta e dá visibilidade à problemática, permitindo damental, a partir dos dados do Sistema de Avaliação sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais Auto declaração de cor e/ou raça entre escolares
direcionar políticas públicas para acabar com elas”. A da Educação Básica – SAEB, podemos concluir que os no Brasil. São Carlos: EDUFScar, p.137-150, 2003. paulistanos(as). Caderno de Pesquisa, v.37, n.132,
primeira versão da pesquisa é de 2005, mas seu his- alunos negros têm desempenho inferior ao dos alunos ___________. Alguns termos e conceitos presentes no set./dez. 2007.
tórico tem origem em 1993. Os números obtidos são brancos, mesmo quando é feito o controle pelo nível debate sobre relações raciais no Brasil: Uma bre- ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos Censos Brasileiros. In:
disponibilizados para todo o público interessado: movi- sócio-econômico. ve discussão. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray
mentos sociais, pesquisadores, gestores, parlamentares, Além disso, a média de anos de estudo das mulhe- CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVER- (org.) Psicologia Social do Racismo (Estudos sobre
estudantes. Nesse documento, os números se referem res é maior que a dos homens e a dos brancos maior SIDADE. Educação anti-racista: caminhos abertos branquitude e branqueamento no Brasil). Vozes,
até a PNAD/2006. Dentre esses números, alguns apre- que a dos negros. Se associarmos os anos de estudo ao pela Lei Federal Nº 10.639/03. Brasília: 2005. p. 2003.
sentaram aspecto positivo em relação a anos anteriores, recorte etário da pessoa ocupada, os números impres- 39-62. SANT’ANA, Antônio Olímpio de. História e conceitos
podendo-se citar, como exemplos, o acesso à educação sionam ainda mais: os homens negros ocupados, com GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti- básicos sobre o racismo e seus derivados. In: MU-
e o aumento do número de trabalhadoras domésticas 60 anos ou mais de idade, têm em média 2,5 anos de -Racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2 ed. NANGA, Kabengele. Superando o Racismo na esco-
com carteira de trabalho assinada. estudo e as mulheres negras, na mesma faixa etária, 2005. la. 2 ed. revisada. Brasília: Ministério da Educação,
Ressaltamos, como já mencionado anteriormente, 2,6. Esses números podem ser explicados pelos anos HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
que atendendo à delimitação desta artigo, analisaremos de falta de acesso aos bancos escolares por parte da culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG. Brasília: e Diversidades, 2005. p. 39-67.
apenas os indicadores de desigualdades de educação população negra. Representação da UNESCO no Brasil, 2003. SOUSA, Ana Beatriz Gomes. Prática Pedagógica Curri-
entre negros e brancos. O comovedor é que os dados apresentados assus- ITANI, Alice. Vivendo preconceito em sala de aula. In: cular e alunos negros: um estudo de caso. In: SOU-
tam não somente pelas desigualdades entre negros e AQUINO, Júlio Groppa (org.). Diferenças e precon- SA, Francisca Maria do Nascimento. Linguagens
brancos, com relação aos indicadores de renda e edu- ceito na escola: alternativas teóricas e práticas. São escolares e reprodução do preconceito. Educação
cação, mas também por sabermos que essas desigual- Paulo: Summus, 1998. anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal Nº
EDUCAÇÃO dades são gritantes em outros tantos indicadores sócio- JACQUES, Maria José Corrêa et al. Psicologia Social 10.639/03. Brasília: 2005. p. 105-120.
-econômicos estudados. Contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. TEIXEIRA, Maria Aparecida Silva Bento. Resgatando a
Na educação, são marcantes as diferenças raciais: os ne- JACCOUD, Luciana & THEODORO, Mário. Raça e minha bisavó: discriminação racial no trabalho e re-
gros e negras estão menos presentes nas escolas, apre- educação: os limites das políticas universalistas. In: sistência na voz dos trabalhadores negros. São Pau-
sentam médias de anos de estudo inferiores e taxas de SANTOS, Sales Augusto (org.). Ações Afirmativas e lo: Pontifícia Universidade Católica, 1992, 135p.
analfabetismo bastante superiores. As desigualdades
REFERÊNCIAS Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: MEC/ (Dissertação, Mestrado em Psicologia Social).
se ampliam quanto maior o nível de ensino. No ensino SECAD, 2005.
fundamental, a taxa de escolarização líquida, que mede BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e Mitos do Desenvol-
a proporção da população matriculada no nível de ensi- Rio Grande do Sul: Mercado Aberto, 1987. vimento Social. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:
no adequado à sua idade, para a população branca era BRASIL. Congresso Nacional. Diretrizes Curriculares UNESCO, 2001.
de 95,7 em 2006; entre os negros, era de 94,2. Nacionais para a Educação das Relações Étnico- MAGNOLI, Demétrio. Ministério da classificação ra-
Já no ensino médio, essas taxas eram respectiva- -Raciais e para o Ensino de História e Cultura cial. In: FRY, Peter et al. Divisões perigosas. Rio de
mente, 58,4 e 37,4. Isto é, o acesso ao ensino médio Afro-Brasileira e Africana. Brasília: jun./ 2005. Janeiro: Civilizações Brasileira, 2007. p. 133-136.
ainda é bastante restrito em nosso país, mas significa- CADERNO do Censo do MEC/2005. Disponível em MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na
tivamente mais limitado para a população negra, que, www.inep.gov,br. Acesso em novembro 2008. escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005.

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REFLEXÕES SOBRE
NOSSAS CONSTRUÇÕES
INTELECTUAIS E POLÍTICAS
ACERCA DE “RAÇA” RESUMO ABSTRACT
Esse artigo procura fazer uma reflexão sobre a construção do This article attempts to discuss the construction of the concept
conceito “raça” no Brasil republicano. «race» in Republican Brazil.
João Batista Outra questão é a miscigenação, que alguns pensadores viam Another issue is the mixing, which for some thinkers was seen as a
de Jesus Felix como um fator negativo a ser extirpado de nosso país. Outros negative factor, which should be excised from our country. Others
enxergavam nela uma característica que poderia ser mais bem who saw it as a feature that could be used more, or was something
Doutor e Mestre pela USP. Atualmente é aproveitada, ou seja, era algo positivo. Atualmente ela é vista como positive. Currently she is seen as a way of ensuring the existence of
Professor Adjunto II, de Antropologia So- uma forma de garantir a existência dos negros, pois passou a ser black people, because she happened to be interpreted as a darkening
cial, na Universidade Federal do Tocantins interpretada como um escurecimento da população. of the population.
(UFT), no Curso de Ciências Sociais. É o
Diretor de Cultura do mesmo campus e
Coordenador do Núcleo de Estudos Inter- Palavras chave: Raça; Democracia Racial; Identidade; Precon- Keywords: Race, Democracy Racial Identity, Prejudice, Racism.
disciplinar da África e dos Afro-Brasilei- ceito; Racismo.
ros da UFT (NEAF/UFT).

“funesto” tão evidente – faria para tentar modificar essa descartando a “raça” como fator determinante e intro-
os pioneiros sina terrível. Além disso, em finais do séc. XIX parecia duzindo a noção de cultura1.
importante verificar se as opções de miscigenação feitas Nesse sentido, o primeiro desafio de Freyre foi
teriam alguns efeitos benéficos. considerar “fundamental a diferença entre raça e cultu-
Muitos autores, tais como Sílvio Romero (1943), Nina Internamente podemos perceber a consolidação ra; a discriminar entre os efeitos de relações puramente
Rodrigues (1957), Oliveira Vianna e outros, dedicaram- de pelo menos três principais posições frente às teo- genéticas e os de influências sociais, de herança cultural
-se à análise das relações “raciais” e da mestiçagem no rias européias: para alguns cientistas, o futuro de um e de meio” (1978; XXIII/XXIV). Ele teve contatos com
Brasil, o que pode exemplificar a grande preocupação país “miscigenado” só poderia, de fato, ser funesto, isso modelos explicativos anteriores, como os de Nina Ro-
que essas questões despertam em nossa sociedade. A devido, tão somente, à miscigenação (Nina Rodrigues, drigues, Sílvio Romero, João B. Lacerda, Oliveira Vian-
escravidão brasileira legou para a história do país a pro- 1957). Outros entendiam que esse mesmo fenômeno na e outros, que pretendiam, por meio da determinante
blematização da desigualdade sociorracial. Tal situação social não era tão prejudicial assim e que o branquea- racial, definir o “real” caráter do brasileiro e as várias
fez com que muitos “homens de ciências” – como se mento se imporia (Sílvio Romero, 1949). Outros ainda tentativas de se explicar a problemática da miscigena-
autodenominavam, então, os letrados vinculados às compreenderiam que essa mesma questão era de pouca ção. Por este motivo, afirma no prefácio da primeira
instituições de pesquisa e ensino no país – se sentissem ou nenhuma importância, já que o problema se resumia edição de Casa-Grande & Senzala: “dos problemas bra-
na obrigação de tentar entender e explicar o destino da à educação (Manoel Bomfim, 1993). As posições se di- sileiros, (não havia) nenhum que me inquietasse tanto
nação, com uma população de grande contingente de vidiam, mas mostram, em seu conjunto, perplexidade como o da miscigenação” (idem; XXIII).
ex-escravos e de mestiços. Uma das maiores razões para em relação à questão. Foi só nos anos 30 que vimos Freyre procurou analisar as relações sociorraciais
esta preocupação baseava-se no fato de que, no final do o tema se transformando, como mostra, entre outros, brasileiras tendo como modelo as condições de vida
século XIX e início do século XX, boa parte dos homens Schwarcz, em Espetáculo das Raças, 1993. existentes entre os habitantes da “Casa-Grande” e os
de ciências, principalmente da Europa, defendia a invia- da “Senzala”. Em Casa-Grande & Senzala, 1933, o autor
bilidade da mestiçagem. Nesse sentido, uma sociedade procurou descrever uma sociedade em que a partici-
que tivesse grande proliferação desse fenômeno gené- pação tanto do “negro” como do “mestiço” tivesse um
tico estaria irremediavelmente destinada ao fracasso,
A DEMOCRACIA destaque bastante relevante. Como a sua proposta era
tanto social como político e cultural (Cruz Costa, 1967; RACIAL fazer um estudo culturalista das relações sociorraciais
Skidmore, 1976 e Schwarcz, 1993). brasileiras, Freyre buscou dar relevo à influência que
O Brasil, devido à enorme taxa de miscigenação Gilberto Freyre foi um estudioso que procurou contri- esses grupos tiveram sobre o estilo de vida dos senhores
presente em sua sociedade, despertou a curiosidade de buir com a discussão sobre a identidade do brasileiro, já de engenho. Tal influência, segundo ele, se fez sentir
muitos desses cientistas, dentro e fora do país, desde em outro contexto político e intelectual. No prefácio do
os primeiros momentos da colonização. Em outras livro Casa-Grande & Senzala, 1933, o autor afirma que,
palavras, o que esses senhores gostariam de saber era após ter tomado contato com Franz Boas, em Colúmbia 1. Uma boa obra sobre este autor é Casa-Grande & Senzala e a
o que um país já tão miscigenado – com um destino (EUA), procurou explicar a questão da miscigenação, Obra de Gilberto Freyre, de Ricardo Benzaquem de Araújo, 1994.

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principalmente através da culinária, das vestimentas Como podemos notar Freyre, com sua obra Casa- Casa-Grande & Senzala inicia uma nova fase na menino, com grande simpatia, a abolição dos escravos’,
e da sexualidade. -Grande & Senzala, ofereceu uma explicação acadêmica história intelectual do país. Após sua publicação as pois os escravos eram ‘um anexo da família’, alguns ten-
Alguns estudiosos costumam defender a ideia de sobre uma questão que tanto incomodava os intelec- relações “raciais” brasileiras passam a ser vistas como do ficado com os Modestos ‘o resto da vida, depois de
que a contribuição de Gilberto Freyre foi a de que, pela tuais e políticos brasileiros. Em novos termos, se rein- altamente positivas4. Freyre, não contente com o su- libertos’, confessa sempre ter gostado ‘mais de negro
primeira vez, alguém procurou ‘positivar’ a mestiçagem terpretava o Brasil como uma sociedade “mestiça”. É cesso alcançado, passa a ser o nosso maior divulgador, que do mulato’, considerando o mulato ‘inimigo natural
brasileira. Segundo Skidmore: “Casa-Grande & Senzala interessante notar também que, nessa obra, Freyre des- internacionalmente falando, através de suas obras pos- do branco...” (pág. 352).
virou de cabeça para baixo a afirmação de ter a misci- carta logo no primeiro capítulo os indígenas. Para ele, a teriores, de nossas relações “raciais” amistosas. Na obra “Do padre Florentino Barbosa, nascido em 1981, na
genação causado dano irreparável” (à sociedade bra- maior, quiçá a única, contribuição dada pelos nativos de Interpretação do Brasil, de 1947, que é uma coletânea Paraíba, são essas as palavras: ‘Não aprovo o casamento
sileira). “O pot-pourri étnico do Brasil, dizia Gilberto nosso contingente foi o útero materno, de onde saíram de diversas palestras proferidas por ele nos EUA, em de negro com branco pela disparidade de tendências,
Freyre, era, ao contrário, uma vantagem imensa” (1976: os primeiros brasileiros. Nada mais2. várias ocasiões o autor afirma e reafirma que o colo- costumes, etc.’. Quanto ao casamento próximo com pes-
210). Apesar da opinião de Skidmore, o que notamos A sociedade mostrada por Gilberto Freyre, nesta nizador luso não teve a mesma postura de separação soa de cor, ‘não (o) recebera bem’” (págs. 355/6).
é que a miscigenação não era entendida no Brasil pré- obra, é uma sociedade em que os portugueses entram e de distanciamento, com relação a seus escravos, que “Quanto ao brasileiro de Pernambuco, Adolfo Faustino
-Gilberto Freyre simplesmente como um “dano irre- com o poder político, a civilização e o capital, e os ne- os colonizadores anglo-saxões na América do Norte. Porto. Nascido em Olinda, em 1887, depois de se dizer
parável”, havia também posturas que defendiam ser ela gros com parte da cultura. A miscigenação brasileira Ou seja, ele procurou divulgar para o mundo todo que livre de preconceito de raça, reage de modo diferente à
um mal necessário, ou um “fato e pronto”, como dizia é explicada histórica e culturalmente: os portugueses, no Brasil existia uma real “democracia racial”, em que pergunta especifica ou concreta sobre o assunto: “Pode
Sílvio Romero. por já terem tido um longo contato com os mouros no “brancos” e “negros” conviviam fraternalmente. Outro parecer uma chocante contradição com o que atrás con-
O enorme sucesso alcançado por Casa-Grande & continente europeu, não tiveram problema algum para fator que muito contribuiu para o sucesso internacional signado, acerca de minha atitude para com os negros,
Senzala – pois esta obra em muito influenciou a visão se relacionar com as mulheres africanas aqui no Brasil. de nossa representação de “democracia racial” foi que em resposta ao quesito 16 do inquérito, a ressalva que
de mundo da sociedade brasileira – não está somente Devido a esse passado mestiço anterior, os filhos que Portugal, nossa ex-Metrópole, abraçou imediatamente faço, ao responder ao quesito 16ª. Devo estabelecer uma
relacionado às opiniões assumidas por seu autor, mas surgiram dessas relações foram incorporados à convi- o “luso-tropicalismo” proposto por Freyre5. De posse graduação, ao justificar meu ponto de vista pessoal so-
sim na grande capacidade que Gilberto Freyre teve em vência da Casa-Grande. Esta postura assumida pelos dessa teoria, Portugal tentou justificar as suas colônias bre coloração pigmentaria, o qual me parece fundo, ao
conseguir dar destaque a várias teorias apresentadas portugueses foi denominada por Gilberto Freyre, anos na África. Em sua visão, as diferenças sociais existentes mesmo tempo, em motivos estéticos e fisiológicos. O
anteriormente, favoráveis à mestiçagem, mas separadas mais tarde, de luso-tropicalismo3. no Brasil seriam “o resultado da consciência de classe branco, nessa gradação, vem em primeiro lugar, seguin-
entre si. Segundo Schwarcz, ao reuni-las, Freyre conse- Freyre destacou a contribuição cultural do africa- mais do que de qualquer preconceito e raça ou de cor” do-se-lhe o índio, o mulato e, por fim, o negro. A cor
guiu oferecer “uma espécie de nova racionalidade para no, que para ele já era detentor de uma “cultura supe- (Freyre, 1947; 188). preta nunca me agradou. Ele não é uma síntese, como a
a sociedade multirracial brasileira” (1995). Além desta rior não só à dos indígenas como à da grande maioria Apesar de ser um grande defensor da “democracia branca. É a própria ausência de cor, na série prismática.
“mistura” teórica ele procurou se basear na teoria cultu- dos colonos brancos” (Freyre, 1978; 299). A violência brasileira”, Freyre tinha conhecimento das discrimina- Luto, trevas, fumo se associaram na formação de um
ralista norte-americana “sem abandonar totalmente os existente no regime escravista brasileiro era explicada ções que os negros e mestiços sofriam no Brasil. No complexo que remonta, talvez, a minha meninice e a
pressupostos raciais dos mestres brasileiros”, o que levou por meio desta cultura inferior dos europeus. livro Ordem e Progresso, escrito em 1957, obra em que que também não é estranha a influência da ‘história de
a obra de Freyre a revelar uma “singularidade da mesti- No desenvolvimento do enredo de Casa-Grande se propôs fazer um estudo extenso sobre a sociedade Trancoso’, com personagens que eram ‘negros velhos’
çagem (brasileira), invertendo os termos da equação e & Senzala, as relações entre escravos e senhores vão brasileira (para tanto aplicou 1.500 questionários, em perversos e de hórrido aspecto. De sorte que, para ser
positivando o modelo” (Schwarcz, 1995; 54). Já Skidmore ficando cada vez mais adocicadas, a ponto de o autor todo país, atingindo pessoas das mais diversas estrati- rigorosamente verdadeiro, devo afirmar que não rece-
(1976) afirma que a postura teórica assumida por Freyre: afirmar que: ficações sociais), podemos destacar alguns depoimen- beria bem o casamento de filho ou filha, irmão ou irmã,
tos em que as pessoas demonstram possuir profunda com pessoa de cor preta.” (1990; 357).
“... agradou aos brasileiros, pois ajudava a explicar a ori- “Os pretos e pardos no Brasil não foram apenas com- discriminação contra os “negros” e os “mestiços”. Aqui
gem da sua própria personalidade. Ao mesmo tempo, panheiros dos meninos brancos nas aulas das casas- vão alguns exemplos: É possível fazer a seguinte reflexão sobre a “de-
era a primeira vez que os leitores recebiam um exame -grandes e até nos colégios; houve também meninos mocracia racial”, ela pode ser entendida como um
erudito do caráter nacional brasileiro com uma desi- brancos que aprenderam a ler com professores negros. “Já Heitor Modesto (d’Almeida) nascido em Minas “mito”6 nacional brasileiro. Mesmo aqueles que não
nibida mensagem de otimismo: os brasileiros podiam A ler e a escrever e também a contar pelo sistema de Gerais, em 1881, depois de recordar ter recebido, ‘em reconhecem a sua existência não propõem uma socie-
orgulhar-se da sua civilização tropical, original e etnica- tabuada cantada” (idem; 415). dade sem a sua presença. Isto demonstra que o ima-
mente mestiça, cujos vícios sociais – que Gilberto Freire ginário social do brasileiro, seja ele “branco”, “negro”,
4. A importância de Casa-Grande & Senzala, está em sua proposta
não subestimou – deviam atribuir-se principalmente teórica culturalista que se propunha a desvendar o que fazia do
“mestiço” – talvez até mesmo “indígena” – não concebe
2. Em depoimento dado à TV Cultura de São Paulo, em um pro-
à atmosfera de monocultura escravista que dominava grama sobre o livro Casa-Grande & Senzala, exibido pela primeira Brasil uma nação multirracial. A maneira de relatar e as fontes
uma sociedade em que as relações “sócio-raciais” se-
o país até a segunda metade do séc. XIX. As conse- vez, em maio de 1994, Gilberto Freyre afirma “que somente a índia utilizadas causaram bastante impacto, devido ao seu ineditismo.
qüências danosas da miscigenação provinham não da fêmea contribuiu para a colonização do Brasil”. 5. O “luso-tropicalismo” não está presente em Casa-Grande & 6. Aqui mito está sendo entendido como “um modo de significa-
mistura de raça em si, mas da relação malsã de senhor 3. Para maiores informações sobre este tema consultar Omar Ri- Senzala, mas foi sendo incorporado à teoria de Freyre ao longo ção”, como “uma fala” social . (Barthes, 1972; 131). Uma outra fonte
e escravo debaixo da qual se fizera” (pág. 211). beiro, 1996, Do Saber Colonial ao Luso Tropicalismo. do desenvolvimento de seus estudos sociológicos. é Feijoada e Soul Food, Fry, 1982.

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jam conflituosas. Neste sentido, podemos afirmar que Estado, mas também pretendem ver respeitadas a suas alunos trabalharam em estreito contato, na Bahia, com plicação de que esta posição não tinha qualquer ligação
a “democracia racial” parece ser um valor bastante caro diferenças. Thales de Azevedo (Universidade da Bahia), enquanto com o fator “racial”, nem com a cor, mas era sim um
para os brasileiros. A representação de “democracia racial” brasilei- que Bastide trabalhou com Florestan Fernandes, em reflexo da situação educacional e social que o “negro”
A “democracia racial” tem para o brasileiro a mes- ra só sofrerá um forte ataque na década de 1950, jus- São Paulo, também com a ajuda de fundos da UNES- e o “mulato” viviam em nossa sociedade.
ma função que o “credo americano” tem para o norte- tamente quando a UNESCO, após entender que esta CO. Uma terceira pesquisa patrocinada pela UNESCO Este racismo encoberto, disfarçado, fez com que o
-americano, segundo Myrdal, ele é o “cimento na estru- forma de convivência pacífica sustentada pelo governo foi feita por René Ribeiro (Instituto Joaquim Nabuco) e “negro” e o “mulato” não conseguissem entender que
tura variegada (daquela) nação” (Rose, 1968; 41). Este brasileiro entre “raças” era bastante salutar, assumiu a no Rio de Janeiro por Luís Costa Pinto (Universidade sua condição de inferioridade social foi construída, que
“credo” defende a “dignidade essencial do indivíduo, posição de estudar este fenômeno para poder melhor do Brasil)” (Skidmore, 1976; 236). era resultado de uma discriminação em que a “raça”
da igualdade básica de todos os homens e de certos divulgá-lo em outras sociedades racistas no mundo: era “fundida” com a situação de classe social. Segundo
direitos inalienáveis à liberdade, à justiça e às mesmas África do Sul e Estados Unidos, principalmente. Não Depois da divulgação dos resultados obtidos, prin- Fernandes, os “brancos” defendiam a discriminação
oportunidades representam, para o povo americano, podemos esquecer que o mundo ainda tinha muito viva cipalmente, pela equipe coordenada por Roger Bastide racial para não perderem seus privilégios na sociedade
o significado da primeira luta da nação pela indepen- na memória, neste período, as atrocidades ocorridas e Florestan Fernandes, a tão falada “democracia racial” dividida em classes. Os “negros” e os “mestiços” enten-
dência” (idem; 42). Para Myrdal, “os negro americanos na 2ª Grande Guerra Mundial, assim como estavam brasileira passou a sofrer ataques cada vez mais viru- diam que, para conseguir galgar uma posição melhor,
sabem que constituem um grupo oprimido que, mais em pleno desenvolvimento as lutas anti-colonialistas lentos. Isso porque as descobertas feitas pela equipe deveriam ter a mesma postura que os “brancos”, não
que qualquer outro na nação, sofrem as consequências na África e na Ásia. destes estudiosos levaram alguns cientistas a criticar percebendo que, ao assumir esta posição, legitimavam
de o Credo não ser ali observado. A fé que nele depo- as fantasias da sociedade brasileira em relação a seus os interesses dos “brancos” das classes médias e das
sitam, entretanto, não é simplesmente um meio para conceitos de relações “raciais”. Os estudos realizados elites. Com esta atitude, eles estavam ao mesmo tempo
pleitear seus direitos. Do mesmo modo que os brancos, por cientistas como: Octavio Ianni, As Metamorfoses abandonando qualquer possibilidade de combater a
acreditam que, como uma parte de si próprio, o Credo
A PESQUISA DA UNESCO do Escravo (1988); Oracy Nogueira, Relações Raciais no discriminação e ao racismo brasileiro.
impera nos Estados Unidos” (ibidem; 41). Município de Itapetininga (1955); Fernando Henrique Para Florestan Fernandes, o que de fato existia no
Se atentarmos para o fato de que a “democracia Após várias discussões ocorridas em colóquios in- Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional Brasil era um paralelismo entre estratificação racial e
racial” no Brasil é pensada no campo religioso (sin- ternacionais entre intelectuais das Ciências Sociais, a (1960), dentre outros, demonstraram que o que se tinha social, resultando em uma perspectiva em que a con-
cretismo), no social (miscigenação) e no econômico UNESCO aprovou em sua 5ª Conferência Geral, ocor- no Brasil era uma sociedade em que os “negros” e os dição desvantajosa do “negro” e do “mulato” passava
(igualdade de oportunidades), apesar de sua duvidosa rida em julho de 1950, na cidade de Florença, Itália, a “mulatos” não possuíam, de fato, os mais elementares a ser entendida como natural. Este paralelismo fazia
existência, poderíamos afirmar que ela pode ser enten- realização de uma pesquisa sobre relações raciais no direitos sociais. A relação entre os “brancos”, “negros” com que os brancos cultivassem explicitamente um
dida na mesma chave do “fato social total” maussiano, Brasil. O mentor intelectual de tal proposta foi Arthur e ”mestiços” era desigual, mas esta disparidade era vista “preconceito retroativo”, na opinião de Lilia Schwarcz
isto é, ela pode exprimir “ao mesmo tempo e de uma Ramos, cientista social brasileiro que havia falecido há como sendo “natural”, não como resultado de qualquer (1995), um “preconceito de ter preconceito” (Fernan-
só vez todas as espécies de instituições: religiosas, jurí- oito meses (Maio, 1997). discriminação racial contra os “negros” e “mestiços”. des, 1965: 299).
dicas e morais - e estas políticas e familiares ao mesmo A proposta inicial era que se fizesse pesquisa, em Florestan Fernandes, em sua obra A Integração do Após a divulgação dos resultados das pesquisas
tempo...” (Mauss, 1988; 53). Nesse sentido, o brasilei- alguns países da América Latina, para se conhecer a re- Negro na Sociedade de Classes (1965), defende que a desenvolvidas pelas equipes coordenadas por Bastides
ro, seja ele “negro”, “mestiço”, “branco” ou “índio”, não alidade sobre as relações raciais harmoniosas existentes passagem do trabalho escravo para o trabalho livre no e Fernandes, em que a “democracia racial” revelou-se
consegue propor uma sociedade em que as diferenças neste continente. Ou seja, inicialmente a UNESCO de- Brasil se deu de modo que o “negro” e o “mulato” não como um “engodo”, ou uma enorme “falácia”, a UNES-
“raciais” sejam respeitadas e garantidas; mesmo porque fendia a elaboração de um estudo comparativo (Maio, fossem integrados à nova sociedade. Após esta primeira CO abandonou o projeto de divulgar todos os dados.
não conseguem, entre eles mesmos, delimitar fronteiras 1997; 51). Alguns representantes de países tais como “El fase de total desajuste do “negro”7 e do “mulato” à nova Esta posição foi adotada não porque discordasse das
de cor. Essa situação é bastante diversa da experimenta- Salvador e da França ponderaram que a pesquisa sobre forma de produção, estes foram sendo integrados gra- conclusões, mas sim porque os resultados não se pres-
da pela sociedade americana, que se pauta em modelos contatos raciais num só país limitaria uma possível ge- dativamente, mas, inicialmente, somente em funções tavam à sua intenção inicial, que era a de combater o
biológicos de delimitação racial. neralização dos seus resultados” (Idem; 52). marginalizadas. A discriminação se deu de maneira tão racismo no mundo.
O negro brasileiro também entende que é bastante Devido à grande divulgação da “democracia ra- sutil que o “negro” e o “mulato” não tiveram como se Não podemos afirmar que em A Integração do Ne-
prejudicado em nossa sociedade, mas a ideia da “demo- cial” brasileira feita, tanto por Gilberto Freyre como por colocar contra a situação que lhes foi reservada. Por ela gro na Sociedade de Classes Florestan Fernandes tenha
cracia racial” permite-lhe exigir igualdade de tratamen- outros intelectuais, tais como: Donald Pierson, Arthur nunca ter sido assumida claramente no Brasil, as suas encontrado uma sociedade muito diferente da vista por
to e uma real integração com os “brancos”, o que não Ramos, ou mesmo pelo governo brasileiro, segundo vítimas não tiveram condições de tomar consciência de Freyre. Porém, o que para Freyre era positivo passou
notamos na sociedade norte-americana: lá a democra- Skidmore: sua existência para combatê-la. Segundo o autor, todo a ser considerado extremamente prejudicial para os
cia social demonstrou-se possível embora a sociedade ataque preconceituoso era acompanhado por uma ex- “negros” e “mulatos” por Fernandes. Para ele, a não
seja dividida em “raças” e grupos étnicos, inconciliá- “Entre os scholars estrangeiros que realizaram exten- inclusão do “negro” e do “mulato” na nova sociedade,
veis entre si, pelo menos no campo político-ideológico sas investigações de campo no Brasil estavam Charles 7. As aspas nos termos “negros” e “mulatos”, nesta altura do com o fim do trabalho escravo, resultou em um enorme
dominante naquele país. Apesar das divisões sociais, Wagley (Columbia University) e Roger Bastide (Éco- texto são para tentar reproduzir a mesma postura que Fernandes atraso no processo de inserção na “sociedade inclusiva”.
os negros americanos querem um tratamento igual do le Pratique dês Hautes Études – Paris). Wagley e seus assume em sua obra. O que se entendeu como uma “democracia racial” era

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um “preconceito retroativo” o que não permitia a essas O Movimento Unificado Contra a Discriminação que havia retornado recentemente de um auto-exílio Assim, podemos afirmar que a desistência da
populações, os “negros” e os “mulatos”, defenderem-se, Racial (MUCDR) foi fundado em 1978, ainda durante nos Estados Unidos9, defendeu uma luta contra a dis- UNESCO em veicular os resultados das pesquisas so-
devido à forma “mascarada”, “dissimulada” e “disfarça- a ditadura militar. Na época de sua criação nenhum criminação racial a ser assumida somente pelos negros. bre a existência da “democracia racial” no Brasil, não
da” como se manifestava. segmento social podia fazer qualquer manifestação Nesse sentido, em sua opinião, o nome do grupo deve- impediu que o MNU procurasse exatamente nos pro-
Se Florestan Fernandes não via “democracia racial” pública sem o consentimento dos responsáveis pela ria ser Movimento Negro Unificado Contra a Discri- dutos desses trabalhos grande parte das premissas para
nas relações “sócio-raciais” brasileiras, também não era “segurança” do sistema político vigente. Ele surge, em minação Racial (MNUCDR). Essa nova denominação a construção de seus argumentos contra as discrimi-
contra a sua existência. Somente partindo desse pressu- um primeiro momento, como forma de protesto contra prevaleceu até o Primeiro Congresso do MNUCDR, nações e preconceitos raciais existentes em nosso país.
posto é possível se entender a seguinte afirmação, deste a discriminação racial sofrida por quatro atletas ne- ocorrido em 1980, na cidade do Rio de Janeiro, reu- Sobre este fenômeno Florestan afirmou:
autor: “(...) seria preciso atingir esse padrão (socieda- gros no Clube de Regatas Tietê, localizado no bairro nindo delegados do Rio de Janeiro, de São Paulo, da
de com uma forte democracia social), que nos protege do Bom Retiro, zona central da cidade de São Paulo. Bahia, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e do “A ausência de racismo institucional, por sua vez,
contra as ameaças do racismo, mas também nos afasta Outro motivo foi a tortura, que resultou na morte do Espírito Santo. Foi discutido que o Movimento Negro contribuiu para que esses resultados (da pesquisas da
da verdadeira trilha da “democracia racial” (idem; 297). operário Robson Silveira da Luz, ocorrida no 44° Dis- deveria lutar contra todo e qualquer tipo de opressão, UNESCO): 1.º) recebessem acolhida muito favorável
Em outra parte do texto Fernandes escreve: “ou- trito Policial de Guaianazes. exploração e discriminação, e não somente garantir a por parte dos radicais e ativistas negros, que viram
via-se, por fim, o clamor da ‘gente negra’, soando, pela Quando fundado, tinha a pretensão de representar oposição à discriminação racial. Assim, foi proposto neles um prolongamento e um aprofundamento das
primeira vez, o clarim que convocava todos os homens a união de todas as entidades negras brasileiras, mas que o nome do grupo deveria ser Movimento Negro tentativas de desmascaramento racial encetadas pelos
a cumprirem os ideais da fraternidade humana e da de- esta meta jamais foi atingida, porque alguns grupos ne- Unificado (MNU), o que foi nessa ocasião aprovado. principais mentores do ‘protesto negro’ nas décadas de
mocracia racial” (ibdem; 6). Já Ribeiro, outro autor que gros não concordaram com o lançamento do MUCDR. Este é o nome da entidade até nossos dias. 30 e de 40; 2.º) fossem aceitos com simpatia e incor-
combate o preconceito/discriminação brasileiro, num Na opinião de certas lideranças dessas organizações, Para não diminuir drasticamente a sua base, o porados pelo branco inconformista, de personalidade
texto escrito trinta anos após Fernandes, diz: “Tudo isso o lançamento do MUCDR estava ocorrendo sem que MNU passou a afirmar que negro era toda e qualquer democrática e identificado com a mudança de menta-
demonstra, claramente, que a democracia racial é possí- antes fosse feito um trabalho de “conscientização de pessoa “que possui na cor, no rosto, ou nos cabelos, lidade ou de costumes” (1976; 71).
vel, mas só é praticável conjuntamente com a democra- base” e por esse motivo optaram por não participar da sinais característicos dessa raça” (MNU, 1988; 18). Com
cia social. Ou bem há democracia para todos, ou não há nova entidade. O maior representante dessa postura esta plataforma percebe-se que a opção de identidade Apesar de não ter logrado unir todas as entida-
democracia para ninguém, porque a opressão do negro política foi Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN). negra defendida por esse grupo procura se utilizar da des negras, o MNU conseguiu, através das propostas
condenado à dignidade de lutador da liberdade corres- O MUCDR foi um projeto pensado inicialmente “marca” e da “origem” (Nogueira, 1985) em sua cons- publicadas em vários de seus documentos e panfletos,
ponde o opróbrio do branco posto no papel de opressor por negros que se autodenominavam trotskistas e que trução. O que consolidou a postura racialista assumida influenciar profundamente outras organizações negras,
dentro de sua própria sociedade” (id. IBID., 1995; 227). militavam na Liga Operária – depois transformada em por este grupo político. mesmo aquelas que não aceitaram participar de sua
O que podemos perceber nos dois textos é que, Convergência Socialista -, organização que editava o Abdias Nascimento não contribuiu somente para fundação. As opiniões sobre “o que é ser negro no Bra-
apesar de a sociedade brasileira ser tão autoritária e jornal Versus. O MUCDR foi resultado da somatória a alteração da denominação do grupo; influiu também sil” assumidas pelo MNU, foram adotadas por quase
opressiva, social e politicamente falando, e também de vários grupos sociais que existiam naquele período. na construção de uma posição político-ideológica do todo o conjunto do Movimento Negro.
sempre discriminar e oprimir os seus “negros” e “mes- A grande novidade trazida por ele foi a tentativa de jun- MNU: através de seus discursos, ele passou a informar As diferenças mais destacadas entre o MNU e ou-
tiços”, a “democracia racial” é de fato um mito, antro- tar a luta dos negros brasileiros contra a discriminação as pessoas sobre as posturas racialistas assumidas pelo tras entidades do Movimento Negro estão na forma
pologicamente falando, ou seja, um valor sociológico à luta contra a Ditadura Militar. Em um Ato Público Movimento Negro americano. Além de Abdias, algu- de organização destas que, por serem municipais, não
que dá sentido e justifica as relações sociais desta nação. ocorrido em 7 de julho de 1978, ocorreu o lançamento mas leituras foram de grande serventia para a formação concordavam em se submeter a uma liderança nacio-
público do MUCDR, ocorrido nas escadarias do Teatro dos primeiros quadros políticos do MNU, tais como: nal, que seria o MNU. Alguns, por serem cristãos, não
Municipal de São Paulo. Foram convidados a discursar Alma no Exílio, de Eldridge Cleaver (1971); A Integra- apoiavam a opção religiosa afro-brasileira também de-
representantes sindicais, de grupos homossexuais, da ção do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fer- fendida pelo MNU, outros, por terem uma postura po-
PEQUENO HISTÓRICO comunidade judaica, comunistas e lideranças estudantis. nandes (1965); Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz lítica conservadora, também discordavam de sua opção
DO MOVIMENTO NEGRO Outra novidade foi o movimento assumir um Fanon, etc. A análise dessas obras, somadas à militância pela esquerda. Essas situações fizeram com que o MNU
UNIFICADO - MNU caráter nacional.8 Logo no momento de sua criação o de esquerda de boa parte de seus fundadores, levaram o assumisse, pouco a pouco, a condição de mais uma or-
MUCDR contou com o apoio de grupos dos seguin- MNU a unir a luta de classes à luta anti-discriminação ganização negra entre todas as já existentes. Melhor
Como já falamos anteriormente, o mito da “demo- tes estados da União: São Paulo; Rio de Janeiro; Mi- racial. Dessa maneira, o MNU teve uma forte influência dizendo, o MNU não conseguiu ser a “Central Geral
cracia racial” brasileira pode dar sentido, a tal ponto nas Gerais; Bahia e Pernambuco. Em sua “Primeira das plataformas dos negros norte-americanos, assim do Movimento Negro Brasileiro”, mas acabou se organi-
que lutar por uma sociedade mais justa e sem discri- Assembléia de Organização e Estruturação Mínima”, como das pesquisas desenvolvidas pelas equipes dos zando como mais um dos diversos grupos já existentes.
minação, sem preconceito e racismo, não é uma ação Abdias Nascimento, militante do Movimento Negro, professores Roger Bastide e Florestan Fernandes. Uma das contribuições do MNU para a socieda-
quixotesca, muito pelo contrário. Só assim podemos de brasileira foi a tentativa de mudar a maneira de se
tentar entender a existência de grupos de negros lutan- 8. Isto só havia ocorrido anteriormente com a Frente Negra Brasi- 9. Para maiores informações consultar Memórias do Exílio, Ca- identificar um negro. Como já foi dito anteriormente,
do contra o racismo no Brasil. Senão vejamos. leira (FNB), fundada em 16 de setembro de 1931 (Pinto, 1993; 90). valcante e Ramos (1976). o MNU procurou na sociedade norte-americana esta

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nova forma de significação. Para o grupo seria negro social em Florianópolis: aspectos das relações entre / Curitiba, Scientia ET labor (2ª ed. rev. e aum.), nia negra. Dissertação de Mestrado defendida no
toda e qualquer pessoa que tivesse um ancestral ne- negros e brancos numa comunidade do Brasil. São 1988. departamento de Ciências Sociais da PUC/SP, 1992.
gro. Apesar de adotar a posição dos EUA, o MNU fez Paulo, Brasiliana,1960. MAIO, Marcos Chor. A história do protesto Unesco: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro:
suas adaptações com relação a essa postura, levando CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa e RAMOS, Jovelino estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese de jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
em conta a fenotipia, o que, como vimos, não ocorre (coord.). Memória do Exílio: Brasil 1964-19??. São doutorado, 1997. do século XIX. São Paulo, Companhias das Letras,
naquele país. Paulo, Editora e Livraria Livramento Ltda, 1976. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: com introdução 1987.
Outra contribuição do MNU foi ter aproximado a CLEAVER, Eldridge. Alma no exílio. Rio de Janeiro, de Claude Lévi-Strauss. Lisboa, Edições 70, 1988. _______. O espetáculo das raças: cientistas, instituições
luta de classes da questão “racial”. Isto é, por influência Civilização Brasileira, 1971. MENDONÇA, Luciana Ferreira Moura. Movimento e questão racial no Brasil. São Paulo, Companhia
dos trotskistas do jornal Versus, o MNU passou a con- CUTI (org.). ...E disse o velho militante José Correia Negro: da marca da inferioridade racial à constru- das Letras, 1993.
siderar que a condição sócio-econômica da população Leite: depoimentos e artigos. São Paulo, Secretaria ção da identidade étnica. São Paulo, dissertação de _______. Complexo de Zé Carioca: sobre uma certa
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propostas pedagógicas
propostas pedagógicas

POR que ENSINAR


A HISTÓRIA DO NEGRO aos outros segmentos raciais da sociedade. Coletiva-
mente, estamos ainda mal por causa do não reconhe-
cial de cunho colonial que ainda considera a África
como um continente atrasado e inferior, onde o Brasil
NA ESCOLA BRASILEIRA? cimento público da nossa identidade específica, ape-
sar da certeza de que ela contribui na modelação da
foi buscar a mão de obra escravizada que ali existia
naturalmente; a mesma historiografia que considera
identidade nacional e faz parte do cotidiano de todos o negro brasileiro como um boçal, ou seja, um João
Por que implementar política de ação afirmativa na universidade e no Professor os brasileiros. bobo que se deixou facilmente escravizar e nunca se
ensino superior brasileiro? – Palestra proferida no Seminário do NEAA – Estas realidades deram origem a duas questões importou com sua liberdade e dignidade humanas,
Kabengele Munanga hoje apaixonadamente em debate na sociedade bra- contrariamente ao índio que tinha amor à liberdade e
Londrina – 26 de março de 2011
Kabenguele Munanga, doutor em antro- sileira, ou seja, a implementação de políticas de ação não se deixou escravizar.
pologia pela Universidade de São Paulo Como então descontruir essa imagem negativa da
afirmativa capazes de compensar as perdas acumuladas
e professor titular do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, e promover a igualdade racial do negro, por um lado, e África e do negro no Brasil herdada da historiografia
Letras e Ciências Humanas da USP. o reconhecimento de suas identidades específicas, por colonial e reconstruir uma nova imagem de uma África
outro lado. As duas questões constituem, a meu ver, as real e autêntica e do negro real e autêntico? Qual seria
vertentes atuais nos debates sobre a situação o negro a proposta de um curso capaz de realizar essa descon-
no Brasil hoje. trução e reconstrução?
A Lei 10.639 promulgada pelo presidente da Re- Essa seria a pauta de uma agenda mínima que de-
pública em fevereiro de 2003 contempla, sem dúvida, a vemos cumprir para colocar em funcionamento a Lei
reivindicação do reconhecimento oficial da identidade 10.639. Infelizmente, o caminho não é fácil por causa
coletiva do negro, mas seu funcionamento efetivo ne- das dúvidas e resistência tanto no meio da algumas es-
cessita de algumas ações ainda em equacionamento. A colas e de alguns educadores como no meio da impren-
implementação das políticas de ação afirmativa no setor sa e de alguma elite intelectual. Onde estão finalmente
do ensino público superior e universitário desembocou os problemas?
numa polêmica que prejudicou a votação no Congresso Todos os países do mundo, hoje considerados
Nacional da Lei das cotas, sem necessariamente em- como os mais desenvolvidos, são aqueles que investi-
Ser negro no Brasil hoje significa coisas ao mesmo contribui na construção da economia colonial do país, perrar a dinâmica própria de algumas universidades ram maciçamente na educação de qualidade para seus
tempo positivas e negativas; coisas que não podemos no povoamento do território brasileiro e na construção públicas que independentemente da lei recorrem a sua jovens e futuros responsáveis. A questão é saber que
captar, canalizar, analisar e entender sem fazer um cer- de sua identidade plural nacional. autonomia interna para discutir a questão e tem dado tipo de educação o Brasil precisa desenvolver para sair
to recuo histórico no tempo e espaço. No imaginário Depois dessa longa história, o negro no Brasil hoje uma adesão significativa. É o caso da UEL. da situação em que se encontra hoje. Uma educação
coletivo de muitos, os negros de hoje são vistos apenas estaria andando com cabeça erguida e orgulhoso de ter As considerações sobre estas duas vertentes podem que visa não somente o domínio das teorias e novas
como consequência e resultado de uma história que participado e contribuído na construção do seu país, ser objetos de grandes conferências e debates que não tecnologias, que embora imprescindíveis não seriam
começou nos séculos XV e XVI com o tráfico humano apesar das condições históricas caracterizadas pela poderia esgotar aqui por falta de tempo. Por isso, toca- suficientes, mas também e sobretudo uma educação
dos africanos e sua escravização no Brasil. violência com que foram trazidos, apesar das relações ria apenas em alguns aspectos que considero relevantes. cidadã orientada na busca da construção e consoli-
Entre o tráfico, a escravização e a abolição oficial assimétricas do poder durante a escravidão. Com efeito, a Lei 10.639/03 que torna obrigatório dação do exercício da cidadania, dos princípios de
em 1888, cerca de 300 anos se passaram. Entre a abo- Estamos com cabeça erguida e orgulhosos de ser- o ensino da história da África, da história e cultura do solidariedade e equidade. Uma tal educação convida
lição formal e hoje, 123 anos já se passaram. Trata-se mos negros no Brasil hoje? negro no Brasil coloca-nos alguns problemas práticos para um olhar crítico sobre as questões relacionadas
de uma história de cerca de 500 anos que não se reduz Talvez sim, talvez não! Talvez sim, para os que têm ainda não totalmente equacionados. Do equaciona- com a construção de nossas identidades individuais
apenas ao tráfico, à escravidão e à abolição. consciência de que fizemos a nossa parte e não temos mento desses problemas depende o funcionamento e coletivas, fazendo delas uma fonte de riqueza e de
É por isso que para entender o “Ser negro no Brasil o que porque nos envergonhar; talvez não, para os que efetivo da lei: 1) que África ensinar e que história do desenvolvimento individual e coletivo. Ora, a educação
hoje”, não podemos simplesmente fazer uma análise ainda andam com cabeça e auto-estima baixas, para os negro no Brasil ensinar; 2) quem vai ensinar e 3) a habitualmente dispensada aos nossos jovens é enfoca-
da estrutura racista da sociedade brasileira atual sem que alienaram sua humanidade e sua identidade e que partir de que livros e materiais didáticos e bibliográ- da geralmente numa visão eurocêntrica que além de
colocar esse negro numa dinâmica histórica na qual precisam de uma ação afirmativa para descontruir a ficos ensinar? Ou seja, é-nos colocado a questão da ser monocultural, não respeita nossas diversidades de
ele foi objeto de desumanização, de humilhações, de imagem negativa de si introjetada e construir uma nova definição do conteúdo da história da África e do negro gêneros, sexo, religiões, classes sociais, “raças” e et-
negação de identidade genérica e específica, enfim imagem positiva. no Brasil; da formação dos educadores ou professores e nias, que contribuíram diferentemente na construção
objeto de uma série de violências físicas e simbólicas, De qualquer modo, coletivamente estamos mal por da produção dos livros, materiais didáticos e bibliográ- do Brasil de hoje, que é um Brasil diverso em todos
e também sujeito de resistência para a defesa de sua que constituímos ainda a maior vítima de preconceito ficos divorciados da historiografia colonial. A África é os sentidos.
liberdade e dignidade humanas em todos os sentidos: e discriminação racial em numerosos setores da vida tão complexa e diversa que fica difícil definir por onde A construção das políticas sobre diversidade cul-
político, cultural, religiosos, artístico, etc. Como sujeito nacional; preconceito e descriminação que engendram começar, além do fato de que o conteúdo da África tural e ou etnicorraciais é uma realidade que está na
da história positiva do Brasil, esse negro coletivamente desigualdades e perdas acumuladas comparativamente até então à disposição é viciado pela historiografia ofi- agenda de todos os países do mundo. A imagem de

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um Estado-Nação construída com base numa única tribuições na forma do povo brasileiro, na construção sim na aceitação das diversidades como bandeira de clusão. Apesar da inexistência das raças puras como
cultura, isto é, numa única língua, numa única religião, de sua cultura e de sua identidade plural. luta, para exigir a convivência igualitária de todos. nos ensinam a genética humana e a biologia molecular,
numa visão do mundo está se tornando cada vez mais Mas a questão fundamental que se coloca hoje é o Finalmente, penso que construir políticas sobre a nós não pudemos deixar de observar que as diferenças
uma raridade, se não um mito. reconhecimento oficial e público dessas diversidades diversidade cultural e implantá-las no nosso sistema fenotípicas baseadas nas características morfológicas
A Europa Ocidental que invadiu outros povos, que até hoje estão sendo tratadas desigualmente no educacional não significa destruir a unidade nacional e na cor da pele são reais e são elas que justamente
colonizou-os, pilhou e tentou destruir a riqueza da di- sistema educacional brasileiro, além dos portadores como pensam alguns defensores das teses de Gilberto constituem, no caso da população negra, os germes a
versidade cultural dos países colonizados revela hoje dessas identidades de resistência serem ainda vítimas Freyre. Seria simplesmente equacionar a unidade com partir dos quais são construídos o preconceito racial
que sua unidade de fachada era apenas uma armadilha de preconceitos e de discriminação racial, até da se- a diversidade, ou seja, construir a unidade respeitando e o racismo.
ideológica para justificar a “Missão Civilizadora” e a gregação racial de fato. Todos devem se lembrar das a diversidade que constitui sua matéria prima e uma Quem somos, de onde viemos e para onde vamos?
exploração dos outros povos. Os exemplos que des- campanhas de difamação e demonização das religiões fonte da riqueza coletiva. Diversidade na unidade não Esta é uma pergunta que todos os povos conscientes se
mentem a unidade cultural dos países da Europa e do brasileiras de matrizes africanas em algumas emissoras deve sugerir uma diversidade hierarquizada em cultu- colocam permanentemente, de geração em geração. É
mundo ocidental em geral pululam: Espanha, Bélgica, de televisão. O que pode engendrar barricadas cultu- ras superiores e inferiores. Sem dúvida devemos conde- uma pergunta que tem a ver com as raízes culturais dos
Suíça, Itália, Canadá, Irlanda do Norte, etc. rais e gerar conflitos capazes de prejudicar justamente nar todas as formas de intolerância, mas o que devemos povos e com os processos de construção de nossa iden-
Essa falsa imagem dos países ocidentais monocul- a construção da democracia e do pleno exercício da buscar, afinal, não é tolerância, mas sim a convivência tidade nacional e de nossas identidades étnicas. Esses
turais está cada vez mais desmentida pelas novas cor- cidadania dos descendentes de escravizados de ontem igualitária das culturas, identidades, dos grupos e so- processos começaram há cerca de 500 anos quando os
rentes migratórias vindas dos países ditos do terceiro que, apesar de serem juridicamente cidadãos livres, ciedades humanas, dos homens e mulheres. Visto deste povos africanos de diferentes nações foram sequestra-
mundo: da África, Ásia, América do Sul e do Oriente ainda não exercem igualmente sua cidadania e não ponto de vista, a melhor educação não é somente a que dos, capturados, arrancados de suas raízes e trazidos
Médio, que trazem desses países outras culturas, cons- têm a garantia de seus direitos sociais entre os quais a nos permite dominação da razão instrumental que au- para diversos países da América, incluído o Brasil, onde
troem novas diásporas e reivindicam o reconhecimento educação é uma peça central. xiliará nossa sobrevivência material numa sociedade foram escravizados. Eles nem sabiam por onde e para
público de suas identidades, de suas religiões e visões Recordo-me que quando a Lei 10.639/2003 foi pro- baseada na lei do darwinismo social, mas também, e onde estavam sendo levados e por que motivos. Ou
de mundo. Essas reivindicações geram problemas de mulgada pelo presidente da República, houve algumas sobretudo, uma educação cidadã baseada nos valores seja, a história da presença dos africanos no atual Bra-
convivência decorrentes dos preconceitos e dos meca- reações negativas até na imprensa, das pessoas que da solidariedade e do respeito das diversidades que ga- sil é totalmente diferente da de seus compatriotas de
nismos de discriminação cultural ou etnicorracial dos questionavam a generalização do ensino obrigatório da rantem nossa sobrevivência, enquanto espécie humana. ascendência europeia, asiática, árabe, judaica, oriental,
quais são vítimas. Daí a necessidades nesses países de história da África e do negro brasileiro até nos estados De antemão, quero admitir e discutir todas as teses etc. que voluntariamente decidiram emigrar de acordo
novas diásporas de discutir, construir e incrementar e municípios brasileiros onde os negros são minoria ou dos que dizem que não há racismo em suas escolas, que com a conjuntura política e econômica da época que
suas políticas sobre diversidades culturais e etnicorra- quase não são demograficamente representados. a cultura brasileira é sincrética ou mestiça, que a raça teria influenciado sua decisão para sair de seus respec-
ciais para evitar as barricadas culturais e buscar o diá- Reagem negativamente algumas educadoras e al- não existe, etc., pois mesmo na hipótese de aceitar essas tivos países de origem. Vista deste ponto de vista, a
logo intercultural. Todos buscam a construção de uma guns educadores, alegando que se está tentando intro- teses que são totalmente opostas às minhas, não vejo identidade negra não surge simplesmente da tomada
cultura de paz baseada na convivência igualitária das duzir um racismo às avessas em suas escolas onde este nenhuma contradição ou impedimento à iniciação de de consciência de uma diferença de pigmentação ou de
diversidades. Nunca se falou tanto da diversidade e da fenômeno não existe ou nunca existiu; alguns criticam um diálogo que introduz a temática da diversidade uma diferença biológica entre populações negra, branca
identidade como no atual quadro do desenvolvimento a proposta de educação multicultural na sociedade bra- cultural ou etnicorracial na escola brasileira, pois todos e amarela. Ela resulta desse longo processo histórico ao
mundial dominado pela globalização da economia, das sileira que, segundo eles, é uma sociedade de cultura e os países do mundo estão no mesmo barco. Não existe qual me referi. É nesse contexto histórico que devemos
técnicas e meios de comunicação. identidade mestiças e não diversas; outros acham ab- nenhum país no mundo hoje onde a temática do mul- entender a chamada identidade negra no Brasil, num
Nos países da América do Norte e do Sul, que são surdo falar ainda de raças, quando a própria ciência ticulturalismo ou da diversidade na educação não está país onde quase não houve um discurso ideológico ar-
não apenas países de velhas migrações, mas também biológica já provou que raça não existe, etc. na pauta da discussão. ticulado sobre identidade branca e amarela, justamen-
países de deportações humanas através do tráfico ne- Apesar dos progressos da ciência biológica (gené- Porque o Brasil, um país que nasceu da diversidade te porque os portadores da pele branca e amarela não
greiro, o quadro é totalmente diferente dos países oci- tica humana, biologia molecular, bioquímica, etc.) ter e do encontro das culturas, se daria ao luxo de negli- passaram por uma história semelhante à dos brasileiros
dentais, pois são paises que nasceram justamente do demonstrado que geneticamente não existem as raças genciar um assunto tão importante para a construção negros. Fala-se de identidade italiana, gaúcha, espanho-
encontro de culturas e civilizações. O Brasil oferece o puras, entendemos a raça como uma construção social de sua democracia? Mesmo admitindo a tese de que la, lusófona, judia, árabe, japonesa, chinesa, etc. E não
melhor exemplo de um país que nasceu do encontro a partir das diferenças fenotípicas baseadas na cor da nossa cultura e nossa identidade são mestiças, seria um da identidade branca e amarela.
das diversidades: os povos indígenas de diversas ori- pele e em outros elementos morfológicos entre negros, problema negar as raízes formadoras dessa mestiçagem. Sem dúvida, o tráfico negreiro é hoje considerado
gens étnicas, os europeus de diversas origens étnicas, brancos e amarelos. O nó da questão, ou melhor, a saí- Mesmo concordando que geneticamente as raças puras como uma das maiores tragédias da história da huma-
os africanos escravizados de diversas origens étnicas ou da, não estaria, do meu ponto de vista, no simples fato não existem, seria problemático negar a raça enquanto nidade, por sua amplitude, sua duração e os estragos
culturais, todos sem exceção deram suas notáveis con- de ensinar aos nossos alunos que raça não existe, mas construção social e categoria de dominação e de ex- provocados entre os povos africanos. Mas apesar da

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propostas pedagógicas

tragédia, foi graças aos sacrifícios desses africanos Finalmente, por que implementar as políticas de Fluminense (UENF) onde a política de cotas foi im- Alguns obstáculos propositalmente colocados sobre
e seus descendentes que foram construídas as bases ação afirmativa no ensino superior e universitário? plementada por meio de uma lei aprovada em 2001 as chances de sucesso das políticas de cotas se fizeram
econômicas do Brasil colonial. Mais do que isso, a re- Bem, eu ingressei no Programa de Pós-Graduação na Assembléia Estadual do Rio de Janeiro, dezenas de entender desde o início do processo em 2002. Felizmente
sistência que por sua vez contribuiu para modelar a em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo em universidades públicas federais e estaduais adotaram foram, no decorrer do tempo e do processo, eliminados
chamada cultura de nacional e a identidade nacional. 1975 através do programa de cooperação com algumas sistema de cotas a partir da decisão de seus respectivos um por um pela própria prática e experiência das cotas
Como somos vistos lá fora, no mundo ocidental? País universidades africanas. Fui o primeiro negro a con- conselhos universitários, baseando-se no princípio de nas universidades que as adotaram. Dizia-se no início que
do samba, do futebol, do carnaval, da feijoada, da mu- cluir o doutorado em antropologia social nessa univer- autonomia acadêmica. era difícil definir quem é negro ou afrodescendente por
lata, etc.! Isto é, os símbolos da resistência cultural dos sidade em 1977. Por mera coincidência, esse primeiro Contrariando todas as previsões escatológicas da- causa da intensa miscigenação ou mestiçagem ocorrida
negros, brancos e índios, mesmos aqueles que foram negro era oriundo do continente africano, especifi- queles que pensam que essa política provocaria um no país desde o seu descobrimento. Falsa dificuldade,
reprimidos durante a colonização, passaram a integrar camente da República Democrática do Congo e não racismo ao contrário, consequentemente uma guerra porque a própria existência da discriminação racial anti-
o processo de construção da cultura e da identidade do próprio Brasil. Três anos depois, ou seja, em 1980, racial devida à racialização de todos os aspectos da negro é prova de que não é impossível identifica-lo. Exis-
plural brasileira. Processo esse enriquecido também ingressei na carreira docente na mesma instituição, vida nacional, a experiência brasileira destes últimos tem evidentemente casos duvidosos, como os dos alunos
a partir do início do século XX, pelas contribuições no atual departamento de Antropologia Social onde anos mostra totalmente o contrário. Não há distúrbios gêmeos da UnB que mereceriam uma atenção redobrada
culturais orientais, principalmente japonesas. fui o primeiro e o único desde que essa disciplina foi e linchamentos raciais em nenhum lugar, assim como para não se cometer erro, mas não houve dúvidas sobre a
Esta herança cultural africana constitui uma das fundada. Daqui a dois anos estarei compulsoriamente não apareceu nenhum movimento de Ku Klux Klan identidade da maioria dos estudantes negro e mestiços
matrizes fundamentais da chamada cultura nacional e me aposentando sem que houvesse a possibilidade de à brasileira, prova de que as mudanças em processo que ingressaram na universidade através das cotas.
deveria por este motivo ocupar uma posição igual às um segundo docente negro nesse departamento. Creio, estão sendo bem digeridas e compreendidas pelo povo Disseram também que a política das cotas violaria
outras, isto é, as heranças europeias, indígenas, árabes, salvo prova em contrário, que esta é a história dos bra- brasileiro, contrariamente ao binóculo acadêmico. o princípio do mérito baseado no darwinismo social
judia, orientais, etc. Juntas, essas heranças constituem sileiros afrodescendentes, não apenas nas universida- Mais do que isso, as avaliações feitas até o momento segundo o qual na luta pela vida os melhores devem
a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e des, mas também em outros setores da vida nacional comprovam que apenas nesses últimos oito anos da ganhar. Pois bem, os melhores são aqueles que pos-
não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada que exigem formação superior para ocupar cargos e experiência das políticas de ação afirmativa, houve suem armas mais eficazes, que em nosso caso seriam
e conservada através das memórias familiais e do sis- postos de comando e responsabilidade. Geralmente são um índice de ingresso e de diplomados negros e indí- alunos oriundos dos colégios particulares mais bem
tema educacional, pois um povo sem memória é como ausentes ou invisíveis nesses postos e cargos. Quando genas no ensino superior jamais alcançado em todo aquinhoados financeiramente. Os outros que social-
um povo sem história. É justamente aqui que se coloca se tem um é sempre o primeiro e o único e raramente o século passado. mente não nasceram com essas possibilidades... que se
o problema, pois a herança cultural africana no Brasil o segundo e o terceiro. Encontrar três ou quatro juntos O que se busca pela política de cotas para os ne- virem! Finalmente, disseram que a política das cotas ia
nunca ocupou uma posição de igualdade com as ou- numa mesma instituição é motivo de festa! Esse qua- gros e indígenas, não é ter direito às migalhas, mas sim prejudicar o princípio de excelência, muito caro para
tras no sistema de ensino nacional. Se assim fosse não dro é considerado como gritante quando comparado ao ter acesso ao topo em todos os setores da responsabi- as grandes universidades. Mas felizmente, também, as
teria nenhum sentido a Lei 10.639 promulgada pelo dos outros países que convivem ou conviveram com as lidade e de comando na vida nacional onde esses dois avaliações feitas sobre o desempenho dos alunos co-
presidente da República 115 anos depois da abolição. práticas racistas como os Estados Unidos e a África do segmentos não são devidamente representados como tistas na maioria das universidades que aderiram ao
Não existem leis capazes de destruir os preconcei- sul. Os dados de nosso conhecimento mostram que na manda a verdadeira democracia. A educação e a forma- sistema não comprovaram a catástrofe. Surpreendente-
tos que existem em nossas cabeças e provenientes dos véspera do fim do regime da apartheid, a África do Sul ção profissional, técnica, universitária e intelectual de mente, os resultados do rendimento acadêmico desses
sistemas culturais de todas as sociedades humanas. A tinha mais negros com diplomas superior ou universi- boa qualidade representam a única chave e a garantia alunos foram iguais e até mesmo excepcionalmente
educação ofereceria uma possibilidade aos indivíduos tário que o Brasil de hoje. Só este exemplo basta para da competitividade entre todos os brasileiros. Neste superiores em alguns casos. Nem tampouco baixou o
para questionar os mitos de superioridade branca e de mostrar que algo está errado no país da “democracia sentido, a política de cotas busca a inclusão daqueles nível de excelência dessas universidades.
inferioridade negra neles introjetados pela cultura ra- racial” que precisa ser corrigido. brasileiros que por razões históricas e estruturas que Sobrou apenas uma acusação: a inconstitucio-
cista na qual foram socializados. Daí o sentido e a razão de ser das políticas de ação têm a ver com nosso racismo à brasileira, encontram nalidade da política de cotas ou reserva de vagas nas
O racismo é tão profundamente radicado no tecido afirmativa ou de reservas de vagas nas universidades barreiras que somente a educação e a formação supe- universidades que as adotaram. Estamos aguardando a
social e na cultura de nossa sociedade que todo repen- públicas nacionais que se desencadearam principal- rior podem em parte remover. Infelizmente, alguns in- decisão de STJ que a respeito organizou uma audiência
sar da cidadania precisa incorporar os desafios sistemá- mente após a III Conferência Mundial de Combate ao vertem a lógica da proposta e veem na política de cotas pública entre os dias 3 e 5 de março do ano passado
ticos à prática do racismo. Neste sentido, a discussão Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerân- a possibilidade de uma fratura da sociedade. Outros para escutar os pontos de vistas de diversos setores
sobre os direitos sociais ou coletivos no sistema legal e cia Correlata, realizada em Durban, na África do Sul confessam que têm medo, mas medo de que? De er- da sociedade, antes de tomar sua decisão. Enquanto
por extensão no sistema escolar é importantíssima. Por em agosto/setembro de 2001. rar ou de acertar? Uma sociedade que quer mudar não se espera essa decisão, o estatuto da igualdade racial
isso o espírito da Lei 10.639/03 visa justamente a cons- Nos últimos nove anos, a começar pelas universi- deve ter medo de mudar, nem dos conflitos, pois não há promulgado pelo ex-presidente da República, não se
trução de uma pedagogia multicultural e antirracista. dades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ) e do Norte mudança possível sem erros e sem conflitos, penso eu. posicionou contra as políticas de ação afirmativa.

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propostas pedagógicas

O ENSINO DE SOCIOLOGIA
E A LEI 10.639/03: CULTURA
AFRO-BRASILEIRA NO
LIVRO DIDÁTICO RESUMO
Pretendo neste artigo analisar o Livro Didático da disciplina de
ABSTRACT
I intend in this article to analyze the didactic book of disciplines of
Sociologia utilizado pelas escolas estaduais no 2º Grau, que foi Sociology, used for the schools in 2º Degree and that the order of
elaborado por vários autores a pedido do Governo do Estado the Government of the State of the Paraná was elaborated by some
Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer CRISÂNGELA do Paraná. Analisarei como são apresentados e discutidos no authors. I will analyze as two axles are presented and argued in the
emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que BIASSI DE ALMEIDA livro o capítulo “A Escola Enquanto Instituição” e a questão book: “the school while institution” and the ethnic-racial question,
o sucesso de uns tem o preço da marginalidade e da desigualdade impostas etnicorracial, no que diz respeito à população negra. Analisarei in what it says respect to the black population. I will analyze as they
a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para Formada em Ciências Sociais e Pós Gra­­ também como estão sendo trabalhados os conteúdos sobre a are being worked the contents on the Culture and African History
du­­­a­da em Ensino de Sociologia na Uni- Cultura e História Africanas e Afro-Brasileiras, conforme demanda and Afro-Brazilian, as demand of Law 10.639/03.
frente. (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
versidade Estadual de Londrina. Neste da Lei 10.639/03.
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira artigo foi orientada pela Pro­f essora
e Africana, 2005, p.14) Doutora em Antropologia da Uel Elena Palavras chave: livro didático, questão etnicorracial, ensino de Key - word: didactic book, ethnic-racial question, law 10639/03,
Maria Andrei. sociologia, lei 10639/03. education the sociology.

contribuiu para a cultura nacional brasileira, somando


INTRODUÇÃO CONTEXTO uma maneira de ser e de viver às estruturas fundamen-
tais da identidade do povo. Mesmo com a aculturação
A elaboração deste artigo busca analisar como, no livro DA QUESTÃO imposta por parte dos colonizadores portugueses, não
didático Sociologia: Vários Autores. Curitiba: SEED- foi possível eliminar os elementos da cultura africana,
-PR, 2006, estão sendo trabalhados os conteúdos sobre A economia brasileira do período colonial (1500 - que é presente na sociedade brasileira. O antropólogo
a Cultura e História Africanas e Afro-Brasileiras, con- 1889) era escravagista e ocupou a maior parte da nos- Kabenguele Munanga afirma que: “No plano cultural,
forme demanda da Lei 10.639/03 – norma que surgiu sa história. Milhões de africanos e seus descendentes destacam-se notáveis contribuições dos negros afri-
da demanda da comunidade e da luta do movimento influenciaram a sociedade brasileira. No entanto, após canos na língua portuguesa do Brasil, no campo da
negro no Brasil, em busca de uma educação crítica que a abolição, esta grande população de africanos ficou religiosidade, na arte visual, na dança, na música, na
discuta as relações etnicorraciais e a presença histórica perdida e à margem da sociedade. arquitetura, etc”. (MUNANGA, 2006: p.21)
e cultural da população negra no nosso país. Florestan Fernandes (1978) nos diz que, no mo-
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, relatora dos vimento de definição do negro inserido na realidade “As contribuições dos africanos trazidos para o Brasil,
trabalhos da Comissão que estabeleceu os parâmetros brasileira, já é possível apontar que a ordem capitalista de quem descendem os brasileiros de hoje, são de três
de funcionamento da Lei 10.639/03 escreve, no pare- moderna marcou a população negra pela pauperização ordens: econômica, demográfica e cultural. (MUNAN-
cer em defesa das Diretrizes Curriculares Nacionais e pelo impedimento do progresso, pois, mesmo estando GA, 2006: p.20)
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o dentro das cidades, estas pessoas não tiveram a possi- No plano econômico, os negros serviram como força
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africa- bilidade de progredir e, consequentemente, de emergir de trabalho, fornecendo a mão de obra necessária às
na, que as políticas de reparações, reconhecimento e socialmente. lavouras de cana de açúcar, algodão, café e à mineração.
valorização fazem parte das ações afirmativas voltadas A cultura negra possui raízes fortes no Brasil, devi- Uma mão de obra escravizada – sem remuneração–,
para a educação dos negros. Elas devem oferecer a do ao tempo da escravização dos africanos, e se mani- tratada de maneira desumana e submetidas a condições
essa população garantias de ingresso, permanência e festa mesmo diante da repressão e da negação que sofre de vida muito precárias. [...]. (MUNANGA, 2006: p. 20)
sucesso na educação escolar; de valorização do patri- constantemente. Após a Abolição, a população negra No plano demográfico, os africanos ajudaram no po-
mônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição foi desvalorizada e marginalizada, pois a elite brasileira voamento do Brasil, tão grande era o tráfico negreiro.
das competências e dos conhecimentos tidos como tentou importar a cultura europeia, inventar um Brasil (MUNANGA, 2006: p. 20)
indispensáveis para continuidade nos estudos; de branco e ignorar a cultura africana. Entretanto, apesar No plano cultural, destacam-se notáveis contribuições
condições para alcançar todos os requisitos tendo em da estrutura de dominação, os afro-brasileiros resisti- dos negros africanos na língua portuguesa do Brasil,
vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, ram e preservaram as tradições e costumes. no campo da religiosidade, na arte visual, na dança, na
bem como para atuar como cidadãos responsáveis e Os escravizados e seus descendentes contribuíram música, na arquitetura, etc. (MUNANGA, 2006: p.21)
participantes; além de desempenhar com qualificação para a produção cultural (que é simplesmente a marca No plano da língua, os africanos introduziram um vo-
uma profissão. da humanização) do país e nos deixaram um legado que cabulário desconhecido no português original e que faz

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propostas pedagógicas

parte do falar brasileiro. [...]. (MUNANGA, 2006: p.21) publicações científicas dirigidas ao público em idade acima, “O livro didático acaba sendo o livro”. Em relação ao surgimento da escola no Ocidente,
No que diz respeito à religiosidade, os africanos lega- escolar. Decorre dessa realidade a importância desses Uma vez que são raras as escolas que possuem uma o livro responde assim:
ram ao Brasil algumas de suas religiões populares, tais materiais, bem como de sua qualidade, pois para mui- biblioteca adequada, deve-se considerar a falta de al-
como o candomblé, umbanda e macumba, que fazem tos alunos o livro didático acaba sendo o livro. ternativas aos livros didáticos, que cumprem seu papel “As revoluções burguesas, principalmente a inglesa (séc.
parte do patrimônio religioso brasileiro. (MUNANGA, O livro didático de sociologia analisado neste arti- como introdução ao tema e dão um encaminhamento XVII) e a francesa (séc. XVIII), vão encerrar definiti-
2006: p.22) go foi produzido por vários autores, professores da rede que precisa ser ampliado. vamente o feudalismo e inaugurar um novo modo de
Na arte, eles deixaram suas marcas nas figas de madei- estadual do Estado do Paraná, direcionado ao ensino Em primeiro lugar, os livros didáticos devem ser de produção – o capitalismo. A burguesia, classe social
ras, nos objetos de ferro, nos instrumentos musicais do 2º. Grau, e: boa qualidade; devem também ser considerados como em ascensão, irá conceber uma nova doutrina social
como os tambores, a cuíca, o berimbau. (MUNANGA, um recurso, ao lado de tantos outros disponíveis; além ou uma nova ideologia para o capitalismo que se deno-
2006: p. 22) “Os conteúdos desenvolvidos foram escolhidos a partir disso, deve-se dar bastante espaço para debates, aulas minará liberalismo”. (VÁRIOS AUTORES, 2006: p. 69)
Na música e dança, eles introduziram os congados, coco, das Diretrizes Curriculares da disciplina, as quais fo- expositivas, consulta aos clássicos, entre outros proce-
jongo, maculele, maracatu, bumba-meu-boi, destacan- ram discutidas em simpósios e encontros envolvendo dimentos pedagógicos. Depois de dados estes contextos, são explicados os
do-se o samba, um dos gêneros musicais populares mais professores da área. Certamente muitos outros temas e O livro Sociologia foi produzido por vários autores, princípios do liberalismo, que são: o individualismo, a
conhecidos e que constitui uma das facetas da identida- conteúdos poderiam estar presentes, por sua relevância a pedido do governo estadual do Paraná, para ser um propriedade, a liberdade, a igualdade e a democracia, e
de cultural brasileira”. (MUNANGA, 2006: p. 23) e urgência, os quais poderá ser contemplado em tra- material didático próprio para o ensino no segundo é apontado o surgimento da chamada “revolução cien-
balhos futuros, ou mesmo serem desenvolvidos pelos grau e irei analisar como dois eixos são apresentados tífica”. O filósofo e matemático René Descartes (França,
Na história do contato entre os europeus e africa- professores e alunos nas escolas.”(VÁRIOS AUTORES, e discutidos neste livro: a escola enquanto instituição 1596 – 1650) é considerado o fundador desta doutrina.
nos, a escravização gerou um processo de invisibilidade 2006: p.11) e a questão étnico-racial, no que diz especificamente Mas... e as sociedades sem escolas? Explica-se no
e negativização da cultura negra, inculcando precon- respeito à população negra. Vejo que já na introdução livro que nessas sociedades, assim como na nossa, a
ceitos até os dias atuais. O contato entre as culturas dos é perguntado: Por que há poucos negros nas univer- educação é elemento fundamental de socialização e de
negros e dos portugueses se deu por meio de apropria- sidades brasileiras? Por que os negros são a maioria manutenção do próprio grupo, mas que, nessas socie-
ções e interlocuções, porém como esse processo não é pobre do país? Para explicar que o papel da Sociologia dades, a herança cultural e os saberes necessários para
percebido de forma crítica pela sociedade, o racismo e a
O LIVRO DIDÁTICO como disciplina é justamente nos ajudar nesse sentido: a sobrevivência e a convivência são transmitidos por
discriminação se tornaram a maior herança do sistema a percebermos que fatos considerados naturais na so- meio da educação informal.
escravocrata. Florestan (1978) destaca que o trabalho dos sociólogos ciedade, como a miséria, o enriquecimento, os crimes, Continuando sobre a educação informal, dando
Acredito que a educação é um dos principais bem como a perspectiva do ensino de Sociologia devem os suicídios - enfim, a dinâmica e a organização social sempre como exemplo, as sociedades tribais, o livro
mecanismos de transformação da sociedade e, conse- estar voltados à ruptura com a ordem existente. - podem não ser tão naturais assim. fala que são três importantes valores que perpassam a
quentemente das mentalidades. Por meio deste artigo, O livro didático precisa ser entendido como uma educação dos tupinambás: a tradição, o valor da ação
acredito poder contribuir para a discussão de uma edu- construção sócio-histórica formada por intenções, rea- e o valor do exemplo. E chega à conclusão de que “é
cação que seja geradora de cidadania, atenda e respeite lidades e decisões provenientes de diferentes indivíduos possível perceber que nessas sociedades existia um
as diversidades e peculiaridades da população brasileira e contextos. grande respeito entre todos os membros do grupo, pois
em questão, respeite e observe o repertório cultural da Portanto, não pode ser considerado como elemen-
A ESCOLA ENQUANTO as pessoas mais velhas eram especialmente valoriza-
população negra e o relacione com as práticas educati- to inocente e neutro de transmissão desinteressada do INSTITUIÇÃO das pelas experiências e saberes acumulados ao longo
vas existentes. Visualizar as diferenças e articular prá- conhecimento social. Os livros didáticos são produ- dos anos vividos”. (VÁRIOS AUTORES, 2006: p. 72).
ticas pedagógicas inclusivas não somente é uma forma ções culturais, resultado concreto de disputas sociais Os autores do livro didático de Sociologia iniciam a No entanto, é preciso considerar que uma “educação
de respeito humano, mas uma maneira de promover relacionadas com decisões e ações curriculares. Assim, introdução do Conteúdo Estruturante: Instituições So- informal”, isto é, que não tem a forma da educação
a igualdade. as análises sobre os livros didáticos podem nos levar ciais falando sobre a instituição escolar, que valoriza a normatizada pelo Estado brasileiro, não existe apenas
Algumas ações são essenciais na construção de a compreender a produção desses materiais, o estudo ordem, a disciplina e o bom rendimento: entre os índios, mas caracteriza também a educação
uma educação para a diversidade: a disponibilização de dos elementos implícitos e explícitos que caracterizam, das populações quilombolas ou das comunidades-
recursos didáticos adequados, a construção de material orientam e determinam as finalidades do livro didático, “Essa instituição ensina-nos novos padrões de compor- -terreiro afro-brasileiras.
pedagógico eficiente, o aumento do acervo de livros so- esclarecendo como acontecem as apropriações e a re- tamento, ou reforça aqueles que já trazemos de nossa Citando os sociólogos franceses, Pierre Bourdieu
bre o assunto nas bibliotecas. Pois esses recursos podem contextualização dos diversos textos participantes desse classe social e tenta nos fazer acreditar que somos todos e Jean-Claude Passeron - representantes de uma teo-
ser os únicos acessíveis aos jovens nas escolas públicas. processo de construção. iguais, porque podemos nos sentar igualmente nas car- ria segundo a qual no interior de uma sociedade de
Vem daí a importância fundamental do livro di- A realidade histórica dos estudantes brasileiros teiras escolares. Mas tão logo os alunos percebem que classes existem diferenças culturais - o livro discute o
dático, pois ele muitas vezes é utilizado como principal também não deve ser esquecida, visto que muitos so- para haver igualdade é necessário mais do que um lugar porquê da escola não ser um lugar de pertencimento
recurso pedagógico, uma vez que há falta de alterna- mente têm oportunidade de acessar um livro na esco- na escola começa as reações contrárias à ordem. São prazeroso para todos. Diz que as elites (ou dominan-
tivas. São raras, por exemplo, as escolas que possuem la. Destaco a importância desses materiais, por isso os chamadas questões disciplinares”.(VÁRIOS AUTORES, tes, como são identificadas pelos autores) possuem um
uma biblioteca adequada. Além disso, há escassez de mesmos devem ser de boa qualidade. Como afirmei 2006: p.64) determinado patrimônio cultural e as classes traba-

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propostas pedagógicas

lhadoras (ou dominadas, como são identificadas pe- de social. Mas ao mesmo tempo em que é um direito, a sociedade. Significa não ter ouvidas suas insatisfações e grupo étnico ou sociedade, levando também à hierar-
los autores) possuem outras características culturais educação no Brasil é obrigatória; ou seja, o Estado tem propostas e não se considerar sujeito de sua história. A quização”. (VÁRIOS AUTORES, 2006: p. 140) (Cadê o
diferentes, e como a escola ignora estas diferenças a obrigação de oferecer escola e os pais ou responsáveis educação conscientizadora proposta por Paulo Freire negro nessa citação?)
sócio-culturais, seleciona e privilegia, em sua teoria têm o dever de matricular e manter seus filhos menores tem, ao mesmo tempo, a tarefa de conscientizar critica- Ao dizer que o Brasil é conhecido como o país com
e prática, as manifestações e os valores culturais das na escola, sob pena de serem punidos até mesmo com mente o educando de sua posição social e mobilizá-lo maior número de negros e afrodescendentes depois do
classes dominantes. É por isso que, para os jovens fi- a perda da guarda destes.(Art. 22 e 24 do Estatuto da internamente para a luta pela transformação da socie- Continente Africano, os autores afirmam que aqui o
lhos da classe trabalhadora, a escola representa uma Criança e do Adolescente). “A escola é uma instituição dade em que vive. racismo aparece muitas vezes camuflado e estabelece
ruptura. Seus valores e saberes são desprezados, igno- regida por normas estabelecidas por grupos externos Por isso, na esteira de Paulo Freire, defendo que a uma grande distância para os negros efetivarem sua
rados, e estes jovens necessitam quase que reiniciar a esta”.(VÁRIOS AUTORES, 2006: p. 77) escola tem papel fundamental na construção de sujei- plena participação na vida social.
sua inserção cultural, ou seja, aprender novos padrões Mas como a escola possui uma dinâmica interna tos autônomos, críticos e em condições de lutar pela Já para Kabenguele Munanga:
ou modelos de cultura. Vejo que, dentro dessa lógica, é que lhe permite criar seu próprio sistema de normas e superação das desigualdades e pela transformação da
evidente que para os estudantes filhos das classes do- valores, sua própria “cara”, ou o que pesquisadores da sociedade. “Dependendo da maneira como é utilizado, o conceito
minantes torna-se bem mais fácil alcançar o sucesso educação denominam hoje de “cultura escolar”, pode- raça pode ter uma conotação própria do campo das
escolar do que para aqueles que têm que desaprender mos entender por que todos procuram uma instituição “Ser bandido, cheirar cola, ser abusado, ser desem- ciências naturais. Nesse campo, trata-se de um con-
uma cultura para aprender um novo jeito de pensar, que tenha uma proposta semelhante à que defendem, pregado, empunhar uma arma assassina, ir para uma ceito utilizado para definir classes de animais que tem
falar, enfim, enxergar o mundo, inserir-se nele e ainda para de lá saírem melhor do que quando entraram, ou prisão-educandário, ser espancado, ter fome, frio e origem em tronco comum, com características e po-
ser bem-sucedido. em melhores condições de enfrentar a vida, com mais medo. Ainda que fossem uns poucos, seria preciso fa- tencialidades físicas especificas relativas a cada raça.
conhecimentos e preparo para prosseguir os estudos zer alguma coisa para tentar mudar esse quadro – mas (MUNANGA , 2006:p. 174; 175)
“Não precisamos ser profetas para compreender que ou buscar uma profissão. Numa sociedade marcada, são muitos: são, às vezes, a maioria. O Projeto de cons- Já os movimentos negros e vários estudiosos lançam
o preconceito incutido na cabeça do professor e sua historicamente, pela divisão cruel entre os que eram trução de um Material Didático Alternativo que possa mão do conceito, dando-lhe um outro significado,
incapacidade em lidar profissionalmente com a diver- reconhecidos como seres humanos, sujeitos da lei e ser usado nas escolas para possibilitar a construção de relacionado ao reconhecimento da diferença entre
sidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos produtores de cultura e os que não eram nada disto uma identidade negra positiva, a aprendizagem sobre grupos humanos, sem atribuir qualidades positivas ou
livros e materiais didáticos e às relações preconceitu- – e esta divisão era a base e a consequência da divi- a linhagem histórica resgatando as civilizações desde o negativas, ao reconhecimento da condição, das origens
osas entre alunos de diferentes ascendências étnico- são da sociedade entre senhores e escravos – podemos Antigo Egito, a visibilidade da cultura de matriz afri- ancestrais e identidades próprias de cada um deles. Esse
-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro entrever que o resultado de uma cultura escolar volta- cana como parte da herança comum da humanidade uso tem um sentido social e político, que diz respeito à
e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coefi- da apenas para o desempenho e/ou a meritocracia é a (como realmente é), foi pensado para que a criança e o história da população negra no Brasil e a complexa re-
ciente de repetência e evasão escolar altamente elevado exclusão de todos aqueles que não estão inseridos no jovem negro se enxergassem como seres incluídos na lação entre raça, racismo, preconceito e discriminação
do alunado negro, comparativamente ao do alunado sistema. E estes são sempre negros, pobres, indígenas História de seu próprio povo, povo entre povos, huma- racial”. (MUNANGA, 2006 : p. 175)
branco. (...) O resgate da memória coletiva e da his- ou quaisquer outros que sejam “diferentes” da “cara” nos entre humanos, cada qual diverso um do outro, mas
tória da comunidade negra não interessa apenas aos normal da escola. igual e capaz de ser protagonista, herói e construtor de Ao focar nos trechos do livro didático onde é abor-
alunos de ascendência negra. Interessa também aos No entanto, existem os educadores progressistas, mundos”.(MATERIAL DIDÁTICO ALTERNATIVO, dada a diversidade religiosa no Brasil percebemos que:
alunos de outras ascendências étnicas, principalmen- que defendem propostas educacionais que apontam no 2007: p. 04) A religião - “a religião é uma obra humana através
te branca, pois ao receber uma educação envenenada sentido de uma ruptura com os valores criados e refor- da qual é construído um cosmo sagrado” (BERGER
pelos preconceitos, eles também tiveram suas estrutu- çados pela sociedade capitalista (submissão, competi- apud FILORAMI&PRANDI, 1999: p.267) - se caracte-
ras psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não ção, individualismo). Estes defendem estímulos e refor- riza pelos conjuntos de símbolos sagrados, que incluem
pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, ços de valores que podem contribuir para se fazer da o pensamento religioso, somado aos locais e rituais sa-
tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos vida uma experiência diária de solidariedade e, talvez,
O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO grados formarão um sistema religioso, ou uma religião.
quotidianamente é fruto de todos os segmentos étni- coletivamente, projetar uma nova ordem social. Conhe- No entanto, a religião pode ser um formidável
cos que, apesar das condições desiguais nas quais se cido no mundo todo, Paulo Freire, seria o exemplo do Ao analisar o livro didático podemos perceber que a instrumento de dominação, de intolerância, e que no
desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na educador progressista, representante de uma pedagogia abordagem dada ao negro é falha e fraca e por isso, extremo pode chegar ao fanatismo. No livro, é colo-
formação da riqueza econômica e social e da identi- da libertação. neste capítulo, apenas tocarei de leve nesta questão pois, cado que os povos africanos escravizados trouxeram
dade nacional”. (MUNANGA, 2005: 16) Por onde passou, Paulo Freire deixou sua marca meu foco será principalmente a religião. consigo também seus cultos, suas crenças, seus rituais,
de educador comprometido com as classes oprimidas. No livro Sociologia, a presença do negro é notada enfim sistemas religiosos estruturados, mas que como
O livro diz que as escolas públicas, universais e Para ele, antes der mais nada, educação tem a ver com em alguns trechos no decorrer dos capítulos, como por essas pessoas foram tratadas como mercadorias, suas
gratuitas, são um direito garantido pela Constituição conscientização. Ser oprimido, na visão de Freire, não exemplo, quando os autores conceituam raça: “Raça crenças também foram desprezadas, ou pior, proibidas.
Nacional, uma conquista da sociedade, e resultado de significa estar subjugado economicamente, mas princi- significa dizer que há grupos de pessoas que possuem Dentro do capítulo, várias religiões são sucinta-
muita luta de professores, estudantes, pais e de todos palmente não ser respeitado em suas manifestações cul- características fisiológicas e biológicas comuns. No mente abordadas pelos autores, mas falarei mais aten-
aqueles que se importam com a justiça e com a igualda- turais - valores, linguagem, religião, etc - não ter voz na entanto, o uso do termo raça acaba classificando um tamente sobre as de origem africana.

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propostas pedagógicas

des espirituais – os guias, que entram em comunica- “O etnocêntrico acredita que os seus valores e a
ção com as pessoas por intermédio dos iniciados, ou sua cultura são os melhores, os mais corretos e isso lhe
O CANDOMBLÉ médiuns. Os guias assumem formas como o caboclo, é suficiente. [...]” (MUNANGA, 2006: p. 181)
BIBLIOGRAFIA
a pomba-gira, o preto velho e outros. A umbanda se Os autores não abordam a temática da história e
Os autores do livro didático escrevem que o candomblé propagou por todas as regiões do Brasil, e é frequen- cultura afro-brasileiras como são defendidas pelas di- COAN , Marival. A Sociologia no ensino médio, o mate-
é originário da África e chegou ao Brasil junto com tada por pessoas de todas as classes sociais e todas as retrizes curriculares específicas, que deveriam ser se- rial didático e a categoria trabalho. 2006. 356p. Dis-
os primeiros escravos africanos, entre os séculos XVI origens étnicas. guidas pelos livros depois da aprovação da lei 10.639/03 sertação (Mestrado em Educação) - Universidade
e XVII. Seus deuses são chamados de Orixás e repre- Aqui também as explicações são mínimas e por- que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino étnico- Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências da
sentam as principais nações africanas de língua ioru- tanto passíveis de serem mal interpretadas. Como sabe- -racial. Educação. Programa de Pós-Graduação em Edu-
bá. Suas cerimônias são realizadas em língua africana, mos que a religiosidade de matriz africana foi o recurso Petronilha (2005), nas Diretrizes Curriculares Na- cação, Florianópolis.
acompanhadas de cantos e sons de atabaques. Como básico para a conservação da memória, da cultura e cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
esta forma de religião foi proibida no Brasil, seus adep- da identidade negras, é preciso ter um cuidado extra e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO; CONSE-
tos associaram seus deuses a santos católicos, criando o quando buscamos fazer uma descrição e uma análise e Africana nos diz que é preciso valorizar, divulgar e LHO PLENO-DF. Diretrizes Curriculares Nacio-
que se conhece como sincretismo religioso. sócio-antropológica de suas características, a fim de respeitar os processos históricos de resistência negra nais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
Existem alguns equívocos nesta abordagem. O conduzir o aluno a uma atitude de respeito e consi- desencadeada pelos africanos escravizados no Brasil para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
candomblé não é originário da África, mas sim uma deração, desmistificando os preconceitos que incidem e por seus descendentes, desde as formas individuais e Africana. Brasília, DF, 2005.
construção ocorrida no Brasil a partir de múltiplas ra- sobre esses cultos. até as coletivas.
ízes africanas; os Orixás são as divindades apenas dos Segundo Munanga (2006), as religiões afro-bra- Os autores possuem um discurso simplista e con- FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na So-
povos Ioruba, os povos de língua bantu chamavam suas sileiras se formaram na fusão de diferentes elementos formista sobre as atitudes preconceituosas, que muitas ciedade de Classes. 3. ed. São Paulo: Ática, v. 1-2,
divindades de Inquices e os povos Jêje as nomeavam culturais africanos com o catolicismo. A característica vezes ocultam a ideologia que persiste ainda hoje em 1978.
como Voduns. Esta informação é importante para politeísta do culto católico possibilitou a construção nossa sociedade, de que as diferenças raciais, étnicas e
deixar claro que os africanos vinham de vários luga- de relações entre os santos e os deuses cultuados pe- culturais são o motivo do não desenvolvimento e pro- MUNANGA, Kabenguele (org.). Superando o Racismo
res, de muitos países e que, apesar de uma identidade los africanos. Defendo, portanto, que o livro didático gresso da nação. na escola. 2º edição revisada. Brasília: Ministério
continental, eram tão diversos entre si quanto são, por tenha mais informações sobre as práticas religiosas da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
exemplo, os vários povos europeus. E também é preciso não-cristãs, para que possamos compreendê-las e não “A forma institucional do racismo, segundo autores, Alfabetização e Diversidade, 2005 – 204p.
ter certo cuidado com o fenômeno do “sincretismo” que simplesmente julgá-las a partir de nossa verdade etno- implica práticas discriminatórias sistemáticas fomen-
tende a ser reduzido a uma simples associação com os cêntrica. “É preciso tomar cuidado com julgamentos, tadas pelo Estado ou com o seu apoio indireto. [...]. MUNANGA, Kabenguele; GOMES, Nilma Lino. O
santos católicos, quando na verdade foi um complexo principalmente quando falamos em religiões afro-brasi- Estas práticas racistas manifestam-se, também, nos negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006 –
processo de diálogo entre teologias, ritos e mitos que leiras. Tais julgamentos podem facilmente deslizar para livros didáticos, tanto na presença de personagens ne- (Coleção Para Entender).
se construiu ao longo de séculos. o campo do preconceito, da discriminação racial e do gros com imagens deturpadas e estereotipadas quanto
Os autores prosseguem dizendo que os deuses do racismo”. (MUNANGA, 2006: p.143) na ausência da história do povo negro no Brasil. [...]”. PROGRAMA DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
candomblé dão proteção às pessoas, mas não deter- (MUNANGA, 2006: p. 180) - UNIVERSIDADE SEM FRONTEIRAS. Secre-
minam como elas devem agir e não as castigam caso “A religiosidade negra é rica e variada. No Brasil os taria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino
cometam algo considerado incorreto pela sociedade. nossos ancestrais africanos enriqueceram a nossa cul- A percepção do preconceito racial em nosso país Superior/ SETI – PR. Material Didático Alternati-
Esta frase pode ser muito mal compreendida, dando a tura com diferentes expressões e formas de se relacionar revela a existência, ainda hoje, de um sistema social vo. Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos. Universidade
impressão ao professor e ao aluno de que o Candomblé com o mundo mágico e sobrenatural. [....] racista que possui mecanismos para produzir as desi- Estadual de Londrina (UEL), 2007.
é uma simples magia, um mecanismo de defesa e que Tanto a religiosidade negra como outras expressões gualdades raciais dentro da sociedade.
não possui uma teologia desenvolvida. São estas colo- religiosas devem ser compreendidas como formas A palavra discriminar significa distinguir, dife- REZENDE, Maria José de. "As reflexões de Joaquim
cações que acabam, apesar das “boas intenções”, por construídas, no interior da cultura, de estabelecimen- rençar, discernir. A discriminação racial pode ser con- Nabuco e as de Manoel Bomfim: Elementos para
legitimar os preconceitos e as avaliações pejorativas. tos de elos com o Criador, com o que está além do que siderada como prática de racismo e de efetivação do compreender a situação do negro no Brasil no final
costumamos considerar como mundo racional”. (MU- preconceito. E é isso que devemos mudar através do do século XIX e no início do século XX". Cultura
NANGA, 2006: p.139/140) ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas afro-brasileira: construindo novas histórias - Ca-
nas escolas, buscando o respeito às populações negras, derno Uniafro, v. 2, p.38-51. Londrina: Idealiza
sua descendência africana, cultura e história. Isto im- Gráfica e Editora, 2007.
A UMBANDA plica criar condições para que os estudantes negros
não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele ou VÁRIOS AUTORES. Sociologia. Curitiba: SEED - PR,
A umbanda aparece no livro como uma religião bra-
CONSIDERAÇÕES FINAIS menosprezados pelo fato de seus antepassados terem 2006. – 266 p.
sileira, resultado da fusão de duas religiões africanas: sido explorados no processo de escravização e que não
a cabula e o candomblé, e de crenças europeias. O Podemos perceber que o livro didático aborda a questão sejam desencorajados de prosseguir nos estudos e de
universo para os umbandistas é habitado por entida- étnico racial, mas de forma superficial e etnocêntrica. estudar questões relacionadas com a temática negra.

74 75
propostas pedagógicas

Literaturas africanas
de Língua Portuguesa
em sala de aula:
uma possibilidade? RESUMO
O presente estudo visa apresentar, por meio da leitura e análise de
RESUMEN
Este estudo tiene por objetivo presentar, a través de la lectura y
poemas de autores angolanos e cabo-verdianos, possibilidades de análisis de poemas de poetas de Angola (Viriato da Cruz y Antonio
abordagem das literaturas africanas de língua portuguesa em sala Jacinto) y de Cabo Verde (Jorge Barbosa y Ovídio Martins), posibi-
Claudia Vanessa de aula. Pretende-se, assim, suscitar uma discussão que valorize lidades de enfoque de las literaturas africanas de lengua portuguesa
Bergamini o processo de estudo e de inserção em sala de aula das literaturas em sala de clase. El objetivo es, pues, plantear una discusión que
africanas de Língua Portuguesa, como dispõe a Lei Federal 10639 valore el proceso de estúdio y de inserción en sala de clase de las
Formada em Letras pela Universidade de janeiro de 2003. literaturas africanas de lengua portuguesa, como dispone la Ley
Estadual de Londrina e especialista em Federal 10639 de enero de 2003.
Literatura Brasileira também pela UEL.
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Palavras chave: Literatura angolana; Literatura cabo-verdiana;
Letras da UEL e professora de Literatura Literatura brasileira; ensino de Literatura. Palabras-clave: Literatura angolana; Literatura cabo-verdiana;
Infanto-juvenil do curso de Pedagogia da Literatura brasileña; enseñanza de Literatura.
UNIFIL e de Literatura Brasileira do Ensi-
no Médio do Colégio Londrinense.

Como se nota, a proposta visava à inserção do en- deve ser inserido somente a partir de uma perspectiva
sino das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa histórica?
INTRODUÇÃO em sala de aula. No entanto, o que se observa, 8 anos A resposta para tais questionamentos ainda não
depois da publicação da Lei, é que as Literaturas Afri- pode ser definitiva, ou seja, ao se considerar que há re-
canas Lusófonas ainda não são uma realidade nas salas sistência para o efetivo ensino das literaturas africanas
A Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou obriga- de aula do país. Machado (2010, p. 50) enfatiza que de língua portuguesa, verifica-se que muitos caminhos
tório o ensino de história e cultura africanas em sala de “em meio a tantos problemas relacionados à prática de podem ser seguidos, como por exemplo, iniciar a abor-
aula. A partir da reformulação da Lei n°9.394, de 20 de ensino, deparamo-nos com a dificuldade de proporcio- dagem a partir de um viés histórico, que, por sua vez,
dezembro de 1996, à Lei de Diretrizes e Bases da Edu- nar ao educando” o conhecimento da riqueza cultural oferece valiosas possibilidades.
cação Nacional (LDB) foram acrescidos os seguintes africana. No entanto, é preciso atentar-se para a riqueza
artigos, conforme se lê abaixo: Por outro lado, Cereja e Cochar (2009, p. 9) sina- de detalhes que os autores africanos oferecem com a
lizam que “o interesse do público e de estudantes bra- linguagem e temática. Exemplo pode ser dado com a
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, sileiros pelas literaturas africanas de língua portuguesa linguagem de Mia Couto que, com sua experimentação
passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A tem aumentado muito nos últimos anos”. De acordo linguística, rica em neologismos, em muito se asseme-
e 79-B:Art. 26 em eles, os motivos para o aumento desse interesse se lha a Guimarães Rosa, grande nome da Literatura Bra-
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, justificam por conta da sileira. Nesse aspecto, a crítica literária tem constante-
passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A mente feito a aproximação dos textos do moçambicano
e 79-B: lei federal 10.639, de 2003, que estabeleceu a obrigatorie- com os do escritor mineiro.
Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental dade do ensino de cultura africana e afro-brasileira nas Além desse autor, é possível destacar a presença da
e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o escolas públicas e privadas de todos os Estados brasilei- intertextualidade nas composições em verso de Ovídio
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. ros; o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, cuja Martins – poeta cabo-verdiano ¬– com as de Manuel
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput vigência no Brasil teve no início em 2009; a publicação Bandeira; ou ainda, as marcas da influência de José de
deste artigo incluirá o estudo da História da África e de várias obras de autores africanos; e a vinda constante, Alencar, e mesmo do poeta português Luís de Camões,
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura ao Brasil, de escritores africanos, como Pepetela, Mia nos versos de Antonio Jacinto, poeta angolano.
negra brasileira e o negro na formação da sociedade Couto, Luandino” (CEREJA; COCHAR, 2009, p. 9). Em relação à intertextualidade, Cavalcante (2003,
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas p. 151) enfatiza ainda que ela leva “à descoberta do ca-
áreas social, econômica e política pertinentes à História Embora os autores divirjam, acredita-se que o de- minho para a aula de literatura. Encontramos em ou-
do Brasil. safio está posto aos professores de um modo geral, e em tras linguagens, na de outras artes (pintura, esculturas,
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura especial aos de Literatura. A questão é: de que modo cinema, teatro) o material que pode auxiliar na leitura
Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo é possível (e viável) inserir as literaturas africanas de do texto literário.”, ou seja, não somente textos literá-
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação língua portuguesa em uma grade curricular que, há rios podem ser abordados, mas também outras moda-
Artística e de Literatura e História Brasileiras (BRASIL, muito tempo, aborda as produções literárias brasileira lidades artísticas, de modo a ampliar o conhecimento
2003). e portuguesa? E ainda: o estudo das literaturas africanas cultural do aluno no que se refere à cultura africana.

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Desse modo, entende-se que a partir da abordagem colonizador na produção cultural do colonizado. Em problemática que a envolve, diferindo o país de outros Moderna e, consequentemente, os ideais que sustenta-
de textos, nos quais a intertextualidade se faz presente, algumas vezes, essas marcas aparecem para “estreitar países africanos lusófonos, seja pelo isolamento da ilha ram a primeira fase do Modernismo no Brasil, já que
é possível que o professor permita, sobretudo ao aluno mais os laços do poder conquistador”, de modo que e seu clima inóspito, seja pela constituição histórica do “as propostas estéticas do Modernismo brasileiro de
do ensino médio, identificar as semelhanças na forma- “falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” país, o primeiro construído pelos portugueses. 1922 e as discussões em torno da nacionalidade exer-
ção da literatura brasileira e na formação das literaturas (SANTIAGO, 1978, p. 19). Nota-se que era comum aos participantes das gera- ceram forte influência sobre os escritores angolanos,
africanas de língua portuguesa; pois como se sabe, o As ideias de Santiago se confirmam no estudo de ções posteriores à Claridade representar, problematizar para quem a literatura era uma forma de resistência
processo embrionário da literatura brasileira passou Fonseca (2010, p. 2), que destaca o fato de os poetas e indagar a vida nas ilhas, denunciar a dramática exis- política e cultural à opressão em que viviam” (CEREJA;
pelo diálogo constante com a literatura europeia e o cabo-verdianos terem, no período pós-colonização, tência das populações, mostrar a intimidade, a epopeia COCHAR, 2009, p. 286).
mesmo caminho foi seguido pelos escritores de países “olhos fixos nos clássicos europeus”. Cenário que mu- e a idiossincrasia do homem isleno e reafirmar Cabo Sérgio Paulo Adolfo (S/D, p. 02) assinala que “as li-
africanos de língua portuguesa; porém, estes, além de dou, a partir de 1936, com o lançamento da revista Verde como região única (CARVALHO, s/d, p. 10). teraturas angolana e brasileira nascem sob o mesmo in-
escritores europeus, tomaram como modelo os autores Claridade, momento em que a “literatura brasileira, Tais características podem ser visualizadas no poema fluxo histórico: a dominação colonial portuguesa. Este
brasileiros. principalmente os romances neo-realistas da segunda ‘Antievasão’ de Ovídio Martins, que, posteriormente, determinante histórico tem relevância suficiente para
Ainda é possível aludir aos aspectos da oralidade, fase do modernismo: Menino de Engenho e Banguê, serão destacadas. empreendermos estudos comparativos entre as duas.”
pois embora se mencione aqui as literaturas de língua de José Lins do Rego, Jubiabá e Mar Morto, de Jorge Em relação à formação da literatura angolana, Assim, acredita-se que tanto os poetas cabo-
portuguesa, cada país lusófono tem suas especificidades Amado, e romances de Graciliano Ramos, de Raquel contexto em que se inserem Viriato da Cruz e Antonio -verdianos, quanto os angolanos iniciaram, dentro dos
na linguagem, seus dialetos ou mesmo outras línguas, de Queiroz e de Marques Rebelo” (FONSECA, 2010, Jacinto, observa-se que ela “também reflete a influência movimentos de que participaram, uma discussão ne-
as quais muitas vezes estão presentes nas composições, p. 3), e a poesia de Manuel Bandeira foram um alum- de antecedentes e precursores de caráter social, cultural cessária para se conseguir a “descolonização da cultura”
a oferecer ao leitor parte dessa cultura. bramento e uma descoberta instigante para os autores e estético” (FONSECA, 2010 p. 13). Soma-se a essas (BONNICI, 2000, p. 26), e refletir sobre a “função da
Diante das reflexões aqui tecidas, o presente artigo cabo-verdianos. Eis o momento de iniciar um discurso características a influência da tradição da oralidade, a literatura ocidental dentro da perspectiva imperialista,
visa a discutir as possibilidades de abordagem de textos contra o colonizador. qual se configura como identidade cultural em África. mas também o papel da literatura nacional para o povo
da literatura africana de língua portuguesa, tomando Nesse contexto, está inserido Jorge Barbosa, poeta Viriato da Cruz e Antonio Jacinto fizeram parte do colonizado” (BONNICI, 2000, p. 26).
como referência os poemas: ‘Carta de um contratado’, cuja poesia se preocupa em revelar “as situações com movimento “Vamos descobrir Angola”, cujo intuito era Papel este que é a alavanca para o entendimen-
de Antonio Jacinto, poeta angolano; ‘Antievasão’, de que diariamente se defronta o cabo-verdiano: a fome, a destacar quais traços culturais a diferenciava de outros to de que um povo colonizado necessita de libertação
Ovídio Martins, poeta cabo-verdiano; ‘Você: Brasil’, miséria, a falta de esperança no dia de amanhã, as secas, países do continente africano. Do panorama literário cultural e que o “intelectual nativo deve lutar contra as
do poeta cabo-verdiano, Jorge Barbosa; e ‘Namoro’, do e seus efeitos devastadores” (FONSECA, 2010, p. 6). que antecede ao movimento, pode ser destacado, nos mentiras colonialistas no continente inteiro” (BONNI-
angolano Viriato da Cruz. Os participantes da geração da revista Claridade anos 80 do séc. XIX, a geração de jornalistas-escrito- CI, 2000, p. 37) e o nativo precisa ratificar que há uma
Para tanto, dividiu-se o estudo em três etapas. Na plantaram os alicerces da nova poesia cabo-verdiana, res; mas aqueles que são considerados pela crítica os cultura negra. Da mesma forma, entende-se que essa
primeira foram feitas considerações acerca dos autores trazendo a realidade que cercava a ilha para os textos precursores da literatura angolana situam-se no séc. cultura precisa, para entrar em consonância com a lei
e aos movimentos literários dos quais eles participa- literários e deixando para trás a poesia que se fazia a XX. É o caso de Antonio de Assis Júnior, autor de O aqui já mencionada, ser exposta aos alunos de modo
ram, destacando elementos da formação da literatura partir das normas temáticas eurocêntricas. Segredo da Morta (1935), romance cujo enredo “incor- que estes possam ter uma compreensão das literaturas
dos países a que pertencem os autores selecionados. Bonnici (2000, p. 14) destaca que essa escrita di- pora marcas do momento em que o desenvolvimento africanas de língua portuguesa que excedam as fron-
Num segundo momento, foi realizada a análise dos po- recionada pelos valores eurocêntricos estava atrelada sócio-econômico provoca fortes mudanças culturais, teiras da história. Vão além, pois abordam os recursos
emas mencionados, de modo a enfatizar os aspectos à “manutenção da ordem e as restrições impostas pela mexendo no cotidiano daquelas populações fixadas em estilísticos, sociológicos e culturais presentes nas com-
que podem auxiliar o aluno à compreensão dos textos potência imperial não permitiam qualquer manifes- torno de Luanda e das localidades próximas” (CHAVES posições poéticas, de modo que a literatura e a história
poéticos abordados. Por fim, seguem as considerações tação que pudesse indicar algo diferente dos critérios 1999 apud FONSECA, 2010 p. 14). possam expressar a subjetividade dos sujeitos que as
finais deste estudo. canônicos ou políticos”. Assim, a ruptura com esses O nome do movimento que se inicia em 1948, elaboram.
padrões ocorre de modo letárgico, pois é preciso con- “Vamos descobrir Angola”, é na verdade, um mote de
siderar a realidade da sociedade dependente do coloni- cunho político-cultural que incitava os jovens a des-
zador, visto que Cabo Verde só se tornou independente cobrir Angola em seus diferentes aspectos. Somam-se
ANGOLA E CABO VERDE: de Portugal em 1975. a esses objetivos do movimento outros, elencados por
POEMAS DE AUTORES
PRÓXIMAS E DISTANTES Embora importante para a configuração de um Fonseca (2010, p. 15), AFRICANOS LUSÓFONOS:
DO BRASIL novo cenário, os ‘claridosos’, como nomeou Fonse- UMA RIQUEZA CULTURAL
ca (2010) os poetas da geração da revista Claridade), romper com o tradicionalismo cultural imposto pelo
Sabe-se que os países colonizados tiveram sua cultura foram combatidos pela geração posterior, da qual fez colonialismo; debruçar-se sobre Angola e sua cultura, EM SALA DE AULA
modificada por conta da influência, ou melhor dizer, da parte Ovídio Martins, que também colaborou na revis- suas gentes e seus problemas; atentar para as aspirações
imposição da cultura do colonizador. Silviano Santiago, ta Claridade. Este em especial era contrário ao evasio- populares, fortalecendo as relações entre literatura e
em artigo publicado em 1978, já chamava a atenção nismo dos claridosos, por conta do lirismo intimista sociedade; conhecer profundamente o mundo angola- Antes de iniciar a análise, faz-se necessário comparti-
para o fato de reinar, na literatura que se formou nos que versa sobre o mundo que rodeia o homem cabo- no de que eles faziam parte mas que não figurara nos lhar os motivos que levaram a pesquisadora a elaborá-
países colonizados, o elemento híbrido e, embora o -verdiano, mas não aponta soluções para os problemas conteúdos escolares aos quais tiveram acesso. -la. O primeiro deles se refere à sua prática como pro-
autor fale em relação à América, estende-se a reflexão que o cerca. fessora de Literatura nos níveis médio e superior, pois
ao contexto dos países africanos de língua portuguesa. A nova geração conseguiu ir além e trazer para as Ao observar este movimento, não se pode deixar ao abordar em sala de aula poemas de autores africanos
Esse elemento híbrido é entendido como as marcas do composições literárias a identidade cabo-verdiana e a de comentar as semelhanças dele com a Semana de Arte lusófonos como possibilidade de trabalho com crianças

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propostas pedagógicas

dos Ensinos Fundamental I e II, houve, de pronto, uma ticos formais e histórico-culturais do texto. E como a mistura às atitudes do eu-lírico que, querendo resolver africano aproxima as pessoas. Na cultura angolana, a
rejeição, sobretudo na disciplina de Literatura Infanto- linguagem dos poemas, em geral, é compacta, embora seu problema, recorre tanto à mulher típica da cultura dança e a música são associadas aos ritos de fertilidade,
-juvenil, ministrada para o curso de Pedagogia, sendo com densa significação, possibilita-se que o aluno se angolana (Zefa do Sete) como às santas católicas, de nascimento, iniciação, vida e morte. Conforme destaca
que a primeira reação do grupo foi a referência negati- depare em um único poema com um texto razoavel- modo a despir-se de qualquer preconceito religioso. Edgar do Xavier, no site do Consulado Geral da Repú-
va às religiões africanas1. Referência esta que, por sua mente curto, mas com múltiplos sentidos. Nessa estrofe, o sincretismo religioso, traço carac- blica de Angola:
vez, já revela a influência do colonizador na formação O título ‘Namoro’ sugere duas interpretações: na- terístico de países colonizados, está presente. Pode-se
religiosa do país, pois se o Brasil é um país com pre- moro seria tanto o namoro em seu sentido denotativo, aqui mencionar obras brasileiras em que se tem essa Intimamente ligadas ao quotidiano das populações, a
dominância cristã, isso se deve ao fato de o cristianis- o relacionamento, como também uma metáfora para questão. É o caso de ‘O Pagador de Promessas’, de Dias música e a dança de Angola enriqueceram-se em pe-
mo ser a religião imposta pelo colonizador e, como se ilustrar o relacionamento entre culturas. O poema está Gomes, drama no qual se tem a personagem Zé do Bur- culiaridade e força capazes de induzir, logo a partir
sabe, a religião e a língua são as principais formas de dividido em 9 estrofes, com versos polimétricos e bran- ro sendo proibida pelo padre de pagar uma promessa à do Século XV, a sua influência a outras terras e outras
dominação. cos, cujo conteúdo confirma as duas possibilidades de Santa Bárbara, porque esta foi feita no terreiro de can- gentes, nomeadamente ao Brasil onde o samba ainda
Em relação ao Ensino Médio, a inserção do livro interpretação para o título. domblé à Iansã. evoca estas origens e justifica o paralelismo melódico
de Mia Couto como leitura obrigatória ao vestibular da Na primeira estrofe e na segunda, o eu-lírico se Do mesmo modo, Jorge Amado deixa muito ex- existente.
Universidade Estadual de Londrina (2011/2012) gerou vale dos conhecimentos ocidentais para escrever uma plícito o sincretismo religioso em seus romances ‘Ca-
interesse dos alunos das segundas e terceiras séries. Po- carta à amada, a fim de conquistá-la. A linguagem alta- pitães de Areia’ e ‘A morte e a morte de Quincas Berro A partir da análise do poema, observa-se que
rém, o que se via, eram jovens ‘pisando em ovos’ ao se mente poética compara a beleza da moça aos elementos d’ Água’. Tais exemplos servem para reforçar a ideia Viriato da Cruz não oculta, em sua poesia, as marcas
depararem com a problemática trazida pelo romance. da natureza africana, como se vê em: “um sorrir lu- de que o poema é denso e, a partir dele, elementos deixadas pelo colonizador, tampouco as rejeita. Em-
A especialista em Literatura cabo-verdiana, Nor- minoso tão quente e gaiato/ como o sol de Novembro comuns às culturas brasileira e angolana podem ser bora em uma primeira leitura o poema se apresente
ma Lima, em entrevista à jornalista Juliane Rettich brincando/ de artista nas acácias floridas” ou em: “sua visualizados. pueril, num segundo momento, podem-se extrair signi-
(maio/2006), destaca que se preocupa em “minimizar pele macia – era sumaúma/ Sua pele macia, da cor do Na quinta estrofe, a herança religiosa africana será ficados mais profundos dos recursos empregados pelo
os estereótipos ou essa leitura preconceituosa que se jambo/cheirando a rosas/ sua pele macia guardava as valorizada, já que o eu - lírico recorre à quimbanda, eu-lírico, a fim de conquistar a amada. É exatamente
tem da África” e, efetivamente, acredita-se que essa seja doçuras do corpo rijo/ tão rijo e tão doce - como o uma feiticeira ou curandeira, para que ela lance um no emprego desses recursos que elementos históricos,
uma condição sine qua non para a inserção do estudo maboque.../ Seus seios, laranjas - laranjas do Loje.” feitiço, mas o feitiço falha. Chama-se atenção aqui para linguísticos, artísticos e culturais podem ser abordados.
das literaturas de língua portuguesa produzidas nos As comparações da beleza da moça com a na- o vocabulário, pois quimbanda é uma palavra, cuja ori- O segundo poema, também de um poeta angolano,
países lusófonos africanos. tureza remetem aos poemas e a trechos de romances gem está no quimbundo. Assim, além da própria dis- é ‘Carta de um contratado’, de Antonio Jacinto. De tom
O outro motivo foi a indagação feita à pesquisa- românticos, mas mesmo assim ela não o aceita como cussão que se pode suscitar para legitimar a atitude do romântico, à medida que se lê, observa-se que o conte-
dora sobre um determinado esporte, num contexto em namorado e lhe dá um não como resposta. Nota-se que eu-lírico, visto que procurar a quimbanda faz parte de údo do poema nos conduz a um pseudo-romantismo
que uma criança optou por praticar judô e não ballet. é possível aqui oferecer ao aluno uma comparação a sua crença, as palavras do quimbundo permitem que e que no fundo o que se tem é uma forte crítica social.
Imediatamente a mãe da garota foi questionada sobre partir de outros poemas, sobretudo do Romantismo, o aluno conheça a diversidade da linguagem de Ango- O título do poema faz referência aos contratados,
por que a ‘força’ do judô e não a leveza do ‘ballet’, como nos quais o amor e a natureza estejam presentes. Ade- la, pois o quimbundo é uma língua falada em Angola, homens angolanos que iam trabalhar nas minas de dia-
se só o segundo pudesse ser digno de ser praticado. mais, destacam-se as palavras como: sumaúma, que além de outras línguas e dialetos. mantes da África do Sul com a falsa ideia de que seriam
O aprendizado que se pode extrair da situação é que se refere a uma árvore nativa da África, mas comum Já quase sem forças, o eu-lírico decide presentear a remunerados e não escravizados. Essa medida aconte-
ainda estão enraizados na cultura brasileira os ideais em países quentes, de onde se extrai óleo e paina para amada com presentes comuns às mulheres do Ociden- ceu quando foi barrada a saída de navios negreiros à
eurocêntricos. E, infelizmente, o que não é estaduni- acolchoamento. te, como colar, anel, broche. Mas esse recurso também América, com a abolição da escravatura em Angola, em
dense ou europeu tende a ser rejeitado, embora seja Outra palavra é maboque, também do quimbondo, falhou. Desiludido, ele virou um mono-gamba, palavra 1856. Os homens, no entanto, seguiram trabalhando
visível a incorporação de aspectos culturais orientais refere-se ao fruto do maboqueiro, cuja casca é dura, o também do quimbundo que pode ser traduzida por an- como escravos.
ou africanos à cultura brasileira. fruto é odorífico e ácido. Nesse sentido, o eu-lírico quer darilho. Na primeira estrofe do poema, encontra-se uma
Tecidas tais considerações, inicia-se a análise do dizer que a moça é perfumada, e difícil de ser conquis- Porém, quis o destino que os dois se encontras- marca de intertextualidade com Camões, no soneto
poema ‘Namoro’, do angolano Viriato da Cruz2. Acre- tada do mesmo modo que a casca do maboque é difícil sem em um baile, ao som de uma rumba e no meio ‘Amor é fogo que arde sem se ver’. Antonio Jacinto
dita-se que levar poemas para a sala de aula é uma pos- de ser retirada. da dança, ela disse que sim. Nota-se que o desejo do escreveu: “deste mais que bem querer que sinto”. Já
sibilidade única que não pode ser menosprezada, pois Na terceira estrofe, recorrendo a recursos tecno- eu-lírico se concretiza com a dança, ritmo que se ba- Camões iniciou o segundo quarteto com: “É um não
o gênero permite que sejam discutidos recursos estilís- lógicos, o eu-lírico tipografa seu sofrimento em um seia em quatro tempos em cada compasso, dos quais, querer mais que bem querer”.
cartão: “Mandei-lhe um cartão/que o amigo Maninho o quarto é o mais forte. Embora os dicionários expli- Nota-se que, embora o poeta critique os coloniza-
tipografou:/ ‘Por ti sofre o meu coração’” e uma vez quem que o ritmo é originário de Cuba, ele chegou até dores, vale-se de um modelo de literatura portuguesa
1. Não se deseja aqui promover qualquer discussão de cunho re-
mais ela disse que não. o continente americano por meio dos escravos. Em para compor seus versos, a mostrar que o poeta co-
ligioso, tampouco se deseja adotar uma postura preconceituosa
quanto ao cristianismo. Deseja-se somente compartilhar consi-
O desespero o faz procurar Zefa do Sete, típica fi- Angola chegou por meio dos escravos moçambicanos nhece o saber acadêmico (escrita) e, por isso, torna-se
derações que surgiram a partir de situações vivenciadas em sala gura da sociedade angolana, espécie de ‘arrumadeira que passavam por lá, aguardando a saída dos navios a ‘voz’ do subjugado. Ademais, Jacinto consegue fugir
de aula. de namoros’. Além de recorrer a ela, recorre à Santa para a América. do modelo original que copia e permite que seus versos
2. Ao final do estudo, nas referências, estão disponíveis os livros Ifigênia e à Senhora do Cabo, referindo-se, nesse caso, Entende-se então que o encontro do eu-lírico com não sejam “cópia, simulacro que se quer mais e mais
de onde foram extraídos os poemas aqui analisados. à fé cristã. Nota-se como a fé do colonizador aqui se a jovem, por meio da rumba, revela que o ritmo musical semelhante ao original” (SANTIAGO, 1978, p. 16).

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A ideia de seguir a Europa como modelo para a Tomando a composição do poeta cabo-verdiano
produção de literatura é discutida por Silviano Santiago Ovídio Martins, ‘Antievasão’, tem-se no título o prefixo
(1978), como já mencionado anteriormente. Segundo anti, o qual remete a contrário. Assim, o eu-lírico se
Santiago (1978), o elemento híbrido impera na literatu- apresenta como contrário à fuga, à corrida rumo a um
ra produzida em países colonizados, seja pela influência lugar que não seja a realidade em que ele está inserido.
cultural, seja pelo aniquilamento da cultura primitiva Antes, porém, o eu-lírico deseja pedir, suplicar;
do país. Ainda se nota no poema de Jacinto a mistura nota-se que o emprego do Futuro do Presente já mos-
de traços de outros autores, seja dos próprios portugue- tra um ser preparado para o que surgir, mas não fugirá. À medida que o poeta cabo-verdiano compreen- escola. Não para se fazer cumprir a lei, mas porque são
ses (colonizadores) ou até mesmo de autores brasileiros. A Pasárgada de Bandeira, lugar de regalias, amizades deu o processo de formação da cultura brasileira, não textos são ricos, nos quais os alunos se deparam com
Na segunda estrofe, percebe-se a descrição da mu- com o rei, lugar de ter belas mulheres, não serve para conseguiu deixar de lado os elementos que permitem história, cultura e conhecem os problemas de outros
lher como a índia Iracema. Nos versos: “dos teus lábios o eu-lírico deste poema. que brasileiros e cabo-verdianos sejam um só povo. países que, embora com contextos diferentes, compar-
vermelhos como tacula/dos teus cabelos negros como Os versos livres e curtos mostram a urgência do Para Oliveira (2010 p. 84), há “uma ligação mui- tilham da mesma realidade brasileira: foram formados
dilôa/dos teus olhos doces como macongue/dos teus eu-lírico em gritar que não deseja fugir, ainda que te- to forte entre as duas realidades com tantas afinidades a partir de um processo de colonização.
seios duros como maboque”, o poeta se vale da natureza nha que matar, prefere ficar ali e lutar. Assim, enquanto geográficas e ambientais”, além da afinidade entre os Antonio Jacinto se mostra um antirromântico e se
para descrever a beleza da mulher, da mesma forma para Manuel Bandeira, Pasárgada é o lugar de prazeres, intelectuais e escritores. O Brasil, já independente de apresenta como o colonizado, cujos sentimentos são
como fez José de Alencar na descrição de Iracema, a realizações; no poema de Ovídio equivale à fuga da re- Portugal, nutridos pelo ódio do colonizador, que não lhe ofere-
virgem dos lábios de mel. alidade, alienação. Conclui-se que melhor que fugir da ceu oportunidades. Daí o tom irônico de ‘Carta de um
Nesse caso, Jacinto usa sempre elementos da natu- realidade é enfrentá-la e transformá-la. O poema de era visto pelos países africanos, que ainda estavam sob o contratado’. Viriato da Cruz brinca com o hibridismo
reza como o maboque (já comentado); a tacula, ou do Ovídio se insere na realidade cabo-verdiana, pois me- domínio de Portugal, como um irmão mais velho que se cultural de que Angola é formada, e ainda que se valha
quimbondo takula, árvore de onde se extrai uma tinta lhor que deixar a ilha, como muitos fizeram, é enfrentar tinha oposto e que se tinha revoltado contra o jugo colo- dos recursos do colonizador, é na rumba, ritmo híbrido,
vermelha usada em rituais femininos de puberdade; a os problemas e juntos buscar a sobrevivência. nial e que agora procurava construir um percurso como que o namoro acontece.
dilôa, cor escura, para se referir aos cabelos; e macon- Considerando que Ovídio fez oposição a Jorge nação livre e independente, com uma identidade pró- Ovídio Martins é contrário à Pasárgada de Bandei-
gue, fruto de sabor doce para caracterizar os lábios da Barbosa, outro poeta cabo-verdiano, justamente por- pria, uma cultura e uma literatura que já nada tinham a ra, mas não foge da intertextualidade com o autor para
amada. Alencar também descreveu Iracema com lábios que ele apontava os problemas sem propor solução, ver com as portuguesas (OLIVEIRA, 2010, p. 84). construir essa oposição, a mostrar que é possível ficar
doces como mel; cabelos negros como as asas da graúna ‘Antievasão’ vem denunciar a vida difícil das ilhas que e buscar uma nova realidade.
e o sorriso mais doce que a jati. compõem Cabo Verde. Não mostra os problemas, mas Dessa forma, o poema não vem só acentuar as pro- Jorge Barbosa permite a reflexão sobre: o que é
Todo o lirismo do poema pode ser verificado na dá a solução para eles: expor a intimidade do homem ximidades linguísticas, geográficas e literárias, como identidade? O que faz um homem sentir-se parte de
terceira, quarta e quinta estrofes, quando o eu-lírico cabo-verdiano e propror não fugir, lutar e modificar a também reforça as proximidades ideológicas, pois Cabo uma nação ou identificar-se com outra nação sem ser
mostra o sofrimento que sente ao se lembrar dos mo- realidade. Verde deseja ser livre como o Brasil, ser terra livre da a sua? Por que brasileiros e africanos compartilham dos
mentos que passou junto com sua amada. O uso das Por fim, tem-se o poema ‘Você: Brasil’, do poeta ca- imposição do colonizador, uma vez que as marcas da mesmos traços culturais, sociais, literários? Por que ser-
reticências no verso final de cada estrofe demonstra a bo-verdiano, Jorge Barbosa. Nesse poema, ele compara dominação deixadas por estes já são suficientes para vimos de modelo aos países africanos de língua portu-
continuidade desse pensamento, como se não pudesse seu país ao Brasil, e destaca as dificuldades de se viver ocultar a cultura de um povo. guesa e, por conta disso, somos postos em comparação
desvencilhar-se dele. em Cabo Verde, bem como a relação de identidade dos Como sentiam a necessidade de ser livres como os no poema de Jorge Barbosa? Essas questões são impor-
O poeta faz sua crítica na última estrofe, ao relatar cabo-verdianos com o povo brasileiro, seja por conta brasileiros, encontraram na literatura produzida pelo tantes para a formação dos estudantes e permitem que
o analfabetismo dos contratados, aos quais era veta- da língua, seja por conta do sofrimento causado pela ‘irmão mais velho’ elementos para a construção de uma muitas discussões sejam levantadas.
do o acesso à leitura e à escrita. E conclui, como se o natureza inóspita do Nordeste brasileiro. literatura que fugisse dos ideais eurocêntricos. Assim, Por serem as questões preciosas à formação do
que foi expresso anteriormente fosse tudo parte de um Nos versos de Jorge Barbosa, elevam-se as dife- Manuel Bandeira, e suas imagens do cotidiano e a des- adolescente, antes de se iniciar a abordagem das lite-
pensamento, um devaneio para expor os sentimentos renças da natureza e das grandes cidades brasileiras e, crição do Recife de sua infância; Oswald de Andrade e raturas africanas lusófonas em sala de aula, é preciso
pela moça. ainda assim, cria-se a comparação entre os dois países, seu desprendimento com a língua, valorizando a ‘língua compreender e passar a mensagem aos alunos de que
É preciso destacar que durante o século XIX, época porque os dois são frutos da colonização, falam a língua brasileira’ do povo estão presentes nos versos de ‘Você: “somos um povo habituado à prática de convivência
em que Angola impediu a partida de navios negreiros e do colonizador, formaram-se a partir da miscigenação; Brasil’, poema que se configura como o ponto de iden- com a diferença. Somos um povo crioulo” (SANTILLI
começou a enviar os contratados às minas de diamante, possuem um povo terno e alegre. tificação do eu-lírico com o povo brasileiro. apud SILVA et all, 2007).
não havia escola para as crianças e jovens negros. Daí a Os dois países tiveram sua história feita a partir da Daí se iniciam as proximidades com os países afri-
crítica de Jacinto, que vem quebrar a expectativa do leitor, mistura de povos. No Brasil, por muitos anos, tivemos canos. Portanto, o primeiro movimento que se deve
já que este imagina ser o poema uma história de amor. brancos (sobretudo, portugueses) e índios convivendo, fazer é retirar qualquer sentimento de superioridade
As possibilidades de abordagem deste poema em dando forma a uma nova raça. Um tempo depois, vie-
CONSIDERAÇÕES FINAIS e revestir o aluno de entendimento para que receba os
sala de aula podem partir da intertextualidade, desven- ram os africanos, infelizmente trazidos como escravos, textos como ‘vozes’ de muitos que, como os brasileiros,
dando os recursos da linguagem, bem como promover sendo sua cultura quase sufocada pela do branco. Mas As considerações aqui tecidas não têm por objetivo merecem ser ouvidos. E essas vozes, que buscam ser ou-
uma discussão acerca de elementos históricos e sociais forte, sobreviveu! E assim, índios, negros e brancos criar receitas para a sala de aula. Desejou-se discutir a vidas, trazem indícios de que na história, na vida social
que perpassam o poema, como a própria questão da deram origem ao que podemos chamar hoje de ‘nação viabilidade dos textos de literatura africana de língua e cultural, na pele e no sangue de tantos brasileiros a
escravidão e da inserção da escola em Angola. brasileira’ (BERGAMINI, 2011). portuguesa e a necessidade de que sejam abordados na história de muitos africanos se repete.

82 83
propostas pedagógicas

A enunciação do
REFERÊNCIAS MACHADO, Eduardo Pereira. Literatura africana em
sala de aula: abordagens do insólito no romance A possível: As cotas Márcia Figueiredo

ADOLFO, Sérgio Paulo. Existe o mundo que o por-


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traduz em privilégios de uma elite conservadora, onde a popula- EX/UEL. Tutora do Curso Histórias da
CARVALHO, Luís Filipe da Sousa Martins Torres de. 2011.
ção negra tem um lugar determinado, ou seja, do não acesso. Na África e Afro-brasileiras: vetores de uma
Rebeldia e Sensualidade no Suplemento Cultural SANTIAGO, Silviano. O Entre-Lugar do Discurso La- esfera educacional, esse segmento necessita de ações objetivas educação plural (NEAA/UEL).
(Uma perspectiva da produção literária dos poetas tino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. Uma que lhe permitam o acesso e estimulem sua valorização e reco-
“insubmissos”). Mestrado em Teoria da Literatura. literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência nhecimento. Portanto, o objetivo deste ensaio é problematizar o
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cul- sistema de cotas e a Lei 10.639/03. Procuramos pensar estas duas
políticas, assim como seus desdobramentos na vida prática em
145 p. S/D. Dispnível em: http://www.fl.ul.pt/pos- tura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Londrina (Norte do Paraná). Ressaltamos a importância da luta
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cas. Canoas: Editora da Ulbra, 2003. ANTUNES, Érica. Entrevista com a Profª. Drª. teórica e metodológica consistia colaborar com a implementação
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CEREJA, William Roberto. Literatura Portuguesa: em Maria Aparecida Santilli e o Prof. Dr. Benjamin
diálogo com outras literaturas de língua portuguesa. Abdala Júnior. In: Revista Crioula. Revista Eletrô-
William Roberto Cereja, Thereza Cochar Maga- nica dos alunos de pós-graduação, estudos com- Palavras chave: Educação antirracista, Lei 10.639/03, Sistema de
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translates into the concessions for a reactionary elite, in witch the
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black people has a determined place, that meaning, not access.
língua portuguesa. Disponível em: http://www.ich. de Angola. Museu de Antropologia. Disponível In educational area is noticed the need for actions that aims ap-
pucminas.br/posletras/Nazareth_panorama.pdf. em: http://www.consuladodeangola.org/index. preciation, recognition and access to the black people. Therefore,
Acesso em 10 de outubro de 2010. php?option=com_content&task=view&id=41&It the purpose of this essay is to render problematic issues related to
the quotas system and the 10.639/03 law. Moreover, we shall try to
JACINTO, Antonio. Poemas. Disponível em: http:// emid=55. Acesso em 15 de janeiro de 2011.
think on these two politics, thus the way it is happening in Londrina
africopoetica.wordpress.com/2007/10/20/antonio- (PR). We shall present the manners in which the combat politic
-jacinto-carta-de-um-contratado/ Acesso em 19 de made by black community and university students is important for
setembro de 2010. the quotes system maintenance. We should also show the experi-
ences from the project LEAFRO – Laboratório de Cultura e Estudos
Afro-brasileiros: diálogos para o reconhecimento e a valorização da
História e Cultura Afro-brasileira no Paraná (Londrina e Jacarez-
inho), in which the theory and methodology orientation consists in
cooperate with the implementation of the Law 10.639/03.

Key words: Antiracist Education, Law 10.639/03, Quotes System,


Racism, Psychosocial effects of racism.

84
propostas pedagógicas

com a participação de representantes dos Estados e de As políticas de ação afirmativa com recorte de raça Assim, repensar a estrutura educacional que, por
INTRODUÇÃO organizações não governamentais. O comprometimento orientadas pelos princípios da justiça social são “um vezes, assume um caráter de ordem discriminatória é
de cada uma das nações envolvidas era elaborar ações conjunto de ações políticas dirigidas à correção de de- o ponto de partida para a construção de ações edu-
objetivas para a desconstrução dos resultados das de- sigualdades raciais e sociais”, a fim de proporcionar um cacionais antirracistas. Neste contexto, as cotas em
O Brasil é um país de herança escravocrata, que pou- sigualdades motivadas por qualquer forma de precon- “tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvan- universidades públicas podem ser entendidas com um
co se preocupou com medidas políticas objetivas para ceito, racismo e discriminação, tanto do ponto de vista tagens e marginalizações criadas e mantidas por uma instrumento para contemplar as demandas educacio-
inserir a população negra em sua estrutura social. Nos institucional, quanto das relações sócio-culturais. estrutura social excludente e discriminatória”.(BRASIL, nais da população negra.
últimos anos, entretanto, algumas ações estão sendo en- No Brasil, já na década de 1930, alguns projetos 2005, p.12.) No Brasil, a resistência em pensar as cotas ra-
gendradas, a partir de políticas afirmativas, para promo- políticos de intervenção estavam sendo pensados como No campo educacional estas medidas são fun- ciais estimula não somente a relutância do Estado em
ver justiça social à população negra brasileira. No bojo instrumentos de transformação. O sociólogo Alberto damentais uma vez que, o ambiente escolar pode ser abrir canais de acesso, mas também a permanência de
destas ações é fundamental apontar que este processo Guerreiro Ramos (1915-1981) defendia a necessidade considerado como um espaço social que pode tanto uma estrutura enraizada em privilégios e interesses de
fomentou uma série de debates, em diferentes espaços, de “instalarem-se na sociedade brasileira mecanismos transformar quanto criar e recriar mecanismos poten- uma elite racista que naturaliza a discriminação con-
sobre o racismo como estrutural na realidade brasileira. integrativos de capilaridade social capazes de dar fun- cializadores do racismo e da discriminação, pois “as tra negras(os) brasileiras(os) e silencia suas vozes. Ao
O objetivo deste ensaio é, portanto, apontar alguns ção e posição aos elementos da massa de cor” ( RA- práticas educativas que se pretendem iguais para to- problematizar estas questões relacionadas à inclusão,
elementos sobre a trajetória percorrida pelas deman- MOS, 1957, p.1964). Mais adiante, em 1950, declarava dos acabam sendo as mais discriminatórias”.( GOMES, permanência e continuidade no sistema educacional
das de negras(os) e os compromissos assumidos pelo ser imperativo na ordem social: 2001, p.86.) Isto porque o discurso universal da igual- da população negra brasileira, das séries iniciais até o
Estado brasileiro que resultaram em projetos políticos dade e de acesso à escolaridade desconsidera o fosso da ensino superior, os indicativos sociais apresentados por
direcionados a uma questão central quando se trata do [...] a inclusão de homens de cor nas listas de candida- desigualdade social e principalmente racial. institutos de pesquisas indicam um quadro de desigual-
racismo: a educação. tos de agremiações partidárias, a fim de desenvolver a Os meios utilizados para não contemplar a popula- dades em relação ao povo negro.
sua capacidade política e formar líderes esclarecidos, ção negra na educação tiveram suas primeiras expressões Em 2009 foram publicados os resultados de pes-
que possam traduzir em formas ajustadas às tradições em meados do século XIX, amparados pelo Estado bra- quisas realizadas em 2008 pelo IBGE, cujos dados
nacionais as reivindicações das massas de cor. (RA- sileiro que, entre outras medidas, legitimou as práticas apontaram que no Brasil os cerceamentos aos acessos
MOS, 1957, p.165) discriminatórias em decretos de lei que engendraram im- educacionais e sociais ainda permanecem para as(os)
POLÍTICA DE COTAS: possibilidades para que alunas(os) negras(os) frequentas- negras(os). Embora os dados demonstrem determina-
ABRINDO POSSIBILIDADES Abdias Nascimento, companheiro de Alberto sem e se mantivessem nos bancos escolares4. Aprovado dos “avanços” ao longo de 10 anos, visto que estes indi-
PARA UMA UEL DO POVO1 Guerreiro Ramos, em 1945 também ressaltava a impor- em 17 de fevereiro de 1854, o decreto de lei número 1.331 cativos pautam-se na comparação dos dados de 1998 e
tância de medidas objetivas para promover a valoriza- “estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam 2008, o fosso da desigualdade racial prevalece.
As práticas de promoção da igualdade racial no Brasil ção e o reconhecimento da população negra brasileira admitidos escravos, e a previsão de instrução para adul- Em relação à distribuição de estudantes de 18 a
não fazem parte de um debate recente, as demandas como parte integrante na dinâmica da mobilidade so- tos negros dependia da disponibilidade de professores”. 24 anos nos cursos pré-vestibular e superior (incluin-
políticas de mulheres e homens negras(os) contra o cial. A este respeito, Pedro Henrique Andrade diz que: Em 6 de setembro de 1878, foi aprovado o decreto de lei do mestrado e doutorado) tem-se em 1998 nos cursos
racismo se inscrevem na sociedade nacional há pelo número 7.031-A que “estabelecia que os negros só pode- pré-vestibulares, 2,7% de negras(os) e 5,6% de não-
menos quatrocentos anos. Mas nos últimos dez anos, A reivindicação por políticas reparatórias para a popu- riam estudar no período noturno”5. (BRASIL, 2005, p.7.) -negras(os); no ensino superior, 7,1% de negras(os)
ainda que de modo incipiente, suas vozes passaram a lação negra iniciada com Abdias do Nascimento, que Partindo da premissa de que a educação pode ser e 31,8% de não-negras(os). Em 2008, nos cursos
ser ouvidas e respondidas pelo poder institucional. As no ano de 1945, no I Congresso do Negro Brasileiro, considerada base do desenvolvimento humano, é pos- pré-vestibulares, 2,0% de negras(os) e 3,2% de não-
respostas vieram com a discussão e incorporação de apresentou propostas de políticas de ações afirmativas sível apreender, a partir dessas políticas educacionais -negras(os) e no ensino superior, 28,7% de negras(os)
algumas iniciativas políticas cuja finalidade é propor para a população negra, em todas as áreas da sociedade, do século XIX, que os acessos ao campo educacional e 60,3% de não-negras(os). Quando os indicativos são
estratégias objetivas para suprimir as desigualdades saúde, trabalho, educacional, dentre outras. Desta for- não se aplicavam, e ainda não se aplicam, para todas referentes ao acesso de jovens com mais de 25 anos
raciais e, por conseguinte, promover uma realidade ma, desde essa época, o movimento negro tinha clareza as mulheres e homens da sociedade, especificamente especificamente no ensino superior, as diferenças são
social antirracista. quanto à problemática do racismo brasileiro. Assim, quando fazem parte da população negra brasileira. maiores: em 1998 eram 2,2% de negras(os) e 9,7% de
Este cenário propositivo que se instaura no país é reivindicavam correções contra as inúmeras formas de não-negras(os) e em 2008, 4,7% de negras(os) 14,3%
resultado das demandas internas da população negra e violência que a população negra sofria desde a escravi- 4. Neste período da história, alguns anos antes do fim oficial da de não-negras(os)6.
dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro na dão3. (ANDRADE, 2008, p. 4) escravidão, a quantidade de negras e negros escravizadas(os) Nota-se neste estudo, que a quantidade de ne­
esfera internacional a partir da III Conferência Mundial era muito pequena, pois segundo o censo de 1872, 74% da po- gras(os) e não-negras(os) acadêmicas(os) apresentou
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Dis- pulação negra era livre. Um ano antes da abolição (1887) essa uma margem de 21,6% de aumento, ao passo que para
2. Fonte: http://www.comitepaz.org.br/Durban_1.htm, acessado porcentagem subiu para 90% da população total (HASENBALG,
criminações Correlatas2, que aconteceu no ano de 2001 as(os) não-negras(os), a margem foi de 28,5%. Este au-
em 15 de janeiro de 2009. 2005, p.174). Isto significa que havia um contingente significativo
em Durban, na África do Sul. Esta conferência contou
3. Este texto foi publicado no VII SEPECH (Seminário de Pesquisas da população negra atuando em diversas áreas como na litera-
em Ciências Humanas) promovido pelo Departamento de Letras e tura, na arquitetura, no artesanato, em pequenos comércios, nos 6. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - Instituto
1. O Coletivo Pró-Cotas: diversidade e permanência na UEL rea- Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina, como movimentos pró-abolição, em serviços domésticos. E para essas Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Diretoria de Pesqui-
lizou em abril de 2011, uma intervenção no Diretório Central dos parte das reflexões realizadas na pesquisa de mestrado em Ciên- mulheres e homens, foram criadas impossibilidades legais para sas Coordenação de População e Indicadores Sociais. Estudos e
Estudantes (DCE/UEL), na qual, registrou nos muros do DCE a cias Sociais, pela mesma instituição, As Políticas de Ação Afirma- não ter acesso aos saberes escolares. Pesquisas: Informação Demográfica e Socioeconômica, número
seguinte inscrição: “Cotas sim! Por uma UEL do povo!”, lema que tiva na Universidade Estadual de Londrina em 2009, disponível 5. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/ Acesso 2 em fe- 26. Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira.
inspirou o subtítulo de nosso ensaio. em: www.uel.br/. Acesso em 23 de agosto de 2010. vereiro de 2010. Rio de Janeiro, 2009. (p. 184 – 200)

86 87
propostas pedagógicas

mento deve ser analisado a partir das mudanças sócio- Apresentadas como maneira de reduzir as desigualda- nência na UEL9. Este coletivo foi consolidado no dia 12 rentes níveis e modalidades, cabendo aos sistemas de
-políticas ocorridas tanto no debate, quanto nas ações des sociais, as cotas raciais não contribuem para isso, de agosto de 2010 e teve como objetivo ampliar os espa- ensino, no âmbito de sua jurisdição, orientar e promo-
para promover a igualdade de oportunidades a partir ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções ços de discussão sobre a reserva de vagas na Universi- ver a formação de professores e professoras e supervi-
de 2001. dos desafios imensos e das urgências, sociais e educa- dade Estadual de Londrina. Uma das preocupações do sionar o cumprimento das Diretrizes. (CAVALLEIRO,
Após a III Conferência Mundial em Durban, a cota cionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, grupo é resgatar as discussões desenvolvidas em 2004, 2005, p.19-20.)
racial em universidades públicas passou a ser um ele- mesmo no universo menor dos jovens que têm a opor- quando a Universidade aprovou, em caráter provisório,
mento fundamental no debate sobre ação afirmativa tunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as esta política no processo seletivo. Nesse momento hou- Educadoras(es) e todos os membros da escola
para a população negra brasileira. Ora por uma pers- cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas ve grande mobilização da população afrodescendente podem, portanto, ser considerados atores sociais des-
pectiva de mudança e igualdade de oportunidades, ora acentuam desigualdades prévias ou produzem novas da cidade para efetivar esta política e alguns anos de- te processo de rupturas das amarras pedagógicas que
por uma perspectiva de “tribunais raciais”7 ou de in- desigualdades: “As cotas raciais exclusivas, como apli- pois podemos vislumbrar uma instituição de ensino discriminam e cerceiam qualquer possibilidade de in-
constitucionalidades, o importante é ressaltar que esta cadas, entre outras, na UnB (Universidade de Brasília), superior mais negra. terpretar o mundo a partir de outros olhares, isto é,
política desmascara o discurso arcaico da democracia proporcionam a um candidato definido como negro a Em 2011, esta política será avaliada e haverá uma olhares capazes de ultrapassar os limites do viés euro-
racial e traz no seu bojo a problematização da existência oportunidade de ingresso por menor número de pontos votação para decidir se continua ou não. De fato, as cêntrico idealizado como padrão. (BRASIL, 2005, p.
do racismo no Brasil. que um candidato definido como branco, mesmo se o cotas não foram pensadas na perspectiva de uma po- 8-15)
Sob a perspectiva de igualdade de oportunida- primeiro provier de família de alta renda e tiver cursado lítica vitalícia, mas sim como ação provisória direcio- A Lei visa tornar obrigatória a contemplação de
des, as cotas raciais possibilitam que as(os) jovens colégios particulares de excelência e o segundo provier nada à igualdade de oportunidades entre negras(os) e outras matrizes culturais e suas contribuições ao currí-
negras(os) oriundos de escola pública sejam contem- de família de baixa renda e tiver cursado escolas públi- brancas(os) e à luta por um ensino básico de qualidade. culo escolar, mas fundamentalmente tem como objeti-
plados da mesma forma que as(os) jovens brancas(os). cas arruinadas. No fim, o sistema concede um privilégio vo denunciar a fragilidade da sociedade brasileira, que
Contudo, é importante ressaltar que este instrumento para candidatos de classe média arbitrariamente classi- ainda permanece sob os efeitos discursivos da demo-
de acesso não cria privilégios, mas, sim, se pretende ficados como negros. (http://www.adur-rj.org.br/5com/ cracia racial, potencializando o racismo e o sofrimento
desconstruir os privilégios de uma elite conservadora pop-up/integra_manifesto_contra_cotas.htm)
LEI 10.639/03 DA TEORIA psíquico em crianças e jovens negras(os).
branca que monopoliza os bancos acadêmicos. À PRÁTICA: UMA ANÁLISE De acordo com o parecer da Lei, é fundamental
Na atualidade, a nação brasileira assiste uma in- Percebe-se que os argumentos apresentados reve- DE EXPERIÊNCIA promover a capacitação de professoras e professores
clinação, ainda que incipiente mas significativa, à im- lam um descompasso entre o dito e a realidade his- como subsidio para discutir as práticas do racismo e da
plementação desta política nas instituições de ensino tórica, pois as questões relacionadas à discriminação discriminação no cotidiano escolar. Para problematizar
superior. Segundo José Jorge de Carvalho – colabora- contra as(os) negras(os) não se colocam exclusivamen- Inserida na mesma proposta do princípio de justiça que a Lei e seus desdobramentos partiremos de um relato
dor na elaboração dos parâmetros do sistema de cotas te na esfera das desigualdades de classes, mas sim das as cotas no Ensino Superior, foi aprovada em 2003 a Lei das experiências do trabalho desenvolvido pelo projeto
da UNB – em 2009, cerca de 64 universidades, entre assimetrias entre a população de cor negra e a de cor 10.639, que torna obrigatório no Ensino Fundamental LEAFRO – Laboratório de Cultura e Estudos Afro-bra-
federais e estaduais, assumiram as políticas de ação branca. Outro descompasso é referente ao processo de e Médio a inclusão de saberes sobre História e Cultura sileiros: diálogos para o reconhecimento e a valorização
afirmativa com recorte racial. seleção, pois a(o) aluna(o) que tem acesso à academia Afro-Brasileiras e Africanas para promover a visibili- da História e Cultura Afro-brasileira no Paraná (Lon-
Por outro lado, há o discurso utilizado pelos anti- pela reserva de vagas passa pelo mesmo processo de dade e a valorização desses conhecimentos no espaço drina e Jacarezinho)10. O objetivo da iniciativa era con-
-cotistas que descaracterizam a objetividade desta polí- avaliação pela via universal, tendo em vista que a se- escolar. A Lei 10.639/03 pretende ser um caminho para tribuir com a valorização da cultura negra em espaços
tica com o argumento da inconstitucionalidade. Sobre leção ocorre entre os pares. E por fim, as cotas não a transformação a partir do reconhecimento das desi- privilegiados como a escola por meio de conteúdos e
estes discursos destaca-se manifesto dos “113 Cidadãos “produzem novas desigualdades”, mas sim, denunciam gualdades entre negras(os) e brancas(os) nas práticas atividades propostos pela Lei. Nas ações desenvolvidas
Anti-Racistas Contra as Leis Raciais” divulgado pelos as desigualdades cristalizadas a mais de quatro séculos educacionais cotidianas. pelo LEAFRO com o corpo docente da rede municipal
meios de comunicação em 2006 que objetivava levar ao contra o povo negro. e estadual de ensino de Londrina e Jacarezinho, perce-
Ministro da Justiça um texto “argumentativo” contra Não é objetivo fomentar a discriminação ao con- Diante da publicação da Lei n. 10.639/2003, o Conse- bemos, nas falas dos alunos um rico material de análise
as cotas para negras(os) em universidades públicas e o trário, nem criar privilégios ou novos tipos de desi- lho Nacional de Educação aprovou o Parecer CNE/CP e intervenção. Nos relatos extraídos compreendemos os
programa ProUni8. Segundo os autores: gualdades, mas sim promover uma educação antir- 3/2004, que institui as Diretrizes Curriculares para a limites e possibilidades de atuação e fundamentalmente
racista e democrática, com implicações nos processos Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de o caminho a ser traçado.
de aprendizagem tanto da população negra quanto da História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a serem O cotidiano escolar é pensado como um espaço em
7. Esta expressão foi utilizada pelo cientista Demétrio Magnoli população branca. Segundo Franz Fanon, em sua obra executadas pelos estabelecimentos de ensino de dife- que se processam formas complexas de (re)construção
em 2009, na mídia, para caracterizar o processo de seleção para Os Condenados da Terra, de 1979, os descendentes dos das identidades de crianças e da juventude negra, pois,
cotas raciais nas Universidades Federais de Santa Maria e São
opressores de ontem não devem ser julgados pelos atos “a instituição escolar é vista como um espaço em que
Carlos. Acerca deste assunto, ver em entrevista: Kabengele: “Con- 9. É fundamental destacar o trabalho desenvolvido pelo Coletivo,
de seus antepassados mas devem responsabilizar-se
vido o geógrafo Demétrio Magnoli a ler o que escrevi sobre o negro que busca colocar na agenda de discussões a estrutura do racis-
moral e politicamente pela reprodução das ações discri- 10. Este projeto é vinculado ao Departamento de Ciências Sociais
no Brasil”. Fonte: http://mariafro.com.br/wordpress/?p=1398 . mo que afeta indivíduos, coletividades e instituições. As ações são
8. Na contra mão deste manifesto, foi elaborado o Manifesto em
minatórias que mantêm a população negra à margem orientadas por uma série de atividades, como debates internos da UEL e financiado pelo Programa Universidade Sem Fronteira/
Favor da Lei de Cotas e ao Estatuto da Promoção da Igualdade da dinâmica social. com as(os) estudantes da UEL, intervenções pela cidade de Lon- UEL (SETI-PR) de 2009 a 2010. A equipe é composta por pro-
Racial em 2006, contendo cerca de 300 assinaturas. Fonte http:// Em Londrina, estudantes universitários e membros drina, tentativa de trazer a comunidade externa para a realidade fissionais das áreas de Psicologia e Sociologia, graduandos de
www.geledes.org.br/artigos-sobre-cotas/confira-a-integra-do- da comunidade externa organizaram uma ação política da Universidade. Para mais informações ver em http://coletivo- Ciências Sociais e Letras sob a coordenação das Ciências Sociais
-manifesto-a-favor-das-cotas.html definida como Coletivo Pró-Cotas: Diversidade e Perma- procotasuel.blogspot.com/ (www.uel.br/projetos/leafro).

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propostas pedagógicas

aprendemos e compartilhamos não só conteúdos e sa- Mas, para além das ações pedagógicas, é possível dão muitos privilégios, que durante a pós-escravidão geral, traziam suas experiências e debatiam junto com
beres escolares, mas, também, valores, crenças, hábitos perceber em alguns momentos a falta de sensibilidade foram, e ainda são, mantidos. Como indicou Bento, as(os) colegas, ora trazendo elementos novos, ora res-
e preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade”.( para ver como as crianças e as(os) jovens negras(os) são paldando a fala da equipe.
GOMES, 2002, p.1) A escola, portanto, pode ser consi- interpeladas(os) pelas ausências de referencias positi- Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes O trabalho do LEAFRO permitiu ao grupo como
derada um espaço de reprodução de preconceitos mas vas, fomentando sentimentos de não-pertencimento. dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobre- um todo alguns desafios. Para o público participante, o
também de ressignificação dos mesmos. Nos cursos de formação continuada realizados em za, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, processo de formação continuada trouxe possibilidades
Nesta perspectiva, como as professoras e os profes- 201011, no entanto, foi possível perceber a sensibilidade o que não é pouca coisa. (...) Na verdade, o legado da de desconstrução de saberes arraigados e a construção
sores deste espaço – que é um espaço de poder - estão, por parte de algumas professoras e professores em com- escravidão para o branco é um assunto que o país não de novos modos de ver o mundo. Possibilitou às(aos)
ou não, se identificando como atores sociais no proces- preender a necessidade de desenvolver objetivamente quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com professoras(es) negras(os) se reconhecerem em um
so de desconstrução do racismo e da discriminação? algumas ações capazes de problematizar as desigualda- uma herança simbólica e concreta extremamente posi- universo que traz informações sobre a história e a situ-
Grande parte das professoras e professores não des raciais no ambiente escolar12. tiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos ação da população negra para além daquelas que estão
percebem os atos de racismo presentes no cotidiano As falas e silenciamentos podem ser compreen- de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos disseminadas.
escolar. A este respeito Eliane Cavalleiro constatou didos como um instrumento para pensar e repensar em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco A riqueza do trabalho esteve nas relações que cons-
que “do diálogo com esses profissionais (da escola), quais os significados para estas(es) educadoras(es) da na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem truímos cotidianamente com aqueles que participaram
acabou por sobressair a insistente negação do racismo obrigatoriedade de discutir conteúdos e assuntos que não prestar contas, não compensar, não indenizar os do desenvolvimento das ações, ora como protagonistas,
e de seus derivados na sociedade brasileira”.(CAVAL- supostamente não existem no universo deles (a questão negros: no final das contas, são interesses econômicos ora como coadjuvantes, pois nos permitiu questionar
LEIRO, 2005, p. 71) Por outro lado, quando o racismo racial), e principalmente reconhecer que o racismo e a em jogo. Por essa razão, políticas compensatórias ou saberes e modos hegemônicos de entender o mundo,
e a discriminação são percebidos não há nenhum tipo discriminação estão presentes no seu cotidiano escolar de ação afirmativa são taxadas de protecionistas, cuja especificamente sobre a realidade sócio-histórica do
de intervenção, pois faltam muitas vezes instrumentos e em diferentes espaços sociais. meta é premiar a incompetência negra, etc., etc. Como povo negro brasileiro.
metodológicos e sensibilidade para saber como agir. Os silenciamentos não significam apenas o não- nos mostra Denise Jodelet (1989), políticas públicas
As(os) alunas(os) que sentem o racismo e suas -dito, pois segundo Maria Aparecida Bento (BENTO, direcionadas àqueles que foram excluídos de nossos
consequências práticas no cotidiano não percebem 2005), eles se inscrevem nas relações de poder como mercados materiais ou simbólicos não são direitos, mas
no professor alguém com quem possam compartilhar aquilo que é apagado e excluído, assim pensar-se-á que sim favores das elites brancas.” (BENTO, 2002, p.27)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
estas experiências, o que implica na interiorização e estes silenciamentos se configuram, por exemplo, nos
naturalização destes episódios, com sérias consequên­ conteúdos dos materiais didáticos, na ausência de dis- A partir destes elementos e com o desenvolvimen-
cias psicossociais. Na ausência de um olhar atento para cussões em sala de aula e na escola de maneira geral, le- to do trabalho de formação que o projeto LEAFRO A discussão racial precisa estar em pauta em nosso co-
o racismo e a discriminação, as(os) profissionais da gitimando um espaço de privilégios que não é o das(os) realizou, algumas questões podem ser problematiza- tidiano, não é mais possível tolerar o racismo e a dis-
educação não desenvolvem ações pedagógicas para a negras(os). Para a população branca conservadora, não das. No imaginário da maioria das professoras e pro- criminação. Não podemos nos esquecer que o racismo
valorização do ser negro e dos saberes africanos e afro- é interessante trazer à tona o legado da escravidão, já fessores a realidade sócio-histórica das(os) negras(os) é uma construção social, política e econômica, herança
-brasileiros na escola. que para ela os resultados foram extremamente positi- brasileiras(os) se resume à escravidão. Ao apresentar o de um país escravocrata que delega um lugar simbólico
vos. Esta camada da população teve durante a escravi- período da pós-abolição há um vazio histórico sobre as de inferioridade a população negra. Como diz Souza,
alguns professores, por falta de preparo ou por pre- relações sociais e a vida, de maneira geral, da população
conceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das negra, cujos jogos de poder pautados nas ideologias Nas sociedades de classes multirraciais e racistas como
situações flagrantes de discriminação no espaço escolar eugenistas não fizeram parte da formação destas(es) o Brasil, a raça exerce funções simbólicas (valorativas
7. Estes cursos consistem em quatro encontros mensais, cujas
e na sala como momento pedagógico privilegiado para questões problematizadas partem de reflexões sobre a realidade
profissionais. e estratificadoras). A categoria racial possibilita a dis-
discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre sócio-histórica, política, econômica e cultural da população negra As falas de algumas destas mulheres e homens tribuição dos indivíduos em diferentes posições na es-
a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura nos períodos da escravidão e pós-escravidão até os dias atuais; exteriorizam e demonstram que os caminhos rumo à trutura de classe, conforme pertençam ou estejam mais
e à nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, há um módulo que especifica estes elementos à população negra educação antirracista devem ser repensados diariamen- próximos dos padrões raciais de classe/raça dominante.
praticam a política de avestruz ou sentem pena dos no Norte do Paraná, priorizando a situação educacional. Além te, para que não se repitam frases como “o problema (SOUZA, 1983, p. 20)
“coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que disso, discutimos os processos de desenvolvimento das políticas do negro é por que ele mesmo gosta de se vitimar, dar
consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade de ação afirmativa para o povo negro, ressaltamos a importância uma de coitadinho”, “o negro tem preconceito contra a O racismo permeia as relações no Brasil, pois fo-
não constitui um fator de superioridade e inferioridade da Lei 10.630/03, além de trabalharmos mecanismos para ins- própria raça”, “o preto é pobre porque não se esforça”, menta a continuidade da lógica escravocrata, calcada
trumentalização da mesma em sala de aula. E por fim, estudamos
entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um “os alunos não querem nada mesmo com o ensino, mas em uma elite dominante branca e uma maioria domi-
as contribuições das literaturas africana e afro-brasileira para
fator de complementaridade e de enriquecimento da se tocar um tambor... aí eles querem”, “eu não sou ra- nada negra. A manutenção deste status quo, é o que se
pensarmos o Brasil com o corte racial.
humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o cista não, trato os meus alunos neguinhos como gente, procura, mas sem que esta premissa seja anunciada no
12. Como o relato de um grupo de professores que organizaram
aluno discriminado para que ele possa assumir com uma semana cultural com o tema “Africanidades” e perceberam
viu”; “aqui no Brasil, vocês negros, devem dar graças discurso. As relações simbólicas encontradas em torno
orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, so- em suas alunas(os) negras(os) uma ressignificação do ser negro; a Deus, porque na Itália o branco atravessa a rua se do ‘ser negro’ acabam por estabelecer um lugar para
bretudo quando esta foi negativamente introjetada em também um projeto de trabalho com a história e significados da passar um preto”. a população negra na sociedade. Todo este processo
detrimento de sua própria natureza humana. (MU- capoeira; uma professora que desenvolveu um trabalho a partir Um dado importante é que as intervenções se de- acarreta em intenso sofrimento psíquico, muitas vezes
NANGA, 2005, p.15) do livro “Menina bonita do laço de fita”, com atividades em sala de senvolviam de modo diferente nos espaços onde havia elaborado das seguintes maneiras: “Ser negro é ter que
aula e dramatização do livro; isso, para apontar alguns exemplos. a presença de professoras(es) negras(os) pois, de modo ser mais”; “... o negro é símbolo de miséria, de fome...

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propostas pedagógicas

a cor (preta) lembra miséria... Acho que o que me faz BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes curri-
sempre fugir do lance do negro é o lance da pobreza: culares nacionais para a educação das relações
pobreza em todos os sentidos – financeira e intelectual.”. Étnico-raciais e para o ensino de história e cultu-
Estes relatos foram retirados da obra de Neusa Santos ra afro-brasileira e africana. Brasília: MEC, 2005.
Souza ( SOUZA, 1983, p.61-62) e todas são falas de Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/>
pessoas negras. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Discriminação ra-
As construções sociais levam as(os) negras(os) cial e pluralismo nas escolas públicas da cidade
brasileiras(os) a pensar em seu grupo de origem como de São Paulo. In: Educação anti-racista: caminhos
uma referencia negativa, como um grupo do qual é pre- abertos pela Lei Federal nº10.639/03. Secretaria de
ciso sair para que seja possível ascender socialmente e educação continuada, alfabetização e diversidade
construir outras possibilidades de identidades. Almeja- – Brasília: Ministério da educação, secretaria de
-se uma identidade ideal, a qual não é possível atingir, educação continuada, alfabetização e diversidade,
já que esta significa tornar-se branco. (SOUZA, 1983, 2005.
p. 33-44) GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo ne-
Este cenário apresentado envolve a(o) negra(o) gro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos e/
brasileira(o) em diversos espaços sociais, no entanto, a ou ressignificação cultural? In: 25ª Reunião Anual
escola, acaba sendo um lugar onde estas vivencias ocor- da ANPEd, 2002, Caxambu. Anais. Rio de Janeiro:
rem em ampla escala. Por isso o sistema de cotas e a Lei ANPEd, 2002. p. 1-14.
10.639/03 se inserem na militância pela ressignificação _________.Educação cidadã etnia e raça: o trato peda-
deste lugar do negro em nosso cotidiano. gógico da diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane

negras reflexões
A lei em si, não muda preconceitos enraizados, (org). Racismo e anti-racismo na educação: repen-
contudo, tais políticas de ação afirmativa visam provo- sando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001.
car questionamentos, incômodos, discussões e abrem HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades
possibilidades de rever um processo histórico exclu- Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ. 2005.
dente, de modo que possamos implementar relações e MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na
inserções sociais mais igualitárias. Assim, lutamos para escola. 2ª edição revisada / Kabengele Munanga,
que as(os) estudantes negras(os) possam ter acesso a organizador. – [Brasília]: Ministério da Educação,
uma história que as(os) permita orgulhar-se de seus Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
antepassados que contribuíram para a construção eco- e Diversidade, 2005
nômica e social deste país. RAMOS, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia bra-
sileira. Rio de Janeiro: ANDES, 1957.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: As vicissitudes
da identidade do negro brasileiro em ascensão so-
BIBLIOGRAFIA cial. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

ANDRADE, Pedro Henrique. Políticas de Ação Afir-


mativa na Universidade Estadual de Londrina,
Londrina 2008. In: VII SEPECH (Seminário de
Pesquisas em Ciências Humanas) promovido pelo
Departamento de Letras e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Londrina. 2008.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e
branquitude no Brasil. In: Irai Carone e Maria
Aparecida Silva Bento (org). Psicologia Social do
Racismo: estudos sobre branquitude e branquea-
mento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
_________. Branquitude e poder – a questão das cotas
para negros. In. 1 Simpósio Internacional do Ado-
lescente, Maio, 2005. Disponível em: http://www.
proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC00000
00082005000100005&script=sci_arttext ).

92
DO DIREITO À PALAVRA
AO PODER DE ENUNCIAÇÃO
DO MOVIMENTO NEGRO
NO BRASIL1 RESUMO
Ao longo das últimas décadas do século XX, intelectuais e ati-
RESUMÉ
Au cours des dernières décennies du XXe siècle, les intellectuels et
vistas negros resolveram assumir, em pé de igualdade, o "poder les activistes noirs ont décidé de prendre le "pouvoir d’énonciation"
de enunciação" por muito tempo monopolizado por aqueles a longtemps monopolisé par ceux à qui on attribuait un rôle pré-
Jacques quem se atribuía um papel preponderante na produção do saber. pondérant dans la production du savoir. Ils se sont réappropriés le
d’Adesky Ao se reapropriarem do discurso, da imagem e de sua memória, discours, l’image et leur mémoire, réinterprétant les faits historiques
reinterpretaram os fatos históricos para tentar eliminar as repre- pour tenter d’effacer les représentations culturelles négatives des
Pesquisador do Centro de Estudos das sentações culturais negativas dos negros e suas consequências Noirs et leurs conséquences sociales. La réappropriation du discours
Américas da Universidade Cândido Men- sociais, representando dessa forma um segmento populacional représente une nouvelle donne dans la mesure où ces intellectuels
des e professor da UNESA, Rio de Ja- secularmente ignorado, depreciado e considerado incapaz do parlent sur un pied d’égalité, mais viennent aussi à stimuler l’estime
neiro. E-mail: dadesky@candidomendes. ponto de vista moral e intelectual. de soi de la population noire qui, depuis des siècles, a été ignorée,
edu.br dépréciée et jugée incapable intellectuellement et moralement.

Palavras chave: Movimento Negro, consciência negra, discurso


anti-racista, poder de enunciação, intelectuais negros. Les Mots Clé: Mouvement Noir, conscience noire, discours anti-
raciste, pouvoir d’énonciation, intellectuels noirs.

reótipos), assim como do domínio e controle do saber e posição subalterna em face dos brancos, quer fossem
INTRODUÇÃO dos conhecimentos técnicos que orientam a hierarquia estes detentores de capital, de classe média, trabalhado-
social. res, camponeses e mesmo considerados pobres2. Essa
Nesse contexto, a relação com os meios de produ- situação de subordinação dos negros é produto de um
Sendo os modos de representação herdeiros da His- ção continua sendo o critério indispensável da análise longo processo histórico (em que a violência desem-
tória, as experiências e vivências são encarnadas nas concernente à ordem social a partir da qual se cons- penhou um papel determinante) iniciado no período
palavras, discursos e imagens que constituem as redes tituem as redes hierárquicas e a estrutura das trocas colonial com o tráfico de escravos e que se prolonga
de significações, elas próprias impregnadas dos traços comerciais, com base nas quais se reconhecem as per- mesmo após a abolição da escravatura e o advento da
da luta em defesa de valores e concepções da imagem tenças de classe e o lugar ocupado na sociedade. Nessa República. Essa situação foi por muito tempo masca-
de si e do mundo. Nesse contexto, a luta das minorias concepção, o objeto essencial das relações sociais é a rada pela crença, maciçamente divulgada a partir da
e dos grupos subalternos, como o Movimento Negro riqueza produzida pelo trabalho com base em um laço década de 1930, segundo a qual a discriminação racial
brasileiro, não se limita a reivindicações políticas, mas assimétrico orientado de um pólo a outro da relação so- que os negros podiam sofrer era apenas fruto de um
visa também a uma crítica radical dos significados e cial, e não nos dois sentidos alternadamente. Opondo- racismo benigno, já que o país promovia a ideia da
interpretações estabelecidos, e à reapropriação do pro- -se de forma não simétrica em relação aos instrumentos existência de relações cordiais entre brancos e negros
cesso de construção da imagem de si e de um discurso, de produção (saber, terra e capital), os grupos humanos e considerava a mestiçagem um valor fundamental da
notadamente no que concerne à memória coletiva. vêm a formar classes sociais diferenciadas. brasilianidade. Isso sem dúvida explica em parte por
Os estudos sobre a linguagem e a ideologia têm No seio de uma classe social existem diferentes cri- que, até o final do século XX, a grande imprensa es-
mostrado o poder das palavras como meios de ação térios de diferenciação, tais como nível de renda, raça, crita e as mídias televisivas apresentavam uma atitude
e instrumentos de reprodução da ordem social. Não cor, sexo, religião, que podem ser dados importantes latente de negação da questão das disparidades raciais
obstante, além dos discursos e das ideias, situados no de análise para determinar subgrupos de pertença es- referentes à população afro-descendente, não obstante
espaço do simbólico e do imaginário, a relação do su- pecíficos. o fato de estas já estarem bem documentadas.
jeito com seu ambiente social também depende das No Brasil, está claro que a adoção de critérios ra-
representações sociais negativas (preconceitos e este- ciais ou de cor permitiu revelar as disparidades econô-
micas de que as populações indígenas e afro-brasileiras 2. Ver relatórios do IPEA, especialmente Políticas sociais, acom-
são as principais vítimas. Estudos realizados a partir panhamentos e análise, nº 13, edição especial (1995-2005), Bra-
1. Texto escrito para o Seminário Internacional Afro-descendência, desses critérios têm demonstrado, desde a década de sília; Políticas sociais, acompanhamentos e análise, nº 15, março,
Cultura e Cidadania : Intercâmbios Transatlânticos. (3-5 fevereiro 1980, que a distribuição do poder econômico e políti- Brasília, 2008; Políticas sociais, acompanhamentos e análise, nº
2010), CÉLAT, Universidade Laval, Québec, Canadá. co é claramente desfavorável aos negros, situados em 16, novembro, Brasília, 2008.

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negras reflexões

o Estado não tomou nenhuma medida política para tomada de consciência da negritude sem resultar numa por seus ancestrais? Trata-se de uma pergunta aparen-
compensar ou reparar as sevícias sofridas durante o verdadeira assimilação8. Desejando ser mais brancos temente simples, mas difícil de responder de imediato.
HISTÓRIA E período escravista, e, jamais, colocou em prática uma que os brancos, o resultado só poderia ser uma pálida Supõe, por exemplo, que os conflitos do passado ou
REAPROPRIAÇÃO política de acompanhamento da transição da condição cópia do original! as controvérsias historiográficas sobre a escravidão e o
DA MEMÓRIA de escravo à de homem livre. Ao contrário, os negros A ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da período pós-abolição – considerando-se suas causas,
foram vítimas, nesse período, de medidas oficiais de República põe fim aos intensos fluxos de imigração de seu desenvolvimento e suas inumeráveis consequências
Na época do Império (1822-89), as relações de produ- segregação e de preferência que significavam atentados trabalhadores europeus. Um decreto, datado de dezem- – exigem um trabalho árduo de releitura a partir de
ção ainda eram dominadas pelos grandes proprietários aos seus direitos6. bro de 1930, limita a entrada de estrangeiros e obriga vestígios, de testemunhos escritos e também de docu-
de terras, que precisavam, direta ou indiretamente, da Sob a nascente República, mestiços e descendentes as empresas estrangeiras instaladas no Brasil a respeitar mentos de arquivos.
manutenção de uma forma de desumanização dos es- de escravos eram tratados como cidadãos de segunda uma cota: dois terços dos postos de trabalho deveriam Recompor a história dos grupos subalternos exige
cravos e dos ex-escravos livres. Nesse período, o con- classe, confinados a posições subalternas. Suas ativi- ser ocupados por brasileiros nativos. De maneira indire- a desconstrução da história oficial que oculta os textos
trole estrito e quase absoluto sobre o trabalho exercia dades ligadas aos cultos de origem africana, a certas ta e involuntária, essa medida melhorou as condições de subjacentes ou àqueles que foram desde sempre des-
um freio à produtividade das fazendas, já frágeis em danças e à música eram interditadas e reprimidas pela vida de negros e índios, facilitando sua entrada nas usi- cartados. Trata-se, sem dúvida alguma de um trabalho
função das técnicas rudimentares utilizadas. O capi- polícia. No mercado de trabalho, eram considerados nas e em postos de baixo nível na administração pública. hercúleo. Mas essa tensão entre a releitura da história
tal técnico e o controle do saber desempenhando um moral e intelectualmente inferiores, preguiçosos, len- A história oficial (frequentemente escrita pelos oficial e a memória coletiva obliterada é fundamental
papel limitado, era o controle do acesso à propriedade tos e irracionais – em outras palavras, incapazes de se senhores e vencedores) excluiu capítulos inteiros de para desmascarar os mecanismos de dominação.
fundiária que constituía o fator decisivo que permitia adaptar às novas técnicas e às novas divisões do tra- manifestações de conflitos, como se eles jamais tives- Desde seu nascimento no final dos anos 70, o
aos proprietários exercerem seu poder absoluto sobre balho. Tal argumento seria utilizado para justificar o sem acontecido ou como se não fossem suficientemente Movimento Negro vai denunciar em sua plataforma
o trabalho. Em larga medida, essa situação de subordi- ingresso maciço de mão-de-obra europeia, considerada dignos de serem relatados em razão de sua pequena política a obliteração oficial da história africana e a mi-
nação do trabalho vai acompanhar outras medidas ado- mais apta ao trabalho nas usinas e plantações agrícolas. importância. E quando for a hora de contar a história nimização da contribuição dos escravos e dos afro-bra-
tadas pelo Estado para assegurar a permanência dessa A esse respeito, Ronaldo Sales Jr. escreveu : "A moder- dos escravos, dos africanos livres e seus descendentes, sileiros à formação socioeconômica do Brasil. Já naque-
servidão. Assim, decretos restringiam a liberdade de nização do país, mediante a abolição da escravatura e esta será escrita pelos que irão atestar o pouco peso atri- la época o Movimento Negro apresentava as questões
circulação, o acesso à escolaridade e à saúde pública, e a proclamação da República, não significou a eman- buído ao reconhecimento histórico dos preconceitos do direito de enunciação e de autorrepresentação dos
até mesmo a cidadania dos antigos escravos3. Essa so- cipação dos negros, mas sua exclusão das relações de sofridos por estes últimos. Essa memória imposta busca afrodescendentes do Brasil que se viam impedidos de
ciedade não igualitária baseava-se na ordem jurídica do produção, fosse como mercadorias, fosse como traba- eliminar do passado todos os problemas e sofrimentos dizer ou exprimir livremente sua história como atores
Antigo Regime, com seus privilégios, suas precedências lhadores livres”7. A imigração de colonos europeus, das vítimas da História. dotados de subjetividade.
e seus favoritismos que bloqueavam as aspirações de estimulada e apadrinhada pelo Estado brasileiro, tam- De maneira sub-reptícia, ela foi bem-sucedida na Um movimento social invisibilizado quase total-
liberdade e a mobilidade social. bém corresponde a um desejo eugênico que tinha por medida em que as histórias dos vencedores e os nomes mente pela grande mídia e por muito tempo desquali-
A República de 1889 põe fim às medidas discrimi- objetivo o embranquecimento da população. de seus heróis vieram a ser realçadas entre os grupos ficado por seus adversários conseguirá, não obstante,
natórias em relação aos ex-escravos, africanos e mesti- Embora os trabalhadores brancos fossem, da mes- dominados. Essa cegueira histórica infligida pela histó- se organizar e inscrever suas reivindicações relativas à
ços livres, e instaura o princípio da igualdade de direi- ma forma que os negros, submetidos aos interesses da ria oficial marca de maneira quase indelével os negros, releitura da história na agenda política do país. Nesse
tos. Na prática, contudo, o poder político, econômico classe dominante, o que revelava uma convergência que perderam a memória de seu passado e não têm sentido, o Movimento Negro vai captar a atenção do
e intelectual permaneceu nas mãos de uma elite branca para além da cor da pele, as circunstâncias históricas heróis – ou quase isso. Raras são as famílias negras ca- governo federal, o qual tomará a iniciativa de elaborar
que os considera socialmente incapazes de terem von- manifestamente específicas para os negros mostram pazes de contar a história de figuras importantes de e votar, em 2003, a lei 10.639, que institui o ensino obri-
tade própria e de defenderem seus próprios interesses que, conquanto semelhantes na situação de oprimidos, origem afro-brasileira, a maior parte das quais foi de- gatório da história dos africanos e afro-brasileiros no
políticos4. Os mestiços e descendentes de escravos os negros estavam em desvantagem como pessoas de preciada ou oculta por trás do véu do esquecimento9. currículo das escolas primárias e secundárias do país.
não tinham acesso a posições de prestígio5. Ademais, pele negra, descendentes de escravos, de deportados E, sem memória histórica, como é que os grupos Essa passagem das sombras à luz vai suscitar nos
da África. Para os ativistas da Frente Negra, surgida dominados poderiam exigir o reconhecimento e a re- últimos anos o crescente interesse de pesquisadores e
na década de 1930, a verdadeira libertação passa pela paração das injustiças e danos morais e físicos sofridos acadêmicos que multiplicam os projetos voltados à re-
3. Ler Ronaldo Jorge Araujo Vieira Júnior, Responsabilização objetiva educação, pelo conhecimento e pela técnica. Eles esta- leitura da memória dos afrodescendentes, e também à
do Estado. Segregação institucional do negro e adoção de ações afir-
vam convencidos de que, para se igualarem aos bran- memória do Movimento Negro. Grande parte dessas
mativas como reparação aos danos causados. Juruá, Curitiba, 2005. 8. Cabe assinalar que no seio da Frente Negra havia vozes disso-
cos, deveriam copiar a cultura europeia. Escolheram, pesquisas é realizada com base em entrevistas ou filmes
4. Ver Flávio dos Santos Gomes, Experiências atlânticas. Ensaios nantes como as de Cândido de Araújo e Manoel dos Santos, que
assim, a via da assimilação. Esse projeto de libertação com lideranças, ativistas ou testemunhas anônimas.
e pesquisas sobre a escravidão e a pós-emancipação no Brasil. não se cansavam de cantar a beleza da mulher negra ou de exaltar
UPF, Passo Fundo, 2003.
vai fracassar. Ele foi um obstáculo à aparição de uma o valor da contribuição dos negros ao Brasil.
Ao lado da pesquisa e da análise propriamente di-
5. Ler a esse respeito o artigo de Ronaldo Sales Jr. “O nascimento 9. Ler, por exemplo, as entrevistas realizadas com os líderes e os tas, os projetos também se ocupam em restituir perante
da nação: Estado, modernização nacional e relações étnico-raciais 6. Já citados por Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior e Ronaldo idosos do bairro de Venda Velha no âmbito da pesquisa "Mémoire a posteridade os arquivos de memória (fotos, folhetos,
entre o Império e o início da República”, Ciências Sociais Unisinos. Sales Jr. Afro-Brésilienne: citoyenneté dans les faubourgs", conduzida pela cartazes, fitas de áudio e vídeo) do Movimento Negro
Volume 44, nº2, maio-agosto 2008. 7. Ronaldo Sales, op. cit. p. 126. Universidade Laval e pelo CEAs/IH/UCAM. que permitem afirmar, com o apoio de provas mate-

96 97
negras reflexões

riais, aquilo que os outros não viam, ou pelo menos não queles que foram oprimidos em sua raça e por cauda Durante os anos setenta e oitenta, outros pensado-
querem ou não queriam ver10. Esse trabalho de recons- dela. Sobre a (re)conquista do domínio da narrativa res, como Amílcar Cabral, Samora Machel, Malcolm
trução da memória confirma a imagem do Movimento e do direito à auto-representação atual dos africanos X, Martin Luther King e Albert Memmi, sem esquecer
DISCURSO ANTI-RACISTA
Negro cuja invisibilidade resulta em parte da inércia da da diáspora em vista de seu reconhecimento, Bogumil Karl Marx, contribuíram com seus textos para a tomada E REINTERPRETAÇÃO
grande imprensa que o ignorava quase totalmente nos Jewsiewicki escreveu precisamente : "é um terreno que de consciência por esses grupos de intelectuais e ati- DA “RACIALIZAÇÃO”
anos 80 e 9011, mas também reflete a própria fragilidade não é reconhecido como originalmente seu, e cuja ex- vistas negros de que o status subalterno e de exclusão
das fontes documentais produzidas pelo Movimento pulsão havia justificado sua desumanização. Era-lhe ne- que vitimou a população negra não se limitava à épo-
Negro, parte das quais se perdeu no curso das últimas cessário arrebatar tanto a memória da cultura quanto ca da escravidão, mas se manteve desde o advento da A ideologia da democracia racial, no cerne da qual se
décadas ou está dispersa em arquivos privados sem sua representação das sombras da lembrança"13. República até nossos dias2. Essa profunda tomada de situam os valores da mestiçagem e da harmonia entre
avaliação alguma. Essa tomada da palavra coloca em evidência um consciência de uma situação comprovada de coloniali- brancos, negros e indígenas, poderia ter sido uma arma
pensamento intelectual pós-colonial e antirracista do dade levará o Movimento Negro a adotar um discurso poderosa contra o racismo. Não foi esse, absolutamen-
Movimento Negro que se constrói primeiramente a político cujo eixo central é o da tomada de consciência te, o caso. Ao contrário, sob a máscara da harmonia,
partir da observação de que a abolição da escravatu- identitária e não mais o da assimilação preconizada todas as tentativas de promover a igualdade entre bran-
FONTES DO PENSAMENTO ra não havia, em si, destruído uma ordem hierárquica pela Frente Negra nos anos trinta. cos, negros e indígenas, de estabelecer mecanismos de
INTELECTUAL DO baseada na cor da pele. Ela vai buscar, assim, sua inspi- E na medida em que os negros continuavam a ser correção das injustiças ou de favorecer a inclusão de
MOVIMENTO NEGRO ração nas lutas anticoloniais dos povos africanos de ex- vítimas de uma opressão racial que não mostrava a sua negros e indígenas nos domínios do ensino e do empre-
pressão portuguesa e na experiência do movimento dos cara, o racismo e a discriminação contra a população go, têm sido neutralizadas. Paradoxalmente, a exaltação
direitos civis nos Estados Unidos. Os ecos dessas lutas afrodescendente é que explicam o fato de os intelectuais de uma identidade mestiça e culturalmente homogê-
O esclarecimento dos lapsos de memória e a tomada no Brasil tornaram-se ainda mais importantes para os e líderes do Movimento Negro terem empreendido uma nea estimulou formas de exclusão, de rebaixamento dos
da palavra para narrarem eles mesmos quem eles são intelectuais e ativistas negros cuja maioria provinha da crítica da ideologia da democracia racial, pela qual os grupos subalternos que não correspondiam ao modelo
testemunham o colapso do beco sem saída em termos pequena classe média ou da classe trabalhadora e não brasileiros seriam desprovidos de preconceito de raça. dominante. A ideologia da democracia racial não foi,
de memória que veio a libertar os negros do espartilho tinham condições econômicas suficientes para viajar ao Os textos, discursos e panfletos dos líderes negros são, portanto, suficiente para destruir uma ordem hierár-
da História oficial ao lhes restituir o lugar, o sentido estrangeiro ou estabelecer contato direto com os líderes assim, impregnados de uma crítica virulenta ao mito da quica baseada na cor da pele e, indiretamente, reforçou
e a posição como atores da história. Por esse viés, os desses movimentos. democracia racial brasileira, considerado uma ilusão a o sentimento de primazia e supremacia dos brancos
intelectuais do Movimento Negro12 investiram no ter- As reflexões de Frantz Fanon sobre a luta anti- serviço da manutenção do status quo. Essa crítica é sus- sobre os negros. Dessa forma, constituiu uma fonte de
reno da ação política, no qual vieram a reivindicar o colonialista e anti-imperialista na África exerceram, tentada pela obra de diversos acadêmicos de renome, opressão de negros e indígenas.
direito de se exprimir, e, portanto, de afirmar a tomada então, forte influência sobre os intelectuais e ativistas brasileiros e estrangeiros, como Florestan Fernandes Os intelectuais e líderes do Movimento Negro têm
do poder de enunciação. Autorrepresentar-se equivale, do Movimento Negro. Seus dois principais livros, Les e Carlos Hasenbalg, os quais apresentaram dados es- denunciado essa ideologia diante da qual defendem
portanto, a se situar em relação ao relato histórico, às damnés de la terre e Peau noire et masques blancs, tra- tatísticos mostrando que a industrialização e o desen- uma tomada de consciência da identidade étnica e o
grandes forças econômicas dominantes, mas também duzidos em Portugal, chegam a conta-gotas ao Brasil volvimento econômico do país não seriam suficientes emprego do termo "raça" para conduzir à expressão
a determinar na linguagem uma nova subjetividade do numa época em que as lutas de libertação em Angola, para por fim às disparidades socioeconômicas de que "consciência racial" que transformou-se num rótulo de
pensamento, capaz de apresentar a imagem positiva da- Moçambique e Guiné-Bissau estavam no seu auge. os negros constituíam as principais vítimas. reagrupamento e mobilização desse movimento nos
Les damnés de la terre, com prefácio de Jean-Paul Deve-se recorrer também ao pensamento de Léo- anos 80. Nos dez últimos anos, a expressão assumiu
Sartre, propõe um novo quadro teórico para a compre- pold Sédar Senghor e Aimé Césaire cujo conceito de ne- a forma de "Consciência Negra", entendida como um
10. Assim é, por exemplo, o livro de fotografias de Januário Garcia ensão da própria situação de exclusão dos negros, para gritude – que valoriza a contribuição africana à civiliza- exercício de reflexão sobre as causas das injustiças de
25 anos do Movimento Negro no Brasil que ilustra a trajetória de além das ferramentas conceituais marxistas que privi- ção universal e faz o elogio da beleza negra – irá exercer, que são vítimas os afrodescendentes15. Hoje em dia, a
um movimento social que nunca foi considerado importante pelos legiavam a luta de classes. Peau noire et masques blancs a partir dos anos 40, grande influência no Brasil entre os expressão se associa às comemorações do 20 de novem-
fotógrafos dos grandes jornais brasileiros. permite abordar o dilema e o paradoxo da mestiçagem intelectuais, artistas e militantes do Teatro Experimental bro, aniversário da morte de Zumbi, o grande líder do
11. A exceção que confirma a regra pode ser ilustrada pela tomada da população brasileira, cujos segmentos miscigenados do Negro (TEN). Apesar do golpe de Estado de 1964, que Quilombo de Palmares que lutou no século XVII contra
de posição favorável, em suas colunas, pelo Jornal do Brasil à rea- continuam vítimas do racismo e da discriminação ra- interrompeu as atividades do TEN, o termo "negritude" os portugueses no Nordeste do país.
lização, em 1986, do Primeiro Encontro Estadual de Seminaristas,
cial da mesma forma que os negros de pele escura. O já fora incorporado ao vocabulário corrente. Ele reen- As expressões "consciência racial" e "consciência
Religiosos/as e Padres Negros do Rio de Janeiro que havia sido
processo de alienação das pessoas de cor, destacado por contrará a juventude entre os poetas negros dos anos 70 negra" não se referem absolutamente a uma classifica-
proibida pelo cardeal Dom Eugênio Sales.
Fanon na última obra, assinala que a luta antirracista e 80 que o associam ao ideal de beleza da mulher negra14.
12. O Movimento Negro que emergiu no final dos anos 70 era aci-
ma de tudo um conjunto de ativistas disseminados pelo Brasil. A
não só deve ser travada em escala coletiva, mas igual- 15. A propósito da expressão “Consciência Negra”, ver, por exem-
partir da metade da década de 80, o movimento veio a se articular mente no plano individual. 14. Ver, a esse respeito, a série Cadernos Negros Poesia, cujo pri- plo, as interpretações similares feitas por dois intelectuais negros:
principalmente com base em organizações não-governamentais e meiro número foi publicado em São Paulo em 1978, em particular Azuete Fogaça, "A vida me ensinou a ser negra", O Globo, Rio de
associações culturais que se implantam principalmente nas gran- 13. Ver Bogumil Jewsiewicki, "Lieux de l’identité", Ethnologies, vol. as poesias de autoria de Edu Omo Oguian, Cuti, Eduardo de Oli- Janeiro, 26 novembro 2009 ; e Nei Lopes, "Desejo coletivo", O
des cidades do país. 31, 3. CÉLAT, Universidade Laval, Québec, 2010, p. 27. veira e Henrique Cunha Jr., entre outros. Globo, Rio de Janeiro, 30 novembro 2009.

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negras reflexões

ção antropológica dos seres humanos em subconjuntos jornais, que bloqueiam de maneira insidiosa o debate
geneticamente distintos e hierarquicamente ordenados democrático e equilibrado16.
em termos intelectuais e morais. Traduzem, antes, o Ao reinterpretarem subjetivamente o termo "raça" Para Taguieff, um antirracismo realista não pode pre- cada indivíduo. A concepção de beleza física poderia
caráter subjetivo da identidade racial como produto como socialmente construído, os intelectuais e líde- conizar a abolição da percepção racial das diferenças, ser autônoma no sentido de que resultaria da deter-
de práticas discriminatórias sistemáticas de que certos res do Movimento Negro assumem uma posição po- mas pode legitimamente interrogar-se sobre as formas minação do indivíduo em questão. Deveria ser, antes
grupos foram vítimas no passado com base num racis- lítica que remete à constatação da semântica de que mais eficazes de corrigir as categorizações perceptuais17. de tudo, a expressão de uma verdadeira autenticidade.
mo pretensamente científico, hoje em dia amplamente uma mesma palavra pode ter diversas significações Além disso, o emprego da categoria "raça" tendo Ser belo seria, em primeiro lugar, ser fiel a si mesmo,
desacreditado, mas cujos efeitos permanecem percep- ou designar objetos diferentes. E ainda que seus ad- em vista a promoção daqueles que são vítimas da dis- assumindo e ostentando os traços resultantes de sua
tíveis no presente mediante desigualdades socioeco- versários tentem precisamente atribuir aos líderes do criminação deve ser compreendido como um recurso herança genética. Entretanto, ainda que a escolha seja
nômicas. São precisamente os efeitos conjugados do Movimento Negro um pensamento racista baseado na necessário sem o qual não seria possível conceber polí- autônoma no sentido indicado, ela depende, ainda que
passado e do presente que dão força e pertinência às promoção de uma essencialização das raças, é preciso ticas públicas. Nesse sentido, deve-se reconhecer que o indiretamente, das preferências. Claro que essas tam-
categorias raciais como base de cálculos estatísticos sem aceitar que a implementação de políticas públicas de emprego da categoria "raça" é uma forma de "racializa- bém podem ser autônomas, ou seja, objetos de uma
os quais não seria possível propor a implementação de ação afirmativa pressupõe a identificação dos grupos ção" da sociedade, mas apenas um pecado venial diante escolha deliberada. Mas essa recorrência evidencia
políticas públicas de promoção dos grupos discrimina- que se quer promover, ou seja, uma "racialização" da do objetivo final dessas políticas que é acima de tudo a que não existe uma escolha radicalmente autêntica, já
dos no passado e no presente. sociedade. Mas evidentemente esse deslocamento se- igualação dos indivíduos. Seria, assim, mais correto que que não é possível abstrair-se totalmente do contexto
A despeito dessa interpretação clara e inequívoca mântico do termo "raça", considerado uma "ferramen- se juntasse de imediato ao substantivo "racialização" o sócio-histórico.
de tais expressões pelos intelectuais e líderes do Movi- ta estatística", não é levado em conta pelos adversários qualificativo "antirracista". Nesse sentido, as políticas Os exemplos do presente e do passado mostram
mento Negro, os adversários das políticas de discrimi- das políticas de ação afirmativa, que se recusam, nos de ação afirmativa seriam compreendidas como po- de que modo os valores estéticos são modelados pela
nação positiva no Brasil semeiam a discórdia na grande debates públicos, a admitir que uma mesma palavra, líticas de "racialização antirracista", já que promovem cultura, notadamente pelos cânones dominantes. É ex-
imprensa escrita e televisionada, baseando seus argu- no caso, o termo "raça", possa ganhar uma outra co- momentaneamente grupos discriminados com base na tremamente difícil escapar desse processo. Na maior
mentos na ideia de que o uso das expressões "consci- notação, distante da interpretação biologizante do "raça" ao acesso à universidade, à educação superior, parte do tempo, essa influência se propaga de manei-
ência racial" e "Consciência Negra" seria "racialista" e racismo científico. ao mercado de trabalho, etc. Essa formulação parece- ra inconsciente, de tal sorte que ignoramos os efeitos
que as políticas de ação afirmativa introduziriam uma Se a luta contemporânea contra o racismo obri- -nos de longe mais judiciosa que o termo "racialização" perversos dessa situação. Mesmo pessoas esclarecidas
"racialização bipolar" na sociedade brasileira. Segundo ga os militantes antirracistas a manter o termo "raça" lançado pelos adversários para rebaixar essas mesmas ou ativistas do movimento negro nem sempre escapam
eles, a população brasileira é amplamente miscigena- como referência, como nomear ou qualificar correta- políticas e torna caduca a insinuação de que tais políti- às distorções causadas por esses condicionamentos no
da, o que tornaria difícil identificar as pessoas segundo mente o uso da categoria "raça" no contexto das políti- cas engendram o ódio entre brancos e negros no Brasil. momento em que são obrigados a definir o que é belo
as categorias branco e negro. Esses mesmos adversá- cas públicas de ação afirmativa ? Consistiria realmente O uso do qualificativo "antirracista" também coloca em e o que é feio. Nem sempre compreendem ou querem
rios, em cuja composição predominam antropólogos a implementação dessas políticas em uma "racializa- evidência que os programas de discriminação positiva admitir que os gostos estéticos pessoais podem ser di-
e sociólogos, reconhecem a existência do racismo e da ção" da sociedade ? Poderíamos revogar o uso do termo com base racial podem aparecer como um mecanismo tados ou fortemente influenciados pelos cânones de be-
discriminação racial no Brasil. Esse estranho parado- "raça" e inventar outro nome. Essa seria uma solução corretivo destinado a atenuar a ausência efetiva de uma leza helênicos predominantes, independentemente do
xo deveria ser, em si, suficiente para provar que, se é aparentemente simples que se assemelharia a um eu- estratégia redistributiva nos domínios da educação e gênero ou da cor da pessoa. Além disso, numa cultura
possível discriminar com base na "raça", será possível genismo lexical, segundo a expressão empregada por do emprego, caminhos que conduzem à abolição das fortemente monopolizada pelos homens, a beleza, na
também promover, levando deliberadamente em conta Pierre-André Taguieff. A esse propósito, ressalta que diferenças de raça. medida em que é ligada ao espaço de poder masculino,
a "raça", mesmo que seja a contra gosto, em suma, que é a desconstrução científica da raça biológica não faz ou seja, produzida consideravelmente e por muito tem-
possível identificar as vítimas do racismo como poten- desaparecer a evidência da raça simbólica, da raça so- po por homens (poetas, escritores, escultores, artistas
ciais beneficiários da discriminação positiva. cialmente percebida e, inevitavelmente, interpretada. plásticos, etc.), tornou-se necessariamente uma con-
Esse jogo duplo de argumentação a respeito do uso
O PESO DA cepção masculina. As contribuições femininas, ao con-
do termo "raça" e a preponderância desproporcional de APARÊNCIA FÍSICA trário, serão vistas, não como expressões culturais do
16. Ler, a esse respeito, as comunicações de João Feres Júnior,
artigos contrários à política de ação afirmativa reve- gênero feminino, mas como exceções individuais, seu
"Acadêmicos contra a ação afirmativa: uma análise da argumenta-
lam uma questão ligada ao direito à palavra, ou seja, ao Em vez de serem causalmente determinados sob o efei- conteúdo sendo absorvido sem que se torne exemplar.
ção pública", Mídia e ação afirmativa: a construção de uma opinião
"poder de enunciação". Não apenas a mídia continua pública. ABI, mimeo, Rio de Janeiro, 2009; "Da opinião publicada
to de cânones estéticos, poder-se-ia afirmar que o belo Essas constatações não sugerem que homens e mu-
refratária à questão das disparidades socioeconômi- à opinião pública: a fabricação de um consenso anticotas no Bra- e o feio podem ser resultados da escolha deliberada de lheres simplesmente interiorizem e reproduzam as re-
cas de que é vítima a população afrodescendente, mas sil", Seminário Comunicação e Ação Afirmativa: O Papel da Mídia presentações do que é belo e do que é feio, transmitidas
também o tema das políticas de ação afirmativa suscita no Debate sobre Igualdade Racial. Centro Cultural da Justiça Fe- 17. Pierre-André Taguieff, Les fins de l’antiracisme, Michalon, Paris, pela cultura dominante. Há uma interação complexa
forte reação negativa no plano dos redatores-chefes dos deral, mimeo, Rio de Janeiro, 2009. 1995, p. 79-81 e. 329-354. que remete ao mesmo tempo aos modelos de diferen-

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negras reflexões

ciação ou de ressignificação tais como a negritude que velas e séries televisivas, organizados com base num
permitem perceber a exclusão mediante a ativação de código não escrito que exclui dos papéis de primeira
atributos positivos. Esse mecanismo de interação que plano os atores e atrizes cujos traços físicos como cor,
passa do negativo ao positivo é fundamental, pois per- textura dos cabelos e formato dos lábios lembrem de-
mite designar o belo e o feio levando em conta a natu- mais os traços negroides de certos povos africanos19.
reza das variáveis que compõem a identidade pessoal e Longe de ser um assunto fútil ou secundário, limi-
a da matriz que forma as identidades coletivas. tado à indústria do entretenimento, a projeção de uma o cargo de treinador do Clube de Regatas Flamengo em caracterizada pela curvatura acentuada das ancas. Esse
Os meios de comunicação de massa, particular- imagem inferior ou depreciativa pode efetivamente 2009, obtendo nesse mesmo ano o prestigioso título tipo de beleza é também predominante entre as princi-
mente a televisão, constituem instrumentos poderosos oprimir a tal ponto que essa imagem seja interioriza- de campeão brasileiro. Segundo testemunho de Júnior, pais passistas das escolas de samba. Nelas se reconhece
capazes de servir à melhor inserção da imagem dos gru- da. É uma questão importante, pois, em um ambiente diretor técnico do Flamengo, ele mesmo havia tentado principalmente a qualidade de serem generosamente
pos subalternos e assim garantir o respeito à dignidade social onde são expostos desde o berço a um discurso nomear Andrade treinador da equipe em 2004, mas dotadas de coxas grossas e nádegas redondas, duras e
individual de todos. Eles também podem ser um modo que despreza suas capacidades intelectuais e morais, os não conseguiu em função da resistência de membros musculosas.
de dominação cruel e sutil quando projetam uma ima- negros tendem a reproduzir os modelos que os relegam da diretoria do clube, que chegaram a usar argumentos Mas o ideal de beleza negra não se limita à apa-
gem inferior ou depreciativa desses mesmos grupos. A sempre à base da escala social. Isso tem consequências racistas, alegando que ele era negro e não tinha boa rência física. Há outros ingredientes fundamentais que
concepção pela qual uma imagem deformada pode in- diretas sobre o mercado de trabalho ao criar barreiras dicção21. Em suma, Andrade não tinha estofo nem ca- ajudam a compor a imagem do que é belo tanto na
fligir um prejuízo e efetivamente oprimir determinados invisíveis que afetam a igualdade de oportunidades tan- beça para ser treinador de uma equipe de futebol da mulher quanto no homem. Entre esses elementos, deve-
grupos por muito tempo foi denunciada pelos ativistas to para homens quanto para mulheres. Essas últimas primeira divisão. -se evidenciar o caminhar, o movimento, o sorriso e a
do movimento negro e pelos defensores de um olhar devem também lutar contra outra categoria de precon- Depois da Copa de 1950, os negros também fo- postura. Valorizar o natural e estar à vontade com sua
plural por parte da mídia. Para evitar tais distorções ceitos : os preconceitos sexuais que as apresentam como ram excluídos da posição de goleiro. O motivo é que a expressão e com seu corpo são considerados atributos
altamente discriminatórias em relação às populações fáceis, assanhadas, quentes, frívolas, superficiais... No derrota da seleção brasileira na final com o Uruguai foi essenciais dos homens e mulheres premiados nos con-
afrodescendentes e indígenas, eles defendem a plura- mercado de trabalho, esses clichês frequentemente lhes atribuída ao goleiro Barbosa, que era negro. Foi preciso cursos de beleza negra organizados por grupos cultu-
lidade de concepções da vida social em face do molde fecham as portas aos postos de alto nível. esperar até o fim dos anos 90 para que outro negro, rais carnavalescos como Olodum, Ilê Aiyê, Orunmilá,
da cultura urbana que se impõe a todos graças a sua Mesmo nos domínios do esporte, onde o critério Dida, fosse o goleiro titular da seleção brasileira. Se- etc. Se esses atributos são apreciados no quotidiano das
grande difusão pela mídia. Essa visão significa que o da cor da pele perdeu importância, ainda se observam gundo o escritor Joel Rufino dos Santos, essa função famílias negras, eles ganham um espaço especial sobre-
reconhecimento da diversidade representa não apenas restrições em relação aos negros. Assim é no futebol, foi por muito tempo considerada de responsabilidade tudo nos almoços e reuniões festivas de domingo que
uma riqueza social e cultural, mas também uma exi- reconhecido como o esporte nacional por excelência. e, portanto, inadequada aos jogadores negros22. são propícios à dança, à música e aos encontros amo-
gência moral indireta de reparação em prol dos grupos Nesse esporte em que numerosos jogadores negros têm Se ficássemos nisso, poder-se-ia dizer que caíra- rosos. Na esfera do sagrado, constata-se também que a
por muito tempo ignorados ou marginalizados pelos sido consagrados nos últimos decênios, a discrimina- mos na armadilha do predomínio dos cânones de bele- complexa estética afro-brasileira, em que o movimento,
grandes veículos de comunicação. ção racial ainda se manifesta no que se refere ao posto za helênicos que relegam a um segundo plano as outras a postura e o ritmo se misturam, é encontrada em graus
A partir do momento em que se admite que a pre- de treinador. Com exceção de Vanderlei Luxemburgo, concepções de beleza. A sombra dos cânones helênicos, variados nas festas realizadas nos terreiros dos cultos
sença em todos os níveis de membros de grupos su- raros são os negros que ocupam a função de treinador fortemente centrados sobre o corpo, as proporções, o de matriz africana.
balternos é pertinente e deve ser igualitária em relação em equipes de primeira divisão20. Por muito tempo re- equilíbrio e a simetria dos traços do rosto, nos leva por
ao grupo dominante, não se pode deixar de constatar legado à função de auxiliar técnico ou exercendo a fun- contraste a propor a questão do saber: quais seriam os
que o peso da aparência física ainda é hoje em dia uma ção de treinador interino, Jorge Luís Andrade da Silva, elementos particulares constitutivos de uma abordagem
questão espinhosa para a população afrodescendente conhecido como Andrade, conseguiu ser nomeado para essencial da estética negra brasileira? Se observarmos as
O PODER DE
e indígena. A imagem do negro na televisão e na pu- pinturas naïves produzidas pelos grandes artistas afro- ENUNCIAÇÃO23
blicidade melhorou nitidamente nos últimos anos. Um -brasileiros do Rio de Janeiro e da Bahia, não há dúvida
número maior de negros figura nos anúncios publici- 19. Uma exceção a essa regra não-escrita é Lazaro Ramos, proe- de que a beleza da mulher negra aí representada nos Do século XVI até o fim do século XIX, os negros eram
tários e participa como modelos nos desfiles de moda, minente ator negro de cinema que se tornou protagonista de te- lembra a negritude de Léopold Sédar Senghor que fazia, tratados no Brasil como animais, seres repulsivos, igno-
lenovelas da Rede Globo de Televisão. Segundo o jornalista Chris-
e os artistas negros têm mais papéis nos programas de em suas poesias, o elogio da beleza particular da mu- rantes e desprovidos de história. Mesmo na República,
tian Dutilleux, esse exemplo marginal vai corresponder a uma
televisão. Não obstante, pessoas de pele clara tendem lher da região sudano-saheliana de África Ocidental, supostamente igualitária, continuam excluídos. Com
política de dar destaque a negros principalmente para "provar"
sempre a ser privilegiadas em relação às de pele mais
(sem o dizer, de maneira subliminar) que o Brasil não tem neces-
escura18. É o caso notadamente dos elencos de teleno- sidade de um mecanismo de discriminação positiva na televisão. 21. Testemunho relatado por Carlos Eduardo Mansur, “Nos braços 23. Iniciei a reflexão em torno do conceito “o poder de enunciação”
20. Vanderlei Luxemburgo foi treinador dos mais importantes clu- dos campeões”, O Globo, Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 2009. com base em instigações e múltiplas conversas com o meu amigo
18. Essa preferência é verdadeira sobretudo para as jovens atri- bes do Brasil, incluindo a seleção nacional e a equipe do Real Ma- 22. Entrevista com Joel Rufino dos Santos, intelectual negro, es- Amauri Mendes Pereira, intelectual e ativista do MN e, atualmente,
zes negras atuais de pele clara, como Taís Araújo, Isabel Fillardis, drid. Em razão de sua cor clara, é percebido como branco por gran- critor e especialista em futebol (Rio de Janeiro, 8 de dezembro professor d o centro Universitário Estadual da Zona Oeste (UEZO),
Sheron Menezes e Roberta Rodrigues, entre outras. de número de brasileiros, embora ele próprio se considere negro. de 2009). no Rio de Janeiro.

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negras reflexões

algumas exceções, sua imagem coletiva é negativa, fruto sentido que se faz necessário compreender a expressão FOGAÇA, Azuete. "A vida me ensinou a ser negra", O Relatório IPEA: Políticas sociais acompanhamentos e
do desdém com que são tratados pela cultura domi- "poder de enunciação" com um exercício relacional que Globo, Rio de Janeiro, 26 de novembro de 2009. análise, nº 15, março, Brasília, 2008.
nante. Foi por isso que, ao longo nas últimas décadas se inscreve na esfera da política. GARCIA, Januário (org.). 25 anos do Movimento Negro Relatório IPEA: Políticas sociais acompanhamentos e
do século XX, intelectuais e ativistas negros resolve- A reinterpretação por artistas, escritores e inte- no Brasil. FCP/MinC, Brasília, 2008. análise, nº 16, novembro, Brasília, 2008.
ram assumir o "poder de enunciação" por muito tem- lectuais afro-descendentes dos cânones de beleza que GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Intelectuais SCHWARTZMAN, Simon. “Das estatísticas de cor ao
po monopolizado por aqueles a quem se atribuía um privilegiavam a estética helênica em detrimento da plu- negros e formas de integração nacional”, Estudos estatuto da raça”. In: Peter Fry, Yvonne Maggie,
papel preponderante na produção do saber24. Eles se ralidade de concepções do que é belo e do que é feio, Avançados, USP, nº 18, São Paulo, 2004. Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo
reapropriaram do discurso, da imagem dos negros e participa do poder de enunciação que vem a estimular GOMES, Flávio dos Santos. Experiências atlânticas. Ventura Santos (orgs.). Divisões perigosas: políticas
de sua memória. Reinterpretaram os fatos históricos mediante as reivindicações políticas novas práticas so- Ensaios e pesquisas sobre a escravidão e a pós- raciais no Brasil contemporâneo. Civilização Brasi-
para tentar eliminar as representações culturais nega- ciais e culturais. O mesmo se faz quando se colocam -emancipação no Brasil. UPF, Passo Fundo, 2003. leira, Rio de Janeiro, 2007.
tivas dos negros e suas consequências sociais, como em evidência fragmentos esquecidos da história dos JEWSIEWICKI, Bogumil. "Lieux de l’identité". Ethno- TAGUIEFF, Pierre-André. Les fins de l’antiracisme. Mi-
a discriminação nos locais de trabalho. Buscam criar descendentes de escravos africanos e afro-brasileiros. logies, vol. 31, 3. CÉLAT, Université Laval, Quebec, chalon, Paris, 1995.
uma identidade coletiva positiva, livre das injunções Essas reinterpretações são também tomadas de posição 2010. VAN DIJK, Teun. Discurso e poder. Editora Contexto,
da cultura dominante. Esse movimento provocou forte que devem ser compreendidas como intervenções num LOPES, Nei. "Desejo coletivo", O Globo, Rio de Janeiro, São Paulo, 2008.
polêmica com um grupo de intelectuais famosos que debate intelectual por muito tempo fechado à crítica 30 de novembro de 2009. VIEIRA Jr., Ronaldo Jorge Araújo. Responsabilização
veem nisso a iminência de um conflito aberto entre contrastada dos intelectuais negros. A partir daí se pode MANSUR, Carlos Eduardo. "Nos braços dos campe- objetiva do Estado. Segregação institucional do ne-
brancos e negros. A reapropriação do discurso repre- compreender que o tom alarmista utilizado pelos ad- ões", O Globo, Rio de Janeiro, 2 de dezembro de gro e adoção de ações afirmativas como reparação
senta uma novidade, já que um número crescente de versários das políticas de ação afirmativa decorre, não 2009. aos danos causados. Juruá, Curitiba, 2005.
intelectuais negros fala cada vez mais em seu próprio dos pretensos conflitos e ódios raciais que delas resul- FERES JÚNIOR, João, "Acadêmicos contra a ação afir-
nome. Ao tomar a palavra em pé de igualdade, munidos tariam, mas da ascensão dessas novas concepções do mativa: uma análise da argumentação pública". Mí-
de argumentos, eles interpelam aqueles que detinham o discurso, da imagem e da memória que eles atacam e, dia e ação afirmativa: a construção de uma opinião
monopólio do saber e que jamais se haviam confronta- acima de tudo, mas da desestabilização de sua convic- pública. ABI, mimeo, Rio de Janeiro, 2009.
do com um contradiscurso produzido por intelectuais ção e do enfraquecimento do monopólio do discurso FERES JÚNIOR, João, "Da opinião publicada à opinião
negros, representando um segmento populacional se- intelectual25. Em suma, é seu pensamento intelectual pública: a fabricação de um consenso anti-cotas no
cularmente ignorado, depreciado e considerado inca- que está em jogo ao ser submetido ao questionamento Brasil", Seminário Comunicação e Ação Afirmativa:
paz do ponto de vista moral e intelectual. não apenas daquilo que é a nova nação brasileira emer- O Papel da Mídia no Debate sobre Igualdade Racial.
Levando-se em conta os argumentos acima, seria gente, mas de sua ideia de nação forjada anteriormen- Centro Cultural da Justiça Federal, mimeo, Rio de
mais judicioso, sem dúvida, utilizar doravante a ex- te sem a participação dos afro-brasileiros e dos povos Janeiro, 2009.
pressão "tomada do poder de enunciação" em lugar do indígenas. FRY, P., MAGGIE, Y., MAIO, C., MONTEIRO, S., e
termo "reapropriação", o qual subentende uma reto- SANTOS, R. (orgs.), Divisões perigosas: políticas
mada de posse de alguma coisa, no caso presente, de raciais no Brasil contemporâneo. Civilização Bra-
um discurso, de uma imagem e de uma memória. Por sileira, Rio de Janeiro, 2007.
"tomada do poder de enunciação" designamos, antes
BIBLIOGRAFIA RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à socio-
de tudo, que se trata de mais que a retomada de um logia brasileira. UFRJ, Rio de Janeiro, 1995.
simples discurso existente. Também não se trata ape- CONSTANTINO, Rodrigo. “Dia da consciência indi- SALES Jr., Ronaldo. “O nascimento da nação: Estado,
nas da tomada de posse dos discursos estabelecidos, vidual”, O Globo, Rio de Janeiro, 24 de novembro modernização nacional e relações étnico-raciais
mas igualmente de uma reação, de uma releitura e de de 2009. entre o Império e o início da República”. Ciências
uma crítica que permitem a ocupação do "território MUNANGA, Kabengele. “Mutation de savoirs et pos- Sociais Unisinos, volume 44, nº 2, mai-ago 2008.
intelectual" por outras concepções do discurso. É nesse tcolonialité. L’anthropologie et les militants uni- SAILLANT, Francine. "Droits, citoyenneté et répara-
versitaires noirs au Brésil", Francine Saillant (org.) tions des torts du passé de l’esclavage. Perspectives
Réinventer l’anthropologie? Les sciences de la culture du Mouvement Noir au Brésil", Anthropologie et
24. Entre os intelectuais negros de proa que têm desempenhado
um papel importante nessa « tomada do poder de enunciação »,
à l’épreuve des globalisations. Liber, Montréal, 2009. Société, Université Laval, volume 33, nº 2, Quebec,
citamos, entre outros: Abdias do Nascimento, Joel Rufino dos San- 2009.
tos, Julio César de Tavares, Amauri Mendes Pereira, Carlos Alberto 25. Ler a respeito Fry, P., Maggie, Y., Maio, C., Monteiro, S., e San- Relatório IPEA: Políticas sociais, acompanhamentos e
Medeiros, João Jorge Rodrigues, Hélio Santos, Muniz Sodré, Lélia tos, R. (orgs.), Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil con- análise, nº 13, edição especial, (1995-2005), Bra-
Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro. temporâneo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007. sília, 2005.

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negras reflexões

RAÇA E GÊNERO:
ENTRELACES RACISTAS
VERSUS AFIRMAÇÃO
IDENTITÁRIA NEGRA RESUMO
Raça e gênero são conceitos (re)construídos historicamente, e de-
abstract
Race and gender are historically (re) constructed concepts, and then
les emergem questões complexas, colocando em xeque a pretensa complex issues emerge from them calling into question the supposed
neutralidade dos “homens da ciência”, que os engendraram. As neutrality of ”men of science” that engender them. The reflections
A analogia em questão é aquela que liga raça ao gênero, uma analogia que Maria Anória reflexões que se seguem visam à contextualização e desdobra- that follow seek to contextualize, and deployment of these meanings
ocupou lugar estratégico na teoria científica sobre a variação humana dos de Jesus Oliveira mento de tais acepções, de modo a repensar as consequências na in order to rethink the consequences in contemporary society. For
séculos XIX e XX. (STEPAN, 1994, p. 72) contemporaneidade. Com esse fim, realizamos a pesquisa biblio- this end, we conducted a literature search and guided ourselves by
Professora Assistente da Universidade do gráfica e nos pautamos em estudos na área das Ciências Sociais. studies in the area of Social Sciences. We therefore expect, expand
Estado da Bahia (UNEB), professora visi- Esperamos, com isso, ampliar o leque de discussões no tocante às the range of discussions with regard to ethnic and racial relations
tante do Mestrado em Pós-Crítica (UNEB). relações étnico-raciais e de gênero em nosso seio social. and gender in our social bosom.
Doutora em Letras pela UFPB, com bolsa
estágio/sanduiche em Maputo, pela Univ.
Eduardo Mondlane. Mestre em Educação Palavras chave: racismo científico, raça e gênero, resistência Keywords: scientific racism, race and gender, black people resis-
(UNEB), Especialista em Literatura/PUC- negra. tance.
-SP e Graduada em Letras/PUC-SP. Pes-
quisadora de relações étnico-raciais.

visto que pretendiam classificar o ser humano psico- temáticas étnico-raciais3 e de gênero, mas, sim, partir
lógica e biologicamente. É a partir daí que se passa a de contribuições e reflexões que as engendraram no
INTRODUÇÃO demarcar as diferenças sociais e, por conseguinte, a pre- âmbito teórico. Para tanto, realizei pesquisa bibliográ-
tensa superioridade branca e a inferioridade dos demais fica e me norteei por estudiosos (as) provenientes das
segmentos étnico-raciais. Ciências Sociais e Humanas, dentre os quais destaco:
Raça e gênero são conceitos (re) construídos historica- As teias e tramas de ideias dos “homens da ciên- Nancy Stepan (1994), Teresa de Lauretis (1994), Luiza
mente, e envolvem digressões complexas e polêmicas, cia” são o foco central de discussão de Stepan (1994, p. Bairros (1995), Sueli Carneiro (1993; 2003), Conceição
ao colocar em xeque a neutralidade dos “homens da 72), que busca saber: 1)“Como, na ciência, metáforas Evaristo (2006), Carlos Moore (2007) e Pietra Diwan
ciência”1 que os engendraram, fazendo uso de metáforas ou analogias particulares estão relacionadas à pro- (2007).
e analogias, a fim de justificar as pressuposições cien- dução científica social?”; 2)“Por que certas analogias
tíficas, cujo intuito foi propalar a superiorização euro- são escolhidas e outras não?” Afinal, como observa
cêntrica, mesmo quando os resultados obtidos iam de a referida estudiosa, a ciência, ao longo dos tempos,
encontro aos almejados. O que interessava, no entanto, configurou-se (e ainda se configura, nos dias atuais)
RACISMO CIENTÍFICO
era demarcar os segmentos étnico-raciais distintos, par- como um campo privilegiado de saber, graças ao status E DESDOBRAMENTOS
tindo de conceitos preconcebidos. de verdade que lhe é conferido. É na esteira do pensa-
Ao se deter sobre o período que vai do século XVII mento de Stepan (1994) e estudiosos afins que tecerei Reportando-me à epígrafe transcrita inicialmente, rei-
ao XX, Stepan (1994, p. 72) salienta que, na era moder- considerações acerca dos seguintes pontos: a) o papel tero que “A analogia em questão é aquela que liga raça
na, houve a rejeição da metáfora e da analogia pelos da analogia e da metáfora como meio de interpretar e ao gênero, uma analogia que ocupou lugar estratégico
ditos cientistas, por considerá-las destituídas de obje- propagar o racismo científico e o sexismo2; b) relação e na teoria científica sobre a variação humana dos sécu-
tividade, da razão que, “tradicionalmente”, correspon- distinção entre os movimentos feministas e o feminis- los XIX e XX”, como assevera Stepan (1994, p. 72), ao
dia “ao reservatório de conhecimento não metafórico, mo afrocentrado; Serão estas as duas questões cruciais entender que analogia corresponde a uma espécie de
empírico, apolítico e universal”. Com o transcorrer do que nortearão as ideias a serem desenvolvidas no pre- elo entre raça e gênero, configurando-se em um ins-
tempo, quando do desejo de distinguir os comporta- sente texto.
mentos, sentimentos e a mente humana, o desinteresse Vale salientar, de antemão, que não intento dis-
3. Raça aqui é entendida não em uma acepção biológica, mas
dos “homens da ciência” pela metáfora e analogia se cutir o conceito de gênero historicamente, tampouco
sociológica, já que estudiosos da área de relações étnico-raciais
altera, apesar das controvérsias criadas em torno delas, almejo aprofundar polêmicas que giram em torno das a entendem enquanto resultante de discriminações pelos traços
diacríticos do ser humano, e não pelos genes e ou fatores bioló-
1. Para maiores informações a respeito de tais “homens da scien- gicos, naturalizados. Ao contrário, esclarecem Moore (2007) e
cia” veja-se também Schwarcz (1993, p.36) que se detém sobre os 2. O qual resulta da crença na supremacia do segmento branco, Munanga (1999), estas são resultantes de relações sociais (re)
mesmos em seu livro O espetáculo das raças (1993) europeu, em detrimento dos demais. construídas historicamente.

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negras reflexões

trumento “estratégico” para a “teoria científica sobre a a superioridade do segmento étnico-racial branco em trimento de outras, além da omissão, distorção e mani- do “informações sobre os corpos das mulheres (com-
variação humana”. detrimento do segmento negro. Emerge, assim, o elo pulação de dados pelos “homens da ciência”, indicando primento dos membros, largura da pélvis, formato do
No texto de Stepan (1994, p. 72)4 é possível obser- entre “raça e gênero”, estrategicamente utilizado para quão eram movidos por interesses escusos e afins. Isso crânio, peso ou estrutura do cérebro”, as quais “teriam
var momentos cruciais da polêmica quanto à rejeição explicar a “variação humana dos séculos XIX e XX”. é perceptível quando Stepan (1994, p. 76) faz alusão perdido sua importância como sinais de inferioridade
e/ou aceitação/apropriação da metáfora e da analogia Antes, porém, prossegue Stepan (1994, p. 74), “desde o às “origens culturais da metáfora científica”, reconhe- [...]”. Seguindo na direção do pensamento da referida
pelos homens da ciência. A princípio ocorre a total final do iluminismo estudos sobre a variação humana cendo que “na ciência [...] metáforas e analogias não estudiosa, diria ainda que, se nos detivermos com um
rejeição de ambas, no século XVII, quando da “revo- distinguiram diferenças raciais como aspectos cruciais são arbitrárias, nem meramente pessoais”, pois, “[...] a pouco de atenção àqueles episódios dos “homens da
lução científica”. Sem entrar nos meandros de tais con- da realidade, e um extenso discurso sobre desigualdade falha em perceber ‘arbitrariedades’ é que faz com que ciência” e às suas “descobertas”, poderíamos identifi-
trovérsias, interessa registrar que “a metáfora chegou a racial começou a ser elaborado”, compreendendo-se, a as metáforas ou analogias particulares sejam aceitáveis car semelhança com a ficção, estando ambas análogas
ser associada à imaginação, à fantasia poética, às figuras princípio, que “a mulher se igualava aos negros pelo na ciência”. Ou seja, em uma (con)fusão epistemológica e na confiscação de
subjetivas e até mesmo à falsidade e foi contrastada ao crânio estreito, infantil e delicado, tão diferente das objetos científicos: seres humanos.
conhecimento sem adornos, verdadeiro e objetivo – mais robustas e arredondadas cabeças que caracteriza- No caso do estudo científico da diferença humana, as
isto é, à própria ciência”. vam os machos de raças ‘superiores’”. analogias usadas pelos cientistas do final do século A analogia conduziu pesquisas, gerou hipóteses e aju-
No entanto, no século XX seguem as polêmicas Com base no tamanho do crânio (craniometria) XVIII, quando a mutação humana começou a ser es- dou na disseminação de novos vocábulos técnicos.
quanto à importância ou não das metáforas e analogias, dos homens, das mulheres, das crianças e dos idosos, tudada sistematicamente, foram resultado de metáforas Também auxiliou a constituir os objetos de investiga-
pois, se de um lado os “cientistas” passam a defender das ditas raças superiores (brancos) e inferiores (ne- preestabelecidas, familiares e culturalmente arraigadas ção na variação humana – raças de todos os tipos [...]
que “as analogias ou os modelos nelas baseados eram gros), os considerados homens das ciências fizeram (STEPAN, 1994, p. 76) bem como outros grupos sociais [...] A analogia definiu
importantes para o pensamento científico”, os filósofos descobertas mirabolantes e racistas. E isso evidencia o que era problemático [nos] grupos (STEPAN, 1994,
da ciência discordam. Stepan (1994, p. 73) informa ainda quão fantasiosas, preconceituosas e distantes da reali- Stepan constata ainda que “O sistema metafórico p. 87-88).
que o “físico francês Pierre Duhem ficou bastante conhe- dade são suas conclusões. No entanto, as ideias vigentes fez surgir as ‘lentes’ através das quais as pessoas expe-
cido pela sua crítica à importância da controvérsia sobre não eram entendidas como precoces, preconceituosas, rimentaram e ‘viram’ as diferenças entre classes, raças Se a “analogia conduziu pesquisas”, demarcou pa-
metáfora e analogia para o esclarecimento científico”: racistas e sexistas, pois souberam enlaçar, emaranhar, e sexo; entre o homem civilizado e o selvagem; entre péis sociais, poderes, saberes, direitos e deveres, isso
enredar: ciência/analogia/metáfora, usufruindo do sta- ricos e pobres; entre crianças e adultos”. Emergem daí não se deu casualmente. Tanto é que ao identificarem
Mais recentemente, porém, tendo a atenção dos his- tus científico e social que dispunham, o qual estava, as diferentes formas de opressão/exploração tão caras “[...] aspectos da realidade e da experiência humanas
toriadores e filósofos da ciência se deslocado das re- obviamente, em consonância com os demais grupos a ambos os gêneros: feminino e masculino oriundos do incompatíveis com a metáfora tendiam a ser ignorados
construções lógicas da ciência em direção a visões mais hegemônicos da época5. segmento negro. Logo, a pretensa objetividade científi- ou não ‘observados’” (STEPAN, 1994, p. 86-90).
“naturalistas” da ciência da cultura, o papel das metá- O artigo de Stepan (1994, p. 75), em alguns mo- ca, imersa em metáforas e analogias arraigadas de (pre) Em suma, a metáfora e a analogia utilizadas pelos
foras, analogias e modelos começou a ser reconhecido mentos, nos afigura ideias cômicas, se não resultassem conceitos (pseudo) científicos engendrou a propalada ditos “homens da ciência”, tinham o papel de justificar
(STEPAN, 1994, p. 73). em tragicidade para aqueles que foram discriminados inferiorização negra e a superiorização branca. Então, e comprovar teses racistas e sexistas, sob teias e tramas
e dizimados sob a égide da ciência, com o mero propó- ao constatarem a discrepância entre os resultados ob- científicas, para atender aos propósitos eurocêntricos.
Assim sendo, no século XX, “alguns filósofos da ci- sito de salvaguardar privilégios sócio-econômicos dos tidos e os almejados, os negligenciavam ou suprimiam Complicado é o fato de muitos daqueles ideários terem
ência” passaram a considerar “que metáforas e analogias grupos hegemônicos, pois, através de “manobras por vezes cômicas”, observa Ste- sobrevivido ao transcorrer do tempo, posto que mul-
não são apenas auxílio psicológicos para a descober- pan (1994, p. 86-89). tifacetados, prosseguem demarcando lugares sociais,
ta científica ou esquemas heurísticos, mas elementos Analogicamente às raças inferiores, a mulher, o des- Nesse caminhar de constatações/manipulações interferindo nas relações (inter)pessoais, étnico-raciais,
constitutivos da teoria científica”. E, prossegue Stepan viante sexual, o criminoso, os pobres das cidades e os é possível notar que os ideólogos da ciência criaram, enfim. Eis, então, a importância de (re)discutir e proble-
(1995, p. 73), apesar de “o papel da metáfora e da ana- insanos eram, de um modo ou de outro, considerados também, tecnologias sociais6 ao utilizar não só as téc- matizar tais questões, também abordadas pelo estudioso
logia na ciência [ser] agora reconhecido, uma teoria ‘raças à parte’, cujas semelhanças entre si e as diferenças nicas e demais instrumentos da área como, também, a Carlos Moore (2007), que contribui para ampliar e ra-
crítica da metáfora científica está apenas começando com o homem branco ‘explicavam’ suas posições infe- linguagem própria, a fim de atribuir termos específi- tificar algumas constatações desenvolvidas por Stepan.
a ser elaborada”. Diante dessa constatação, a aludida riores e diferentes na hierarquia social. cos/científicos às descobertas, a saber: craniometria,
pesquisadora evidencia seu propósito que é “contribuir antropometria, frenologia, organologia, prognatismo,
para o desenvolvimento de tal teoria”. Daí a utilização Partindo de tais exemplos hoje esdrúxulos, fan- dolicocéfalo, branquicéfalo, etc7.
de “uma peculiar analogia da história das ciências, para tasiosos, Stepan prossegue com outras instigantes in- As metáforas, complementa Stepan (1994, p. 73),
RACISMO E SEXISMO:
explorar uma série de questões relacionadas às causas formações, trazendo à tona a construção científica que no caso, possibilitaram a “construção de similaridades”, O PASSADO PRESENTE
culturais das analogias científicas”. propiciou a analogia entre raça e ciência, questionando de “novos conhecimentos”, auxiliando e fundamentan- NO SEIO SOCIAL
É instigante, no artigo de Stepan, a riqueza de in- sobre o porquê da escolha de algumas analogias em de-
formações a respeito das apropriações da analogia e
6. Aproprio-me, aqui, do termo utilizado por Lauretis (1994, p.
da metáfora pelos “homens de ciência” para afirmar 5. Schwarcz (1993, p.50), evidencia alguns métodos científicos 220), remetendo-se a Foucault, para designar algumas “técnicas”
Carlos Moore (2007, p. 28) salienta que, “Não por aca-
dos homens da ciência, baseados em Lombroso, para se perce- que a burguesia criou “a partir do final do século XVIII para asse- so, precisamente nos meios acadêmicos – onde, do sé-
4. Como estarei me referindo sempre o mesmo texto de Stepan ber, através do crânio dos seres humanos, as tendências crimi- gurar a sobrevivência da classe e a continuação da hegemonia”. culo XVII ao século XX, foram gestadas e organizadas
(1994), não mais mencionarei o ano de sua publicação, farei alu- nais ou genialidades humanas, o que era aprendido nos cursos 7. Para maiores detalhes consultar Stepan (1994) e Schwarz ideologicamente as noções raciais que predominam até
são apenas às respectivas páginas em questão. de frenologia. (1993). os dias de hoje [...]”, demarcando-se a supremacia racial

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negras reflexões

do segmento branco em detrimento dos demais: “An- dade branca, mas entre parcelas significativas da comu- de Hipólito Taine, Darwin, Spencer, etc, recriados em ência no transcorrer do tempo, e ganha status de verdade.
tropólogos, sociólogos, historiadores, etnólogos, psicó- nidade negra”. No que concerne à comunidade branca, nossa literatura. Há, no entanto, muitos outros10. Logo, chega até nós, realimentada pela sociedade patriar-
logos, economistas e filósofos atuaram como grandes corrobora o sentimento de superioridade em relação Poderia, aqui, mencionar mais exemplos da propa- cal, racista e sexista. Nesse viés de pensamento, Carlos
sustentáculos conceituais daquelas arquiteturas teóricas às pessoas negras e, nestas, tende a ocasionar danos à lada superioridade branca X inferioridade negra impor- Moore (2007, p. 281) salienta que “O sexismo é um fe-
que alicerçaram o racismo ideologicamente”, com vistas auto-percepção dificultando – e às vezes inviabilizan- tada principalmente da Europa, assimilada e adaptada nômeno exclusivamente antimulher e o racismo é um
a salvaguardar privilégios seculares por meio de ações do - a construção de uma autoestima positiva. Esse é o aos interesses dos diversos grupos hegemônicos no ex- fenômeno fundamentalmente antinegro” sendo ambos
racistas. Trata-se, portanto, de “privilégios econômicos mesmo ponto de vista de Nascimento (2002), Munanga terior e no Brasil, conforme percebem os estudiosos da “fenômenos atemporais, universais e transversais”, afinal
e sociais que são negados à população-alvo”, permitin- (2004), Silva (1995), Bento (2000), entre outros (as) es- área citados até então e, além deles, Santos (2002) em
do que os “grupos hegemônicos” consigam “produzir tudiosos (as) da área. seu livro intitulado: A invenção do ser negro: um percurso Como formas de consciência historicamente constru-
e perenizar as estruturas de dominação sócio-raciais Gomes (1995, p. 69) reitera constatações de Moore das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. ídas e determinadas, atemporais e englobantes, o ra-
em favor da sua prole [...]” (MOORE, 2007, p. 286). É (2007) e de Stepan (1994), ao entender que as teorias Em termos de outros projetos políticos de embran- cismo e o sexismo perpassam todas as culturas e todas
do bojo desse contexto que surge a eugenia imersa em racistas “não surgem espontaneamente, nem são meras quecimento social e ideológico, no Brasil, por exemplo, as civilizações. Eles atravessam os milênios, os modos
princípios de extermínio dos não brancos. transposições de pensamento externo9. Elas se alimen- envidaram-se esforços para perseguir a religiosidade de produção, as religiões, as filosofias e as ideologias
Para Diwan (2007, p. 10), a eugenia “Com status tam e terminam por legitimar o racismo presente no e as atividades culturais do segmento. Eis o que Ab- (MOORE, 2007, p. 281).
de disciplina objetivou implantar um método de sele- imaginário social e na prática brasileira”. Eis o que cons- dias Nascimento (2002) denomina como “genocídio
ção humana baseada em premissas biológicas. E isso tatou, também, Schwarcz (1987) em seu livro Retrato do negro brasileiro” antes, durante e após o período Carlos Moore (cit, p. 280) delineia as nuances do
através da ciência, que sempre se pretendeu neutra e em preto e branco: jornais, escravos e cidadãos em São escravagista. Nos anos 80 (século XX) é que, nacional racismo, desfiando suas teias enredadas sob fios teóri-
analítica”8. Seu percurso histórico é longo e, através de Paulo no final do século XIX. Esta estudiosa assevera e internacionalmente, se começa a dar mais visibilidade cos, históricos, ideológicos. Logo, complementa, “Tanto
nomes e propósitos distintos, percorreu o universo dos que “Sobre a raça negra, os discursos do Correio eram às desigualdades raciais no Brasil, muito embora só a o sexismo quanto o racismo compartilham a singulari-
filósofos, Platão e Aristóteles, que buscaram a pureza diversos, mas basicamente convergentes, pois expli- partir dos anos 90 o governo federal tenha reconhecido, dade de serem dinâmicas determinadas e construídas
racial quando da distinção matrimonial, para “estimu- cavam desde a inferioridade dessa raça com relação à oficialmente, a persistência do racismo e de seus male- historicamente e não ideologicamente”.
lar o matrimônio dos casais ‘superiores’, tendo em vista branca até suas características de ‘humildade e servi- fícios para a sociedade como um todo (TELES, 2003). Conforme Frei Betto (2006, p. 19-21) o feminismo
a preservação da raça” (op cit. p. 23). lismo’” (SCHWARCZ, 1987, p. 113). Antes, porém, negras vozes fizeram ecoar as opressões surgiu “nos EUA, na segunda metade dos anos 60, e
Um exemplo da obsessão fanática – para não dizer sofridas, visto serem os campos de batalhas mais com- expandiu-se pelos países do Ocidente, propugnando
Mesmo na Idade Média, em que tudo era resultado fantasmagórica – de um personagem que corresponde, plexos ainda que os enfrentados pelas mulheres bran- a libertação da mulher [...]”. Ele esclarece ainda que
da vontade divina, a noção de superioridade do povo metaforicamente, a alguns dos “homens da ciência” é cas. Surge daí o feminismo afrocentrado, na contramão muitas mulheres já se rebelavam contra a hegemonia
cristão sobre os muçulmanos em relação à posse da muito bem ilustrado através de Simão Bacamarte, da da história, eis o que se segue. masculina. No entanto, seu marco dá-se no “século
Terra Santa e a inferioridade indígena para justificar obra literária O Alienista, de Machado de Assis. Nessa 18”, com o advento da “Revolução Francesa”, “o berço
a dominação do Mundo Novo podem ser constatadas obra temos a fina ironia machadiana ao perscrutar as do feminismo moderno”. Então, lá se vão as mulheres,
(ibid, p. 23). experiências de um cientista obcecado em desvendar imersas em uma sociedade rígida e regida pelo patriar-
as (re) ações humanas consideradas anômalas sob seu
NEGRAS MULHERES: calismo, em busca da libertação. Mas, libertação de quê
A aludida pesquisadora salienta que embora na- ponto de vista. Assim, leva a cidade ao caos ao internar/ TECENDO OS FIOS DE UM e de quem? Responde o autor, elucidando conceitos tais
quela não houvesse “descrições raciais nesses argumen- prender um imenso contingente em seu “laboratório”. FEMINISMO AFROCENTRADO quais: “libertação” e “emancipação”, em uma leitura
tos, incontestavelmente se desenvolveram estratégias Nem mesmo a esposa escapa, nem ele, o alienista, por análoga entre ambos. Sem entrar em tais meandros,
ideológicas” para demarcar a “superioridade dos cris- fim. Eis a visão magistral de Machado de Assis face ao tomemos a demarcação temporal de Frei Betto como
tãos e, por outro lado, a inferioridade dos muçulmanos domínio e às especulações científicas vigentes. Embora não possamos traçar uma linha temporal a res- uma referência, um ponto de partida para o alvorecer
e indígenas” (DIWAN, 2007, p. 23). Há, nesse aspec- Dentro de uma visão mais Naturalista da realidade, peito da propalada inferiorização da mulher e, obvia- e o florescer do feminismo no Ocidente.
to, aproximações entre os pontos de vista de Diwan outros personagens da Literatura Brasileira expressam a mente, da intensificação da opressão social, sob o aval Mas, pondera Bairros (1995, p. 458), “Numa socie-
e Carlos Moore, sobretudo quando este reconhece o influencia da (pseudo) ciência. Em O Cortiço, de Alui- cientifico, tomando como referência o século XVII, no dade racista, sexista, marcada por profundas desigual-
racismo como um “fenômeno histórico”, estruturado sio de Azevedo, duas figuras são emblemáticas: Rita entanto, Stepan (1994, p. 77) assevera que, “Já na Gré- dades sociais, o que poderia existir de comum entre
ideologicamente, enredado com base no fator heredi- Baiana e o português que se amanceba com ela: Gerôni- cia antiga, Aristóteles relacionou a mulher ao escravo, mulheres de diferentes grupos [...] e classes sociais?”.
tário e fenotípico dos segmentos étnico-raciais. mo. Aqui o poder sensual e bestialidade da mulher ne- tendo como base suas inferioridades ‘naturais’”. Para Bairros (p. 458), esta “questão recorrente não é
Assim como Carlos Moore, reportando-se às teo- gra destroem a retidão e o caráter exemplar do homem Quer dizer, a inferiorização da mulher é tomada totalmente resolvida pelos vários feminismos, que in-
rias racistas em questão, Gomes (1995, p. 69) constata branco, que se degenera no meio social em que habi- como algo natural, congênito, uma espécie déficit que terpretaram a opressão sexual com base em um dife-
que “ainda estão presentes na atualidade e continuam tava, o Rio de Janeiro. Logo, o português, Gerônimo, lhe era inerente. Essa associação, conforme observamos renciado aspecto teórico-político-ideológico de onde o
exercendo sua força ideológica não apenas na comuni- abandona a família e, desde então, sucumbe em todas antes, é apropriada e justificada metaforicamente pela ci- movimento feminista surgiu”. Eis o que a pesquisado-
as virtudes europeias. Esse é um exemplo da analogia ra evidencia, remetendo-se aos “conceitos básicos de
8.Vale pontuar que Diwan (2007, p. 37), em seu livro Raça pura: entre raça e gênero, no século XIX, à luz dos ideários 10. Isso, não só na literatura destinada ao adulto mas, também, nas feminismo” e, com base em Judith Grant, aborda tais
uma história da eugenia no Brasil, o aborda não só no Brasil como produções destinadas às crianças e adolescentes. A esse respei- conceitos e aponta as suas limitações, levando em conta
no exterior e segue aa mesma linha de pensamento de Cashmore 9. Esse é a tese defendida por Scwarcz em outro livro de sua to ver: Brookshaw (1983), Evaristo (2007), Cuti (2010), Oliveira os problemas sócio-raciais que afetavam as mulheres
(2000), afirmando ser Francis Galton “o pai da eugenia”. autoria, cujo título é O espetáculo das raças (1993). (2006; 2007) entre outros (as) estudiosos da área. brancas e negras.

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negras reflexões

As mulheres negras, enfatiza Bairros, eram (e são) Na mesma linha de pensamento das estudiosas humanidade, de sapiência e força e, após ele, a mulher nência de sua observação, quando se refere ao “contin-
oprimidas não só pela sociedade patriarcal como, tam- abordadas até então, Piza (1998, p. 67) salienta que “Os branca é a referência, sendo o último plano relegado ao gente de mulheres” negras que precisaram “ganhar as
bém, pelas mulheres brancas, por estarem imersas em primeiros estudos do feminismo sobre gênero nasce- homem negro, seguido da mulher negra. ruas e trabalhar”, para sobreviver, isso durante e após o
um sistema socialmente racista. Nessa mesma linha de ram da denúncia e da reflexão sobre o patriarcado”, pois Seguindo a direção do pensamento de Carlos sistema escravagista. Diante disso, tais mulheres “não
pensamento, Sueli Carneiro (2003, p. 119) destaca a im- “as diferenças de sexo” eram “percebidas inicialmente Moore (2007), Conceição Evaristo (2005; 2006), Luiza entenderam nada quando as feministas disseram que
portância do feminismo no combate ao sexismo entre como diferenças biológicas e sociais [...]”, afinal, as mu- Bairros (1995), Sueli Carneiro (1993, p. 187) parte da [...] deveriam ganhar as ruas e trabalhar”. Outra adver-
outros tipos de preconceitos sofridos pelas mulheres lheres viviam “imersas num sistema cujo paradigma de premissa de que a “identidade” resulta “de um proces- sidade apontada por Sueli Carneiro diz respeito ao ideal
negras e ressalta as “o protagonismo que tiveram nas normalidade e de autoridade social e política” centrava- so histórico-cultural”, pois, “nascemos com uma defi- de mulher universal: a musa, branca, sob os moldes
lutas pela anistia, por creche (uma necessidade precípua -se na figura do “homem branco, de classe abastada” nição biológica, ou seja, homens ou mulheres [...] Ou greco-romanos, e aquelas cujos traços diacríticos des-
das mulheres de classes populares), na luta pela descri- Mas, o que se entende por “patriarcalismo”? Con- com uma definição racial: brancos, negros, etc”. Nossa toam de tal padrão. Logo, são vistas como “antimusas”.
minalização do aborto que penaliza, inegavelmente, as forme Piza (1998, p. 67) “o patriarcado ocidental, como identidade social, portanto, é construída a partir “des- Conceição Evaristo, assim como outras escritoras,
mulheres de baixa renda”. regime social, tem sua base de sustentação na família sas definições sexuais e raciais”. Daí concluir-se que a “que tinham dificuldades de encontrar seu um lugar,
Outras acepções de feminismo são apontadas por nuclear, composta por pai, mãe e filhos e, no passa- “identidade social [é] construída a partir de elementos inclusive dentro do feminismo” (ARAÚJO e SCHNEI-
Luiza Bairros (1995, p. 458-459) que, seguindo a linha do, também pelos servos e escravos”. Ou seja, “tendo históricos, culturais, religiosos e psicológicos”. DER. 2006, p. 126), faz (em) ecoar vozes silenciadas
de pensamento de Sueli Carneiro, tece considerações sido um regime de influência política na Antiguidade, Ao desenredar os fios da trama que encobriram a e/ou invisibilizadas em nossa literatura ao longo dos
sobre as “versões mais conhecidas do feminismo, a sa- e exercido até o século XIX, o patriarcado refluiu no visão de mulher universalizada, Sueli Carneiro (1993, tempos. Eis a grande contribuição de Evaristo e outras
ber: “radical, liberal e socialista”. Para Luiza Bairros, tais início do século XX”. Fica, aqui, uma instigação: será p.189) segue ainda mais pungente: desvenda e dissipa tantas escritoras e escritores desconhecidas (os), igno-
versões não deram “conta das questões” que afligiam as que só até o século XX? Penso que não, pois, assim alguns mitos (re)criados no seio social patriarcal pois, radas (os), rejeitadas (os), enfim, por grande parte da
mulheres negras, haja vista a persistência do patriarca- como o racismo, hoje os sistemas racistas e patriarcais “Quando falamos do mito da fragilidade feminina que critica literária brasileira, ainda nos dias atuais.
lismo e do racismo preponderante. são constantes em nosso imaginário, interferindo no justificou historicamente a proteção paternalista dos O que nos importa aqui, no texto em questão, de
Bairros (1995, p. 459) chama a atenção para a ne- olhar sobre a alteridade. Mas, interessa elucidar: a qual homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos Araújo e Schneider, é a demarcação dos anos 70 como
cessidade de nos atentarmos ao “uso do conceito de mulher costuma-se referir quando se pensa a opressão falando?”, pergunta. Afinal, um marco histórico de insurgência das vozes que o sis-
mulher”, o qual “traz implícito tanto a dimensão do no sistema patriarcal? Essa questão é respondida com tema patriarcal racista e sexista tentou silenciar. Vale
sexo biológico como a construção social de gênero. bastante propriedade e veemência por Sueli Carneiro Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente salientar, ainda, a alusão à heterogeneidade dos movi-
Entretanto, a reinvenção da categoria mulher”, pon- (1993, p. 188), fazendo um paralelo entre o Movimento de mulheres que trabalharam durante séculos como es- mentos feministas. Afinal, ser mulher e negra fez e faz
dera, “frequentemente utiliza os mesmos estereótipos Feminista Brasileiro e o “do mundo” pois, cravas nas lavouras ou nas ruas como vendedoras, qui- a diferença em nossas trajetórias. Sueli Carneiro chama
criados pela opressão patriarcal – passiva, emocional, tuteiras, prostitutas etc; mulheres que não entenderam a atenção, nesse sentido, para a necessidade de “reco-
etc, como forma de lidar com os papéis de gênero”, de Os primeiros passos do Movimento Feminista no Brasil nada quando as feministas disseram que as mulheres nhecimento da diversidade e desigualdade existentes”
modo que as diferenças entre mulheres e homens são e no mundo expressaram a intensa revolta [ao] processo deveriam ganhar as ruas e trabalhar! entre ambos os movimentos. Salienta, portanto, que,
vistas de maneira naturalizada e, “a opressão sexista de opressão, e como todo movimento de contestação, Fazemos parte de um contingente de mulheres com
é entendida como um fenômeno universal, sem que, se constituíram na recusa de todos os estereótipos tra- identidade de objeto. Ontem a serviço de frágeis sinha- A diversificação das concepções e práticas políticas que
no entanto fiquem evidentes os motivos de sua ocor- dicionais existentes sobre a mulher: contra o mito de zinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje empre- a ótica das mulheres dos grupos subalternizados intro-
rência em diferentes contextos históricos e culturais”. fragilidade, contra o confinamento da mulher ao espaço gadas domésticas de mulheres liberais e dondocas, ou duz no feminismo é resultado de um processo dialético
Assim sendo, entende-se que opressão é a “situação doméstico, contra a limitação da mulher a mero repro- mulatas tipo exportação. que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres
que a mulher definir como tal”. Mas, a qual mulher a dutor da espécie. E o rompimento com esses modelos As mulheres negras fazem parte de um contingente de em geral como novos sujeitos políticos, de outro exige o
estudiosa se refere, especificamente? Para responder nos situava mais próximas do modelo da masculinidade. mulheres que não são rainhas de nada, que são retra- reconhecimento da diversidade e desigualdade existen-
a essa questão faz-se necessário trazer à baila as duas tadas como antimusas da sociedade brasileira, porque tes entre essas mesmas mulheres (2003, p.118).
acepções de feminismo aludidas por Bairros, pois, é Questionando e desconstruindo tais mitos, os o modelo estético é de mulher branca [...]
através dessas “[...] versões do pensamento feminista quais não correspondem à realidade, digamos, às ex- Sueli Carneiro (2003, p. 118) entende, pois, que
que explicitamente tentam definir a mulher com base periências e vivências de grande parte das mulheres ne- A aludida filósofa não desconsidera a importância “[...] o feminismo esteve [...] por longo tempo, prisio-
em experiências tidas como universais”. gras, Sueli Carneiro (1993, p. 188), prossegue em suas dos feminismos que se insurgem no âmbito das mu- neiro da visão eurocêntrica e universalizante das mu-
A primeira versão, assegura Bairros (1995, p. 460- instigações, fazendo uma importante ressalva ao consi- lheres brancas, das camadas dominantes, cujas vozes lheres” dificultando, desse modo, o reconhecimento
461) parte da premissa de que a maternidade é a “expe- derar, pois, que o “movimento de mulheres nos levou ao repercutem nacional e internacionalmente. No entanto, das “diferenças e desigualdades presentes no univer-
riência central na identidade das mulheres”, concebidas resgate desta dimensão feminina irrecusável. [...] Somos demarca as singularidades entre ambos, haja vista as so feminino, a despeito da identidade biológica”. Em
como a “dona do lar”, dedicada à família, cujo núcleo mulheres e estudamos. Somos mulheres e trabalhamos. distintas frentes de batalhas que os distancia. Se estas consequência disso, “as vozes silenciadas e os corpos
é constituído de um provedor, o esposo, e a prole, os Somos seres plenos de potencialidade, exercendo uma mulheres lidam com a opressão social do universo pa- estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas
filhos. O segundo versão concebe “a sexualidade [...] cidadania de segunda ordem (1993, p. 188). triarcal, as negras mulheres, em sua trajetória, têm que de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio
como forma de poder que transforma a mulher em ob- Sueli Carneiro remete-se à opressão social e econô- buscar forças para lidar com as mais variadas formas de e na invisibilidade”.
jeto sexual do homem, como a experiência capaz de uni- mica, à disparidade salarial, já que à mulher se atribui opressão social oriundas do patriarcalismo e do racismo. No que se refere à invisibilidade das mulheres
ficar todas as mulheres”. É o caso da mulher “vitima de uma cidadania “de segunda ordem”. A primeira ordem, São as disparidades entre os dois universos de mu- negras, Conceição Evaristo (2005, p. 205) ilustra isso
um poder definido como intrinsecamente masculino”. é óbvio, é atribuída ao homem branco, o modelo de lheres (brancas/negras) que Sueli aborda. Daí a perti- através da “história oficial brasileira”, reportando-se às

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pesquisadoras da área, a exemplo de Sueli Carneiro, o que fizeram nossos antepassados, às vezes pagando branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis/ MUNANGA, Kabenguele. Rediscutindo a mestiçagem
Lélia Gonzalez, Helena Teodoro, Luiza Bairros, entre um preço muito alto: a própria vida. Eis a batalha que RJ: Vozes, 2002. no Brasil: identidade nacional versus identidade
outras, tomando como referência, também, a produ- prosseguimos na atualidade, mesmo não contando com BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasi- negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
ção brasileira. A escritora alude ainda ao “fazer lite- os poderosos aparatos tecnológicos aludidos por Laure- leira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. MUNANGA, Kabenguele. Apresentação. In: Superando
rário das mulheres negras” e observa que “os textos tis (1994, p.220): as tecnologias sociais, e de gênero, as CARNEIRO, Sueli. Identidade Feminina. In: Cadernos o racismo na escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005,
femininos negros, para além de um sentido estético, quais correspondem aos meios, recursos - quer dizer, Geledés, n. 4, 1993, pp. 187-193. p.15-20.
buscam semantizar um outro movimento, àquele que técnicas audiovisuais, midiáticas, científicas, discursi- CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. In: Estu- NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasilei-
abriga todas as suas lutas”. São destacadas, portanto, vas, educacionais, entre outras - (re)criados pelos gru- dos Avançados, n. 17 (49), 2003 ro. Salvador: Ceao/UFBA, 2002.
as seguintes escritoras: “Geni Guimarães, Esmeral- pos hegemônicos. CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnico-ra- OLIVEIRA, Maria Anória de J. Relações Étnico-Raciais
da Ribeiro, Miriam Alves, Lia Vieira, Celinha, Roseli Se a metáfora diz respeito à substituição de um ciais. São Paulo: Summus/Selo Negro, 2000. na Educação e a Literatura Infanto-Juvenil: nas ve-
Nascimento, Ana Cruz, Mãe Beata de Iemanjá, dentre termo, palavra ou ideia de uma coisa por outra, cuja CUTI. A consciência do impacto nas obras de Cruz e redas da Lei Federal 10.639/03 (?!). In: LINS, Jua-
outras”. Acrescentaria nessa relação a própria escritora, conotação é análoga, correspondente à analogia, por Souza e Lima Barreto. Belo Horizonte: Autentica, rez Nogueira e outros (Org.). Linguagem e Discus-
Conceição Evaristo, cuja produção vem se consolidan- outro lado, abrange não só a similitude como, também, 2009. sões Culturais. João Pessoa: Ed. dos Organizadores,
do “no campo literário”, como bem ressaltam Araújo e estabelece pontos de semelhanças entre coisas diferen- DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia 2006, pp.245-261.
Schneider (2005, p.126). Isso, sem falar na produção tes. Logo, tanto a analogia quanto a metáfora lançam no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007. OLIVEIRA, Maria Anória de J. Discurso Histórico e
acadêmica da pesquisadora/escritora/professora. luzes para elucidar determinadas semelhanças entre EVARISTO, Conceição. Dos sorrisos, dos silêncios e Narrativa Literária: entrelaces na tessitura da Rai-
Se as relações étnico-raciais, a exemplo da relação diferenças (raciais e de gênero) (re/des)construídas das falas. In: SCHNEIDER, Liane e MACHADO, nha Africana Nzinga Mbandi. In: FLORES, Elio
entre negros e brancos, têm sido desiguais historica- historicamente. Charliton (Org). Mulheres no Brasil: resistência, lu- Chaves e SUCUMA, Arnaldo (Org.). Tricontinen-
mente, já que marcadas pelo racismo e pelo sexismo, A analogia e a metáfora foram, portanto, mais um tas e conquistas. João Pessoa: Editora Universitária/ tal Revista de Arte, Cultura e Ciência. João Pessoa:
também a relação entre homens e mulheres resulta das desses poderosos recursos discursivos, como vimos ini- UEPB, 2006, pp.111-122. Convênio de Graduação e de Pós Graduação, Ano
implicações de vivermos em uma sociedade patriarcal, cialmente. Hoje lidamos com muitos outros: audiovisu- EVARISTO, Conceição. Literatura negra. Rio de Janei- I, v. 1, n.1, Ed. Universitária/UFPB, 2008, pp.123-
sendo as mulheres subjugadas, desvalorizadas em seu ais, midiáticos, educacionais, etc. Mas, não nos damos ro: CEAP, 2007. 140.
saber/poder, assim como as pessoas negras. É possível por vencidos (as) e aqui estamos construindo outras FLORES, Elio Chaves e CAVALCANTE, Fátima Solan- PIZA, Edith. Caminhos das águas: estereótipos de per-
inferir, portanto, que ambos os gêneros: feminino e metáforas e analogias, prescindindo de qualquer desejo ge. Raça, gênero, classe e região: uma introdução sonagens negras por escritoras brancas. São Paulo:
masculino se aproximam analogicamente, por estarem de inverter os centros: do eurocentrismo/eugenismo, à crítica da democracia minimalista. In: SCH- EDUSP / Com Arte, 1998.
à margem da sociedade. pelo afrocentrismo/negro, mas, sim, nos interessa sal- NEIDER, Liane e MACHADO, Charliton (Org). SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser
Agora, se levarmos em conta as condições básicas vaguardar o respeito e o direito às diferenças e fazer Mulheres no Brasil: resistência, lutas e conquistas. negro: um percurso das ideias que naturalizaram a
de vida de ambos os segmentos étnico-raciais, conside- ecoar outras vozes que tentaram silenciar, embora con- João Pessoa: Editora Universitária/UEPB, 2006, pp. inferioridade dos negros. São Paulo: EDUC/Pallas:
rando os índices de desigualdade entre mulheres bran- tinuem a ressoar em nós. 135-145. 2002.
cas e negras, em termos profissional, sócio-econômico, GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos pre- SCHWARCZ L. Moritz; REIS, L.V de Souza (Org.).
educacional e de saúde, observaremos quão díspares sentes no debate sobre relações raciais no Brasil: Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão
são as oportunidades destas últimas, se comparadas uma breve discussão. In: Educação anti-racista: no Brasil. São Paulo: EDUSP / Estação Ciências,
àquelas11, o que resultou da aliança entre pensamen-
REFERÊNCIAS caminhos abertos pela lei federal no. 10.639/03. Se- 1996. p. 179-193.
tos racistas e sexistas, enfrentados pelos movimentos cretaria de Educação Continuada, Alfabetização SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças:
feministas afrocentrados, cujas lutas passadas ainda se ARAÚJO, Flávia Santos de e SCHNEIDER, Liane. A es- e Diversidade/SECAD-MEC, Brasília, 2005 (pp- cientistas, instituições e questão racial no Brasil.
fazem presentes. crita de Conceição Evaristo e a mulher negra como 39-62). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
protagonista em ‘Ana Davenga”. In: SCHNEIDER, LAURETIS, Teresa de. Tecnologia do gênero. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em preto e branco:
Liane e MACHADO, Charliton (Org). Mulheres no HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e jornais escravos e cidadãos em São Paulo no final
Brasil: resistência, lutas e conquistas. João Pessoa: impasses: o feminismo como crítico da cultura. Rio do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,
CONSIDERAÇÕES (IN) Editora Universitária/UEPB, 2006, pp.123-134. de Janeiro: Rocco, 1994, pp-206-238. 1987.
CONCLUSIVAS BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. In: MAPA DA POPULAÇÃO NEGRA NO MERCADO SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro
Estudos Feministas. Rio de Janeiro, PPCIS/IFCS/ DE TRABALHO. São Paulo: INSPIR – Instituto didático. Salvador: CEAO/CED, 1995.
Diante das diferenças históricas entre a trajetória das UERJ, n. 2, pp-458-463. Sindical Interamericano pela Igualdade Racial, STEPAN, Nancy. Raça e gênero: o papel da analogia
mulheres negras e brancas, Sueli Carneiro (2003, p. BETO, Frei. Marcas de batom: como o movimento fe- outubro, 1999. da ciência. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de.
192) sugere o “enegrecimento do feminismo”, o qual minista evoluiu no Brasil e no mundo. In: SCH- MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases Tendências e impasses: o feminismo como crítico da
implica em considerar a “trajetória das mulheres ne- NEIDER, Liane e MACHADO, Charliton (Org). epistemológicas para entender o racismo. Belo Ho- cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp.73-93.
gras no interior do movimento feminista brasileiro”. Eis Mulheres no Brasil: resistência, lutas e conquistas. rizonte/MG, 2007. TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova pers-
João Pessoa: Editora Universitária/UEPB, 2006 MUNANGA, Kabenguele. Para entender o negro no pectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Duma-
(pp. 19-26). Brasil de hoje. São Paulo: Global / Ação Educativa rá: Fundação Ford, 2003.
11. Consultar o Mapa da População Negra no Mercado de Trbalho BENTO, Maria Aparecida da Silva & CARONE, Iray Assessoria, Pesquisa e informação, 2004 (Livro de
(veja-se nas referências). (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre Professores).

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A Redenção
do olhar:
uma abordagem RESUMO abstract
semiótica O presente artigo lida com algumas questões sobre representação
visual da população negra no contexto brasileiro. Para tanto, o au-
This article deals with some questions about visual representation
of the black population in the Brazilian context. For make it works,
tor se utiliza da semiótica formulada por Algirdas Julien Greimas the author uses the semiotic purposed by Algirdas Julien Greimas as
tentando estabelecer correlações entre duas imagens que nos aju- support trying to set up relationship between two images that help
dam a revelar a dimensão histórica do conteúdo racial no âmago us to reveal the historic dimension of racial content in the core of
Nelson de nossa cultura visual. Uma das referências é a pintura intitulada our visual culture. One of the references for this study is the painting
Inocencio “A redenção de Cã” datada da segunda metade do século XIX, e a named “The Can Redemption” from the second half of XIX century,
outra é a cédula de quinhentos cruzeiros que entrou em circulação while the other reference is the five hundred cruzeiros bank note that
Docente do Departamento de Artes Visuais na segunda metade do século XX durante a ditadura militar. O was delivered in the second half of XX century during the military
da Universidade de Brasília (UnB). Coorde- intuito é o de explicar como o ideal de branqueamento ainda é dictatorship. The aim is to explain how the whiteness ideal is still a
nador do Núcleo de Estudos Afro-Brasilei- um modelo seguido, apesar da visão paradisíaca concernente à pattern to be followed, despite the paradise view in which concerns
ros da mesma universidade. Foi membro celebração da diversidade no Brasil. the diversity celebration in Brazil.
da direção nacional da Associação Brasi-
leira de Pesquisadores Negros (Conselho
Nacional de Educação). Doutorando do Palavras chave: Branqueamento, cultura visual, negros, racismo, Keywords: blacks, racism, semiotic, visual culture, whiteness.
PPG-Artes da UnB, com pesquisa acerca semiótica.
do Museu Afro-Brasil em São Paulo.

A IMAGEM IDEAL tação. A conjunção almejada se refere ao processo de Em termos de formantes pictóricos, a obra, obje-
mestiçagem. Neste caso o embranquecimento cumpre to de nosso estudo, apresenta três elementos que estão
COMO PROBLEMA o papel de uma sanção, ou seja, a performance desta vinculados à análise proposta pela teoria greimasiana,
família rural do Brasil agrário do século XIX resultou ou seja, a dimensão cromática proporcionada pelo uso
no nascimento daquela criança especifica, que naquele das cores e suas combinações, a dimensão eidética as-
Esta breve reflexão é um esforço de análise do quadro momento se constitui em objeto modal que conecta sociada à estrutura do quadro e como resultante da
intitulado A Redenção de Cã de autoria de Modesto seus familiares às aspirações de um distanciamento da articulação entre as duas primeiras temos a dimensão
Brocos Y Gomes, datado de fins do século XIX, 1895 imagem negativa atribuída aos africanos e seus des- topológica da pintura.
para ser mais específico. Trata-se de uma pintura, obra cendentes. Transferindo para o quadrado semiótico a A manipulação proposta pelo enunciador, no caso
figurativa cujas dimensões são 199x166cm. O referido situação exposta na pintura analisada, diríamos que em o autor da obra, busca um fazer crer no enunciatário
trabalho pertence ao acervo do Museu Nacional de Be- termos de contrariedades encontramos a relação negro que por sua vez deverá estabelecer algumas relações en-
las Artes, Rio de Janeiro, e tem suscitado ao longo de sua x branco e, em termos de contraditoriedades, uma ou- tre a imagem presente e outras que por ventura estejam
existência uma série de debates e reflexões. tra constituída por não negro x não branco. A tensão arquivadas em seu arquivo mnemônico. Assim, algu-
Nosso empenho aqui é o de tentar pensar este qua- está estabelecida na relação negro x não negro que, de mas associações são possíveis, entendendo que o reper-
dro à luz da semiótica greimasiana ou, melhor dizendo, acordo com a configuração do quadrado, seria o segre- tório, ou em outros termos, a cultura visual do enun-
do que sabemos dela. Seguindo o pensamento de Al- do. A criança parece ser branca embora a ascendência ciatário, se caracteriza como um elemento fundamental
girdas Julien Greimas, para quem a unidade de senti- negra coloque sob suspeita sua aparência. A estratégia que possa permitir a construção dessas associações as
do é fruto das relações entre actantes, nos dispomos a está exatamente em não revelar essa condição particu- quais também denominamos de intertextualidades.
analisar a Redenção de Cã levando em consideração o lar comprometedora. Existem marcas constantes em ambas imagens que
plano da expressão tanto quanto o do conteúdo. Neste Retomando um pouco alguns aspectos da pintura nos impelem a fazer exercícios na procura dessas in-
caso, ao falarmos de expressão, identificamos tratar-se e com o intuito de ir além de uma interpretação que se tertextualidades. Relacionando a pintura em discussão
de um quadro a óleo sobre tela, realizado à maneira restrinja ao plano da superfície podemos nos apoiar com outras produções imagéticas anteriores ou pos-
acadêmica conforme os cânones da pintura neoclássica. nos argumentos de Vicente Martinez quando desen- teriores, algumas aproximações parecem inevitáveis.
As dimensões da obra são amplas, o que corresponde volvendo análises semióticas acerca da pintura enfatiza: Quando fixamos o olhar na tela e sabemos então se
a um modo peculiar de figurativização da época. No tratar de uma abordagem alusiva à miscigenação, acio-
que concerne ao conteúdo, nos deparamos com uma A pintura se caracteriza por ser uma manifestação onde namos o nosso arquivo. No intuito de fazermos um
situação doméstica em que as personagens comparti- nosso olhar é estimulado pela cor, pelo traço, pela li- breve exercício, buscando outras referências visuais, po-
lham um momento de euforia, na medida em que as nha, pela textura, pela matéria, pela forma, etc. e pelas demos destacar imagens bem mais recentes como as da
posturas dos adultos em relação à criança, induzem a relações estruturais que sustentam estes elementos. cédula de 500 cruzeiros aprovada pelo Banco Central e
uma manipulação do olhar expectador, no plano da ten- (Martinez, 1999, pg. 297.) que entrou em circulação nos anos 70, em pleno regime

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autoritário. Conforme o discurso oficial, esta cédula Há na pintura redundância, repetição e reiteração so. O outro texto com o qual pretendemos fazer uma
trata da evolução étnica brasileira, e foi escolhida para suficientes para que possamos identificar nela a exis- interface é uma cédula de 500 cruzeiros que entrou em
a celebração do sesquicentenário da independência. O tência de isotopia, cujos conectores se encontram na circulação no inicio da década de 70 do século passado,
conteúdo da mensagem impressa na cédula está em própria cena, como as características físicas das pessoas durante a ditadura militar. A referida imagem exibe de
consonância com o exposto na tela de Brocos y Go- envolvidas e suas gestualidades, por exemplo. Podemos um lado os diferentes estágios do Brasil desde o “desco-
mes. O foco é a miscigenação não apenas como uma corroborar tal afirmação observando as mulheres em brimento”, passando pelo comércio, colonização, inde-
performance, mas como um querer, um poder e um cena, cujas posturas são tais como as que aludem a uma pendência, integração. A sequência sugere um processo
saber fazer que têm como sanção a constituição de uma graça alcançada. O enunciatário, todavia, necessita ser de desenvolvimento que vem se consolidando ao longo
imagem que nos leve a crer que parecer ser branco, embasado para compreender o discurso apresentado, de mais de quatro séculos.
europeu e ocidental nos garante algumas vantagens. ou seja, para sair de uma condição de não saber para É uma espécie de exercício cartográfico enalte-
A ideia principal é a de que investir no processo de uma condição de saber. Não se trata de uma relação cendo a grandeza do país na perspectiva do discurso
embranquecimento gradual nos dará acesso a algumas imediata de causa e feito, mas o enunciatário precisa oficial. Na outra face, a cédula exibe, analogamente aos
benesses. No caso especifico de A redenção de Cã o procurar entender o porque da execução de uma obra mapas, imagens de brasileiros, todos do sexo masculi-
processo de mestiçagem livraria das trevas muitos in- com esta temática específica naquele dado momento. no. O desenho começa por um indivíduo indígena, pas-
divíduos aos quais seria atribuída uma espécie de fardo Em outras palavras a sua interpretação está condicio- sa por um indivíduo branco, por um indivíduo negro e
celestial. Isto porque, considerando uma versão bíblica, nada pelo instrumental de que ele dispõe para fazer a partir daí as relações inter-étnicas e inter-raciais dão
o Criador teria marcado os herdeiros de Cã, gente cuja suas ancoragens e a partir desse momento desem- a tônica do processo de formação da população brasi-
identificação estaria associada ao fato de portarem pele penhar o seu papel como actante, expressando o seu leira. Até então, nenhuma novidade, apesar da terrível
escura. Daí o título da obra. entendimento tanto no plano da expressão quanto do omissão acerca do desencadeamento desse contato en-
conteúdo. A referida pintura suscita polêmicas sobre tre povos distintos, o qual teve como uma das referên-
as ideias acerca de “raça” em função de sua aborda- cias insofismáveis a violência sexual contra mulheres OS SUJEITOS
gem. Por outro lado, no contexto da cultura brasileira, ameríndias e africanas. De acordo com aquele discurso
seu teor explicita questões abertas desde a colonização, imagético, as faces vão clareando até que chegamos a
como um constante mal estar causado pela presença uma noção do que seria o brasileiro da atualidade, que Conforme as leis da semiótica, sujeito não é pessoa, ob-
africana na cena nacional. possui a aparência de pessoa europeia, dentro dos pa- jeto não é coisa. Partindo desse entendimento e compa-
Ana Claudia de Oliveira, no livro em que orga- drões tradicionais hegemônicos. rando a duas imagens ora relacionadas, percebe-se que
niza, intitulado Semiótica Plástica, argumenta que o Esta cédula circulou por uma década ou mais e o há um sujeito que se constitui na ideia a ser seguida.
interesse pelas imagens, pela visualidade, possui uma seu conteúdo sempre foi problemático, por vários as- Talvez pudéssemos atribuir ao discurso da mestiçagem,
abrangência que extrapola o campo das artes plásticas pectos. Como já mencionamos antes, a presença mas- como fenômeno que se persegue obstinadamente na
e da comunicação visual. Isso significa que toda cons- culina parece absoluta e nesse aspecto ela difere da tela cultura brasileira, esse papel que corresponde ao de
trução imagética passou a ser objeto de interesse nos de Brocos. Por outro lado, naquela pintura do século manipulador de nossas vontades, transformando-as
mais diversos domínios. A partir desse argumento e XIX, a sanção, ou seja, a redenção, só é possível graças em um querer fazer, um dever fazer, um poder fazer.
acreditando que para a semiótica a relação entre siste- à figura paterna, condição que devolve ao homem seu Mas principalmente nos fazer crer que é possível ser
mas distintos pode se realizar desde que esta aproxima- papel quando não absoluto, determinante para a vida feito, por que esta é uma conduta a ser seguida. Esse
ção viabilize interpretações palpáveis, nos lançamos ao das mulheres. Na obra dos oitocentos a figura mascu- discurso é produzido em alguma instância por alguém.
desafio de buscar correspondências que nos auxiliem lina seria um objeto modal, ela é necessária para que o Esse alguém, que poderíamos identificar também como
nesse processo e que não estão necessariamente no clareamento da pele ocorra. Precisamos dela na busca o segmento composto pela hegemonia eurocêntrica,
campo da pintura. obstinada por uma aparência que omita a africanidade. acredita no embranquecimento como uma sanção a
No esforço de tentar interpretar a obra em ques- Já na cédula de 500 cruzeiros a última figura masculina ser alcançada.
tão, explorando ao máximo seus elementos pictóricos, da esquerda para a direita seria o objeto de valor. Seu Um outro sujeito seria a parcela da população que
procuramos estabelecer ao menos uma ancoragem que papel é análogo ao da criança sentada no colo da mãe. ainda não alcançou o ideal a ser seguido. Este segmento
pudesse auxiliar no percurso gerativo de sentido, recor- É no plano do conteúdo que vamos encontrar o que as é constituído por pessoas que não foram “redimidas”
O resultado da performance está explícito na pin- remos às imagens arquivadas em nossos repertórios. duas imagens têm em comum. De uma forma ou de pelo processo de miscigenação. Elas são manipula-
tura que apresenta três gerações de uma mesma família, Dessa forma, a associação da imagem em questão com outra, ambas preconizam que o processo de embran- das no sentido de que suas ações convirjam para as
sendo que as duas primeiras assumem as competências uma outra, não menos polêmica, se tornou inevitável. quecimento é uma meta a ser alcançada. As estruturas, ações propostas. Porém tais pessoas não possuem a
para tornar possível um desejo. Nesse sentido, como já Mas o outro referencial, que por algumas razões se co- as maneiras como estão concebidas as disposições das competência absoluta para realizar o que esta sendo
mencionado, elas querem fazer, elas podem e sabem necta à obra de Modesto Brocos, permite a vincula- personagens, a manipulação do olhar que é impelido a proposto. É necessário que as pessoas brancas sejam
como fazer. A estrutura da obra, por exemplo, dialoga ção mesmo sem se tratar de uma pintura, sem ter sido percorrer caminhos que nos levem ao ideal em termos também manipuladas para que esta performance se
com representações clássicas da literatura brasileira que produzido no século XIX, sem corresponder a valores de uma aparência aceitável, tudo converge e conspira realize. Os temas da tela e da cédula parecem ter uma
destacou a mestiçagem como valor nacional. canônicos de um período da historia da arte. Nada dis- no intuito de persuadir-nos neste sentido. força tamanha a ponto de se caracterizarem como

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negras reflexões

uma configuração discursiva, ou seja, que envolve vá- mestiçagem encontra-se imbricada à ideia sorrateira de Esta argumentação é de real importância por to- zadora da Sagrada Família” (Morais, 2002 pg.50). Este
rias transformações narrativas, percursos temáticos e branqueamento. Por outro lado, poderíamos até valo- car em pontos chaves que também são objetos da pes- argumento, embora ocorra no nível fundamental (à
figurativos. Por exemplo, a noção de mestiçagem como rizar nossos acentuados processos inter-étnico e inter- quisa no campo da cultura visual. Mas por que razão primeira vista), traz implícita a ideia de que branquea-
resultado de uma performance pode conter um certo -racial, desde que este gesto não servisse para encobrir insistimos nessa ideia? O fato é que as interpretações mento e modernização possuem uma correspondência
glamour, dependendo da compreensão que se tem de visões reacionárias acerca de nosso passado africano e possíveis diante das imagens em questão (o quadro de “divina” entre si. Não é difícil de compreender a nefasta
ambas imagens. Contudo, um olhar mais crítico sobre escravocrata. Modesto Brocos, que aqui procuramos relacionar à cé- relação levando-se em conta os germes de nossa longa
elas tende a conduzir-nos para outra interpretação. A O que entendemos é que tanto a tela quanto a cé- dula de 500 cruzeiros) dificilmente poderão prescindir herança escravocrata.
de que a presença negra é incômoda e, portanto, deve dula são capazes de criar sentidos de alcance social e do uso do repertório de cada enunciatário, na medida Interessante notar ainda alguns aspectos da rela-
ser amenizada, atenuada, reduzida, minimizada. político. O que está presente nestas concepções é um em que ele, no intuito de compreender o discurso ima- ção disjunção/conjunção. Os negros, no caso, deveriam
Voltando à Ana Cláudia de Oliveira, é interessante ethos brasileiro que aqui e ali ressurge quando falamos gético, tentará fazer as suas ancoragens. Uma condição entrar em disjunção consigo mesmo, com sua história,
notar uma de suas argumentações no tocante à obra de de nossas tão idolatradas e supostas tolerância e gene- sine qua non para que a ancoragem se dê é exatamente suas tradições, seus costumes, a fim de aderir a um
arte e que serve também para auxiliar na fundamenta- rosidade. Embora, paradoxalmente, sejamos um país a possibilidade de se acessar o repertório na busca de projeto “modernizador”, mais do que isso, “redentor”.
ção de nossos argumentos. Ela dirá citando Jean-Marie em que se convive com a diversidade, sem que neces- outras imagens com as quais acreditamos haver algu- Deveriam ainda reagir de maneira eufórica à possibili-
Floch: sariamente haja respeito pelas diferenças. mas marcas textuais semelhantes àquelas encontradas dade de que, no futuro, seu descendentes se assemelha-
No afã de compreender melhor a semiótica pro- na imagem que ora está diante de nossos olhos. riam ao outro. Não parece algo muito distinto do que
“No entanto, o que importa para o semioticista francês posta por Greimas e suas dimensões, procuramos es- Quando algum texto visual nos chama a atenção preconizaram as instituições coloniais, principalmente
é evidenciar não o contexto de fora da pintura, mas tabelecer algumas aproximações com outros concei- para a mestiçagem brasileira, podemos recorrer à ima- a Igreja, no que diz respeito ao abandono de valores
a própria tela que é aquele que explica ou leva à sua tos fluidos nas artes visuais. Nesse sentido, quando o gem da mulata, preferência nacional, símbolo que con- “pagãos”, “mundanos”. Não é por acaso que até os nos-
significação. A tela não traduz ou reflete ideologias, enunciatário é chamado a construir uma interpretação, juga uma série de visões estereotipadas que não cessam. sos dias tais noções influenciem textos pretensamente
ela cria sentidos de alcance social e político.” (Oliveira, visando a produção de sentido, ele poderá lograr maior Podemos lembrar do “cabelo bom”,ou ainda do “negro analíticos sobre cultura popular e outros fenômenos.
2004, pg. 24.) ou menor êxito dependendo da amplitude de seu pró- de alma branca”. São ingredientes, imagens que podem Pensando a debreagem , outra discussão interes-
prio repertório, ou seja, o seu alcance no percurso gera- ou não ser evocadas, mas que certamente povoam nos- sante permeia as noções apresentadas. O eu (negro)/
Assim sendo, dessa perspectiva semiótica, qual- tivo estará profundamente relacionado com o tamanho so imaginário. aqui, interpretando esta tela/ e agora, na contempo-
quer comentário sobre as circunstâncias em que o de seu arquivo mnemônico que seleciona e compila Qualquer cidadã ou cidadão brasileiro possui al- raneidade, sofrendo um deslocamento que propõe ela
quadro foi pintado seria nulo. E nem é necessário na imagens também. Em se tratando dessa situação espe- guma noção do discurso da mestiçagem, seja ajustada (negra)/ alhures (Brasil agrário do final do sec. XIX) /
medida em que as personagens adotam uma postura cifica, parece haver alguma conexão entre nossa abor- às interpretações paradisíacas de Brasil, seja essencial- antes, no passado (lá no início do período pós-aboli-
quase cênica no contexto da obra para enfatizar o que dagem e o conceito de cultura visual, explorado por mente crítica no que concerne aos usos e abusos dessa ção). Esse deslocamento implica em alguns entendi-
se quer dizer. Aliás, sua interpretação não é nada fácil, pesquisadores da área de arte/educação, o qual consiste noção, ou mesmo à indiferença. Tudo vai depender dos mentos importantes sobre as condições sociais pre-
pois complexas relações de gênero e raça podem ser em uma formulação teórica subsidiada pela história da pontos de vista de quem olha. Alguém que acredite, por gressas do país sem os quais o enunciatário terá pouca
observadas na ação que ocorre. O homem sentado no arte, a antropologia e os estudos culturais, cujo interesse exemplo, no mito da democracia racial brasileira difi- chances de lograr êxito no percurso gerativo de sentido.
batente da porta de uma casa modesta possui uma pre- em discutir a cognição estética passa pela determinação cilmente se sentirá incomodado com A redenção de Cã.
sença fundamental na trama. Sem ele nada teria sido de tomar como um dos pressupostos a bagagem ou o Sua tendência é a de estar em conjunção com o trabalho
possível. Dele depende o futuro, não das herdeiras de repertório imagético do público. Sobretudo, ao lermos do artista e de compartilhar um momento eufórico.
Cã. Elas são passageiras, devem ser manipuladas para Ana Claudia de Oliveira e algumas de suas significativas O que está figurativizado na obra tem um apelo
dar lugar ao novo. Aquele que atende às aspirações de observações sobre semiótica plástica ficamos tentados ideológico irrefutável, tanto que a referida pintura já
INTERTEXTUALIDADES
uma sociedade ávida por compartilhar valores defini- em arriscar algumas interfaces, ainda que guardadas as foi utilizada em congressos científicos para ilustrar te-
dos como positivos, a exemplo de vínculos com uma devidas proporções. Oliveira explica que: ses acerca composição étnica futura do Brasil. Os crí- Retornando ao esforço de estabelecer uma ancoragem
aparência que se encaixe dentro dos padrões ocidentais ticos de arte divergem em suas argumentações, desde possível na relação que tentamos construir entre a tela
de beleza e representação. Os desencadeadores de iso- Entendemos que o adjetivo “plástica” pode abranger o aqueles que acreditam ser a tela de Brocos uma visão e a cédula, e entendendo, conforme Ana Claudia Oli-
topia estão todos ali, as pessoas de diferentes gerações estudo do plano da expressão das manifestações visu- bem humorada do país, até os outros que questionam veira, que o domínio da imagem extrapola a produção
com maior ou menor concentração de melanina. Ao ais mais distintas, quer as artísticas, quer as midiáticas, as intenções do artista. artística, queremos reiterar que a aproximação sugerida
passo que na cédula não se deixa transparecer uma di- quer as do mundo natural. Considerando que o texto De acordo com argumentações supracitadas, certa- se deu a partir de um exercício de memória. No reper-
ferença etária. É como se esse homem viril e exclusivo visual, qualquer que seja: arquitetura, escultura, paisa- mente teríamos condições de olhar a obra por diferen- tório da cultura visual explorado constava este objeto,
passasse por uma mutação imediata. A ideia de nação gem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, tes flancos como, por exemplo, as relações de gênero, uma cédula que, segundo as informações presentes na
que aquele texto carrega se vincula a uma noção de é construído por uma arranjo especifico de sua plástica, que também são complexas no texto visual. Uma ob- obra consultada, foi a primeira criada com o objetivo
pátria profundamente afetada por um olhar oficial. Na organizada por mecanismos estruturais particulares de servação mais atenta nos mostrará o desempenho de de comemorar o sesquicentenário da Independência
cédula, um objeto de uso diário que circula pelas mãos seu sistema, com suas regras, resultando em uma dada papéis sexualmente muito definidos, sem que o enun- do Brasil. Diz o texto:
da população em geral, a presença de brancos, se não sintagmatização das unidades mínimas; optamos por ciatário tenha que despender grandes esforços. Frederi-
está relacionada ao belo, pelo menos está vinculada denominar plástica a semiótica que se ocupa da descri- co Morais, por seu turno, cita o pintor Gonzaga Duque No anverso da cédula de 500 cruzeiros, retrata-se a evo-
ao ideal, um alvo a ser perseguido e que vale a pena ção do arranjo da expressão de todo e qualquer texto o qual dirá que: “A Redenção de Cã poderia ser tomada, lução étnica brasileira e, no reverso, seqüência de cartas
ser alcançado. É curioso notar como, no nosso caso, a visual. (Oliveira, 2004. pg. 12.) à primeira vista, como uma recriação étnica e moderni- histórico-geográficas – Descobrimento, Comércio, Co-

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negras reflexões

lonização, Independência e Integração do Brasil. (grifos a significação estética possibilitam outras abordagens Eidético estabelecimento das relações entre as partes e a totali-
nossos) (Banco Safra, 2000, pg. 278.) que de alguma forma questionem o padrão vigente. Se refere aos aspectos das imagens propriamente ditas. dade tem o efeito de transformar essa cadeia em uma
Seriam tais perspectivas excêntricas e contra-hegemô- Um trabalho artístico pode apresentar aspectos cro- hierarquia sintagmática.
O texto supracitado está inserido em uma publi- nicas alimentadas por uma ética distinta que nos leva a máticos, concernentes às tonalidades, aspectos topo-
cação oficial e, portanto, em consonância com os en- repensar nossos modos de ver na contemporaneidade. lógicos, acerca da localização ou cenário, aspectos ma-
tendimentos e aspirações da oficialidade brasileira. A Condutas providenciais, por exemplo, em tempos de téricos, alusivos aos materiais expressivos empregados
data em que o livro foi lançado é de 2000 e obviamente enfrentamento institucional do racismo e de imple- e aspectos eidéticos, que dizem respeito aos teores das
o texto como está explicita e sustenta uma compreen- mentação de políticas públicas embasadas em ações imagens produzidas.
Bibliografia
são de evolução étnica que remonta às teses racialis- afirmativas para a população afro-brasileira no início
tas do século XIX. É aí que parece estar o gancho que desta segunda década do século XXI. Se a cultura vi- Enunciado FIORIN, Jose Luis. Elementos de analise do discurso.São
relaciona uma imagem à outra. Os dois textos visuais sual do passado dialoga com a cultura visual contem- No sentido geral “aquilo que é enunciado”. Entende- Paulo: Contexto, 2006.
figurativizam noções do que seria a evolução do povo porânea, parece oportuno lembrar que a construção -se por enunciado toda grandeza dotada de sentido, GREIMAS. Algirdas Julien. Da imperfeição. São Paulo:
brasileiro, de uma perspectiva artística independente de uma sociedade democrática também é e sempre foi pertencente à cadeia falada ou ao texto escrito, ante- Hacker Editores, 2002.
ou de uma perspectiva institucional. uma questão de imagem. riormente a qualquer análise lingüística. GREIMAS. Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Di-
Sem a pretensão de encerrar as questões aqui cionário de Semiótica. São Paulo: Editora Cultrix,
levantadas, acreditamos que a cultura visual produz Isotopia 1979.
imagens que podem tanto permitir o avanço de nos- Greimas tomou ao domínio da físico-química o termo HERNANDES, Fernando. Cultura visual, mudança
sas compreensões como podem também limitar nossa isotopia e o transferiu para a análise semântica, confe- educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artes
capacidade perceptiva. A depender do que o processo
Brevíssimo rindo-lhe uma significação específica, levando em con- Médicas Sul, 2000.
seletivo reserva no arquivo mnemônico de cada sujei- glossário sideração seu novo campo de aplicação. De caráter ope- _______. Catadores da cultura visual: transformando
to, podemos estar cercados de estereótipos e o que é ratório, o conceito de isotopia designou inicialmente a fragmentos em nova narrativa educacional. Porto
pior, acreditar em sua veridicção, mas, ao contrário, Actantes interatividade, no decorrer de uma cadeia sintagmática Alegre: Mediação, 2007
há chances de determos informações suficientes para Actante pode ser concebido como aquele que realiza ou de classemas que garantem ao discurso-enunciado a MARTINEZ, Vicente. “A eloqüência da pintura de Ry-
desconstruí-los. Contudo, nada é tão bem resolvido sofre o ato, independente de qualquer outra determina- homogeneidade. man”. In: Revista do Centro de Pesquisas Sociosse-
assim. Um mesmo sujeito pode avançar ali, o que não ção. Assim para citar L. Tesnière, (não está nas referên- mióticas, no. 5 (pgs.295 – 313). São Paulo: Pontifí-
impede seu retrocesso aqui. Estas possibilidades não cias) (este verbete, como os demais foram extraídos do Quadrado semiótico cia Universidade Católica / Programa de Estudos
são refutáveis, até porque os processos dialéticos fazem Dicionário de Semiótica / Greimas & Courtés. Ambos Compreende-se por quadrado semiótico a represen- Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica;
parte da existência humana, como bem sabemos. autores citam Tesnière sem especificar a obra) a quem tação visual da articulação lógica de uma categoria Universidade de São Paulo/ Faculdade de Filosofia,
se deve o termo: “actantes são os seres ou as coisas que, semântica qualquer. A estrutura elementar da signi- Letras e Ciências Humanas; Centre Nationale de
a um título qualquer e de um modo qualquer, ou ainda ficação, quando definida - num primeiro momento - Recherches Scientifiques / Fudation Nationale de
a título de meros figurantes e da maneira mais passiva como uma relação entre ao menos dois termos, repousa Sciences Politiques – CEVIPOF, dezembro. 1999.
possível, participam do processo”. apenas sobre uma distinção de oposição que caracteriza MORAIS, Frederico. O Brasil na visão do artista: o país
CONSIDERAÇÕES FINAIS o eixo paradigmático (comutações e substituições) da e sua gente. São Paulo: Prêmio, 2002.
Ancoragem linguagem: ela é, portanto, suficiente para constituir O Museu de Valores do Banco Central do Brasil. São
A grande questão que permanece aberta diz respeito (...) compreende-se a disposição (...) de um conjunto um paradigma composto de n termos, mas não per- Paulo: Banco Safra, 2000.
às estratégias de manutenção de certos sintagmas em de índices espaço-temporais (...) que visam constituir mite por isso mesmo distinguir, no interior desse pa- OLIVEIRA, Ana Claudia, “Semiótica plástica ou semi-
nossos repertórios, que, uma vez agregados, fomen- um simulacro de um referente externo e a produzir o radigma, categorias semânticas baseadas na isotopia (o ótica visual?”. In: Semiótica plástica / Ana Claudia
tam perenemente nossa cultura visual, permitindo que efeito de sentido “realidade”. “parentesco”) dos traços distintos que nele podem ser Oliveira (org.). São Paulo: Hacker Editores, 2004.
determinadas imagens problemáticas fluam impune- reconhecidos (...)
mente, reiterando noções conservadoras, retrógradas e Debreagem
reacionárias sobre alteridades, diferenças e identidades Pode-se tentar definir debreagem como a operação pela Sanção
não hegemônicas. qual a instancia da enunciação distingue e projeta fora Sanção é uma figura discursiva correlata à manipula-
Pensamos que a semiótica possa indubitavelmen- de si, no ato da linguagem e com vistas à manifestação, ção, a qual uma vez inscrita no esquema narrativo se
te vir a se constituir em ferramenta importante no certos termos ligados à sua estrutura de base, para as- localiza nas duas dimensões, na paradigmática e na
processo de análise que procura enfrentar o desafio sim constituir os elementos que servem de fundação cognitiva.
imposto por essas imagens que coisificam o outro, ao enunciado-discurso. Se se concebe, por exemplo, a
submetendo-o às mais perversas banalizações. Se, por instância da enunciação como um sincretismo de “eu- Sintagma
um lado ficamos estarrecidos com o fato de A Redenção -aqui-agora”, a debreagem, enquanto um dos aspectos Designa-se pelo nome de sintagma uma combinação
de Cã encontrar correspondências na segunda metade constitutivos do ato da linguagem original, inaugura o de elementos co-presentes em um enunciado (frase
do século XX, por outro, nos damos conta de que es- enunciado, ao mesmo tempo, por contrapartida, mas ou discurso) definíveis(...) Os sintagmas são obtidos
tudos críticos direcionados para a produção artística e de maneira implícita, a própria instância da enunciação. pela segmentação da cadeia sintagmática, sendo que o

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interlocuções
interlocuções

Levando em conta sua experiência acadêmica, que Olhando para o Brasil pós-república, ele aponta
obstáculos a senhora diria que estão colocados para para a não escuta, daí o silêncio, da academia acerca
os intelectuais negros no interior das universidades? das questões “do negro”, nas três primeiras décadas do
entrevista: Mesmo não sendo uma pessoa de “larga vivência aca-
século XX; ao tempo em que a militância negra pri-
mava por dar visibilidade à conquista de espaços nesse
anhamona de brito dêmica”, o que a pergunta pode fazer denotar, percebo
que os desafios estão presentes para dentro e para fora
“novo país”. Na sequência, apresenta a mudança de ce-
nário e os marcos da inclusão, na pesquisa acadêmica,
das universidades. Se, dentro delas, vivencia-se a não do diálogo com os negros na condição de sujeitos da
aceitação de que os negros produzam conhecimento pesquisa, relevando as suas considerações no processo
acerca de si mesmos, pela indubitável expressão de de estudo, quais sejam, a defesa da tese do intelectual
Poder latente no redirecionamento do pensamento negro Guerreiro Ramos, intitulada “A Unesco e as re-
científico; deve-se atentar, também, para os desafios lações de raça” e os debates acerca dela no I Congresso
existentes fora dos muros das universidades. do Negro Brasileiro [1950], seguida dos trabalhos de
Para refletir, trago uma interrogação: o que conta Florestan Fernandes e Roger Bastide na USP. No que
mais para a luta antirracista e para a vigência do princí- ele denomina de terceira fase, reporta para o fato de
pio da equidade pelo asseguramento de nossos direitos temas pertinentes aos negros perpassarem a produção
- a atuação acadêmica ou a das ruas, a político-mili- acadêmica, sendo que intelectuais negros e de classe
tante? Trago, ainda, uma ponderação que não é minha média protagonizavam a iniciativa dessas produções.
e, sim, da intelectual Luiza Bairros [atual Ministra da Devemos ter em vista que as reflexões de Pereira
SEPPIR], com a qual concordo: se há uma tendência são dos idos de 1999. Daí para frente, houve uma mu-
em desmerecer a importância do papel dos/as intelec- dança do perfil das pessoas que estão no espaço univer-
tuais negros/as para a potencialização de nossas lutas, sitário e, através dele, produz um dos tipos de conhe-
cabe reconhecer que a produção acadêmica auxilia na cimento, o científico. Essa mudança é fruto da ação de
construção de nossa identidade, além de aprofundar a educadores/as ativistas do movimento negro que de-
A visão do corpo negro no direito, a situação dos in- da atualidade, quando Cesare Lombroso me foi apre- nossa consciência acerca do papel que temos de desem- nunciaram, no curso dos anos, os obstáculos enfrenta-
telectuais negros nos espaços acadêmicos e as prio- sentado. Uma imagem de pessoa semelhante à minha penhar no campo econômico, político, cultural, enfim, dos pela população negra para o acesso, permanência
ridades da atual gestão da Secretaria de Políticas de estava ali, a única diferença era o fato de ser a de um na nossa vida social. e desempenho no ensino superior e promoveram os
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), são alguns homem. O formato do crânio, das orelhas e o modo de enfrentamentos necessários ao estabelecimento de po-
dos assuntos de que trata a nova secretária de Polí- seu posicionamento, a espessura das sobrancelhas, dos Em uma reflexão sobre as relações entre militância ne- líticas de cotas pelas instituições de ensino superior,
ticas de Ações Afirmativas do órgão, Anhamona de lábios, enfim, tudo apontava para a definição do Ser gra e acadêmica no período da república, o professor além da adoção de algumas medidas compensatórias,
Brito, nesta entrevista exclusiva, concedida por e-mail. Delinquente por natureza, a ser repelido com veemência João Batista Borges Pereira delineia uma trajetória que na tentativa de aplacar as desigualdades raciais pela/
Nascida em Salvador, Bahia, ela é advogada, especia- pelo Estado. Da leitura do nosso corpo, a mais completa passa por três fases. A primeira, na primeira meta- na educação.
lista em Direito Público e Políticas Públicas, tendo negação. Ele expressava o não-ser, impossibilitado de de do século passado, de absoluta falta de diálogo. A No Brasil da primeira década do século XXI, temos
também assessorado mesas diretoras de câmaras mu- ter direitos, pelo fato de denotar, de acordo com a teo- segunda nos anos 1950, é marcada por um diálogo a uma maior articulação entre a academia e a militância
nicipais, prefeituras e bancadas legislativas federais, ria [abordada sem qualquer caráter crítico-reflexivo], a partir de inciativas de estudiosos como Roger Bastide e e um maior número de negros militantes e intelectu-
estaduais e municipais. Foi ainda ouvidora geral da inferioridade e o biótipo do crime. Florestan Fernandes, onde lideranças negras se tornam ais. Estamos diante de um novo cenário, com novos
Defensoria Pública do Estado da Bahia e presidenta A figura do “criminoso nato”, do “incontestavel- informantes-chave dos pesquisadores. A terceira fase, problemas, com o direcionamento de ação para novas
do Colégio Nacional de Ouvidorias das Defensorias mente inferior” e do “não-ser” continuam aderidas ao segundo Borges Pereira, é do surgimento de uma inte- demandas, em face da necessidade de conquista de
Públicas do Brasil. corpo negro, expressando o racismo ainda existente no lectualidade negra que passa a defender teses e colocar outros espaços. Será esta uma nova onda, uma quarta
Brasil. Para mim, o fato de o corpo negro - de acordo a questão do negros nas agendas de estudos. A senhora fase? Para mim, sim.
com pesquisa recente do Ministério da Justiça através concorda com essa linha evolutiva? Se permanecemos
Nesta primeira edição da revista Ngunzo, o tema central do Instituto Sangari - ter 103,4% mais de chances de na terceira fase, na sua opinião, para onde ela caminha ? Quais são as prioridades da atual gestão da Seppir?
é Educação, Corporalidade e Racismos Contemporâne- tombar, de perder a vida, se comparado ao de uma pes-
os. A senhora poderia explicar como vê a relação entre soa branca, demonstra isso. Acho que se trata mais de uma questão de constatação No ano em que comemora 8 anos, um dos desafios que
o corpo negro a a existência do racismo? Aos sucessivos desrespeitos, negações, violências do estudioso que de aquiescência de minha parte. O estão postos para SEPPIR é o de avaliar, se ao longo
e mortes simbólicas a que a pessoa negra - em face do que Pereira, no artigo “As relações entre a academia e a do processo de sua institucionalização, este organis-
Lembro-me que uma marcante e inicial reflexão por que o seu corpo expressa [já que a miscigenação visa a, militância negra” constatou, no curso do processo his- mo executivo alcançou a sua finalidade institucional;
mim feita acerca do binômio racismo – corpo negro foi justamente, assegurar uma sobrevida] – é acometida, tórico-cultural brasileiro, foi que a mobilização política e, numa análise negativa, quais foram as questões que
na sala de aula do curso de Direito, na época com 17 parece que nada mais resta. Tirar a vida acaba se tor- e o cultivo da identidade racial, no espaço acadêmico e impediram tal alcance. Somente assim, será possível
anos de idade. Estudava direito penal e a influência das nando consequência, frente às sucessivas mortes ante- no seio do movimento negro, não se intercomunicavam que a SEPPIR projete novas estratégias, ou reforce as
teorias bio-antropológicas para as políticas criminais riormente impingidas. da mesma forma o tempo todo. antigas, de modo a fazer com que o Estado brasileiro

127
interlocuções

reduza as desigualdades raciais e promova uma cultura políticas transversais do governo federal, como também E a questão da mulher negra, será alvo de ações espe- dessa nova política [promoção da igualdade racial], o
não-discriminatória, assegurando a toda a população, as executadas em parceria com outros entes, precisa, de cíficas? Elas se justificam? Por que? compartilhamento de experiências, sobretudo no for-
independentemente de sua cor ou raça, o pleno exer- acordo com o próprio decreto que regulamenta a sua mato de cooperação, mostra-se como uma outra possi-
cício de sua cidadania e o direito à vida. estrutura, realizar e apoiar a elaboração de estudos e Dentro das atribuições da SEPPIR, ações específicas são bilidade na relação da SEPPIR com os países da África
2011 é ano de elaboração do plano plurianual do diagnósticos sobre as desigualdades raciais; desenvolver as que possibilitam ou possibilitarão o atendimento aos e as comunidades de sua diáspora.
Poder Executivo da União, dos Estados e também dos estudos acerca da política de promoção da igualdade anseios e aos interesses da população negra, mesmo que
municípios, tendo a SEPPIR um papel relevantíssi- racial em voga, bem como as propostas submetidas à a execução não fique ao encargo do nosso Ministério, Apesar da legislação existente, sabe-se que a imple-
mo no auxílio à definição e à inserção de indicadores apreciação do Congresso Nacional; planejar, promover em face das peculiaridades organizacionais. No que diz mentação do ensino de história da África e da cul-
a serem atingidos pelos governos em suas ações, que e coordenar encontros para a realização de estudos e respeito às mulheres negras, não podemos deixar de tura negra no ensino fundamental caminha a passos
tentem contemplar aos interesses e às necessidades da debates temáticos sobre a promoção da igualdade ra- considerar que, primeiro, o racismo delimita os grupos lentos. O que pretendem fazer para melhorar essa
população negra, em todas as áreas. cial, entre outras atribuições. sociais tidos como “subalternos” e depois esses grupos situação?
Ainda nessa linha, posso salientar a prioridade a A atuação política e administrativa do Ministério são novamente hierarquizado, dessa vez pela perspec-
ser dada pelo estabelecimento de diálogo, numa esfera se alimenta das conhecimentos produzidos [não apenas tiva de gênero. Talvez o final da pergunta deva ser reformulado para
nacionalizada e envolvendo os entes de governo e da o científico] e, por sua vez, retroalimenta os indíviduos Exemplificando: se uma agenda prioritária do “o que pretendemos fazer para melhora essa situação?”.
sociedade civil, pela estruturação do Sistema Nacional para novas agendas, novos fazeres, novos saberes... Estado brasileiro hoje é a de erradicar a pobreza e a No que diz respeito às ações necessárias ao combate
de Promoção da Igualdade Racial [previsto pela Lei fe- miséria extrema, faz-se essencial a análise das contri- das desigualdades raciais na educação, promovemos
deral nº 12.288/2010, o Estatuto da Igualdade Racial]. Logo que tomou posse a Ministra Luiza Bairros lem- buições nocivas que o racismo e o sexismo imprimem [a SEPPIR, o MEC e os/as agentes sociais envolvidos
Ele foi concebido como a via de organização e articu- brou que o ano 2011 foi considerado pela ONU o Ano nesse cenário, tendo as perspectivas raça e gênero como com a temática] a elaboração de um plano bastante
lação do conjunto de políticas e de serviços destinados Internacional do Afrodescendente e que pretendia balizadoras, não uma ou outra. Daí, vê-se que a SEP- consistente, de modo a auxiliar a implementação das
a superar as desigualdades raciais pelo país, sendo essa aproveitar essa data propícia para propor, no governo PIR não poderá se furtar de, dentro de sua esfera de diretrizes curriculares nacionais para educação das re-
uma tarefa difícil, na medida em que não temos a cul- federal, ações emblemáticas em prol dos negros. Já exis- competência, propor caminhos que visem a aplacar as lações étnico-raciais e para o ensino de história e cul-
tura de promover a articulação de políticas sistêmicas te alguma coisa encaminhada nesse âmbito? inúmeras “opressões” sofridas pelas mulheres negras tura afrobrasileira e africana, que contém, inclusive,
da forma como a proposta. De acordo com o Estatuto, brasileiras, analisando, inclusive, aquilo que elas tem metas a serem atingidas.
teremos a obrigatoriedade de definir quais são as ações Em 21 de março de 2011, aniversário de 8 anos da de mais particularizado. Concordo que há um descompasso entre o proje-
afirmativas adotadas pelo governo federal, com fins de SEPPIR, colocamos na rua a campanha “Igualdade tado e o realizado. Precisamos de outro documento, de
reduzir as desigualdades e, pela sua efetiva aplicação, Racial é Pra Valer”, marcando o lançamento do Ano As relações com a África e as comunidades negras da um novo plano? Por óbvio que não. Precisamos mudar,
descentralizar a sua implementação pelos governos es- Internacional dos Afrodescendentes no país. Com ela, diáspora são importantes. A Seppir pretende estimulá- sim, a estratégia de luta. Parafraseio Edson Cardoso,
taduais, municipais e distrital. conclamamos toda sociedade brasileira para, de manei- -las? De que maneira? afirmando que a luta que teremos de empreender, é
Vejo estes campos como essenciais no processo ra cotidiana e intensiva, promover ações que visem a a luta que teremos de empreender para que o Plano
de definição de prioridade de nosso Ministério, que se combater o racismo e as desigualdades sociais que ele Em que pese a SEPPIR tenha firmado um número sig- ganhe eficácia. Vai passar pela intervenção política da
encontra com um planejamento estratégico em curso. traz como consequência. nificativo de parceria com países do continente Afri- SEPPIR, mas, fundamentalmente, pelo poder de arti-
No slogan, consideramos que a igualdade preci- cano, principalmente no estímulo ao intercâmbio sul- culação e de pressão que os/as professores/as, especia-
Dentro do campo de atuação da Seppir, existe alguma sa ser efetivada, não bastando as referências legais se, -sul entre especialistas da área de educação, é certo que listas, estudantes e as representações do movimento
contribuição que ela possa dar no sentido de ampliar na prática, a nossa vivência demonstra que o racismo poucas foram as tratativas que envolvessem a troca de social conseguirem estabelecer, pelo cumprimento da
e aprofundar as pesquisas acadêmicas sobre o tópico opressor nos impõe um número significativo de exclu- conhecimento sobre aquilo em que o nosso Ministério LDB. Afinal, a 10.639/2003 promoveu alterações no
racial? sões. A intenção é a de que os entes governamentais, goza de um certo pioneirismo. texto dessa Lei maior, o que não pode passar desper-
da iniciativa privada, representantes do movimento so- A institucionalização de um órgão governamental cebido pelos poderes públicos constituídos. Se o seu
Para que o nosso Ministério articule, promova, acom- cial e a população em geral comprometam-se com essa com fins de combater o racismo e aplacar as desigual- cumprimento está aquém do esperado, ou não ocorre,
panhe a execução de programas voltados à implemen- agenda política. Divulgaremos, em breve, as formas de dades sociais que lhes são consequentes é algo recente não é por falta de detalhamento dos possíveis caminhos
tação da promoção da igualdade racial, incluindo as adesão a essa campanha. e, para além da contínua análise acerca dos impactos a serem trilhados para isso.

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literarte
literarte
A que abre o leito dos rios Terras

E apascenta a violência A rainha que dorme em

Com seus cachos Seu sarcófago

É a mesma As oferendas frias

Que desmancha nuvens Tudo virou sombra.


Deusa do rio Iewá Nos olhos movendo

Ricardo Nonato Seus búzios. Ela,


Almeida de A engolidora das dores
Abreu Silva
Poeta e artista plástico, mestre em Letras Ela, Abrirá sua boca
pela UFBA, professor de Teoria Literária
e Literatura Brasileira na Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) e pesquisador A dançarina Mais uma vez
do AYOKÁ KIANDA - Núcleo de Pesquisas
e Estudos Multidisciplinares Africanos e Ewá, com seus contornos Para nascerem flores.
Afro-Americanos (DCHT XXIV/UNEB).

Desenhando o universo

Pele De longe

A sedosa negra A vejo

Da flor no cabelo. Espero.

Impossível

Quantas gargalhadas É querer suas mãos

Foram necessárias? Descendo a lua

Ela caminha Sobre minha face...

Com uma espada.

Com passos finos

A sua volta, Se aproxima

vários Roda

Olhares Corpo mogno e

Uma corte infiel Seu vestido

O rei Pingando vermelho

Que passeia por outras Para nunca mais

É quando fecho os olhos.


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Nguzu – Ano 1, n. 1, março/julho de 2011
Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA)
da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Rodovia Celso Garcia Cid | Pr 445 Km 380 | Campus
Universitário
Cx. Postal 6001 | CEP 86051-980 | Londrina – PR
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