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TEMAS DE DIREITO SOCIETÁRIO

Nelson Eizirik

TEMAS DE DIREITO
SOCIETÁRIO

RENOVAR
Rio de Janeiro • São Paulo • Recife NAO FAÇA CóPIA

2005 fttffi§
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Carlos Alberto Menezes Direito
Caio Tácito
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Celso de Albuquerque Mello (in memoriam)
Ricardo Pereira Lira
Ricardo Lobo Torres
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Revisão Tipográfica: Luiz Fernando Guedes
Capa: Sheila Neves
Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda.

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Eizirik, Nelson
E426t Temas de direito societário I Nelson Eizirik. - Rio de Janeiro: Re-
novar, 2005.
630p. ; 23cm.
ISBN 85-7147-516-4
I. Direito societário - Brasil. I. Título.
CDD-346.81052

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)


Impresso no Brasil
Printed in Brazil
À amada Flávia
Às queridas Julia, Alice, Cecília e ao querido
Miguel.
Nota Introdutória

O presente livro reúne artigos, estudos e pareceres, alguns poucos


publicados, a maioria inéditos, sobre temas de direito societário e/ou
conexos (mercado de capitais, operações bancárias, processos adminis-
trativos sancionadores).
Selecionei para publicação alguns dos pareceres mais recentes e pro-
cedi à sua "edição", excluindo referências às partes envolvidas, circuns-
tâncias factuais irrelevantes para o leitor ou mesmo trechos de análises
desenvolvidas em outros textos. Algumas repetições, contudo, são inevi-
táveis, decorrentes da natureza da presente obra, que não aspira à siste-
maticidade, mas à utilidade.
Tendo ocorrido nos últimos anos várias mudanças na legislação civil
e societária, bem como na regulamentação administrativa introduzi "No-
tas do Autor" contendo as necessárias atualizações.
Agradeço à inestimável colaboração de colegas de escritório que
participaram na elaboração de alguns dos trabalhos aqui contidos: Flávia
Weiner Parente Martins, Marcus de Freitas Henriques, Renata Brandão
Moritz Serpa Coelho, Bernardo de Medeiros e Clarissa Figueiredo de
Souza Freitas. Mariana Berardinelli, também colega de escritório, pres-
tou grande ajuda na tarefa de "editar" os pareceres e as notas. Os erros e
omissões são evidentemente de minha total responsabilidade.
Rio de Janeiro, janeiro de 2005.
O autor
Sumário

I -ACORDO DE ACIONISTAS

I. ACORDO DE ACIONISTAS. INVALIDADE DE


CLÁUSULA QUE IMPÕE OBRIGAÇÃO À COMPANHIA.
PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL SOBRE OS
TERMOS DO ACORDO DE ACIONISTAS. INVALIDADE
DE CONTRATO ACESSÓRIO QUE OBRIGA A
COMPANHIA A ADQUIRIR AS PRÓPRIAS AÇÕES ..................... 1
I- Os Fatos e a Consulta ........................................................................ 1
II - O Parecer .......................................................................................... 2
A - Impossibilidade de a companhia ser parte no acordo de
acionistas ............................................................................................. 2
B- Observância do conteúdo do acordo de acionistas pela
companhia ........................................................................................... 6
C - Prevalência do interesse social sobre os termos do acordo
de acionistas ........................................................................................ 8
D - Aplicação da teoria da imprevisão em função da
onerosidade excessiva na realização do IPO ..................................... 11
E- Impossibilidade de o contrato de opção de venda obrigar a
companhia a adquirir ações de sua emissão ...................................... 16
F- Resposta aos Quesitos ................................................................. 20

2. ACORDO DE ACIONISTAS. ARQUIVAMENTO NA SEDE


SOCIAL. VINCULAÇÃO DOS ADMINISTRADORES DE
SOCIEDADE CONTROLADA ......................................................... 25
A - A natureza jurídica e as finalidades dos acordos de acionistas ... 2 5
B - Os efeitos do arquivamento dos acordos de acionistas .............. 2 7
C- Os acordos de voto em bloco ("pooling agreements") ............... 30
D - A vinculação dos administradores aos termos dos acordos
de acionistas ...................................................................................... 31
E - A extensão dos efeitos dos acordos de acionistas às
sociedades controladas ...................................................................... 36

11 -ADMINISTRAÇÃO E CONSELHO FISCAL

3. CONSELHO FISCAL. COMPOSIÇÃO. IMPEDIMENTOS.


INTERPRETAÇÃO DO PARÁGRAFO 2° DO ART. 162 DA
LEI DAS S/A ........................................................................................ 39
I -A Consulta ....................................................................................... 39
11 - O Parecer ........................................................................................ 39
A- Os conceitos de Sociedades Controladas, Controladoras e
Grupos de Sociedades .................................................................. ... .41
B -As funções e as atribuições do Conselho Fiscal... ....................... 41
C - A competência individual e a independência dos
conselheiros fiscais ............................................................................ 43
D-A Composição e os Impedimentos no Conselho Fiscal.. ........... 46
E -Aplicação do §2° do art. 162 ..................................................... .4 7
F- Resposta ao Quesito .................................................................... 52

4. CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO. FUNCIONAMENTO


E ORGANIZAÇÃO DE SUAS REUNIÕES ..................................... 53
I- A Consulta ....................................................................................... 53
11 - O Parecer ........................................................................................ 54
A- Comparecimento às Reuniões .................................................... 54
B- Representação dos Membros do Conselho de Administração ... 55
C- Secretário da Reunião do Conselho de Administração .............. 56
D - Pauta da Reunião do Conselho de Administração ..................... 58
E - Competência para eleger o Presidente do Conselho de
administração .................................................................................... 61

5. DEVERES DOS ADMINISTRADORES DE S.A. CONFLITO


DE INTERESSES. DIRETOR DE S.A. INDICADO PARA
CONSELHO DE COMPANHIA CONCORRENTE ........................ 65
I - Consulta ........................................................................................... 6 5
11 - Parecer ............................................................................................ 67
A- Deveres dos Administradores .................................................... 68
B- Conflito de Interesses ................................................................. 71
C -Responsabilidades dos Administradores .................................... 73
D - Abuso de Poder e Responsabilidade dos Controladores ............ 7 5
E- Resposta aos Quesitos ................................................................. 76

6. CONTRATAÇÃO EM CONDIÇÕES DE
FAVORECIMENTO. CONFLITO DE INTERESSE.
IMPEDIMENTO DE ADMINISTRADORES ................................... 89
I - A Consulta ....................................................................................... 89
II - Respostas aos Quesitos ................................................................... 91
A- Contratação em Condições de Favorecimento .......................... 91
B - Caracterização de Conflito de Interesses ................................... 9 5
C - Impedimento de Administradores ............................................. 99

7. ADMINISTRADORES DE S.A. EXONERAÇÃO DA SUA


RESPONSABILIDADE. IMPEDIMENTO DOS MEMBROS
DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO EM VIRTUDE DA
APROVAÇÃO DA PROPOSITURA DE AÇÃO DE
RESPONSABILIDADE E SUA SUBSTITUIÇÃO ......................... 105
I- Consulta ......................................................................................... 105
II - Parecer .......................................................................................... 106
1° Quesito ........................................................................................... 106
1 .A - A Aprovação das Contas Engloba a Análise do Relatório
da Administração e das Demonstrações Financeiras ...................... 106
1.B -A Assembléia Geral tem Poderes para Aprovar ou
Recusar as Contas da Administração .............................................. 108
1.C - A não Aprovação das Contas dos Administradores deve
ser Fundamentada ........................................................................... 109
1.D- A Aprovação das Contas pela Assembléia Geral Ordinária
Exonera os Administradores e Impede a Aprovação da
Propositura da Ação de Responsabilidade ...................................... 111
1.E - Conclusão .............................................................................. 113
2° Quesito ........................................................................................... 114
2.A. Os Pressupostos para a Propositura da Ação de
Responsabilidade Contra os Administradores ................................ 115
2.B. O Interesse Social Como Elemento Propulsor da Ação de
Responsabilidade ............................................................................. 11 7
2.C. A Análise do Artigo 159, § 2°, da Lei das S.A. ....................... 11 7
2.D. O Procedimento de Substituição dos Membros do
Conselho de Administração no Caso de Impedimento em
Virtude da Propositura de Ação de Responsabilidade .................... 118
2.E- A Propositura de Ação de Responsabilidade Contra o
Titular Não Acarreta Impedimento do Suplente ........................... 120
2.F- Conclusão ............................................................................. 121
8. HIPOTECA CONSTITUÍDA SOBRE PRINCIPAL ATIVO
DE SOCIEDADE PARA GARANTIA DE DÍVIDA DE
COMPANHIA DO MESMO GRUPO ECONÔMICO.
NULIDADE DA OPERAÇÃO EM DECORRÊNCIA DA NÃO
COMUTATIVIDADE E DA PRÁTICA DE ATOS DE
LIBERALIDADE. DELIBERAÇÃO ILEGAL DO CONSELHO
DE ADMINISTRAÇÃO .................................................................... 123
I- Os Fatos e a Consulta .................................................................... 123
II- O Parecer ...................................................................................... 126
A) A Correta Interpretação do Disposto no Artigo 24 5 da Lei
das S.A ............................................................................................ 126
A. I) A distinção entre grupos de fato e de direito ............................... .
A.II) A necessidade da observância de condições estritamente
comutativas nas relações mantidas entre sociedades integrantes
do mesmo "grupo de fato" .............................................................. 128
A.III) Os critérios para se verificar o caráter comutativo das
relações entre sociedades relacionadas ........................................... 130
A.IV) A não comutatividade como violação dos deveres de
lealdade e de diligência ................................................................... 132
B) A Caracterização de Atos de Liberalidade Disciplinados no
Artigo 154, § 2°, Alínea "a" da Lei das S.A .................................... 133
C) A Natureza Cogente das Normas Contidas nos Artigos 245 e
154, § 2°, alínea "a" da Lei das S.A ................................................ 135
D) A Extensão dos Poderes Conferidos aos Membros do
Conselho de Administração nos Termos do Artigo 142, VIII da
Lei das S.A...................................................................................... 140
E) Exame do Caso Concreto .......................................................... 14 2
F) As Respostas aos Quesitos .......................................................... 144

9. VOTO MÚLTIPLO. DESCABIMENTO NA


SUBSTITUIÇÃO DE CONSELHEIROS NÃO ELEITOS
MEDIANTE TAL SISTEMA ............................................................. 149
I -Dos Fatos e da Consulta ............................................................ 149
II - Do Sistema de Eleição pelo Voto Múltiplo ............................. 150
III - Das Condições de Legitimidade do Requerimento de Voto
Múltiplo .......................................................................................... 151
IV - Da Destituição e Vacância dos Conselheiros Eleitos pelo
Voto Múltiplo ................................................................................. 152
V - Da legitimidade do pedido de adoção do voto múltiplo na
Assembléia Geral convocada para substituir membros do
Conselho de Administração eleitos pelo voto comum ................... 153
VI - Conclusão .............................................................................. 156
111 -AUDITORIA

10. AUDITOR INDEPENDENTE. SIGILO PROFISSIONAL .... 157


I- A Consulta ..................................................................................... 157
II - O Parecer ...................................................................................... 15 7
A - Introdução ................................................................................ 15 7
B - Poder de polícia da CVM face ao auditor independente ......... 158
C - O sigilo profissional do auditor independente ......................... 166
D - Os papéis de trabalho do auditor independente e o dever
de sigilo ........................................................................................... 170
E - Conclusões ................................................................................ 1 7 4

11. AUDITORES INDEPENDENTES. INEXISTÊNCIA DE


SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE DO REGIME DA
ROTATIVIDADE OBRIGATÓRIA ................................................. 177
I- Dos Fatos e da Consulta ................................................................ 177
II - Do Parecer .................................................................................... 181
A - Da função exercida pelos auditores independentes e de sua
submissão ao poder normativo da CVM ......................................... 181
B - Da regra que impõe a rotatividade dos auditores e de sua
interpretação ................................................................................... 183
C - Da não caracterização de sucessão da companhia Delta pela
companhia Alfa ............................................................................... 186
D - Da inexistência de prejuízo à independência e à qualidade
dos serviços de auditoria em função da substituição da
companhia Delta pela companhia Alfa ........................................... 191
E- Das Conclusões ......................................................................... 193

IV -AVALIACÃO DE COMPANHIA ABERTA

12. AVALIAÇÕES DE EMPRESAS NO ÂMBITO DA LEI DE


SOCIEDADES ANÔNIMAS E DO MERCADO DE
CAPITAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL E
ADMINISTRATIVA DO AVALIADOR. ......................................... 195
I - Dos F atos e da Consulta ................................................................ 19 5
II -Do Parecer .................................................................................... 195
A - Dos Pressupostos e das Espécies de Responsabilidade Civil ... 196
B - Da Espécie de Responsabilidade Aplicável às Avaliações
Previstas na Lei N° 6.404!1976 e na Regulamentação do
Mercado de Capitais ....................................................................... 200
C- Da Natureza do Dever Imposto ao Avaliador. ......................... 205
D - Da extensão do dever de diligência inerente às Avaliações
Previstas na Lei N° 6.404/1976 e na Regulamentação do
Mercado de Capitais ....................................................................... 21 O
E - Da Eventual Responsabilidade Administrativa dos
Avaliadores Perante a Comissão de Valores Mobiliários ................ 215
F - Da Análise das Questões Apresentadas na Consulta ................ 219
F .1. - Da extensão da responsabilidade do avaliador nas
hipóteses previstas na Consulta ...................................................... 219
F.2.- Dos critérios para se determinar o preço justo das ações
para efeitos das ofertas públicas de aquisição de ações ("OPA's) .. 221

V- CONTROLE E COLIGAÇÃO

13. INEXISTÊNCIA DE "PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA


INDIRETA" ENTRE SOCIEDADES COLIGADAS ..................... 225

14. OFERTA PÚBLICA DE AQUISIÇÃO NA ALIENAÇÃO


DO CONTROLE DE COMPANHIAABERTA ............................. 231
I - Introdução ................................................................................. 231
II- Definição de controle acionário ............................................... 232
III- Caracterização da alienação do controle acionário ................. 235
IV- Modalidades de alienação do controle acionário .................... 240
V- A Oferta Pública e seus Destinatários ..................................... 242
VI- O prêmio para os minoritários remanescentes ....................... 245

VI- DIREITO DE RECESSO

15. OBJETO SOCIAL. MUDANÇA. DIREITO DE RECESSO .. 247


I- A Consulta ..................................................................................... 247
II- O Parecer ...................................................................................... 247
A- As hipóteses de direito de recesso ........................................... 24 7
B -A noção jurídica do objeto social da companhia ....................... 248
C -A necessidade de caracterização de mudança do objeto
social para ensejar o direito de recesso ........................................... 2 51
D- Conclusões ............................................................................... 254

VII -DIVIDENDOS

16. DIVIDENDOS. PAGAMENTO IN NATURA OU


PARCELADO EM MOEDA CORRENTE ...................................... 255
I- Da Consulta e dos Fatos ................................................................ 255
II- Do Parecer .................................................................................... 255
A- Natureza do dividendo e sua disciplina legal ........................... 256
B - Possibilidade de o dividendo declarado não ser pago ............... 258
C - Caráter essencial da distribuição de lucros nas sociedades
mercantis ......................................................................................... 260
D - Prazo para pagamento do dividendo ........................................ 261
E- Admissibilidade do pagamento de dividendos "in natura" ....... 262
F - Possibilidade de pagamento de dividendo em moeda
corrente a prazo ou in natura, à escolha do acionista ..................... 265
G - Dispensa de disposição estatutária expressa admitindo o
pagamento de dividendo "in natura" .............................................. 266
H - Medidas necessárias para o pagamento do dividendo in
natura .............................................................................................. 268
I - Conclusões ................................................................................. 269

17. DIVIDENDOS INTERCALARES. PRAZO PARA


PAGAMENTO. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 205, §3°, DA
LEI DAS S.A...................................................................................... 271
I - Dos Fatos e da Consulta ................................................................ 2 71
II- Do Parecer .................................................................................... 272
A - O direito do acionista ao dividendo mínimo obrigatório ......... 2 72
B - A natureza dos dividendos intercalares .................................... 2 7 4
C - O prazo para o pagamento dos dividendos previsto no
artigo 205, § 3°, da Lei n° 6.404/76 ............................................... 277
D - A possibilidade de o Conselho de Administração deliberar a
dilação do prazo de pagamento dos dividendos intercalares .......... 278
E -As conseqüências da não observância do prazo estabelecido
no artigo 205, § 3°, da lei n° 6.404/76 ............................................ 279
F - O prazo máximo para o pagamento dos dividendos
intercalares ...................................................................................... 281
G - As Respostas aos Quesitos ....................................................... 283

18. DIVIDENDOS. DISTRIBUIÇÃO COM BASE NO SALDO


EXCEDENTE DA RESERVA LEGAL APÓS A REDUÇÃO DO
CAPITAL SOCIAL. ........................................................................... 287
I- Dos Fatos e da Consulta ................................................................ 287
li- Do Parecer .................................................................................... 287
A- Dos fundos disponíveis para o pagamento de dividendos ........ 288
B - Das finalidades e destinações da reserva legal.. ........................ 290
C - Do limite máximo ao valor da reserva legal.. ........................... 291
D - Da natureza do valor excedente ao limite máximo da
reserva legal ..................................................................................... 294
E- Conclusões ................................................................................ 297
VIII- OPERAÇÕES SOCIETÁRIAS

19. INCORPORAÇÃO DE RESERVAS DE CAPITAL AO


CAPITAL SOCIAL SEGUIDA DA REDUÇÃO DO CAPITAL.
LEGITIMIDADE DA OPERAÇÃ0 ................................................. 299
I - A Consulta ................................................................................. 299
11- A incorporação da reserva de capital ao capital social ............. 30l
111 - A redução do capital social ..................................................... 303
IV- Assembléia especial dos preferencialistas e direito de recesso ... 307
V - Conclusões ............................................................................... 309

20. INCORPORAÇÃO DE COMPANHIA POR SUA


SUBSIDIÁRIA INTEGRAL. EXTINÇÃO DE ACORDO DE
ACIONISTAS. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 264 DA
LEI DAS S.A. PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL E
ABUSO DE DIREITO ...................................................................... 311
I- Da Consulta ................................................................................... 311
11 - Do Parecer .................................................................................... 312
A) Extinção do acordo de acionistas em decorrência da
incorporação da companhia ............................................................. 312
A. I. - Da natureza contratual dos acordos de acionistas ................ 312
A.2 - Da natureza de contrato parassocial dos acordos de
acionistas e sua dependência em relação ao contrato social ........... 313
A.3 - Da impossibilidade de o acordo de acionistas impor
obrigações à companhia ................................................................... 31 7
A.4 - Da inexistência de declaração de vontade dos acionistas
da COMPANHIA ALFA quanto à sobrevivência do Acordo de
Acionistas após a incorporação da Companhia ............................... 319
B) Inaplicabilidade do artigo 264 da Lei das S.A. às operações
de incorporação de companhia por sua subsidiária integral.. .......... 320
B.1 -Fixação das relações de substituição das ações ..................... 320
B.2 -Da particularidade da incorporação de controlada .............. 321
B.3 - Das finalidades da exigência de avaliação adicional
prevista no artigo 264 da Lei das S.A. ............................................ 322
B.4- Da análise do caso concreto ................................................... 324
C) Prevalência do interesse social sobre os interesses
particulares dos acionistas e caracterização do abuso de direito .... 32 7
C.1 - Da prevalência do interesse social sobre os interesses
particulares dos acionistas ............................................................... 32 7
C.2 - Da caracterização do abuso de direito .................................. 329
C.3- Análise do caso concreto ....................................................... 333
I li) Conclusões .................................................................................... 334
21. INCORPORAÇÃO DE AÇÕES. INAPLICABILIDADE
DO ARTIGO 223, §§ 3° E 4°, DA LEI DAS S.A.
INEXISTÊNCIA DE ILÍCITO CIVIL OU ADMINISTRATIVO
CASO A COMPANHIA INCORPORADORA NÃO ABRA
SEU CAPITAL ................................................................................... 339
I- Da Consulta ................................................................................... 339
II - Do Parecer .................................................................................... 341
l. Da inaplicabilidade do artigo 223, §§ 3° e 4°, da Lei das S.A.
à incorporação de ações .................................................................. 341
l.A. Da regra prevista no artigo 223, §§ 3° e 4°, da Lei das S.A. .. 341
1.B. Da distinção entre as operações de incorporação de ações e
incorporação de sociedades ............................................................. 342
1.C. Da interpretação da regra prevista no artigo 223, §§ 3° e
4°, da Lei das S.A. e da impossibilidade de sua extensão às
operações de incorporação de ações ............................................... 344
l.D. Da impossibilidade do emprego da analogia para se
justificar a aplicação do artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. às
operações de incorporação de ações ............................................... 34 7
1.E. Conclusões ............................................................................... 349
2. Da inexistência de ilícito civil ou administrativo caso a
companhia incorporadora não abra seu capital ............................... 3 50
2.A. Do fundamento do direito de recesso e de seu caráter
excepcional. ..................................................................................... 3 50
2.B. Da licitude dos atos que ensejam o direito de retirada ........... 351
2.C. Da hipótese de recesso prevista no artigo 223, § 4°, da Lei
das S.A ............................................................................................ 353
2.D. Do caráter lícito da decisão de não abrir o capital da
incorporadora nas hipóteses de incorporação de ações .................. 356
2.E. Conclusões ............................................................................... 357

22. RESGATE DE AÇÕES PREVISTO NO ARTIGO 4°, §5°


DA LEI DAS S.A.. LEGITIMIDADE DE SUA REALIZAÇÃO
POR SOCIEDADE QUE CANCELOU O REGISTRO DE
COMPANHIA ABERTA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N°
10.303/2001 ....................................................................................... 359
I- Da Consulta ................................................................................... 359
II- Do Parecer .................................................................................... 361
A - da oferta pública de cancelamento de registro de
companhia aberta ............................................................................ 361
B- do regime jurídico do resgate de ações ..................................... 362
C- dos princípios relativos à aplicação das leis no tempo ............. 365
D- das respostas aos quesitos ........................................................ 366
23. INCORPORAÇÃO DE CONTROLADAS SUBSIDIÁRIAS
INTEGRAIS. APLICAÇÃO DO ART. 264 DA LEI DAS S.A. ..... 383
I - Consulta ......................................................................................... 383
II- Parecer .......................................................................................... 383
A - Das finalidades da avaliação dos patrimônios líquidos a
preços de mercado prevista no artigo 2 64 da Lei no 6.404/19 76 ... 3 8 5
B- Da Particularidade da Incorporação de Subsidiária Integral.. .. 385
C- Aplicação da Instrução CVM n° 319/99 .................................. 387

IX- VALORES MOBILIÁRIOS

24. EMISSÃO DE DEBÊNTURES ................................................... 389


I- Introdução ................................................................................. 389
li - Finalidade econômica e natureza jurídica da debênture .......... 389
III- Emissão e subscrição de debêntures ....................................... 390
IV- Competência para deliberar a emissão de debêntures ........... 392
V- Autonomia plena da companhia para emitir debêntures ......... 393
VI- Subscrição à vista ou parcelada ............................................... 393
VII- Registro na CVM da emissão pública de debêntures ............ 394
VIII- Poder vinculado da CVM para aprovar o registro ............... 395
IX- Caracterização legal da emissão pública de debêntures ......... 397
X- Taxa de registro da emissão pública de debêntures ................ .400
XI - Conseqüências da falta de registro na CVM .......................... 401
XII - Participação obrigatória de instituição financeira
underwriter na emissão pública ...................................................... .401
XIII- Distribuição secundária de debêntures ................................ 403
XIV- Negociação das debêntures no mercado ............................. .404

25. DEBÊNTURES. DESMATERIALIZAÇÃO.


POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO SEM A EXISTÊNCIA DE
CERTIFICAD0 ................................................................................. 407
I- A Consulta ..................................................................................... 407
11- O Parecer ...................................................................................... 407
A- As formas das debêntures ....................................................... .407
B - Os títulos escriturais ................................................................. 411
C - A desmaterialização dos títulos de crédito e a execução
judicial dos títulos escriturais ........................................................ .413
D - Conclusão ................................................................................. 419

26. OS VALORES MOBILIÁRIOS NA NOVA LEI DAS S.A..... .421


27. AÇÕES PREFERENCIAIS. LIMITE DE EMISSÃO
APLICÁVEL ÀS COMPANHIAS ABERTAS EXISTENTES
ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI No 10.303/2001 .... .435
I- A Consulta ..................................................................................... 435
II- O Parecer ...................................................................................... 435
A - Evolução da disciplina da emissão de ações preferenciais
sem direito a voto no direito societário brasileiro ......................... .436
B - Limite de emissão de ações preferenciais sem direito a voto
introduzido pela Lei n° 10.303/2001 ............................................ .437
C - Razões para a adoção de regime diferenciado para as
companhias já existentes ................................................................. 438
D - Categorias de sociedades anônimas instituídas pela Lei n°
10.303/2001 ................................................................................... 439
E - Adoção voluntária do novo regime pelas companhias abertas
preexistentes ................................................................................... 441
F- Companhias abertas preexistentes que não atingiram o
limite de 2/3 de ações preferenciais sem direito a voto ................ .443
G- Resposta ao Quesito ................................................................ .445

28. BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO. CLÁUSULA DE


AJUSTAMENTO DO PREÇO DE EXERCÍCIO. APLICAÇÃO
EM DECORRÊNCIA DE AUMENTO DE CAPITAL
EFETUADO PARA ATENDER A PLANO DE OPÇÃO DE
COMPRA DE AÇÕES ..................................................................... .449
I- Os Fatos e a Consulta .................................................................... 449
11- O Parecer ...................................................................................... 451
A - Das características gerais do bônus de subscrição e das
cláusulas de ajustamento ................................................................. 452
B - Da qualificação do aumento de capital para atender ao
exercício de opção de compra como subscrição particular de
ações ............................................................................................... 454
C - Da natureza de título de crédito dos bônus de subscrição ..... .459
D - Da intenção declarada pela Companhia Beta ao emitir os
bÇmus de subscrição ........................................................................ 463
E - Da natureza de contrato de adesão da subscrição de valores
mobiliários ....................................................................................... 466
F - Da violação ao princípio do full dísclosure em função da não
divulgação tempestiva da interpretação adotada pela
COMPANHIA BETA ..................................................................... 469
G - Conclusões ............................................................................... 4 7 2
X- OUTROS TEMAS

29. A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL: ASPECTOS


JURÍDICOS ....................................................................................... 475

30. O PROER E OS ACIONISTAS MINORITÁRIOS- LEI


TERESOCA DOS BANCOS? ......................................................... .481

~~ 31. CESSÃO DE CRÉDITO NO MERCADO FINANCEIRO ...... .487


I- A Consulta ................................................................................. 487
II - Os fatos e sua qualificação ...................................................... .488
III - O cabimento do recurso hierárquico ..................................... .490
IV- A cessão de crédito ................................................................ .491
V- A cessão de crédito e o mútuo ................................................. 495
VI - O mercado de cessões de crédito e sua regulamentação
administrativa .................................................................................. 498
VII -A legitimidade dos contratos de cessão de créditos .............. 502
VIII -As respostas aos quesitos ..................................................... 502

32. CRÉDITO RURAL E "SECURITIZAÇÃO" DAS DÍVIDAS ...... 505


I -A Consulta ..................................................................................... 505
II - O Parecer ...................................................................................... 506
1. O crédito rural e sua disciplina no sistema jurídico nacional .... 507
1.A. Destinação dos recursos ao crédito rural ............................... 509
l.B. Requisitos para a concessão do crédito rural.. ........................ 512
1 .C. Partes no contrato de crédito rural.. ...................................... 516
l.D. Títulos de crédito rural... ....................................................... 518
l.E. Origens dos recursos destinados ao crédito rural.. ................. 519
2. Financiamentos oriundos de repasses de recursos externos
(63 caipiras) ................................................................................... 520
3. O tratamento privilegiado concedido ao crédito rural .............. 521
4. A "securitização" das dívidas ..................................................... 523
5. A natureza jurídica da relação contratual mantida entre o
Autor e o Banco Réu ....................................................................... 526
6. Conclusões ................................................................................. 530

33. CONTRATOS PUBLICITÁRIOS. REGIME JURÍDIC0 ......... 533


I - Dos Fatos e da Consulta ................................................................ 53 3
II - Do Parecer .................................................................................... 534
A- O direito da publicidade .......................................................... 534
B - Dos contratos publicitários ....................................................... 53 7
III -A Análise do Caso Concreto ....................................................... 545
34. FUNDO DE INVESTIMENTO. NÃO APLICAÇÃO DO
CDC AOS QUOTISTAS. FATO DO PRÍNCIPE
CONSISTENTE NA MUDANÇA DAS REGRAS DE
CONTABILIZAÇÃO DOS TÍTULOS DE SUA CARTEIRA ....... 547
I - Os Fatos e a Consulta .................................................................... 54 7
li - O Parecer ...................................................................................... 548
A- Os Fundos de Investimento e sua regulamentação .................. 549
B - A aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos
Fundos de Investimento .................................................................. 554
C - O Fato do Príncipe e as regras sobre "marcação a mercado" ... 565
D -A resposta ao quesito ............................................................... 5 70

35. SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO - SPE.


IMPOSSIBILIDADE DE FALÊNCIA. ABUSO DO DIREITO
POR PARTE DOS DEBENTURISTAS ........................................... 571
I- A Consulta ..................................................................................... 571
li- Os Quesitos e Respostas ............................................................... 572
A- A SPE não pode ter sua falência decretada .............................. 572
B- Requerimento de falência por parte do Agente Fiduciário ...... 575

36. DIREITO DE DEFESA EM PROCESSO


ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. DIREITO DO
INDICIADO DE SER INFORMADO DE TODOS OS
TERMOS DA ACUSAÇÃO .............................................................. 581
I -A Consulta ..................................................................................... 581
li- O Parecer ...................................................................................... 582
A- O princípio do devido processo legal e o direito de defesa ..... 582
B - O direito do administrado de ser informado de todos os
termos da acusação ......................................................................... 586
C- O processo sancionador da SUSEP e o direito de defesa do
administrado ................................................................................... 589
D- Respostas aos Quesitos ............................................................ 596
ACORDO DE ACIONISTAS. INVALIDADE DE
CLÁUSULA QUE IMPÕE OBRIGAÇÃO À
COMPANHIA. PREVALÊNCIA DO INTERESSE
SOCIAL SOBRE OS TERMOS DO ACORDO DE
ACIONISTAS. INVALIDADE DE CONTRATO
ACESSÓRIO QUE OBRIGA A COMPANHIA A
ADQUIRIR AS PRÓPRIAS AÇÕES.

PARECER

I-OS FATOS E A CONSULTA

Da COMPANHIA ALFA, recebemos a seguinte Consulta:

"1. O signatário consulente, COMPANHIA ALFA, é companhia


aberta atuante no setor de internet cujos acionistas (exceto os mem-
bros do Conselho de Administração) estão vinculados a acordos de
acionistas.
2. O primeiro Acordo de Acionistas da COMPANHIA ALFA foi fir-
mado em 1999 ("Acordo de Acionistas") entre os acionistas controla-
dores à época (GRUPO BETA e GRUPO GAMA) e um grupo de
investidores internacionais e nacionais (a seguir denominados em
conjunto "Investidores"), por ocasião da subscrição por esses Investi-
dores de ações preferenciais sem voto de COMPANHIA ALFA. Na-
quela ocasião, COMPANHIA ALFA estava com programa de emis-
são pública primária internacional de ações ("IPO") em andamento,
e chegou inclusive a solicitar registro de oferta pública internacional
de ações junto à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) no Brasil e
à SEC (Securities and Exchange Commission) nos Estados Unidos.
Em face das alterações no mercado e economia mundiais a partir de
janeiro de 2000, o IPO não foi realizado.
3. A presente consulta se põe em função da não realização do IPO até
o presente momento e das conseqüências desse fato à vista do disposto
no Acordo de Acionistas.
4. O Acordo de Acionistas prevê que, mediante recebimento de exigên-
cia por escrito dos Investidores, COMPANHIA ALFA "envidará seus
melhores esforços para efetuar registro", "assim que possível", de uma
oferta pública internacional de suas ações (nas condições especifica-
das no Acordo de Acionistas), o IPO.
5. Os Investidores enviaram comunicação escrita à COMPANHIA
ALFA na qual exigem que realize o IPO nos termos do Acordo de
Acionistas.
6. É entendimento da COMPANHIA ALFA que a exigência dos In-
vestidores representa conflito com os interesses da COMPANHIA
ALFA e seus demais acionistas. Tal entendimento decorre de alguns
fatos a seguir expostos:
a) a atual situação financeira da COMPANHIA ALFA não impõe
necessidade imediata de caixa;
bJ as condições de mercado atuais são extremamente desfavoráveis à
realização de um IPO;
c) os Investidores, COMPANHIA ALFA e empresas do GRUPO
BETA e GRUPO GAMA são signatários de um Contrato de Opção de
Venda ("Put") pelo qual os Investidores terão direito de exigir que a
COMPANHIA ALFA adquira suas ações subscritas em 1999 em
caso de não realização do IPO, após um prazo seguinte à exigência
feita pelos Investidores nos termos do Acordo de Acionistas.
Em face do exposto acima, COMPANHIA ALFA solicita a opinião de
V.Sa. sobre as seguintes questões:
a) a COMPANHIA ALFA está obrigada a realizar o IPO previsto no
Acordo de Acionistas?
bJ Em caso de resposta negativa à questão da letra (a) acima, esta-
riam os acionistas detentores de ações ordinárias signatários do Acor-
do de Acionistas obrigados a dar efeito a tal cláusula?
c) Aplica-se ao presente caso a Teoria da Imprevisão?
d) Caso a COMPANHIA ALFA não realize o IPO dentro dos prazos
previstos no Put, por qualquer razão, poderão os Investidores exercer
o direito previsto no Put contra a COMPANHIA ALFA nos termos
previstos naquele contrato?"

11 -O PARECER

I -IMPOSSIBILIDADE DE A COMPANHIA SER PARTE NO


ACORDO DE ACIONISTAS

O acordo de acionistas possui natureza acessória em relação ao


contrato social, visto que, apesar de celebrado individualmente entre

2
os acionistas, sua eficácia depende da existência da pessoa jurídica, em
cuja esfera dar-se-á a sua execução.
Este caráter acessório e o fato de regularem, extra-socialmente, a
composição dos interesses individuais dos sócios fizeram com que a
doutrina 1 classificasse os acordos de acionistas como contratos paras-
sociais.
Assim, o acordo de acionistas tem natureza de contrato parasso-
cial, uma vez que, embora suas disposições não integrem o contrato
social, sua existência está condicionada à da sociedade, seus contra-
tantes são acionistas e seu objeto opera-se na esfera societária.
Neste sentido, a lição de Luiz Gastão Paes de Barros Leães 2 :

"Trata-se, porém, de um contrato parassocial, quer dizer, um contrato


que se posiciona à margem do contrato social, embora dele dependa,
pois a sociedade gerada pelo contrato principal, logicamente, o prece-
de. São denominados 'parassociais', pois são contratos avençados à
ilharga da sociedade, que existem paralelamente ao contrato so-
cial, quer dizer, têm existência paralelas, nunca tangenciam." ( des-
tacamos)

Constitui, portanto, o acordo de acionistas um negócio celebrado


sem a intervenção da companhia, e estranho ao regulamento das rela-
ções internas da sociedade, ditado pelo Estatuto Social.
Em função de tal natureza parassocial, entende-se que a compa-
nhia não possui legitimidade para figurar como parte em acordos de
acionistas celebrados entre os seus próprios acionistas. 3
A impossibilidade de a companhia ser parte no próprio acordo de
acionistas também é reconhecida por Egberto Lacerda Teixeira e José
Alexandre Tavares Guerreiro, para quem 4 :

"Malgrado deva a sociedade observá-los e, pois, reconhecê-los (desde


que arquivados em sua sede [e versem sobre as matérias previstas no

1 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de S.A., vol. 2, 2a ed. São Paulo:


Saraiva, 1998, p. 463.
2 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Estudos e pareceres sobre sociedades
anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 215-216.
3 CELSO BARBI FILHO. Acordo de Acionistas. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p.
86.
4 EGBERTO LACERDA TEIXEIRA E JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUER-
REIRO. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. vol. I - São Paulo: Bushatsky,
1979, p. 305-306.

3
artigo 118 da Lei das S.A.]), é ela parte estranha ao acordo. No
direito comparado, registraram-se no passado convenções de voto ce-
lebradas entre acionistas e a própria companhia ou seus administra-
dores. No presente estágio do direito comercial, entretanto, tais
convenções são, em toda parte, consideradas ilícitas." Cdestacamos)

Em nosso ordenamento societário, a ilegalidade da participação da


companhia nos acordos de acionistas foi expressamente consagrada no
artigo 118 da Lei n° 6.404/76, tanto que o referido dispositivo, ao
regular o acordo de acionistas, estabelece que o mesmo só deverá ser
observado pela companhia, caso seja nela arquivado.
Em vista disso, Fábio Konder Comparato conclui que 5 :

"No regime da Lei no 6.404, partes legítimas para celebrar tais


convenções são, em princípio, apenas os acionistas.
(. .. )
Na prática anterior ao advento da Lei n. 0 6.404, analogamente ao
que ocorre ainda hoje, a própria companhia emitente das ações figura-
va como parte em acordos de acionistas. As hipóteses eram do mais
variado tipo. Ora tratava-se de vincular a sociedade anônima ao
cumprimento do acordado (efeito, hoje, decorrente do registro), ora de
aparelhar o adimplemento compulsório dos chamados buy-out arran-
gements, pelos quais se estipula um recesso convencional; ora, ainda,
de regular a execução das chamadas 'prestações acessórias', entre a
companhia e seus acionistas, ou a proibição de concorrência à socie-
dade. Parece óbvio que, no sistema legal em vigor, a companhia
emitente das ações não pode ser parte, em sentido substancial,
em convenções de voto." Cdestacamos)

Sendo a companhia parte ilegítima para figurar em acordos de


acionistas, fica evidente que ela não pode estar obrigada por tais ins-
trumentos.
A única hipótese em que se admite a participação da companhia
em acordo de acionistas é na condição de mera interveniente. Ou seja,
a sociedade pode assinar o acordo apenas para que lhe seja dado co-
nhecimento do que foi contratado entre os acionistas, sem que isto
represente a assunção de qualquer obrigação perante os demais signa-
tários.

5 FÁBIO KONDER COMPARATO. O poder de controle na sociedade anônima. Rio


de Janeiro: Forense, 1983, p. 177-178.

4
Dessa forma, conclui-se que, em nosso direito societário, não há
qualquer dúvida sobre a ilegalidade de a companhia ser parte e estar
obrigada pelo próprio acordo de acionistas.
No caso ora em análise, entretanto, a COMPANHIA ALFA fir-
mou o Acordo de Acionistas na qualidade de parte, tendo assumido,
em tal instrumento, uma série de obrigações, dentre as quais a de
realizar o IPO.
Diante disso, o Acordo de Acionistas, neste particular, não obser-
vou os preceitos de nosso ordenamento jurídico, não podendo tal ile-
galidade ser convalidada sob o argumento de que o negócio foi firma-
do no exercício da autonomia privada das partes.
Com efeito, a ordem jurídica impõe restrições ou limites ao exer-
cício da autonomia privada, basicamente de duas ordens: a validade e
a licitude dos atos jurídicos mediante os quais essa autonomia se ma-
nifesta.
A atividade normativa dos indivíduos deve ser exercida tendo em
vista as normas legais existentes, ou seja, a atividade normativa dos
particulares retira o seu fundamento de validade do ordenamento le-
gal, que deve ser obedecido para que o exercício do poder individual
possa ser considerado lícito. Isto significa que a lei constitui a fonte de
validade da norma negociai estabelecida pelos indivíduos, podendo
ampliar ou restringir o "espaço" dentro do qual eles podem se auto-re-
gular.
Vale dizer, a atividade humana manifestada no sentido da autode-
terminação dos seus interesses particulares somente é considerada
lícita na medida em que atende aos requisitos previstos no ordena-
mento legal. Assim, a conduta deve estar em conformidade com o
modelo legal pertinente.
De fato, de acordo com Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón 6, a
autonomia privada tem como um de seus limites a lei, que restringe o
poder de constituição das relações jurídicas, fixando os limites da
autonomia privada.
Falta às obrigações impostas à companhia em acordos de acionis-
tas um requisito essencial de validade, qual seja, a adequação entre o
modelo legal (que, conforme referido, não admite a sociedade como
parte legítima em tais acordos) e a forma pela qual as partes pretende-
ram regular seus interesses, impondo obrigações à companhia em um
instrumento inidôneo para tal finalidade.

6 DIÉZ- PICAZO Y ANTONIO GULLÓN. Sistema de Derecho Civil. Editora


Tecnos, 1994. P. 374.

5
Note-se, ainda, que os princípios da lei societária sobre a regulação
dos acordos de acionistas constituem matéria de ordem pública, que,
como tal, não podem ser derrogadas pela vontade das partes 7 .
Portanto, o fato de a companhia ter assinado o acordo de acionis-
tas não convalida as obrigações a ela impostas por tal acordo, na medi-
da em que os contratantes não poderiam contrariar a regra da Lei no
6.404/76 que expressamente veda a sua participação em acordos de
acionistas.
Assim, são inválidas as cláusulas de acordo de acionistas que even-
tualmente imponham obrigações à companhia, em virtude de sua ma-
nifesta discordância com o ordenamento jurídico.
Diante do exposto, conclui-se que todas as disposições do Acordo
de Acionistas da COMPANHIA ALFA, que imponham obrigações à
sociedade devem ser consideradas inválidas.

11- OBSERVÂNCIA DO CONTEÚDO DO ACORDO DE


ACIONISTAS PELA COMPANHIA

Embora a companhia seja parte estranha ao acordo, este pode


evidentemente produzir efeitos no âmbito da sociedade, particular-
mente quando disciplina o exercício do direito de voto.
A Lei no 6.404/76 instituiu procedimento específico com o obje-
tivo de conferir publicidade ao acordo perante a companhia e, assim,
obrigá-la a observar o pactuado entre os acionistas.
Tal procedimento consiste no arquivamento do acordo de acionis-
tas na sede social, conforme se verifica do disposto no caput do artigo
118 da Lei n° 6.404/76, com a redação dada pela Lei no 10.303, de 31
de outubro de 2.001.
Segundo o art. 118, os acordos de acionistas podem versar sobre a
disponibilidade das ações ("compra e venda de suas ações e preferência
para adquiri-las") e sobre o exercício do direito de voto ou do poder
de controle.
Esta relação prevista pela lei societária, apesar de aparentemente
taxativa, não impede que os acordos de acionistas disciplinem outras
matérias de interesse de seus signatários.
De fato, podem os acionistas convencionar normas sobre matérias
que não aquelas expressamente previstas pela societária. Com efeito,

7 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Ob. cit., p. 99.

6
os acionistas, dentro de seu poder de auto-regulação, podem estabele-
cer cláusulas sobre outras questões, como, por exemplo, critérios de
decisões no âmbito do Conselho de Administração; reorganização em-
presarial; limitação de responsabilidade pessoal por dívidas da compa-
nhia8.
No entanto, em tais casos, a observância das disposições do acordo
de acionistas pela sociedade não será obrigatória, ainda que o acordo
esteja arquivado na sede social 9.
Note-se que tal entendimento foi, inclusive, reforçado com a edi-
ção da Lei no 10.303/2001, que introduziu expressamente no caput
do artigo 118 da lei societária o exercício do poder de controle como
matéria que pode ser objeto de acordo de acionistas e que, a partir da
vigência de tal alteração, passa a ter eficácia perante a Companhia. 10
Ou seja, a Lei das S.A. exclui a obrigatoriedade da observância
pela companhia de acordos de acionistas que regulem outras questões,
que não aquelas expressamente relacionadas em seu artigo 118.
A companhia somente está obrigada a observar o disposto em
acordo de acionistas se estiverem presentes, cumulativamente, os se-
guintes requisitos:
a) tal acordo estiver arquivado em sua sede; e
b) versar sobre a compra e venda de ações, preferência para adqui-
ri-las e exercício do direito de voto ou do poder de controle.
O fato de a companhia estar obrigada a dar cumprimento aos
acordos de acionistas que atendam aos requisitos acima mencionados
não significa que ela se torna parte em tais acordos e que, como tal,
pode ficar sujeita ao cumprimento de obrigações neles impostas.
A única obrigação imputável à companhia pelo artigo 118 da lei
societária é a de assegurar a observância daquilo que foi convenciona-
do entre os acionistas, ou seja, impedir que produzam efeitos perante
a sociedade eventuais atos praticados pelos contratantes em descon-
formidade com o que foi pactuado.
Assim, deve a companhia, por exemplo, impedir a transferência
das ações de propriedade de um dos convenentes em violação às cláu-
sulas do acordo ou, ainda, não computar o voto proferido na Assem-
bléia Geral em sentido contrário daquele previamente ajustado.

s MODESTO CARVALHOSA, Comentários à Lei de S.A., ob. cit., p. 463.


9 FRAN MARTINS. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, vol. Z, tomo I.
Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. I ZO.
10 MODESTO CARVALHOSA E NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S.A., São
Paulo: Saraiva, ZOOZ, Cap. 3.13

7
Porém, repita-se, não pode o acordo de acionistas impor obriga-
ções de natureza patrimonial à companhia, pois, conforme referido,
ela não é parte legítima de tais acordos.

111- PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL SOBRE OS


TERMOS DO ACORDO DE ACIONISTAS

As cláusulas dos acordos de acionistas podem complementar pro-


cedimentos ou regular interesses privados dos acionistas, desde que
não afrontem as normas legais e que não contrariem os princípios
que inspiram as sociedades anônimas, conforme observam Alfredo
Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira 11 :

Como parte do sistema anonimário, as cláusulas do acordo de acio-


nistas devem ser compatíveis com as normas e os princípios do
restante da lei, somente aplicando-se secundariamente, e na medida
em que inexistam mandamentos especiais da Lei das S.A., as normas
e os princípios do direito geral das obrigações." (destacamos)

Embora o campo para o exercício da autonomia privada em rela-


ção ao conteúdo dos acordos de acionistas seja amplo, em virtude da
ausência de norma restritiva na Lei societária vigente, não podem
ditos acordos estabelecer cláusulas contrárias às normas legais e esta-
tutárias vigentes, nem aos princípios que informam o funcionamento
das sociedades anônimas.
Entre tais princípios, destaca-se o que assegura a prevalência do
interesse social sobre a vontade individual dos acionistas, conforme
se infere de diversos dispositivos da lei societária.
Assim, um dos limites ao exercício da autonomia privada nos acor-
dos de acionistas é justamente a observância do princípio da prevalên-
cia do interesse social.
É o que se depreende da leitura do§ 2° do artigo 118:

"Art. 118 (. . .)
§ 2° - Esses acordos não poderão ser invocados para eximir o acio-
nista de responsabilidade no exercício do direito de voto (art.
115) ou do poder de controle (arts. 116 e 117)." (destacamos)

11 ALFREDO LAMY FILHO E JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A lei das S.A.:
pressupostos, elaboração, aplicação, vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 290-291.

8
As partes podem, livremente, firmar acordo de acionistas e outras
convenções para regular seus interesses, desde que tais acordos não
contrariem o interesse social, nem firam direitos atribuídos a outros
acionistas 12 .
Lembre-se que a lei societária tutela o interesse da sociedade,
traduzindo-o como interesse social, que transcende o interesse dos
seus próprios acionistas.
O interesse social abrange, assim, o da empresa, o dos acionistas
minoritários, dos empregados, dos clientes, dos fornecedores, da co-
munidade onde está inserida e do mercado de capitais em que está,
eventualmente, integrada.
É o que se conclui dos termos do parágrafo único do artigo 116 da
lei societária, que versa sobre os deveres e responsabilidades atribuí-
dos ao acionista controlador:

"Art. 116. (. .. )
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim
de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função
social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acio-
nistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade
em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e
atender. " (destacamos)

Com efeito, o acionista controlador tem o poder efetivo de dirigir


as atividades sociais e o processo empresarial, impondo sua vontade,
de forma permanente, nas decisões societárias.
Trata-se de um poder vinculado ao objetivo de "fazer a companhia
realizar seu objeto e cumprir sua função social", tendo o controlador
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas, para com
os empregados e para com a comunidade, como estabelecido no artigo
116 da lei societária.
Dessa forma, o poder, na companhia, deve ser exercido sempre
visando a consecução do interesse social; daí o estabelecimento de
uma série de limites, objetivando impedir que seja ele direcionado
para o atendimento de interesses individuais dos acionistas, sejam eles
minoritários ou controladores.

12 WALDÍRIO BULGARELLI. Questões de Direito Societário. São Paulo: Revista


dos Tribunais, 1983, p. 30.

9
Não é apenas o poder do acionista controlador que deve ser utili-
zado tendo em vista o interesse social; também o voto a ser proferido
nas assembléias gerais da companhia deve igualmente preservar tal
princípio.
Como referido, a lei societária tutela o interesse social erigindo-o
à categoria de um princípio, qualificando esse interesse social como
superior ao interesse dos próprios sócios.
Assim, o acionista, quer majoritário, quer minoritário, é responsá-
vel pelo conteúdo de seu voto e tem a obrigação de exercê-lo sempre
no interesse da companhia, conforme dispõe o artigo 115 da Lei n°
6.404/76.
Em conseqüência, o exercício do direito de voto do acionista so-
mente será legítimo se tendente à satisfação do interesse social.
Dessa forma, o voto quando proferido de maneira contrária ao
interesse social é considerado abusivo.
Ademais, o acionista que exerce o seu direito de voto abusivamen-
te, em busca unicamente de seus interesses pessoais, deve responder
pelos danos causados à sociedade ou aos demais acionistas, nos termos
do §4 do art. 115 da Lei 6.404/76.
Além do acionista poder vir a responder pelo exercício de voto
abusivo, nos termos do § 4° do artigo 115 da Lei das S.A., a violação
ao princípio da prevalência do interesse social configura, ainda, uma
das hipóteses de abuso de poder.
Com efeito, o abuso de poder de controle deve ser entendido,
justamente, como a conduta do acionista controlador na direção dos
negócios contrária ao interesse social, da qual resulte prejuízo para a
sociedade, para seus acionistas ou para terceiros.
Nos termos da alínea c do § 1° do artigo 11 7 da Lei das S .A.,
considera-se modalidade de abuso de poder de controle "promover
alterações estatutárias, emissão de valores mobiliários ou adoção de
políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da compa-
nhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que tra-
balham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emiti-
dos pela companhia". (grifamos)
Diante do exposto, pode-se verificar a existência de um princípio
básico que permeia nossa lei societária, qual seja: é ilegítima qualquer
decisão que não tenha como objetivo o interesse da companhia, mas
que vise a beneficiar determinado acionista ou grupo de acionistas ou
mesmo terceiros em detrimento da sociedade.
No caso ora em análise, segundo nos foi informado, a realização do
IPO, neste momento, seria contrária aos interesses sociais, uma vez

10
que as condições de mercado não são favoráveis à captação de recursos
junto ao público, especialmente em se tratando de empresas e negó-
cios relacionados à área de internet.
Dessa forma, embora tenha sido prevista no Acordo de Acionistas
a realização de Oferta Pública Inicial de ações ou de ADRs pela COM-
PANHIA ALFA, os signatários de tal acordo não estão obrigados a
implementá-la neste momento, visto que, dadas as condições de mer-
cado vigentes, a decisão neste sentido seria prejudicial à sociedade.

IV- APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO EM


FUNÇÃO DA ONEROSIDADE EXCESSIVA NA
REALIZAÇÃO DO IPO NO PRESENTE MOMENTO

Cabe-nos ainda verificar a possibilidade de aplicação da Teoria da


lmprevisão ao caso ora em análise.
A expressão "rebus síc stantíbus" constitui trecho de uma glosa,
atribuída à Nerácio, que significa que os contratos que possuem trato
sucessivo ou dependência do futuro entendem-se condicionados pela
manutenção do atual estado das coisas.
No Direito Romano, os contratos eram passíveis de modificação
ou revisão se, no curso de sua execução, ocorressem acontecimentos
que alterassem as condições vigentes à época em que foram firmados.
Posteriormente, já na Idade Média, preocuparam-se os tribunais
eclesiásticos em formular o significado atual da cláusula rebus síc stan-
tíbus: o vínculo obrigatório se subordina à continuação daquele esta-
do de fato vigente ao tempo da estipulação do contrato.
Isto é, uma pessoa somente estaria obrigada a cumprir o avençado
se as circunstâncias permanecessem as mesmas da época em que o
contrato fosse firmado.
Embora a cláusula rebus síc stantibus tenha passado por um perío-
do de certa obscuridade no século XIX, que, em matéria obrigacional,
foi marcado, fundamentalmente, pelas idéias de liberdade e de força
vinculatória das avenças, com o advento das guerras do final do século
XIX e da Primeira Grande Guerra, o princípio da plena liberdade para
a estipulação do conteúdo dos contratos começou a ser temperado.
Com efeito, em função da Primeira Guerra Mundial, em alguns
países beligerantes, a manutenção das cláusulas contratuais, tais como
originalmente previstas, acarretaria uma situação de onerosidade ex-
cessiva para uma das partes, em virtude de fatores como a inflação, a

ll
mudança brusca dos preços e a instabilidade econômica, que altera-
ram, profundamente, as circunstâncias econômicas originalmente
existentes à época da assinatura dos contratos.
Por este motivo, o Conselho de Estado, na França, admitiu que o
conteúdo dos contratos de concessão de serviço público fosse revisto,
uma vez que a prestação de uma das partes havia se tornado, em
virtude da guerra, excessivamente onerosa, podendo de sua execução
advir a ruína econômica do devedor.
A Lei de Failliot, editada na França em 21 de maio de 1918,
constituiu um verdadeiro marco, ao admitir que os contratos de exe-
cução prolongada, firmados antes de 1o de agosto de 1914, pudessem
ser resolvidos, na hipótese em que, em decorrência da guerra, o cum-
primento das obrigações pactuadas pudesse causar prejuízos a uma
das partes, cuja dívida excedesse consideravelmente o montante pre-
visto quando de sua celebração.
A Jurisprudência alemã igualmente admitiu a possibilidade de re-
visão do contrato, partindo os juízes da interpretação do artigo 242 do
Código Civil Alemão, que determina que o devedor deve cumprir sua
obrigação de acordo com as normas da lealdade e confiança recíproca
e na forma dos usos admitidos no comércio.
Com fundamento neste dispositivo do Código Civil, os juízes ale-
mães reajustaram as prestações originalmente previstas nos contratos,
em virtude das modificações das condições econômicas decorrentes
da guerra. Entenderam os magistrados que a alteração da conjuntura
econômica foi de tal modo significativa, que acarretou uma onerosi-
dade excessiva equiparável à impossibilidade. Admitiu-se, desse
modo, a extinção das obrigações ou a redução de seu montante.
Com a edição da Lei francesa de Faillot e o desenvolvimento da
doutrina permitindo a revisão contratual na Alemanha, houve o res-
surgimento da cláusula rebus sic stantibus, que foi renovada sob o
nome de Teoria da Imprevisão, visando, essencialmente, a resguardar
a comutatividade dos contratos.
A cláusula rebus sic stantibus, no entanto, não se confunde com a
Teoria da Imprevisão. Tal cláusula considerava-se implícita nos con-
tratos de duração e nos de execução diferida e aludia a uma condição
resolutiva, sem considerar quaisquer outros fatores.
Já o requisito básico para a aplicação da Teoria da Imprevisão é a
ocorrência de fato inevitável, novo, extraordinário e não previsto pe-
los contratantes, que ocasione um desequilíbrio das prestações e uma
onerosidade excessiva para uma das partes.

12
De acordo com Orlando Gomes 13 , tratava-se a cláusula rebus sic
stantibus de "construção rudimentar, porquanto baseada na existên-
cia de condição resolutiva implícita, sem levar em conta fatores que
vieram a ser fixados como elementos decisivos à revogação circunstan-
cial do princípio da força obrigatória. Não deve bastar, com efeito, a
alteração do estado de fato no momento da formação do vínculo. É
preciso algo mais que justifique a quebra da fé jurada."
Este algo mais consiste, justamente, na imprevisibilidade - re-
quisito necessário para a aplicação da Teoria da Imprevisão.
O emprego da Teoria da Imprevisão tem como finalidade básica as-
segurar a equivalência das prestações, quando uma delas torna-se de-
masiadamente onerosa, em virtude de acontecimentos excepcionais.
A Teoria da Imprevisão reconhece que, em todo contrato, existe,
implícita ou explicitamente, o direito subjetivo do contratado ao
equilíbrio econômico e financeiro. Portanto, quando acontecimentos
extraordinários ocasionam a radical alteração no estado de fato exis-
tente à data da celebração do contrato, acarretando conseqüências
imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade para uma das
partes, o vínculo contratual pode ser resolvido (resolução) ou, a re-
querimento do prejudicado, o juiz pode alterar o conteúdo do contra-
to, restabelecendo o equilíbrio desfeito (revisão).
Para que possa haver a resolução ou a revisão do contrato, com
fundamento na Teoria da Imprevisão, devem estar presentes os se-
guintes requisitos:
a) vigência de um contrato comutativo e de execução diferida ou
sucessiva;
h) alteração brusca das condições econômicas entre o período da
celebração e da execução do contrato;
c) onerosidade excessiva para uma das partes e vantagem para a
outra; e
d) imprevisibilidade do fato que determinou a alteração das
condições econômicas.
No direito brasileiro, embora não existisse um preceito legal ex-
plícito que regulasse a aplicação da Teoria da Imprevisão, em caráter
geral, a doutrina e a jurisprudência foram acolhendo, aos poucos, esta
Teoria, procurando evitar situações em que a manutenção da avença
original poderia produzir incontestável injustiça, em função da onero-
sidade excessiva para uma das partes.

13 ORLANDO GOMES. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p.40.

13
Uma das primeiras decisões que admitiu a revisão do contrato, em
nosso país, foi proferida pelo então juiz Nelson Hungria, em 1930, em
um caso que envolvia uma promessa de compra e venda 14 . O ilustre
jurista, em sua sentença, destacou que 15 :

"É certo que quem assume uma obrigação a ser cumprida em tempo
futuro sujeita-se à alta dos valores, que podem variar em seu proveito
ou prejuízo; mas, no caso de uma profunda e inopinada mutação,
subversiva do equilíbrio econômico das partes, a razão jurídica
não pode ater-se ao rigor literal do contrato, e o juiz deve pronunciar
a rescisão deste. A aplicação da cláusula rebus sic stantibus tem sido
mesmo admitida como um corolário da teoria do erro contratual.
Considera-se como já viciada, ao tempo em que o vínculo se contrair,
a representação mental que só um evento posterior vem a demonstrar-
se falsa. Se o evento, não previsto e imprevisível, modificativo da
situação de fato na qual ocorreu a convergência das vontades no
contrato, é de molde a quebrar inteiramente a equivalência en-
tre as prestações recíprocas, não padece dúvida que se a parte pre-
judicada tivesse o dom da pré-ciência, não se teria obrigado, ou ter-
se-ia obrigado sob condições diferentes". (destacamos)

Modernamente, a Teoria da Imprevisão vem sendo substituída


pela denominada "Resolução por Onerosidade Excessiva" 16 .
Esta Teoria encontra-se prevista, expressamente, no Direito Ita-
liano, nos artigos 1.467 a 1.469 do Código Civil, na seção III do Capí-
tulo XVI, intitulada Dall'execciva onerosità. A legislação italiana per-
mite a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações, na
hipótese de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, invocan-
do, para tanto, a eqüidade.
Esta foi a orientação, também, do nosso Código Civil, publicado
em 11 de janeiro de 2002, que, nos artigos 478 a 480, trata da resolu-
ção por onerosidade excessiva, nos seguintes termos:

"Da resolução por onerosidade excessiva


Art. 478- Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a
prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com

14 CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO. Teoria da Imprevisão: Sentido Atual. Re-


vista dos Tribunais. no 679, maio de 1992. p. 19-29.
15 A íntegra da decisão encontra-se publicada na Revista de Direito n° 100!178.
16 LUIS ROLDÃO DE FREITAS GOMES. Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 157.

14
extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos ex-
traordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do
contrato. Os efeitos da sentença, que a decretar, retroagirão à data da
citação.
Art. 4 79 - A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a
modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480 - Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das
partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alte-
rado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva".

Como se verifica, na hipótese de ocorrência de onerosidade exces-


siva causada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, ad-
mite-se o cabimento tanto da resolução, como da revisão contratual.
A propósito, entende a doutrina que o lesado é livre para requerer
a resolução do contrato ou a modificação eqüitativa de suas cláusu-
las17.
A superveniência de fatos imprevistos e imprevisíveis, que modi-
fiquem radicalmente o ambiente objetivo existente a tempo da forma-
ção do contrato e acarretem onerosidade excessiva para uma das par-
tes pode dar margem à resolução do contrato ou à sua revisão, a crité-
rio do lesado 18 .
No caso ora em análise, estão presentes todos os pressupostos
que autorizam a aplicação da Teoria da Imprevisão, uma vez que:
i) a realização do IPO previsto no Acordo de Acionistas constitui
obrigação de execução diferida ou retardada, tendo decorrido consi-
derável lapso de tempo entre a celebração do Acordo e a ocasião em
foi requerida a efetivação da Oferta Pública.
Com efeito, estes dois momentos (assinatura do contrato e exi-
gência da realização do IPO) encontram-se cronologicamente distan-
ciados, tendo ocorrido a alteração da economia do contrato por cir-
cunstâncias surgidas após a sua conclusão, mas antes da sua execu-
ção, a justificar, plenamente, o remédio da resolução por excessiva
onerosidade 19 .
ii) houve alteração brusca das circunstâncias econômicas no inter-
valo de tempo entre a assinatura do Acordo de Acionistas e o requeri-

17 DARCY BESSONE. Do Contrato- Teoria Geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p.


224.
18 ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA. Caso Fortuito e Teoria da lmprevisão.
Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 345-346.
19 ENZO ROPPO. O Contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 260.

15
mento da realização do IPO, sendo que, se as partes pudessem ter
previsto as condições desfavoráveis no mercado de capitais e no seg-
mento de internet ora verificadas, não teriam estabelecido obrigação
neste sentido.
iii) a realização imediata do IPO acarretaria onerosidade excessiva
para a COMPANHIA ALFA, isto é, a Oferta Pública tornou-se, no
momento em que foi exigida pelos Investidores, notavelmente mais
gravosa do que era na época em que foi firmado o Acordo de Acio-
nistas20.
Por outro lado, o cumprimento desta obrigação, além acarretar
graves prejuízos para a COMPANHIA ALFA, representaria um enri-
quecimento indevido para os Investidores, especialmente tendo em
vista as conseqüências advindas da aplicação do mecanismo de ajuste
de preço estabelecido no Acordo de Acionistas, que resultaria na con-
versão de uma ação preferencial detida pelos Investidores em quanti-
dade de ações superior à imaginada quando da celebração do Acordo
de Acionistas.
Ademais, a onerosidade excessiva que inviabiliza a realização do
IPO possui caráter objetivo, ou seja, a Oferta não é excessivamente
onerosa apenas para a COMPANHIA ALFA, mas para toda e qual-
quer empresa do ramo de internet que, porventura, se encontrasse
nesta situação.
iv) a queda do movimento das bolsas e a desvalorização do setor de
internet que acarretaram a excessiva onerosidade não eram previsíveis
pelas partes, uma vez que, se assim o fosse, não teriam elas sequer
estabelecido tal obrigação.
Conforme se deduz, encontram-se presentes todos os requisitos a
justificar a aplicação, no caso ora em exame, da Teoria da lmprevisão.
Assim, ainda que não fosse inválida a cláusula do Acordo de Acio-
nistas que trata do IPO, a COMPANHIA ALFA estaria autorizada a
pleitear a sua revisão ou a resolução do próprio contrato.

V- IMPOSSIBILIDADE DE O CONTRATO DE OPÇÃO DE


VENDA OBRIGAR A COMPANHIA A ADQUIRIR AÇÕES
DE SUA EMISSÃO

Conforme referido, um dos limites à autonomia privada é imposto


pela própria lei, de modo que as disposições de qualquer contrato

zo ORLANDO GOMES, ob. cit., p. 200.

16
devem se sujeitar às regras legais, não podendo a vontade das partes
contratantes derrogar disposições normativas de caráter cogente.
Na presente hipótese, o Contrato de Opção de Venda estaria im-
pondo à Companhia a obrigatoriedade de adquirir as ações de sua
emissão de propriedade dos Investidores.
Logo, deve-se analisar se a obrigação prevista no Contrato de Op-
ção de Venda coadunar-se-ia com alguma das hipóteses em que a Lei
das S.A. admite que a companhia adquira as próprias ações.
Em nosso sistema jurídico, as sociedades anônimas estão, em re-
gra, proibidas de negociar com as próprias ações, somente podendo
fazê-lo nos casos excepcionalmente relacionados no artigo 30, § 1°, da
Lei no 6.404/76, que apresenta a seguinte redação:
Da leitura do artigo 30, § 1°, da Lei das S.A. depreende-se que
apenas nas operações de reembolso, resgate e aquisição de ações para
permanência em tesouraria ou cancelamento é que se admite que a
companhia emissora adquira as ações pertencentes a seus acionistas.
Em princípio, a aquisição, pela COMPANHIA ALFA, das ações
detidas pelos Investidores poderia configurar hipótese de reembolso
de tais ações.
A cláusula prevista no Contrato de Opção de Venda é bastante
difundida no direito norte-americano, onde é conhecida como buy-
out arrangements ou retire arrangements, e visa a estabelecer um di-
reito de recesso contratual, não previsto em lei. 21
Em nosso direito societário, no entanto, o pagamento do reembol-
so constitui medida de caráter excepcional, somente sendo admitido
nos casos expressamente consignados na lei e em função da discordân-
cia do acionista de determinada deliberação aprovada em assembléia
geral, conforme dispõe o artigo 45 da Lei n° 6.404/76.
Nosso ordenamento jurídico não reconhece a figura do recesso
contratual, não podendo a companhia ser obrigada a efetuar o reem-
bolso de suas ações em situações não previstas em lei. 22
Portanto, seria manifestamente inválida a previsão contratual de
uma "hipótese ensejadora de direito de recesso", não podendo a aqui-
sição de ações estabelecida no Contrato de Opção de Venda ser efe-
tuada a título de reembolso.

21 MODESTO CARVALHOSA. Acordo de Acionistas, ob. cit., p. 62-63. FÁBIO


KONDER COMPARATO. O poder de controle na sociedade anônima. ob. cit., p.
177-178.
22 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de S.A., ob. cit., p. 748.

17
Poderiam, ainda, os Investidores eventualmente entender que a
COMPANHIA ALFA deveria adquirir as ações de sua própria emissão
mediante a operação de resgate, regulada no artigo 44 da Lei das S.A.
Note-se que o art. 44 da Lei das S.A. condicionao resgate à prévia
autorização estatutária ou à deliberação da assembléia geral.
Na presente hipótese, não existe disposição do Estatuto Social da
COMPANHIA ALFA que autorize a Companhia a promover o resga-
te das ações de sua emissão. A respeito, lembre-se que, conforme
referido, o acordo de acionistas constitui contrato parassocial, que,
como tal, é totalmente estranho ao estatuto social, de modo que a
ausência de previsão estatutária não pode ser suprida pela estipulação
contratual do resgate.
Quanto à eventual realização do resgate por deliberação da As-
sembléia Geral, vale salientar que a Lei n° 6.404/76 estabelece clara-
mente as funções, poderes e responsabilidades específicos de cada
órgão social.
Assim, os poderes e competências dos órgãos societários advêm da
própria lei, não da vontade dos acionistas, razão pela qual não se admi-
te que as atribuições por ela conferidas a determinado órgão sejam
objeto de delegação a outros órgãos ou pessoas.
As normas jurídicas sobre o funcionamento e os poderes dos ór-
gãos sociais são absolutamente cogentes, não podendo ser objeto de
disposição por acordo privado, visto que a lei deve prevalecer sobre a
vontade dos acionistas. 23
Ou seja, se a lei confere competência privativa a um órgão social
para deliberar sobre determinada medida, a companhia não pode ser
validamente obrigada a implementar tal medida sem que haja prévia
deliberação de tal órgão.
Conforme referido, a Lei das S.A. confere à Assembléia Geral
competência privativa para, na ausência de autorização estatutária,
deliberar sobre o resgate de ações.
Todavia, na presente hipótese, o Contrato de Opção de Venda
estaria obrigando a COMPANHIA ALFA a proceder a um resgate
independentemente de deliberação assemblear, visto que o atendi-
mento a tal exigência legal não foi contemplado no referido Contrato.

23 ALEXANDRE SADDY CHADE. Alcance e limites dos acordos de acionistas: a


teoria da vontade frente à indisponibilidade e cogência da legislação organicista brasi-
leira em matéria de sociedades anônimas. São Paulo: Revista de Direito Mercantil, n. 0
109, jan./mar. de 1998. p. 118.

18
Portanto, não tendo sido previamente autorizado pelo Estatuto
Social ou por deliberação da Assembléia Geral, a COMPANHIA
ALFA não está obrigada a promover o resgate das ações de sua emis-
são para cumprir a obrigação estipulada no Contrato de Opção de
Venda.
Também são perfeitamente aplicáveis as considerações acima ex-
plicitadas, sobre as competências legais de cada órgão social, ainda que
se considere que a obrigação prevista no Contrato de Opção de Venda
poderia ser adimplida mediante a operação de aquisição de ações para
permanência em tesouraria ou cancelamento.
Com efeito, o§ 2°, do artigo 30, da Lei no 6.404/76 dispõe expres-
samente que, em se tratando de companhia aberta, como é o caso da
COMPANHIA ALFA, a aquisição das próprias ações "obedecerá, sob
pena de nulidade, às normas expedidas pela Comissão de Valores
Mobiliários".
A CVM regulamentou a aquisição, por companhias abertas, de
ações de própria emissão, para cancelamento, permanência em tesou-
raria e respectiva alienação, através da Instrução CVM no 1O, de 14 de
fevereiro de 1980.
O artigo 1° de tal Instrução institui o Conselho de Administração
como único órgão competente para deliberar sobre o aludido procedi-
mento.
Assim, mais uma vez, dita obrigação não pode ser imposta a
COMPANHIA ALFA, visto que a aquisição de ações para tesouraria
não foi autorizada pelo órgão legalmente competente, qual seja, o
Conselho de Administração.
Além disso, a eventual aquisição das ações de propriedade dos
Investidores para tesouraria também ensejaria violação à regra previs-
ta no artigo 3° da Instrução CVM no 10/8024 , que proíbe as compa-
nhias abertas de adquirirem para tesouraria mais de 10% (dez por
cento) das ações de cada espécie ou classe em circulação no mercado.
De fato, a compra das ações detidas pelos Investidores, conforme
previsto no Contrato de Opção de Venda, abrangeria a totalidade das
ações preferenciais classe "D" de emissão da COMPANHIA ALFA.
Portanto, caso a COMPANHIA ALFA promovesse a aquisição das
ações de propriedade dos Investidores, tal aquisição seria, nos termos
do artigo 30, § 2°, da lei societária, nula de pleno direito, por contra-
riar as normas expedidas pela CVM sobre a matéria.

24 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 10/80 foi alterada pelas Instruções CVM n°s
268/97, 111/90 e 390/2003.

19
Diante do exposto, conclui-se que é juridicamente impossível o
cumprimento pela COMPANHIA ALFA da obrigação estipulada no
Contrato de Opção de Venda, uma vez que o adimplemento de tal
obrigação não seria compatível com nenhuma das hipóteses em que a
Lei das S.A. autoriza as sociedades anônimas a adquirirem ações de
sua emissão.

VI- RESPOSTAS AOS QUESITOS

lo QUESITO

"A COMPANHIA ALFA está obrigada a realizar o IPO previs-


to no Acordo de Acionistas?"

RESPOSTA

Em nosso ordenamento jurídico, não há qualquer dúvida sobre a


ilegalidade de a sociedade ser parte no próprio Acordo de Acionistas.
De fato, a Companhia constitui parte ilegítima para figurar em acor-
dos de acionistas, razão pela qual ela não pode estar obrigada por tais
instrumentos.
Diante disso, o Acordo de Acionistas da COMPANHIA ALFA,
neste particular, violou os preceitos de nosso ordenamento, visto que
a Companhia o firmou na qualidade de parte, tendo assumido, em tal
contrato, uma série de obrigações, dentre as quais a de realizar o IPO.
Note-se que tal ilegalidade não pode ser convalidada sob o argu-
mento de que o negócio foi celebrado no exercício da autonomia pri-
vada das partes.
Com efeito, a autonomia privada tem como um de seus limites a
lei, de modo que a auto-regulação dos interesses particulares somente
é considerada lícita, na medida em que atende aos requisitos previstos
no ordenamento legal.
Logo, as obrigações impostas à companhia em acordos de acionis-
tas prescindem de um requisito essencial de validade, qual seja, a
adequação entre o modelo legal (que não admite a sociedade como
parte legítima), e a forma pela qual as partes pretenderam regular seus
interesses, impondo obrigações à companhia em um instrumento ini-
dôneo para tal finalidade.
O fato de a companhia, nos termos do artigo 118 da lei societária,
estar obrigada a observar os acordos de acionistas não significa que ela

zo
se torne parte de tais acordos e que, como tal, pode ficar sujeita ao
cumprimento de obrigações neles impostas, mas apenas que não deve
permitir que produzam efeitos perante ela atos praticados pelos pró-
prios contratantes em violação às regras do acordo.
Portanto, as disposições do Acordo de Acionistas da COMPA-
NHIA ALFA que impõem obrigações à Companhia são inválidas, em
virtude de sua manifesta violação ao ordenamento jurídico.
Diante do exposto, conclui-se que a COMPANHIA ALFA não
pode ser obrigada, com base no Acordo de Acionistas, a promover
Oferta Pública Inicial das ações de sua emissão.

zo QUESITO
"Em caso de resposta negativa à questão da letra (a) acima, es-
tariam os acionistas detentores de ações ordinárias signatários do
Acordo de Acionistas obrigados a dar efeito a tal cláusula?"

RESPOSTA

Os acionistas têm ampla liberdade para regular seus interesses


mediante acordos de acionistas, desde que suas disposições não
afrontem as normas legais e os princípios que inspiram as sociedades
anônimas.
Entre tais princípios, destaca-se o da prevalência do interesse so-
cial, que está refletido em diversos dispositivos da lei societária.
Com efeito, o interesse social constitui medida para verificar-se a
licitude dos acordos de acionistas, tanto que o artigo 118, § 2°, da Lei
das S .A. estabelece que o cumprimento de tais acordos não exime os
acionistas de suas responsabilidades no exercício do direito de voto ou
do poder de controle.
O acionista, quer majoritário, quer minoritário, tem a obrigação
de exercer seu direito de voto sempre no interesse da companhia,
conforme dispõe o artigo 115 da Lei n° 6.404/76, respondendo pelos
danos causados à sociedade ou aos demais acionistas pelo voto contrá-
rio ao interesse social.
A violação ao princípio da prevalência do interesse social também
configura hipótese de abuso de poder, nos termos da alínea c do § 1°
do artigo 117 da Lei das S.A., que considera abusiva qualquer decisão
que não tenha por fim o interesse da companhia.
No caso ora em análise, a realização do IPO, neste momento, seria
contrária aos interesses sociais, uma vez que as condições de mercado

21
não são favoráveis à captação de recursos junto ao público para inves-
timento em empresas e negócios relacionados à área de internet.
Assim, caso os acionistas da COMPANHIA ALFA aprovassem a
realização do IPO estariam violando seu dever de fazer prevalecer o
interesse social, dever este do qual não se eximem sob a justificativa
de que estariam apenas dando cumprimento ao disposto em Acordo
de Acionistas.
Portanto, os acionistas detentores de ações ordinárias da COM-
PANHIA ALFA, signatários do Acordo de Acionistas, não estão obri-
gados a aprovar a realização do IPO, a não ser que se alterem as condi-
ções de mercado, visto que, se assim procedessem, estariam pratican-
do abuso de poder e ficariam sujeitos a indenizar os prejuízos causados
à sociedade.

3a QUESITO

"Aplica-se ao presente caso a Teoria da Imprevisão?"

RESPOSTA

Aplica-se perfeitamente à presente hipótese a Teoria da Imprevi-


são, segundo a qual a superveniência de fatos extraordinários e impre-
visíveis, que modifiquem radicalmente as circunstâncias econômicas
existentes quando da formação do contrato, acarretando onerosidade
excessiva para uma das partes, pode dar margem à resolução do con-
trato ou à sua revisão, a critério do lesado.
No caso ora em análise, estão presentes todos os pressupostos
que autorizam a aplicação da Teoria da Imprevisão, uma vez que:
i) a realização do IPO previsto no Acordo de Acionistas constitui
obrigação de execução diferida ou retardada, tendo decorrido consi-
derável lapso de tempo entre a celebração do Acordo e a ocasião em
foi requerida a efetivação da Oferta Pública;
ii) houve a alteração brusca das circunstâncias econômicas no in-
tervalo de tempo entre a assinatura do Acordo de Acionistas e o re-
querimento da realização do IPO;
iii) a realização do IPO acarretaria onerosidade excessiva para a
COMPANHIA ALFA, isto é, a Oferta Pública tornou-se, no momen-
to em que foi exigida pelos Investidores, notavelmente mais gravosa
do que era no momento em que foi firmado o Acordo de Acionistas; e
iv) a alteração das condições econômicas não era previsível pelas
partes, uma vez que, se assim o fosse, não teriam elas sequer estabele-
cido tal obrigação.

zz
Assim, estando presentes os requisitos que justificam a aplicação
da Teoria da Imprevisão, está a COMPANHIA ALFA legitimado a
requerer a revisão ou a resolução do Acordo de Acionistas que prevê a
IPO.

4o QUESITO

"Caso a COMPANHIA ALFA não realize o IPO dentro dos


prazos previstos no Put, por qualquer razão, poderão os Investi-
dores exercer o direito previsto no Put contra a COMPANHIA
ALFA nos termos previstos naquele contrato?"
As disposições de qualquer contrato devem se sujeitar às regras
legais, não podendo a vontade das partes contratantes derrogar
disposições normativas de caráter cogente.
Neste sentido, verifica-se que a cláusula prevista no Contrato de
Opção de Venda visa a estabelecer um" direito de recesso contratual",
o que não é aceito em nosso direito societário, no qual o pagamento
do reembolso constitui medida de caráter excepcional, somente sen-
do admitido nas hipóteses expressamente consignadas na lei.
Diante disso, não pode a companhia ser obrigada a efetuar o reem-
bolso de suas ações em situações não previstas em lei.
Em relação ao resgate de ações, o artigo 44 da lei societária condi-
dona tal operação à prévia autorização estatutária ou à deliberação da
assembléia geral.
Na presente hipótese, além de inexistir disposição estatutária au-
torizando a realização do resgate, o Contrato de Opção de Venda não
contemplou a aprovação de tal operação pela Assembléia Geral da
Companhia.
A respeito, note-se que a Lei no 6.404/76 estabelece claramente
as funções, poderes e responsabilidades específicos de cada órgão so-
cial, não admitindo que as atribuições por ela conferidas a determina-
do órgão sejam, por força de acordo privado, delegadas a outros órgãos
ou pessoas.
Assim, a COMPANHIA ALFA não está obrigada a promover o
resgate das ações de sua emissão para cumprir a obrigação estipulada
no Contrato de Opção de Venda, visto que não houve de deliberação
da Assembléia Geral sobre tal operação.
Ademais, na hipótese de se considerar que a obrigação prevista no
Contrato de Opção de Venda poderia ser adimplida mediante aquisi-
ção de ações para permanência em tesouraria ou cancelamento, tendo
a CVM instituído o Conselho de Administração como único órgão

23
competente para deliberar sobre o procedimento em tela, a referida
obrigação não pode ser imposta à Companhia, visto que não foi auto-
rizada pelo órgão legalmente competente.
Além disso, a eventual aquisição das ações de propriedade dos
Investidores para tesouraria também contrariaria a regra da CVM que
limita a aquisição de ações para tesouraria a 10% (dez por cento) do
total de cada espécie ou classe em circulação no mercado, posto que
os Investidores detêm a totalidade das ações preferenciais classe "D"
de emissão da COMPANHIA ALFA.
Diante do exposto, conclui-se que a COMPANHIA ALFA não
está obrigada a adquirir as ações de propriedade dos Investidores, nos
termos previstos no Contrato de Opção de Venda.
Foi o nosso Parecer, em março de 2002.

24
ACORDO DE ACIONISTAS. ARQUIVAMENTO
NA SEDE SOCIAL. VINCULAÇÃO DOS
ADMINISTRADORES DE SOCIEDADE
CONTROLADA. 1

A- A NATUREZA JURÍDICA E AS FINALIDADES DOS


ACORDOS DE ACIONISTAS

O acordo de acionistas pode ser definido como um contrato cele-


brado entre acionistas da companhia para compor seus interesses indi-
viduais e para estabelecer normas sobre a sociedade da qual partici-
pam, de forma a harmonizar os seus interesses societários e imple-
mentar o próprio interesse social.
O acordo de acionistas possui natureza acessória em relação ao
contrato social, visto que, apesar de celebrado individualmente entre
os acionistas, sua eficácia depende da existência da pessoa jurídica, em
cuja esfera dar-se-á a sua execução.
Note-se que, apesar de regulados pela lei societária, os acordos de
acionistas caracterizam-se como contratos submetidos às normas co-
muns de validade de todos os negócios jurídicos de direito privado.
A regulação dos acordos de acionistas pela lei societária não des-
natura o caráter preponderantemente civil das relações jurídicas dele
advindas, conforme esclarecem Egberto Lacerda Teixeira e José Ale-
xandre Tavares Guerreiro 2:

"Importa assinalar que os acordos de acionistas geram direitos e


obrigações reguladas substancialmente pelo direito comum e

I Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 129, p. 45. janeiro-março/2003
2 EGBERTO LACERDA TEIXEIRA e JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREI-
RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1979.
Vol. 1, p. 305.

25
não pelo direito das sociedades, muito embora seus efeitos jurídi-
cos digam respeito à participação acionária em determinada compa-
nhia, em seus vários possíveis desdobramentos." (destacamos)

De fato, a disciplina pela Lei das S.A. tem por finalidade apenas
estabelecer os pressupostos necessários à que tais contratos sejam
observados pela Companhia e produzam efeitos perante terceiros.
Portanto, o acordo de acionistas possui natureza jurídica de con-
trato e, como tal, está sujeito às normas comuns do Direito Civil,
quanto aos requisitos de validade e eficácia do negócio jurídico.
A regulação dos acordos de acionistas foi introduzida, em nosso
direito societário, pelo artigo 118 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro
de 1976, o qual, em sua redação original, estabelecia que tais contra-
tos poderiam ter por objeto (i) a compra e venda das ações dos signa-
tários do acordo, (ii) a preferência para adquiri-las, e (iii) o exercício
do direito de voto.
A Lei no 10.303, de 31 de outubro de 2001, alterou a redação do
caput do artigo 118 da lei societária, para introduzir expressamente o
exercício do poder de controle como matéria que pode ser disciplina-
da em acordos de acionistas.
Assim, após a entrada em vigor da Lei no 10.303/2001, o artigo
118 da Lei das S .A. passou a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 118 - Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de


suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito de voto,
ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quan-
do arquivados na sua sede."

De acordo com o dispositivo transcrito, os acordos de acionistas


podem ser classificados em duas modalidades básicas, a saber:
a) os acordos de voto, que têm por objetivo a regulação do exercí-
cio do direito de voto ou do poder de controle por seus signatários; e
b) os acordos de bloqueio, que visam a regular a compra c venda
das ações e a preferência para adquiri-las.
Os acordos de voto prestam-se, primordialmente, à constituição
de uma maioria acionária estável, através da aglutinação dos votos de
acionistas isoladamente minoritários, mediante a subordinação de
suas vontades a um sentido único e previamente determinado.
Os acordos de bloqueio, por sua vez, são, em regra, celebrados em
complementação aos acordos de voto, com o objetivo de assegurar sua
eficácia. Com efeito, ao se restringir a livre transferência das ações

26
vinculadas ao acordo, impede-se que alguma das partes possa, pela
simples alienação a terceiros das ações de sua propriedade, sem confe-
rir o direito preferência às demais, esvaziar a convenção de voto firma-
da entre os contratantes.
Vale ainda mencionar que a relação das matérias típicas de acor-
dos de acionistas, prevista pela lei societária, não impede que outras
questões de interesse das Partes sejam reguladas em tais contratos.
No entanto, em tais casos, a sociedade não estará obrigada a obser-
var as disposições pactuadas no acordo de acionistas, ainda que sejam
cumpridos os requisitos previstos na Lei das S .A. para que o acordo
produza efeitos perante a companhia 3 .
Ou seja, a Lei das S.A. exclui a obrigatoriedade da observância
pela companhia de acordos de acionistas que regulem matérias diver-
sas daquelas expressamente mencionadas em seu artigo 118.
Portanto, as disposições de acordos de acionistas que podem pro-
duzir efeitos perante a sociedade são apenas aquelas relacionas aos
acordos de voto Cexercício do direito de voto ou do poder de controle)
ou de bloqueio Ccompra e venda das ações ou preferência para adqui-
ri-las).

B- OS EFEITOS DO ARQUIVAMENTO DOS ACORDOS


DE ACIONISTAS

Tendo em vista a sua natureza contratual, os acordos de acionistas,


em princípio, somente produzem efeitos entre as partes convenentes.
Com efeito, em função do princípio da relatividade dos contra-
tos, a força obrigatória do acordo não pode ser estendida a terceiros,
que não manifestaram sua vontade no sentido de vincular-se ao pac-
tuado entre os signatários.
No entanto, apesar de não produzir efeitos diretos perante tercei-
ros, a celebração de acordos de acionistas, como qualquer outro negó-
cio jurídico, constitui um fato que, evidentemente, pode produzir
efeitos reflexos sobre a esfera jurídica alheia. 4

3 FRAN MARTINS. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro:


Forense, 1984. Vol. 2, tomo I, p. 120.
4 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Estudos e Pareceres Sobre Socieda-
des Anônimas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 214.

27
Diante desses efeitos reflexos, o ordenamento jurídico, em algu-
mas situações, permite que o contrato possa ser oponível aos não
convenentes. Nestas situações, deve ser conferida publicidade ao ne-
gócio, a fim de permitir que os terceiros possam tomar conhecimento
da sua existência e do seu conteúdo.
Em vista disso, a Lei das S.A. instituiu procedimento específico
com o objetivo de atribuir publicidade aos acordos de acionistas pe-
rante a Companhia e terceiros, obrigando-os, assim, a observar o pac-
tuado entre as partes.
Tal procedimento consiste no arquivamento do acordo de acionis-
tas na sede social e no averbamento de suas disposições nos livros de
registros e nos certificados das ações, conforme se depreende do dis-
posto no caput e § no 1° do artigo 118 da Lei no 6.404/76, com a
redação dada pela Lei no 10.303/2001:

"Art. 118 - Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de


suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito de voto,
ou do poder de controle, deverão ser observados pela companhia
quando arquivados na sua sede.
§ I 0 - As obrigações ou ônus decorrentes desses acordos somente
serão oponíveis a terceiros, depois de averbados nos livros de
registros e nos certificados de ações, se emitidos" (destacamos)

Como se verifica, a lei societária estabeleceu dois procedimentos


independentes para conferir publicidade aos acordos de acionistas,
sendo cada um deles aplicável em função da pessoa a quem se preten-
de estender os efeitos do convencionado entre as partes.
De fato, para que o acordo seja eficaz perante a Companhia, basta
que ele esteja arquivado na sede social (artigo 118, caput), enquanto
que para que ele possa ser oponível perante terceiros faz-se necessária
a sua averbação no Livro de Registro das Ações Nominativas ou no
certificado das ações, se estes tiverem sido emitidos (artigo 118, § 1°).
A razão desse duplo regime de publicidade está vinculada às duas
modalidades de acordos de acionistas disciplinadas pela lei societária,
quais sejam, os acordos de voto e os de bloqueio.
Os efeitos decorrentes dos acordos de voto produzem-se essen-
cialmente perante a Companhia, na medida em que é no âmbito dos
órgãos sociais que os convenentes e os administradores por eles indi-
cados devem proferir o voto de acordo com as disposições pactuadas.
Note-se que ao se afirmar que o arquivamento na sede social vin-
cula a Companhia aos termos do acordo de acionistas, está-se referin-

28
do não apenas à pessoa jurídica, mas também aos seus administrado-
res, visto que é somente através deles que a sociedade atua. 5
Assim, o arquivamento do acordo de acionistas na sede social
destina-se a impor à Companhia a observância das cláusulas referentes
ao exercício do direito de voto ou do poder de controle, impedindo-a
de computar o voto manifestado em sentido contrário daquele previa-
mente ajustado.
Em relação aos acordos de bloqueio, é fundamental assegurar sua
oponibilidade perante terceiros, uma vez que somente com a presun-
ção do conhecimento por parte destes é que lhes poderão ser opostas
as restrições à livre circulação das ações.
Em outras palavras, a averbação nos livros sociais. visa a garantir a
eficácia dos acordos de bloqueio, permitindo que sejam consideradas
inválidas as transferências de ações a terceiros, sem observância dos
procedimentos estabelecidos entre os contratantes.
Neste sentido, Fábio Konder Comparato entende que: 6

"Tais formalidades são de dois tipos: o arquivamento do instrumento


do acordo na sede da companhia e a averbação das obrigações e ônus
deles decorrentes nos livros de registro e nos certificados das ações, se
emitidos (art. 118, caput e § 1°). A interpretação sistemática desses
dispositivos leva a conclusão de que as formalidades respectivas di-
zem respeito a objetivos distintos, exatamente aos dois objetivos assi-
nalados na cabeça do mesmo artigo. O arquivamento do instru-
mento do acordo na sede da companhia procura estender à pró-
pria sociedade os efeitos da convenção naquilo que ela entende,
diretamente, com o seu funcionamento regular, isto é o exercício
do voto em assembléia. Já a averbação das estipulações dos
acordos nos livros de registros e nos certificados acionários é
apresentada como condição de sua oponibilidade a 'terceiros',
vale dizer, não mais interna corporis, na atuação dos órgãos societá-
rios, mas perante não-acionistas, interessados na aquisição de
ações emitidas pela sociedade e vinculadas a um acordo. Ela se
refere, portanto, às estipulações sobre a compra e venda de ações
e a preferência para adquiri-las." (destacamos)

5 ARNOLDO WALD. Evolução do Regime Legal do Conselho de Administração,


Os Acordos de Acionistas e os Impedimentos dos Conselheiros Decorrentes de
Conflitos de Interesses. In: Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da
Arbitragem. V oi. 11, jan./mar. 2001. p. 16.
6 FÁBIO KONDER COMPARATO. Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresa-
rial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 60.

29
Ademais, a Lei no 10.303/2001 confirmou tal entendimento, ao
incluir, no artigo 118 da lei societária, parágrafo dispondo que "o pre-
sidente da assembléia ou do órgão colegiado de deliberação da compa-
nhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acio-
nistas devidamente arquivado". (destacamos)
Ou seja, o dispositivo transcrito condiciona a possibilidade de o
presidente da assembléia geral ou dos órgãos de administração da
companhia não computarem o voto proferido em desconformidade
com o acordo de acionistas apenas ao arquivamento do contrato na
sede social, não exigindo a averbação de seus termos nos livros sociais
ou nos certificados das ações.
Portanto, a eficácia perante a sociedade dos acordos de voto está
vinculada tão-somente ao arquivamento do acordo de acionistas na
sede social.
Assim, para que a companhia esteja obrigada a fazer cumprir as
convenções para exercício do direito de voto ou do poder de controle
basta que o acordo seja arquivado em sua sede, não havendo necessi-
dade de averbação das obrigações pactuadas nos livros sociais e nos
certificados das ações.

C- OS ACORDOS DE VOTO EM BLOCO ("POOLING


AGREEMENTS")

Conforme referido, a Lei no 10.303/2001 incluiu expressamente


o exercício do poder de controle como matéria típica de acordos de
acionistas, reconhecendo, dessa forma, a eficácia perante a sociedade,
dos chamados acordos de voto em bloco ("pooling agreements").
O conceito de "pooling agreement", como espécie de acordo de
acionistas voltado para o exercício comum do controle societário, foi
desenvolvido no direito norte-americano, onde tal acordo institui um
mandato recíproco para as partes. Tal mandato confere aos convenen-
tes que logrem, em reunião prévia, alcançar o direcionamento do voto
do bloco de controle poderes para votar com todas as ações incluídas
nesse bloco, ainda que na reunião prévia tenha havido votos minoritá-
rios discordantes. 7

7 HARRY G. HENN e JOHN R. ALEXANDER. Law of Corporatíons. 3a ed. St.


Paul: West Group: 1983, p. 518 e s.

30
Pode-se, dessa forma, conceituar o acordo de voto em bloco como
modalidade de acordo de acionistas visando, durante o prazo de sua
duração, o exercício de controle comum sobre sociedade anônima.
Nesse sentido, os convenentes formam um bloco de ações que
deverá determinar em reunião prévia um sentido único para os votos
a serem dados pelos acionistas contratantes nas assembléias da compa-
nhia e pelos administradores eleitos em virtude do acordo, nas reu-
niões dos órgãos de administração de que participam.
Os acordos de acionistas serão da espécie acordo de voto em bloco
quando, na respectiva convenção, os seus signatários instituírem um ór-
gão deliberativo interno, geralmente designado de "reunião prévia".
Em outras palavras, contendo o acordo de acionistas o procedi-
mento de reunião prévia para que os contratantes decidam antecipa-
damente sobre a maneira como irão votar as ações componentes do
controle nas assembléias e como serão dados os votos dos repre-
sentantes desse mesmo acordo nas reuniões do conselho de adminis-
tração ou da diretoria, estará caracterizada a existência do acordo de
voto em bloco. 8

D-A VINCULAÇÃO DOS ADMINISTRADORES AOS


TERMOS DOS ACORDOS DE ACIONISTAS

Desde a promulgação da Lei no 6.404/76 discutia-se a possibilida-


de de os acordos de acionistas vincularem a atuação dos administrado-
res indicados pelos signatários do acordo.
A propósito, alguns doutrinadores entendiam que a regra prevista
no artigo 154, § 1°, da lei societária, segundo a qual os administrado-
res são independentes em relação aos acionistas que os elegeram, im-
pedia que aqueles estivessem vinculados às obrigações estabelecidas
nos acordos de acionistas.
No entanto, o entendimento dominante era que não havia impe-
dimento legal a que as partes em acordo de acionistas convencionas-
sem sobre a orientação do voto a ser proferido pelos seus repre-
sentantes no conselho de administração.
A única diferença era que tais cláusulas, embora perfeitamente
eficazes entre as partes, não tinham eficácia perante a sociedade, uma

8 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S!A. São


Paulo: Saraiva, 2002, p. 218.

31
vez que a redação original da lei societária apenas previa a obrigatorie-
dade de a companhia assegurar o cumprimento dos acordos sobre o
exercício do direito de voto nas assembléias gerais.
Assim, no regime original da Lei no 6.404/76, a vinculação das
deliberações do conselho de administração ou da diretoria ao acordo
de acionistas era considerada cláusula acessória de tal contrato, visto
que, embora dele integrante, não era oponível à sociedade.
Nessas condições, as sanções para o descumprimento da aludida
cláusula acessória davam-se apenas inter partes, fora do âmbito da
sociedade objeto do acordo. 9
Com a entrada em vigor da Lei no 10.303/2001, a lei societária
passou a dispor expressamente que o acordo de acionistas arquivado
na sociedade vincula não apenas o exercício do direito de voto pelos
acionistas em assembléia geral, mas também os administradores indi-
cados por tais acionistas, no que respeita às deliberações do órgão de
que participem.
E o que dispõem os § § 8° e go do artigo 118 da Lei das S .A., in
verbis:

"Art. 118 - (. .. .)
§ 8° O presidente da assembléia ou do órgão colegiado de delibera-
ção da companhia não computará o voto proferido com infração de
acordo de acionistas devidamente arquivado.
§ 9° O não comparecimento à assembléia ou às reuniões dos órgãos
de administração da companhia, bem como as abstenções de voto
de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conse-
lho de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas,
assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações perten-
centes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do con-
selho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da
parte prejudicada." (destacamos)

Como se verifica, o dispositivo legal transcrito:


a) obriga o presidente do conselho de administração ou o diretor-
presidente a não computar o voto proferido pelo conselheiro ou dire-
tor em desacordo com o direcionamento de voto dado pelo bloco de
controle; e
b) faculta que conselheiro ou diretor eleito em virtude do acordo
vote pelo administrador ausente ou que se absteve de votar.

9 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. op. cit., p. 227.

32
Assim, a cláusula que vincula os administradores aos termos dos
acordos de acionistas deixou de ter caráter meramente acessório, pas-
sando a ser ela vinculativa para a sociedade, que deverá observá-la
nas reuniões do conselho de administração ou da diretoria.
Note-se que a obrigatoriedade de observância das disposições do
acordo de acionistas pelos administradores constitui conseqüência di-
reta do reconhecimento do poder de controle, e não apenas do exer-
cício direito de voto, como matéria que pode vincular a sociedade.
Isto porque, na maioria dos casos, o poder de controle é exercido
primeiro nos órgãos da administração da companhia, para, depois,
exprimir-se na assembléia geral. 10
Com efeito, nas instâncias administrativas da sociedade se tomam
deliberações fundamentais para a companhia, seja para sua implemen-
tação direta, seja para propor à assembléia geral a aprovação de deter-
minadas matérias relevantes previstas no acordo de acionistas.
Dessa forma, seria inócuo o acordo de acionistas que versasse sobre
o exercício do poder de controle, mas que não vinculasse a atuação dos
administradores nomeados pelos integrantes do bloco de controle.
Vale salientar que não há incompatibilidade entre o dever de inde-
pendência do administrador, previsto no artigo 154, § 1°, da Lei das
S.A., e o acatamento das decisões que os signatários do acordo de
acionistas adotaram em reunião prévia.
Isto porque o próprio acordo deve conformar-se com o interesse
social, consoante o § 2° do artigo 118 da lei societária, que prescreve
que os "acordos não poderão ser invocados para eximir o acionista de
responsabilidade no exercício do direito de voto ou do poder de con-
trole".
Em conseqüência, o interesse social deve ser absolutamente pre-
servado pelos termos do acordo de voto em bloco, bem como na sua
execução e implementação.
O acordo de voto em bloco constitui meio eficiente para o exercí-
cio do poder-dever de controle, que é imprescindível para a consecu-
ção do interesse social, da realização do seu objeto e de seus fins.
De fato, é do interesse da sociedade que o poder de controle seja
exercido de forma coerente e harmônica, não se devendo permitir que
o grupo que detém o controle possa adotar uma orientação nas assem-
bléias da companhia e outra diversa nas manifestações dos seus órgãos
de administração.

lO MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK, op. cit., p. 212.

33
Neste sentido, Waldírio Bulgarelli entende que: 11

"(. .. .) Não se há de esquecer que, ao tomarem o poder de controle,


certamente o fizeram para traçar uma política para a companhia ob-
ter o interesse social, nos seus três níveis, o que demanda uma orien-
tação uniforme na conduta dos convenentes, quer como acionistas
quer como administradores, pois, como é curial, adquiriram a quali-
dade de controladores. Portanto, sua qualificação em relação ao papel
desempenhado junto à companhia passa por esses três planos: contro-
ladores, acionistas e administradores, não sendo côngruo que a
atuação em uma dessas posições possa contrariar a da outra ou
das outras. Em termos hierárquicos pode-se constatar que em pri-
meiro plano está a posição de controlador, pois é o que exerce de
fato o poder e dita a política da companhia, sendo assim a obediên-
cia a essa política efeito natural do acordo ajustado que acom-
panha o acionista quando administrador.
( .... )
Certamente que não há nada de estranho nessa colocação, que apenas
ressalta a coerência que deve existir na busca dos interesses da
companhia, que são também, como é evidente, os dos acionistas"
(destacamos)

Vale dizer, o controle comum deve ser exercido em bloco nas dife-
rentes instâncias deliberativas da companhia, visto que a eventual exis-
tência de dissidência no grupo de controle levaria a uma conturbação na
vida societária, com grave e irreversível prejuízo para o interesse social.
Assim, o voto em bloco obtido na reunião prévia atende ao interes-
se dos acionistas participantes do controle e ao mesmo tempo, ao
interesse social, visto que este identifica-se com o interesse comum
dos sóciosY
Acrescente-se que a não observância do pactuado no acordo de
voto em bloco pode prejudicar não apenas a companhia, mas também
os investidores que nela aplicaram seus recursos, conforme enfatiza
Paulo Cezar Aragão 13 :

11 WALDÍRIO BULGARELLI. Questões Atuais de Direito Societário. São Paulo:


Malheiros,l995, p. 195.
12 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK, op. cit., p. 221/222.
13 PAULO CÉSAR ARAGÃO. A Disciplina do Acordo de Acionistas na Reforma da
Lei das Sociedades por Ações: Lei n° 10.303, de 2001. In: A Reforma da Lei das
Sociedades Anônimas coord., Jorge Lobo. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 377.

34
"Seria, enfim, absurdo - como acontece hoje - que os acionistas
assinem os acordos, em aparente boa-fé, os conselheiros sejam nomea-
dos cientes desses acordos e, mais adiante, por força de tal ou qual
divergência, se invoque a suposta 'liberdade de consciência' para des-
cumprir o pactuado.
Enfim, cumprir o contratado é, por definição, a melhor maneira
de administrar qualquer companhia. Os acordos de acionistas são
públicos, deles tomam conhecimento os investidores em geral, e certa-
mente, ao escolherem tal ou qual companhia para aplicar recursos,
fazem-no na expectativa de que sejam seguidos os compromissos pú-
blicos dos acionistas constantes do acordo e do estatuto." (destacamos)

Diante disso, conclui-se que os membros do conselho de adminis-


tração e da diretoria estão vinculados ao disposto no acordo de acio-
nistas no que respeita aos seus votos proferidos nas reuniões de tais
órgãos, não sendo tal vinculação incompatível com seus deveres de
administrador.
Dessa forma, não poderá o administrador representante do acordo
de acionistas obstruir o exercício do poder de controle estabelecido na
convenção de voto em bloco, visto que, ao desobedecer à diretriz dada
pelo bloco de controle, estará ele atuando com abuso de poder.
De fato, o voto contrário à orientação tomada pelos acionistas
convenentes constitui não apenas obstrução ao cumprimento do acor-
do, mas também forma de lesão ao interesse social, pois poderá impe-
dir o exercício do poder-dever de controle nas deliberações a serem
tomadas nos órgãos administrativos da sociedade.
Essa eventual obstrução ao exercício do poder-dever de controle
comum acarreta responsabilidade para o administrador, caracterizan-
do violação aos princípios de lealdade, boa fé e diligência que devem
marcar a conduta dos participantes do controle comum.
Assim, a infringência do acordo, por ação ou omissão, por parte de
qualquer administrador eleito em virtude do mesmo, constitui condu-
ta ilícita, contrária ao interesse social, não podendo em conseqüência
prevalecer. 14
Diante disso, caso um administrador pretenda desrespeitar a
orientação de voto dada pelos acionistas convenentes, o presidente do
órgão (conselho de administração ou diretoria) terá a obrigação de
suspender a eficácia desse voto contrário, bem como os demais repre-

14 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK, op. cít., p. 230.

35
sentantes do acordo nos órgãos de administração poderão exercer o
direito de voto em nome do administrador que descumprir o pactua-
do, conforme dispõem os §§ 8° e 9° do artigo 118 da Lei das S .A.

E- A EXTENSÃO DOS EFEITOS DOS ACORDOS DE


ACIONISTAS ÀS SOCIEDADES CONTROLADAS

Questão também relevante refere-se à possibilidade de os efeitos


dos acordos de acionistas abrangerem não apenas a companhia na qual
os contratantes detêm ações, mas também as sociedades por elas con-
troladas.
Trata-se dos denominados "acordos em cascata", isto é, aqueles
celebrados em holdings para produzirem efeitos nas subsidiárias, dire-
ta ou indiretamente controladas.
A respeito, mesmo no regime original da lei societária, a jurispru-
dência havia se manifestado no sentido de que os "acordos em casca-
ta" vinculam todas as sociedades integrantes do "grupo" empresarial,
conforme se verifica da decisão do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, nos seguintes termos 15 :

"Num ponto, todavia, houve-se com desacerto o julgado, ora revisto.


Indevidamente, limitou a expansão da eficácia dos acordos de acio-
nistas, que, anteriormente ao presente pleito, eram aceitos, sem restri-
ção, por todas as unidades componentes do grupo empresarial. Ora,
assim deve prosseguir o estado de coisas, conforme o defendem a ini-
cial e o recurso dos autores. Vinculam-se à Celisa algumas firmas,
como a Usina Costa Pinto, a Santa Bárbara e quero mais, ao passo
que à Primavera também estão vinculadas empresas como a Usina da
Barra, a Cia. Agrícola Pedro Ometto e demais, aludidas nos autos.
Inegavelmente, ficam sujeitas aos pactos, sem os cerceias injusti-
ficadamente estipulados no decisório de primeiro grau.
A execução dos pactos parassociais, portanto, há de ser feita de modo
indivisível, pois a indivisibilidade lhes é inerente. Ocorre, necessa-
riamente, o chamado 'efeito cascata'." (destacamos)

Vale dizer, a decisão supra transcrita reconheceu que os acordos


de acionistas podem, válida e eficazmente, estabelecer obrigações

15 Apelação Cível n° 161.344-l/9 - TJ/SP- Quarta Câmara Cível- Relator:


Exmo. Sr. Ney Almada, 1992.

36
para os representantes dos seus subscritores nos órgãos societários das
companhias controladas.
A Lei no 10.303/2001, a propósito dissipou qualquer dúvida por-
ventura existente em relação à validade dos acordos de acionistas des-
tinados a produzir efeitos em relação às sociedades controladas.
Isto porque, em primeiro lugar, a Lei no 10.303/2001 passou a
reconhecer a eficácia perante a companhia dos acordos para discipli-
nar o exercício do poder de controle.
A lei societária, ao regular o poder de controle, admite a existência
não só do' controle direto, como também do controle indireto, isto é,
aquela modalidade de poder própria de um grupo de sociedades, em
que poder de controle deriva de relações societárias entre as compa-
nhias e é exercido através dos órgãos sociais de outra companhia 16 .
De fato, o artigo 116 da Lei das S.A. estabelece que o poder de
controle pode ser exercido pelo "grupo de pessoas sob controle co-
mum", enquanto o artigo 243, § 2°, menciona que a sociedade contro-
ladora pode controlar sua controlada "diretamente ou através de ou-
tras controladas".
Há ainda referência expressa ao controle indireto no artigo 254-A
da lei societária, segundo o qual deve ser realizada oferta pública de
aquisição das ações dos minoritários não somente no caso da venda
direta, mas também quando houver alienação indireta do controle
acionário.
Portanto, a Lei das S.A., ao regular o exercício do poder de con-
trole, está sempre abrangendo também o controle indireto.
Em vista disso, como o artigo 118 da lei societária passou a men-
cionar os acordos de acionistas para o exercício do poder de controle,
fica claro que a eficácia do acordo estende-se a todas as modalidades
nas quais o poder de controle pode se manifestar, inclusive, o controle
indireto.
Assim, uma das conseqüências de a Lei n° 10.303/2001 ter incluí-
do o exercício do poder de controle como matéria típica dos acordos
de acionistas foi o reconhecimento expresso da possibilidade de tais
contratos produzirem efeitos em relação a todas as sociedades contro-
ladas, direta ou indiretamente, por seus signatários.
Além disso, conforme referido, a Lei no 10.303/2001 também
vinculou os administradores eleitos pelas partes às disposições dos

16 ALFREDO LAMY FILHO e JOSE LUIZ BULHOES PEDREIRA. A Lei das S.A.
Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 625.

37
acordos de acionistas, o que reafirma o entendimento de que estes
estão aptos a produzir efeitos perante as sociedades controladas.
De fato, o poder de controle sobre as sociedades controladas é
exercido através dos integrantes dos órgãos de administração da con-
troladora, que possuem legitimidade para manifestar a vontade desta
no âmbito de suas subsidiárias.
Logo, por estarem obrigados a observar as disposições do acordo
de acionistas, os administradores da companhia controladora, ao atua-
rem como representantes desta perante os órgãos sociais das controla-
das, também não podem contrariar o pactuado entre as partes do
acordo.
Ou seja, ao manifestar a vontade da controladora nos órgãos so-
ciais da controlada, está o administrador obrigado a seguir o sentido do
voto determinado pelos membros do bloco de controle.
Nessas condições, não há dúvida de que os efeitos do acordo de acio-
nistas serão diretamente estendidos para as sociedades controladas.
Portanto, a Lei n° 10.303/2001 veio a consagrar o entendimento,
já manifestado pela jurisprudência, de que são legítimos os acordos de
acionistas que se destinam a produzir efeitos em relação a todas as
companhias integrantes de um "grupo" de empresas.

38
CONSELHO FISCAL. COMPOSIÇÃO.
IMPEDIMENTOS. INTERPRETAÇÃO DO§ 2° DO
ART. 162 DA LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS.

1-ACONSULTA

Indaga-nos a COMPANHIA ALFA a respeito da possibilidade de


alguns administradores da COMPANHIA BETA e da COMPANHIA
ALFA- companhias controladoras - integrarem o Conselho Fiscal
da COMPANHIA GAMA- companhia controlada-, tendo em
vista o disposto no art. 162, § 2o da Lei 6.404/76- Lei das S.A.

11 -O PARECER

A- OS CONCEITOS DE SOCIEDADES CONTROLADORAS,


CONTROLADAS E GRUPOS DE SOCIEDADES

A sociedade controladora, nos termos do art. 243, § 2° da Lei das


S.A., é aquela que é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de
modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder
de eleger a maioria dos administradores da controlada.
O conceito de sociedade controladora é obtido mediante a conju-
gação dos artigos 243, § 2°, 116 e 265 da Lei das S.A. Trata-se a
sociedade controladora da companhia que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo perma-


nente, a maioria dos votos das deliberações da Assembléia Geral e o
poder de eleger a maioria dos administradores; e
b) utiliza o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o
funcionamento dos órgãos da companhia.

Tal não significa, porém, que a sociedade controlada não possua


qualquer autonomia; apesar de a maioria dos administradores da so-

39
ciedade controlada serem eleitos pela controladora, não existe uma
ingerência direta desta sobre a administração ordinária da controlada.
Com efeito, poderá a sociedade controlada conduzir, com relativa
independência, seus negócios sociais, mantendo sua individualidade
quanto à formulação de suas políticas e estratégias para a consecução
de suas atividades empresariais. Os negócios jurídicos existentes entre
controlada e controladora, assim, obedecem ao princípio da isonomia,
não existindo qualquer vinculação de natureza obrigacional entre as
mesmas.
Com efeito, a Lei das S.A, em seu art. 245, consagra o princípio da
comutatividade das relações entre sociedade controladora e controla-
da, ao estabelecer um sistema de via dupla, no sentido de que nenhu-
ma das sociedades pode favorecer ou prejudicar a outra.
A sociedade controladora e suas controladas e coligadas consti-
tuem o chamado grupo de fato, instituto não previsto nem regulado
pela Lei das S.A, embora reconhecido pela doutrina.
A definição legal de sociedades controladora, coligada e controla-
da traduz a existência de uma associação de companhias, de um grupo
de fato, por oposição aos grupos de direito, estes sim objeto de expres-
so tratamento legislativo.
Nos grupos de fato, as sociedades encontram-se vinculadas apenas
por meio de participação acionária, sem qualquer vínculo obrigacio-
nal, devendo, as relações entre elas mantidas, obedecer a condições
estritamente comutativas, respondendo a sociedade controladora pe-
los danos causados à controlada por atos praticados com abuso de
poder, nos termos do art. 245 da Lei 6.404/76.
Uma outra situação absolutamente distinta é a verificada nos cha-
mados "grupos de direito", cujas sociedades integrantes formam uma
verdadeira "unidade", uma vez que desenvolvem uma política empre-
sarial comum, estabelecida mediante uma convenção, por meio do
qual as sociedades convenentes abrem mão de sua individualidade
estratégica e administrativa.
O grupo de sociedades de direito constitui uma técnica de con-
centração empresarial, através da qual duas ou mais empresas, sendo
uma dominante e as restantes dominadas, unem-se sob uma mesma
direção, objetivando alcançar objetivos comuns.
O artigo 265 da Lei das S.A. dispõe que "a sociedade controladora
e suas controladas podem constituir, nos termos deste capítulo, grupo
de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar
recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a
participar de atividades ou empreendimentos comuns".

40
A exigência legal da participação de sociedade controladora na
constituição do grupo caracteriza uma relação de subordinação, na
qual a sociedade de comando exerce, de modo permanente, o contro-
le das filiadas, podendo, inclusive, orientar as atividades destas, res-
peitados os limites legais e convenção em vigor.
O art. 272 da Lei das S.A estabelece que a convenção deve definir
a estrutura administrativa do grupo, podendo, inclusive, criar órgãos
de deliberação colegiada e cargos de direção geral. Assim, o grupo de
sociedades de direito pode tipicamente apresentar uma administração
centralizada de todas as companhias que o integram.
Ademais, nos termos expressos do art. 273 da Lei 6.404/76, os
administradores das sociedades filiadas devem observar a orientação
geral estabelecida pelos administradores do grupo.
A teor do art. 276, após a aprovação da convenção, a administra-
ção geral do grupo pode adotar medidas contrárias ao interesse dos
acionistas minoritários de cada companhia que o integra, desde que
previstas na convenção; daí a previsão do direito de recesso para os
acionistas dissidentes da deliberação de se associar em grupo (art.
2 7O, parágrafo único).
Assim, podemos classificar os grupos de sociedades em grupos de
direito e grupos de fato, segundo tenham ou não, respectivamente,
sido objeto de um ato formal de constituição, de um vínculo de natu-
reza obrigacional.
Conforme antes referido, nos grupos de fato as sociedades encon-
tram-se vinculadas por meio de participação acionária, sem se organi-
zarem obrigacionalmente mediante uma convenção. As relações entre
elas devem ser estritamente comutativas, respondendo a sociedade
controladora pelos danos causados à controlada por atos praticados
com abuso de poder (art. 245).
Já no caso do grupo de direito, o único previsto na Lei das S.A,
reconhece-se o direito da empresa controladora de traçar diretrizes
para a controlada, sem que as relações entre elas mantidas apresentem
a natureza comutativa.

B -AS FUNÇÕES E AS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO


FISCAL

A principal finalidade do Conselho Fiscal, como já tivemos opor-


tunidade de analisar 1, é a de exercer permanente fiscalização sobre os

I Ver nossos: "Limites à Atuação do Conselho Fiscal", in Revista de Direito Mercan-

41
órgãos de administração da companhia, referentemente às contas e à
legalidade e regularidade dos atos de gestão.
A atuação do Conselho Fiscal é instrumental, uma vez que visa a
transmitir aos acionistas as informações de que necessitam, para exer-
cerem o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, bem como
para que possam votar, na assembléia geral, com conhecimento de
causa 2 .
Nesse sentido, a Lei das S.A. estabelece que cabe ao Conselho
Fiscal: opinar sobre o relatório anual da administração; analisar, ao
menos trimestralmente, o balancete e demais demonstrações finan-
ceiras elaboradas periodicamente pela companhia; examinar as
demonstrações financeiras do exercício social e sobre elas opinar (art.
163, 11, VI e VII). O controle sobre as contas é exercido com base em
documentos de produção obrigatória por parte da administração.
Este controle consiste no constante acompanhamento do anda-
mento dos negócios da companhia, aferindo o Conselho Fiscal a sua
regularidade mediante o exame dos registros contábeis 3.
Compete ainda ao Conselho Fiscal opinar sobre certas matérias
relevantes para a companhia e seus acionistas, contidas em propostas
encaminhadas pelos órgãos de administração à Assembléia Geral, tais
como: modificação do capital social; emissão de debêntures ou bônus
de subscrição; planos de investimentos ou orçamentos de capital; dis-
tribuição de dividendos; transformação, incorporação, fusão ou cisão
(art. 163, III).
Verificando a ocorrência de erros, fraudes ou crimes, compete ao
Conselho Fiscal denunciá-los aos órgãos de administração e à Assem-
bléia Geral (art. 163, IV4 ). Visando impedir a obstrução do poder de
denúncia das irregularidades verificadas, a lei faculta ao Conselho Fis-
cal a convocação de assembléia Geral ordinária ou extraordinária (art.
163, V).

til, vol. 84, pags. 13 e seguintes e "Reforma das SA e do Mercado de Capitais". Rio de
Janeiro: Renovar, out./ dez de 1991.
2 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO. O Conselho Fiscal e o Direito à
Informação. Revista de Direito Mercantil, vol. 45, jan./março de 1982, p. 30.
3 WALDÍRIO BULGARELLI. O Conselho Fiscal nas Companhias Brasileiras. São
Paulo, 1988, p. 148.
4 Nota do Autor: A redação do inciso IV do art. 163 da Lei 6.404/76 foi modificada
pela Lei 10.303 de 3l.l 0.200 l.

42
C- A COMPETÊNCIA INDIVIDUAL E A
INDEPENDÊNCIA DOS CONSELHEIROS FISCAIS

A Lei das S.A. conferiu ao Conselho Fiscal a natureza de órgão


colegial, a deliberar pela maioria de votos de seus membros, conforme
se verifica da leitura do caput e do§ rdo art. 163, bem como do art.
165, § 2°.
A competência colegial do Conselho Fiscal poderia significar a
opressão do representante das minorias acionárias. Isso não ocorre,
porém, pelo fato de não implicar a visão colegial na exclusão da função
individual dos membros. Nesse sentido, o § 2° do art. 163 da Lei
6.404/76 dispõe que:

"Art. 163, § 2° - O Conselho Fiscal, a pedido de qualquer dos


seus membros, solicitará aos órgãos de administração esclarecimen-
tos ou informações, assim como a elaboração de demonstrações finan-
ceiras ou contábeis especiais". (grifamos)

A Jurisprudência de nossos Tribunais 5 vem entendendo que cabe


a cada Conselheiro Fiscal, de per si, o acesso às informações necessá-
rias ao exercício, por parte do Conselho Fiscal, como órgão, das ativi-
dades de fiscalização e controle da gestão administrativa da compa-
nhia.
Inexistindo atmosfera de entendimento entre os membros do
Conselho Fiscal, nada impede que os conselheiros ajam individual-
menté.
Dessa forma, se o Conselho Fiscal, uma vez instado por qualquer
de seus membros a solicitar informações, permanece inerte, omitin-
do-se no desempenho de suas funções, o conselheiro interessado pode
solicitar da administração as informações necessárias ao exercício de
suas atribuições.
A possibilidade de atuação individual do conselheiro fiscal foi,
inclusive, reforçada com a Reforma da Lei das SA, empreendida com
a edição da Lei 9.457/97.
Com efeito, a Lei 9.457/97 modificou o§ 4° do art. 163 da Lei das
S.A.; com a alteração introduzida, a competência, na matéria- soli-

5 Cf. o nosso Sociedades Anônimas -Jurisprudência, Rio, Renovar, p. 733.


6 CUNHA PEIXOTO. Sociedades por Ações. São Paulo, Saraiva, 1978, vol. 3, p.
221.

43
citar esclarecimentos ou informações que julgar necessárias aos audi-
tores independentes -, passa a ser individual, do membro do Conse-
lho Fiscal, uma vez que o § 4° do art. 163, em sua nova redação,
estabelece que o Conselho Fiscal "a pedido de qualquer de seus
membros" poderá solicitar dos auditores independentes esclareci-
mentos, informações, ou apuração de fatos específicos.
A atribuição de maiores poderes individuais aos conselheiros fis-
cais, aliás, constitui uma nítida tendência em nosso direito, tendo
inclusive o Substitutivo ao Projeto de reforma da Lei das S .A. 7 ~ 8 , ora
em tramitação no Congresso Nacional, aumentado o rol de atribuições
individuais dos membros do Conselho Fiscal.
Além da possibilidade de atuação individual dos conselheiros fis-
cais, um outro fator que contribui para assegurar o pleno exercício das
funções fiscalizatórias do Conselho Fiscal consiste no fato de que apli-
ca-se plenamente aos seus membros o postulado básico da sua não
submissão aos acionistas que os elegeram.
Trata-se, assim, de uma outra maneira de garantir a inde-
pendência do Conselho Fiscal.
Como o conselheiro fiscal é equiparado, nos termos do art. 145 da
Lei das S.A., aos administradores das companhias, para os efeitos das
normas legais sobre seus deveres e responsabilidades, aplica-se-lhe o
disposto no§ 1° do art. 154 que dispõe que o administrador "eleito por
grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos
deveres que os demais, não podendo, ainda que para a defesa do inte-
resse dos que o elegeram, faltar a esse deveres".

7 Substitutivo ao Projeto de Lei no 3.115, de 1997.


8 Nota do Autor: Com a promulgação da Lei n° 10.303/01 foram atribuídos ao
conselheiro fiscal, individualmente, os poderes de:
(. . .):
I - fiscalizar, por qualquer de seus membros, os atos dos administradores e verificar o
cumprimento dos seus deveres legais e estatutários;
(. .. )
IV- denunciar, por qualquer de seus membros, aos órgãos de administração e, se estes
não tomarem as providências necessárias para a proteção dos interesses da companhia,
à assembléia-geral, os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, e sugerir providências
úteis à companhia;
(. .. )
§ 2° O conselho fiscal, a pedido de qualquer dos seus membros, solicitará aos órgãos de
administração esclarecimentos ou informações, desde que relativas à sua função fisca-
lizadora, assim como a elaboração de demonstrações financeiras ou contábeis especiais.
(. .. )"

44
Isso significa que o fato de ter sido o membro do Conselho Fiscal
eleito por um grupo identificado de acionistas não o torna, conforme
destaca a jurisprudência, mandatário ou representante orgânico de
seus eleitores 9 •
Ademais, a Lei das S.A. determina expressamente, no seu art.
154, que todos os administradores (aí incluídos os conselheiros fis-
cais) devem exercer as suas atribuições, conferidas pela lei ou pelo
estatuto, para lograr os fins e no interesse da companhia 10 .
Ou seja, havendo conflito entre os interesses da companhia e os
do grupo de acionistas que o elegeu, é dever do conselheiro fiscal
atender os interesses da companhia, mesmo que sacrificando os de
seus eleitores. Tal se dá pela razão de que os administradores não são
mandatários dos acionistas, mas corporificam órgãos da companhia.
Vale dizer, uma vez eleitos, os membros do Conselho Fiscal de-
vem agir, sempre e necessariamente, no interesse da sociedade, e não
do grupo de acionistas que os elegeu.
Assim, se o conselheiro fiscal age exclusivamente no interesse dos
acionistas que o elegeram, sacrificando o interesse social e impedindo
ou dificultando a companhia de atingir seu objeto social e lograr seus
fins lucrativos, evidentemente, pode ser responsabilizado pelos pre-
juízos causados por tal conduta anti jurídica 11 .
Conclui-se, portanto, que embora a Lei das S.A. confira ao Conse-
lho Fiscal a natureza de órgão colegiado, o princípio majoritário é
"temperado", mediante a previsão da atuação individual de seus mem-
bros, que, além disso, não se encontram subordinados aos interesses
de seus eleitores.
À minoria, mediante tais mecanismos - atuação individual e in-
dependência dos conselheiros-, é assegurada uma efetiva proteção,
na medida em que seus representantes no Conselho podem, de per si,
exercer a função de fiscalizar a condução dos negócios sociais.

9 C f. o nosso Sociedades Anônimas- Jurisprudência ... , p. 738.


10 Nota do Autor: Tal princípio foi expressamente acolhido pela Lei n° 10.303/01
que deu nova redação ao § 1° do art. 165, que passou a dispor que:
"Art. 165 ( ...)
§ IQ Os membros do conselho fiscal deverão exercer suas funções no exclusivo interesse
da companhia; considerar-se-á abusivo o exercício da função com o fim de causar dano
à companhia, ou aos seus acionistas ou administradores, ou de obter, para si ou para
outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a
companhia, seus acionistas ou administradores."
li Ver, a propósito, nosso Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais, cit., p. 115.

45
D- COMPOSIÇÃO E IMPEDIMENTOS NO CONSELHO
FISCAL

A Lei das S.A, em seu art. 161, § 1°, dispõe que o Conselho Fiscal
será composto por, no mínimo, três e, no máximo, cinco membros,
acionistas ou não, necessariamente eleitos pela Assembléia Geral.
Tendo em vista o funcionamento efetivo do Conselho Fiscal, e
visando a evitar que se transforme em órgão meramente homologató-
rio das decisões do acionista controlador, estabeleceu a Lei dispositi-
vos que assegurem a representação de acionistas minoritários.
Nesse sentido, a Lei 6.404/76, em seu art. 161, § 4°, possibilita
expressamente a participação, no Conselho Fiscal, de representante
dos titulares de ações preferenciais sem direito de voto, assim como
dos acionistas minoritários - titulares de ações ordinárias - desde
que detenham mais de 10% das ações com direito de voto.
Preocupou-se, ainda, o legislador com a capacitação técnica dos
membros do Conselho Fiscal, exigindo que tenham eles diploma em
curso superior ou experiência de pelo menos três anos em cargos de
administração ou de conselheiros fiscais.
Já os impedimentos para o desempenho da função de conselheiro
fiscal encontram-se previstos no art. 162, § 2° da Lei das SA, que tem
a seguinte redação:

"Art. 162, § 2°- Não podem ser eleitos para o Conselho Fiscal, além
das pessoas enumeradas nos parágrafos do Art. 14 7, membros de
órgãos de administração e empregados da companhia ou de sociedade
controlada ou do mesmo grupo, e o cônjuge ou parente, até terceiro
grau, de administrador da companhia."

Examinaremos, em seguida, somente as vedações relacionadas às


participações societárias entre as companhias, não analisando, portan-
to, os impedimentos previstos nos parágrafos do art. 14 7 da Lei das
SA, bem como a questão do parentesco, por serem tais situações irre-
levantes para a resposta à Consulta formulada pela COMPANHIA
ALFA.
Os impedimentos elencados no art. 162, § 2° da Lei das S.A., bem
como as suas justificativas podem ser assim agrupados:

46
VEDAÇÕES JUSTIFICATIVA
1) O administrador da companhia Os conselheiros fiscais estariam
não pode integrar o Conselho Fiscal fiscalizando os seus próprios atos
da própria companhia
2) O administrador da controlada Tendo em vista a relação de subordi-
não pode integrar o Conselho Fiscal nação existente entre Controlada e
da controladora Controladora, não teriam os conse-
lheiros isenção para fiscalizar
3) O administrador de uma compa- Como os grupos de direito possuem um
nhia pertencente a um grupo de direi- objetivo comum, faltaria igualmente, a
to não pode integrar o Conselho Fiscal isenção necessária para o exercício das
de outra sociedade do mesmo grupo atribuições dos conselheiros

Uma vez verificados os impedimentos ao exercício da função de


conselheiro fiscal, passemos à análise da hipótese submetida à nossa
apreciação.

E -APLICAÇÃO DO§ zo DO ART. 162


O objetivo do art. 162, §2° é o de evitar que o Conselho Fiscal não
cumpra, adequadamente, as suas funções de fiscalização dos negócios
sociais, em virtude de vínculo de subordinação ou de dependência
existente entre as sociedades envolvidas, evitando situações que pos-
sam caracterizar conflito de interesses.
O legislador, dessa forma, estabeleceu critérios objetivos, elen-
cando uma série de circunstâncias em que o conflito é inerente, isto é,
em que há uma presunção absoluta da existência de conflito.
No entanto, o dispositivo não é aplicável ao presente caso, pelas
razões abaixo:

a) Uma norma excepcional deve ser interpretada restritivamente


A regra prevista no art. 162, § 2° da Lei das S.A. constitui uma
norma excepcional, uma vez que estabelece limitações em relação à
composição do Conselho Fiscal.
Assim sendo, como consiste em uma regra excepcional, deve ser
interpretada restritivamente.
A interpretação restritiva das normas excepcionais constitui um
dos princípios que regem o nosso direito. Neste sentido, manifesta-se
Tércio Sampaio Ferraz 12 :

12 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ. Introdução ao estudo de direito. 2 ed. São Paulo:


Atlas, 1996. p. 295.

47
"(. ..) uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. (. ..) uma exce-
ção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcio-
nais. Ir além é contrariar a sua natureza".

Como o art. 162, § 2° da Lei das S.A. estabelece impedimentos


quanto à composição do Conselho Fiscal, que excepcionam o regime
geral do órgão, deve ser tal dispositivo interpretado restritivamente,
somente se aplicando às hipóteses nele taxativamente previstas.
Como não existe expressa previsão sobre a impossibilidade de
membros de sociedade controladora integrarem o Conselho Fiscal da
sociedade controlada e como a expressão "mesmo grupo" contida na
referida norma refere-se aos grupos de direito, disciplinados nos arti-
gos 265 à 277 da Lei das S.A., pode-se concluir que, legalmente, nada
impede que o Conselho Fiscal de companhia controlada seja compos-
to por representantes da companhia controladora.

h) Conflito não pode ser presumido


Para que se possa cogitar, juridicamente, do conflito de interesse
é necessário ou que a Lei expressamente vede determinado compor-
tamento ou, então, que se verifique determinada situação fática, a ser
apreciada em cada caso concreto.
Na hipótese ora em análise, presume a Lei das S.A., em seu art.
162, § 2°, de modo absoluto, que as pessoas nas situações que especi-
fica não estão em condições de exercer, com isenção, os deveres de
conselheiros fiscais, que lhes são impostos por Lei, em virtude da
subordinação ou dependência existente entre as sociedades envolvi-
das. Presume o legislador que falta-lhes a necessária isenção para cum-
prir a função de fiscalizar os negócios sociais.
Trata-se, na realidade, de verdadeira vedação, sendo nula qual-
quer deliberação que descumprir o que está ali estabelecido.
Entendeu o legislador que poderia ocorrer uma situação de confli-
to, na medida em que os conselheiros, naqueles casos de subordinação
e de dependência, poderiam ficar "divididos" entre a vontade de aten-
der aos interesses de quem os elegeu e a de exercer, efetivamente, a
função de fiscalizar as atividades dos administradores.
Os impedimentos, no entanto, devem estar expressamente con-
signados em Lei. A presunção absoluta desaparece, portanto, se hou-
ver uma situação não prevista legalmente, hipótese em que deverá ser
verificado caso a caso.
Ademais, seguindo a orientação consagrada .no direito societário,
tanto em nosso sistema jurídico como no direito comparado, a carac-

48
terização do conflito de interesse não é meramente formal, mas subs-
tancial, devendo, portanto, ser objeto de apreciação na hipótese con-
creta.
Como não prevê a Lei a impossibilidade de representantes de
sociedades controladoras integrarem o Conselho Fiscal das controla-
das, o conflito de interesse não pode ser presumido, devendo ser
avaliado caso a caso.
É de todo evidente que haverá, na hipótese, necessidade de um
exame substancial, para que se possa verificar se a eleição de conse-
lheiros fiscais representantes da companhia controladora causará ou
não danos aos minoritários.
Se as condições forem prejudiciais ao minoritário, o ato de no-
meação dos conselheiros poderá, eventualmente, ser anulado, em
ação própria, respondendo os responsáveis pelos danos causados.

c) O Grupo de fato e o grupo de direito


O capítulo XXI da Lei das S.A., que dispõe sobre Grupos de Socie-
dades, não disciplina os grupos de fatos.
Com efeito, os grupos de fato não estão previstos na nossa legisla-
ção societária, reservando a Lei das S.A. as expressões grupos de socie-
dades e grupos para designar tão somente os grupos de direito.
Assim, como a Lei das S.A. não se refere aos grupos de sociedades
de fato, a menção a grupo contida em seu art. 162, § 2° somente pode
ser interpretada como se referindo aos grupos de direito.
Na realidade, somente no grupo de direito existe a possibilidade
de uma administração centralizada de todo o grupo, o que retira a
autonomia de gestão de cada um dos seus integrantes.
Ademais, somente no grupo de direito existe a possibilidade de,
uma vez previsto na convenção, ter uma das companhias preteridos
seus interesses em favor de outra integrante do mesmo grupo.
O administrador de sociedade integrante do mesmo grupo de di-
reito deve lealdade à administração geral do grupo e não apenas à
companhia na qual exerceria a função de conselheiro fiscal; daí decor-
rem a presunção absoluta de conflito de interesses e a conseqüente
vedação prevista no art. 162, § 2°.
, Diversa é a situação no grupo de fato, no qual não existe adminis-
tração centralizada, muito menos a possibilidade jurídica de o admi-
nistrador favorecer uma sociedade, em detrimento dos interesses da
outra.
Daí ter a Lei se referido apenas ao grupo de sociedade de direito,
não cabendo ao intérprete distinguir onde a Lei não o fez.

49
Dessa forma, não há presunção de conflito no caso de grupo de
fato, que é a hipótese ora em estudo.

d) Já existe norma tratando do conflito entre controladas e con-


troladoras
O artigo 245 da Lei 6.404/76 visa a proteger os minoritários no
caso dos grupos de fato, dispondo que: "não podem os administrado-
res, em prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controla-
dora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operações entre
as sociedades, se houver, observem condições comutativas (. .. )".
A participação dos administradores da sociedade controladora na
composição do Conselho Fiscal não importa em privar os acionistas
minoritários de uma adequada proteção, uma vez que o art. 245 esta-
belece a obrigação de serem as relações entre controladora e controla-
da comutativas.
Assim sendo, caso a eleição de representantes da controladora
para integrarem o Conselho Fiscal da controlada importasse num
eventual descumprimento das funções destes de fiscalizar ou em al-
gum tipo de favorecimento à sociedade controladora, aplicar-se-ia o
disposto no art. 245 da Lei das SA, podendo, inclusive, a controladora
vir a responder por abuso, se for o caso, nos termos do art. 246 do
mesmo diploma legal.

e) O tratamento privilegiado à controlada constitui hipótese de


abuso de poder de controle
A Lei das S.A. reconheceu a existência do poder de controle,
definindo-o em função da titularidade da maioria dos votos e do exer-
cício da direção das atividades sociais (art. 116).
Atribuiu a Lei, expressamente, determinados deveres ao acionista
controlador, visando a prevenir e a reprimir a prática de abusos.
Nesse sentido, o §único do art. 116 da Lei das S.A. dispõe que:

"O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a


companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empre-
sa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atue,
cujos direitos deve lealmente respeitar e atender".

O princípio básico é de que a sociedade controladora deve exercer


o seu poder de maneira legítima e eqüitativa, nem beneficiando inde-
vidamente a companhia controladora, em detrimento de seus pró-

50
prios acionistas, nem oprimindo ou prejudicando os interesses da con-
trolada.
Ou seja, as operações entre sociedade controladora e sociedade
controlada devem observar condições estritamente comutativas, ou
com pagamento compensatório adequado (art. 245 da Lei das S.A.).
As condições comutativas são aquelas em que há equivalência das
prestações. O caráter comutativo das relações entre sociedade con-
troladora e controlada significa a existência de uma "via dupla": a
sociedade controladora não deve nem favorecer, nem prejudicar a
controlada.
As relações entre sociedades controladora e controlada devem ser
pautadas pela observância de condições comutativas; cumpre aos admi-
nistradores da controladora atuar da maneira mais isenta possível, não
beneficiando, mas também não prejudicando a sociedade controlada.
Assim, se os administradores da Controladora, enquanto conse-
lheiros fiscais da Controlada, não exercerem diligentemente suas fun-
ções, prejudicando os minoritários de quaisquer delas deverão respon-
der pelas perdas e danos resultantes dos atos praticados em infração
ao art. 245 da Lei das S.A.

f) A atuação individual dos conselheiros


O fato de estarem presentes no Conselho Fiscal da sociedade con-
trolada representantes da controladora não significa, em princípio,
qualquer prejuízo ou opressão aos minoritários, uma vez que, como
mencionado, existe sempre a possibilidade de atuação individual dos
conselheiros, estando, inclusive, nele presentes representantes das
minorias acionárias.
Dessa forma, nada impede que o conselheiro atue individualmen-
te, se a maioria dos membros do Conselho Fiscal formada por repre-
sentantes da sociedade Controladora não exercer adequadamente
suas funções.

g) O interesse social sempre deverá prevalecer - O conselheiro


fiscal não se submete aos interesses de quem o elegeu
Registre-se, ainda, que embora sejam os membros do Conselho
Fiscal eleitos pela Companhia controladora, não existe qualquer vín-
culo jurídico dos conselheiros para com seus eleitores. Isso significa
que não estão subordinados os conselheiros da controlada aos interes-
ses da Companhia controladora.
Com efeito, a Lei impõe aos membros do Conselho Fiscal da Com-
panhia o dever de atuarem tendo em vista sempre o interesse social,

51
sob pena de virem a ser responsabilizados por seus atos que atendam
apenas aos interesses individuais próprios ou de seus eleitores.

h) Existe efetivo interesse da controladora de que os negócios da


controlada sejam conduzidos de forma eficiente
Uma das funções essenciais do Conselho Fiscal é a de exercer
permanente fiscalização sobre os órgãos de administração da Compa-
nhia, referentemente às contas e à legalidade e regularidade dos atos
de gestão. Assim, conforme enfatizado na Exposição de Motivos da
Lei da S.A., o Conselho Fiscal constitui órgão de fiscalização dos ad-
ministradores.
Ademais, visa o Conselho Fiscal, em sua atuação, a transmitir aos
acionistas as informações de que necessitam, quer para exercerem o
direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, quer para que pos-
sam votar, nas Assembléias Gerais, com conhecimento de causa.
É inequívoco que a sociedade controladora tem todo o interesse
de que os membros do Conselho Fiscal da Controlada cumpram ade-
quadamente suas funções de fiscalizar a condução dos negócios sociais
pelos administradores de sua controlada, impedindo-os de se desvia-
rem de suas funções diretivas, assim como assegurando-lhes o acesso
às informações relevantes da companhia.

F- RESPOSTA AO QUESITO

Face à análise até aqui desenvolvida, podemos concluir que o § 2o


do art. 162 da Lei 6.404/76, ao vedar a eleição para o Conselho Fiscal
de membros de órgãos de administração e de empregados do mesmo
grupo, está, inequivocamente, referindo-se, única e tão-somente, ao
grupo de direito, tal como definido no Capítulo XXI da mesma Lei.
Não há, portanto, vedação legal a que empregados ou administra-
dores de sociedade controladora integrem o Conselho Fiscal de socie-
dade controlada.
Podem, pois, legitimamente, os administradores e empregados da
COMPANHIA BETA e da COMPANHIA ALFA integrarem o Con-
selho Fiscal da COMPANHIA GAMA.
Foi o nosso Parecer, em outubro de 2000.

sz
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO.
FUNCIONAMENTO E ORGANIZAÇÃO DE
SUAS REUNIÕES.

I. A CONSULTA

A COMPANHIA ALFA, solicita nossa opinião sobre as questões


abaixo:

"A Companhia Alfa tem um Conselho de Administração composto de


onze membros e não há Regimento Interno disciplinando o seu funcio-
namento.

Solicitamos o seu Parecer quanto as seguintes questões:

1. Quem tem qualidade para comparecer às reuniões do Conselho de


Administração? Membros do Conselho de Administração podem ser
representados nas reuniões (discutir e votar) por advogados? Por ou-
tros Conselheiros? Advogados não membros do Conselho de Adminis-
tração podem comparecer às reuniões como assessores de tal ou qual
conselheiro? Nesse caso podem pronunciar-se na reunião ou apenas
dialogar com seus clientes?
2. A quem compete a escolha do Secretário de Reunião do Conselho de
Administração? O Secretário precisa ser membro do Conselho? Se o
Conselho de Administração da Companhia Alfa tiver um advogado
contratado pode ele ser Secretário das reuniões do Conselho inde-
pendentemente de não ser conselheiro?"
3. À vista das disposições estatutárias seria admissível no curso de
Reunião de Conselho a inclusão em pauta de assunto que não constou
expressamente da ordem do dia sem que haja a concordância da una-
nimidade dos conselheiros presentes, ainda que presentes todos os con-
selheiros em exercício?
4. Se o estatuto social for omisso, pode a Assembléia Geral eleger o
Presidente do Conselho de Administração?"

53
11 -O PARECER

a) Comparecimento às Reuniões

"Quem tem qualidade para comparecer às reuniões do Conse-


lho de Administração?"
O Conselho de Administração, nos termos do art. 13 8, § 1o da Lei
das S.A., constitui um órgão de deliberação colegiada, de existência
obrigatória nas Companhias Abertas, nas sociedades de economia mis-
ta e nas de capital autorizado.
Os membros do Conselho de Administração devem necessaria-
mente deliberar em conjunto, não detendo, assim, competência indi-
vidual, nem podendo representar a companhia.
Conforme pode-se verificar da redação do art. 142 da Lei das
S.A., em nosso modelo de direito societário, o Conselho de Adminis-
tração constitui o órgão que estabelece a orientação geral dos negócios
da companhia, elege e destitui os seus diretores, fiscaliza suas ativida-
des, bem como delibera a respeito de operações de maior relevância
no curso de suas atividades empresariais.
Ademais, diversamente do que ocorre com a diretoria, o Conselho
de Administração não exerce atribuições de natureza executiva, ou seja,
não desempenha os atos de administração ordinária dos negócios sociais.
A propósito, verifica-se nítida tendência no sentido de se alargar o
espectro dos interesses representados no Conselho de Administração;
entre nós, nos termos do Projeto de Reforma da Lei das S.A., busca-se
ampliar, tanto no Conselho de Administração como no Conselho Fis-
cal, o elenco de representantes não só dos minoritários ordinaristas
como também daqueles que não tem o direito de voto 1.2.

1 Conforme o nosso artigo "Reforma das S.A. e Conselho Fiscal". Revista de Direito
Mercantil, vol. 119, jul./set. de 2000. pg. 121.
2 Nota do Autor: A lei 10.303/01 deu nova redação ao §4° do art. 141 da Lei das
S.A., que passou a dispor que:
"Art. 141 ( .. .) § 4ª Terão direito de eleger e destituir um membro e seu suplente do
conselho de administração, em votação em separado na assembléia-geral, excluído o
acionista controlador, a maioria dos titulares, respectivamente:
I - de ações de emissão de companhia aberta com direito a voto, que representem, pelo
menos, 15% (quinze por cento) do total das ações com direito a voto; e
II - de ações preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito de emissão de
companhia aberta, que representem, no mínimo, 10% (dez por centoJ do capital social,
que não houverem exercido o direito previsto no estatuto, em conformidade com o art.
18."

54
Constituindo os conselheiros representantes de determinados
grupos de acionistas, em regra não se admite que possam eles ser
representados por procuradores nas reuniões do Conselho de Admi-
nistração; trata-se de função individual e própria, inadmissível, em
princípio, o voto por procuração.
A inadmissibilidade do voto por procuração no Conselho de Ad-
ministração decorre também do fato de ser a responsabilidade do
administrador de natureza pessoal, quando atua dolosa ou culposa-
mente, ou quando infringe a lei ou o estatuto, nos termos do art. 158
da Lei das S .A.
Nesse sentido, o Codice Civile italiano, em seu art. 2.388, parte
final, proíbe expressamente o voto por procuração no Conselho de
Administração 3 .
A doutrina na Itália, a propósito, enfatiza que a função do conse-
lheiro de administração é personalíssima; daí decorre que não pode
ele fazer-se substituir ou representar por terceiro no desempenho de
suas atividades 4 .
Entre nós, da mesma forma, não se permite o voto por procuração
no Conselho de Administração, por absoluta falta de previsão legal.
Admite-se, excepcionalmente, o voto por procuração, desde que:
haja previsão estatutária; a procuração contenha o voto justificado do
conselheiro ausente; o procurador seja conselheiro, no exercício regu-
lar de suas funções; e o conselheiro esteja ausente justificadamente,
ou em impedimento temporário 5.
O Estatuto da COMPANHIA ALFA somente admite a repre-
sentação do conselheiro no caso de ausência ou impedimento tempo-
rário, por outro conselheiro por ele indicado.
Assim, não há qualquer dúvida de que nas reuniões do Conselho
de Administração da COMPANHIA ALFA somente podem apresen-
tar suas razões e votar os membros do Conselho.

b) Representação dos membros do Conselho de Administração

"Membros do Conselho de Administração podem ser repre-


sentados nas reuniões (discutir e votar) por advogados? Advoga-

3 VICENZO SCALESE. Codice delle Società, Milão, A Giuffre, 2.000, pg. 395.
4 MARIA ALESSANDRA AIMI. Le Delibere dei Consiglio di Amministrazione,
Milão, Giuffre Editore, 2.000, pg. 130.
5 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 3,
São Paulo, Saraiva, 1998, pg. 82.

55
dos não membros do Conselho de Administração podem compare-
cer às reuniões como assessores de tal ou qual conselheiro? Nesse
caso podem pronunciar-se na reunião ou apenas dialogar com
seus clientes?"
Em nosso sistema de direito societário não existe qualquer possi-
bilidade de representação dos Conselheiros, nas reuniões do Conse-
lho, por advogados; a manifestação de opiniões, a participação em
discussões e a declaração de voto constituem atos privativos dos mem-
bros do Conselho, admitida a representação, em caráter excepcional,
na hipótese prevista no estatuto social, por outro Conselheiro indica-
do pelo Conselheiro ausente ou impedido.
Por outro lado, os conselheiros podem ser acompanhados por ad-
vogados. Nos termos do art. 7°, VI, d, da Lei n° 8.906/94 constitui
direito do advogado ingressar livremente em qualquer assembléia ou
reunião de que participe ou possa participar o seu cliente.
A função do advogado, no caso, é a de assessorar seu cliente, o
conselheiro, a quem compete, com exclusividade, a apresentação de
suas razões e votos.
Os advogados podem eventualmente apresentar seus comentários
ao Conselho, quando solicitados ou autorizados pelo Presidente, a
quem compete dirigir e ordenar os trabalhos, zelando para que seja a
ordem do dia atendida em tempo hábil.

c) Secretário de Reunião do Conselho de Administração.

"A quem compete a escolha do Secretário de Reunião do Con-


selho de Administração? O Secretário precisa ser membro do
Conselho? Se o Conselho de Administração da Companhia Alfa
tiver um advogado contratado pode ele ser Secretário das reu-
niões do Conselho independentemente de não ser conselheiro?"
Usualmente, o Conselho de Administração das companhias, ten-
do em vista a melhor organização de suas atividades, tem os seus
trabalhos dirigidos por um Presidente.
O presidir consiste na atividade de dirigir, guiar, nortear, em
suma, ordenar o desenvolvimento das funções do órgão, seja em suas
reuniões, seja no relacionamento com os demais órgãos da companhia,
seja ainda com relação a terceiros, embora não caiba ao Presidente do
Conselho de Administração, no direito societário brasileiro, o poder
de representação legal da companhia.
As funções do Conselho de Administração, de natureza basica-
mente deliberativas, de traçar as políticas gerais da companhia e de

56
eleger e fiscalizar os diretores, são desempenhadas no curso de suas
reuniões, ordinárias e extraordinárias.
Assim, a atividade essencial do Presidente do Conselho de Admi-
nistração é a de bem conduzir as reuniões do órgão, em todas as suas
etapas: convocação; condução e ordenamento das deliberações; regis-
tro das resoluções do órgão; e divulgação para terceiros e demais ór-
gãos da companhia das deliberações adotadas.
Nesse sentido, a doutrina, entre nós, enfatiza que:

"Caberá ao estatuto, portanto, díspar que ao presidente do Conselho


competirá presidir as reuniões do órgão; distribuir assuntos de compe-
tência privativa do Conselho dentre os seus membros para apresenta-
ção do respectivo relatório das reuniões; submeter à votação as maté-
rias constantes da ordem do dia das reuniões; ter ele, ou não, o voto de
qualidade, firmar as deliberações do Conselho que devem ser expres-
sas em resoluções, para conhecimento ou cumprimento dos diretores e
do próprio Conselho; tomar conhecimento das diligências individual-
mente promovidas pelos conselheiros junto aos diretores, etc. "6

A função do Presidente do Conselho de Administração é essencial


para o adequado atendimento às boas práticas de corporate governan-
ce, cabendo-lhe a responsabilidade última pela coordenação, pela con-
dução e correto funcionamento do órgão, no qual se inclui a definição
da ordem do dia. 7
Verifica-se, doutrinariamente, o entendimento de que na compe-
tência do Presidente compreendem-se: o poder-dever de convocar as
reuniões do Conselho de Administração sempre que necessário; o
poder-dever de dirigir as reuniões e de controlar que o secretário
redija as deliberações em conformidade com o decidido pelo órgão; e
de firmar as deliberações adotadas 8 .
O Estatuto da COMPANHIA ALFA prevê expressamente, que o
Conselho de Administração terá, escolhido entre seus membros, um
Presidente, que convocará e presidirá suas reuniões.

6 MODESTO CARVALHOSA Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 3,


São Paulo, Saraiva, 1998, pg. 61.
7 PIERRE DI TORO Governance Etica e Controllo, Padova, CEDAM, 2.000, pg.
231.
s MARIA ALESSANDRA AIMI Le Delibere del Consiglio de Amministrazione,
Milão, Giuffre Editore. 2.000, pg. 19; LUIS BRITO CORREIA Os Administradores
de Sociedades Anônimas, Coimbra, Almedina. 1993, pg. 267; JEAN-FRANÇOIS
BULLE Le statut du dírígeant de socíété, Paris, La Villeguerin, 1989, pg. 69.

57
Ou seja, cabe ao Presidente do Conselho de Administração da
COMPANHIA ALFA conduzir, em bom termo, as reuniões do Con-
selho, ordenando e dirigindo o desenvolvimento regular das reuniões
do órgão.
Dentre as funções do Presidente do Conselho de Administração
de dirigir os trabalhos do órgão, certamente compreende-se a de esco-
lher o Secretário das reuniões, a quem caberá redigir as deliberações
adotadas pelo Conselho.
Constitui responsabilidade do Presidente zelar para que as atas
das reuniões reproduzam com fidelidade o que foi deliberado pelo
órgão; daí decorre que o Secretário do Conselho deve ser pessoa de
escolha do Presidente e de sua estrita confiança.
Nesse sentido, o Estatuto Social da COMPANHIA ALFA, que
deve ser aplicado analogicamente à presente hipótese, dispõe que o
Secretário da Assembléia Geral será da livre escolha do Presidente da
Assembléia.
Assim, não temos qualquer dúvida de que compete ao Presidente do
Conselho de Administração a escolha do Secretário da reunião do órgão.
Cabe ao Secretário do Conselho reproduzir fielmente as discus-
sões travadas e as deliberações adotadas. Assim, o ideal é que não seja
ele membro do Conselho, para que possa, com isenção, tomar os
apontamentos necessários, de molde a retratar com acuidade o que se
passou na reunião.
Portanto, o Secretário não precisa ser membro do Conselho, po-
dendo perfeitamente ser chamado para o desempenho de tal mister o
Advogado da companhia.

d) Pauta de Reunião do Conselho de Administração.

"À vista das disposições estatutárias seria admissível no cur-


so de Reunião de Conselho a inclusão em pauta de assunto que
não constou expressamente da ordem do dia sem que haja a con-
cordância da unanimidade dos conselheiros presentes, ainda que
presentes todos os conselheiros em exercício?"
A deliberação do Conselho de Administração é toda decisão ou
resolução por ele adotada, mediante prévia discussão e votação majo-
ritária; trata-se, portanto, de uma resolução de ordem plural, diversa-
mente do que ocorre com a diretoria, em que as decisões, de natureza
executiva, são, em regra, singulares, de cada um dos diretores.
As deliberações de órgãos colegiados, como o Conselho de Admi-
nistração e a Assembléia Geral, são caracterizadas pela doutrina como

58
atos coletivos, precisamente para diferenciá-los dos contratos, em
que as partes somente se vinculam nos termos de suas declarações; a
deliberação do órgão colegial vincula a todos os seus membros, ainda
que dissidentes ou ausentes 9 .
As decisões necessariamente coletivas do Conselho de Adminis-
tração decorrem da necessidade de proteção aos acionistas, uma vez
que o referido órgão absorve grande parcela dos poderes da assembléia
geral dos acionistas.
Assim, as deliberações adotadas pelo Conselho de Administração
devem seguir o mesmo sistema adotado para a Assembléia Geral, ou
seja, de decisões tomadas por maioria, que vinculam a todos os seus
membros.
A propósito, a doutrina enfatiza que devem ser aplicadas por ana-
logia às deliberações do Conselho de Administração as mesmas regras
que disciplinam o processo decisório e as invalidades das deliberações
assembleares 10 .
O Estatuto da Companhia Alfa estabelece que as reuniões do
Conselho de Administração serão convocadas, mediante comunicação
por escrito, expedida com pelo menos 5 (cinco) dias de antecedência,
devendo dela constar o local, data e hora da reunião, bem como, resu-
midamente, a ordem do dia.
A Lei das S.A., em seu art. 124, estabelece expressamente que a
convocação da assembléia geral deve conter, necessariamente, a or-
dem do dia.
A Instrução CVM n° 341, de 13/07/2.000 dispõe, em seu art. P,
que:

"Art. 1o - O anúncio de convocação de assembléia geral deverá enu-


merar, expressamente, na ordem do dia, todas as matérias a serem
deliberadas, não se admitindo que sob a rubrica "assuntos gerais"
haja matérias que dependam de deliberação assemblear". (destaca-
mos).

O art. 2° da mesma Instrução considera falta grave, para fins de


aplicação de penalidades administrativas por parte da CVM, a trans-
gressão ao disposto no art. 1°.

9 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA. Invalidade das


Deliberações de Assembléia das SIA, São Paulo, Malheiros, 1999, pg. 41.
10 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. Vícios ou defeitos de deliberações de órgãos
sociais, in ALFREDO LAMY FILHO E JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A Lei
das S.A. za ed. zo vol. Parte 3, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, pg. 704.

59
No caso presente, assim, a obrigatoriedade de conter na convoca-
ção do Conselho de Administração a ordem do dia decorre não só da
aplicação analógica da Lei das S.A. e da Instrução CVM n° 341/2.000,
como também de disposição estatutária expressa.
A disciplina rígida da ordem do dia, no direito societário, tem dois
objetivos básicos: informar previamente aos acionistas ou conselheiros
sobre as matérias a respeito das quais deverão deliberar; e impedir que
os que se ausentaram, por não considerarem relevantes as matérias
constantes da ordem do dia, sejam prejudicados.
O edital de convocação, ao tratar da ordem do dia, deve atender à
sua finalidade precípua: ensejar ao acionista não só o conhecimento da
realização do conclave, como também o prévio conhecimento da ma-
téria a respeito da qual irá deliberar.
Tanto a doutrina como a jurisprudência de nossos tribunais consi-
deram que o tema que não consta da ordem do dia não pode ser objeto
de deliberação; se o for, não adquire eficácia e validade, sendo nula a
deliberação 11 .
Somente em casos de urgência extrema, que possam acarretar
prejuízos à companhia, é que se admite a discussão e deliberação de
matéria não constante do editaF 2 •
No que se refere às assembléias ou reuniões totalitárias (aquelas
em que estão presentes todos os membros) a regra, nos termos do § 4 o
do art. 124 da Lei das S.A., é de que se pode deliberar a respeito de
matéria não constante da ordem do dia.
Com efeito, se comparecem ao conclave todos os membros -
acionistas ou conselheiros, dependendo do órgão- é ele tido como
regular, em sua instalação, ainda que a convocação apresente defeitos.
Ou seja, pode ser instalada a reunião a que estejam presentes
todos os membros do órgão, ainda que não lhes tenha sido previamen-
te comunicada a ordem do dia.
Porém, tanto no direito comparado, como em nosso sistema jurí-
dico, a fase deliberativa da reunião somente será eficaz se todos os
membros estiverem de acordo com a ordem do dia proposta, ou com
a adição de determinado item nela não previsto. Havendo discordân-

11 RUBENS REQUIÃO. Curso de direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 1993, vol.
2, pg. 140; JURANDIR DOS SANTOS. Manual das Assembléias Gerais nas Socieda-
des Anônimas, São Paulo, Saraiva, 1994, pg. 34.
12 CARVALHO DE MENDONÇA. Tratado de direito comercial brasileiro, sa ed.,
São Paulo: Freitas Bastos, 1954. vol. 4, ll0 1132, p.19/20.

60
cia de qualquer dos membros, o conclave não poderá deliberar ares-
peito de matéria não constante na ordem do dia 13 .
Fundamenta-se tal princípio no fato de que os membros da reu-
nião tem o direito ao conhecimento prévio sobre a matéria a ser deli-
berada, para que possam discuti-la com conhecimento de causa.
Assim, podemos concluir que não é admissível, tendo em vista as
disposições estatutárias da COMPANHIA ALFA, a Lei das S.A. e os
princípios de direito societário aplicáveis, que, no curso da reunião do
Conselho de Administração, seja incluído em pauta assunto que não
constou da ordem do dia, a não ser que haja a concordância da unani-
midade dos conselheiros presentes, ainda que presentes todos os con-
selheiros em exercício.

e) Competência para eleger o Presidente do Conselho de


Administração.

"Se o estatuto social for omisso, pode a Assembléia Geral ele-


ger o Presidente do Conselho de Administração?"
É inequívoco que a Assembléia Geral constitui o órgão máximo da
companhia, uma vez que lhe compete traçar o destino da sociedade,
não lhe cabendo porém a competência dos atos de execução e de
administração.
Nesse sentido, a doutrina, entre nós, tem enfatizado que a Assem-
bléia Geral constitui o meio mais adequado para aferir-se a vontade
da maioria dos acionistas, que deve, por definição, predominar 14 .
Existe, no Direito Comparado, alguma discussão sobre a compe-
tência para nomeação do Presidente do Conselho de Administração,
se do próprio Conselho ou da Assembléia Geral.
Em alguns casos, a Lei é omissa 15 , em outros, como no Direito
Italiano, prevê-se que a competência pode ser tanto da Assembléia
Geral como do Conselho (art. 2.380 do Codice Civile). Na maioria

13 NORMAN LATTIN. The Law of Corporations, New York, The Foudation Press,
1971, pg. 244; MODESTO CARVALHOSA Comentários à Lei de Sociedades Anôni-
mas. São Paulo, Saraiva, 1998, vol. 2, pg. 538; JURANDIR DOS SANTOS ob. cit.,
pg. 36.
14 PHILOMENO J. DA COSTA. Controle das assembléias gerais das sociedades
anônimas. Revista Forense, maio/jun. de 1954, v. 153, pg. 519.
15 Nota do Autor: Entre nós, até a edição da Lei 10.303/0l, a matéria não era
disciplinada na lei societária. Com a nova redação dada ao art. 140 da Lei das S .A.,
deve o Estatuto estabelecer o processo de escolha e substituição do Presidente do
Conselho de Administração, pela Assembléia ou pelo próprio Conselho.

61
dos casos, atribui-se ao Estatuto da companhia competência para re-
gular a matéria.
Na realidade, a questão de fundo refere-se à natureza dos poderes
da Assembléia Geral sobre os administradores, em geral.
Nos países em que os administradores tem um termo fixo de
gestão, não podendo ser demitidos ad nutum, exceto se houver causa,
como ocorre nos EUA 16 , confere-se enorme autonomia aos órgãos
administrativos, inexistindo poderes da Assembléia para intervir em
sua atuação e organização interna.
Já nos sistemas em que não há termo fixo de gestão, resultaria
inteiramente inócua a pretensão de atribuir-se poder soberano ao
Conselho de Administração para eleger seu Presidente, ainda que
eventualmente contra a vontade da maioria dos acionistas, reunidos
em Assembléia Geral.
Em nosso sistema de direito societário, nos termos do art. 140 da
Lei das S.A., os membros do Conselho de Administração podem ser
destituídos a qualquer tempo pela Assembléia Geral.
Assim, não faria qualquer sentido atribuir-se, ao Conselho de Ad-
ministração, o poder ilimitado e soberano de eleger o seu Presidente,
contra a vontade da maioria dos acionistas, pois poderiam ser todos os
seus membros destituídos pela Assembléia Geral.
Nos termos do art. 140, I, da Lei das S.A., o estatuto da compa-
nhia deve estabelecer o processo de escolha e substituição do Presi-
dente do Conselho de Administração.
O Estatuto da COMPANHIA ALFA é omisso a respeito do pro-
cesso de eleição do Presidente do Conselho de Administração.
Em nosso entendimento, sua eleição pode se dar tanto no âmbito
do próprio Conselho de Administração, como através de Assembléia
Geral dos Acionistas, caso os membros do Conselho não logrem fazê-
lo com harmonia.
No caso presente, não só a última Ata da Reunião do Conselho de
Administração, como as notícias veiculadas pela imprensa, nos últi-
mos dias, demonstram um clima de absoluta desarmonia entre os seus
membros, que parecem não obter qualquer entendimento mínimo,
necessário ao regular funcionamento do órgão.
Assim, entendemos que a Assembléia Geral pode, legitimamente,
proceder à eleição do Presidente do Conselho.

16 NORMAN LATTIN. The Law of Corporations, New York, The Foudation Press,
1971, pg. 241.

62
Pode também a Assembléia Geral, perdurando os conflitos entre
os membros do Conselho de Administração, destituir todos eles e
proceder a uma nova eleição, na qual elegerá também o seu Presiden-
te, ou introduzirá cláusula no Estatuto Social disciplinando a matéria.
Foi o nosso entendimento, em abril de 2001.

63
DEVERES DOS ADMINISTRADORES DE S.A.
CONFLITO DE INTERESSES. DIRETOR DE S.A.
INDICADO PARA CONSELHO DE COMPANHIA
CONCORRENTE.

I-CONSULTA

Consulta-nos a COMPANHIA ALFA ("Consulente") a respeito


de questões relacionadas à existência de conflito de interesses, às
atribuições do Conselho de Administração e da Diretoria e aos deve-
res e responsabilidades dos administradores e controladores da COM-
PANHIA ALFA.
Para tanto, informa-nos a Consulente que:

• A COMPANHIA ALFA é controlada por acordo de voto, conforme


Acordo de Acionistas celebrado entre os Grupos X, Y, Z e W;
• A participação de cada um dos acionistas controladores no capital
votante da COMPANHIA ALFA está assim distribuída:

o Grupo X 28,0%
o Grupo Y 28,0%
o Grupo Z 28,0%
o Grupo W 12,0%

• Em decorrência de negociação já anunciada, a posição acionária do


Grupo Z estará sendo transferida para COMPANHIA BETA;
• A COMPANHIA BETA, como é de amplo conhecimento, é concor-
rente da COMPANHIA ALFA, tanto no mercado nacional como no
internacional;
• Com a aquisição de ações em quantidade equivalente a 28% do
capital votante da COMPANHIA ALFA, a COMPANHIA BETA
estará obrigada a aderir ao existente Acordo de Acionistas, passando
a integrar o grupo de controle;

65
• Participando do grupo de controle, à COMPANHIA BETA estará
assegurado o direito de indicar três (3) dos dez (1 O) membros do
Conselho de Administração da COMPANHIA ALFA;
• A COMPANHIA BETA já remeteu a lista das pessoas que ela
pretende indicar para integrar o Conselho de Administração COM-
PANHIA ALFA, sendo os três indicados integrantes da Diretoria da
COMPANHIA BETA;
• Como integrantes do Conselho da COMPANHIA ALFA, os mem-
bros indicados pela COMPANHIA BETA poderão ter acesso a
informações estratégicas que são relevantes tanto para a COMPA-
NHIAALFA quanto para a COMPANHIA BETA;
• Vindo os Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA a ter
acesso a determinadas informações confidenciais/estratégicas da
COMPANHIA ALFA, poderiam eles eventualmente estar em oposi-
ção aos interesses da própria COMPANHIA ALFA e do restante da
comunidade acionária desta."

Feitas estas considerações e encaminhando-nos os documentos


pertinentes, formula a Consulente os seguintes quesitos:

"(i) Em face das circunstâncias acima perfiladas, pode um membro


da diretoria da COMPANHIA BETA vir a integrar o Conselho de
Administração da COMPANHIA ALFA?
(ii) Diante das regras legais e regulamentares acerca de conflito de
interesses e do dever de lealdade, bem como daquelas norteadoras da
livre concorrência, e em razão da ordinária discussão, no âmbito do
Conselho de Administração da COMPANHIA ALFA, de matérias de
elevada relevância estratégica, tanto para a COMPANHIA ALFA e
seus clientes quanto para a COMPANHIA BETA, é correto o enten-
dimento de que tais circunstâncias seriam passíveis de configurar
conflito de interesse e, como tal, capazes de redundar em lesão à com-
panhia, a seus acionistas e ao mercado?
(iii) Poderiam a Assembléia Geral ou o Conselho de Administração
da COMPANHIA ALFA adotar uma política de divulgação de
informações que preservasse aquelas consideradas como estratégicas,
vedando à Diretoria sua divulgação até mesmo ao próprio Conselho
de Administração e ao Conselho Fiscal, conforme fosse o caso?
(iv) Que postura deveriam adotar os Diretores da COMPANHIA
ALFA e os demais membros do Conselho, na hipótese de virem os
Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA a exigir que lhes
sejam fornecidas informações que a Diretoria repute confidenciais/es-
tratégicas?

66
(v) Seria legalmente defeso aos administradores da COMPANHIA
ALFA discutir ou permitir que se discutisse no Conselho, diante de
Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA, assuntos que se-
jam estratégicos para a COMPANHIA ALFA? Estaria a Diretoria,
por outro lado, infringindo algum preceito legal ou regulamentar na
hipótese de divulgar informação a determinado grupo de acionistas
em detrimento da coletividade acionária, notadamente os acionistas
minoritários?
(vi) Qual deveria ser o procedimento dos administradores da COM-
pANHIA ALFA para evitar os riscos de serem questionados por divul-
gação de informação privilegiada a determinado grupo de acionistas?
(vii) Seria a Diretoria da COMPANHIA ALFA passível de alguma
sanção legal pelo fato de divulgar aos Conselheiros indicados pela
COMPANHIA BETA informações estratégicas da COMPANHIA
ALFA?
(viii) Poderiam os administradores e controladores da COMPA-
NHIA ALFA vir a ser responsabilizados na hipótese de informações
divulgadas aos Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA se-
rem por ela utilizadas para afetar adversamente a COMPANHIA
ALFA? A intenção de prejudicar teria que ser provada, ou qualquer
suspeita poderia levar um minoritário, por exemplo, a esse tipo de
questionamento?
{ix) Vindo a utilização de informação privilegiada a provocar perda
de valor da COMPANHIA ALFA no mercado acionário em relação
ao valor da COMPANHIA BETA, poderiam os acionistas minoritá-
rios por isso responsabilizar os administradores ou controladores da
COMPANHIA ALFA?"

li-PARECER

As questões apresentadas referem-se à caracterização de conflito


de interesses, às atribuições do Conselho de Administração e da Dire-
toria e aos deveres e responsabilidades dos administradores e contro-
ladores da COMPANHIA ALFA.
Visando a exposição ordenada e sistemática da matéria, desenvol-
veremos o presente Parecer com base na análise dos seguintes tópicos:
a) deveres dos administradores;
b) conflito de interesses;
c) responsabilidades dos administradores;
d) abuso de poder e responsabilidade dos controladores; e
e) resposta aos quesitos.

67
A) DEVERES DOS ADMINISTRADORES

A. I) DEVER DE DILIGÊNCIA

O artigo 153 da Lei das S.A. trata do dever de diligência, estabe-


lecendo que o administrador deve desempenhar suas funções com o
cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo emprega na
administração do seu próprio negócio.
Trata-se de um padrão geral de conduta, cujo fulcro está no de-
sempenho da função de administrador, que deve ser voltado para a
consecução do objeto da companhia.
O dever de diligência, de acordo com o moderno direito societá-
rio, não pode mais ser o entendido simplesmente como o cuidado do
bom pai de família. Atualmente, para se verificar se um administrador
observou o dever de diligência é preciso comparar, hipoteticamente,
sua atuação com o de um bom administrador de empresas. Ou seja,
avaliar, caso a caso, qual seria a atitude recomendável, naquelas cir-
cunstâncias específicas, naquele tipo de negócio, de acordo com as
normas da ciência da administração de empresas.
Neste sentido, destaca-se a Lei alemã (AktG) de 1965 que deter-
mina, em seu art. 93, que "os membros da direção devem dar à sua
gestão os cuidados de um administrador competente e consciencioso"
(destacamos).
Assim, espera-se que os administradores não cometam graves er-
ros de julgamento; porém, na medida em que tenham empregado o
cuidado e a diligência de um administrador de empresas competente,
não podem ser responsabilizados pelo insucesso do empreendimento.

A.2) FINALIDADE DAS ATRIBUIÇÕES E DESVIO DE


PODER

Nos termos do artigo 154 da Lei das S.A., o administrador deve


exercer suas atribuições para lograr os fins e no interesse da compa-
nhia, "satisfeitas as exigências do bem público e da função social da
empresa". Assim, o administrador deve alcançar os fins da companhia,
ou seja, seu escopo lucrativo.
O parágrafo 1° do artigo 154 estabelece um dever ético-social da
maior relevância, notadamente para os representantes de acionistas
minoritários: o administrador eleito por determinado grupo ou classe
de acionistas tem os mesmos deveres que os demais, não podendo
sacrificar os interesses da companhia para beneficiar os interesses de

68
seus eleitores. Desse modo, os interesses da sociedade estarão sempre
acima das pretensões de grupos ou classes de acionistas.
A Lei veda ao administrador, no parágrafo 2° do art. 154:
a) a prática de atos de liberalidade, que são aqueles que, embora
onerosos para a companhia, não lhes trazem qualquer retorno lucrati-
vo, não sendo considerados atos de liberalidade, porém, aqueles atos
gratuitos razoáveis, realizados em benefício dos empregados (assistên-
cia médica, alimentar, educacional, etc.) ou da comunidade (auxílio
em empreendimentos culturais, artísticos, assistenciais, etc.);
b) sem prévia autorização da Assembléia Geral ou do Conselho de
Administração, o empréstimo de bens ou recursos da companhia, a
utilização, em proveito próprio, de sociedade em que tenha interesse,
ou de terceiros, os seus bens, serviços ou créditos; e
c) sem expressa autorização do Estatuto ou da Assembléia Geral,
o recebimento de qualquer modalidade de vantagem pessoal, direta
ou indireta, em razão do exercício de seu cargo.

A.3) DEVER DE LEALDADE

O administrador deve servir à companhia com lealdade, sendo-lhe


vedado: usar em benefício próprio ou de outra pessoa, com ou sem
prejuízo para a sociedade, as oportunidades comerciais de que tenha
conhecimento em razão do exercício de seu cargo; omitir-se no exer-
cício ou proteção de direitos da companhia, ou, visando a obtenção de
vantagens, deixar de aproveitar oportunidade de negócios de interesse
da companhia; adquirir, para revenda com lucro, bem ou direito que
sabe necessário à companhia, ou que esta pretenda adquirir.
A Lei das S .A. igualmente veda a prática do "insider trading", ao
estabelecer, no artigo 155, parágrafo 1°, que o administrador deve
guardar sigilo sobre qualquer informação relevante da companhia,
obtida em razão de seu cargo, sendo-lhe proibido valer-se da informa-
ção para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante a compra
ou venda de valores mobiliários.
O artigo 15 5, parágrafo l 0 , deve ser interpretado conjuntamente
com o disposto no parágrafo 4 ° do artigo 15 7, que trata do dever de
informar (disclosure), mais adiante analisado.
Da leitura conjunta dos dois dispositivos, resulta claro que a lei
seguiu o padrão normativo do direito norte-americano, referente ao
dever do "insider" de divulgar ou abster-se de utilizar a informação
em proveito próprio (" disclosure ar refrain from trading"). Assim,
estando o administrador na posse de informação relevante, sua obriga-

69
ção fundamental é revelá-la ao público, em obediência ao princípio
fundamental do "disclosure". É possível, porém, que tal informação
possa pôr em risco interesse legítimo da companhia (artigo 15 7, pará-
grafo 5°). Nesse caso, enquanto a informação não for publicamente
divulgada, o "insider" está proibido de utilizá-la em proveito próprio,
comprando ou vendendo valores mobiliários da companhia, ou reco-
mendando a terceiros que o façam.
O dever de informar e o correlato dever de lealdade dizem respei-
to a informações referentes a decisões ou fatos ocorridos nos negócios
da empresa.

A.4) DEVER DE INFORMAR

A Lei das S .A. estabelece para o diretor e para o membro do


Conselho de Administração (não para os membros do Conselho Fis-
cal) o dever de informar, nos termos do art. 15 7. Tal dever de "disclo-
sure" existe com relação à própria companhia e seus acionistas mino-
ritários e, no caso da companhia aberta, com relação ao mercado e
investidores em geral.
Ao assumir seu cargo, o administrador deve informar o número de
ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures
conversíveis de ações, emitidas pela companhia, por sociedades por
ela controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular.
O preceito contido no caput do art. 15 7 da Lei das S .A. visa a
facilitar o combate ao "insider trading". Diversamente do que ocorre
na legislação sobre "securities" norte-americana, não existe proibição
à venda, pelo administrador, de tais títulos dentro de um período de
tempo determinado. No direito norte-americano, proíbem-se aos ad-
ministradores a compra e venda dos títulos de emissão da companhia
dentro de um período de seis meses. Entre nós, não há tal proibição;
o administrador pode, legitimamente, comprar e vender ações de
emissão da companhia, desde que não esteja de posse de informação
confidencial e relevante sobre a companhia.
O administrador pode ainda ser obrigado a revelar à Assembléia
Geral, a pedido de acionistas que representem pelo menos 5% do
capital social: o número de valores mobiliários emitidos pela compa-
nhia, companhia por ela controlada ou do mesmo grupo, que tiver
adquirido ou alienado, direta ou indiretamente no exercício anterior;
as opções de compra de ações que tiver contratado ou adquirido no
exercício anterior; os benefícios ou vantagens que tenha recebido ou
esteja recebendo da companhia ou de sociedades coligadas, controla-

70
das, ou do mesmo grupo; as condições dos contratos de trabalho fir-
mados pela companhia com diretores e empregados de alto nível;
quaisquer atos ou fatos relevantes nos negócios da companhia.
Com relação ao dever de informar o mercado, a Lei estabelece que
o administrador da companhia aberta deve comunicar imediatamente
à Bolsa e divulgar pela imprensa qualquer deliberação da Assembléia
Geral ou dos órgãos de administração, de qualquer fato relevante
ocorrido nos negócios da companhia, que possa influir, de modo pon-
derável, na decisão dos investidores de comprar ou vender os valores
mobiliários emitidos pela companhia.
Nos termos do artigo 1° da Instrução CVM n° 31!84\ considera-
se relevante qualquer deliberação da Assembléia Geral ou dos órgãos
de administração da companhia aberta ou qualquer outro ato ou fato
ocorrido nos seus negócios que possa influir de modo ponderável:
I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia
aberta; ou
11 - na decisão dos investidores em negociar com aqueles valores
mobiliários; ou
Ill - na determinação de os investidores exercerem quaisquer
direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos
pela companhia.
Os administradores poderão recusar a prestação de informações
ou deixar de divulgá-las, se entenderem que sua revelação trará risco
a interesse legítimo da companhia. Em tal hipótese, devem os admi-
nistradores informar a CVM, solicitando-lhe sigilo e requerendo-lhe a
dispensa da divulgação, dada a natureza das informações confiden-
ciais.

B) CONFLITO DE INTERESSES

Na esfera do direito societário, verifica-se tradicionalmente a


existência de normas que tratam do conflito de interesses, quer do
acionista controlador ou do administrador da companhia, quer no caso
de exercício do direito de voto.
Deve-se distinguir o conflito formal do conflito substancial de
interesses.

I Nota do Autor: A Instrução CVM n° 31!84 foi revogada pela CVM n° 358/2002.
Vide art. 2° da referida Instrução.

71
Haverá conflito substancial de interesses ou conflito de interesses
stricto sensu, quando o voto é utilizado com desvio de finalidade, para
promover interesses incompatíveis do acionista com o objeto sociaF.
Caracteriza-se o desvio de finalidade quando o acionista, embora
observando as formalidades do voto e não cometendo violação alguma
expressa em lei ou no estatuto, exerce esse direito com uma finalida-
de diversa daquela para a qual lhe foi por lei conferido.
Portanto, a discricionariedade do acionista no exercício do voto
tem no interesse social o seu limite.
Tem-se, assim, a configuração do conflito substancial de interes-
ses quando o voto é exercido com desvio de finalidade, não atenden-
do, por conseguinte, ao interesse social, em desrespeito aos princípios
da boa fé e da lealdade.
Dessa forma, ao exercer o seu direito de voto, o acionista deve
sempre observar o interesse social em detrimento dos interesses indi-
viduais que possam ser com ele incompatíveis, exercendo-o sempre
uti socii e não uti singuli.
Já o conflito formal de interesses ou conflito de interesses lato
sensu é aquele que existe em todo negócio jurídico bilateral ou unila-
teral, em que o acionista e a sociedade são as partes contratantes.
O contrato bilateral pressupõe que as partes contratantes pos-
suam interesses diversos. O princípio é que não pode o acionista, que
é parte contratante, formar a vontade da outra parte, a companhia. O
conflito formal advém, portanto, da própria natureza do negócio bila-
teral. O conflito é pressuposto da formação dessas relações contra-
tuais entre a companhia e seu acionista.
Na formação da vontade das partes contratantes não pode haver
confusão das pessoas. Assim, sempre haverá conflito formal no pressu-
posto que os benefícios são eqüitativos para a sociedade e para seu acio-
nista, que são as partes contrapostas no negócio jurídico respectivo.
No conflito formal ou lato sensu, o impedimento do exercício do
direito de voto tem como fundamento a existência de uma relação
contratual de natureza unilateral ou bilateral, envolvendo o acionista e
a sociedade.
Diferentemente, no conflito de interesses substancial ou stricto
sensu, o interesse do acionista não é licitamente contrastante, mas
contrário ao interesse da sociedade.

2 DOMINIQUE SCHMIDT. Les droits de la minorité dans la société anonyme.


Paris: Librairie Sirey, 1970, p. 48 e s.

72
O conflito substancial pode relacionar-se com o interesse próprio ou
alheio, como será o caso de beneficiar ilicitamente uma sociedade con-
corrente na qual o acionista tenha um interesse maior do que aquele que
possui na sociedade onde está votando. Será ilícito o voto do acionista
nesse caso porque sacrifica o interesse da sociedade em benefício de ou-
tra. Haverá, no caso, nítido desvio de finalidade de voto.
Idêntica é a situação do administrador da sociedade anônima, no
que toca à caracterização do conflito de interesse. A matéria está
expressamente disciplinada no art. 156 da Lei das S .A, que assim
dispõe:

"Art. 156- É vedado ao administrador intervir em qualquer opera-


ção social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem
como na deliberação que a respeito tomarem os demais administrado-
res, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consig-
nar, em ata da reunião do conselho de administração ou da diretoria,
a natureza e extensão de seu interesse".

Ou seja, o administrador está proibido de intervir em operação


social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, sendo
considerados conflitantes os interesses quando o atendimento de um
importa o sacrifício total ou parcial do outro.
Dessa forma, de acordo com a legislação societária, quando o inte-
resse do administrador conflita com o da companhia, deve ele se abs-
ter de participar da deliberação que for tomada, cientificar os demais
administradores e fazer constar da ata o seu impedimento.

C) RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES

Conforme já tivemos a oportunidade de analisar 3, a responsabili-


dade dos administradores de Companhia Aberta deve ser sempre exa-
minada tendo em vistas as funções por eles exercidas na gestão da
companhia.
A partir de tal princípio, pode-se estabelecer a responsabilidade
dos administradores nos seguintes termos:
a) enquanto a responsabilidade dos diretores é individual, os
membros do Conselho de Administração, cuja vontade somente pode

3 C f. o nosso Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais. Rio de Janeiro:


Forense, 1987. p. 94 e ss.

73
ser manifestada de forma coletiva, tem uma responsabilidade coletiva
e solidária;
b) nas decisões do Conselho de Administração, a responsabilidade
será sempre de todos os membros, salvo se os discordantes fizerem
consignar sua divergência em ata de reunião do órgão;
c) os membros do Conselho de Administração não são responsá-
veis pelos atos ilegais praticados pelos diretores e que não chegam a
seu conhecimento, salvo se forem coniventes, se negligenciarem em
descobri-los, ou se, deles tendo conhecimento, deixarem de agir para
impedir a sua prática;
d) os membros do Conselho de Administração são responsáveis
pela eleição de diretor cuja inidoneidade poderia ter sido então apura-
da, bem com pela manutenção no cargo de diretor manifestamente
incompetente ou inidôneo.
Nos termos do art. 158, inciso I da Lei das S.A., o administrador
é civilmente responsável pelos prejuízos que causar quando, embora
procedendo dentro de suas atribuições, atuar com culpa ou dolo. Tra-
ta-se, no caso, da responsabilidade subjetiva. O autor da ação, para
obter o ressarcimento, deve provar: a) o dano; b) a conduta ilegal do
administrador; c) o nexo de causalidade entre o dano e a conduta
ilegal; e d) o dolo ou a culpa.
O administrador pode ser civilmente responsabilizado, também,
quando procede com violação da lei ou do estatuto. Há, no caso, uma
inversão do ônus de prova, presumindo-se a sua culpa. Se o adminis-
trador viola a lei ou o Estatuto, o autor da ação de responsabilidade
civil deve provar os elementos a, b e c acima listados (dano, ato ilegal
e nexo de causalidade). A presunção de culpa do administrador, po-
rém, não é absoluta, admitindo prova em contrário; cabe ao adminis-
trador, para eximir-se da responsabilidade, provar que não agiu dolosa
ou culposamente.
Do ato do administrador, praticado dentro de suas atribuições ou
poderes, com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto,
podem ocorrer prejuízos para a companhia ou para terceiros.
No caso de prejuízos causados ao patrimônio da companhia, deve
esta mover-lhe ação de responsabilidade civil, nos termos do artigo
159, após deliberação da Assembléia Geral. Trata-se da ação social"ut
universi", intentada diretamente pela companhia contra o administra-
dor, visando fundamentalmente a restabelecer o equilíbrio interno da
empresa. O administrador contra o qual deve ser proposta a ação
social fica impedido, ocorrendo sua substituição na mesma assembléia
que aprovar a proposição da referida ação (artigo 159, parágrafo 2°).

74
Uma vez deliberada a proposição da ação, se não for ela promovida no
prazo de três meses, qualquer acionista da companhia poderá fazê-lo
(art. 159, parágrafo 3°).
Quando o ato do administrador causa danos não à companhia, mas
a acionista ou a terceiro, o prejudicado pode mover-lhe diretamente a
ação de responsabilidade civil (art. 159, parágrafo 7°).

D) ABUSO DE PODER DE CONTROLE E


RESPONSABILIDADE DOS CONTROLADORES

O administrador, de acordo com o número e espécie de valores


mobiliários de que é titular, pode ter também a posição de acionista
controlador da companhia. Nesta hipótese, além dos deveres atribuí-
dos aos administradores, acumulará os deveres próprios de acionistas
controladores, conforme determina o § 3o do art. 117 da LSA.
A tendência contemporânea da visualização da companhia, parti-
cularmente da grande empresa, como instituição, realça a importância
da disciplina legal do exercício do poder, seja de controle acionário,
seja de gestão profissional. Com efeito, o poder, na companhia, deve
ser exercido sempre com vista ao interesse social; daí o estabeleci-
mento de uma série de limites, visando a impedir que seja ele direcio-
nado para o atendimento de interesses do acionista controlador, ou
dos administradores profissionais.
Nesse sentido, o parágrafo único do art. 116 da Lei das S.A. dispõe
expressamente que:

"O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a


companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empre-
sa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atue,
cujos direitos deve lealmente respeitar e atender".

O parágrafo 1° do art. 117 da Lei das S.A. enumera, exemplifica-


tivamente, as modalidades de abuso de poder de controle. Nos termos
da sua alínea a, considera-se abusivo o comportamento do acionista
controlador que leva a companhia a favorecer outra sociedade, em
prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no
acervo da companhia. Já a alínea c do parágrafo 1° do art. 117 da Lei
das S.A. considera modalidade de abuso de poder de controle "promo-
ver alterações estatutárias, emissão de valores mobiliários ou adoção
de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da com-

75
panhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que
trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emi-
tidos pela companhia". (destacamos)

E) RESPOSTAS AOS QUESITOS

1° QUESITO

"Em face das circunstâncias acima perfiladas, pode um mem-


bro da diretoria da COMPANHIA BETA vir a integrar o Conselho
de Administração da COMPANHIA ALFA?"

RESPOSTA

Considerando que os administradores das companhias:


a) devem exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhes confe-
rem com o intuito de "lograr os fins" da companhia;
b) devem atuar tendo em vista o interesse social e não seus pró-
prios interesses ou o de seus eleitores;
c) são proibidos de se omitir no exercício ou na proteção dos
direitos da companhia, pois, neste caso, estariam descumprindo seu
dever de diligência;
d) não podem deixar de aproveitar as oportunidades de negócios
no interesse da companhia;
e) são proibidos de intervir em operação social em que houver
interesse (próprio ou de terceiro) conflitante com o da companhia;
Tendo em vista que a COMPANHIA ALFA e a COMPANHIA BETA
atuam no mesmo segmento de atividades sendo, portanto, concor-
rentes diretas, que disputam o mesmo mercado, entendemos que o
exercício do cargo de diretor de uma delas (COMPANHIA BETA) é
absolutamente incompatível com o desempenho da função de conse-
lheiro em outra (COMPANHIA ALFA), uma vez que a observância
de deveres para com uma das companhias implicará no desrespeito de
deveres para com a outra.
Com efeito, a quem um diretor da COMPANHIA BETA que
fosse membro do Conselho de Administração da COMPANHIA
ALFA deveria oferecer a oportunidade de um negócio? Qual interesse
social que deveria ele buscar preservar?
Ora, se ele cumprisse seu dever de atuar no interesse social de
uma das duas companhias, estaria descumprindo seu dever de zelar
para que a outra não desperdiçasse uma oportunidade de negócios ou,

76
caso não revelasse a uma delas a oportunidade surgida, estaria se omi-
tindo no seu dever de diligência e de lealdade, beneficiando a outra
companhia. Dessa forma, todo o atuar do administrador estaria bene-
ficiando uma companhia em detrimento da outra.
Trata-se, inequivocamente, de situação em que resta configurada
a existência de conflito de interesses substancial, uma vez que a satis-
fação do interesse de uma implicaria no prejuízo do interesse de outra.
Ressalte-se que uma das preocupações do Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa, ao elaborar o Código das Melhores Práticas
de Governança Corporativa, foi a de prevenir situações de conflitos
de interesses. Os seus itens 6.03 e 6.04 tratam especificamente da
questão, nos seguintes termos:

"6.03. Conflito de interesses


Existe um conflito de interesses quando alguém não é independente
em relação à matéria em pauta e a pessoa em questão pode influen-
ciar ou tomar decisões correspondentes. Algumas definições de
independência têm sido dadas para conselheiros de administração e
para auditores independentes. Critérios similares valem para direto-
res ou qualquer empregado ou representante da empresa. Preferivel-
mente a pessoa em questão deve manifestar seu conflito de interesses.
Se isso não acontecer, qualquer outra pessoa pode fazê-lo." (destaca-
mos)
"6.04. Afastamento das discussões e deliberações
Tão logo um conflito de interesses tenha sido identificado em relação
a um tema específico, a pessoa em questão deve afastar-se, inclusive
fisicamente, das discussões e deliberações. O afastamento temporário
deve ser registrado em ata ou de outra forma."

O Código, em seu item 2.10, trata da qualificação do Conselheiro


de Administração, tendo estabelecido que o conselheiro deve ter,
dentre outras qualidades, ausência de conflito de interesses e dispo-
nibilidade de tempo.
Ou seja, além da hipótese de acumulação das funções de diretor
da COMPANHIA BETA e conselheiro da COMPANHIA ALFA con-
figurar uma situação de conflito de interesses substancial, faltaria a tal
conselheiro o requisito de disponibilidade de tempo, tendo em vista
que o cargo de diretor de uma companhia do porte da COMPANHIA
BETA provavelmente exige dedicação integral.
Por outro lado, como as reuniões do Conselho de Administração
das Companhias são esporádicas, a função de conselheiro não será

77
necessariamente a ocupação principal de seus membros. A Lei das
S.A. admite que os conselheiros acumulem atividades; no entanto, sua
ocupação principal deve ser compatível com o exercício da função.
O Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa cui-
dou, também, desta questão, prevendo que:

"2.13. Mudança da ocupação principal do conselheiro


A ocupação principal do conselheiro é um dos fatores importantes em
sua escolha. Quando tem sua ocupação principal mudada, o conse-
lheiro deve colocar o cargo à disposição. O comitê de indicação deve
analisar a conveniência de propor sua reeleição."

Ou seja, o Código, ao estabelecer que haverá o exame da conve-


niência de proceder à reeleição de antigo conselheiro cujo cargo foi
colocado à disposição em virtude de alteração de sua ocupação princi-
pal, está admitindo, a contrário senso, que pode não ser conveniente
para a companhia que uma pessoa que exerça determinada atividade
seja membro de seu Conselho de Administração.
Dessa forma, diante da impossibilidade de uma mesma pessoa
observar os deveres que lhe foram impostos por lei em relação a duas
companhias concorrentes - o que comprova a existência de situação
típica de conflito de interesses - concluímos que um membro da
diretoria da COMPANHIA BETA não poderia vir a integrar o Conse-
lho de Administração da COMPANHIA ALFA.

2° QUESITO

"Diante das regras legais e regulamentares acerca de conflito de


interesses e do dever de lealdade, bem como daquelas norteadoras da
livre concorrência, e em razão da ordinária discussão, no âmbito do
Conselho de Administração da COMPANHIA ALFA, de matérias de
elevada relevância estratégica, tanto para a COMPANHIA ALFA e
seus clientes quanto para a COMPANHIA BETA, é correto o entendi-
mento de que tais circunstâncias seriam passíveis de configurar confli-
to de interesse e, como tal, capazes de redundar em lesão à companhia,
a seus acionistas e ao mercado?"

RESPOSTA

Tendo em vista que a COMPANHIA ALFA e a COMPANHIA


BETA atuam no mesmo segmento de negócios e que nas reuniões do

78
Conselho da COMPANHIA ALFA podem vir a ser discutidas maté-
rias estrategicamente relevantes para ambas as companhias- COM-
PANHIA ALFA e COMPANHIA BETA- entendemos que tais cir-
cunstâncias deixam latente a existência de conflitos de interesses, que
poderiam, eventualmente, redundar em prejuízos para a Consulente,
seus acionistas e ao mercado em geral.

3° QUESITO

"Poderiam a Assembléia Geral ou o Conselho de Administra-


ção da COMPANHIA ALFA adotar uma política de divulgação de
informações que preservasse aquelas consideradas como estraté-
gicas, vedando à Diretoria sua divulgação até mesmo ao próprio
Conselho de Administração e ao Conselho Fiscal, conforme fosse
o caso?"

RESPOSTA

Nada obsta que o Conselho de Administração, no exercício de sua


autonomia privada, adote uma política de prestação de informações
que, de alguma forma, preserve aquelas consideradas estratégicas e
cuja divulgação prematura poderia resultar em danos para a compa-
nhia.
Tal "política" poderia, por exemplo, estar consubstanciada em um
Regimento Interno.
Aliás, não apenas não há impedimento para a adoção de quaisquer
normas internas que regulem o funcionamento regular da companhia
e de seus órgãos, como é até recomendável que regras deste tipo
sejam criadas.
Neste sentido, o Código das Melhores Práticas de Governança
Corporativa, após estabelecer que Conselho de Administração deve
"proteger o patrimônio e maximizar o retorno do investimento dos pro-
prietários, agregando valor ao empreendimento", bem como "zelar
pela manutenção dos valores da empresa, crenças e propósitos dos pro-
prietários, discutidos, aprovados e revistos" em suas reuniões (item
2.02.), prevê a criação não apenas de Regimento Interno do Conselho
de Administração, como também de Código de Ética da companhia,
in verbis:

"2.03 - ( .. .)As atividades de competência do conselho de adminis-


tração devem estar normatizadas em um regimento interno, tornando

79
claras suas responsabilidades e atribuições, e prevenindo situações
de conflito com a diretoria executiva, notadamente com o executivo
principal (CEO).
O Conselho aprova o Código de Ética da empresa." (destacamos)

Assim, poderia o Conselho de Administração estabelecer uma po-


lítica que protegesse a confidencialidade das informações estratégicas
em um Regimento Interno no qual fosse previsto um procedimento
próprio para a solicitação de informações.
As informações estratégicas, mantidas sob sigilo, devem ser, de
certa forma, protegidas de eventuais violações, uma vez que seu valor
encontra-se relacionado às vantagens competitivas que podem pro-
porcionar à COMPANHIA ALFA em relação aos seus concorrentes.
São, ainda, extremamente valiosas as informações relacionadas
aos segredos de fábrica e de negócios pertencentes à COMPANHIA
ALFA.
Ainda que caracterizem segredos de negócios ou segredos de fá-
brica, não poderão os diretores da COMPANHIA ALFA fazer qual-
quer distinção quando da prestação destas informações aos conselhei-
ros, quer sejam eles indicados ou não pela COMPANHIA BETA.
Por outro lado, como referido neste estudo, o Conselho de Admi-
nistração é um órgão de deliberação colegiada, cuja vontade é expres-
sa mediante decisão e voto da maioria dos conselheiros.
Isto significa que neste órgão, ao contrário do que ocorre na Dire-
toria ou no Conselho Fiscal, não há possibilidade de atuação indivi-
dual de seus membros.
Tendo em vista que o Conselho de Administração constitui um
órgão colegiado, qualquer solicitação para que a Diretoria da COM-
FANHIA ALFA preste informações deve ser formulada após delibe-
ração majoritária do próprio Conselho de Administração, não sendo
possível a formulação de tal exigência por parte de seus membros
isoladamente.
Caso o Conselho de Administração delibere, por maioria, solicitar
informações à Diretoria da COMPANHIA ALFA, caberá ao Diretor
Presidente esclarecer se as matérias sobre as quais foram requeridos
esclarecimentos são relevantes ou estratégicas para a companhia, hi-
pótese em que haverá nova votação a respeito do referido requeri-
mento.
O pedido de informações deve ser encaminhado pelo Presidente
do Conselho de Administração (que estaria encarregado de manifes-
tar a vontade do órgão) ao Diretor Presidente da Companhia.

80
Poderia o Regimento Interno estabelecer, ainda, que as solicita-
ções devem ser fundamentadas, isto é, que todos os requerentes, ao
formularem quaisquer pedidos, explicitem as razões para tanto. Have-
rá assim a possibilidade do exame da pertinência do que foi solicitado.
Na realidade, este procedimento poderia ser adotado não apenas
visando à preservação de informações estratégicas da companhia (in-
clusive segredos de fábrica e de negócios), mas também como uma
política geral de funcionamento da companhia.
Como medida adicional, sugerimos que seja também adotado um
Código de Ética da Companhia, elaborado pela diretoria da compa-
nhia, como sugere o Código das Melhores Práticas de Governança
Corporativa (itens 3.05 e 6) que tratasse, dentre outros assuntos, da
prevenção de situações que caracterizem conflito de interesses.
Entre outras questões, poderia tal Código estabelecer, por exem-
plo, a obrigação de os administradores da companhia, ao tomarem
posse, aderirem expressamente ao Regimento Interno da Companhia
e firmarem um "Termo de Confidencialidade", comprometendo-se a
não utilizar as informações e dados sigilosos aos quais tenham acesso
em virtude do cargo que virem a ocupar na sociedade.
Registre-se, por fim, com relação ao Conselho Fiscal, que tal órgão
somente pode exigir da Diretoria a prestação de informações que
sejam relevantes para o desempenho de suas funções. Este entendi-
mento, outrora meramente doutrinário, foi acolhido pelo legislador
que, ao reformar a Lei das S.A., mediante a edição da Lei no
10.303/2001, expressamente consignou tal princípio na nova redação
do artigo 163, § zo da Lei societária.
Dessa forma, poderá a Diretoria legitimamente indeferir pedido
formulado por conselheiro fiscal que não seja condizente com as
atribuições que lhe foram conferidas por lei ou pelo estatuto.

4° QUESITO

"Que postura deveriam adotar os Diretores da COMPANHIA


ALFA e os demais membros do Conselho, na hipótese de virem os
Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA a exigir que
lhes sejam fornecidas informações que a Diretoria repute confi-
denciais/ estratégicas?"

RESPOSTA

Inicialmente, cumpre salientar que o Presidente do Conselho de


Administração possui o importante papel de zelar pelo regular fundo-

81
namento do órgão, supervisionar seus serviços administrativos, organi-
zando a pauta de reuniões e presidindo as mesmas.
Portanto, qualquer solicitação por um dos membros do Conselho
de Administração, quer seja ela de prestação de informações conside-
radas confidenciais/estratégicas pela Diretoria ou não, deverá ser en-
caminhada ao Presidente do referido órgão. O pedido será, então,
incluído em pauta, tendo em vista a relevância da matéria, a disponi-
bilidade de agenda, etc. e será objeto de deliberação e votação em
reunião do Conselho. Como órgão colegiado, a maioria dos Conse-
lheiros decidirá sobre a questão.
Na hipótese de os conselheiros indicados pela COMPANHIA
BETA formularem, na própria reunião do Conselho da COMPA-
NHIA ALFA, pedidos desta natureza, no caso de ausência de algum
conselheiro, poderá o Presidente decidir pela suspensão da reunião
para que todos os membros do Conselho sejam informados que haverá
discussão sobre tal assunto. Não há obrigação de ser deliberado um
assunto que não tenha sido incluído na pauta de reunião.
Registre-se que a impossibilidade de diretores da COMPANHIA
BETA integrarem o Conselho de Administração da COMPANHIA
ALFA, como referido nas respostas aos quesitos 1°. e 2°, não impede
que sejam indicadas outras pessoas pela COMPANHIA BETA para
exercerem tais funções. Trata-se de um direito que se encontra con-
signado não apenas na Lei Societária, como também no Acordo de
Acionistas, ao qual, segundo a Consulente, aderiu a COMPANHIA
BETA.
Por outro lado, o estatuto da COMPANHIA ALFA prevê que os
diretores assistirão as reuniões do Conselho sempre que convocados.
Caso exista um Regimento Interno prevendo o procedimento para a
solicitação de informações à Diretoria, nos moldes descritos na res-
posta ao quesito anterior, poderão os diretores exigir que seja ele
observado.
De qualquer forma, independentemente da existência de um Re-
gimento Interno, como o Conselho de Administração constitui um
órgão de deliberação colegiada, a Diretoria da COMPANHIA ALFA
poderá exigir que quaisquer pedidos a ela dirigidos sejam resultado de
deliberação majoritária dos conselheiros e que lhe sejam encaminha-
dos pelo Presidente do referido órgão.
Assim, não poderão os conselheiros indicados pela COMPANHIA
BETA, isoladamente, sem o apoio da maioria dos integrantes do Con-
selho de Administração da COMPANHIA ALFA, formular quaisquer
exigências, nem estão os diretores obrigados a fornecê-las.

82
Com efeito, não há subordinação do diretor ao conselheiro, mas
do diretor ao Conselho, como órgão.
Caso a solicitação dos conselheiros indicados pela COMPANHIA
BETA tenha decorrido de aprovação majoritária do Conselho de Ad-
ministração, não poderá a Diretoria se negar a prestar as informações
pertinentes.
O fato de a Diretoria ter divulgado tais dados ao Conselho não a
torna garante de sua boa utilização; em outras palavras, caso haja utili-
zação indevida por algum conselheiro das informações fornecidas pela
Diretoria não poderão ser os diretores responsabilizados. Nesta hipó-
tese, estará configurada a violação dos deveres de lealdade e de sigilo
pelos conselheiros, não estando caracterizada, em princípio, a inobser-
vância de qualquer dever legal por parte dos diretores.

5° QUESITO

"Seria legalmente defeso aos administradores da COMPA-


NHIA ALFA discutir ou permitir que se discutisse no Conselho,
diante de Conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA, as-
suntos que sejam estratégicos para a COMPANHIA ALFA? Esta-
ria a Diretoria, por outro lado, infringindo algum preceito legal
ou regulamentar na hipótese de divulgar informação a determi-
nado grupo de acionistas em detrimento da coletividade acioná-
ria, notadamente os acionistas minoritários?"

RESPOSTA

Como referido nas respostas aos quesitos anteriores, poderão os


administradores estabelecer uma política de proteção das informa-
ções estratégicas.
No entanto, não estão os administradores da COMPANHIA
ALFA proibidos de discutir ou de permitir a discussão a respeito de
questões estratégicas para a companhia. As reuniões dos órgãos da
administração e as assembléias gerais constituem o foro adequado
para a discussão de qualquer assunto que seja do interesse da compa-
nhia.
A presença de conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA
nestas ocasiões não deve impedir que sejam examinadas as matérias
de interesse social, não respondendo os administradores da COMPA-
NHIA ALFA por tal fato.

83
O que não admite a Lei é que haja distinção de tratamentos entre
os acionistas, devendo as informações ser fornecidas de maneira igua-
litária entre os mesmos, tendo em vista os deveres de lealdade e de
informar dos administradores (respectivamente, arts. 15 5 e 15 7 da
Lei das S.A), o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais dos
acionistas (art. 109, III da Lei das S.A.) e o princípio do full disclosure,
que norteia o funcionamento das companhias abertas.
Dessa forma, caso a Diretoria da COMPANHIA ALFA divulgasse
informações a um determinado grupo de acionistas em detrimento de
outros, estaria não somente infringindo os deveres de lealdade e de
informar que lhe são impostos por Lei, cerceando-lhes o direto es-
sencial de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, bem como violan-
do o princípio do disclosure, fundamental no direito do mercado de
capitais.

6° QUESITO

"Qual deveria ser o procedimento dos administradores da


COMPANHIA ALFA para evitar os riscos de serem questionados
por divulgação de informação privilegiada a determinado grupo
de acionistas?"

RESPOSTA

No direito societário, privilegiada constitui aquela informação re-


levante que é fornecida a uma determinada pessoa ou grupo antes de
sua divulgação pública.
A Lei das S .A proíbe que os administradores forneçam a outrem
tais informações relevantes, impondo, ainda, aos mesmos o dever de
impedir que ocorra o seu "vazamento".
Como referido na resposta ao quesito anterior, o princípio funda-
mental no mercado de valores mobiliários é o do disclosure ou trans-
parência, que impõe que sejam fornecidas a todos os acionistas de
companhias abertas e aos investidores de uma maneira geral todas as
informações disponíveis a respeito da companhia.
A importância do disclosure é baseada, conforme já tivemos opor-
tunidade de observar 4 , na presunção de que, uma vez adequadamente

4 Cf. nosso Questões de direito societário e mercado de capitais. Rio de Janeiro:


Forense, 1987. p. 62 e ss.

84
provido das informações relevantes sobre a companhia e sobre os títu-
los que está ela a emitir, o investidor tem condições de avaliar o méri-
to do empreendimento e a qualidade dos papéis.
O postulado básico da regulação do mercado de capitais, assim, é
de que o investidor estará protegido na medida em que lhe sejam
prestadas todas as informações relevantes a respeito das companhias
com os títulos publicamente negociados.
O disclosure, em suma, "garante a todos os investidores oportu-
nidades iguais na negociação" 5, na medida em que possibilita que
todos tenham acesso às informações relevantes a respeito dos negó-
cios sociais ao mesmo tempo, com igualdade de condições de avaliar,
com conhecimento de causa, a propriedade da realização de negócios
com valores mobiliários de emissão das companhias abertas.
O disclosure impede, também, a ocorrência de insider trading; a
norma que estabelece a punição à prática do insider trading tem como
objetivo vedar que apenas um grupo de pessoas, que conhecem a
intimidade da companhia, em função do cargo que possuem ou das
funções que exercem junto às mesmas, se beneficiem das informações
privilegiadas aos quais tiveram acesso. Sob este aspecto, o dever de
informar consiste em um desdobramento do dever de lealdade.
Dessa forma, para evitar riscos de serem questionados por divul-
gação de informação privilegiada a determinado grupo de pessoas,
deverão os diretores da COMPANHIA ALFA conferir tratamento
igualitário a todos os acionistas, não divulgando informações a um
grupo de acionistas antes dos demais.

7°QUESITO

"Seria a Diretoria da COMPANHIA ALFA passível de alguma


sanção legal pelo fato de divulgar aos Conselheiros indicados
pela COMPANHIA BETA informações estratégicas da COMPA-
NHIA ALFA?"

RESPOSTA

A diretoria da COMPANHIA ALFA, como mencionado anterior-


mente, tem obrigações perante o Conselho de Administração como

5 FÁBIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial. vol2. São Paulo: Sarai-
va, 1999. p. 246.

85
órgão e não perante os conselheiros individualmente considerados.
Assim, não poderá a diretoria da COMPANHIA ALFA estabelecer
tratamento diferenciado para determinados conselheiros, em detri-
mento de outros, nem deixar de fornecer alguma informação, ainda
que estratégica, aos conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA
que tenha sido divulgada aos demais membros do Conselho.
Ainda que as informações estratégicas configurem verdadeiros se-
gredos de negócio, devem ser divulgadas a todos os membros do Con-
selho de Administração ao mesmo tempo.
Não poderá a diretoria da COMPANHIA ALFA vir a responder
por cumprir um dever que lhe é imposto - prestar as informações
relevantes sobre o andamento das atividades da companhia ao órgão
Conselho de Administração.
Por outro lado, a Lei das S.A. impõe que todos os administradores
observem os deveres previstos nos seus artigos 153 a 15 7.
Isso significa que, nos termos do artigo 154 da LSA, caput, os
conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA devem exercer as
atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no
interesse da companhia. Exige, ainda, a lei que sejam atendidas as
exigências do bem público e da função social da empresa.
O artigo 154, § 1° do da LSA estabelece, ademais, que o adminis-
trador eleito por determinado grupo ou classe de acionistas tem, para
a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo sacrifi-
car os interesses sociais para beneficiar os interesses de seus eleitores.
Vale dizer, a Lei impõe que a atuação dos administradores deve
visar a atingir os interesses da sociedade, os quais terão sempre preva-
lência sobre os interesses pessoais dos administradores e de quem os
tenha eleito.
Os conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA possuem o
dever legal de agirem visando à consecução dos fins da companhia -
a COMPANHIA ALFA-, considerando sempre os interesses sociais
e não seus interesses próprios e os interesses da COMPANHIA BETA
que os elegeu.
O administrador deve, também, servir à companhia com lealdade,
sendo-lhe vedado, por exemplo, usar em benefício próprio ou de ou-
tra pessoa, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades
comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu
cargo; ou omitir-se no exercício ou proteção de direitos da compa-
nhia, ou, visando a obtenção de vantagens, deixar de aproveitar opor-
tunidade de negócios de interesse da companhia (art. 15 5, I e 11 da Lei
das S.A.).

86
Está o administrador proibido de omitir-se no exerCICio ou na
proteção de direitos da companhia, pois neste caso estará ele descum-
prindo o seu dever de diligência, expressamente consignado no art.
153 da Lei das S.A.
Nos temos do art. 156, caput da Lei das S.A., o administrador está
proibido de intervir em qualquer operação social em que tiver interes-
se conflitante com o da companhia.
Trata-se de um dever de se abster que decorre do dever de lealda-
de previsto no art. 155 da Lei das S.A. São considerados conflitantes
os interesses quando o atendimento de um importa o sacrifício total
ou parcial do outro.
Quando o interesse do administrador conflita com o da sociedade,
deve ele abster-se de participar da deliberação que for tomada, cienti-
ficar os demais administradores e fazer constar da ata o seu impedi-
mento.
Tendo em vista tais deveres, que devem ser observados por todos
os administradores da COMPANHIA ALFA, inclusive pelos conse-
lheiros indicados pela COMPANHIA BETA, conclui-se que a direto-
ria da COMPANHIA ALFA não pode sofrer sanção alguma pelo fato
de ter divulgado também aos mesmos informações estratégicas que
foram fornecidas aos demais membros do Conselho de Administração
da COMPANHIA ALFA.
Por outro lado, caso tais informações sejam utilizadas de maneira
inadequada por quaisquer administradores, em desrespeito aos deve-
res de lhes são impostos, em especial, o dever de lealdade, poderão ser
os mesmos responsabilizados, nos termos dos artigos 158 e 159 da Lei
das S.A..
Saliente-se, ainda, que haverá também violação ao dever de leal-
dade se os administradores não apenas se utilizarem indevidamente
dos segredos de negócios, como também dos segredos de fábrica da
COMPANHIA ALFA.

8° QUESITO

"Poderiam os administradores e controladores da COMPA-


NHIA ALFA vir a ser responsabilizados na hipótese de informa-
ções divulgadas aos Conselheiros indicados pela COMPANHIA
BETA serem por ela utilizadas para afetar adversamente a COM-
pANHIA ALFA? A intenção de prejudicar teria que ser provada,
ou qualquer suspeita poderia levar um minoritário, por exemplo,
a esse tipo de questionamento?"

87
RESPOSTA

Pelos motivos expostos na resposta ao quesito anterior, entende-


mos que não poderiam os administradores e controladores da COM-
PANHIA ALFA deixar de fornecer aos conselheiros indicados pela
COMPANHIA BETA as informações que foram divulgadas ao órgão
-Conselho de Administração. Eles têm o dever legal de divulgar ao
Conselho as informações relativas aos negócios sociais.
No entanto, tais informações não podem ser retransmitidas pelos
conselheiros indicados pela COMPANHIA BETA ao seu eleitor, sob
pena de responderem tais conselheiros pela violação dos deveres pre-
vistos na Lei das S.A., em especial, o de lealdade.

go QUESITO

"Vindo a utilização de informação privilegiada a provocar


perda de valor da COMPANHIA ALFA no mercado acionário em
relação ao valor da COMPANHIA BETA, poderiam os acionistas
minoritários por isso responsabilizar os administradores ou con-
troladores da COMPANHIA ALFA?"

RESPOSTA

Caso os administradores não ajam com culpa ou dolo, não podem


eles ser responsabilizados em virtude da utilização indevida de
informações, que eles, por dever legal, forneceram a todos os mem-
bros do Conselho de Administração da COMPANHIA ALFA, inclusi-
ve aos indicados pela COMPANHIA BETA.
Foi o nosso Parecer, em novembro de 2001.

88
CONTRATAÇÃO EM CONDIÇÕES DE
FAVORECIMENTO. CONFLITO DE INTERESSE.
IMPEDIMENTO DE ADMINISTRADORES.

PARECER

1-ACONSULTA

Da COMPANHIA ALFA recebemos a seguinte Consulta:

"1. Os fundos de pensão C, D e E, todos acionistas da COMPANHIA


BETA ("Acionistas Fundos de Pensão"), detentores de 25,42% doca-
pital votante da COMPANHIA BETA ("Companhia"), encaminha-
ram à administração da Companhia, com cópia aos membros do Con-
selho de Administração da mesma, pedido de convocação de assem-
bléia geral para deliberar sobre:
a) "Propositura de ação de responsabilidade civil, nos termos do arti-
go 159 da Lei no 6.404!76, contra os administradores, bem como
qualquer terceiro beneficiário, direto ou indireto, dos atos praticados;
b) eleição de membro(s) para o Conselho de Administração da Com-
panhia em substituição ao(s) conselheiro(s) afastado(s), na forma do
disposto no§ r do artigo 159 da Lei no 6.404!76".
2. Em 22.02.02, um dos conselheiros enviou correspondência solici-
tando providências quanto à referida convocação. Essa correspondên-
cia foi recebida pela Companhia via fax no dia 22.02.02 e, também,
via protocolo em 25.02.02.
3. Em 27.02.02, a Companhia, por intermédio de seu Presidente do
Conselho, enviou para publicação, edital de convocação de AGE para
o dia 19 de março de 2002, às 10:00 horas, sendo que o referido
edital foi publicado nos dias 28.02, 01.03 e 04.03 nos jornais Moni-
tor Mercantil e Diário Oficial (jornais em que a Companhia, habi-
tualmente, publica suas comunicações) ("Edital COMPANHIA
BETA").

89
4. O Edital contemplou, como ordem do dia: propositura de ação de
responsabilidade civil, nos termos do artigo 159 da Lei no 6404!76
(Lei da S.A.), contra administradores da Companhia. O Edital
COMPANHIA BETA não mencionou ação de responsabilidade civil
contra qualquer terceiro beneficiário, haja vista que tal providência
não é respaldada pelo art. 159 da Lei da S.A.
5. Em 08.03.02, os Acionistas Fundos de Pensão (sem qualquer inge-
rência da Companhia) publicaram novo edital de convocação de AGE
("Edital Fundos de Pensão), por intermédio do qual explicam o seu
pedido inicialmente formulado e, sob a alegação de que o mesmo não
teria sido atendido na íntegra, convocam nova AGE para o dia
25.03.02, também às 10:00 horas, para deliberar sobre: propositura
de ação de responsabilidade civil contra terceiro beneficiário, direto
ou indireto, dos atos praticados pelos administradores da Compa-
nhia, cumulativamente ao pedido de responsabilização civil dos ad-
ministradores, objeto de deliberação na AGE da COMPANHIA
BETA, convocada para o dia 19.03.02".
6. O fundamento do pedido apresentado pelos Acionistas Fundos de
Pensão reside no fato de que em RCA da Companhia realizada em
04.08.98, re-ratificada em 28.08.98, deliberou-se pela emissão pú-
blica de ações da Companhia ("Emissão Pública"). Tal Emissão Pú-
blica foi aprovada com o objetivo de possibilitar o pagamento do preço
de aquisição do bloco de controle da COMPANHIA GAMA.
7. A Emissão Pública, pela natureza das exigências legais atinentes,
gerou a contratação de um coordenador, no caso, o BANCO X, com
taxa global de 1,1 %, conforme estabelecido no Instrumento Particular
de Contrato de Melhores Esforços para Colocação Pública de Ações de
Emissão da Companhia ("Contrato de Coordenação"). O Contrato
de Coordenação foi assinado pela Companhia, representada, naquela
ocasião por 1 diretor e 1 procurador.
8. Vale dizer, ainda, que esse problema já havia sido suscitado no
passado, por ocasião da AGO de Quotistas do Fundo de Investimen-
tos em Ações X e que foi objeto de resposta por escrito em 14.09.00,
subscrita pelo BANCO X Naquela oportunidade foi apresentado,
inclusive, tabela comparativa de taxas cobradas pelo mercado em
geral (em operações similares), a fim de caracterizar a correção das
taxas praticadas pelo BANCO X e, por conseqüência, os fatos prati-
cados pelos administradores da Companhia.
9. Cabe adicionar que não há qualquer vinculação societária entre a
COMPANHIA BETA e o BANCO X, conforme demonstrado no Or-
ganograma COMPANHIA DELTA".

90
Quesitos:

1. Podem ser tidos como ilegais a contratação do BANCO X para


atuar como underwriter na coordenação e colocação pública dos valo-
res mobiliários de emissão da COMPANHIA BETA e o pagamento de
valor correspondente a 1, 1% da emissão como comissão de coordena-
ção e colocação dos títulos?
2. Está o acionista controlador da COMPANHIA BETA, pelo fato de
ter votado para eleger os administradores, proibido de votar na deli-
beração da Assembléia Geral relativa à proposição de ação de respon-
sabilidade civil dos mesmos administradores?
3. Caso seja deliberado na Assembléia Geral não promover a referida
ação judicial e ela venha a ser proposta por acionistas minoritários
estarão os administradores impedidos de continuar a exercer suas
funções, tendo em vista o disposto no art. 159, § 2° da Lei das S!A?

11- RESPOSTAS AOS QUESITOS

a) Contratação em Condições de Favorecimento

1° Quesito

Podem ser tidos como ilegais a contratação do BANCO X para


atuar como underwriter na coordenação e colocação pública dos
valores mobiliários de emissão da COMPANHIA BETA e o paga-
mento de valor correspondente a 1,1% da emissão como comissão
de coordenação e colocação dos títulos?

RESPOSTA

A questão refere-se à eventual ilegalidade da contratação do BAN-


CO X para atuar como underwriter na emissão pública de valores
mobiliários da COMPANHIA BETA.
Em primeiro lugar, deve ser enfatizado que era necessária a emis-
são pública para que os valores mobiliários pudessem ser subscritos
por investidores institucionais.
Com efeito, tal como projetada a operação, deveriam as ações
ordinárias da COMPANHIA BETA ser objeto de subscrição por parte
de Fundos Mútuos de Investimentos em Ações e Entidades de Previ-
dência Privada.

91
Nos termos da regulamentação aplicável, tais investidores institu-
cionais somente poderiam subscrever valores mobiliários emitidos por
companhias abertas em colocação pública.
Com efeito, o art. 8°, V da Resolução no 2.324, de 30/10/96, do
Conselho Monetário Nacional (então vigente, posteriormente revoga-
da pela R. 2.829/01 1) dispunha expressamente que era vedado às
entidades fechadas de previdência privada realizar operações com va-
lores mobiliários mediante negociações privadas.
No mesmo sentido, a Instrução CVM no 215/94 2, então em vigor,
somente permitia a aplicação dos recursos, por parte dos Fundos de
Investimento, em ações de emissão de companhias abertas.
Tratando-se de uma emissão pública, deveria ser obrigatoriamen-
te contratada uma instituição financeira, atuando como underwriter,
nos termos dos arts. 19, § 4o e 15, I, da Lei 6.385/76, assim como da
Instrução CVM no 13/80 3 .
Conforme referido na Consulta, o BANCO X não mantém qual-
quer relação societária com a COMPANHIA BETA daí decorrendo a
inexistência de qualquer espécie de vedação à contratação do referido
Banco.
Ainda que houvesse qualquer vínculo entre a COMPANHIA
BETA e o BANCO X também não se poderia pressupor, "a priori", a
ilegalidade da contratação.
Interpretando-se sistematicamente a Lei das S.A., verifica-se cla-
ramente que não é vedada a realização de operações comerciais entre
sociedades vinculadas por meio de participação acionária, desde que
tais operações sejam efetuadas em bases estritamente comutativas.
De fato, a simples leitura do disposto no artigo 245 da Lei n°
6.404/76 permite que se conclua que, em nosso ordenamento jurídi-
co, é perfeitamente legítima e admissível a realização de negócios
jurídicos entre sociedades controladas e controladoras ou com coliga-
das.
O artigo 245 da Lei das S.A. estabelece o princípio segundo o qual
os administradores não podem, em prejuízo da companhia, favorecer
sociedade coligada, controladora ou controlada, respondendo perante

1 Nota do Autor: A Resolução CMN n° 2.829/01 foi revogada pela Resolução CMN
n° 3.121/03.
2 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 215/94 foi revogada pela Instrução CVM n°
302/99, que por sua vez foi revogada pela Instrução CVM n° 409/2004.
3 Nota do Autor: A Intrução CVM n° 13/80 foi revogada pela Instrução CVM n°
400/2003.

92
a companhia pelas perdas e danos decorrentes de atos praticados em
infração a tal regra.
As relações entre sociedade controladora e controlada, assim, de-
vem ser pautadas pela observância de condições comutativas, isto é,
deve haver equivalência nas prestações, cumprindo aos administrado-
res das respectivas sociedades atuar da maneira mais isenta possível.
O artigo 245 da Lei das S.A. admite, portanto, que a sociedade
controladora contrate com a controlada; veda, porém, que tal contra-
tação beneficie apenas uma das partes.
No mesmo sentido, a Lei das S.A. qualifica como modalidade de
abuso de poder do acionista controlador a contratação com a compa-
nhia em condições de favorecimento ou não eqüitativas, conforme
preceitua o artigo 11 7, § 1°, alínea "f".
Vale dizer, o art. 117, §1 °, alínea "f" reafirma a regra de que é
legítima a existência de relações negociais entre o controlador e a
sociedade controlada, as quais somente poderão ser consideradas abu-
sivas caso não sejam eqüitativas ou favoreçam indevidamente a alguma
das partes.
O mesmo princípio disciplina também as relações comerciais en-
tre a companhia e seu administrador, ou seja, este pode realizar negó-
cios com a sociedade, desde que o faça em condições eqüitativas,
idênticas as que a companhia contrataria com terceiros (art. 156, § 1°,
da Lei das S.A.).
Portanto, o postulado básico na matéria, que se infere da interpre-
tação sistemática da Lei das S .A., é de que o acionista controlador ou
o administrador pode contratar com a companhia, desde que de ma-
neira eqüitativa, não prejudicando os interesses da sociedade.
Na prática, nem sempre é fácil encontrar o padrão de atendimen-
to adequado à observância de condições eqüitativas.
O direito societário tem buscado identificar alguns parâmetros de
aferição da legitimidade das operações entre companhias relaciona-
das, tendo em vista basicamente a eqüidade ("fairness") do compor-
tamento do acionista controlador.
O critério fundamental à verificação do comportamento "Jair" do
controlador, consagrado na doutrina, consiste na comparação do negó-
cio com outros similares, praticados no mercado 4 .
Neste sentido, a decisão do controlador ou administrador será
ilegítima se o resultado da operação, em comparação com outras simi-

4 ROBERT C. CLARK. Corporate Law. Boston: Little, Brown and Company, 1986.
p.l47ess.

93
lares realizadas no mercado, for menos vantajoso para a companhia
controlada, do que seria caso a decisão tivesse sido tomada por uma
pessoa independente.
Assim, ficaria caracterizada a responsabilidade do controlador e
dos administradores da companhia apenas na hipótese de contratação
fora dos padrões geralmente adotados no mercado em negócios idên-
ticos ou semelhantes.
No caso presente, conforme demonstrado no Quadro Comparati-
vo de Comissões de Colocação e Coordenação anexo à Consulta, a
contratação do BANCO X ocorreu rigorosamente em condições idên-
ticas às que prevaleciam no mercado.
Conforme o referido Quadro Comparativo, as Comissões de Co-
locação e Coordenação cobradas pelo BANCO X foram inferiores às
praticadas por outros bancos em operações da mesma espécie.
Ademais, não vislumbramos qualquer irregularidade no fato de o
Fundo de Investimentos em Ações X, administrado pelo BANCO X,
ser, à época da emissão pública de ações, conforme nos informa a
Consulente, controlador da COMPANHIA ALFA, por sua vez acio-
nista controladora da COMPANHIA BETA.
Em primeiro lugar, o Regulamento do FUNDO DE INVESTI-
MENTOS EM AÇÕES X, em seu art. 3°, dispõe que o exercício das
funções da Administrador de Fundo, por parte do BANCO X, não
acarretaria qualquer impedimento à sua atuação como underwriter.
Ademais, a regulamentação administrativa da CVM aceita expressa-
mente que o administrador da carteira atue como underwriter, subscre-
vendo títulos para a carteira, desde que em condições equitativas.
Nesse sentido, dispõe o parágrafo único do art. 16 da Instrução
CVM no 306/99 literalmente que "nos casos de distribuição pública
em que a pessoa jurídica responsável pela administração da carteira de
valores mobiliários participe do consórcio de distribuição, admite-se a
subscrição de valores mobiliários para a carteira administrada, desde
que em condições idênticas às que prevaleceram no mercado ou em
que o administrador contrataria com terceiros, devendo o fato ser
informado imediatamente à CVM".
Verificamos, pois, que inexistia qualquer óbice à atuação do BAN-
CO X como underwriter da emissão de ações COMPANHIA BETA
pelo fato de ser administrador da FUNDO DE INVESTIMENTOS
EM AÇÕES X.
Assim, respondendo ao quesito, não temos qualquer dúvida de
que foram inteiramente legítimos e legais a contratação do BANCO
X para atuar como underwriter na colocação pública das ações da

94
COMPANHIA BETA, e o pagamento de valor correspondente a 1,1%
da emissão como comissão de coordenação e colocação dos títulos.

b) Caracterização de Conflito de Interesses

2° Quesito

Está o acionista controlador da COMPANHIA BETA, pelo


fato de ter votado para eleger os administradores, proibido de
votar na deliberação da Assembléia Geral relativa à proposição
de ação de responsabilidade civil dos mesmos administradores?

RESPOSTA

A questão refere-se ao possível conflito de interesses do acionista


controlador da COMPANHIA BETA na deliberação da Assembléia
Geral relativa à proposição de ação de responsabilidade civil contra os
administradores.
No âmbito do direito societário, verifica-se uma preocupação
crescente com a prevenção e repressão a determinadas situações de
conflitos de interesse, que podem ocasionar prejuízos para os acionis-
tas minoritários e para a própria Companhia.
A caracterização da situação de conflito de interesse no universo
jurídico decorre, necessariamente, da presença de dois elementos es-
senciais: 1. o fático; e 2. o jurídico.
O primeiro elemento - o fático - diz respeito às condições de
existência do conflito de interesse. Já o segundo - o jurídico - diz
respeito às situações nas quais, caracterizado factualmente o conflito
de interesses, deve ele ser objeto de sanção legal.
Examinemos, inicialmente, o suporte fático do conflito de inte-
resse, cuja caracterização constitui antecedente lógico à invocação de
normas jurídicas que imponham a sua repressão.
O conceito de interesse é de singular importância para o sistema
jurídico, posto que utilizado não só no direito societário, como tam-
bém na teoria geral do direito privado e no direito processual civil.
To do ordenamento jurídico pode ser considerado como um orde-
namento de tutela de interesses; as normas legais pressupõem sempre
uma ponderação de interesses e são destinadas a salvaguardar aqueles
tidos como legítimos 5 .

5 ALES SANDRO BERTINI. Contributo allo Studio delle Situazioni Giuridiche de-
gliAzionisti, Milão, Dott. A. Giuffre, 1951, pg. 6.

95
Por interesse deve-se entender a relação existente entre um sujei-
to, que tem uma necessidade qualquer, e determinado bem, apto a
satisfazê-la. Entre o sujeito e o bem, assim, forma-se uma relação que,
na situação jurídica enfocada, toma o nome de interesse 6•
Os interesses podem apresentar uma situação de relevância ou de
indiferença. Considera-se que há indiferença entre os interesses quan-
do inexiste qualquer interferência entre a satisfação de uma e de outra
necessidade; há relevância quando existe esta interferência, que pode
ser: de solidariedade, quando a satisfação de uma necessidade facilita
ou instrumentaliza a de outra; e de conflito, quando a satisfação de
uma necessidade exclui a de outras 7•
Quando as relações permanecem no plano interno, psicológico do
indivíduo, em nada afetando os demais, o direito não intervém. Há
intervenção do Direito quando ocorrem relações intersubjetivas, ou
seja, quando as relações de solidariedade ou de conflito se entrelaçam
em diferentes pessoas.
Tecnicamente, no plano do direito societário, há relação intersub-
jetiva de conflito quando determinado indivíduo possui interesses di-
versos junto a uma comunidade de indivíduos - uma empresa - da
qual também faz parte: um deles diz respeito ao seu interesse mera-
mente individual, como parte na relação jurídica; o outro, ao seu inte-
resse como membro do grupo que, por sua vez, também é parte na
relação.
Configura-se o conflito de interesse porque a satisfação do inte-
resse meramente individual somente poderá ocorrer mediante o sacri-
fício do interesse coletivo, e vice-versa 8 . Existe então um conflito de
interesse entre o sócio e a sociedade, quando o sócio é portador, dian-
te de determinada deliberação, de um dúplice interesse: de seu inte-
resse como sócio e de um interesse individual, externo à sociedade,
sendo esta duplicidade de tal monta que ele não pode satisfazer um
dos interesses sem sacrificar o outro 9 .
Para que se possa falar em conflito de interesse, então, é necessá-
rio que se verifique a situação fática na qual a satisfação do interesse

6 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA Conflito de Interesses


nas Assembléias de S.A.; São Paulo, Malheiros, 1993, pg. 15; PIER GIUSTO JAEGER
L'Interesse Sociale, Milão, Dott. A. Giuffre, 1964, pg. 3.
7 FRANCESCO CARNELUTTI Sistema di Diritto Processuale Civile, vol I, Pádua:
CEDAM, 1936, pg. 12
s ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, ob. cit., pg. 20.
9 FRANCESCO GALGANO La Società per Azioni, vol 7 do Trattato di Diritto
Commerciale e di Dirito Pubblico dell'Economia. Pádua: CEDAM, 1984, pg. 230.

96
do indivíduo, enquanto tal, importe em sacrifício do interesse de gru-
po do qual também faz parte, ou vice-versa.
Além da presença do elemento fático, é necessário, para caracte-
rizar, tecnicamente, o conflito de interesse, o elemento jurídico. Com
efeito, não são todas as situações de conflito que interessam ao direi-
to, mas apenas aquelas nas quais prejuízos podem ser causados às
pessoas atingidas pela decisão daquele que, colocado diante do confli-
to de interesses, sacrifica um deles para beneficiar o outro.
Na esfera do direito societário, verifica-se tradicionalmente a
existência de normas que tratam do conflito de interesses, quer do
acionista controlador, quer do administrador da companhia.
O art. 115, caput, da Lei das S.A., estabelece expressamente que
o voto deve ser sempre exercido ex causa societatis, não podendo
constituir um mecanismo de realização dos interesses pessoais do só-
cio! o.
Daí decorre que considera-se abusivo o voto exercido com o fim
de causar dano à companhia ou a outro acionista, ou, ainda, com o fim
de obter vantagem sem justa causa.
Nos termos do § 1o do art. 115 da Lei das S.A. o acionista está
proibido de votar nas seguintes hipóteses: deliberação da assembléia
geral relativa ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a
formação do capital social; deliberação da assembléia geral para apro-
var suas contas como administrador; e quaisquer outras que possam
beneficiá-lo de modo particular 11 •
Já a hipótese do interesse conflitante com companhia deve ser
objeto de apreciação caso a caso, inexistindo proibição absoluta no
exercício do direito de voto.
Com efeito, na hipótese do conflito de interesses (art. 115, §§ 1o e
4o da Lei das S.A.) o entendimento dominante, com base nas lições do
direito comparado, é de que a lei não está se reportando a um conflito
meramente formal, mas a um conflito substancial, que somente pode
ser aferido mediante o exame do conteúdo da deliberação.
Assim, a existência do conflito de interesses constitui uma quaes-
tio facti, a ser apreciada em cada caso concreto; cabe, então, a verifi-

10 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 2,


São Paulo, Saraiva, 1997, pg. 404.
1I FABIO KONDER COMPARATO. Controle Conjunto, Abuso no Exercício do Voto
Acionário e Alienação Indireta de Controle Empresarial, in Direito Empresarial. Estu-
dos e Pareceres, São Paulo, Saraiva, 1990, pg. 91.; ERASMO VALADÃO AZEVEDO
E NOVAES FRANÇA, ob. cit., pg. 89.

97
cação relativa ao mérito da incompatibilidade entre o exercício do
voto e a matéria submetida à deliberação 12 .
O controle do exercício do voto é realizado, portanto, ex post; a
deliberação tomada com base em voto de acionista com interesse con-
flitante com o da companhia- conforme a redação do § 4o do art.
115 - é anulável, não nula, cabendo ao acionista infrator responder
por perdas e danos e transferir para a companhia as vantagens que
tiver auferido.
Ora, no caso presente, não há qualquer situação de conflito de
interesses, tanto do ponto de vista fático como jurídico.
Para que se caracterize o conflito de interesses é indispensável que
a satisfação do interesse do acionista importe no sacrifício do interesse
da sociedade.
Conforme antes analisado, não houve, no presente caso, qualquer
lesão a interesse da companhia, uma vez que a contratação do BAN-
CO X não somente era necessária, como também ocorreu em bases
estritamente comutativas, semelhantes ou até mesmo mais favoráveis
do que as verificadas no mercado.
Assim, não há qualquer fundamento para a proposição de ação de
responsabilidade civil dos administradores; o pressuposto de tal ação
seria a ocorrência de prejuízos à companhia, que, no presente caso,
não se verificaram.
Se eventualmente votar contra a deliberação de acionar os admi-
nistradores, o acionista controlador não estará privilegiando interesse
seu, em detrimento do interesse da sociedade, o que somente ocorre-
ria se tivesse ficado caracterizada a existência de prejuízos para a com-
panhia.
Assim, do ponto de vista fático, não se caracteriza o conflito de
interesses no voto do acionista controlador na deliberação relativa à
proposição de ação de responsabilidade civil dos administradores.
Do ponto de vista jurídico, cabe observar que nunca se cogitou,
quer na doutrina, quer na jurisprudência, sobre o eventual impedi-
mento de voto do acionista controlador que elegeu determinado ad-
ministrador na assembléia que aprecia a sua responsabilidade.
A Lei das S.A. proíbe apenas o voto do acionista nas deliberações
relativas ao laudo de avaliação dos bens com que concorrer para a
formação do capital social e à aprovação de suas contas como adminis-

12 LUIS GASTÃO PAES DE BARROS LEAES. Estudos e Pareceres sobre Sociedades


Anônimas, São Paulo, RT, 1989, pg. 25; FABIO KONDER COMPARATO. O Poder
de Controle na Sociedade Anônima, Rio de Janeiro, Forense, 1983, pg. 208.

98
trador, ou em outras que puderem beneficiá-lo de modo particular
(art. 115, § 1°).
Assim, inexiste qualquer proibição ao acionista controlador devo-
tar na deliberação relativa à proposição de ação judicial contra o admi-
nistrador que ele elegeu, ou que ajudou a eleger.
Caso se entendesse estar proibido o voto do acionista controlador
em tal situação, bastaria o minoritário propor a ação de responsabili-
dade civil do administrador, aprovar tal deliberação (ausente o voto
do controlador) e acarretar o impedimento legal dos administradores
zo
(art. 159, § da Lei das S.A.) assumindo, de fato, sem qualquer ônus
ou pagamento, significativa parcela de poder de controle da compa-
nhia, consistente na possibilidade de impedir, ao seu talião, o exercí-
cio das funções de administradores por aqueles regularmente eleitos.
Ainda que se entendesse existir conflito de interesses, o que se
admite apenas para argumentar, o acionista controlador não estaria
proibido de votar, cabendo ao acionista minoritário inconformado
propor ação para anular a deliberação e responsabilizar o controlador
pelos eventuais danos causados à companhia.
Ora, tais danos, no presente caso, seriam correspondentes aos va-
lores pago ao BANCO X como comissões de underwriting. Se os ser-
viços do Banco eram necessários, foram devidamente prestados, e as
comissões cobradas equivaliam às de mercado, não há qualquer funda-
mento para a anulação da deliberação e a responsabilização do acionis-
ta controlador.
Assim, entendemos que o acionista controlador da COMPA-
NHIA BETA não está impedido de votar na deliberação da Assem-
bléia Geral relativa à proposição de ação de responsabilidade civil dos
administradores.

c) Impedimento de Administradores

3° Quesito

Caso seja deliberado na Assembléia Geral não promover a


referida ação judicial e ela venha a ser proposta por acionistas
minoritários estarão os administradores impedidos de continuar
a exercer suas funções, tendo em vista o disposto no art. 159, § 2°
da Lei das S.A.?

RESPOSTA

Nos termos do art. 159, caput, da Lei das S.A., compete à compa-
nhia, mediante prévia deliberação da assembléia geral, propor a ação

99
de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos cau-
sados ao seu patrimônio.
Ademais, a Lei das S.A. prevê a possibilidade de demandarem os
acionistas minoritários contra os administradores, no interesse da
companhia, em duas circunstâncias distintas.
Em primeiro lugar, nos termos do art. 159, § 3°, da Lei das S.A.,
se a Assembléia Geral delibera propor a ação de responsabilidade civil
contra o administrador e não ajuíza a medida no prazo de três meses,
qualquer acionista pode fazê-lo. Trata-se de ação judicial cujo objetivo
é conferir aos acionistas a possibilidade de suprir a letargia da adminis-
tração da companhia.
No caso, há uma presunção absoluta de que o acionista autor da
ação está defendendo os interesses da empresa, uma vez que a maioria
dos acionistas deliberou promover a medida judicial. Assim, na hipó-
tese, a vontade social, expressa pela maioria dos acionistas, é de mover
a ação judicial; não tomando a administração os passos necessários à
implementação da medida, a lei confere a qualquer acionista legitimi-
dade para executar a decisão da assembléia.
Hipótese diversa é aquela em que a Assembléia Geral delibera não
promover a ação de responsabilidade civil contra o administrador.
A vontade expressa pela maioria, em princípio, corresponde à cha-
mada vontade social, uma vez que reflete o interesse da coletividade
dos acionistas. Com efeito, vige plenamente na sociedade anônima o
princípio majoritário, que deve ser afastado apenas quando caracteri-
zado o ato abusivo de poder do acionista controlador.
Quando a Assembléia Geral delibera não promover a ação de res-
ponsabilidade civil, poderá ser ela ajuizada por acionistas que repre-
sentem, pelo menos, cinco por cento do capital social, conforme o §
4o do art. 159 da Lei das S.A. Trata-se da típica "derivative suit",
consagrada no direito anglo-saxão, que constitui medida subsidiária à
ação social ut universi; com efeito, o ajuizamento da ação pela própria
companhia torna impossível o exercício da ação por parte dos minori-
tários13.
Na hipótese da ação social de que trata o § 4o do art. 159, a
vontade social foi previamente manifestada no sentido de considerar
inexistente a responsabilidade civil do administrador. A lei confere ao
acionista com mais de cinco por cento do capital social legitimidade

13 Jean Pierre Berdah, Fonctions et Responsabilité des Dirigeants des Societés par
Actions. Paris, Sirey, 1974,p. 178.

100
para demandar exatamente visando a elidir a impunidade do adminis-
trador, acobertada pela deliberação majoritária.
Na ação social de que trata o§ 4o do art. 159, a presunção de que
o acionista está defendendo o interesse social é relativa, uma vez que
a vontade social foi manifestada em sentido contrário. Com efeito,
disputas pessoais e de grupos de acionistas não podem ter abrigo na
ação social derivada, cabendo ao Poder Judiciário indeferir os pedidos
fundados em motivos alheios ao verdadeiro interesse da companhia 14 .
A Lei das S.A., em seu art. 159, § zo,
dispõe que:

"§ 2°- O administrador ou administradores contra os quais deva


ser proposta a ação ficarão impedidos e deverão ser substituídos na
mesma assembléia".

O impedimento do administrador da companhia constitui institu-


to inspirado no impeachment do direito constitucional.
O impeachment, no Direito Público, constitui medida que tem por
objetivo obstar que determinada pessoa investida de funções públicas
continue a exercê-las 15 . Trata-se, nitidamente, de expressão de con-
trole por parte do Parlamento sobre o Governo, mediante a sanção da
autoridade pública que violou a lei, destituindo-a do cargo e impondo-
lhe pena de caráter político. Originário da Inglaterra, onde foi aplica-
do especialmente do século XIII à primeira metade do século XVII, o
impeachment funda-se na noção de que o governante não é senhor do
povo, mas seu delegado ou representante 16 .
O impeachment do funcionário público fundamenta-se no abuso
ou violação da confiança do público em sua atuação. Assim, considera-
se que as infrações são de natureza essencialmente política, na medida
em que afetam a sociedade como um todo 17 .
Da mesma forma, o fundamento do impedimento do administra-
dor de sociedade anônima reside precisamente na perda de confiança
dos acionistas no seu desempenho e conduta.
Daí resulta que, à semelhança do que ocorre na sociedade política,
o impeachment, na sociedade anônima, pressupõe a deliberação da

14 Eduardo Souza Carmo. Relações Jurídicas na Administração das Sociedades Anô-


nimas. Rio de Janeiro, Ed. Aide, 1988, p. 180.
15 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1946. Rio, Henrique Cahen
Editor, vol. II, p. 141.
16 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 1976, 6a ed., p. 98.
17 Alexander Hamilton, in The Federalis, Moder Library Ed., no 65, p. 423.

101
assembléia. Ao decidir mover contra o administrador da companhia
ação de responsabilidade civil, os acionistas, em sua maioria, deixam
claro que não mais nele confiam; desaparecendo o vínculo fiduciário,
desaparece, por via de conseqüência, a delegação, e daí o ímpeachment
automático, de natureza legal.
O impedimento legal do administrador somente ocorre no caso da
ação social ut uníversí (Lei das S.A., art. 159, caput) e no caso de ação
social ut singuli do art. 159, § 3°, posto que ambas pressupõem a
deliberação da assembléia favorável à promoção da ação de respon-
sabilidade, com o conseqüente rompimento do vínculo fiduciário.
No caso da ação social derivada, de que trata o art. 159, § 4°, ao
contrário, não se pode cogitar de impedimento do administrador,
uma vez que a vontade social foi necessariamente manifestada no
sentido de não responsabilizar o administrador, mantido portanto seu
vínculo fiduciário com os acionistas, em sua maioria.
Com efeito, a Lei das S.A. é clara no sentido de que deve de
existir deliberação de assembléia favorável à proposição de ação de
responsabilidade para que ocorra o impedimento legal.
Neste sentido; o§ 2o do art. 159 dispõe inicialmente que "o admi-
nistrador ou administradores contra os quais deva ser proposta a ação
ficarão impedidos e deverão ser substituídos na mesma assembléia"
(grifamos). A expressão "deva ser proposta a ação" significa claramen-
te que a Assembléia decidiu mover a ação e, portanto, deve a compa-
nhia movê-la, podendo, se não o fizer, ser substituída por qualquer
acionista.
Ou seja, é a deliberação de ajuizar a medida que acarreta o impe-
dimento (daí a necessidade de ser o administrador substituído na mes-
ma Assembléia), não o ajuizamento da ação. Tanto é assim que a
substituição é imediata, ocorre na mesma Assembléia, ainda que nem
a companhia, nem qualquer acionista, venham posteriormente a de
fato ingressar em juízo contra o administrador.
Ademais, trata-se de competência privativa da Assembléia, único
órgão a quem compete deliberar se existe ou não conflito de interes-
ses entre a companhia e o administrador.
Entender-se que caberia o impedimento pelo simples fato de in-
gressar a minoria com ação judicial contra o administrador, contra o
entendimento da Assembléia Geral, seria o mesmo que aceitar, no
plano político, o cabimento de ímpeachment de qualquer funcioná-
rio público (mesmo do Presidente da República) pelo fato de assim
o desejar a minoria parlamentar, contra o voto majoritário do Con-
gresso.

102
Nada impede, por outro lado, que a Assembléia Geral, ou mesmo
o Conselho de Administração, conforme o caso, decidam demitir o
administrador. Em nosso sistema legal, diversamente do que ocorre
no Direito norte-americano, os administradores da companhia são de-
missíveis ad nutum pelo órgão competente. Assim, se entender a com-
panhia que existe um conflito de interesses, pode demitir o adminis-
trador, a seu juízo e a qualquer tempo. Porém, não está obrigada a
companhia a demitir o administrador, posto que inexiste, no caso, o
impedimento legal.
Ademais, a Lei das S.A., ao não prever o impedimento do adminis-
trador na hipótese do§ 4° do art. 159, visou a impedir a proliferação
de lides emulatórias. Com efeito, se fosse cabível o impedimento legal
do administrador contra o voto da maioria, pelo simples fato de ajuizar
o minoritário ação de responsabilidade, haveria um enorme incentivo
ao abuso do minoritário eventualmente insatisfeito com uma medida
qualquer tomada pela administração.
Ou seja, seria conferida ao minoritário, mesmo contra o interesse da
maioria, a possibilidade de promover, a qualquer tempo, a destituição
dos administradores que não lhe fossem simpáticos. O interesse social
passaria a ser ditado pela vontade do acionista minoritário, em subversão
total ao princípio da deliberação majoritária na sociedade anônima.
Cabe observar, a propósito, que o Tribunal Regional Federal já
teve o ensejo de decidir que não é possível o afastamento dos adminis-
tradores, com a investidura de diretor designado pelo juiz, por inicia-
tiva de acionistas minoritários, contra o voto da assembléia geral.
A propósito, considerou o Relator, Ministro Fontes de Alencar,
que: ... o afastamento de diretores, "inaudita altera pars", com a con-
seqüente investidura de administrador designado pelo juiz, a despeito
da decisão da assembléia e contrariamente ao por ela deliberado, con-
figura gravíssima intervenção na atividade privada, determinante da
eclosão de riscos, não somente de ordem econômica mas, também, jurí-
dica, de indisfarçável relevância, assim para a empresa como para
acionistas.
Entendeu o Relator, em sua declaração de voto, que não é possível
o afastamento de diretores por iniciativa de acionistas que repre-
sentem 5% do capital, não só pelo fato de a Lei das S.A. não autorizar
tal procedimento, como também por ter cuidado a lei de cercear a
prática de abuso de poder das minorias 18 .

18 NELSON EIZIRIK, Sociedades Anônimas- Jurisprudência,__Rio de Janeiro, Re-


novar, I 996, pg. 428.

103
Podemos concluir, pois, que o impedimento legal do administra-
dor somente ocorre nas hipóteses disciplinadas pelo art. 159, caput, e
seu § 3°; no caso de ação movida após a deliberação desfavorável da
Assembléia Geral, previsto no § 4o do art. 159, não há impedimento
legal do administrador da companhia 19 .
Assim, respondemos que, caso seja deliberado na Assembléia Ge-
ral não promover a ação judicial contra os administradores e venha ela
a ser proposta por acionistas minoritários, nos termos do art. 159, § 4o
da Lei das S.A., os referidos administradores não ficarão impedidos
de exercer as suas funções.
Foi o nosso Parecer, em março de 2002.

19 Conforme o nosso ensaio "Inexistência do Impedimento do Administrador na


Ação Social 'ut singuli'", in NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos do Direito Socie-
tário. Rio de Janeiro, Renovar, 1992, pg. 67 e seguintes. A tese por nós defendida foi
expressamente aceita na decisão do TRF mencionada na nota 16.

104
ADMINISTRADORES DE S.A. EXONERAÇÃO DA
SUA RESPONSABILIDADE. IMPEDIMENTO DOS
MEMBROS DO CONSELHO DE
ADMINISTRAÇÃO EM VIRTUDE DA
APROVAÇÃO DA PROPOSITURA DE AÇÃO DE
RESPONSABILIDADE E SUA SUBSTITUIÇÃO.

I - DA CONSULTA

Da COMPANHIA ALFA e COMPANHIA BETA ("Consulen-


tes"), concessionárias de serviço público, recebemos a seguinte con-
sulta

"Nas próximas Assembléias Gerais Ordinárias de COMPANHIA


ALFA e COMPANHIA BETA, serão apreciadas as demonstrações
financeiras e as contas dos administradores dessas sociedades.
Os Conselhos de Administração de COMPANHIA ALFA e de COM-
PANHIA BETA são compostos por 05 (cinco) membros titulares e
suplentes, eleitos nas Assembléias Gerais Ordinárias de 2001, com
mandato de três anos.
Desde que eleitos, apenas 01 (um) membro suplente compareceu a
Reuniões de Conselho de COMPANHIA ALFA e de COMPANHIA
BETA, em substituição do respectivo titular. Os demais, jamais esti-
veram presentes em qualquer reunião dos Colegiados.
Os Conselhos de Administração de COMPANHIA ALFA e de COM-
PANHIA BETA em reuniões, regularmente convocadas, em que esti-
veram presentes apenas três conselheiros titulares, manifestaram-se,
por unanimidade, favoravelmente às demonstrações financeiras.
Os Conselhos Fiscais de COMPANHIA ALFA e de COMPANHIA
BETA igualmente recomendaram a aprovação das demonstrações fi-
nanceiras dessas sociedades.
Ocorre que a administração dos acionistas majoritários diretos de
COMPANHIA ALFA e COMPANHIA BETA, respectivamente,

lOS
COMPANHIA GAMA e COMPANHIA DELTA vem hoje sendo
questionada pela controladora COMPANHIA X.
À luz do exposto, consultamos o parecerista sobre:
1 - É possível juridicamente a COMPANHIA GAMA e COMPA-
NHIA DELTA aprovarem as demonstrações financeiras de COMPA-
NHIA ALFA e COMPANHIA BETA, respectivamente e, subseqüen-
temente, proporem ação de responsabilidade contra os administrado-
res dessas companhias -para com base artigo 159, § 2° da Lei n°
6.404!76, promoverem a imediata substituição dos administradores?
2- Caso, na forma do quesito 1, sejam rejeitadas as contas da admi-
nistração e proposta ação de responsabilidade contra os membros do
Conselho de Administração de COMPANHIA ALFA e de COMPA-
NHIA BETA, tal responsabilização se estenderia (i) aos conselheiros
titulares que não compareceram às Reuniões de Conselho em que hou-
ve a manifestação favorável às demonstrações financeiras; e (ii) aos
conselheiros suplentes que jamais compareceram a qualquer reunião
dos Colegiados? Qual o procedimento a ser adotado para a substitui-
ção dos Conselheiros impedidos de continuar no exercício de seus car-
gos por força do disposto no artigo 159, § 3°, da Lei das S.A. ?"

11 -DO PARECER

l 0 QUESITO

"1 -É possível juridicamente a COMPANHIA GAMA e


COMPANHIA DELTA aprovarem as demonstrações financeiras
de COMPANHIA ALFA e COMPANHIA BETA, respectivamente e,
subseqüentemente, proporem ação de responsabilidade contra os
administradores dessas companhias- para com base artigo 159,
§ 2° da Lei n° 6.404!76, promoverem a imediata substituição dos
administradores?"

RESPOSTA

l.A-AAPROVAÇÃO DAS CONTAS ENGLOBAAANÁLISE


DO RELATÓRIO DA ADMINISTRAÇÃO E DAS
DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS

O artigo 132, inciso I, da Lei das S.A. confere à Assembléia Geral


Ordinária das sociedades anônimas competência privativa para "tomar

106
as contas dos administradores, examinar, discutir e votar as
demonstrações financeiras".
O artigo 133 da Lei no 6.404/76, por sua vez, inclui, entre os
documentos que devem ser apresentados aos acionistas pelo menos
30 (trinta) dias antes da Assembléia Geral Ordinária, o "relatório da
administração" e as "demonstrações financeiras".
Note-se que, apesar de os citados dispositivos legais referirem-se,
separadamente, às "contas dos administradores", às "demonstrações
financeiras" e ao "relatório da administração", o exame dos dois últi-
mos, em verdade, está abrangido pela análise das contas do exercício.
Com efeito, a prestação anual de contas dos administradores des-
dobra-se em duas peças fundamentais: o relatório da administração e
as demonstrações financeiras.
Tanto o relatório da administração como as demonstrações finan-
ceiras têm por objetivo informar os acionistas sobre os resultados do
exercício, distinguindo-se, basicamente, apenas na forma pela qual se
transmite tal informação, seja em termos contábeis, no caso das
demonstrações financeiras, seja em linguagem literal, em se tratando
do relatório da administração.
Desse modo, ambas as peças, apesar de mencionadas separada-
mente pela lei societária, constituem partes integrantes de um único
documento, que deve ser apreciado pelos acionistas de uma única vez,
ao tomarem as contas da administração, conforme esclarece Alberto
Xavier: 1

"Estamos assim em posição de concluir que o objeto de deliberação a


que se refere o no I do art. 132 é unitariamente constituído pelas
contas anuais do exercício, que têm por objetivo a apuração do
lucro - que - estas sim, constituem uma realidade jurídica incindí-
vel. O relatório, as demonstrações financeiras (e seus complementos)
são os instrumentos técnico-jurídicos da prestação de contas que têm
em vista a elucidação dos acionistas. O mesmo se diga do parecer do
conselho fiscal e dos esclarecimentos dos administradores prestados
no decurso da própria assembléia." (destacamos)

Portanto, quando a Lei das S.A. confere à Assembléia Geral pode-


res para tomar "as contas dos administradores" está se referindo a

I ALBERTO XAVIER, Administradores de Sociedades, São Paulo, Ed. Revista dos


Tribunais, 1979, p. 92.

107
uma única deliberação, que engloba a análise do relatório da adminis-
tração, das demonstrações financeiras do exercício e dos demais docu-
mentos acessórios (parecer do conselho fiscal, parecer dos auditores
independentes e outros).

l.B -A ASSEMBLÉIA GERAL TEM PODERES PARA


APROVAR OU RECUSARAS CONTAS DA
ADMINISTRAÇÃO

Tendo em vista os documentos acima citados, poderá a Assem-


bléia deliberar sobre a prestação de contas dos administradores, ratifi-
cando-as integralmente, aprovando-as com ressalvas ou ainda rejeitan-
do-as por inteiro.
De fato, em nosso sistema jurídico, as contas elaboradas pela admi-
nistração da companhia constituem mera proposta, que somente pro-
duz efeitos jurídicos após ser aprovada pelos acionistas em assembléia
geral. Conforme refere da doutrina, "antes disso, o que há é um projeto
ou minuta de balanço, sem valor contábil ou existência jurídica". 2
A lei societária expressamente reconhece o caráter de mera pro-
posta das contas elaboradas pela administração, tanto que seu artigo
132 confere à assembléia geral competência privativa para tomar as
contas da administração, sendo tal órgão soberano para determinar
modificações ou recusar as contas, como leciona José Edwaldo Tava-
res Borba 3 :

"As demonstrações financeiras apresentadas pela administração


constituem, com efeito, um projeto, de tal forma que a assembléia
encontra-se capacitada a aprová-las ou recusá-las em seu todo,
ou a ordenar modificações e retificações em seu texto, hipótese em
que os administradores promoverão, após os competentes ajustes, a
republicação." (destacamos)

Neste sentido, manifesta-se Luiz Gastão Paes de Barros Leães, nos


seguintes termos 4 :

2 FÁBIO KONDER COMPARATO, Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial,


Forense, Rio de Janeiro, 1978, p. 30.
3 JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA. Direito Societário. Freitas Bastos: Rio de
Janeiro, 1997, p. 274.
4 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Do Direito do Acionista ao Dividen-
do. São Paulo: Ed. Obelisco, 1969, p. 61.

108
"Redigido pelos diretores e controlado pelos membros do conselho fis-
cal, o balanço só cessa de ser um projeto interno na fase culmi-
nante de aprovação por parte da assembléia de acionistas, quan-
do, então, se torna um ato definitivo, imputável à sociedade, com
efeito ex nunc em relação a terceiros e aos próprios sócios. Com efeito,
os gestores da sociedade redigem apenas um projeto de balanço,
que, como diz MESSINEO em estudo clássico, somente se torna um
verdadeiro 'balanço', no sentido jurídico do termo, após a apro-
11
vação da assembléia. (destacamos)

A Comissão de Valores Mobiliários - CVM confirmou tal enten-


dimento, ao deixar expresso, em seu Parecer de Orientação no 16, de
17 de novembro de 1988, que o balanço constitui autêntica declara-
ção de vontade por parte da Assembléia Geral, in verbis:

"b) o balanço torna-se ato jurídico existente apenas depois que a


assembléia geral de acionistas o aprova, até quatro meses após o
encerramento do exercício social. (. . .)
c) a deliberação da assembléia geral ordinária de aprovar o balanço
apresentado pelos administradores constitui-se em autêntica declara-
11
ção de vontade, e não simples declaração de ciência. (destacamos)

Ora, se a aprovação das contas constitui declaração de vontade por


parte da assembléia geral, e não declaração de ciência, não se restrin-
gindo ao mero atendimento a uma formalidade legal, os acionistas
possuem poder discricionário em relação à apreciação das contas.
Ou seja, os acionistas, reunidos em Assembléia Geral, têm o po-
der de aprovar, determinar modificações ou rejeitar o relatório e as
demonstrações financeiras elaboradas pela administração da Compa-
nhia.

l.C- A NÃO APROVAÇÃO DAS CONTAS DOS


ADMINISTRADORES DEVE SER FUNDAMENTADA

A deliberação assemblear que eventualmente não aprovar as con-


tas do exercício deve ser fundamentada, cabendo aos acionistas majo-
ritários deixar consignado na ata da Assembléia Geral Ordinária os
motivos que os levaram a recusar as contas propostas pelos adminis-
tradores.
De fato, constituiria abuso no exercício do direito de voto a con-
duta dos acionistas que, sem qualquer fundamentação, votassem con-

109
tra a aprovação das contas apenas em função de divergências pessoais
com os administradores ou com os acionistas que os elegeram.
Neste sentido, o artigo 117, § 1°, alínea "c", da Lei das S.A. quali-
fica como abuso de poder de controle a tomada de "decisões que não
tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo
aos acionistas minoritários e aos que trabalham na empresa".
A propósito, ressalte-se que a não aprovação das contas de uma
companhia aberta, concessionária de serviço público, como é o caso de
ambas as Consulentes, constitui fato de extrema gravidade, capaz de
trazer conseqüências negativas para a sociedade perante o mercado,
em virtude da suspeição que tal fato fará recair sobre todas as opera-
ções da sociedade.
Assim, é dever dos acionistas que rejeitarem as contas apresenta-
das pelos administradores explicitar as razões do voto contrário por
eles proferido, enumerando os atos supostamente irregulares que te-
riam sido praticados pelos administradores e que os levaram a não
aprovar as contas do exercício.
Aliás, no caso das Consulentes, a obrigatoriedade de fundamenta-
ção da eventual rejeição das contas dos administradores referentes ao
exercício de 2001 é especialmente relevante, uma vez que as aludidas
contas foram aprovadas, por unanimidade, pelos Conselhos Fiscais
das Consulentes, bem como foram objeto de parecer favorável por
parte dos auditores independentes.
Vale lembrar que o Conselho Fiscal é o órgão mediante o qual os
acionistas fiscalizam a gestão da sociedade, acompanhando diretamen-
te as operações da companhia. Ou seja, o Conselho Fiscal constitui o
órgão que assessora a Assembléia Geral na apreciação das contas da
administração, fornecendo embasamento técnico para que os acionis-
tas possam aprovar ou recusar as referidas contas.
Neste sentido, os Conselheiros Fiscais, ao elaborarem seu parecer
sobre as contas do exercício, têm o dever de apurar a eventual mani-
pulação das contas para produzir ou ocultar operações lesivas à com-
panhia ou a seus acionistas, bem como de analisar a regularidade das
demonstrações financeiras, a fim de detectar possíveis erros, intencio-
nais ou não.
Também os auditores independentes atuam como revisores das
contas elaboradas pela administração, competindo-lhes examinar sua
conformidade com os princípios de contabilidade geralmente aceitos,
a existência de provas dos registros contábeis efetuados, bem como

110
verificar a ocorrência de qualquer eventual desvio na contabilidade da
empresa. 5
Diante disso, apesar de não possuírem caráter vinculativo, é evi-
dente que os pareceres do Conselho Fiscal e da auditoria externa
assumem importância singular na orientação do voto a ser proferido
na Assembléia Geral.
A existência de pareceres favoráveis do Conselho Fiscal e dos
auditores independentes configura forte indício de regularidade de
tais contas, que somente pode ser desconsiderado pelos acionistas
mediante decisão fundamentada, que aponte os erros ou as irregula-
ridades não detectados pelos órgãos especializados.

l.D- A APROVAÇÃO DAS CONTAS PELA ASSEMBLÉIA


GERAL ORDINÁRIA EXONERA OS ADMINISTRADORES E
IMPEDE A APROVAÇÃO DA PROPOSITURA DA AÇÃO DE
RESPONSABILIDADE

A Lei no 6.404/76 expressamente acolheu o entendimento de que


a aprovação integral das contas da administração isenta os administra-
dores de responsabilidade, exceto se posteriormente for comprovada
a existência de algum vício em tal deliberação, conforme dispõe o seu
artigo 134, § 3°, in verbis:

"Art. 134- (. . .)
"§ 3° -A aprovação, sem reservas, das demonstrações financeiras e
das contas exonera de responsabilidade os administradores e fis-
cais, salvo erro, dolo, fraude ou simulação." (destacamos)

Como se verifica, a lei societária brasileira afastou-se de outros


ordenamentos jurídicos nos quais a aprovação do balanço não acarreta
a exoneração de responsabilidade dos administradores pelos prejuízos
eventualmente causados à companhia.
De acordo com nosso sistema, inspirado na legislação portuguesa,
a aprovação do balanço implica necessariamente a desoneração dos
administradores.
Esta regra fundamenta-se no fato de que, conforme anteriormen-
te referido, a análise das demonstrações financeiras e a tomada das

5 WALDÍRIO BULGARELLI, Regime Jurídico do Conselho Fiscal, Rio de Janeiro:


Renovar, 1998, p. 165.

111
contas da administração não configuram deliberações distintas. Ao
contrário, as contas, que englobam o exame das demonstrações finan-
ceiras e do relatório da administração, são apreciadas em uma única
deliberação- quando da realização da assembléia geral ordinária (ar-
tigo 132, inciso I).
Assim, os acionistas, ao analisarem as demonstrações financeiras,
não estão apenas verificando a regularidade formal dos lançamentos
contábeis efetuados, mas também manifestando a sua concordância
com a gestão dos administradores naquele exercício social.
Neste sentido, Raul Ventura e Luis Brito Correia, ao comentarem
dispositivo da lei portuguesa semelhante ao artigo 134, § 3°, da Lei no
6.404/76, esclarecem que 6 :

"Em Portugal, a aprovação do balanço e contas de gerência tem sido


considerada não como simples declaração de verdade, nem como
mera verificação da regularidade formal dos documentos apre-
sentados, ou quitação da prestação de contas, mas como um ato de
vontade no sentido de aceitar como boa a gestão dos administra-
dores, de sanar as irregularidades e de liberar de responsabilida-
de os mesmos administradores." (destacamos)

Este também é o entendimento de nossa doutrina, conforme se


verifica da lição de Alberto Xavier, nos seguintes termos: 7

"A aprovação das contas anuais, sem reservas, além de fixar o lucro
líquido do exercício, tem pois eficácia liberatória dos administra-
dores, significando isto que a sociedade renuncia a exigir-lhes res-
ponsabilidade pelos prejuízos causados ao seu patrimônio."
(destacamos)

Em outras palavras, a aprovação sem reservas das contas pressu-


põe que os acionistas concordaram com a atuação dos administrado-
res, liberando-os de qualquer responsabilidade por eventuais prejuízos
causados à sociedade. 8

6 RAUL VENTURA e LUIS BRITO CORREIA. Responsabilidade Civil dos Admi-


nistradores de Sociedades Anônimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas. Lisboa,
1970, p. 190.
7 Op. cit., p. 107/108.
8 FRAN MARTINS, Comentários à Lei das S.A., Rio de Janeiro, Forense, 1984, vol.
2, Tomo I, p. 234.

112
Se a Assembléia Geral Ordinária aprova deliberação que implica a
exoneração de responsabilidade dos administradores, este mesmo
conclave fica, conseqüentemente, impedido de aprovar o pedido de
propositura da ação de responsabilidade prevista no artigo 159 da Lei
das S.A.
Com efeito, entendimento em sentido contrário ensejaria flagran-
te contradição com o voto dos acionistas pela aprovação das contas e
com a regra estabelecida no próprio artigo 134, § 3°, da lei societária.
Apenas posteriormente, caso ficasse demonstrado que as contas
foram elaboradas com erro, dolo, fraude ou simulação é que se pode-
ria pretender anular a aprovação anterior e, caso houvesse prejuízo
para a sociedade, ajuizar ação para apurar a responsabilidade dos ad-
ministradores.
Todavia, para tanto seria indispensável, primeiramente, anular a
deliberação que aprovou as contas, após ter sido comprovado que tal
aprovação ocorreu em função de algum dos vícios acima mencionados.
Note-se que a comprovação da existência de vícios na deliberação
somente seria possível em face do surgimento de elementos novos,
que os acionistas não tinham conhecimento quando da realização da
Assembléia Ordinária.
Vale dizer, o voto favorável às contas do exercício é incompatível
com a aprovação, na mesma assembléia, da propositura da ação de
responsabilidade contra os administradores.
Portanto, não pode o acionista que votou pela aprovação, sem
reservas, das contas da administração manifestar-se, na mesma assem-
bléia, favoravelmente à propositura de ação de responsabilidade con-
tra os administradores.

l.E- CONCLUSÃO

Diante do exposto, e considerando que:


a) quando a Lei das S.A. confere à Assembléia Geral poderes para
tomar "as contas dos administradores" está se referindo à uma única
deliberação, que engloba a análise do relatório da administração e das
demonstrações financeiras do exercício;
b) os acionistas têm poder discricionário na apreciação das contas,
podendo aprovar, determinar, modificar ou rejeitar o relatório e as
demonstrações financeiras elaboradas pela administração, uma vez
que tais documentos constituem mera proposta, que somente produz
efeitos jurídicos após a sua aprovação em assembléia geral;
c) a deliberação assemblear que eventualmente não aprovar as
contas da administração deve ser fundamentada, cabendo aos acionis-

113
tas majoritários deixar expresso na ata da Assembléia Geral Ordinária
os motivos que os levaram a recusar as contas propostas pelos adminis-
tradores, sob pena de se caracterizar o abuso no exercício do direito
de voto;
d) a existência de pareceres favoráveis do Conselho Fiscal e dos
auditores independentes, como ocorre com as Consulentes, configura
forte indício de regularidade de tais contas, que somente pode ser
desconsiderado pelos acionistas mediante decisão fundamentada, que
aponte os erros ou as irregularidades não detectados pelos órgãos es-
pecializados;
e) a Lei no 6.404/76, em seu artigo 134, § 3°, expressamente
acolheu o entendimento de que a aprovação integral das contas do
exercício isenta os administradores de responsabilidade, exceto se
posteriormente comprovada a existência de algum vício em tal delibe-
ração;
f) os acionistas, ao analisarem as demonstrações financeiras, não
estão apenas verificando a regularidade formal dos lançamentos con-
tábeis efetuados, mas sim atestando a sua concordância com a gestão
dos administradores naquele exercício social;
g) o voto favorável à aprovação das contas do exercício é incompa-
tível com a aprovação de propositura da ação de responsabilidade con-
tra os administradores;
h) se a Assembléia Geral Ordinária aprova deliberação que impli-
ca a exoneração de responsabilidade dos administradores, este mesmo
conclave fica, conseqüentemente, impedido de aprovar o pedido de
propositura da ação de responsabilidade prevista no artigo 159 da Lei
das S.A.;
i) apenas posteriormente, caso ficasse demonstrado que as contas
foram elaboradas com erro, dolo, fraude ou simulação é que se pode-
ria pretender anular a aprovação anterior e, em seqüência, ajuizar ação
para apurar a responsabilidade dos administradores;
Conclui-se que, caso as Assembléias Gerais Ordinárias das Consu-
lentes aprovem, sem ressalvas, o Relatório da Administração e as
Demonstrações Financeiras, não poderá ser aprovada, nas referidas
Assembléias, a propositura de ações de responsabilidade contra os
membros de seus Conselhos de Administração.

2° QUESITO

"Caso, na forma do quesito 1, sejam rejeitadas as contas da


administração e proposta ação de responsabilidade contra os

114
membros do Conselho de Administração de COMPANHIA ALFA
e de COMPANHIA BETA, tal responsabilização se estenderia (i)
aos conselheiros titulares que não compareceram às Reuniões de
Conselho em que houve a manifestação favorável às demonstra-
ções financeiras; e (ii) aos conselheiros suplentes que jamais com-
pareceram a qualquer reunião dos Colegiados? Qual o procedi-
mento a ser adotado para a substituição dos Conselheiros impe-
didos de continuar no exercício de seus cargos por força do dis-
posto no artigo 159, § 3°, da Lei das S.A.?"

RESPOSTA

2.A. OS PRESSUPOSTOS PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO


DE RESPONSABILIDADE CONTRA OS
ADMINISTRADORES

De acordo com o caput do artigo 159 da lei societária, quando


determinado ato ilícito do administrador causa dano à companhia,
poderá esta mover-lhe ação de responsabilidade civil, após delibera-
ção da Assembléia Geral.
Trata-se da ação social 11 Ut universi", intentada diretamente pela
companhia contra o administrador, visando fundamentalmente ares-
tabelecer o equilíbrio interno da empresa, que foi rompido em decor-
rência de ato praticado por membros de seus órgãos de administração.
Assim, o primeiro pressuposto necessário para a propositura desta
ação constitui o prejuízo para a companhia advindo da atuação de seus
administradores.
No entanto, não são quaisquer atos que causem prejuízos à socie-
dade que dão ensejo à responsabilização dos administradores.
Com efeito, o nosso direito societário consagra a regra da respon-
sabilidade subjetiva dos administradores, motivo pelo qual é preciso
examinar, nos termos do artigo 158 da Lei das S.A., se tais atos dano-
sos foram praticados no exercício de suas atribuições, se os adminis-
tradores atuaram com culpa ou dolo ou, ainda, se procederam com
violação à lei ou ao estatuto.
Em outras palavras, deve-se perquirir se o ato praticado pelos
administradores, do qual decorreu prejuízo para a companhia, repre-
sentou violação a alguns dos deveres a eles impostos pela lei societária.
Neste sentido, os artigos 153 a 156 da Lei das S.A. obrigam o
administrador a exercer suas funções com diligência e lealdade, tendo
em vista o interesse social, sendo-lhe vedado participar de operação
da qual possa resultar prejuízo para a companhia.

115
Assim, o administrador somente pode ser responsabilizado caso
tenha deixado de cumprir, por ação ou omissão, os deveres a ele atri-
buídos pela lei societária.
Saliente-se ainda que a responsabilidade civil dos administradores
de uma sociedade deve ser sempre examinada tendo em vista as fun-
ções por eles exercidas na gestão da companhia 9 .
De fato, o alcance da responsabilidade dos administradores das
sociedades, quer sejam eles membros do Conselho de Administração
ou da Diretoria, será determinado de acordo com sua efetiva partici-
pação na condução dos negócios sociais.
Isto significa que, independentemente do fato de o Conselho de
Administração constituir órgão colegiado e de seus membros terem,
em regra, responsabilidade coletiva e solidária, para que os conselhei-
ros possam ser eventualmente responsabilizados é necessário analisar
se houve sua concreta participação no ato danoso.
Ou seja, na hipótese de dano causado por membros do Conselho
de Administração, há que se verificar, entre outros aspectos, quais os
conselheiros que estavam presentes na reunião, quais manifestaram
sua eventual divergência em relação à deliberação tomada pela maio-
ria e, mesmo, quais as matérias que foram objeto de discussão.
Assim, os Conselheiros que não participaram das reuniões em que
teriam sido deliberadas operações eventualmente prejudiciais à Com-
panhia não podem, em princípio, ser responsabilizados pelos danos
delas decorrentes.
Com efeito, a doutrina reconhece que não se aplica aos membros
do Conselho de Administração qualquer responsabilidade objetiva e
solidária indireta. A propósito, entende-se que os conselheiros res-
pondem apenas por fato próprio e por culpa própria. 10
Vale dizer, em regra, o administrador não é responsável por atos
praticados por outros administradores. No entanto, a lei societária
prevê a possibilidade de responsabilização do administrador que, mes-
mo não tendo participado diretamente do ato lesivo, for com ele coni-
vente, negligenciar em descobri-lo ou, dele tendo conhecimento, dei-
xar de agir para impedir a sua prática, conforme dispõe o artigo 158, §
1°, da Lei das S.A.

9 C f. nosso Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais. Rio de Janeiro:


Forense, 1987. p. 94 e ss.
10 GUIDO BARTALINI, La Responsabilità Degli Amministratori e Dei Direttori
Generali di Società Per Azioni, Torino, UTET, 2000, p. 284.

116
Logo, são responsáveis os conselheiros que participaram direta-
mente do ato ilícito ou que, no exercício normal de seu dever de
diligência, dele tendo conhecimento, não impediram a sua prática.
Dessa forma, para que seja movida ação de responsabilidade con-
tra os administradores de companhia é fundamental que se faça prova
inequívoca da efetiva participação dos administradores no evento da-
noso ou, pelo menos, da possibilidade do administrador ter tomado
conhecimento da prática de atos que acarretem danos à sociedade.
Portanto, constituem elementos essenciais para a propositura da
ação de responsabilidade a caracterização dos prejuízos sofridos pela
sociedade e a prova de que os administradores participaram do ato
lesivo ou de que, tendo tomado conhecimento de tal irregularidade,
se omitiram na defesa dos interesses da companhia.

2.B. O INTERESSE SOCIAL COMO ELEMENTO


PROPULSOR DA AÇÃO DE RESPONSABILIDADE

A ação referida no artigo 159 da Lei das S.A. visa a preservar o


interesse social, consubstanciado na deliberação da maioria dos acio-
nistas de buscar o ressarcimento dos prejuízos efetivamente sofridos
pela companhia em decorrência da atuação dos administradores.
Dessa forma, tal ação de responsabilidade movida contra os admi-
nistradores não pode servir como instrumento para a consecução de
interesses individuais de acionistas.
De fato, a aprovação da propositura de ação de responsabilidade
civil com o fim estranho ao interesse social, como, por exemplo, obje-
tivando o simples afastamento de administradores constituiria exercí-
cio abusivo do direito de voto.
Com efeito, disputas pessoais e de grupos de acionistas não po-
dem ter abrigo na ação social, cabendo ao Poder Judiciário indeferir os
pedidos de responsabilização fundados em motivos alheios ao verda-
deiro interesse da companhia 11 .

2.C. A ANÁLISE DO ARTIGO 159, § zo, DA LEI DAS S.A.


Uma vez deliberada pela Assembléia Geral da companhia a propo-
situra de ação de responsabilidade contra os administradores, ficam os

ll EDUARDO SOUZA CARMO. Relações Jurídicas na Administração das Socieda-


des Anônimas. Rio de Janeiro, Ed. Aide, 1988, p. 180.

117
mesmos impedidos de exercer suas funções, devendo ocorrer sua
substituição nesta mesma assembléia, conforme dispõe o artigo 159, §
2°, da lei societária, in verbis:

"Art. 159 - (. .. .)
§ 2° - O administrador ou administradores contra os quais deva ser
proposta a ação ficarão impedidos e deverão ser substituídos na mes-
ma assembléia".

O impeachment, na sociedade anônima, pressupõe a deliberação


da assembléia. Ao decidir mover contra o administrador da compa-
nhia ação de responsabilidade civil, os acionistas, em sua maioria, dei-
xam claro que não mais nele confiam; desaparecendo o vínculo fidu-
ciário, desaparece, por via de conseqüência, a delegação, e daí o im-
peachment automático, de natureza legaP 2 .
Portanto, o impedimento legal do administrador pressupõe a deli-
beração da assembléia favorável à promoção da ação de responsabi-
lidade, com o conseqüente rompimento do vínculo fiduciário.
Ressalte-se, ademais, que o impeachment dos administradores
constitui medida de caráter excepcionat devendo, dessa forma, o ar-
tigo 159, § 2°, da lei societária ser interpretado restritivamente.
Logo, sendo o artigo 159, § 2°, da Lei das S.A. norma de natureza
excepcional, que não pode sofrer interpretação ampliativa, somente
deve prevalecer em relação àqueles administradores que romperam
o vínculo fiduciário necessário à continuidade no exercício de suas
funções.
Vale dizer, os administradores que não participaram efetivamente
do ato lesivo à sociedade ou não se omitiram no dever de impedir a sua
prática não são atingidos pelo impedimento decorrente da aprovação
da propositura da ação de responsabilidade.

2.D. O PROCEDIMENTO DE SUBSTITUIÇÃO DOS


MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO NO
CASO DE IMPEDIMENTO EM VIRTUDE DA
PROPOSITURA DE AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Caso reste provada a existência de prejuízos para a companhia em


decorrência da atuação ou omissão de seus Conselheiros de Adminis-

12 Cf. o nosso Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar,


1992, p. 75.

IIS
tração e a Assembléia Geral aprove a propositura de ação de responsa-
bilidade contra os mesmos, estarão tais conselheiros impedidos de
continuar a exercer suas funções.
Nesta hipótese, o princípio que deve reger a substituição dos ad-
ministradores é o que preserva a continuidade dos negócios sociais,
evitando-se situações de vacância dos membros da administração.
Com efeito, os cargos devem ser preenchidos da maneira mais
rápida possível, tendo a lei societária determinado que a própria As-
sembléia Geral que aprova a propositura de ação de responsabilidade
será competente para proceder, nesta mesma ocasião, à nomeação dos
novos administradores.
O artigo 150 da Lei das S.A. estabelece que "no caso de vacância
do cargo de conselheiro, salvo disposição em contrário do estatuto,
o substituto será nomeado pelos conselheiros remanescentes e servirá
até a primeira assembléia geral".
Conforme se depreende da leitura de tal dispositivo, a lei societá-
ria facultou ao Estatuto Social a possibilidade de disciplinar, livremen-
te, a maneira pela qual haverá a substituição dos membros do Conse-
lho de Administração nas hipóteses de vacância de cargos.
Diante disso, devem ser analisados os Estatutos Sociais das Con-
sulentes, visto que se eles contiverem regras sobre a forma de substi-
tuição dos membros do Conselho de Administração, tais regras devem
ser respeitadas por todos os acionistas.
Os Estatutos Sociais das Consulentes estabelecem que:

"O Conselho de Administração é composto de 5 (cinco) membros,


dentre eles um Presidente e um Vice-Presidente, a cada um dos quais
corresponde um suplente que substitui o efetivo nos impedimentos, nas
ausências temporárias, ou, na definitiva, até que seja empossado o
sucessor".

Como se verifica, de acordo com a regra estatutária transcrita, na


ocorrência de impedimento do membro titular, o suplente deverá
assumir o cargo de conselheiro.
Ou seja, na presente hipótese, ocorrendo a vacância dos cargos dos
membros do Conselho de Administração das Consulentes, em função
do impedimento dos conselheiros titulares decorrente da aprovação
da propositura de ação de responsabilidade contra os mesmos, deve-
rão os respectivos suplentes assumirem os cargos vagos.

119
2.E- A PROPOSITURA DE AÇÃO DE
RESPONSABILIDADE CONTRA O TITULAR NÃO
ACARRETA IMPEDIMENTO DO SUPLENTE

Cabe ainda analisar se o impedimento do membro titular, em


decorrência da aprovação da propositura de ação de responsabilidade,
seria estendido a seu suplente, impedindo que este assumisse o cargo
vago.
A propósito, lembre-se que, conforme referido, o administrador
somente pode ser responsabilizado caso tenha deixado de cumprir,
por ação ou omissão, os deveres a ele atribuídos pela lei societária.
Ou seja, para que possa ser movida ação de responsabilidade con-
tra o administrador é fundamental a existência de prova inequívoca de
sua efetiva participação no evento danoso ou do descumprimento de
seu de dever impedir a prática de atos que acarretem prejuízos à
sociedade.
Ora, em relação aos suplentes dos Conselheiros de Administração
das Consulentes não se verifica nenhum dos requisitos acima mencio-
nados.
De fato, é inequívoco que eles não contribuíram diretamente para
a prática dos atos supostamente prejudiciais às Companhias que pode-
riam motivar a propositura da ação de responsabilidade.
Além disso, enquanto suplentes, deles não pode ser exigido o
cumprimento de qualquer dos deveres impostos aos administradores
pela lei societária.
Os suplentes, enquanto permanecerem nesta condição, não estão
sujeitos aos poderes, direitos e obrigações dos administradores efeti-
vos, conforme salienta Luís Brito Correia 13 :

"Como se disse acima, os administradores suplentes são administra-


dores designados para substituírem outros administradores (efecti-
vos), nas suas faltas definitivas ou no caso de suspensão, antes de
estas se verificarem. Têm a qualidade de administrador, mas não
estão, enquanto suplentes, a exercer funções e, por conseguinte, não
têm a plenitude dos poderes, direitos e obrigações dos adminis-
tradores ( efectivos)." (grifamos)

13 LUÍS BRITO CORREIA. Os Administradores de Sociedades Anônimas. Almedi-


na: Coimbra, 1993, p. 758.

120
Dessa forma, não se pode sequer impor aos membros suplentes do
Conselho de Administração das Consulentes o dever de impedir a
prática de atos lesivos ao patrimônio social.
Ou seja, os referidos suplentes não praticaram ou deixaram de
praticar nenhum ato que pudesse resultar no rompimento do vínculo
fiduciário estabelecido pelos acionistas quando de sua eleição para os
cargos de administradores suplentes.
Neste sentido, ressalte-se que, sendo o artigo 159, § 2°, da Lei das
S.A., norma de natureza excepcional, somente deve prevalecer em
relação àqueles administradores que participaram efetivamente do
ato danoso à sociedade ou que, ao menos, possuíam o dever de impe-
dir a sua prática.
Portanto, o impedimento dos membros titulares dos Conselhos
de Administração das Consulentes, em decorrência da aprovação da
propositura de ação de responsabilidade contra eles, não pode ser
estendido a seus suplentes, uma vez que estes não participaram de
qualquer ato que pudesse ter causado prejuízo à sociedade e nem
tinham o dever de evitar a sua prática.

2.F- CONCLUSÃO

Diante do exposto, considerando que:


a) para que o administrador possa ser responsabilizado por prejuí-
zos sofridos pela companhia, deve haver prova de que o ato por ele
praticado representou violação a algum dos deveres impostos pela lei
societária, assim como da sua efetiva participação no evento danoso ou
do descumprimento de seu dever de impedir a prática de atos levados
ao seu conhecimento que acarretem prejuízos à sociedade;
b) a ação de responsabilidade deve ter por fundamento a defesa
do interesse social, não podendo servir como instrumento para o con-
secução de interesses individuais de acionistas;
c) uma vez deliberada pela Assembléia Geral da companhia a pro-
positura de ação de responsabilidade contra os administradores, ficam
os mesmos impedidos de exercer suas funções, devendo ocorrer sua
substituição na mesma assembléia, conforme dispõe artigo 159, § 2°
da Lei das S .A.;
d) o fundamento do impeachment do administrador reside preci-
samente na perda de confiança no seu desempenho e conduta, em
função do entendimento da maioria dos acionistas de que ele praticou
determinado ato, em violação a seus deveres legais, que acarretou
prejuízos à companhia;

121
e) o impeachment do administrador constitui medida de caráter
excepcional, somente devendo prevalecer em relação àqueles que
participaram efetivamente do ato lesivo à sociedade ou que, tendo
deles tomado conhecimento, tinham o dever de impedir a sua prática;
f) o artigo 150 da lei societária facultou ao Estatuto Social a possi-
bilidade de disciplinar, livremente, a maneira pela qual haverá a subs-
tituição dos membros do Conselho de Administração nas hipóteses de
vacância de cargos;
g) os Estatutos Sociais das Consulentes prevêem a existência do
cargo de suplente de membro do Conselho de Administração, estabe-
lecendo que, na ocorrência de vacância, os suplentes deverão assumir
os cargos de conselheiros;
h) o impedimento dos membros titulares, em decorrência da
aprovação da propositura de ação de responsabilidade, não pode ser
estendido aos suplentes, uma vez que estes não participaram de
qualquer ato que pudesse ter causado prejuízo à sociedade, nem
tinham o dever de evitar a sua prática;
Conclui-se que, na hipótese de ser aprovada a propositura de ação
de responsabilidade contra os membros do Conselho de Administração
das Consulentes, seus respectivos suplentes deverão assumir os cargos
dos Conselheiros impedidos de continuar a exercer suas funções.
Foi o nosso Parecer, em abril de 2002.

122
HIPOTECA CONSTITUÍDA SOBRE PRINCIPAL
ATIVO DE SOCIEDADE PARA GARANTIA DE
DÍVIDA DE COMPANHIA DO MESMO GRUPO
ECONÔMICO. NULIDADE DA OPERAÇÃO EM
DECORRÊNCIA DA NÃO COMUTATIVIDADE E
DA PRÁTICA DE ATOS DE LIBERALIDADE.
DELIBERAÇÃO ILEGAL DO CONSELHO DE
ADMINISTRAÇÃO.

I -OS FATOS E A CONSULTA

A COMPANHIA ALFA consulta-nos a respeito da validade da


hipoteca constituída em favor do BANCO X sobre o parque industrial
de sua propriedade para garantir dívida contraída pela COMPANHIA
BETA, sociedade integrante do mesmo grupo econômico da qual fazia
parte (doravante designado "GRUPO BETA").
Para tanto, encaminha-nos cópia da petição protocolada nos autos
dos Embargos à Execução movidos por COMPANHIA ALFA em face
do Banco X, na qual requer a declaração da nulidade da referida hipo-
teca.
Sustenta a Consulente nesta petição, em síntese, que a constitui-
ção de hipoteca sobre seu parque industrial para garantir obrigação da
COMPANHIA BETA- sociedade então sujeita a controle comum
- é nula de pleno direito, fundamentalmente, por dois motivos:
a) primeiro, porque contraria o previsto no artigo 245 da Lei das
S .A. que determina que "as operações entre sociedades ligadas têm
como pressuposto de validade a realização de um negócio comutativo";
e
b) segundo, porque "resultou da prática de ato de liberalidade" de
seus administradores, proibido pelo artigo 154, § 2°, alínea "a", da Lei
das S.A..
A nulidade da hipoteca somente está sendo questionada nesta fase
do processo- Embargos à Execução-, em razão da recente mudan-

123
ça do controle acionário da Consulente, "com a conseqüente cessação
da submissão às antigas controladoras".
Atualmente, o controle da Consulente é exercido pela COMPA-
NHIA GAMA, que é "detentora, juntamente com sua controladora,
COMPANHIA DELTA, de mais de 99,9% do seu capital social".
De acordo com a Consulente, "a constituição de um ônus real em
garantia de uma obrigação de terceiro constitui, à luz do citado § 2° do
art. 154 da Lei das S.A., ato contrário a norma de ordem pública e,
portanto, nulo".
Acrescenta, também, que a "norma constante do artigo 245 tem
(. . .) natureza proibitiva e, como tal, acarreta a nulidade dos negócios
jurídicos praticados à sua revelia".
A COMPANHIA ALFA relata, ainda, em sua petição, que "da
constituição da mencionada hipoteca não adveio nenhuma vantagem
para a Embargante", tendo servido "apenas para garantir um emprés-
timo feito à sociedade integrante do mesmo conglomerado, COMPA-
NHIA BETA".
Isto é, a Consulente, ora Embargante, consoante o disposto na
petição, deixou de "atuar em proveito de seu próprio desenvolvimento
social" e se tornou "um mero instrumento de satisfação dos interesses
de outra sociedade" que obteve, "à sua custa, o financiamento deseja-
do".
Ressalta a Consulente que "a hipoteca em causa incide sobre todo
o complexo industrial da sociedade, ora Embargante", isto é, "trata-
se, pura e simplesmente, de [dar em hipoteca] todo o complexo indus-
trial da Embargante, único ativo significativo da mesma" (destaques
originais).
Sustenta, ainda, a Consulente que a constituição da aludida hipote-
ca não estava "autorizada pelo artigo 142 da Lei societária, já que a
constituição de ônus reais tratada no mencionado dispositivo é a realiza-
da em garantia de obrigação da própria companhia e não de terceiro".
Entende, ademais, a Consulente que o Embargado- Banco X-
não pode alegar ser terceiro de boa-fé, "ao qual não se poderiam opor
os vícios que maculam o ato de transmissão do direito real", uma vez
que:
a) "não é terceiro em relação à constituição da hipoteca", pois dita
hipoteca "foi instituída diretamente em seu favor"; e
b) "não é, definitivamente, uma parte de boa-fé", tendo em vista
que, como instituição financeira, estaria "perfeitamente ciente dos re-
quisitos legais de validade exigidos às garantias reais no contexto do
direito societário".

124
Salienta, por fim, a Consulente que "a boa-fé do terceiro, no caso de
nulidade, não tem o condão de sanar o ato", sendo certo que "o ato nulo
não pode ser confirmado pelas partes nem convalesce com o tempo".
Manifestando-se a respeito da pretensão da Consulente, o Banco
X alega, em resumo, que:
a) "a constituição daquele direito real de hipoteca não se enquadra
em quaisquer das hipóteses de nulidade expressas pelo artigo 145 e seus
incisos do revogado Código Civil, sob cuja égide celebrou-se a avença";
b) os artigos 154 e 245 da Lei das Sociedades Anônimas não cons-
tituem normas de ordem pública e não foram sequer violados; e
c) a constituição da hipoteca em garantia do empréstimo contraí-
do pela principal devedora foi aprovada pelo Conselho de Administra-
ção da companhia, estando "respaldada no artigo 142, VIII da Lei
6.404!76".
Encaminha-nos, por fim, a Consulente cópia da decisão proferida
pelo M.M. Juízo, indeferindo seu pedido de declaração de nulidade da
hipoteca ora em análise.
Face ao exposto e anexando os documentos atinentes- peças pro-
cessuais acima mencionadas e documentos ali referidos -, solicita a
Consulente nosso Parecer especificamente sobre as seguintes questões:

"1) Como se caracterizam as operações comutativas, mencionadas no


art. 245 da Lei das S.A.?
2) As operações não comutativas realizadas entre sociedades de um
mesmo conglomerado são violadoras do referido artigo 245 da Lei das
S.A.?
3) Considerando que a constituição da hipoteca sobre o Parque In-
dustrial da COMPANHIA ALFA para garantir dívida contraída
pela COMPANHIA BETA não trouxe qualquer benefício à Consulen-
te, pergunta-se se tal operação pode ser tida como comutativa?
4) A norma insculpida no artigo 245 da Lei das S.A. classifica-se
como dispositiva, servindo apenas para direcionar a conduta do ad-
ministrador, tendo o mesmo o poder final de decisão a respeito daqui-
lo que mais interessa à sociedade, ou como norma cogente e proibitiva,
que impõe a abstenção de certas condutas pelo administrador?
5) Considerando as respostas dadas às perguntas acima, pode-se di-
zer que a constituição da hipoteca sobre o Parque Industrial da
COMPANHIA ALFA violou o artigo 245 da Lei das S.A., sendo,
portanto, nula?
6) Como deve ser entendida a expressão "ato de liberalidade à custa
da companhia", cuja prática pelo administrador é vedada pelo artigo
154, § 2°, "a", da Lei das S.A?

125
7) Considerando o fato de a hipoteca sobre o Parque Industrial da
COMPANHIA ALFA ter sido prestada gratuitamente, sem observân-
cia de condições comutativas e pondo em risco a própria continuidade
da COMPANHIA ALFA, pode-se dizer que a constituição da mencio-
nada hipoteca se caracteriza como ato de liberalidade, nos termos do
artigo 154, § 2°, "a", da Lei das S.A.?
8) Considerando a resposta dada à pergunta anterior, é possível afir-
mar que a constituição da hipoteca sobre o Parque Industrial da
COMPANHIA ALFA violou o artigo 154, § 2°, "a", da Lei das S.A.,
sendo, portanto, nula?
9) É correto afirmar que a constituição de ônus reais tratada no artigo
142, inciso VIII, da Lei das S.A. somente pode ser realizada em ga-
rantia de obrigação da própria companhia e não de terceiro?
1O) Considerando a resposta dada à pergunta anterior, o conselho de
administração da COMPANHIA ALFA poderia ter deliberado a
constituição da hipoteca do Parque Industrial da mesma para garan-
tir dívida da COMPANHIA BETA?"

11-0 PARECER

Tendo em vista a exposição sistemática da matéria, desenvolvere-


mos o presente Parecer com base na base na análise dos seguintes
tópicos:
a) a correta interpretação do disposto no artigo 245 da Lei das
S.A.;
b) a caracterização de atos de liberalidade disciplinados no artigo
154, § 2°, alínea "a" da Lei das S.A.;
c) a natureza cogente das normas contidas nos artigos 245 e 154,
§ 2°, alínea "a" da Lei das S.A.;
d) a extensão dos poderes conferidos aos membros do Conselho
de Administração nos termos do artigo 142, VIII da Lei das S.A.;
e) o exame do caso concreto; e
f) as respostas aos quesitos.

A) A CORRETA INTERPRETAÇÃO DO DISPOSTO NO


ARTIGO 245 DA LEI DAS S.A.

I) A DISTINÇÃO ENTRE GRUPOS DE FATO E DE DIREITO

Os grupos de sociedades, lato sensu, podem ser classificados em


grupos de direito e grupos de fato, segundo tenham ou não, respec-

126
tivamente, sido objeto de um ato formal de constituição, que esta-
beleça um vínculo de natureza obrigacional entre as sociedades gru-
padas1.
A expressão grupo de sociedades é utilizada pela Lei das S .A. apenas
para designar os grupos constituídos na forma de seus artigos 265 e se-
guintes. Tais grupos são usualmente denominados grupos de direito.
Nos grupos de direito, as sociedades integrantes estão ligadas por
um vínculo contratual, formalizado mediante a celebração de uma
convenção, pela qual, nos termos do artigo 265 da lei societária, as
partes convenentes "se obriguem a combinar recursos ou esforços para
a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou
empreendimentos comuns".
As sociedades que compõem o grupo de direito formam uma ver-
dadeira "unidade", na medida em que, por meio da convenção, abrem
mão de sua individualidade estratégica e administrativa, submetendo-
se à direção centralizada do grupo.
Com efeito, o artigo 272 da Lei das S.A. estabelece que a conven-
ção deve definir a estrutura administrativa do grupo, enquanto o arti-
go 273 da referida Lei obriga os administradores das sociedades filia-
das a "observar a orientação geral estabelecida e as instruções expedi-
das pelos administradores do grupo".
A teor do disposto no artigo 276 da lei societária, a administração
geral do grupo pode adotar medidas contrárias ao interesse dos acio-
nistas minoritários de cada companhia que o integra, desde que pre-
vistas na convenção.
Assim, no caso dos grupos de direito, reconhece-se a prerrogativa
da companhia controladora de traçar diretrizes para as sociedades
controladas, sem que as relações comerciais mantidas entre elas apre-
sentem natureza comutativa.
Em oposição aos grupos de direito, como referido, considera-se
que a sociedade controladora e as suas controladas e coligadas, que
não estejam reunidas por um vínculo obrigacional, formam um grupo
de fato, embora a lei societária não utilize tal expressão.
Nos grupos de fato, as sociedades integrantes encontram-se vincu-
ladas apenas por meio de participação acionária, sem se organizarem
obrigacionalmente mediante uma convenção.

Ver a propósito da matéria nosso artigo "A designação 'grupo de sociedades' e a


interpretação do art. 267 da Lei das S.A.", publicado em co-autoria com Amoldo
Wald In: Revista de Direito Mercantil, Ano XXIII, n. 54, abril/junho de 1984, pp.
51-66.

127
Além da ausência de convenção, podem-se distinguir os grupos de
direito dos de fato verificando-se a autonomia existente entre as socie-
dades que os integram em relação à sociedade controladora.
Com efeito, nos grupos de fato, em virtude da ausência de uma
convenção, as sociedades integrantes preservam, cada qual, a sua au-
tonomia jurídica e patrimonial, não estando subordinadas a uma dire-
ção econômica unitária.
Isto significa, em última análise, que a controladora não pode uti-
lizar o seu poder em detrimento de alguma companhia controlada, sob
o pretexto de estar beneficiando o grupo como um todo.

11) A NECESSIDADE DA OBSERVÂNCIA DE CONDIÇÕES


ESTRITAMENTE COMUTATIVAS NAS RELAÇÕES
MANTIDAS ENTRE SOCIEDADES INTEGRANTES DO
MESMO "GRUPO DE FATO"

As relações comerciais mantidas entre as sociedades participantes


do grupo de fato devem obedecer a condições estritamente comutati-
vas, respondendo a sociedade controladora pelos danos causados à
controlada por atos praticados com abuso de poder, conforme dis-
põem os artigos 245 e 246 da Lei no 6.404!1976.
Neste sentido, a exposição de motivos à Lei Societária esclarece
que:

"Para proteção de acionistas minoritários e credores, os artigos 246


e 247 (respectivamente, artigos 245 e 246 da Lei das S.A.] proíbem
os administradores de sociedades controladoras o uso de seu poder
para favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada. As
operações entre sociedades devem manter condições estritamen-
te comutativas, como entidades isoladas". (destacamos)

Modesto Carvalhosa, comentando o artigo 246 que trata da res-


ponsabilidade da sociedade controladora, igualmente acentua a neces-
sidade de as companhias manterem sua autonomia, evitando a confu-
são patrimonial entre controlada e controladora, in verbis:

"O que o presente artigo reafirma é que não pode haver confusão de
patrimônios entre controladora e controlada. E que não pode haver,
sobretudo, a manipulação do patrimônio desta a favor daquela.
A autonomia de personalidade de uma e de outra não pode ser mera-
mente formal. Deve importar absoluta independência de políticas

128
empresarias, de gestão e de utilização do patrimônio da controlada.
Essa autonomia será medida pelo interesse que os minoritários têm
nesta segregação. São assim os interesses dos minoritários, na contro-
lada, que podem medir a estrita observância, ou não, por parte da
controladora, da independência plena da controlada. (.. Y (destaca-
mos)

Verifica-se, portanto, que a Lei das S.A. estabeleceu um conjunto


ordenado e sistemático de normas referentes à conduta e aos deveres
da sociedade controladora de outras companhias, integrantes do cha-
mado "grupo de fato".
No caso do grupo de sociedades de fato, o princípio básico é o de
que o acionista controlador deve exercer o seu poder de maneira legí-
tima e eqüitativa, não oprimindo, nem prejudicando os interesses da
sociedade controlada.
Ou seja, as operações entre sociedade controladora e sociedade
controlada devem observar condições estritamente comutativas, ou
com pagamento compensatório adequado, conforme dispõe o artigo
245 da Lei das S.A ..
O artigo 245 da Lei das S.A. admite, portanto, que as sociedades
integrantes de um grupo de fato contratem entre si; veda, porém, que
tal contratação beneficie apenas uma das partes.
Assim, o artigo 245 da Lei das S.A. estabelece o princípio segundo
o qual os administradores não podem, em prejuízo da companhia,
favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada, responden-
do perante a companhia pelas perdas e danos decorrentes de atos
praticados em infração a tal regra.
O caráter comutativo das relações entre sociedade controladora e
controlada assegura a existência de uma "via dupla", de modo que a
sociedade controladora não favoreça, nem prejudique a controlada.
Por comutatividade, entende-se equivalência e reciprocidade en-
tre as obrigações convencionadas pelas partes, que, por ocasião da
celebração do ajuste, já têm como avaliar, de imediato, os ônus e os
proveitos de suas prestações.
Existe comutatividade, como estabelece o Código Civil francês,
em seu artigo ll 04, "quando cada uma das partes se compromete a
dar ou fazer uma coisa que é considerada como equivalente do que se
dá a ela ou do que se faz por ela. "

2 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2 ed.


São Paulo: Saraiva, 2003. v. 4. tomo li, p. 38.

129
A noção de relações comutativas, portanto, está ligada à idéia de
equilíbrio entre prestações e contraprestações.
No âmbito do direito societário brasileiro, as operações não comu-
tativas ocorrem quando são realizadas em condições não eqüitativas.
Caracteriza, inclusive, abuso de poder de controle o ato do contro-
lador de levar a sociedade controlada a favorecer outra sociedade, ou
o de contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem,
em condições de favorecimento ou não comutativas.
Se do atendimento de alguma determinação da controladora de-
correm danos à controlada, ficará consubstanciado o abuso de poder
da sociedade controladora. Tal hipótese configuraria, com efeito, in-
fração ao disposto no artigo 11 7, § 1°, f, posto que caracterizada a
contratação da controladora com a controlada em condições não eqüi-
tativas.
Ademais, a Comissão de Valores Mobiliários- CVM, ao regula-
mentar o disposto no artigo 117 da Lei das S.A., mediante a edição da
Instrução no 323/2000 inseriu, no elenco de modalidades de exercício
abusivo do poder de controle de companhia aberta:

"VI - a utilização gratuita, ou em condições privilegiadas, de forma


direta ou indireta, pelo acionista controlador ou por pessoa por ele
autorizada, de quaisquer recursos, serviços ou bens de propriedade da
companhia ou de sociedades por ela controladas, direta ou indireta-
mente;"

Portanto, o postulado básico na matéria, que se infere da interpre-


tação sistemática da Lei das S.A., é de que as sociedades integrantes
de um grupo de fato podem manter relações entre si, desde que sejam
as mesmas realizadas em condições comutativas ou de maneira eqüi-
tativa, não podendo a sociedade controladora favorecer os interesses
de uma controlada em prejuízo de outra.

III) OS CRITÉRIOS PARA SE VERIFICAR O CARÁTER


COMUTATIVO DAS RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADES
RELACIONADAS

O Direito Societário tem buscado identificar alguns critérios de


aferição da legitimidade do exercício do poder na sociedade anônima,
de especial relevo quando os acionistas controladores ou os adminis-
tradores podem encontrar-se em situação de conflito de interesses.

130
Os dois testes básicos quanto à aferição do comportamento eqüi-
tativo do controlador ou administrador, consagrados na doutrina, são
os seguintes:
a) comparando a operação com uma outra, hipotética; ou
b) comparando a operação com outras similares, realizadas no
mercado.
De acordo com o primeiro teste, a decisão do controlador ou
administrador será não eqüitativa se o resultado da operação, para a
companhia controlada, for menos vantajoso do que seria caso a deci-
são tivesse que ser tomada por uma pessoa independente, não envol-
vida em qualquer conflito de interesses ("arms-length bargain compa-
rison").
Conforme o segundo teste, o critério fundamental à verificação do
comportamento eqüitativo do controlador consiste na comparação do
negócio com outros similares, praticados no mercado 3 .
A decisão do controlador ou administrador será ilegítima se o re-
sultado da operação, em comparação com outras similares realizadas
no mercado, for menos vantajoso para a companhia controlada, do
que seria caso a decisão tivesse sido tomada por uma pessoa inde-
pendente.
Trata-se do chamado fairness test, bastante utilizado no direito
norte-americano principalmente para analisar situações de celebração
de contratos entre a companhia e seus administradores.
Na realidade, os administradores devem considerar não apenas se
o negócio será f ai r Qusto ou eqüitativo) para a companhia, comparan-
do-se a operação com outras similares realizadas no mercado por ter-
ceiros não interessados, mas também devem avaliar se o contrato será
celebrado de forma a melhor atender os interesses da sociedade 4 .
A operação deve, ainda, ser aprovada por administradores inde-
pendentes, isto é, que não sejam, direta ou indiretamente, interessa-
dos no negócio.
Neste sentido, os Tribunais norte-americanos vêm decidindo que
o administrador é "desinterested ", se não tiver qualquer interesse pes-
soal na operação ou se não estiver sob a influência de outras pessoas
interessadas na realização da operação 5 .

3 ROBERT C. CLARK. Corporate Law. Boston: Little, Brown and Company, I 986.
p.I47ess.
4 THE AMERICAN LAW INSTITUTE. Principies of Corporate Governance: Ana-
lysis and Recommendations. St. Paul, Minn.: American Law lnstitute Publishers,
I994. vol. I,§ 5.02, p. 2I9.

I3I
Ressalte-se, por fim, que o fainess test é bastante aplicado em
questões envolvendo a celebração de contratos entre companhias e
suas subsidiárias e ainda entre companhias que têm administradores
em comum (interlocking directors).
Nestas situações, é preciso verificar se os negócios ainda seriam cele-
brados se não houvesse entre as partes envolvidas qualquer relação 6 .
Assim, ficaria caracterizada a responsabilidade do controlador e
dos administradores da companhia se ficasse provado que:
a) a contratação ocorreu fora dos padrões geralmente adotados no
mercado em negócios idênticos ou semelhantes;
b) o negócio não foi realizado de forma a atender os melhores
interesses da sociedade; e
c) a operação não teria sido concluída caso as partes fossem inde-
pendentes ou não interessadas.

IV) A NÃO COMUTATIVIDADE COMO VIOLAÇÃO DOS


DEVERES DE LEALDADE E DE DILIGÊNCIA

A aprovação de operações não comutativas entre sociedades inte-


grantes de um mesmo grupo de fato constitui, ainda, violação do de-
ver de lealdade, já que o administrador, nos termos do artigo 155 da
Lei das S .A., está proibido de omitir-se no exercício ou proteção de
direitos da companhia.
Dessa forma, não pode o administrador de companhia controlada
autorizar a celebração de operações que tenham o fim exclusivo de
beneficiar a sociedade controladora ou mesmo outra sociedade ligada.
Com efeito, nos termos do artigo 154 da Lei Societária, deve o
administrador sempre atuar tendo em vista os interesses sociais, isto
é, os interesses da sociedade que administra.
A aprovação de operações não comutativas pelos administradores
constitui, ainda, infração ao dever constante do artigo 153 da Lei das
S.A., que impõe ao administrador da companhia a obrigação de em-
pregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo
homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus
próprios negócios 7 .

s SOLOMON, Lewis D. et a!. Corporations and alternative business vehicle. 5th ed.
Santa Monica, CA: Casenotes, 2000.p. 4-20.
6 ROBERTW. HAMILTON. The Law o/Corporations. 5 ed. St. Paul, Minn.: 2000.
pp. 486-488.
7 MODESTO CARVALHOSA, op. cit., v. 4, t. II, p. 31.

132
Verifica-se, portanto, que a contratação entre sociedades inte-
grantes de um grupo de fato em condições não comutativas constitui
violação não apenas ao disposto no artigo 245, como também ao pre-
visto nos artigos 15 5 e 15 3 da Lei das S .A.

B) A CARACTERIZAÇÃO DE ATOS DE LIBERALIDADE


DISCIPLINADOS NO ARTIGO 154, § 2°, ALÍNEA "A" DA
LEI DAS S.A.

Nos termos do artigo 154 da Lei das S.A., o administrador deve


exercer suas atribuições para lograr os fins e no interesse da compa-
nhia, "satisfeitas as exigências do bem público e da função social da
empresa".
Além se serem obrigados a atuar visando a alcançar os fins da
sociedade, os administradores, nos termos do caput do artigo 154 da
Lei das S.A., devem, ainda, conduzir os negócios da companhia tendo
em vista os interesses sociais.
Esse dispositivo legal, em verdade, encerra um dos princípios fun-
damentais em matéria societária - o da prevalência do interesse so-
cial.
De fato, para proteger o interesse sociaC a Lei das S.A. estabelece,
em diversos dispositivos, uma série de limites, objetivando impedir
que os direitos por ela outorgados aos acionistas sejam direcionados
para o atendimento de interesses particulares dos administradores e
sócios, sejam eles minoritários ou controladores.
Neste sentido, o voto a ser proferido nas assembléias gerais da
companhia deve ser manifestado tendo em vista o interesse social,
conforme expressamente determina o artigo 115 da Lei n°
6.404/1976.
A alínea "c" do § 1o do artigo 117 da Lei das S.A. igualmente
consagra o princípio da prevalência do interesse social ao estabelecer
que considera-se modalidade de abuso de poder de controle "promo-
ver alterações estatutárias, emissão de valores mobiliários ou adoção
de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da
companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos
que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários
emitidos pela companhia" (destacamos).
A Lei das S.A., nos termos do § 1° do artigo 154, impõe, ainda,
que a atuação dos administradores objetive atingir os interesses da
sociedade, os quais terão sempre prevalência sobre os de grupos ou
classes de acionistas.

133
Em suma, os administradores devem atuar sempre dentro dos
limites do objeto social, visando a consecução do interesse social e não
os seus próprios, de seus eleitores ou de terceiros.
A Lei Societária subordinou, ainda, o exercício das atividades do
administrador às exigências do bem público e da função social da
empresa, ou seja, devem ser considerados não apenas os interesses dos
acionistas da companhia, como também os da coletividade, já que a
Lei impõe uma atuação dos administradores visando a atender a fun-
ção social da empresa.
A Lei das S.A., em seu artigo 154, § zo, a, veda ao administrador a
prática de atos de liberalidade, que são aqueles que, embora onerosos
para a companhia, não lhe trazem qualquer retorno lucrativo.
Por atos de liberalidade entendem-se os que diminuem, de qual-
quer sorte, o patrimônio social da companhia, sem que tragam para a
mesma nenhum benefício ou vantagem de ordem econômica 8 .
Com efeito, haverá liberalidade quando parcela do patrimônio da
sociedade for conferida indevidamente a terceiros, sem contrapartida
eqüitativa para a companhia.
Justifica-se a proibição da prática de atos de liberalidade, como
salientam Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre Tavares Guer-
reiro, na medida em que "a sociedade anônima tem, por definição
legal, natureza mercantil, sendo o seu patrimônio dedicado exclusiva-
mente à atividade negociai. Impossível, assim, desfalcá-lo sem com-
pensação compatível com sua finalidade essencialmente lucrativa" 9 .
Como a sociedade anônima tem, por definição legal, o intuito
lucrativo, não se compreende que possa a mesma realizar atos que não
visem a alcançar tal objetivo.
Salienta Fran Martins, ademais, que:

"(. ..)pertencendo o patrimônio à sociedade, aos administradores com-


pete apenas gerir esse patrimônio, não dissipá-lo a seu bel-prazer,
com naturais prejuízos para os acionistas, em benefício de quem a
sociedade realiza as suas atividades" 10 . (destacamos)

s Conforme a licão de JOSÉ ALBERTO BASTOS DE MENEZES. "Os atos de


liberalidade nas s~ciedades anônimas". In: Revista de Direito Mercantil, n. li, p.
53-55, 1973.
9 Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979. v.Z.
p. 472.
10 MARTINS, op. cit., v. 2., p. 373.

134
A vedação da prática de atos de liberalidade, porém, não é absolu-
ta, uma vez que as sociedades, regularmente, praticam doações de
pequena monta, de finalidades filantrópicas ou caritativas. Por este
motivo, ao contrário do que ocorria no regime jurídico anterior, per-
mitiu-se a realização de atos gratuitos razoáveis, nas situações previs-
tas no §4° do art. 154 da Lei das S.A.
Isto significa que a proibição poderá ser afastada, por deliberação
do Conselho de Administração ou da Diretoria, quando se tratar de
liberalidade razoável, que consiste não apenas naquela de pequeno
valor, como também na que tenha como beneficiários, por exemplo,
os empregados (assistência médica, alimentar, educacional, etc.) ou a
comunidade de que participe a companhia (auxílio em empreendi-
mentos culturais, artísticos, assistenciais, etc.), tendo em vista as suas
responsabilidades sociais.
Presume-se que da prática de atos gratuitos razoáveis advenham
benefícios indiretos para companhia, uma vez que estará atuando em
prol da comunidade e, em conseqüência, cumprindo a sua função
social.
Afora essas hipóteses de atos gratuitos razoáveis, que encontram
justificativa tanto na sua extensão como na sua finalidade e não afetam
o patrimônio social, constituem atos de liberalidade, de que os admi-
nistradores devem se abster, entre outros, a renúncia imotivada de
direitos; o oferecimento de garantias em favor de terceiros; a distri-
buição de dividendos antecipados, isto é, com base em lucros futuros.
Dessa forma, conclui-se que, por representar a possibilidade de
diminuição do patrimônio social, a outorga de hipoteca para garantir
obrigação de terceiro constitui ato de liberalidade. Trata-se, portanto,
de ato praticado pelo administrador contrário ao interesse social, que
caracteriza desvio de poder, previsto no artigo 154, § 2° da Lei das
S.A..

C) A NATUREZA COGENTE DAS NORMAS CONTIDAS


NOS ARTIGOS 245 E 154, § 2° DA LEI DAS S.A.

Normas de ordem pública ou cogentes são aquelas que estabele-


cem regras cuja observância é obrigatória para todos os particulares,
independentemente de sua vontade. São regras de alcance geral, feitas
em prol da coletividade e que, portanto, não podem ser modificadas
pela vontade privada.
Assim, na aplicação das regras cogentes não se indaga se o indiví-
duo as aceita ou não; elas se tornam obrigatórias por força própria,

135
uma vez que são consideradas necessárias ao equilíbrio social, à manu-
tenção da ordem pública e à segurança da sociedade.
Tais normas podem conter determinações positivas, que imponham
ao indivíduo a prática de um ato ou ação específica (imperativas) ou,
ainda, negativas, quando estabelecem uma vedação (proibitivas).
Imperativas ou proibitivas, as normas cogentes devem ser estrita-
mente observadas pelos particulares, não lhes sendo permitido, tam-
pouco, dispor dos direitos delas advindos.
Já as normas dispositivas são aquelas que, por não serem essenciais
à manutenção da ordem pública, não apresentam conteúdo obrigató-
rio. Com efeito, tais normas contêm diretrizes que podem ou não ser
observadas pelas partes, atuando, por diversas vezes, como "subsidiá-
rias da vontade manifestada pelas partes, preceitos que apenas suprem
a deliberação dos interessados" 11 •
Nem sempre é fácil definir se uma norma possui caráter cogente ou
dispositivo. Alguns autores recomendam que se verifique sua redação:
termos como "não podem" indicam claramente uma imposição, enquan-
to expressões "salvo convenção em contrário" ou "se não for diversamen-
te convencionado" sugerem a presença de uma norma dispositiva 12 •
Na realidade, tais critérios não são os únicos: a análise das expres-
sões e dos termos contidos nas normas representa um exame formal
das mesmas.
De fato, é também relevante o conteúdo das normas, isto é, deve-
se considerar a finalidade para as quais foram criadas ou os interesses,
princípios ou valores que o legislador procurou resguardar ao editá-las.
Como assinala Martinho Garcez Neto, "o conteúdo real da norma,
a sua substância é que decide o verdadeiro caráter do preceito" 13 •
Assim, ainda que não se destinem a toda a coletividade, constituem
normas cogentes ou de ordem pública aquelas que visam a tutelar direi-
tos de determinadas classes ou grupos "merecedores de especial tutela":

"A ordem pública em matéria económica não consiste apenas em prin-


cípios que se dirigem, de modo indiferenciado, a todos os concida-
dãos; particular importância, no âmbito destes, revestem os princípios
destinados a assegurar a proteção de determinados grupos ou

11 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. 18 ed. Rio de


Janeiro: Forense, 1997. v. I. p. 69.
12 ENZO ROPPO. Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. pp.191-192.
13 Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, [s. d]. v.
XXXIV. p. 256.

136
classes sociais, tidos como merecedores de especial tutela sobre-
tudo considerando a debilidade económica e contratual que caracteri-
za a sua posição face à de outros grupos ou classes (. . .):fala-se, a este
propósito, de ordem pública de proteção. "14 (destacamos)

Dessa forma, para que se determine o caráter cogente de uma


norma jurídica, não basta verificar se esta contém preceitos gerais,
aplicáveis a toda a coletividade; do mesmo modo, não devemos nos
ater somente aos termos e expressões literais nela constantes; deve-se
verificar, sobretudo, se estamos diante de uma lei que se propõe a
tutelar determinados interesses jurídicos, merecedores de especial
atenção, ainda que se apliquem apenas a uma parcela específica da
população.
A importância fundamental da distinção entre normas cogentes e
dispositivas é que o sistema jurídico sanciona a violação de uma norma
cogente ou de ordem pública com a pena de nulidade.
Neste sentido, leciona Enzo Roppo que:

"O efeito das normas imperativas pode traduzir-se no facto de todo o


contrato contrastante com as mesmas não ser reconhecido e tutelado
pelo ordenamento jurídico; tal contrato é inteiramente nulo e não
produz qualquer efeito." 15 (destacamos)

Justifica-se tal sanção na medida em que, por serem normas que


visam, precipuamente, à manutenção da ordem pública, qualquer ato
contrário aos preceitos nelas estabelecidos estará, em última análise,
desrespeitando o princípio maior que a lei tenta preservar - o inte-
resse público.
Assim, qualquer ato contrário a uma norma cogente, seja ela impe-
rativa ou proibitiva, será também violador do interesse público, estan-
do, portanto, eivado de nulidade.
A propósito, Clóvis Beviláqua ensina que:

"(. . .) a nulidade é de pleno direito e o ato é nulo, quando ofende


princípios básicos da ordem jurídica, garantidores dos mais valiosos
interesses da coletividade." 16 (destaques originais)

14 ENZO ROPPO, op. cit., pp. 183, 192 e 193.


15 ENZO ROPPO, op. cit., p. 192.
16 CLOVIS BEVILAQUA. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 3 ed. Rio de
janeiro: Francisco Alves, 1927 .v. I. p. 401.

137
No caso ora em análise, as normas constantes dos artigos 245 e
154, § 2°, alínea "a", como referido, visam a tutelar os mais relevantes
interesses em matéria de direito societário - os dos minoritários e o
social.
Com efeito, a prevalência do interesse social sobre a vontade indi-
vidual dos acionistas controladores e dos administradores e a proteção
aos acionistas minoritários constituem princípios básicos que infor-
mam o funcionamento das sociedades anônimas, conforme se infere
de diversos dispositivos da Lei Societária.
Os artigos 245 e 154, § 2°, alínea "a" constituem, por este motivo,
indiscutivelmente normas de ordem pública ou normas cogentes.
Esse era o entendimento de Cunha Peixoto 17 , que, ao analisar o
artigo 119 do Decreto-lei n. 2.627/40, que continha norma hoje dis-
ciplinada do artigo 154, §2° da Lei n. 0 6.404/76, esclarecia que "o
aludido dispositivo legal é de ordem pública(...)".
Aliás, da simples leitura dos supracitados dispositivos pode-se de-
preender que se trata de normas cogentes. Com efeito, a redação dos
dispositivos ("é vedado ao administrador praticar atos de liberalida-
de à custa da companhia ... " e "os administradores não podem, em
prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controladora ou
controlada ... ") conduz à conclusão de que tais normas possuem cará-
ter proibitivo.
Uma vez caracterizadas como normas de ordem pública, os atos
praticados em violação aos preceitos constantes dos artigos 245 e 154,
§ 2°, alínea "a" são considerados nulos.
A propósito, convém destacar que o Código Civil, no parágrafo
único do seu artigo 2.035, determina, expressamente, que "nenhuma
convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública ... ".
Dessa forma, como os artigos 245 e 154, § 2°, alínea "a" consti-
tuem preceitos de ordem pública por encerrarem princípios funda-
mentais em direito societário - o da prevalência do interesse público
e o da proteção ao acionista minoritário -, nos termos do parágrafo
único do artigo 2.035 do Código Civil, a hipoteca ora em análise não
pode ser considerada válida.
Muito embora a Lei societária preveja a responsabilização da so-
ciedade controladora e dos administradores no caso de inobservância
do dispostos nos referidos artigos, nada obsta que de sua violação

17 JOSÉ ALBERTO BASTOS DE MENEZES. "Os Atos de liberalidade nas socieda-


des anônimas". In: Revista de Direito Mercantil, n. 11, 1973, p. 55.

138
advenham duas conseqüências: a possibilidade de atribuição de res-
ponsabilidade aos sujeitos que os descumpriram; e a decretação de
nulidade dos atos praticados ao seu arrepio.
Neste sentido, admitindo, expressamente, a possibilidade de acu-
mulação de medidas na hipótese de cometimento de ilegalidades po-
siciona-se Campos Batalha, in verbis:

"Independentemente da ação de responsabilidade civil contra os ad-


ministradores pelos prejuízos causados ao patrimônio social, qualquer
sócio pode postular a anulação dos atos dos administradores pra-
ticados contra a lei ou o estatuto, ressalvados os direitos de tercei-
ros, em atenção ao princípio da boafé". 18 (destacamos)

Na mesma linha, André Tunc 19 , com base no Direito Comparado,


ensina que a companhia não está obrigada perante terceiros por atos
praticados pelos administradores em violação de seus deveres, poden-
do não apenas responsabilizá-los como também propor ação de resti-
tuição de prejuízos e a anulação do ato.
É importante ressaltar, ademais, que os atos nulos não convali-
dam, isto é, a nulidade de tais atos poderá ser arguida a qualquer
momento.
A respeito da matéria, convém destacar a lição de Fábio Konder
Comparato, em parecer a respeito da imprescritibilidade da ação dire-
ta de nulidade de norma estatutária, in verbis:

"Compreende-se, nessa linha de raciocínio, que quando a lei estabele-


ce uma prescrição brevi tempori para a ação anulatória de delibera-
ções de assembléia geral ou especial, não está se referindo às ações que
objetivem a declaração de nulidade de normas contidas no estatuto
social.
O entendimento contrário, na verdade, conduziria o intérprete a
situações absurdas. Imagine-se, por exemplo, o caso de um acionista
que ingressa na companhia mais de dois anos após a data da delibe-
ração que aprovou norma estatutária nula. Antes de se tornar acionis-
ta, ele não tinha, obviamente, legitimidade para propor ação de nuli-
dade. Depois, já não poderia propô-la,por estar prescrita. Figure-se,

18 WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA. Direito Processual Societário. Rio


de Janeiro: Forense, 1985. p. 290.
19 ANDRE TÜNC. Le Droit Américain des Sociétés Anonymes. Paris: Economica,
1985. p. 148.

139
ainda, que as normas estatutárias deformem inteiramente o tipo so-
cial, criando, por exemplo, acionistas de indústria, que não contri-
buem para a formação do capital social; ou estabelecendo a responsa-
bilidade para uns e ilimitada para outros. O escoamento do curto
prazo de dois anos porventura convalidaria esse monstro? 20 "
(destacamos).

Conclui, finalmente, Comparato que:

"O decurso do tempo pode consolidar situações jurídicas concretas,


intersubjetivas, mas não tem a virtude de convalidar normas jurí-
dicas nulas" 21 . (destacamos).

Assim, tendo a constituição de tal hipoteca desrespeitado o dis-


posto nos artigos 154, §2° e 245 da Lei das S.A., conforme já verifica-
do, e sendo tais dispositivos normas de ordem pública, de caráter
cogente, deve a referida constituição de hipoteca ser declarada nula
de plena direito, podendo tal nulidade ser arguida a qualquer tempo.

D) A EXTENSÃO DOS PODERES CONFERIDOS AOS


MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO, NOS
TERMOS DO ARTIGO 142, VIII DA LEI DAS S.A.

Uma das evoluções mais notáveis da moderna teoria jurídica,


apontada por Norberto Bobbio 22 , refere-se ao estudo do ordenamento
jurídico, em substituição à concepção tradicional, que privilegiava a
análise da norma jurídica.
Nesse sentido, a teoria jurídica, a partir do trabalho clássico de
Santi Romano, de 1917, intitulado "O Ordenamento Jurídico" passou
a dirigir maior atenção ao caráter sistemático do ordenamento jurídi-
co, pondo em relevo a noção de que somente se pode falar em Direito
onde exista um complexo estruturado de normas, formando um todo,
um "sistema normativo".
As normas jurídicas, assim, integram necessariamente um siste-
ma, ligando-se umas às outras, mediante determinados princípios ju-

20 FÁBIO KONDER COMPARATO. "Da imprescritibilidade da ação direta de


nulidade de norma estatutária." In: Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial.
Rio de Janeiro: Forense, 198l.pp. 219-220.
21 Op. cit., 225.
22 NORBERTO BOBEIO. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Polis, 1991.

140
rídicos fundamentais, de tal sorte que constituem elas um bloco siste-
mático de regras 23 .
O significado e alcance de cada norma jurídica somente pode ser
corretamente determinado quando é ela referida e integrada ao orde-
namento jurídico. Daí a aplicação da interpretação sistemática, que é
precisamente aquela que tira seus argumentos e conclusões do pressu-
posto de que as normas que integram um ordenamento ou, mais pre-
cisamente, parte dele (Direito Penal, Civil, Societário, etc.) consti-
tuem uma totalidade ordenada.
As normas jurídicas, assim, "ordenam-se" em função de determi-
nados princípios, que constituem, por assim dizer, a "lógica do siste-
ma". A interpretação isolada de uma norma, sem referência às demais
que integram o ordenamento jurídico (ou parte dele) conduz, normal-
mente, a equívocos, resultando na sua má aplicação ao caso concreto.
Tratando-se a Lei das Sociedades Anônimas de um bem elaborado
sistema de regulação das companhias, não se pode admitir que conte-
nha em seu texto antinomias 24 .
No caso submetido à nossa apreciação, a invocação de uma única
norma jurídica poderia conduzir a uma interpretação incorreta. Com
efeito, há que se referir a hipótese ao conjunto de princípios que,
postos através de normas jurídicas contidas na Lei das S .A., regulam as
atribuições dos administradores e, em especial, dos membros do Con-
selho de Administração.
A competência dos membros do Conselho de Administração en-
contra-se disciplinada no artigo 142, que, dentre outras atribuições,
prevê a possibilidade de os conselheiros autorizarem "a constituição
de ônus reais e a prestação de garantias a obrigações de terceiros"
(inciso VIIII), se o estatuto social não dispuser o contrário.
Não mencionou o legislador, expressamente, ao contrário do que
estabeleceu em relação à prestação de garantias a obrigações de tercei-
ros, se a autorização para a constituição de ônus reais seria unicamente
para garantir dívidas próprias ou também para dívidas alheias.
Para vislumbrarmos o exato alcance da norma contida no inciso
VIII do artigo 142 da Lei das S.A., é preciso conjugá-la com os demais
preceitos legais que tratam das atribuições dos administradores e dos
deveres que lhes são impostos.

23 TOMASO PERASSI. Introduzione alle scienze giuridiche. Padova: CEDAM,


1953. p. 32 e seguintes.
24 Conforme nosso Reforma das S.A. & do Mercado de Capitais. 2 ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998. p.4.

141
Neste sentido, é importante examinar o disposto no inciso VIII do
artigo 142 em conjunto com o previsto no artigo 154, § 2°, alínea "a",
que proíbe a prática de atos de liberalidade.
Ora, como referido, a outorga de garantia a terceiros, em razão
do risco que representa para a sociedade, constitui um ato de libera-
lidade.
Assim, tendo em vista os princípios da prevalência do interesse
social e da proteção ao acionista minoritário que informam o nosso
sistema de direito societário, é vedado ao administrador comprome-
ter o patrimônio social, sem que tenha sido expressamente autorizado
para tanto.
No caso ora em análise, não existe disposição expressa conferindo
poderes aos administradores para autorizar a constituição de ônus
reais para a garantia de obrigações de terceiros.
Dessa forma, tendo em vista que:
a) a Lei das S.A., no artigo 154, § 2°, alínea "a", veda aos adminis-
tradores a prática de atos de liberalidade;
b) a outorga de garantia a favor de terceiros constitui ato de libe-
ralidade;
c) o artigo 142, VIII não autoriza, expressamente, a constituição
de ônus reais para a garantia de obrigações de terceiros; e
d) dentre os princípios que informam o direito societário brasilei-
ro encontram-se os da prevalência do interesse social e o da proteção
dos acionistas minoritários, em função dos quais os administradores
estão impedidos de colocar em risco o patrimônio da companhia,
conclui-se que os conselheiros não estão autorizados a dar os bens
da sociedade que administram em garantia de dívidas de terceiros,
como ocorre na hipótese em análise.

E) O EXAME DO CASO CONCRETO

No caso ora examinado, foi constituída hipoteca sobre o parque


industrial da Consulente para garantir dívida contraída pela COMPA-
NHIA BETA junto ao Banco X.
Segundo nos informa a Consulente, a hipoteca recai sobre o seu
principal ativo, isto é, foi dado em garantia um bem indispensável ao
desenvolvimento do próprio objeto social.
Na época em que foi contraído o empréstimo e constituída a refe-
rida hipoteca, segundo o organograma que nos foi encaminhado pela
Consulente, tanto a COMPANHIA ALFA, quanto a COMPANHIA
BETA faziam parte do mesmo grupo econômico.

142
Diante da ausência de convenção, conclui-se que se trata de um
grupo de fato, motivo pelo qual não havia sido acordada entre associe-
dades integrantes a subordinação a uma direção econômica unitária,
em que haveria a possibilidade de a sociedade controladora traçar
diretrizes para as sociedades 'controladas visando a atender os interes-
ses do grupo.
Dessa forma, não poderia a sociedade controladora usar o seu
poder objetivando atingir os interesses de uma controlada, em detri-
mento de outra, como ocorreu no presente caso, já que o artigo 245
da Lei das S .A. determina expressamente que as relações comerciais
mantidas entre as sociedades participantes do grupo de fato devem
obedecer a condições estritamente comutativas.
Como referido, a operação entre sociedades ligadas é considerada
eqüitativa se comparada a outras similares realizadas no mercado.
Ora, dificilmente uma companhia aprovaria a constituição de hi-
poteca sobre todo o seu parque industrial para garantir um emprésti-
mo que não fosse para si" própria.
No caso em análise, foi dado em hipoteca o bem mais valioso da
Consulente - o seu parque industrial -, sem o qual cessam suas
atividades.
Assim, permitiu-se que, para garantir dívida de outrem, possa vir
a Consulente a ser privada de seu principal ativo - seu parque indus-
trial - bem indispensável ao desenvolvimento do próprio objeto so-
cial.
Ora, o parque industrial da Consulente consiste na finalidade para
a qual a companhia foi constituída, representando a razão econômica
da subscrição do capital social por parte dos acionistas.
Além disso, como assinala Fábio Konder Comparato, o objeto so-
cial está relacionado à projeção externa da companhia, à sua vincula-
ção com terceiros no desenvolvimento de suas atividades empresa-
riais, constituindo o ponto de contato entre a sociedade e a empresa. 25
Ou seja, é por intermédio de seu parque industrial que a Consu-
lente se relaciona com terceiros e exterioriza as suas atividades. Com
a execução da hipoteca, portanto, a Consulente pode ser obrigada a
cessar sua principal atividade.
Assim, tendo em vista que:
a) foi dado em hipoteca o principal ativo da Consulente;

25 FÁBIO KONDER COMPARATO. "Direito de recesso de acionista de sociedade


anônima". Revista dos Tribunais, v. 558, abr./1982, p. 35-36.

143
b) da outorga da hipoteca ora em análise para garantir obrigações
de sociedade ligada não adveio para a Consulente qualquer benefício;
c) verifica-se a prática de atos de liberalidade quando os adminis-
tradores desenvolvem atividades que não beneficiam a companhia,
causando-lhe ou podendo causar-lhe prejuízos;
d) caracteriza ato de liberalidade pelos administradores a consti-
tuição de ônus reais para a garantia de dívidas de terceiros;
e) consideram-se normas de ordem pública os preceitos contidos
nos artigo 245 e 154, § 2° da Lei das S.A.;
f) deve-se interpretar o disposto no artigo 142, VIII conjuntamen-
te com o artigo 154, § 2°, alínea "a" da Lei das S.A.;
concluímos que a constituição de hipoteca sobre o parque indus-
trial da Consulente não foi realizada em condições comutativas, cons-
tituindo ato de liberalidade de seus administradores. Os referidos
administradores, ademais, não estavam autorizados, pelo artigo 142,
inciso VIII da Lei das S.A., a prestar tal garantia, podendo a mencio-
nada hipoteca, por tais motivos, ser considerada nula de pleno direito.

F) AS RESPOSTAS AOS QUESITOS

Como se caracterizam as operações comutativas, mencionadas no


artigo 245 da Lei das S.A.?

RESPOSTA

As operações realizadas em bases estritamente comutativas con-


sistem naquelas cujas condições convencionadas entre as partes são
consideradas eqüitativas, ou seja, observam os princípios de equiva-
lência e reciprocidade entre as prestações. Assim, nas operações co-
mutativas não há que se falar em favorecimento de uma parte em
detrimento de outra.

2° QUESITO

As operações não comutativas realizadas entre sociedades de um


mesmo conglomerado são violadoras do referido artigo 245 da Lei das
S.A.?

144
RESPOSTA

Nos casos em que não existe comutatividade na operação realiza-


da entre sociedades integrantes do mesmo grupo de fato, há clara e
inequívoca violação à norma constante no artigo 245 da Lei das S.A..

3° QUESITO

Considerando que a constituição da hipoteca sobre o Parque In-


dustrial da COMPANHIA ALFA para garantir dívida contraída pela
COMPANHIA BETA não trouxe qualquer benefício à Consulente,
pergunta-se se tal operação pode ser tida como comutativa?

RESPOSTA

Dita operação não foi realizada em condições eqüitativas, motivo


pelo qual não pode ser considerada comutativa.

4°QUESITO

A norma insculpida no artigo 245 da Lei das S.A. classifica-se


como dispositiva, servindo apenas para direcionar a conduta do admi-
nistrador, tendo o mesmo o poder final de decisão a respeito daquilo
que mais interessa à sociedade, ou como norma cogente e proibitiva,
que impõe a abstenção de certas condutas pelo administrador?

RESPOSTA

Tendo em vista que:


a) as normas cogentes ou de ordem pública geralmente vêm acom-
panhadas de expressões que caracterizam imposições, tais como "não
podem" ou "é vedado";
b) o artigo 245 expressamente determina que os administradores
"não podem favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada
( ... )";
c) as normas cogentes, ademais, visam a tutelar interesses merece-
dores de especial atenção;
d) a norma prevista no artigo 245 objetiva resguardar não apenas
os interesses dos acionistas minoritários, como também o interesse
social das companhias integrantes de grupo de fato, individualmente
consideradas;

145
e) a prevalência do interesse social e a proteção aos acionistas
minoritários constituem princípios fundamentais que informam nosso
direito societário,
concluímos que o preceito contido no artigo 245 da Lei das S.A.
constitui norma de caráter cogente ou de ordem pública.

5° QUESITO

Considerando as respostas dadas às perguntas acima, pode-se di-


zer que a constituição da hipoteca sobre o Parque Industrial da COM-
PANHIA ALFA violou o artigo 245 da Lei das S.A., sendo, portanto,
nula?

RESPOSTA

Tendo em vista que:


a) o sistema jurídico sanciona a violação de uma norma cogente ou
de ordem pública com a pena de nulidade;
b) o artigo 245 constitui norma de ordem pública;
c) a constituição de hipoteca sobre o parque industrial da COM-
PANHIA ALFA para garantir dívida contraída pela COMPANHIA
BETA não foi realizada em condições comutativas,
concluímos que foi violado o preceito constante do artigo 245 da
Lei das S.A. e que, portanto, a constituição da mencionada hipoteca é
nula de pleno direito.

6° QUESITO

Como deve ser entendida a expressão "ato de liberalidade à custa


da companhia", cuja prática pelo administrador é vedada pelo artigo
154, § 2°, "a", da Lei das S.A?

RESPOSTA

Atos de liberalidade são aqueles que, embora onerosos para a com-


panhia, não lhe trazem qualquer retorno lucrativo. Assim, haverá libe-
ralidade nos casos em que parcela do patrimônio da sociedade for
conferida indevidamente a terceiros sem contrapartida eqüitativa
para a companhia.

146
7° QUESITO

Considerando o fato de a hipoteca sobre o Parque Industrial da


COMPANHIA ALFA ter sido prestada gratuitamente, sem observân-
cia de condições comutativas e pondo em risco a própria continuidade
da COMPANHIA ALFA, pode-se dizer que a constituição da mencio-
nada hipoteca se caracteriza como ato de liberalidade, nos termos do
artigo 154, § 2°, "a", da Lei das S.A.?

RESPOSTA

Tendo em vista que:


a) foi dado em hipoteca o principal ativo da Consulente;
b) da outorga da hipoteca ora em análise para garantir obrigações
de sociedade ligada não adveio para a Consulente qualquer benefício;
c) verifica-se a prática de atos de liberalidade quando os adminis-
tradores desenvolvem atividades que não beneficiam a companhia,
causando-lhe ou podendo causar-lhe prejuízos;
d) a Lei das S.A. veda, no artigo 154, § 2°, alínea "a", aos adminis-
tradores a prática de atos de liberalidade;
e) caracteriza ato de liberalidade pelos administradores a consti-
tuição de ônus reais para a garantia de dívidas de terceiros,
concluímos que a constituição de hipoteca sobre o parque indus-
trial da Consulente caracteriza um ato de liberalidade.

8° QUESITO

Considerando a resposta dada à pergunta anterior, é possível afir-


mar que a constituição da hipoteca sobre o Parque Industrial da
COMPANHIA ALFA violou o artigo 154, § 2°, "a", da Lei das S.A.,
sendo, portanto, nula?

RESPOSTA

Tendo em vista que:


a) foi dado em hipoteca o principal ativo da Consulente;
b) da referida operação não lhe adveio qualquer benefício, não
tendo sido realizada em condições comutativas;
c) a constituição da hipoteca pode vir a causar-lhe prejuízos, sen-
do, portanto, um ato de liberalidade;

147
d) a Lei, em seu artigo 154, § 2°, veda a prática de atos de libera-
lidade;
e) o artigo 154, § 2°, constitui norma cogente ou de ordem públi-
ca, por conter proibição que visa a tutelar não somente o interesse
social, como também os interesses dos acionistas minoritários;
f) o sistema jurídico sanciona a violação de uma norma cogente ou
de ordem pública com a pena de nulidade,
concluímos que a constituição da hipoteca ora em análise violou o
artigo 154, § 2°, alínea "a" da Lei das S.A. sendo, portanto, nula de
pleno direito.

go QUESITO

É correto afirmar que a constituição de ônus reais tratada no arti-


go 142, inciso VIII, da Lei das S.A. somente pode ser realizada em
garantia de obrigação da própria companhia e não de terceiro?

RESPOSTA

A constituição de ônus reais, tratada no artigo 142, inciso VIII, da


Lei das S.A., somente pode ser realizada em garantia de obrigação da
própria companhia.

10° QUESITO

Considerando a resposta dada à pergunta anterior, o conselho de


administração da COMPANHIA ALFA poderia ter deliberado a
constituição da hipoteca do Parque Industrial da mesma para garantir
dívida da COMPANHIA BETA?

RESPOSTA

Tendo em vista que:


a) deve-se interpretar o disposto no artigo 142, inciso VIII conjun-
tamente com o artigo 154, § 2°, alínea "a" da Lei das S.A.;
b) a constituição de hipoteca sobre o parque industrial da Consu-
lente não foi realizada em condições comutativas, constituindo ato de
liberalidade de seus administradores;
concluímos que os conselheiros não poderiam ter deliberado a
constituição da hipoteca ora em exame, para garantir dívida da COM-
PANHIA BETA.
Foi o nosso parecer em fevereiro de 2004.

148
VOTO MÚLTIPLO. DESCABIMENTO NA
SUBSTITUIÇÃO DE CONSELHEIROS NÃO
ELEITOS MEDIANTE TAL SISTEMA

I - Dos Fatos e da Consulta

A Consulente nos prestou os seguintes esclarecimentos:


a) o Conselho de Administração da Companhia Delta, conforme
seu Estatuto Social, é composto de até ll (onze) membros efetivos e
respectivos suplentes;
b) na última Assembléia Geral Ordinária e Extraordinária foram
eleitos os ll (onze) membros efetivos do Conselho de Administração
da Companhia, bem como os respectivos suplentes;
c) no referido conclave, não foi adotado o processo de voto múlti-
plo para a eleição dos integrantes do Conselho de Administração,
tendo ficado consignado na respectiva Ata que "a eleição do Conselho
de Administração se faria por chapa única";
d) o mandato dos Conselheiros eleitos na última Assembléia Ge-
ral somente encerra-se na Assembléia Geral Ordinária a ser realizada
no exercício social de 2005;
e) durante o exercício de 2003, dois Conselheiros titulares, bem
como seus respectivos suplentes, que haviam sido eleitos na Assem-
bléia Geral de 29.04.2002, renunciaram a seus cargos;
f) o Estatuto Social da Companhia dispõe que "no caso 'de vacân-
cia do cargo de Conselheiro efetivo e não assumindo o respectivo su-
plente, os Conselheiros remanescentes nomearão, entre eles, um substi-
tuto que servirá até a primeira Assembléia Geral";
g) na forma do referido dispositivo estatutário, o Conselho de
Administração da Companhia nomeou dois conselheiros titulares e
dois suplentes para ocuparem os cargos vagos no Conselho até a pri-
meira Assembléia Geral subseqüente;
h) foi recentemente publicado Edital de Convocação da Assem-
bléia Geral Ordinária e Extraordinária da Companhia Delta, o qual

149
continha, como um dos itens da ordem do dia, "eleger membros do
Conselho de Administração";
i) a eleição de membros do Conselho de Administração a ser rea-
lizada na próxima Assembléia Geral visa apenas a (i) substituir os dois
Conselheiros titulares e suplentes que haviam sido provisoriamente
indicados pelo Conselho de Administração em 22.07.2003; (ii) subs-
tituir alguns dos Conselheiros suplentes que foram nomeados na As-
sembléia Geral de 29.04.2002;
Diante dos fatos acima narrados, indaga-nos a Consulente se:
"a) tendo em vista que a eleição dos membros do Conselho de
Administração não se deu mediante voto múltiplo, e que, portanto, a
substituição de alguns membros na próxima AGE não implica em des-
tituição de todo o Conselho, poderá o Presidente da Assembléia recu-
sar o pedido de voto múltiplo apresentado por qualquer acionista?; e
b) a resposta ao quesito anterior seria alterada pelo fato de a
próxima AGE também deliberar a substituição de alguns dos Conse-
lheiros suplentes que foram eleitos na Assembléia Geral realizada em
29.04.2002?"

11- Do Sistema de Eleição pelo Voto Múltiplo

A adoção do processo de voto múltiplo para a eleição dos mem-


bros do Conselho de Administração constitui uma faculdade assegura-
da aos acionistas pelo artigo 141 da Lei das S .A., o qual dispõe que:

"Art. 141 -Na eleição dos conselheiros é facultado aos acionistas


que representem, no mínimo, 0,1 (um décimo) do capital social com
direito a voto, esteja ou não previsto no estatuto, requerer a adoção do
processo de voto múltiplo, atribuindo-se a cada ação tantos votos
quantos sejam os membros do Conselho, e reconhecido ao acionista
o direito de cumular os votos num só candidato ou distribuí-los entre
vários". (destacamos)

Como se verifica, o voto múltiplo consiste no processo de votação


mediante o qual se atribui a cada uma das ações com direito a voto, cujos
titulares tenham comparecido à Assembléia Geral, tantos votos quantos
sejam os membros do Conselho de Administração, reconhecendo-se aos
acionistas o direito de, conforme a sua conveniência, cumular os seus
votos em um só candidato ou distribuí-los entre vários 1 •

CARLOS AUGUSTO DA SILVEIRA LOBO. O Voto Múltiplo na Eleição do

ISO
Ao instituir o voto múltiplo, a Lei das S.A. visou a defender os
interesses de acionistas que, embora minoritários, detêm participa-
ção societária relevante na companhia, conferindo-lhes a possibili-
dade de indicarem ao menos um representante no Conselho de Ad-
ministração.
Neste sentido, a própria Exposição de Motivos da Lei no
6.404/19 7 5 expressamente menciona que "o artigo 141 assegura -
através do processo do voto múltiplo - a representação das minorias
no órgão deliberativo da administração".
Isto ocorre porque, se a nomeação dos integrantes do Conselho de
Administração fosse realizada pelo processo ordinário de votação por
chapa, a totalidade dos conselheiros seria sempre eleita pelo acionista
controlador.
No processo de voto múltiplo, ao contrário, a possibilidade de o
acionista minoritário concentrar todos os votos disponíveis em um
único candidato, enquanto o controlador tem que dividir os seus votos
em vários nomes, a fim de garantir a eleição da maioria dos conselhei-
ros, assegura o caráter proporcional do preenchimento dos cargos do
Conselho de Administração.
Assim, na eleição por voto múltiplo não prevalece o quórum da
maioria absoluta dos acionistas presentes, conforme ocorre na votação
por chapa, mas sim o da maioria relativa de votos, sendo declarados
eleitos os candidatos que receberem o maior número de votos, por
ordem decrescente.

111 - Das Condições de Legitimidade do Requerimento de Voto


Múltiplo

Para que o acionista minoritário tenha direito de requerer a ado-


ção do processo de voto múltiplo, o artigo 141 da Lei das S .A. exige
que ele seja titular de, pelo menos, 10% (dez por cento) do capital
votante.
Todavia, em relação às companhias abertas, a CVM, por meio de
suas Instruções no 165!1991 e 282/1998, reduziu tal percentual, fi-
xando uma escala, de acordo com a qual a participação necessária para
o exercício da faculdade de requerer o voto múltiplo varia conforme o
valor do capital social.

Conselho de Administração das Sociedades Anônimas. Revista Forense, vol. 270, p.


li 7, abr./jun. 1980.

151
Além disso, também constitui condição de legitimidade, para o
pedido do voto múltiplo, que este seja apresentado à sociedade no
prazo de até 48 (quarenta e oito horas) antes da Assembléia Geral que
irá deliberar sobre a eleição dos membros do Conselho de Administra-
ção, conforme dispõe o§ 1° do artigo 141 da Lei das S.A.
A obrigatoriedade de prévia solicitação à Companhia para a ado-
ção do voto múltiplo fundamenta-se na necessidade de se conferir aos
acionistas controladores e minoritários um tempo razoável para que
possam se preparar e decidir a melhor estratégia de distribuição e
concentração dos votos disponíveis, de forma que cada grupo consiga
nomear o maior número de conselheiros possíveis.
Uma vez atendidas as condições acima mencionadas, a Compa-
nhia fica obrigada a promover a eleição dos membros do Conselho de
Administração pelo sistema do voto múltiplo, ainda que o seu Estatu-
to Social nada disponha a respeito.

IV- Da Destituição e Vacância dos Conselheiros Eleitos pelo


Voto Múltiplo

O § 3° do artigo 141 da lei societária determina o procedimento a


ser adotado nas hipóteses de destituição e vacância dos cargos do
Conselho de Administração sempre que os conselheiros tenham sido
eleitos pelo sistema do voto múltiplo, dispondo que:

"Art. 141 - (. . .)
§ 3° - Sempre que a eleição tiver sido realizada por esse proces-
so, a destituição de qualquer membro do conselho de administração
pela assembléia geral importará destituição dos demais membros,
procedendo-se à nova eleição; nos demais casos de vaga, não ha-
vendo suplente, a primeira assembléia geral procederá à nova
eleição de todo o conselho." (destacamos)

De acordo com o dispositivo transcrito, quando a eleição dos


membros do Conselho de Administração tiver sido realizada pelo pro-
cesso de voto múltiplo, a destituição de qualquer conselheiro provoca
a destituição imediata de todos os demais.
Tal regra tem por objetivo assegurar a eficácia da representação
proporcional no Conselho de Administração, evitando que o acionista
controlador, pela simples destituição do conselheiro eleito pelos mi-
noritários, possa inviabilizar a proteção conferida pelo sistema do voto
múltiplo.

152
Nos demais casos de vaga, como ocorre, por exemplo, em virtude
da renúncia do Conselheiro eleito pelo voto múltiplo, este deverá ser
substituído pelo respectivo suplente. Não havendo suplente, a primei-
ra Assembléia Geral subseqüente deverá promover nova eleição para
preencher todos os cargos do Conselho de Administração.
Ressalte-se, contudo, que, conforme se deduz da simples leitura
do § 3° do artigo 141 da Lei das S.A., o procedimento ali instituído
somente é aplicável quando os conselheiros foram escolhidos pelo
sistema do voto múltiplo. 2
A contrário senso, portanto, nas hipóteses em que os conselheiros
tenham sido eleitos pelo processo de votação comum ou por chapa, a
destituição ou a vacância de um de seus membros não implica o afas-
tamento imediato dos demais e tampouco a necessidade de a Assem-
bléia Geral eleger novamente todo o Conselho.
Em outras palavras, se a eleição anterior não tiver sido realizada
pelo sistema do voto múltiplo, os mandatos dos demais integrantes do
Conselho de Administração permanecem plenamente válidos e efica-
zes, não sendo afetados pela destituição ou vacância de outros conse-
lheiros.
Vale dizer, os demais conselheiros continuarão a exercer normal-
mente os seus cargos até o término de seus respectivos mandatos ou
até que eles próprios renunciem ou venham a ser destituídos.
Portanto, existindo vaga em Conselho não eleito pelo sistema de
voto múltiplo, a Assembléia Geral deve ser convocada apenas para
preencher os cargos vagos em decorrência da destituição, renúncia ou
morte de seus ocupantes anteriores.

V - Da legitimidade do pedido de adoção do voto múltiplo na


Assembléia Geral convocada para substituir membros do
Conselho de Administração eleitos pelo voto comum

Conforme acima mencionado, na hipótese de membros do Conse-


lho de Administração eleitos pela votação por chapa renunciarem a
seus cargos, a Assembléia Geral convocada para substituí-los não está
obrigada a eleger novamente todos os conselheiros, podendo apenas
preencher as vagas existentes.

2 FRAN MARTINS. Comentários à Lei das S.A., vol. 2, Tomo I. Rio de Janeiro:
Forense, I 978, p. 287.

153
Diante disso, questiona-se se em tal Assembléia Geral, cujo obje-
tivo é somente eleger os substitutos dos conselheiros renunciantes, os
acionistas minoritários têm direito a requerer a adoção do processo de
voto múltiplo.
A respeito, vale ressaltar que, conforme anteriormente menciona-
do, o objetivo essencial do sistema do voto múltiplo é assegurar a
distribuição proporcional dos cargos do Conselho de Administração
entre os acionistas.
Assim, fica evidente que tal processo de votação não é compatível
com uma eleição que visa apenas a substituir alguns conselheiros, pois,
nesta hipótese, o voto múltiplo não asseguraria a representação pro-
porcional dos acionistas no Conselho de Administração. De fato, a
utilização do voto múltiplo em uma eleição parcial do Conselho ape-
nas beneficiaria o acionista controlador, que teria maiores condições
de eleger os candidatos por ele indicados.
Logo, entendemos que a utilização do sistema do voto múltiplo
pressupõe que a Assembléia Geral esteja sendo convocada para deli-
berar sobre a eleição de todos os membros do Conselho de Adminis-
tração.
Tal conclusão é confirmada pela própria redação do caput do arti-
go 141 da Lei das S.A., na medida em que este dispõe que "na eleição
dos conselheiros é facultado aos acionistas (. ... ) requerer a adoção do
processo de voto múltiplo, atribuindo-se a cada ação tantos votos
quantos sejam os membros do conselho (. .. .) ".
Como se verifica, o dispositivo legal em tela refere-se à eleição
"dos" conselheiros, e não "de" conselheiros, bem como menciona
que, no processo de voto múltiplo, cada ação deverá corresponder a
tantos votos quantos sejam o número de "membros do conselho", e
não o número de "vagas existentes".
As expressões utilizadas no texto legal indicam claramente que a
possibilidade de adoção do sistema de voto múltiplo restringe-se às
hipóteses em que a Assembléia Geral se destina a renovar integral-
mente a composição do Conselho de Administração.
Em verdade, a circunstância de se tratar de eleição para indicar
todos os membros do Conselho constitui um requisito adicional de
legitimidade do requerimento de adoção do processo de voto múlti-
plo, ao lado da solicitação com antecedência de 48 (quarenta e oito)
horas e da titularidade do percentual do capital votante fixado na lei
ou na regulamentação expedida pela CVM.

154
A propósito, já se manifestou Fábio Ulhoa Coelho, nos seguintes
termos 3 :

"Para ter direito à instalação do processo de voto múltiplo, o acionista


minoritário (ou grupo de acionistas) deve atender duas condições: a)
titularizar, nas companhias fechadas, pelo menos 10% do capital vo-
tante, e, nas abertas, de acordo com o capital social, de 5% a 10%
(Inst. CVM n. 165); bJ solicitar a adoção do processo de voto múltiplo
pelo menos 48 horas antes da assembléia geral. Além disso, deve-se
cuidar de composição do conselho de administração, isto é, de
eleição para a renovação do órgão como um todo. O processo de
voto múltiplo não pode ser solicitado quando se trata de eleição
para preenchimento de um ou mais cargos vagos (por morte ou
renúncia de membro, por exemplo)." (destacamos)

Saliente-se, adicionalmente, que não faria sentido entender-se


que o acionista minoritário poderia, nas Assembléias Gerais convo-
cadas para o preenchimento de alguns cargos vagos, requerer a ado-
ção do voto múltiplo e exigir que, em função de seu requerimento,
fossem novamente eleitos todos os integrantes do Conselho de Ad-
ministração.
Isto porque, em primeiro lugar, a eleição compulsória de todos os
conselheiros, prevista no artigo 141, § 3°, da Lei das S.A., somente
pode ser exigida em relação aos casos em que o Conselho tenha sido
eleito pelo voto múltiplo, não se aplicando às hipóteses em que a
votação anterior tenha sido realizada pelo sistema de chapas.
Ademais, o entendimento acima mencionado, caso viesse a preva-
lecer, equivaleria a conferir aos acionistas minoritários o poder de
provocar a destituição de conselheiros legitimamente eleitos pelo
controlador e com mandato ainda em curso, o que representaria uma
completa inversão do princípio majoritário que rege o funcionamento
das sociedades anônimas.
Em vista disso, pode-se afirmar que o direito assegurado ao mino-
ritário de, por meio do voto múltiplo, se fazer representar no Conse-
lho de Administração não pode ser exercido a qualquer momento,
mas apenas nas oportunidades em que se faça necessária a renovação
da composição de todo o Conselho, seja pelo término do mandato dos

3 FÁBIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo: Sarai-
va, 2003, p. 218.

155
conselheiros efetivos, seja por força da aplicação do § 3° do artigo 141
da lei societária, ou ainda em virtude da destituição ou vacância simul-
tânea de todos os cargos existentes.

VI - Conclusão

Diante do exposto, e considerando que:


a) a última eleição para compor o Conselho de Administração da
Companhia Delta não foi realizada pelo sistema do voto múltiplo,
razão pela qual a renúncia de dois conselheiros não implica a obrigato-
riedade de nova eleição para todo o Conselho;
b) a Assembléia Geral convocada deverá deliberar apenas sobre a
substituição dos dois conselheiros renunciantes, visto que os manda-
tos dos demais membros permanecem em vigor;
c) não se verifica, no caso presente, um dos pressupostos de legi-
timidade do requerimento de voto múltiplo, qual seja, a convocação
de Assembléia Geral para deliberar sobre a eleição de todos os mem-
bros do Conselho de Administração;
Conclui-se que as solicitações de voto múltiplo que venham a ser
eventualmente apresentadas por parte de acionistas minoritários da
Companhia Delta antes da Assembléia Geral Ordinária e Extraordinária
de 14.04.2004 podem ser legitimamente recusadas pela Companhia.
Por fim, a deliberação sobre a substituição de alguns conselheiros
suplentes, que haviam sido eleitos na Assembléia Geral de
29.04.2002, também não torna legítimo o pedido de voto múltiplo
que venha a ser eventualmente apresentado por acionistas minoritá-
rios da Companhia.
De fato, se a substituição de determinado número de conselheiros
efetivos, sem a recomposição integral do Conselho, não atende a um
dos requisitos legais para a adoção do voto múltiplo, é evidente que o
mesmo ocorre, com muito mais razão, em face da simples substituição
de alguns suplentes.
Ressalte-se, ademais, que tendo sido o acionista controlador
quem, em processo de votação por chapa, indicou tais suplentes, deve
a ele ser garantido o direito de substituí-los no curso de seus respecti-
vos mandatos, sem que isto confira aos minoritários o direito de exigir
a destituição de todos os conselheiros e a realização de uma nova
eleição para renovar integralmente a composição do Conselho de Ad-
ministração.
Foi o nosso entendimento, em abril de 2004.

156
PARECER 1

AUDITOR INDEPENDENTE- SIGILO PROFISSIONAL

I-ACONSULTA

A empresa de auditoria X solicita-nos um Parecer sobre o âmbito


do poder disciplinar da Comissão de Valores Mobiliários - CVM -
com relação aos auditores independentes, e, mais especificamente, no
que toca à eventual competência daquela autarquia para exigir que o
auditor lhe forneça cópias de seus papéis de trabalho.

11- O PARECER

a) Introdução

l. A questão apresentada pela Consulente é de inequívoca impor-


tância no contexto da regulação do mercado de capitais, no qual a
figura do auditor independente assume relevante papel, tendo em
vista especialmente a adequada delimitação do âmbito de atuação da
Comissão de Valores Mobiliários- CVM- enquanto órgão regula-
mentador e fiscalizador do mercado.
2. Objetivando uma análise ordenada e sistemática da matéria,
desenvolveremos o presente Parecer da seguinte maneira:
a) apreciação do poder de polícia administrativa da CVM com
relação aos auditores independentes, apresentando os princípios que
justificam a tutela daquela autarquia sobre as atividades de auditoria,
assim como os limites de tal poder disciplinar;
b) análise do instituto do sigilo profissional e sua aplicação ao
auditor independente;

1 Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 112, p. 137. outubro/dezembro 1998.

157
c) confrontação das normas regulamentares da CVM que tratam
dos papéis de trabalho com as regras e princípios que impõem ao
auditor independente o dever de guardar sigilo;
d) apresentação de conclusões.

b) Poder de polícia da CVM face ao auditor independente

3. No modelo de regulação do mercado de capitais entre nós ado-


tado, nitidamente inspirado no direito norte-americano, constitui
princípio fundamental o do disclosure, ou seja, da transparência das
informações acerca das companhias que oferecem publicamente seus
títulos aos investidores, em Bolsa de Valores ou no Mercado de Bal-
cão, conforme já tivemos a oportunidade de analisar 2 •
4. Vale observar, a propósito, que a Lei 6.404/76 adotou plena-
mente o princípio do disclosure, objetivando, na disciplina das
Demonstrações Financeiras das companhias, fazer com que elas, ela-
boradas com base em critérios uniformes, de fato reflitam a situação
patrimonial das sociedades anônimas, particularmente daquelas com
seus títulos publicamente negociados.
5. Ademais, consagrou expressamente a Lei das S.A. o dever de in-
formar como uma das obrigações fundamentais do administrador de
companhia aberta, ao dispor, no seu art. 157, § 4°, que cumpre-lhe co-
municar imediatamente à Bolsa de Valores e divulgar pela imprensa
qualquer deliberação da assembléia geral ou dos órgãos de administra-
ção da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa
influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de
vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.
6. A Lei 6.385/76 igualmente consagrou o princípio do disclosure
em vários de seus dispositivos (art. 4, VI, art. 19, art. 20), especial-
mente ao delegar à Comissão de Valores Mobiliários- CVM- o
poder de fiscalizar a veiculação de informações relativas ao mercado
de capitais (art. 8°, 111). Ademais, fixou claramente a competência
normativa da CVM relativamente: à natureza e periodicidade das
informações prestadas pelas companhias abertas; aos relatórios da ad-
ministração das companhias; aos padrões de contabilidade e pareceres
dos auditores independentes; à divulgação de deliberações da assem-
bléia geral ou dos órgãos de administração (art. 22, parágrafo único 3).

2 Cf. o nosso livro. Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais, Rio de


Janeiro, Forense, 1987, pg. 123 e seguintes.
3 Nota do Autor: O parágrafo úncio do art. 22 da Lei 6.385/76 passou a vigorar no

158
7. Uma vez adequadamente provido das informações relevantes
sobre a companhia e sobre os títulos que está ela a emitir, o investidor
tem condições de avaliar o mérito do empreendimento e a qualidade
dos papéis.
8. O postulado básico da regulação do mercado de capitais, assim,
é de que o investidor estará protegido na medida em que lhe sejam
prestadas todas as informações relevantes a respeito das companhias
com os títulos publicamente negociados. As informações financeiras
sobre as companhias abertas devem ser fidedignas, refletindo portan-
to a real situação financeira das companhias, e comparáveis, seguindo,
na sua elaboração e apresentação, os mesmos critérios.
9. Daí a importância da auditoria externa das demonstrações fi-
nanceiras das entidades atuantes no mercado de capitais, atividade na
qual está presente inegável interesse público.
10. Tanto no caso das companhias abertas como das instituições
financeiras justifica-se a obrigatoriedade de auditoria externa, dado o
interesse público envolvido na correta apresentação de suas contas.
Com efeito, busca-se, com a auditoria independente, verificar se os
demonstrativos não só apresentam corretamente a situação financeira
da empresa auditada, como também se estão conformes aos princípios
de contabilidade geralmente aceitos 4 .
11. Cumpre ao auditor independente conferir credibilidade às
demonstrações contábeis das companhias abertas e das instituições
financeiras, na medida em que revisa, como especialista que é, referi-
das demonstrações, de maneira absolutamente isenta, neutra, com
total autonomia frente à empresa auditada.
12. Com efeito, o objetivo da auditoria é precisamente o de veri-
ficar se os registros contábeis estão em conformidade com os princí-
pios de contabilidade geralmente aceitos e se as demonstrações finan-
ceiras refletem adequadamente a situação econômica do patrimônio e
os resultados verificados no exercício examinado 5 .
13. Nesse sentido, o Conselho Federal de Contabilidade, em suas
Normas de Auditoria Independente das Demonstrações Contábeis
(NBC - T - 11), assim conceitua a auditoria independente:

§1° do mesmo artigo com a vigência da Lei n° 9.447 de 14.03.97, e ganhou nova
redação com Decreto n° 3.995 de 31.10.2001.
4 HUGO ROCHA BRAGA Introdução à Análise Contábil e Financeira, Rio de
Janeiro, IBMEC, 1975, pg. 8.
s HILÁRIO FRANÇA e ERNESTO MARRA Auditoria Contábil, São Paulo, Ed.
Atlas, 1982, pg. 27.

159
A auditoria independente das demonstrações contábeis constitui o
conjunto de procedimentos técnicos que tem por objetivo a emissão de
parecer sobre a adequação com que estas representam a posição patri-
monial e financeira, o resultado das operações, as mutações do patri-
mônio líquido e as origens e aplicações de recursos da entidade audi-
tada, consoante as Normas Brasileiras de Contabilidade e a legis-
lação específica, no que for pertinente.

14. Tendo em vista as atividades que desenvolve, quando revisa as


contas das companhias abertas e das instituições financeiras, manifes-
ta-se, na atuação do auditor independente, inequívoco interesse públi-
co, dada a sua função de conferir credibilidade a ditas contas.
15. É a presença do interesse público na função do auditor inde-
pendente que legitima o poder de polícia administrativa conferido à
CVM, à semelhança do que ocorre em outros países, conforme já
analisamos 6 , para regulamentar e fiscalizar o exercício da atividade de
auditoria independente no âmbito do mercado de valores mobiliários.
16. Assim, a atividade de auditoria independente das companhias
abertas e instituições financeiras integrantes do mercado de valores
mobiliários está submetida ao poder de polícia da CVM, nos limites
da legislação específica, conforme veremos em seguida.
17. Inicialmente, a Lei das S.A., em seu art. 177, § 3°, estabelece
que as demonstrações financeiras das companhias abertas deverão ob-
servar as normas expedidas pela CVM, devendo, ademais, ser obriga-
toriamente auditadas por auditores independentes registrados na
CVM.
18. A Lei 6.385/76, em seu art. 26, igualmente dispõe que somente
as empresas de auditoria contábil ou auditores independentes registra-
dos na CVM poderão auditar as demonstrações financeiras das compa-
nhias abertas e das instituições financeiras integrantes do sistema de dis-
tribuição e intermediação do mercado de valores mobiliários.
19. Adicionalmente, dispõe a Lei 6.385/76, em seu art. 26, § 1°,
que compete à CVM estabelecer as condições para o registro e seu
procedimento, assim como definir os casos em que o registro poderá
ser recusado, suspenso ou cancelado. Ao longo do tempo, a CVM foi
baixando normas regulamentadoras do dispositivo acima mencionado,

6 "Poder de Polícia da CVM frente aos auditores independentes", in Revista de


Direito Administrativo, Rio de Janeiro, FGV, vol. 193, julho-setembro de 1993, pg.
384 e seguintes.

160
sendo que, presentemente, a Instrução CVM 216 7, de 29/06/94, dis-
põe sobre o registro e o exercício da atividade de auditoria inde-
pendente no âmbito do mercado de valores mobiliários, define os
deveres e responsabilidades do auditor independente, bem como os
casos em que o registro pode ser recusado, suspenso ou cancelado.
20. A Lei 6.385/76, ademais, previu, em seu art. 1°, V, o estabele-
cimento da disciplina e da fiscalização, dentre outras, da atividade de
auditoria das companhias abertas.
21. Nos termos do art. 9° 8, I, letra e, da Lei 6.385/76, foi conferi-
da à CVM, no âmbito do seu poder disciplinar do mercado de valores
mobiliários, competência para examinar os registros contábeis, livros
ou documentos dos auditores independentes.
22. Constitui dever fundamental do auditor atuar de maneira inde-
pendente9, fundamentando sempre seu relatório em argumentos abso-
lutamente técnicos 10 . Se ou auditor comprometer sua independência ou
agir em desacordo às normas técnicas de sua profissão, causando, em
virtude de sua atuação dolosa ou culposa, danos a terceiros 11 , deve por
eles responder civilmente, a teor do art. 26, § 2° da Lei 6.385/76 12 .

7 Nota do Autor: A Instrução CVM 216 foi revogada pela Instrução CVM 308 de
14.05.1999.
8 Nota do Autor: O art. 9° caput e inciso I da Lei n° 6.385/76 tiveram sua redação
modificada pelo Decreto n° 3.995 de 31.10.2001, passando a vigorar da seguinte
forma: "Art. 9° A Comissão de Valores Mobiliários, observado o disposto no §2° do
art. 15, poderá: I - examinar e extrair cópias de registros contábeis, libras ou
documentos, inclusive programas eletrônicos e arquivos magnéticos, ópticos ou de qual-
quer outra natureza, bem como papéis de trabalho de auditores independentes, devendo
tais documentos ser mantidos em perfeita ordem e estado de conservação pelo prazo
mínimo de cinco anos:"
9 O Conselho Federal de Contabilidade, em suas Normas Profissionais de Auditor
Independente (NBC-P-1 - 1.2.) assim dispõe: O auditor deve ser independente, não
podendo deixar-se influenciar por fatores estranhos, por preconceitos ou quaisquer
outros elementos materiais ou afetivos que resultem perda, efetiva ou aparente, de sua
independência.
10 A propósito, as Normas Profissionais de Auditor Independente (NBC-P-1- l.l.)
estabelecem que: l.l.l - O contador, na sua função de auditor independente, deve
manter seu nível de competência profissional pelo conhecimento atualizado das Normas
Brasileiras de Contabilidade, das técnicas contábeis, especialmente na área de audito-
ria, da legislação inerente a profissão, dos conceitos e técnicas administrativas e da
legislação específica aplicável à entidade auditada. 1.1.2. - O auditor deve recusar
os serviços sempre que reconhecer não estar adequadamente capacitado para resolvê-
los, contemplada a utilização de especialistas noutras áreas, face à especialização
requerida e dos objetivos do contratante.
11 No direito norte americano, a jurisprudência faz uma distinção entre a responsabi-

161
23. Por outro lado, há determinados limites ao poder de polícia
administrativa delegado à CVM com relação à normatização e fiscali-
zação dos auditores independentes, os quais obedecem a alguns prin-
cípios jurídicos fundamentais, conforme veremos em seguida.
24. Nos termos da legislação e da regulamentação administrativa
-Lei das S.A., art. 177, § 3°; Lei 6.385/76: art. 1°, inciso V 13 ; art. 22,
parágrafo único, inciso IV; art. 26, §§ 1° e 2°; e Instrução CVM n°
216/94, especialmente: art. 1° 14 ; art. 24 15 : art. 26 16; e art. 29 17 - dois
são os pressupostos de existência do poder de polícia da CVM com
relação ao auditor independente:
1°) a natureza do trabalho desenvolvido pelo auditor; e
2°) a natureza da entidade auditada.
25. Com relação à natureza do trabalho, vale notar que o auditor,
seja pessoa física, seja pessoa jurídica, desenvolve usualmente outros
trabalhos típicos da profissão de contador, que não se confundem com
o de auditoria, para os efeitos da Lei 6.385/76.
26. Com efeito, além dos trabalhos de auditoria, pode o contador,
no exercício de suas atividades profissionais, realizar outras tarefas,
tais como: instalação de sistemas de contabilidade; escrituração; ela-

!idade civil do auditor com relação a seu cliente da responsabilidade civil com relação
aos terceiros que confiaram em seus relatórios e opiniões. Como regra geral, o auditor
pode ser civilmente responsabilizado por seu cliente por mera negligência. Porém sua
responsabilidade com relação a terceiros não é tão abrangente: considera-se que, na
ausência de lei especial impondo um sistema de responsabilidade mais rigoroso, o
terceiro, para ser ressarcido dos prejuízos sofridos, deve demonstrar que o auditor agiu
fraudulentamente. (E. McGRUDER FARIS Accouting and Law in a Nutshell, St.
Paul, West Publishing Co. I984, pg. 363)
12 A propósito da responsabilidade do auditor, a jurisprudência dos tribunais norte-
americanos assim expressou os princípios fundamentais a orientar a matéria: ... The
certified public accountant, therefore, in providing accounting statements which all
concemed may accept as disinterested expressions, based on technically sound proce-
dures and exprienced judgment, may serve as a kind of arbitrer, interpreter, and
umpire among all the varied interests. Thereby he can eliminate the necessity for costly
separete investigations by each party at interst, as well as endless doubt, delays,
misunderstanding, and controversies which are so much sand in the economic machine.
(in Touche, Niven, Bailey & Smart, 37 S.E.C. 629, 670- 1957)
13 Nota do Autor: O art. I da Lei 6.385/76 ganhou nova redação com a Lei 10.303
de 3l.10.200I, passando o inciso V do referido artigo a vigorar, após tal modificação,
no inciso VII do mesmo artigo.
14 Nota do Autor: vide art. I 0 da Instrução 308 de I4.05.99.
15 Nota do Autor: vide art. I9 da Instrução CVM 308 de I4.05.99.
16 Nota do Autor: vide art. 2I da Instrução CVM 308 de I4.05.99.
17 Nota do Autor: vide art. 25 da Instrução CVM 308 de I4.05.99.

I62
boração de demonstrativos financeiros; contabilidade de custos; con-
troladoria; planejamento fiscal; investigações especiais 18 . Na execução
de tais atividades, o contador, por definição, não está submetido ao
poder disciplinar da CVM 19 .
27. Daí decorre que o auditor deve obedecer às normas da CVM
apenas quando está exercendo a atividade típica de auditoria inde-
pendente, para o fim específico de emitir parecer sobre a adequação
das demonstrações financeiras: à real situação patrimonial e financeira
da entidade auditada; à legislação específica aplicável; e aos princípios
de contabilidade geralmente aceitos.
28. As demonstrações financeiras objeto da auditoria inde-
pendente compreendem: o balanço patrimonial; as respectivas
demonstrações do resultado, das mutações no patrimônio líquido e
das origens e aplicações de recursos; as notas explicativas (NBC-T -11-
1.1.3, do Conselho Federal de Contabilidade).
29. O Parecer do Auditor Independente, conforme as regras esta-
tutárias baixadas pelo Conselho Federal de Contabilidade, constitui o
documento mediante o qual o auditor expressa sua opinião sobre as
demonstrações contábeis da entidade auditada.
30. Dada a responsabilidade técnico-profissional assumida pelo
auditor na emissão do Parecer, tal documento deve obedecer, na sua
elaboração e redação, as normas específicas baixadas pelo Conselho
Federal de Contabilidade (NBC-T-11-3.1.2).
31. Conforme dispõem as regras estabelecidas pelo Conselho Fe-
deral de Contabilidade, o Parecer do Auditor Independente deve ex-
pressar, de maneira clara e objetiva, se as demonstrações contábeis

18 HARRY A. FINNEY & HERBERT E. MILLER The accountig process, Prentice


Hall, 1963.
19 Em interessante decisão, a I a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, apreciando a questão da natureza do serviço de auditoria independente, e
apartando-o das demais atividades que podem ser executadas por contador, concluiu
que : ... A auditoria independente, cujo conceito é técnico ... não se compatibiliza com
as funções complementares de execução, direta ou indireta, de trabalhos contábeis,
visto que aí deixará de ser independente, porque auditará, em exame analítico e
pericial, fatos próprios. Em sua declaração de voto, entendeu o Relator que: A função
do auditor, portanto, tem como conteúdo instrumental o examinar, pericial ou analiti-
camente, as demonstrações contábeis a exame e que sirvam para a emissão do
parecer técnico. Daí o qualificativo de independente que se lhe dá corresponder
à sua desvinculação com a empresa contratante quer no plano jurídico, afetivo,
técnico ou econômico, por outros motivos que não seja a própria atividade
atinente à auditoria. (Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, vol. 135, pg. 2o5)

163
auditadas, na opinião do auditor, tendo em vista as Normas Brasilei-
ras de Contabilidade e a legislação específica, correspondem: à posi-
ção patrimonial e financeira; ao resultado das operações; às mutações
do patrimônio líquido; e às origens e aplicações de recursos (NBC-T-
11-3.1.8.).
32. Tendo em vista a opinião técnica do auditor, o Parecer pode
ser emitido nas seguintes modalidades: sem ressalva, quando as
demonstrações financeiras foram elaboradas em conformidade às
Normas de Auditoria Independente das Demonstrações Contábeis;
com ressalva, quando o auditor conclui que, embora tenha restrições
ou discordâncias, não são elas de tal monta que requeiram parecer
adverso ou abstenção de opinião; parecer adverso, caso em que o
auditor emite opinião de que as demonstrações contábeis não repre-
sentam, adequadamente, a posição patrimonial e financeira, e/ou o
resultado das operações, e/ou as mutações do patrimônio líquido,
e/ou as origens e aplicações dos recursos da entidade; parecer com
abstenção de opinião, na hipótese em que o auditor deixa de emitir
opinião sobre as demonstrações contábeis, por não ter obtido compro-
vação suficiente para fundamentá-la (NBC-T-11.3.).
33. Assim, conforme se pode verificar, a emissão do parecer do
auditor sobre as demonstrações contábeis é disciplinada por normas
específicas baixadas pelo Conselho Federal de Contabilidade, as quais
foram objeto de aceitação expressa por parte da CVM, nos termos dos
arts. 24 e 25 de sua Instrução 216/94.
34. É apenas quando está no exercício da atividade de auditoria
independente, isto é, quando está emitindo Parecer de Auditor Inde-
pendente que o auditor submete-se ao poder disciplinar da CVM. Ao
realizar qualquer outra atividade profissional, o auditor não está sub-
metido às normas regulamentares baixadas pela CVM, muito menos
ao seu poder de fiscalização.
35. Assim, quando promove investigações especiais, implanta sis-
temas de contabilidade, estuda alternativas de planejamento fiscal,
etc., mesmo que a contratante seja uma companhia aberta ou uma
instituição financeira, o auditor, no exercício de tais atividades, que
são inteiramente estranhas ao mercado de valores mobiliários, não
está obrigado a cumprir as normas baixadas pela CVM nem a seguir
qualquer determinação por ela adotada.
36. Se, por exemplo, o auditor é contratado para realizar uma
investigação especial na contabilidade de uma companhia aberta, para
avaliar o seu patrimônio, no caso de alienação de controle acionário,
ou para testar o seu sistema de escrituração, em tais hipóteses, como

164
não está atuando para o fim de emitir Parecer do Auditor Inde-
pendente, descabe qualquer atuação fiscalizadora da CVM.
37. Com relação à natureza da entidade auditada, deve ser obser-
vado que constitui pressuposto indispensável à competência normati-
va e fiscalizadora da CVM o fato de estar o auditor a emitir parecer
sobre entidade atuante no âmbito do mercado de valores mobiliários
(Instrução CVM n° 216/94, arts. 1° 1 24 e 29).
38. Nesse sentido, aliás, já tivemos o ensejo de comentar que o
poder de polícia administrativa da CVM com relação ao auditor refe-
re-se apenas ao exercício da atividade de auditoria independente no
mercado de valores mobiliários, não implicando em controles exercidos
pela CVM, genericamente, com relação à profissão de contador20 .
39. A lei 6.385/76, em seu art. 26, caput, e § 1° é clara nesse
sentido, ao dispor que:
Art. 26- Somente as empresas de auditoria contábil ou auditores
contábeis independentes, registrados na Comissão de Valores Mobiliá-
rios, poderão auditar, para os efeitos desta lei, as demonstrações fi-
nanceiras de companhias abertas e das instituições, sociedades ou
empresas que integram o sistema de distribuição e intermediação
de valores mobiliários.
§ 1°- A comissão estabelecerá as condições para o registro e o seu
procedimento, e definirá os casos em que poderá ser recusado, suspenso
ou cancelado. (destacamos)
40. Ou seja, deve ser previamente registrado na CVM, submeten-
do-se ao seu poder disciplinar, o auditor que realiza a auditoria inde-
pendente das companhias abertas e das entidades que integram o sis-
tema de distribuição e intermediação de valores mobiliários, e que são
as Bolsas de Valores e as instituições financeiras que atuam como
underwriters e/ou como intermediários no mercado de valores mobi-
liários (arts. 15 a 18 21 da Lei 6.385/76).
41. É com relação às entidades acima mencionadas que existe, na
atividade de auditoria independente de suas demonstrações contá-
beis, interesse público a justificar a atuação fiscalizadora da CVM.
42. Por outro lado, se o auditor é contratado para auditar as
demonstrações contábeis de uma companhia fechada, não existe, em

20 Cf. o nosso Parecer, Poder de Polícia da CVM frente aos auditores independentes,
cit., itens 50 e 51.
21 Nota do Autor: Os arts. 15 a 18 da Lei 6.385/76 tiveram suas redações modifica-
das pelas Leis n° l0.3030de 31.10.2001 e 10.411 de 26.02.2002, assim como pelo
Decreto n° 3.995 de 31.10.2001.

165
tal mister, qualquer interesse público envolvido. Em tal caso, portan-
to, o auditor não se submete ao poder de polícia da CVM.
43. Portanto, é legítimo o exercício do poder regulamentar e dis-
ciplinar da CVM com relação à figura do auditor independente única
e exclusivamente quando presentes, concomitantemente, os dois ele-
mentos essenciais abaixo indicados:
a) o auditor está realizando a atividade específica de auditoria
independente, para o efeito de emitir o Parecer do Auditor Inde-
pendente; e
b) a entidade auditada é uma companhia aberta ou uma instituição
integrante do sistema de distribuição e intermediação do mercado de
valores mobiliários.

c) O sigilo profissional do auditor independente

43. Uma das mais notáveis evoluções dos modernos sistemas jurí-
dicos é a que diz respeito à positivação dos chamados direitos da
personalidade, próprios à pessoa humana.
44. Dentre os direitos da personalidade destacam-se aqueles refe-
rentes à privacidade e à manutenção do sigilo. Nesse sentido, a ordem
jurídica visa proteger a intimidade, a vida privada, a qual abrange,
conforme tem acentuado a doutrina, todos os aspectos que, por qual-
quer razão, não gostaríamos de ver cair no domínio público 22 . Tal
proteção da ordem jurídica, embora sofra algumas limitações, visa
precisamente resguardar o direito que todas as pessoas têm de man-
ter-se em reserva, de velar por sua intimidade, enfim, de não permitir
que se lhes devassem a vida privada 23 .
45. Os componentes básicos da privacidade e que merecem a
tutela jurídica são, conforme aponta a doutrina 24 , os seguintes:
a) o físico (imagem, constituição, etc.);
b) o psíquico (caráter, anomalias, etc.);
c) o afetivo (sentimentos, afeto, etc.);
d) o vivencial (relações amorosas, profissionais, familiares, etc.);
e) o material (condições econômicas, nível de vida, etc.).

22 RENÊ ARIEL DOTTI, Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação, São


Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980. pg. 23.
23 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1983, tomo VII, pg. 125.
24 CELSO BASTOS, "Sigilo Bancário" in Estudos e Pareceres- Direito Público, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993, pg. 64.

166
46. No processo de positivação do direito à vida privada, como um
dos direitos essenciais da personalidade, a vigente Constituição Fede-
ral estabeleceu, em três dispositivos, a inviolabilidade do sigilo de
dados, o resguardo do sigilo profissional e o direito à privacidade.
4 7. Nesse sentido, entre os direitos e garantias individuais, estabe-
leceu o art. 5° da Constituição Federal, em seus incisos X, XII e XIV
que:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações


telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

XIV- é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado


o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
48. A teor do inciso XIV do art. 5° da Constituição Federal, garan-
te-se, conforme refere a doutrina 25 , a faculdade de resistir ao devassa-
menta de informações, mesmo ilegais, que o sujeito, em razão de sua
atividade profissional, pode lhe ver confiadas.
49. Em princípio, considera-se que está protegido pelo sigilo pro-
fissional aquele que desempenha ofício que, por sua natureza, exige a
ampla confiança por parte e no interesse de quem confidencia. Nesse
sentido, constituem exemplos tradicionais de pessoas submetidas ao
dever de sigilo o médico, o advogado, o psicólogo, o banqueiro, o
auditor, etc. 26
50. A possibilidade juridicamente amparada de resistir ao devassa-
menta, mantendo-se, pois, o sigilo profissional, constitui um instru-
mento fundamental para garantir o indivíduo que confiou informa-
ções de sua vida privada, que não deseja ver reveladas a terceiros.
51. Daí ter o ordenamento jurídico, em vários dispositivos, con-
sagrado o dever de sigilo profissional, por parte daqueles que, em

25 TERCIO SAMPAIO FERRAZ, "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os


limites à função fiscalizadora do Estado", Caderno de Direito Tributário e Finanças,
São Paulo, RT, vol. 1, dezembro de 1992, pg. 141 e seguintes.
26 RENÉ FLORIOT et RAOUL COMBALDIEU, Le Secret Professionnel Flamarion,
1973, pg. 28 e seguintes.

167
razão de ofício ou posição, têm acesso a informações confidenciais de
clientes.
52. Nesse sentido, o Código Civil de 1916, em seu art. 144 27 ,
dispõe que ninguém pode ser obrigado a depor sobre fatos a respeito
dos quais, por estado ou profissão, deva guardar segredo.
53. Já o Código de Processo Civil, em seu art. 363, IV, estabelece
que a parte ou terceiro podem legitimamente deixar de exibir em
juízo documento ou coisa, caso a exibição acarrete a divulgação de
fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo.
54. O Código Tributário Nacional, no parágrafo único do art. 197,
exclui da obrigação de prestar informações às autoridades fiscais
quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado
a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, ativi-
dade ou profissão.
55. A Lei 4.595/64, em seu art. 38 28 , caput, dispõe que as
instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e
passivas e serviços prestados. A jurisprudência de nossos tribunais,
conforme já tivemos a oportunidade de comentar, tem considerado
que o dever de sigilo das instituições financeiras constitui obrigação de
ordem pública, somente podendo ser revelada a informação bancária
em casos excepcionais, elencados em lei 29 . O dever de sigilo profissio-
nal consiste em obrigação essencial de qualquer instituição financeira,
caracterizando sua violação ilícito penal, nos termos do § 7° do art. 38
da Lei 4.595/64 e do art. 18 da Lei 7.492/86.
56. Ademais, o Código Penal, em seu art. 154, tipifica como deli-
tuosa a conduta de quem viola sigilo profissional sem justa causa.
57. Não há dúvida de que o auditor independente, no exercício de
sua atividade profissional, tem acesso a informações de natureza con-
fidencial e sigilosa da entidade auditada.
58. Com efeito, no desempenho de seu mister, o auditor, por
definição, deve ter amplo acesso a todas as informações financeiras e
econômicas da entidade objeto da auditoria; com relação a algumas de
tais informações, pode, a entidade auditada, ter legítimo interesse em
não vê-las divulgadas a terceiros.

27 Nota do Autor: Tal preceito está disposto no art. 229, caput e§ 1° do Código Civil
de 2002, Lei n° 10.406 de 10.01.2002.
28 Nota do Autor: O art. 38 da Lei n° 4.595/64 foi revogado pela Lei Complementar
n° lOS de 10.01.2001.
29 Aspectos Modernos do Direito Societário, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1992, pg.
206.

168
59. Da relação profissional mantida entre o auditor e a entidade
auditada, tendo em vista as funções que ao auditor são atribuídas,
decorre um grau de confiança semelhante ao que existe em outras
profissões ou atividades que lidam com questões sigilosas, como são,
por exemplo, os casos do médico, do padre, do advogado, que se
tornam uma espécie de confidentes necessários.
60. Tal se dá porque ao auditor, no desempenho de sua atividade
de verificar a fidedignidade das informações financeiras, nenhum li-
mite de acesso a dados pode ser oposto por parte da entidade audita-
da, mesmo no caso de documentos e papéis que tratam de questões
internas, não diretamente pertinentes ao objetivo do trabalho de audi-
toria. A entidade auditada, conforme já analisado doutrinariamente 30 ,
dado o postulado do sigilo profissional, tem a total confiança no audi-
tor, sem qualquer receio de que informações de natureza confidencial
às quais o auditor tem acesso venham a ser divulgadas a terceiros.
61. Nesse sentido, as Normas de Auditoria (NBC-P-1.6 31 ) baixa-
das pelo Conselho Federal de Contabilidade, contêm preceitos tra-
tando expressamente do sigilo profissional do auditor, nos seguintes
termos:
1.6- SIGILO
1. 6.1. - O auditor deve respeitar e assegurar o sigilo relativa-
mente às informações obtidas durante o seu trabalho, não as divulgan-
do, sob qualquer circunstância, para terceiros, sem autorização ex-
pressa da entidade auditada, salvo quando houver obrigação legal de
fazê-lo.
1.6.2.- O dever de manter o sigilo continua depois de terminados
os compromissos contratuais.
62. Assim, não há qualquer dúvida de que o auditor inde-
pendente, que se qualifica como um confidente necessário, dado o
total acesso que tem às informações da entidade auditada, muitas das
quais confidenciais, deve manter sigilo, não podendo revelar tais
informações a terceiros, mesmo depois de findo o seu contrato de
prestação de serviços.

30 MIGUEL REALE JUNIOR, Sigilo Profissional dos Auditores Independentes, Re-


vista Forense, 277, jan./marc. 1982. pg. 127.
31 Nota do Autor: As Normas de Auditoria NBC P 1 foram revisadas em dezembro
de 1997.

169
d) Os papéis de trabalho do auditor independente e o dever de
sigilo

63. A questão da manutenção do sigilo profissional por parte do


auditor independente manifesta-se, especialmente, com relação aos
seus papéis de trabalho.
64. No desempenho de suas atividades profissionais, ao analisar a
adequação das demonstrações contábeis à realidade patrimonial e fi-
nanceira da entidade auditada, o auditor independente procede a uma
série de levantamentos de informações, compilação de dados, reali-
zando observações preliminares que mais tarde serão eventualmente
utilizadas para a redação do seu Parecer.
65. Tais tarefas são, o mais das vezes, executadas por funcionários
da empresa de auditoria (que, no caso do Auditor Independente-Pes-
soa Jurídica, deve ser uma sociedade civil, nos termos do art. 5°, II 32
da Instrução CVM 216/94), diversamente do que ocorre na emissão
do Parecer, o qual, por constituir o documento oficial, contendo a
opinião definitiva sobre as demonstrações contábeis da entidade audi-
tada, deve, necessariamente, ser assinado por responsável técnico da
empresa de auditoria (Instrução CVM 216/94, art. 3°, § 1°33 ).
66. As informações colhidas e as observações preliminares realiza-
das pelos funcionários da empresa de auditoria são usualmente anota-
das nos chamados papéis de trabalho do auditor.
67. A expressão papéis de trabalho constitui tradução literal de
working papers, de larga utilização na prática de auditoria nos Estados
Unidos, para designar uma enorme e não uniforme variedade de pa-
péis usados pelos auditores para anotações e relatórios 34 .
68. Tais papéis de trabalho contêm, em regra, elementos que pos-
sibilitarão ao auditor expressar a sua opinião final, sob a forma do
chamado Parecer do Auditor Independente, este sim o documento
formal e público, no qual o auditor expressa a sua opinião oficial sobre
as demonstrações financeiras da entidade auditada.
69. Assim, os papéis de trabalho, por definição, não contêm julga-
mentos definitivos, mas mera coleta de informações e juízos provisórios,
sujeitos mesmo a posterior verificação antes da emissão do Parecer.

32 Nota do Autor: vide art. 4°, inciso II da Instrução CVM 308 de 14.05.99.
33 Nota do Autor: vide art. zo, §1 ° da Instrução CVM 308 de 14.05.99.
34 Comentou-se a propósito que: the term workings papers ís used to descríbe a wíde
varíety or worksheets used by accountants in auditing records and preparíng reports.
(E. McGRUDER FARIS, ob. cit., pg. 116).

170
70. Nesse sentido, as Normas Brasileiras de Contabilidade
(NBC-T-11.1.3.) definem os papéis de trabalho da seguinte maneira:
11.1.3.1.- Os papéis de trabalho são o conjunto de documentos e
apontamentos com informações e provas coligidas pelo auditor, que
constituem a evidência do trabalho executado e o fundamento de sua
opinião.
71. Os papéis de trabalho, por não expressarem ainda a opinião
oficial do auditor, não são documentos que possam ser mostrados a
terceiros. A propósito, há disposição expressa nas Normas Brasileiras
de Contabilidade estabelecendo que:
11.1. 3.2. - Os papéis de trabalho são de propriedade exclusiva
do auditor, responsável por sua guarda e sigilo.
72. Contendo informes e juízos ainda provisórios, sujeitos a poste-
rior confirmação, constituem os papéis de trabalho do auditor, con-
forme aponta a doutrina 35 , documentos personalíssimos, devendo
portanto ser objeto de proteção jurídica contra qualquer violação de
seu conteúdo.
73. Os papéis de trabalho podem muitas vezes conter informações
sigilosas acerca dos negócios da entidade auditada, que não constarão
das demonstrações financeiras, nem serão objeto de qualquer comen-
tário por parte do auditor na emissão de seu Parecer. A entidade
auditada pode ter um legítimo interesse na preservação da confiden-
cialidade de tais dados. Daí decorre que, com relação a tais informa-
ções confidenciais, o auditor tem um inequívoco dever de sigilo, de-
corrente do exercício de sua atividade profissional.
74. Por outro lado, a Lei 6.385/76, em seu art. 9°, inciso I, letra e,
e inciso 11, estabelece que:
Art. 9° - A Comissão de Valores Mobiliários terá jurisdição em
todo o território nacional e no exercício de suas atribuições, observado
o disposto no
art. 15, § 2°, poderá:
1- examinar registros contábeis, livros e documentos:

e) dos auditores independentes;

II - intimar as pessoas referidas no inciso anterior a prestar


informações ou esclarecimentos, sob pena de multa;

35 MIGUEL REALE JÚNIOR, artigo citado.

171
75. Já a Instrução CVM 216/94, em seu art. 29, incisos III, IV e
V, estabelece que:
Art. 29 - São deveres do auditor independente no exercício de
suas atividades no âmbito do mercado de valores mobiliários:

III- comunicar à Comissão de Valores Mobiliários circunstân-


cias que possam configurar atos praticados pelos administradores em
desacordo com as disposições legais e regulamentares aplicáveis às
atividades da entidade auditada e/ou relativas à sua condição de
entidade integrante do mercado de valores mobiliários, atos estes que
tenham ou possam vir a ter reflexos sobre as demonstrações contábeis
auditadas e eventuais impactos nas operações da entidade;
IV- conservar em boa guarda, pelo prazo de 05 (cinco) anos,
toda a documentação, correspondência, papéis de trabalho, relatórios
e pareceres relacionados com o exercício de suas funções;
V- dar acesso à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários
a todos os documentos que tenham servido de base à emissão do pare-
cer de auditoria.
76. À primeira vista, poderia parecer que existe um conflito entre
as normas que impõem o sigilo por parte do auditor e aquelas que
permitem à CVM ter acesso e examinar os livros, registros contábeis
e documentos do auditor.
77. Tal conflito, porém, é aparente. A norma do art. 9° da Lei
6.385/76, na realidade, permite a CVM, no exercício do seu poder de
fiscalização, examinar os registros contábeis, livros e documentos,
dentre outras pessoas -companhias abertas, instituições financeiras
integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, fundos e
sociedades de investimento, e outros, enumerados no inciso I do art.
9°- também do auditor independente.
78. Tais exames realizados pela fiscalização da CVM referem-se
aos registros contábeis, livros e documentos da pessoa do auditor inde-
pendente, a qual, conforme antes analisado, está submetida ao poder
disciplinar da CVM quando atua no âmbito do mercado de valores
mobiliários.
79. Seria inconcebível que a CVM, coagindo o auditor a violar o
dever de sigilo profissional, intimasse-o, sob pena de multa, a entregar
os papéis de trabalho com suas anotações sobre determinada compa-
nhia aberta ou instituição financeira.
80. Intimação de tal natureza seria, em primeiro lugar, desneces-
sária, posto que a CVM, nos termos do art. 9° da Lei 6.385/76, pode
determinar diretamente à qualquer companhia aberta, instituição fi-

172
nanceira ou outra entidade submetida a seu poder disciplinar que lhe
franqueie acesso a documentos e registros contábeis.
81. Ademais, a intimação do auditor, em tal situação, caracteriza-
ria evidente abuso de poder por parte da CVM, a qual, como entidade
integrante da administração pública, está submetida ao princípio da
moralidade administrativa, nos termos da Constituição Federal, art.
3 7, no qual se compreende o dever de lealdade frente ao administra-
do, sendo vedado à administração qualquer procedimento astucioso,
produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício
de direitos por parte dos cidadãos 36 .
82. Assim, caracterizaria inequívoco abuso de poder, com mani-
festa infração ao dever de lealdade da Administração, ato da CVM
determinando ao auditor independente, sob pena de multa, que en-
tregue seus papéis de trabalho para serem juntados a inquérito admi-
nistrativo instaurado pela CVM.
83. Ademais, conforme antes analisado, os papéis de trabalho
constituem estudos preliminares, que ainda não expressam a opinião
oficial do auditor acerca das demonstrações financeiras da entidade
auditada.
84. Daí decorre que, por definição, não constituem os papéis de
trabalho meios de prova sobre eventuais ilicitudes cometidas pelas
entidades auditadas.
85. Assim, se a CVM eventualmente intima o auditor inde-
pendente para que lhe entregue seus papéis de trabalho, com vistas a
instruir determinado procedimento disciplinar, pode ele, legitima-
mente, com fundamento no seu dever de sigilo profissional e com
base no art. 5°, inciso XIV da Constituição Federal, assim como no
art. 363, IV do Código de Processo Civil, de aplicação analógica aos
procedimentos administrativos, recusar-se a fazê-lo. Tal recusa é ple-
namente legal, não constituindo embaraço à fiscalização da CVM.
86. As normas contidas no art. 9°, inciso I, letra e da Lei 6.385/76
e no art. 29, inciso V da Instrução CVM 216/94, devem ser interpre-
tadas restritivamente, dado o dever de sigilo que o auditor tem diante
da entidade auditada.
87. Daí decorre que o dar acesso à fiscalização da CVM com
relação aos papéis de trabalho do auditor independente significa ape-
nas que os fiscais daquela autarquia podem examinar referidos doeu-

36 CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, Elementos de Direito Administra-


tivo, São Paulo, Malheiros, 1992, pg. 61.

173
mentos. O auditor não tem a obrigação de entregar à CVM cópias dos
papéis de trabalho, que são documentos personalíssimos, de sua pro-
priedade.
88. Tal exame realizado pelos fiscais da CVM deverá ocorrer no
estabelecimento do auditor e na sua presença; pode ainda o auditor
recusar-se legitimamente a mostrar aqueles documentos que conte-
nham dados sigilosos da entidade auditada e que não digam respeito
ao âmbito de atuação disciplinar da CVM.

e) Conclusões

89. Face à análise desenvolvida, podemos concluir que:


l. A CVM somente pode exercer o seu poder de polícia adminis-
trativa frente ao auditor quando ele está realizando a atividade de
auditoria independente de companhia aberta ou entidade integrante
do mercado de valores mobiliários para o fim específico de emitir o
Parecer do Auditor Independente;
2. Não pode a CVM, portanto, examinar documentos ou papéis
de trabalho do auditor quando ele está realizando a auditoria de com-
panhias fechadas ou quando está efetuando, para companhias abertas
ou outras entidades integrantes do mercado de valores mobiliários,
quaisquer serviços que não se relacionem à emissão do Parecer do
Auditor Independente;
3. O auditor independente deve guardar sigilo sobre as informa-
ções confidenciais da entidade auditada, às quais tem acesso no exer-
cício de sua atividade profissional;
4. Os papéis de trabalho constituem documentos personalíssimos
do auditor independente, contendo informações e juízos provisórios
sobre as contas da entidade auditada, nos quais não está expressa a
opinião oficial do auditor;
5. Por sua própria natureza, não podem os papéis de trabalho ser
utilizados como meios de prova em inquéritos administrativos instau-
rados pela CVM;
6. Não pode a CVM, sob pena de se caracterizar o abuso de poder,
determinar ao auditor independente que lhe entregue cópias de seus
papéis de trabalho _37
Foi o nosso Parecer, em novembro de 1994.

37 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 308 de 14.05.1999 em seu art. 25, caput e
incisos III e V, estabelece o seguinte:

174
"Art. 2 5. No exercício de suas atividades no âmbito do mercado de valores mobiliários,
o auditor independente deverá, adicionalmente:
(. ..)
III- conservar em boa guarda pelo prazo mínimo de cinco anos, ou por prazo superior
por determinação expressa desta Comissão em caso de Inquérito Administrativo, toda
a documentação, correspondência, papéis de trabalho, relatórios e pareceres relaciona-
dos com o exercício de suas funções;
(. . .)
V - dar acesso à fiscalização da CVM e fornecer ou permitir a reprodução dos
documentos referidos no item III, que tenham servido de base à emissão do relatório de
revisão especial de demosntrações trimestrais ou do parecer de auditoria;"

175
AUDITORES INDEPENDENTES. INEXISTÊNCIA
DE SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE DO REGIME
DA ROTATIVIDADE OBRIGATÓRIA.

I - DOS FATOS E DA CONSULTA

A Companhia Alfa de Auditores Independentes ("Consulente")


solicita-nos a elaboração de Parecer Jurídico sobre a eventual aplica-
ção da regra prevista no artigo 31 da Instrução CVM na 308, de
14.05.1999, que impõe a adoção do regime da rotatividade obrigató-
ria dos auditores externos das companhias abertas, tendo em vista os
fatos narrados em correspondência encaminhada pela Consulente à
Comissão de Valores Mobiliários, nos seguintes termos:

"Companhia Alfa, sociedade civil de auditoria independente registra-


da junto a essa D. Comissão de Valores Mobiliários, vem respeitosa-
mente à presença de V.Sas. apresentar a seguinte consulta.
ANTECEDENTES
Conforme largamente divulgado pela imprensa local e internacional,
a partir do final de outubro de 2001, em razão de eventos envolvendo
a Companhia Beta, a empresa de auditoria do grupo Companhia Del-
ta teve adversamente afetada a sua capacidade de continuar auditan-
do os seus clientes.
Em conseqüência da ampla divulgação de determinados eventos, a
situação foi se agravando, de forma a tornar muito difícil, senão im-
possível, para a Companhia Delta prosseguir prestando serviços de
auditoria. Os então clientes da empresa passaram a contatar concor-
rentes para a prestação desses serviços.
A Companhia Alfa recebeu diversos convites a nível internacional e
local, para participar de concorrências privadas, pedidos de orçamen-
to, solicitações de propostas técnicas e comerciais. Em vários casos de
empresas internacionais, as companhias locais seguiram orientação
das suas matrizes para contratar outros auditores, a exemplo da pró-
pria matriz. A Companhia Alfa, assim como outras empresas de audi-

177
toria, celebrou diversos novos contratos para a prestação de serviços
de auditoria, com o conseqüente aumento de seu quadro de clientes.
Tais eventos se deram principalmente a partir do final de 2001 e
durante o ano de 2002, principalmente nos primeiros cinco meses.
Para todos os novos clientes, os trabalhos de auditoria passaram a ser
realizados dentro da metodologia, das técnicas e das regras próprias
da Companhia Alfa.
Evidentemente, os antigos clientes da Companhia Delta, que busca-
vam alternativas para a prestação de serviços, não apenas contrata-
ram a Companhia Alfa, mas também outras empresas concorrentes.
Em razão desses eventos, e a vista do incremento efetivo e potencial de
clientes e da necessidade de bem atendê-los, os sócios da Companhia
Alfa decidiram aumentar o quadro de profissionais da empresa. As-
sim, no mês de maio de 2002 convidaram boa parte dos sócios da
Companhia Delta a ingressarem na firma de auditoria da Companhia
Alfa, o que acabou ocorrendo em 1o de junho de 2002. As negociações
e acordos com os sócios da Companhia Delta foram feitos individual-
mente. Muitos daqueles profissionais aceitaram a oferta da Compa-
nhia Alfa e ingressaram na organização. A Companhia Alfa também
contratou empregados originários da Companhia Delta.
Naturalmente diversos sócios e empregados da Companhia Delta se-
guiram caminhos diversos, tendo se unido a outras empresas de audi-
toria, tais como aquelas acima nomeadas.
Importa registrar que nenhum dos eventos aqui descritos, em especial
o ingresso de novos sócios, empregados e de clientes se realizou por
meio de fusão, associação, incorporação de sociedades ou bens ou ain-
da por "joint venture" ou qualquer outra forma jurídica assemelhada.
Os novos sócios assinaram documentos ingressando na Companhia
Alfa e os novos clientes assinaram instrumentos apropriados para a
prestação de serviços. Cabe salientar que a Companhia Alfa não assu-
miu nenhuma responsabilidade pelas firmas da Companhia Delta seja
de caráter fiscal, jurídico, legal, trabalhista ou profissional, pelos tra-
balhos feitos por aquelas empresas.

A CONTRATAÇÃO DE OUTROS AUDITORES POR CLIENTES


QUE ERAM ATENDIDOS PELA COMPANHIA DELTA
Deve ser ressaltado que a contratação de outros auditores por clientes
de auditoria independente que eram atendidos pela Companhia Delta
ocorreu em diversas datas.
Uma grande parte daqueles que passaram a ser atendidos pela Com-
panhia Alfa decidiu por sua contratação em data anterior à contrata-

178
ção de qualquer sócio ou profissional originário da Companhia Delta.
As situações de contratação podem ser resumidas como segue:
1) Clientes que contrataram a Companhia Alfa em razão de suas
matrizes no exterior terem selecionado a Companhia Alfa como sua
nova auditora em substituição a Companhia Delta;
2) Empresas brasileiras que, por decisão de seu Conselho de Adminis-
tração ou Acionistas, abriram concorrência para a seleção e contrata-
ção de novo auditor em substituição a Companhia Delta e cujas con-
corrências foram ganhas pela Companhia Alfa. Evidentemente, nesse
processo empresas também se decidiram pela contratação de outra
empresa de auditoria;
3) Clientes que, em decorrência da admissão dos novos sócios, opta-
ram por solicitar propostas técnicas e comerciais da Companhia Alfa,
as quais resultaram na sua contratação.

NOSSO ENTENDIMENTO DA APLICAÇÃO DAS REGRAS DE


RODÍZIO OBRIGATÓRIO DE AUDITORES INDEPENDENTES
Os clientes descritos nas situações 1 e 2 acima, contrataram os servi-
ços da Companhia Alfa em decorrência de eventos não relacionados
com a contratação de novos sócios e profissionais oriundos da Compa-
nhia Delta {a contratação desses profissionais pela Companhia Alfa
foi feita exatamente para poder suportar o aumento significativo no
volume de seus novos serviços de auditoria, procedimento também
utilizado por outras empresas de auditoria concorrentes).
Assim, é nosso entendimento que para esses casos a contagem do perío-
do para o rodízio obrigatório inicia-se no ano 2002. O mesmo se
aplica aos clientes da Companhia Delta que contrataram serviços de
outras firmas de auditoria concorrentes, cujos sócios e profissionais
responsáveis também migraram para essas mesmas firmas.
No caso dos clientes descritos na situação 3 acima, ou seja clientes
que decidiram aceitar a proposta técnica e comercial da Companhia
Alfa, em data posterior à admissão de sócios e contratação de profis-
sionais originários da Companhia Delta, temos as seguintes
considerações:
- Foi o cliente que tomou a decisão de contratar a Companhia Alfa
para realização dos trabalhos de auditoria independente;
- A despeito da decisão de contratação ter sido feita pelo cliente, o
trabalho de auditoria passa a ser efetuado com o uso da metodologia
de auditoria independente adotada pela Companhia Alfa a qual, é
diferente daquela adotada pela Companhia Delta. O mesmo aplica-se
às políticas e procedimentos de controle de qualidade. Também, a

179
Companhia Alfa decidiu pela troca do sócio responsável em todos os
casos, de forma gradativa.
Tendo em vista que a Companhia Alfa: a) não efetuou qualquer ope-
ração de compra, fusão ou incorporação das firmas da Companhia
Delta; b) que simplesmente admitiu sócios e contratou profissionais
que atuavam na Companhia Delta para trabalharem em sua empresa
(assim como outras empresas de auditoria também o fizeram); c) que
a decisão de contratar a Companhia Alfa foi dos clientes; d) que foi
efetuada a troca da metodologia de auditoria e dos procedimentos de
controle de qualidade; e) houve troca efetiva de empresa de auditoria,
é nosso entendimento que, para esses casos, também, o prazo de cinco
anos para rodízio obrigatório de auditores independentes deva ter o
ano 2002 como o início para essa contagem.

CONSULTA
O art. 31 da Instrução CVM 308, de 14 de maio de 1999 (Instrução
308), estabelece o seguinte:
'O auditor independente- Pessoa Física e o Auditor Independente-
Pessoa Jurídica não podem prestar serviços para um mesmo cliente,
por prazo superior a cinco anos consecutivos, contados a partir da
data desta instrução, exigindo-se um intervalo mínimo de três anos
para a sua recontratação.'
Conforme esclarece a Nota Explicativa que acompanha a citada ins-
trução, o prazo de cinco anos é contado a partir da data da publicação
da instrução, não alcançando o tempo pretérito. A Instrução 308 foi
publicada no Diário Oficial do dia 19 de maio de 1999. Assim, o
prazo de cinco anos terminará no exercício de 2003, para as empresas
que encerram seus exercícios sociais em dezembro de cada ano.
Para nós é claro que, tendo os clientes mudado de auditor inde-
pendente dentro do prazo de cinco anos previsto na Instrução 308,
interrompeu-se a fluência do prazo que havia principiado em 1999, e
teve início a fluência de novo prazo de cinco anos, a contar da contra-
tação da Companhia Alfa. Por outras palavras, tendo os clientes in-
terrompido a prestação de serviços de auditoria independente de um
determinado auditor (a Companhia Delta), passando a serem audi-
tados por outro (a Companhia Alfa), a partir da data deste último
evento (contratação da Companhia Alfa para a prestação de serviços
de auditoria independente) é que, em nosso entendimento, começou a
contar um novo prazo de cinco anos.
Não obstante a clareza da regra transcrita, resolvemos escrever a essa
conceituada Comissão no intuito de compartilhar nossos entendimen-

180
tos e, dessa forma, obter o seu entendimento sobre o assunto comenta-
do e evitar, dessa forma, a eventual exposição de qualquer de nossos
clientes a risco de que nossa opinião e interpretação não estejam em
linha com as dessa Comissão.
Nesse sentido e querendo a Companhia Alfa atuar em estrita conformi-
dade com as normas aplicáveis, pede, respeitosamente, o pronunciamento
dessa MD Comissão de Valores Mobiliários a respeito do assunto."

Adicionalmente, informa a Consulente que:


a) a Companhia Delta, com nova razão social, continua a existir
regularmente e mantém o seu registro de auditor independente junto
àCVM;
b) os contratos de prestação de serviços de auditoria que a Com-
panhia Delta havia firmado com seus clientes foram rescindidos, em
virtude da vontade dos próprios clientes ou em função da impossibili-
dade da Companhia Delta continuar a prestar serviços de auditoria, e
aqueles que escolheram a Companhia Alfa como sua nova auditora
externa firmaram com esta novo contrato, autônomo em relação ao
que vigia com a Companhia Delta;
c) os sistemas administrativos, financeiros, de recursos humanos,
de controle de serviços, de avaliação e promoção de pessoal e demais
sistemas de apoio à atividade profissional utilizados pela Companhia
Alfa não se modificaram, permanecendo os mesmos que têm sido
utilizados por esta há vários anos e que se baseiam em padrões inter-
nacionais aplicáveis a todos os países em que a Companhia Alfa atua.
Diante dos fatos acima descritos, indaga a Consulente se ela pode
ser impedida, com fundamento na regra prevista no artigo 31 da Ins-
trução CVM no 308/1999, de prestar serviços de auditoria às compa-
nhias abertas cujas demonstrações financeiras tenham sido auditadas
pela Companhia Delta por mais de 5 (cinco) anos consecutivos ou se
a sua contratação para substituir a Companhia Delta marca o início de
um novo prazo de 5 (cinco) anos para que se torne obrigatória nova
mudança do auditor independente.

11 -DO PARECER

A- DA FUNÇÃO EXERCIDA PELOS AUDITORES


INDEPENDENTES E DE SUA SUBMISSÃO AO PODER
NORMATIVO DA CVM

A exigência da auditoria externa visa a apresentar ao mercado uma


confirmação de que os demonstrativos contábeis das companhias

181
abertas refletem corretamente a situação financeira da empresa e fo-
ram elaborados em conformidade com os princípios de contabilidade
geralmente aceitos 1 •
A atuação do auditor independente reveste-se de inequívoco inte-
resse público, dada a sua função de conferir credibilidade às contas
apresentadas pelas companhias abertas e, conseqüentemente, atestar
o cumprimento do princípio do full disclosure pelas sociedades audi-
tadas.
A credibilidade das contas das companhias abertas, atestada pelos
auditores externos, interessa não somente aos acionistas e credores da
entidade auditada, mas a todos os investidores do mercado, assim
como ao próprio Estado, na medida em que tais sociedades captam a
poupança popular.
Portanto, é manifesto o interesse público existente na função de
auditor independente das companhias abertas e das demais institui-
ções integrantes do mercado de capitais.
A presença do interesse público legitima o poder de polícia admi-
nistrativa exercido pelo Estado para regulamentar e fiscalizar o exer-
cício da atividade de auditoria independente no âmbito do mercado
de valores mobiliários. 2
O poder de polícia sobre a atuação dos auditores independentes,
manifesta-se, basicamente, mediante:
a) a necessidade de o auditor registrar-se perante o órgão governa-
mental encarregado da regulação do mercado de capitais, para que
possa realizar a auditoria externa das contas das companhias abertas; e
b) a fiscalização permanente exercida pelo órgão governamental
sobre as atividades do auditor, visando a assegurar sua efetiva inde-
pendência frente à companhia auditada e a garantir que o auditor, no
exercício de sua atividade, atenda às disposições legais e regulamenta-
res aplicáveis e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos.
Neste sentido, a Lei n° 6.385/1976 atribuiu à CVM poderes de
normatização e fiscalização não apenas sobre as companhias abertas,
mas sobre todas as demais entidades que participam do mercado de
valores mobiliários, entre as quais se incluem os auditores inde-
pendentes.

1 HUGO ROCHA BRAGA. Introdução à Análise Contábil e Financeira. Rio de


Janeiro: IBMEC, 1975. p. 8.
2 NELSON EIZIRIK. Poder de Polícia da CVM frente aos auditores independentes.
Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 193, p. 384 e ss. jul/set. 1993.

182
O exercício da atividade de auditor independente no mercado de
valores mobiliários está inequivocamente submetido ao poder de polí-
cia da CVM. Compete à CVM o registro dos auditores autorizados a
prestar serviços no âmbito do mercado de capitais, o estabelecimento
de normas quanto à conduta profissional que devem manter, a fiscali-
zação de sua atuação e a aplicação de penalidades administrativas,
quando apuradas infrações.

B- DA REGRA QUE IMPÕE A ROTATIVIDADE DOS


AUDITORES E DE SUA INTERPRETAÇÃO

A atividade de auditor independente no âmbito do mercado de


valores mobiliários está submetida, portanto, a uma disciplina legal
própria, estabelecida pela CVM e que se justifica pelo interesse públi-
co na tutela dos investidores e acionistas minoritários.
No exercício do poder de polícia que lhe foi conferido pela Lei no
6.385/1976, a CVM vem editando, desde a sua criação, normas com
a finalidade de regulamentar as condições de acesso e de exercício da
atividade de auditor independente no mercado de capitais. Atualmen-
te, tais normas estão consolidadas na Instrução CVM n° 308/1999.
Entre as regras especiais que regulam a atuação do auditor inde-
pendente no mercado de valores mobiliários vale destacar, no caso
presente, a prevista no artigo 31 da Instrução CVM no 308/1999, que
impõe a obrigatoriedade de as companhias abertas adotarem o regime
da rotatividade obrigatória de seus auditores externos, nos seguintes
termos:

"Art. 31 - O Auditor Independente - Pessoa Física e o Auditor


Independente - Pessoa Jurídica não podem prestar serviços
para um mesmo cliente, por prazo superior a cinco anos consecu-
tivos, contados a partir da data desta Instrução, exigindo-se um in-
tervalo mínimo de três anos para a sua recontratação." (destacamos)

Como se verifica, o dispositivo transcrito proíbe que as


demonstrações financeiras de determinada companhia aberta sejam
auditadas pelo mesmo auditor independente por mais de 5 (cinco)
exercícios sociais consecutivos.
O objetivo de tal proibição é, basicamente, evitar que o longo
tempo de convivência entre o auditor e a entidade auditada possa vir
a ameaçar a objetividade e a independência dos serviços de auditoria.

183
Ademais, visou também a CVM impedir que a familiaridade do
auditor com a companhia pudesse eventualmente afetar a qualidade
dos serviços prestados. Isto porque, na visão da CVM, a referida fami-
liaridade poderia levar o auditor a confiar excessivamente na entidade
auditada e, em conseqüência, a não observar o devido cuidado quando
do exame dos documentos objeto da auditoria.
Neste sentido, a Nota Explicativa à Instrução CVM no 308/1999
expressamente menciona que "a prestação de serviços de auditoria
para um mesmo cliente, por um prazo longo, pode comprometer a qua-
lidade deste serviço ou mesmo a independência do auditor na visão
do público externo" (destacamos).
Embora tenha sido editada no âmbito do poder de polícia conferi-
do à CVM, é inquestionável que a vedação estabelecida no artigo 31
da Instrução CVM n° 308/1999 constitui limitação à livre prestação
dos serviços de auditoria por parte das pessoas físicas e jurídicas legal-
mente habilitadas para tanto.
Assim sendo, não há dúvida de que a regra editada pela CVM
constitui restrição ao princípio da liberdade profissional, consagrado
no artigo 5°, inciso XIII, da Constituição Federal, in verbis:

"Art. 5° - (. . .)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profis-
são, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;"
(destacamos)

Como se verifica, o dispositivo constitucional transcrito assegura


o direito ao livre exercício de qualquer atividade profissional, exigin-
do apenas que sejam observadas as qualificações profissionais que a lei
entender necessárias.
Conforme refere a doutrina 3, a atual redação do referido disposi-
tivo deixa claro que o papel do legislador na criação de requisitos para
o exercício da profissão deve ater-se exclusivamente às qualificações
profissionais, isto é, às questões referentes à capacitação técnica, cien-
tífica ou moral para o exercício de determinada profissão.
No caso presente, os auditores registrados na CVM, evidentemen-
te, preenchem as exigências legais relativas à qualificação profissional,
visto que, caso contrário, seu registro de auditor independente sequer

3 CELSO RIBEIRO BASTOS. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 2. São


Paulo: Saraiva, 1989. p. 78/79.

184
teria sido concedido pela CVM. Ademais, o artigo 4 ° da Instrução
CVM no 308/1999 expressamente exige que o Auditor Independente
-Pessoa Jurídica, assim como seus sócios e demais responsáveis téc-
nicos, estejam regularmente inscritos no Conselho Regional de Conta-
bilidade, órgão responsável pela fiscalização do exercício da profissão
de contabilista.
Contudo, apesar de atenderem às qualificações profissionais legal-
mente exigidas, os auditores registrados na CVM estão sujeitos a uma
restrição adicional ao livre exercício de sua profissão, na medida em
que não podem prestar serviços para seus clientes por mais de 5 (cin-
co) anos consecutivos.
Diante disso, como o artigo 31 da Instrução CVM no 308/1999
impõe uma regra que limita a garantia constitucional da liberdade
profissional, deve ser ele interpretado restritivamente, somente se
aplicando às hipóteses nele expressamente previstas.
Com efeito, a interpretação restritiva das normas excepcionais
constitui um dos princípios essenciais de nosso ordenamento jurídico,
conforme leciona Tércio Sampaio Ferraz: 4

"(. . .) uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. (. . .) uma


exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos
excepcionais. Ir além é contrariar a sua natureza". (destacamos)

No mesmo sentido, Carlos Maximiliano 5 ressalta que "as disposi-


ções excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações par-
ticulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum;
por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam
expressamente" (destacamos).
Portanto, o artigo 31 da Instrução CVM n° 308/1999, constituin-
do uma norma de caráter excepcional, não pode sofrer interpretação
ampliativa, que estenda sua aplicação além das hipóteses expressa-
mente abrangidas por sua redação.
Dessa forma, a regra que impõe a adoção do regime de rotativida-
de obrigatória dos auditores somente pode ser aplicada nos casos em
que uma mesma pessoa jurídica presta os serviços de auditoria a de-
terminada companhia aberta por mais de 5 (cinco) anos consecutivos.

4 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ. Introdução ao Estudo de Direito. 2 ed. São Paulo:


Atlas, 1996. p. 295.
5 CARLOS MAXIMILIANO. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1951. p. 277.

185
Evidenciado tal princípio, passa-se a analisar os fatos descritos
pela Consulente, a fim de verificar se eles se enquadram na vedação
imposta pelo artigo 31 da Instrução CVM no 308/1999.

C -DA NÃO CARACTERIZAÇÃO DE SUCESSÃO DA


COMPANHIA DELTA PELA COMPANHIA ALFA

Conforme referido, a regra do artigo 31 da Instrução CVM no


308/1999, por constituir norma restritiva de direitos, deve ser aplica-
da apenas nos casos em que um mesmo Auditor Independente -
Pessoa Jurídica preste serviços para determinada companhia aberta
por um período superior a 5 (cinco) anos consecutivos.
Este simples fato seria suficiente para indicar que a proibição esta-
belecida pelo referido dispositivo regulamentar não pode ser imposta
à Companhia Alfa, em relação às companhias abertas anteriormente
auditadas pela Companhia Delta, uma vez que Companhia Alfa e
Companhia Delta sempre foram, e continuam sendo, pessoas jurídi-
cas distintas e absolutamente independentes.
A propósito, ressalte-se que a Companhia Delta continua a existir
como pessoa jurídica, ainda estando, inclusive, registrada na CVM
como auditor independente.
De qualquer modo, a fim de demonstrar a impossibilidade jurídica
de se obrigar a Companhia Alfa a observar o rodízio de auditores em
relação aos antigos clientes da Companhia Delta, vale esclarecer que
não se caracterizou, na presente hipótese, nenhuma espécie de suces-
são entre as duas empresas.
A respeito, lembre-se que uma pessoa somente pode ser conside-
rada sucessora de direitos e obrigações de outra pessoa por força de lei
ou em virtude da manifestação expressa de sua vontade.
No caso presente, não foi celebrado nenhum negócio jurídico pelo
qual a Companhia Alfa tenha expressamente se obrigado a suceder a
Companhia Delta em qualquer espécie de direitos e obrigações que
integravam o patrimônio desta.
Tanto isto é verdade que, segundo nos foi informado, todos os
contratos de prestação de serviços de auditoria que a Companhia Del-
ta havia firmado com seus clientes foram rescindidos, seja por vontade
dos próprios clientes, seja pela impossibilidade da continuidade na
prestação dos serviços por parte da Companhia Delta.
Em vista disso, diversas empresas que anteriormente eram audita-
das pela Companhia Delta selecionaram a Companhia Alfa como sua

186
nova auditora mediante procedimentos licitatórios por elas realizados
ou simplesmente contrataram outras firmas de auditoria. Mesmo os
clientes que escolheram diretamente a Companhia Alfa celebraram
com esta um novo contrato de auditoria, autônomo em relação àquele
que vigia com a Companhia Delta.
Tais fatos demonstram a inexistência de sucessão contratual da
Companhia Delta pela Companhia Alfa, visto que, se tivesse ocorrido
tal sucessão, os contratos firmados pela Companhia Delta teriam per-
manecido normalmente em vigor, operando-se apenas a substituição
de uma das partes originárias pela Companhia Alfa.
Assim, estando afastada, no caso presente, a existência de suces-
são por vontade das partes, deve-se analisar se ficou caracterizada
alguma operação à qual a lei expressamente atribui o aludido efeito.
Neste sentido, vale examinar se eventualmente teria ficado confi-
gurada a ocorrência de fusão ou incorporação entre a Companhia Del-
ta e a Companhia Alfa.
Isto porque ambas as operações implicam, por definição, a suces-
são universal dos direitos e obrigações das sociedades incorporadas ou
fundidas pela incorporadora ou pela sociedade criada em decorrência
da fusão, conforme estabelecem os artigos 1.116 e 1.119 do Código
Civil de 2002, que atualmente disciplina as referidas operações em
relação às sociedades não anônimas:

"Art. 1.116- Na incorporação, uma ou várias sociedades são absor-


vidas por outra, que lhe sucede em todos os direitos e obrigações,
devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos
tipos."
"Art. 1.119 -A fusão determinada a extinção das sociedades que se
unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos
e obrigações." (destacamos)

As operações de fusão e incorporação podem ser conceituadas


como institutos do direito societário, pelos quais "duas ou mais socie-
dades - uma das quais pelo menos se extinguindo - unificam seus
patrimônios na titularidade de um único sujeito coletivo que agrupa os
sócios das respectivas sociedades". 6
Diante disso, infere-se que as aludidas operações apresentam,
fundamentalmente, as seguintes características:

6 WALDÍRIO BULGARELLI. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 5 ed.


São Paulo: Atlas, 2000. p. 52.

187
a) a extinção de ambas as sociedades fusionadas ou da sociedade
incorporada;
b) a formação de um patrimônio único entre sociedades anterior-
mente independentes; e
c) o fato de os sócios de sociedades distintas passarem a reunir-se
em uma mesma sociedade.
No caso presente, não foi extinta nenhuma pessoa jurídica, visto
que, conforme referido, tanto a Companhia Delta como a Companhia
Alfa continuam normalmente a existir e a estarem registradas na
CVM.
Além disso, não há nada que autorize a conclusão de que a Com-
panhia Alfa tenha absorvido, ainda que parcialmente, o patrimônio da
Companhia Delta. De fato, os ativos e passivos desta permanecem
integralmente no patrimônio da mesma pessoa jurídica, não tendo
havido qualquer transferência da titularidade de bens, direitos e
obrigações da Companhia Delta para a Companhia Alfa.
Como se verifica, não se vislumbram, na presente hipótese, carac-
terísticas essenciais às operações de fusão e incorporação, quais sejam,
a extinção de, ao menos, uma das sociedades envolvidas e a integração
de diferentes patrimônios em uma mesma pessoa jurídica.
O único elemento descrito na Consulta formulada pela Compa-
nhia Alfa que poderia, à primeira vista, apresentar uma certa seme-
lhança com os efeitos decorrentes das operações de fusão ou incorpo-
ração seria o fato de alguns sócios da Companhia Delta terem ingres-
sado na Companhia Alfa.
Ressalte-se, no entanto, que tal semelhança é apenas aparente,
visto que a entrada de sócios da Companhia Delta na Companhia Alfa
ocorreu mediante forma totalmente distinta da aquisição de participa-
ção societária que resultaria de operações de fusão ou incorporação.
Com efeito, por força da fusão ou da incorporação, os sócios das
sociedades fusionadas ou incorporadas perdem os direitos que tinham
em relação ao patrimônio destas e, em contrapartida, recebem ações
ou quotas emitidas pela incorporadora ou pela sociedade criada em
virtude da fusão. A atribuição da participação na incorporadora ou na
nova sociedade é automática, pois independe da manifestação de von-
tade individual de cada sócio, e, em regra, deve abranger todos os
sócios da sociedade extinta em decorrência da operação.
No caso presente, os novos sócios que entraram na Companhia
Alfa não perderam sua participação na Companhia Delta, da qual
continuam como sócios. Ademais, o ingresso dos novos sócios não foi
automático, mas dependeu da concordância expressa de cada um com

188
as condições oferecidas pela Companhia Alfa, tendo sido instrumen-
talizado mediante contratos individuais celebrados entre os sócios e a
Companhia Alfa. Por fim, nem todos os antigos sócios da Companhia
Delta passaram a participar da Companhia Alfa, visto que alguns op-
taram por ingressar em outras empresas de auditoria.
Vale ainda mencionar que, sob o aspecto formal, a implementação
da fusão ou da incorporação pressupõe, por força do disposto nos
artigos 1.117 e 1.119 do Código Civil de 2002, a aprovação das condi-
ções da operação pelos sócios das sociedades envolvidas, assim como
a avaliação dos patrimônios a serem unificados por peritos inde-
pendentes.
Ou seja, constitui requisito indispensável às operações de fusão e
incorporação a manifestação expressa de vontade das sociedades en-
volvidas, tomada de acordo com as regras atinentes a cada tipo socie-
tário, no sentido de aprovar as condições da operação.
No caso presente, contudo, não foi realizada nenhuma avaliação
patrimonial da Companhia Delta ou da Companhia Alfa e também
inexiste qualquer ato societário pelo qual os sócios de tais empresas
tenham formalmente aprovado a integração de seus patrimônios.
Portanto, não há dúvida de que não ficou configurado, quer sob o
aspecto formal, quer do ponto de vista substancial, uma suposta incor-
poração ou fusão entre a Companhia Delta e a Companhia Alfa, uma
vez que não se verifica, na situação descrita na Consulta, a presença de
qualquer dos elementos que caracterizam tais operações.
Finalmente, para confirmar a improcedência de eventual entendi-
mento segundo o qual a Companhia Delta teria sido sucedida pela
Companhia Alfa, deve-se mencionar que também não se caracterizou,
no caso presente, a transferência do estabelecimento empresarial da
primeira para segunda.
O estabelecimento empresarial constitui o complexo de bens, cor-
póreos e incorpóreos, organizados pelo empresário para o desenvolvi-
mento de sua atividade econômica.
Conforme refere a doutrina 7, "o estabelecimento empresarial é
integrado por bens de variadas espécies, que mantém cada um deles
sua individualidade própria, mas que se encontram reunidos pelo em-
presário que os conjuga e organiza, de modo a apresentarem-se como
uma unidade que lhe serve de instrumento para exercitar sua empresa"
(destacamos).

SÉRGIO CAMPINHO. O Direito de Empresa à Luz do Novo Código Civil. Rio de


Janeiro: Renovar, 2002. p. 336.

189
Compõem o estabelecimento empresarial tanto elementos corpó-
reos, como, por exemplo, móveis, utensílios, máquinas, equipamen-
tos, mercadorias e produtos da empresa, como elementos incorpó-
reos, tais como o ponto empresarial, o nome empresarial, o título do
estabelecimento, as marcas e patentes de invenção, entre outros.
A sociedade que exerce determinada atividade econômica pode
transferir para outra pessoa jurídica o domínio sobre este complexo de
bens que constitui o estabelecimento empresarial, conforme expres-
samente admite o artigo 1.142 do Código Civil de 2002, nos seguintes
termos:

"Art. 1.142 - Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos


e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam com-
patíveis com a sua natureza."

Em sendo transferida a titularidade do estabelecimento empresa-


rial, o adquirente passa a exercer a atividade econômica do alienante
como se este fosse.
Ou seja, o adquirente aproveita-se não apenas dos bens materiais
e imateriais que guarneciam a empresa do alienante, mas, sobretudo,
do chamado aviamento, isto é, da própria estrutura e organização da
empresa, mediante a qual o alienante conjugava os elementos inte-
grantes do estabelecimento empresarial no exercício de sua atividade
econômica.
Diante disso, o adquirente do estabelecimento empresarial é nor-
malmente considerado "sucessor ou continuador" da empresa adquiri-
da, por passar a utilizar, além dos bens corpóreos e incorpóreos, a
própria organização desta. 8
Como se verifica, a operação de transferência do estabelecimento
empresarial possui objeto bastante amplo, abrangendo todos os bens,
corpóreos e incorpóreos, da empresa, além da sua própria organização.
No caso presente, contudo, a Companhia Alfa não passou a utili-
zar, no desenvolvimento de seus serviços de auditoria, nenhum bem
incorpóreo de propriedade da Companhia Delta, como marcas e
patentes que esta eventualmente viesse a possuir, e tampouco a
estrutura organizacional que, anteriormente, caracterizava a Compa-
nhia Delta.

s J. X. CARVALHO DE MENDONÇA. Tratado de Direito Comercial Brasileiro.


vol. 5, tomo I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 22.

190
Ao contrário, a Companhia Alfa manteve absolutamente inaltera-
dos todos os elementos de sua própria organização, os quais se ba-
seiam em padrões internacionalmente definidos e que são basicamen-
te os mesmos para todos os países em que ela atua.
De fato, informou-nos a Consulente que seus sistemas adminis-
trativos, de controle financeiro e operacional, sua política de recursos
humanos e de treinamento, sua metodologia de auditoria, entre ou-
tros fatores de sua organização, não foram alterados em função da
entrada de novos sócios oriundos da Companhia Delta, permanecen-
do os mesmos que vinham sendo adotados há vários anos.
Assim, não se pode considerar que a Companhia Alfa tenha assu-
mido o estabelecimento empresarial da Companhia Delta.
Portanto, tendo em vista a inexistência de manifestação expressa
da vontade da Companhia Alfa no sentido de assumir direitos e
obrigações da Companhia Delta e, ademais, a não configuração, quer
sob o aspecto formal, quer do ponto de vista fático, de nenhuma
operação à qual a lei expressamente atribui tal efeito, não há como se
pretender caracterizar a Companhia Alfa como sucessora da Compa-
nhia Delta.

D- DA INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO À
INDEPENDÊNCIA E À QUALIDADE DOS SERVIÇOS DE
AUDITORIA EM FUNÇÃO DA SUBSTITUIÇÃO DA
COMPANHIA DELTA PELA COMPANHIA ALFA

Ainda que a questão seja analisada tendo em vista os objetivos


almejados pela CVM ao impor a adoção do regime da rotatividade
obrigatória de auditores, não se justifica a proibição de as companhias
abertas que já tenham sido auditadas pela Companhia Delta por mais
de 5 (cinco) anos consecutivos contratarem a Companhia Alfa como
sua nova empresa de auditoria.
Conforme referido, o rodízio instituído pela Instrução CVM n°
308/1999 visa, basicamente, a dois objetivos, quais sejam:
a) evitar que a proximidade, por um longo período, com a entida-
de auditada, possa vir a prejudicar a independência do auditor; e
b) impedir que o auditor, após diversos exercícios auditando a
mesma sociedade, venha a adquirir excesso de confiança nesta e, em
conseqüência, deixe de observar os procedimentos necessários, com-
prometendo a qualidade dos serviços de auditoria.

191
No caso presente, contudo, não haverá possibilidade de manuten-
ção de uma indevida proximidade entre os sócios e empregados oriun-
dos da Companhia Delta e seus antigos clientes, visto que, segundo
nos foi informado, a Companhia Alfa deverá concluir, até o final do
presente ano, o processo de mudança do sócio responsável pela audi-
toria de todas as companhias abertas anteriormente auditadas pela
Companhia Delta.
Além disso, é de fundamental importância destacar que as meto-
dologias e padrões de auditoria observados pela Companhia Alfa são
substancialmente distintos daqueles que eram utilizados pela Compa-
nhia Delta.
Ou seja, os antigos clientes da Companhia Delta que contrataram
a Companhia Alfa como sua nova auditora externa deverão passar por
um processo de auditoria totalmente diferente daquele ao qual já
estavam habituados, uma vez que será utilizada a metodologia própria
da Companhia Alfa.
Assim, mesmo que não tivesse sido providenciada a substituição
do sócio responsável por determinado cliente, não se verificaria, no
caso presente, o excesso de confiança que poderia prejudicar a quali-
dade do serviço de auditoria.
Isto porque o auditor oriundo da Companhia Delta não poderia
simplesmente confiar no resultado de seus trabalhos anteriores peran-
te o mesmo cliente, pois teria que observar os procedimentos de audi-
toria adotados pela Companhia Alfa, os quais, repita-se, são substan-
cialmente diferentes daqueles que eram empregados pela Companhia
Delta.
Como se verifica, os antigos clientes da Companhia Delta serão
auditados por diferentes pessoas físicas e de acordo com outra meto-
dologia e padrões de auditoria, exatamente como ocorreria se, ao in-
vés da Companhia Alfa, tivesse sido contratada qualquer outra empre-
sa concorrente.
Portanto, a substituição da Companhia Delta pela Companhia
Alfa não significará continuidade na prestação dos serviços de audito-
ria, isto é, não comprometerá a independência e a qualidade dos ser-
viços de auditoria, justamente os atributos que a CVM pretendeu
preservar ao determinar que as companhias abertas adotassem o regi-
me da rotatividade obrigatória de seus auditores externos.
Em vista disso, estando preservados os objetivos que motivaram a
instituição da regra contida no artigo 31 da Instrução CVM no
308/1999, não se justifica que a Companhia Alfa venha a ser impedi-
da de auditar os antigos clientes da Companhia Delta.

192
E- DAS CONCLUSÕES

Diante do exposto, e considerando que:


a) a regra prevista no artigo 31 da Instrução CVM n° 308!1999,
por constituir limitação à garantia constitucional da liberdade profis-
sional, deve ser interpretada restritivamente, somente se aplicando às
hipóteses em que o mesmo auditor independente preste serviços a
uma companhia aberta por mais de 5 (cinco) anos consecutivos;
b) a Companhia Alfa e a Companhia Delta sempre foram, e conti-
nuando sendo, pessoas jurídicas totalmente distintas e inde-
pendentes;
c) não foi celebrado nenhum negócio jurídico pelo qual a Compa-
nhia Alfa tenha expressamente manifestado sua vontade no sentido de
suceder a Companhia Delta em qualquer espécie de direitos e obriga-
ções que anteriormente integravam o patrimônio desta;
d) não se caracterizou, no caso presente, quer sob o aspecto for-
mal, quer do ponto de vista substancial, incorporação ou fusão entre a
Companhia Alfa e a Companhia Delta, uma vez que (i) não ocorreu a
extinção de nenhuma das duas sociedades, (ii) não se verificou a inte-
gração de dois patrimônios em uma única pessoa jurídica, e (iii) os
antigos sócios da Companhia Delta que ingressaram na Companhia
Alfa, além de terem mantido os direitos que tinham em relação a
Companhia Delta, somente passaram a participar da Companhia Alfa
mediante a sua concordância individual e expressa;
e) não se configurou, na presente hipótese, a transferência do
estabelecimento empresarial da Companhia Delta para a Companhia
Alfa, visto que esta não passou a utilizar, no desenvolvimento de seus
serviços de auditoria, nenhum bem incorpóreo ou a estrutura organi-
zacional da Companhia Delta;
f) a substituição da Companhia Delta pela Companhia Alfa não
prejudicará a independência e a qualidade dos serviços de auditoria
prestados aos antigos clientes da Companhia Delta, pois, exatamente
como ocorreria se fosse contratada qualquer outra empresa concor-
rente, tais clientes serão auditados por diferentes pessoas físicas e de
acordo com metodologia e padrões de auditoria substancialmente dis-
tintos;
Conclui-se, sem qualquer dúvida, que a Companhia Alfa não pode
ser impedida, com fundamento na regra prevista no artigo 31 da Ins-
trução CVM no 308!1999, de prestar serviços às companhias abertas
cujas demonstrações financeiras tenham sido auditadas pela Compa-

193
nhia Delta por mais de 5 (cinco) anos consecutivos. Assim, a contra-
tação da Companhia Alfa para substituir a Companhia Delta marca o
início de um novo prazo de 5 (cinco) anos para que se torne obrigató-
ria nova mudança da empresa de auditoria.
Foi o nosso Parecer, em março de 2003.

194
AVALIAÇÕES DE EMPRESAS NO ÂMBITO DA LEI
DE SOCIEDADES ANÔNIMAS E DO MERCADO
DE CAPITAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL E
ADMINISTRATIVA DO AVALIADOR

I - DOS FATOS E DA CONSULTA

O Banco Alfa, que opera em escala internacional, narra que tem


recebido freqüentemente pedidos para avaliar companhias abertas
brasileiras.
Desejando avaliar o alcance de sua responsabilidade civil e admi-
nistrativa solicita-no um Parecer no qual analisemos:
1. A interpretação do art. 4 da Lei das S.A. e da Instrução CVM n°
361 no que se refere ao "preço justo" a ser pago aos minoritários na
oferta pública de fechamento de capital e qual a responsabilidade do
avaliador;
2. A responsabilidade do avaliador no caso de aumento de capital
com contribuição em bens;
3. A responsabilidade do avaliador quanto à avaliação do preço de
reembolso no exercício do direito de recesso;
4. A responsabilidade do avaliador decorrente da avaliação prepa-
rada para a finalidade do art. 170 §3°, e a existência de alguma outra
situação relativa a estudos de viabilidade;
5. A responsabilidade e eventuais obrigações do avaliador com as
avaliações apresentadas aos acionistas como parte da documentação
necessária para as transações de cisão, fusão e aquisição;

11 -DO PARECER

Desenvolveremos o presente Parecer com base na análise dos se-


guintes tópicos:
a) dos pressupostos e das espécies de responsabilidade civil;
b) da espécie de responsabilidade aplicável às avaliações previstas
na Lei n° 6.404/1976 e na regulamentação do mercado de capitais;

195
c) da natureza do dever imposto ao avaliador;
d) da extensão do dever de diligência inerente às avaliações previs-
tas na Lei n° 6.404/1976 e na regulamentação do mercado de capitais;
e) da eventual responsabilidade administrativa dos avaliadores pe-
rante a Comissão de Valores Mobiliários;
f) da Análise das Questões Apresentadas na Consulta
f. I) da extensão da responsabilidade do avaliador nas hipóteses
previstas na Consulta
f.2) dos critérios para se determinar o preço justo das ações para
efeitos das ofertas públicas de aquisição de ações ("OPA's)

A- DOS PRESSUPOSTOS E DAS ESPÉCIES DE


RESPONSABILIDADE CIVIL

Constitui princípio geral de direito a regra segundo a qual qual-


quer pessoa está obrigada a indenizar os danos causados a outrem em
decorrência de sua ação ou omissão voluntária.
Em algumas situações, tal obrigação de indenizar resulta do ina-
dimplemento de uma obrigação contratual pactuada entre a vítima e o
causador do dano. Porém, em diversas hipóteses, a obrigação deres-
sarcir o dano independe da existência de relação contratual entre as
pessoas envolvidas, pois surge em virtude da prática de um ato ilícito,
isto é, do descumprimento de um dever jurídico geral imputável ao
causador do dano. Com base nisso, a doutrina divide a responsabilida-
de civil em contratual e extracontratual, também denominada de
aquiliana.
A responsabilidade civil tem por objetivo básico viabilizar a repa-
ração de prejuízos eventualmente causados em virtude da infração a
um dever jurídico imputável ao agente. Assim, um dos pressupostos
essenciais para que sobrevenha a obrigação de indenizar é justamente
que a vítima seja capaz de comprovar os danos por ela efetivamente
sofridos.
Não havendo dano provado, simplesmente não há que se falar em
responsabilidade civil, ainda que o agente tenha violado alguma norma
de conduta.
Para que se configure a obrigação de indenizar, é indispensável,
em quaisquer hipóteses, a comprovação da existência de três elemen-
tos essenciais, quais sejam:
a) o ato ou omissão imputável ao agente ou à pessoa ou coisa que
dele dependam;

196
b) o dano efetivamente sofrido pela pessoa que está pleiteando a
indenização; e
c) a relação de causalidade entre o ato praticado pelo agente e o
prejuízo sofrido pela vítima.
A estes três elementos, soma-se, em regra, um quarto requisito,
consistente na comprovação de que o agente, ao praticar o ato causa-
dor do dano, agiu com dolo ou culpa, isto é, teve a intenção de provo-
car o prejuízo ou não tomou todas as cautelas necessárias para evitar
que ele ocorresse.
Neste sentido, os artigos 186 e 927, caput, do Código Civil erigi-
ram a culpa como pressuposto para a obrigação de reparar o dano,
tanto que estabelecem que:

"Art. 186- Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência


ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito."
"Art. 92 7 - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem fica obrigado a repará-lo."

Como se verifica, a regra geral, em nosso ordenamento jurídico,


continua a ser a da responsabilidade civil subjetiva, isto é, aquela cuja
caracterização pressupõe a prova da culpa do agente.
Note-se que, em sede de responsabilidade civil, a expressão "cul-
pa" deve ser entendida em sentido lato, correspondendo a "toda a
violação de um dever jurídico" 1.
Dessa forma, a "culpa" abrange não apenas as condutas eivadas de
negligência, imprudência ou imperícia (culpa strictu sensu), mas tam-
bém os atos dolosos, isto é, aqueles praticados com intenção de causar
dano, quando se verifica uma violação deliberada, consciente e inten-
cional do dever jurídico.
Na maioria dos casos, a culpa decorre da não observância do dever
de cautela, cuidado e atenção que toda pessoa está sujeita a observar,
a fim de evitar que os atos por ela praticados ou a atividade por ela
exercida venham a causar danos a terceiros.
Neste sentido, Sérgio Cavalieri Filho conceitua a culpa, em senti-
do estrito, "como a conduta voluntária, contrária ao dever de cuida-

1 CLÓVIS BEVILÁQUA. Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Francisco Al-


ves, 1940, obs. n° 1 ao art. 1.057.

197
do imposto pelo Direito, com a produção de um evento danoso involun-
tário, porém previsto ou previsível" 2 (destacamos).
A violação ao dever de cautela exterioriza-se, em regra, pela negli-
gência, imprudência ou imperícia. A primeira verifica-se nas situações
em que o agente, podendo prever as conseqüências de seus atos, não
toma as precauções necessárias para evitá-las. A imprudência, por sua
vez, confunde-se com a precipitação no agir, como o ato de proceder
sem cautela. A imperícia, por fim, é caracterizada pela falta de habili-
dade para praticar determinado ato.
Portanto, para saber se o agente pode ser obrigado a responder
pelo dano causado, deve-se verificar se ele faltou com o dever de
diligência a que estava adstrito, isto é, se ele agiu com imprudência,
negligência ou imperícia.
Contudo, verificou-se na prática que, em determinadas situações, a
demonstração da responsabilidade subjetiva impunha dificuldades pra-
ticamente intransponíveis à vítima, de forma que a exigência de prova da
existência de culpa inviabilizaria a obtenção do ressarcimento.
Para evitar tais situações, minimizando os rigores da teoria dares-
ponsabilidade subjetiva, passou-se a adotar, em determinadas circuns-
tâncias, a teoria da responsabilidade objetiva. Nesta, o dever de inde-
nizar pressupõe apenas a comprovação da existência do ato praticado
pelo agente, do dano sofrido pela vítima e do nexo causal entre ambos,
prescindindo-se, assim, da demonstração de culpa.
O ordenamento jurídico brasileiro, por meio de leis esparsas, foi
aos poucos prevendo hipóteses excepcionais em que a obrigação de
indenizar estaria expressamente baseada na teoria da responsabilidade
objetiva.
Entre as leis que reconheceram a aplicação da responsabilidade
objetiva em nosso ordenamento, destaca-se o Código de Defesa do
Consumidor (Lei n° 8.078/1990) que, em seu artigo 14, estabelece
que:

"Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da


existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumi-
dores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos."
(destacamos)

2 SERGIO CAVALIERI FILHO. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo:


Malheiros, 2003, p. 54.

198
Vale dizer, sempre que uma relação jurídica for caracterizada
como sujeita às regras do Código de Defesa do Consumidor ("CDC"),
bastará à vítima demonstrar a relação de causalidade entre o produto
ou serviço e o dano por ela experimentado para que se configure a
obrigação de indenizar.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a teoria da
responsabilidade sem culpa passou a ser aplicada, além dos casos espe-
cificamente previstos em lei, a todas as hipóteses em que a atividade
do agente, em razão de sua natureza, criar um risco maior de danos
para terceiros.
É o que se infere do disposto no parágrafo único do artigo 927 do
Código Civil, nos seguintes termos:

"Art. 927- (. .. .)
Parágrafo único - Haverá obrigação de reparar o dano, inde-
pendentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando
a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano im-
plicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." (des-
tacamos)

Como se verifica, a obrigação de reparar surge do simples exercí-


cio da atividade perigosa, em função do risco que ela representa para
terceiros. Ou seja, mesmo sendo a atividade do agente lícita e agindo
este de acordo com o dever genérico de cautela, responderá pelos
danos que causar a terceiro, pelo fato de exercer atividade perigosa.
Todavia, essa cláusula genérica de responsabilidade objetiva não
deve ser aplicada a toda e qualquer atividade econômica, mas apenas
àquelas atividades que contenham, "em si, uma grave probabilida-
de, uma notável potencialidade danosa, em relação ao critério da
normalidade média e revelada por meio de estatísticas, de elementos
técnicos e da própria experiência comum". Assim, devem ser enqua-
dradas como perigosas as "atividades que pelo grau de risco, justifi-
quem a aplicação de uma responsabilidade especial" 3 .
Em outras palavras, devem ingressar nessa noção de atividade pe-
rigosa apenas aquelas que, por envolverem um risco maior do que o

3 CARLOS ALBERTO BITTAR. "Responsabilidade civil nas atividades perigosas",


in Responsabilidade Civil- Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984, p.
93/94

199
normal, justifiquem a adoção de um tratamento jurídico especial no
que se refere à responsabilidade civil.
A periculosidade da atividade deve ser revelada de forma objetiva,
por ser ínsita à própria natureza da atividade ou em função dos meios
nela empregados. Dessa forma, costuma-se distinguir entre as ativida-
des perigosas pela sua natureza, tais como a fabricação de explosivos e
de produtos químicos, produção de energia nuclear, etc., e as perigo-
sas em decorrência dos meios empregados, como é o caso, por exem-
plo, daquelas que se utilizam de substâncias, máquinas e aparelhos
perigosos 4 •
Diante do exposto, pode-se concluir que a regra básica da respon-
sabilidade civil, consagrada pelo Código Civil de 2002, pressupõe a
existência da culpa para fundamentar a obrigação de ressarcir. No
entanto, excepcionalmente, nosso direito admite a responsabilidade
sem culpa, como ocorre em relação às relações jurídicas classificadas
como de consumo e às atividades consideradas perigosas.

B- DA ESPÉCIE DE RESPONSABILIDADE APLICÁVEL ÀS


AVALIAÇÕES PREVISTAS NA LEI No 6.404/1976 E NA
REGULAMENTAÇÃO DO MERCADO DE CAPITAIS

A análise dos riscos de a instituição financeira vir a ser obrigada a


indenizar prejuízos eventualmente causados por uma avaliação, reali-
zada nos casos previstos na Lei n° 6.404/1976 ou na regulamentação
do mercado de capitais, pressupõe determinar se a atividade de avalia-
ção de empresas está sujeita à regra geral da responsabilidade subjetiva
ou se a ela se aplica alguma das situações excepcionais da responsabi-
lidade objetiva.
Em relação às avaliações de bens utilizados para integralizar au-
mentos de capital de sociedades anônimas, realizadas em conformida-
de com o artigo 8° da Lei das S .A., não há qualquer dúvida de se estar
diante de uma situação de responsabilidade subjetiva.
Isto porque o § 6° do próprio artigo 8° da lei societária expressa-
mente dispõe que:

"Art. 8° - ( .. .)
§ 6° - Os avaliadores e o subscritor responderão perante a campa-

4 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Comentários ao Código Civil- parte espe-


cial: do direito das obrigações, Vol. li (arts. 927 a 965) -Coordenador Antônio
Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 316

200
nhia, os acionistas e terceiros, pelos danos que lhe causarem por culpa
ou dolo na avaliação dos bens, sem prejuízo da responsabilidade
penal em que tenham incorrido. No caso de bens em condomínio, a
responsabilidade dos subscritores é solidária." (destacamos)

Como se verifica, na hipótese de avaliação destinada a fundamen-


tar o valor de integralização de determinado bem, a responsabilidade
pelos prejuízos causados aos acionistas e terceiros depende, por força
de expressa previsão legal, da comprovação da existência de culpa ou
dolo por parte do avaliador.
No que se refere aos demais casos de avaliação, não existe qual-
quer previsão específica, nem na lei societária nem nas regras que
disciplinam o mercado de capitais, sobre a responsabilidade do avalia-
dor por supostos danos causados a terceiros.
Apesar disso, entendemos que as outras hipóteses de avaliação
também são regidas pela regra geral de nosso ordenamento jurídico,
segundo a qual a responsabilização exige a demonstração da culpa do
agente.
Isto porque, na ausência de disposição legal específica, pode-se
aplicar a estes outros casos de avaliação previstos na lei societária, por
analogia, a regra do artigo 8°, § 6°, que consagra o princípio da respon-
sabilidade subjetiva na avaliação de bens destinados a formar o capital
social.
Neste sentido, ressalte-se ainda que a Lei n° 6.404/1976, nas di-
versas hipóteses em que institui responsabilidade por prejuízos decor-
rentes de atos praticados no âmbito societário, menciona expressa-
mente a necessidade da comprovação da culpa ou do dolo. É o que se
infere, por exemplo, do disposto nos seguintes dispositivos:

Art. 68- ( ...)


§ 4° - O agente fiduciário responde perante os debenturistas pelos
prejuízos que lhes causar por culpa ou dolo no exercício das suas
funções.
Art. 92- ( .. .)
Parágrafo único - Os fundadores responderão, solidariamente, pelo
prejuízo decorrente de culpa ou dolo em atos ou operações anterio-
res à Constituição.
Art. 104 - (. . .)
Parágrafo único - A companhia deverá diligenciar para que os atos
de emissão e substituição de certificados, e de transferências e averba-
ções nos livros sociais, sejam praticados no menor prazo possível, não

201
excedente do fixado pela Comissão de Valores Mobiliários, respon-
dendo perante acionistas e terceiros pelos prejuízos decorrentes de
atrasos culposos.
Art. 158 - O administrador não é pessoalmente responsável pelas
obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato
regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que
causar, quando proceder:
I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
I I - com violação da lei ou do estatuto.
Art. 165 - Os membros do conselho fiscal têm os mesmos deveres dos
administradores de que tratam os arts. 153 a 156 e respondem pelos
danos resultantes de omissão no cumprimento de seus deveres e de
atos praticados com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do
estatuto." (grifamos)

Da mesma forma, a Lei n° 6.385/1976, que regula o mercado de


capitais e criou a Comissão de Valores Mobiliários, ao disciplinar a
responsabilidade dos auditores independentes também afastou ex-
pressamente a aplicação da teoria do risco, nos seguintes termos:

"Art. 26- ( .. .)
§ 2° - As empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis
independentes responderão, civilmente, pelos prejuízos que causarem
a terceiros em virtude de culpa ou dolo no exercício das funções
previstas neste artigo." (grifamos)

Como se verifica, existe uma nítida tendência das normas de na-


tureza societária e daquelas que regem o mercado de capitais de so-
mente reconhecer a responsabilidade civil nas hipóteses em que ficar
configurada a existência do elemento culposo ou doloso.
Em outras palavras, a interpretação sistemática da Lei das S.A. e
da Lei n° 6.385/1976 permite concluir que a responsabilidade civil
por atos relacionados às sociedades anônimas e ao mercado de capitais
deve ser sempre de caráter subjetivo.
Adicionalmente, esclareça-se que, em nosso entendimento, a ati-
vidade de avaliação, nos casos previstos na lei societária e na regula-
mentação do mercado de capitais, não se enquadra em nenhuma das
hipóteses específicas de aplicação da responsabilidade objetiva em
nosso ordenamento jurídico.
De fato, a realização de avaliações não poderia, em princípio, ser
considerada perigosa, para os efeitos previstos no artigo 92 7, parágra-

202
fo único do Código Civil, uma vez que, seja pela sua natureza, seja
pelos meios nela empregados, não representa, para terceiros, um risco
maior do que o normal.
Note-se que a jurisprudência não poderá conferir uma abrangên-
cia muito grande ao aludido dispositivo do Código Civil, uma vez que,
conforme referido, as hipóteses de aplicação da teoria do risco pos-
suem natureza excepcional, pois afastam a incidência da regra geral da
responsabilidade subjetiva.
Ou seja, considerar-se toda atividade profissional como de risco
equivaleria a transformar a responsabilidade objetiva em regra geral,
subvertendo toda a disciplina da responsabilidade civil em nosso orde-
namento jurídico.
Dessa forma, a regra prevista no artigo 927, parágrafo único, do
Código Civil deve ser interpretada de forma restrita, somente sendo
aplicada àquelas atividades que apresentem um risco verdadeiramen-
te extraordinário, que justifique a sua submissão a um regime jurídico
especial.
Ademais, as referidas avaliações são destinadas, essencialmente,
aos acionistas minoritários das sociedades anônimas, os quais, em
princípio, não devem ser considerados consumidores.
Com efeito, diversos doutrinadores apontam a absoluta impro-
priedade de se aplicar o CDC aos investidores no mercado de capitais,
dada a clara inexistência de relação de consumo nas operações reali-
zadas em tal mercado.
Nesse sentido, Pedro Paulo Cristófaro, ao comentar a matéria,
salienta que: 5

"Consumidores e investidores são categorias diferenciadas,


quer conceitualmente, quer do ponto de vista legal. A poupança
não se confunde com o consumo nem do ponto de vista econômico nem
do ponto de vista jurídico. Essas diferenças conceituais e jurídicas
levam a que consumidores e poupadores, embora apresentando carac-
terísticas comuns, carecem -até para serem adequadamente protegi-
dos em seus interesses legítimos - de tratamento diferenciado, que
leve em conta as peculiaridades de cada categoria." (grifamos)

Da mesma forma, os próprios autores do Anteprojeto de Lei que

PEDRO PAULO CRISTÓFARO. Revista de Direito Mercantil, n. 92, p. 89/90.

203
deu origem ao CDC expressamente reconhecem que o referido Códi-
go não se aplica aos investidores do mercado de valores mobiliários: 6

"E os investidores no mercado de valores mobiliários, serão eles


igualmente considerados também consumidores com relação às
instituições ou empresas que propiciam tal tipo de investimento?
A resposta é certamente negativa.
Tanto isso é verdade, que a Lei n° 7. 913, de 7 de dezembro de 1989,
previu ações específicas de ressarcimento a investidores, prevendo
ainda a Lei no 6.024, de 13 de março de 1974 medidas acautelató-
rias quando se tratar de liquidação extrajudicial de instituições de
crédito." (grifamos)

Portanto, as disposições do CDC não devem ser aplicadas às


avaliações objeto da Consulta, uma vez que os acionistas minoritários
de companhias abertas não são consumidores, mas investidores do
mercado de valores mobiliários.
Tal conclusão não é afetada pelo fato de o artigo 3°, § 2°, do CDC
expressamente mencionar que estão sujeitas às regras nele estabeleci-
das as atividades de "natureza bancária, financeira, de crédito e secu-
ritária".
Como é evidente, nem todas as atividades exercidas pelas institui-
ções financeiras podem ser incluídas na noção de "serviços de nature-
za bancária", uma vez que só poderão estar nela inseridas aquelas
fornecidas no mercado de consumo, como expressamente determina
o próprio artigo 3°, § 2° do CDC 7•
Ou seja, no conceito de atividades bancárias e financeiras sujeitas
às regras do CDC não estão incluídas aquelas atividades ligadas ao
investimento no mercado de valores mobiliários, uma vez que, confor-
me referido, os investidores não se situam no âmbito do mercado de
consumo.
Portanto, não se deve considerar que exista uma relação de consu-
mo entre os acionistas minoritários de determinada sociedade e a
instituição financeira contratada para realizar uma avaliação determi-
nada pela Lei das S.A. ou pelas regras expedidas pela CVM, razão pela

6 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Comentado pelos Autores do Antepro-


jeto. São Paulo: Forense Universitária, 1997, p. 41.
7 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. "As relações de consumo e o crédito
ao consumidor", in Lei de defesa do Consumidor- Coordenação de Geraldo Vi diga!.
São Paulo: IBCB, 1991, p.69/70.

204
qual a hipótese de responsabilidade objetiva prevista no artigo 14 do
Código de Defesa do Consumidor também não deve ser aplicada às
avaliações objeto da Consulta.
Ressalte-se, no entanto, que a jurisprudência apresenta uma ten-
dência no sentido de estender em demasia os conceitos de consumi-
dor e de relação de consumo, a fim de abranger todas as situações em
que se verifique a e:x;istência de um desequilíbrio econômico entre as
partes envolvidas.
Esta tendência é especialmente verificada em se tratando de de-
mandas envolvendo instituições financeiras, como se verifica, inclusi-
ve, de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça- STJ, relativa
a uma questão envolvendo fundos de investimento, na qual entendeu-
se que "as relações existentes entre os clientes (investidores do fundo)
e a instituição apresentam nítidos contornos de uma relação de consu-
mo, sendo, assim, aplicáveis as regras do CDC 8 ".
Diante do exposto, entendemos que a obrigação de indenizar por
parte do avaliador, nas hipóteses descritas na Consulta, sempre de-
penderia da comprovação de que ele agiu com culpa, ou dolo.

C- DA NATUREZA DO DEVER IMPOSTO AO AVALIADOR

A responsabilidade do avaliador perante os acionistas minoritários


e outros eventuais lesados pela avaliação realizada possui natureza ti-
picamente extracontratual, uma vez que o avaliador é contratado ape-
nas pela companhia ou pelo titular do bem avaliado, não havendo
nenhuma relação jurídica preexistente entre ele e as demais pessoas
que podem ser afetadas pelo resultado da avaliação.
Apesar disso, a fim de definir a extensão da responsabilidade do
avaliador é também importante analisar a consagrada distinção entre
as obrigações de meio e de resultado, a qual pode ser aplicada às
hipóteses mencionadas na Consulta.
Há certas obrigações cujo conteúdo consiste na atividade ou no
comportamento do devedor dirigido a um determinado resultado al-
mejado, mas cujo resultado não está compreendido no vínculo obri-
gacional: são as chamadas obrigações de meio.

8 Decisão proferida em 06.04.2004 pela Terceira Turma do STJ, nos autos do


Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2003/0174809-4 (Relator: Ministro
Carlos Alberto Menezes Direito). Disponível no site: www.stj.gov.br

205
Nestas obrigações de meio "o devedor apenas se obriga a colocar
sua habilidade, técnica, prudência e diligência no sentido de atingir
um resultado, sem, contudo, se vincular a obtê-lo". 9
Com efeito, nas obrigações de meio considera-se que o devedor
tem a obrigação geral de prudência e de diligência que incumbe ao
bonus pater familiae. Assim, são de meio as obrigações assumidas pelo
médico e pelo advogado, por exemplo, em relação aos seus clientes,
na medida em que devem adotar todos os procedimentos necessários
para atendê-los da melhor forma possível, não se comprometendo,
porém, com o resultado, qual seja, a efetiva cura de determinado mal
ou o sucesso numa disputa 10 .
A inexecução de obrigações de meio caracteriza-se pelo desvio
dessa conduta diligente ou pela omissão de determinadas cautelas
inerentes à atividade a que o devedor se comprometeu. Ou seja, so-
mente haverá inadimplemento, e o conseqüente dever de indenizar,
se o credor provar que o devedor não empregou a diligência a que se
encontrava obrigado.
Nas obrigações de resultado, por outro lado, a prestação consiste
em um resultado certo e determinado a ser produzido pelo devedor.
Assim, são de resultado as obrigações assumidas pelo transporta-
dor e pelo depositário, aos quais incumbe, respectivamente, conduzir
em segurança algo ou alguém até o seu destino, e custodiar e devolver
os bens recebidos em depósito.
Da mesma forma, no contrato de empreitada, tem-se igualmente
uma obrigação de resultado, posto que o empreiteiro deve entregar a
obra no prazo e condições previstos, respondendo por sua solidez e
segurança durante determinado período.
Nas obrigações de resultado, a inexecução caracteriza-se pela não
produção do resultado final prometido; isto é, a ausência deste con-
figura o inadimplemento.
A distinção entre as obrigações de meio e de resultado tem sido
reconhecida pelos nossos Tribunais, como se verifica da seguinte deci-
são do Tribunal de Justiça de São Paulo:

"A obrigação que o advogado assume para com o cliente é uma obriga-
ção de meios e não uma obrigação de resultado. Se agiu corretamente,

9 SERGIO CAVALIERI FILHO. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo:


Malheiros, 2003, p. 54.
10 NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro, Ed.
Renovar, 1992, p. 50.

206
com diligência normal, na demanda, tem direito a honorários, ainda
que não obtenha êxito." (Sa Câmara Civil, Apelação Cível n° 148-
419, Relator Des. Rodrigues de Alckmin).

Uma vez estabelecida a distinção entre obrigações de meio e de


resultado, cumpre-nos verificar em que modalidade se enquadraria a
obrigação decorrente da realização das avaliações previstas na lei so-
cietária e na regulamentação expedida pela CVM.
Atualmente, existem diversos critérios para se determinar o va-
lor de uma companhia ou de um bem, todos usualmente utilizados
pelas instituições financeiras e demais empresas especializadas em
avaliação.
A própria Lei das S .A. expressamente consagra esta diversidade
de critérios, tanto que, em seu artigo 4°, § 4°, menciona que o "preço
justo" de determinada ação pode ser apurado com base na utilização,
conjunta ou isolada, de qualquer um dos seguintes critérios: patrimô-
nio líquido contábil, patrimônio líquido avaliado a preços de mercado,
fluxo de caixa descontado, comparação por múltiplos, cotação das
ações no mercado de valores mobiliários ou, ainda, outro critério acei-
to pela CVM.
A avaliação com base em alguns destes parâmetros, notadamente
o valor de cotação no mercado e o patrimônio líquido contábil, depen-
de apenas de dados e informações objetivas, obtidas junto à bolsa de
valores ou nos demonstrativos contábeis anteriormente divulgados
pela companhia.
Contudo, a maioria dos critérios de avaliação regularmente em-
pregados no mercado pressupõe a utilização de dados e informações
de natureza subjetiva, que se caracterizam por um razoável grau de
incerteza a imprecisão.
Com efeito, as avaliações são realizadas com base em dados volta-
dos para o futuro, como, por exemplo, projeções financeiras, prognós-
ticos sobre o desempenho econômico futuro, previsão sobre o custo
de reposição de bens, os quais implicam um considerável número de
estimativas, presunções e juízos de valor 11 .
Nessas condições, é evidente que a avaliação de sociedades ou de
bens utilizados para integralizar aumentos de capital não possui um úni-

li NEWTON SÉRGIO DE SOUZA. "Divulgação de Informações de Natureza Sub-


jetiva: A Experiência do Direito Norte-Americano". Revista Brasileira de Mercado de
Capitais. n. 07, jan/abr de 1981, p. 53.

207
co resultado certo e incontestável, pois depende das premissas, metodo-
logias e/ou projeções validamente adotadas por cada avaliador.
Logo, a obrigação assumida pela instituição avaliadora não pressu-
põe a elaboração de um laudo que apresente o valor correto do bem
objeto de avaliação.
Ou seja, não se poderia pretender responsabilizar determinado
avaliador apenas em função do resultado de sua avaliação, isto é, de
ele ter apurado um valor distinto daqueles eventualmente obtidos por
outras instituições.
Da mesma forma, o simples fato de as projeções e estimativas
utilizadas na elaboração do laudo não se concretizarem também não
pode implicar qualquer espécie de responsabilidade para o avaliador.
A propósito, o Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários, no
julgamento do Inquérito Administrativo n° 07/87, manifestou-se no
seguinte sentido 12 :

"As projeções incluem-se entre as chamadas informações soft, posto


que contêm razoável dose de subjetividade. É importante deixar cla-
ro, inicialmente, que uma projeção não constitui uma promessa de que
os resultados projetados serão efetivamente alcançados. Daí decorre
que não há responsabilidade administrativa daquele que realizou de-
terminada projeção, a qual, posteriormente, não teve seus resultados
confirmados pela realidade." (destacamos)

Em verdade, somente será cabível a responsabilização do avaliador


se as premissas por ele utilizadas estiverem baseadas em informações
incorretas ou falsas.
No julgamento do processo acima mencionado, o Colegiado da
CVM estabeleceu o princípio de que o responsável pela elaboração de
projeções somente pode ser responsabilizado caso fique demonstrado
que a projeção (i) não foi realizada com boa-fé; (ii) foi preparada em
bases não razoáveis; e (iii) tenha se fundamentado em dados não ver-
dadeiros. É o que se infere dos Votos proferidos pelos membros do
Colegiado, nos seguintes termos 13 :

"A CVM não faz objeções à divulgação de projeções que tenham uma
base razoável e que tenham sido cuidadosa e corretamente ela-

12 Revista de Direito Mercantil, voi. 68, p. 101, out./dez. 1987.


13 Revista de Direito Mercantil, voi. 68, p. 94/102, out./dez. 1987.

208
boradas. Acrescente-se, ainda, que não será a companhia responsa-
bilizada se os números projetados não forem alcançados, sempre con-
siderando-se que as projeções foram feitas em boa-fé e apresenta-
das de forma a permitir aos investidores tomar suas decisões de inves-
timento em bases mais sólidas.
Quando se analisa a veracidade de projeções, o que se está perquirin-
do, portanto, é se as mesmas foram ou não feitas com bases razoá-
veis, o que se depreende das premissas utilizadas.
(. ..)
Qual o fundamento da responsabilização da empresa que divulga
projeções? Não é ele, insistimos, o fato de não terem sido alcançados
os resultados projetados. Não é esta a questão que aqui se discute. Há
dois parâmetros fundamentais que uma projeção deve atender
para evitar a imposição de responsabilidade: 1) ser elaborada
de boa-fé; 2) ser preparada em bases razoáveis, ou seja, com
premissas verazes (. ...) . Ou seja, para que empresa e os underwri-
ters possam apresentá-la ao público com segurança, a projeção deve
ter uma base fática razoável e deve ser divulgada de boa-fé."
(destacamos)

Os princípios acima mencionados, relativos à divulgação de proje-


ções, aplicam-se integralmente a qualquer hipótese de avaliação ela-
borada com base em dados de caráter subjetivo.
Ou seja, o avaliador somente pode ser responsabilizado pelos su-
postos danos causados a acionistas minoritários e demais investidores
se ficar comprovado que ele, ao preparar a avaliação, (i) agiu de má-fé,
com intuito de prejudicar tais acionistas e investidores; (ii) utilizou
dados e informações incorretas ou, ainda; (iii) fundamentou-se em
premissas que, tendo em vista as circunstâncias existentes, não pode-
riam ser consideradas razoáveis.
A estas circunstâncias, vale ainda acrescentar a hipótese de ser
demonstrado que o avaliador não utilizou corretamente as técnicas e
as metodologias de cálculo usualmente reconhecidas como pertinen-
tes para a espécie de avaliação realizada.
Em suma, a eventual responsabilização do avaliador pressupõe a
comprovação de que ele não atuou com diligência e perícia no sentido
de elaborar a avaliação da forma que ele, com lisura e independência,
entendia a mais correta possível.
Ou seja, a obrigação assumida pela instituição avaliadora pode ser
equiparada a uma típica obrigação de meios, posto que ela não pode
ser responsabilizada apenas em função do resultado da avaliação, mas

209
sim por ter deixado de empregar os meios tecnicamente adequados
para a sua elaboração.
Em se tratando de uma obrigação de meios não há como se preten-
der responsabilizar o avaliador sem analisar se ele agiu culposamente,
isto é, se ele se comportou com negligência, imprudência ou imperí-
cia. Isto porque, conforme referido, o descumprimento desta espé-
cie de obrigação decorre justamente do fato de o devedor não ter
atuado com a técnica, a habilidade e a diligência que eram considera-
das devidas.
Vale dizer, a responsabilidade objetiva, em nosso entendimento, é
incompatível com as obrigações de meio, somente podendo ser aplica-
da em relação às atividades que geram para o agente uma obrigação de
resultado.
Portanto, ainda que se entenda que a atividade de avaliação possa
ser enquadrada em uma das hipóteses de responsabilidade objetiva,
por ser considerada de risco ou por envolver uma relação de consumo,
a circunstância de a responsabilidade imposta ao avaliador ser equiva-
lente a que decorreria de uma obrigação de meios torna praticamente
inviável a sua condenação a ressarcir prejuízos sem a verificação do
caráter culposo de sua conduta.

D- DA EXTENSÃO DO DEVER DE DILIGÊNCIA INERENTE


ÀS AVALIAÇÕES PREVISTAS NA LEI N° 6.404/1976 E NA
REGULAMENTAÇÃO DO MERCADO DE CAPITAIS

Conforme referido nos itens anteriores, dificilmente o avaliador


será responsabilizado, nas hipóteses previstas na Consulta, sem que se
analise se ele efetivamente descumpriu seu dever de diligência ao
elaborar a avaliação.
Dessa forma, passamos a analisar em que consiste este dever de
diligência imposto às instituições que realizam avaliações decorrentes
das regras societárias e do mercado de capitais, isto é, que cautelas o
avaliador deve tomar para que não seja responsabilizado por descum-
primento ao dever de diligência.
O dever de diligência, em todos os ramos do direito que a ele se
referem, é usualmente empregado como uma consagração do stand-
ard do bonus pater familiae, que significa que cabe ao agente, no
desenvolvimento de suas atividades, empregar o zelo e o cuidado que
o tipo médio ou o homem comum utilizaria na condução dos seus
próprios negócios.

210
No entanto, em se tratando de responsabilidade pelo exercício de
atividade profissional, entende-se que o dever de diligência não se
exaure no observância da conduta do homem médio, exigindo-se do
agente o comportamento que seria esperado do bom profissional na
atividade por ele desenvolvida.
Assim, a disciplina da responsabilidade de auditores e contadores
obriga-os a atender aos standards da profissão, responsabilizando-os
pelos prejuízos causados caso deixem de proceder com a habilidade e
diligência que um profissional razoavelmente competente e cauteloso
procederia 14 .
Da mesma forma, nosso moderno direito societário, ao tratar da
responsabilidade dos administradores de sociedade anônima, vem
substituindo o paradigma do bom pai de família pela figura do admi-
nistrador competente. Assim, o administrador diligente seria identifi-
cado com a figura do profissional qualificado e competente, que pau-
tasse sua atuação de acordo com os ditames da ciência da administra-
ção de empresas 15 .
Logo, o primeiro requisito que o avaliador deve atender para evi-
tar a possibilidade de vir a ser obrigado a ressarcir eventuais prejuízos
é atuar com a habilidade e perícia que normalmente se espera de um
profissional competente.
Neste sentido, um dos principais fatores para se saber se o profis-
sional comportou-se com a diligência esperada é verificar se ele pres-
tou seus serviços de acordo com as regras e métodos usualmente ado-
tados em sua atividade.
Assim, dificilmente se poderia responsabilizar o avaliador se ficar
demonstrado que ele utilizou corretamente os usos e práticas profis-
sionais geralmente aceitos ou recomendados para a espécie de avalia-
ção realizada.
Além de observar os padrões de conduta do profissional compe-
tente, é necessário que o avaliador seja absolutamente independente
em relação à pessoa que o contratou e à sociedade a ser avaliada.
O conceito de independência profissional do avaliador constitui
condição indispensável da legitimidade de qualquer das espécies de

14 NELSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO e MARCO ANTÔNIO GON-


ÇALVES TORRES. "Responsabilidade Civil - Parecer de Auditores - Obrigações
de Meio e de Resultado - Dever de Indenizar". Revista dos Tribunais, 716 -junho
de 1995, p. 143.
15 FÁBIO ULHOA COELHO. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2002.
v. 2., p.244.

211
avaliações previstas na Lei das S .A. ou na regulamentação do mercado
de capitais.
Tanto isto é verdade que o artigo 5° da Instrução CVM n°
319/1999 estabelece que as empresas que elaborarem avaliações rela-
tivas a operações de incorporação, fusão e cisão deverão informar, no
corpo dos respectivos laudos, a existência de qualquer circunstância
relevante que possa caracterizar conflito de interesse. Da mesma for-
ma, o artigo 8°, § 3°, inciso V, da Instrução CVM n° 361/2002, ao
regular as avaliações realizadas no âmbito de ofertas públicas de aqui-
sição de ações, expressamente exige que o avaliador declare "que não
tem conflito de interesses que lhe diminua a independência de suas
funções".
A existência de situação de conflito de interesses pode facilitar a
condenação do avaliador a ressarcir os eventuais prejuízos causados
a terceiros, na medida em que constitui um indício extremamente
forte de que o avaliador não atendeu devidamente ao seu dever de
diligência.
Portanto, um dos cuidados a serem tomados pelo avaliador, ao
aceitar realizar determinada avaliação, consiste em certificar-se da
inexistência de qualquer circunstância que comprometa sua inde-
pendência e, assim, possa prejudicar o trabalho por ele realizado.
Um outro aspecto do dever de diligência constitui a obrigação do
administrador de se informar a respeito das matérias que estejam
relacionadas às decisões que deve tomar no exercício de suas funções.
Com efeito, o dever de se informar é considerado inerente ao
dever de diligência imposto aos administradores de sociedades anôni-
mas, conforme entendimento já firmado pela jurisprudência norte-
americana no sentido de que os administradores têm o dever de se
informar, anteriormente a qualquer tomada de decisão, de toda infor-
mação relevante razoavelmente disponível.
Da mesma forma, a doutrina ressalta que "este dever de obter
informações constitui o lado formal do dever de diligência, uma vez
que ele impõe uma regra a observar no processo de tomada de deci-
sões"16.
Assim, aplicando tal entendimento, por analogia, à atividade de
avaliação de empresas ou bens, pode-se afirmar que cabe ao avaliador
competente/ diligente reunir todas as informações necessárias a res-
peito da companhia ou do bem objeto de avaliação.

16 PAULA CRISTINA RAPOSO RODRIGUES CABRIZ SIMÕES. op. cit., p. 115.

212
Em se tratando de avaliação de sociedades, por exemplo, é reco-
mendável que o avaliador, para assegurar que está desempenhando
suas funções de maneira diligente, procure obter o maior número de
informações disponíveis sobre as atividades da companhia avaliada,
seus ativos e passivos e as operações em que esteja envolvida.
Diretamente relacionado ao dever de se informar, encontra-se o
dever de investigar, nos termos do qual o avaliador deve analisar criti-
camente as informações que lhe são transmitidas, a fim de verificar se
estas são suficientes e verídicas.
De fato, ao analisarmos as obrigações da instituição financeira
que atua na distribuição de valores mobiliários ao mercado, já nos
manifestamos no sentido de que, para eximir-se de responsabilidade,
cabe à instituição conferir a suficiência e qualidade das informações
prestadas 17 :

"Neste sentido, o underwriter não se pode deixar contagiar pelo 'entu-


siasmo' do acionista controlador e administradores da companhia
emissora. Ou seja, não pode aceitar incondicionalmente as
informações por eles prestadas, devendo examinar diligente-
mente sua veracidade e fidedignidade. Tratando-se de projeções
empresariais, nas quais às vezes manifesta-se tal 'entusiasmo', cabe
ao underwriter verificar a acuracidade das premissas e memórias de
cálculo utilizadas para sua elaboração.
Cabe ao underwriter assumir uma postura independente frente
à companhia emissora, ao exercer seu dever de diligência. Com
efeito, presume-se que o underwriter realiza uma análise profis-
sional das informações prestadas pela companhia, daí conside-
rando-se que seu dever de diligência deve atender aos padrões do
banqueiro.
(. ..)
Assim, visando a evitar sua responsabilidade disciplinar ou ci-
vil, tenderá o underwriter a atuar com a necessária autonomia
frente à companhia emissora, realizando uma revisão profissio-
nal e independente das informações fornecidas à CVM e ao públi-
co por ocasião de uma distribuição pública de valores mobiliários"
(destacamos)

17 NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro:


Renovar, 1992, p. 60/62.

213
Da mesma forma, o Colegiado da CVM já confirmou expressa-
mente a existência desse dever de investigar, nos seguintes termos 18 :

"À vista das falhas técnicas no preparo das projeções, elaboradas


com erros por não levar em conta fatos conhecidos que distor-
ciam significativamente os números prospectivos que serviram de
base para o estudo do lançamento das ações, e, posteriormente, de
forma sintetizada, divulgadas para um público específico, pode-se
afirmar que os underwriters não exerceram suficientemente o seu
dever de verificar a qualidade das informações fornecidas ao
mercado. (destacamos)"

O entendimento acima mencionado, referente às obrigações dos


underwriters de valores mobiliários, pode ser aplicado, mutatis mu-
tandis, à situação do avaliador, uma vez que o laudo por este elabora-
do possui influência direta sobre as decisões tomadas pelos acionistas
minoritários e demais investidores.
Com efeito, a avaliação do bem ou da sociedade por uma grande
instituição financeira confere credibilidade à operação, podendo levar
os investidores a presumir, apenas em função da reputação do avalia-
dor, a exatidão e suficiência dos dados que fundamentaram os valores
obtidos no laudo de avaliação.
O artigo 5° da Instrução CVM n° 319!1999 implicitamente reco-
nhece a existência deste dever de investigar em relação às avaliações
destinadas a fundamentar operações de incorporação, fusão ou cisão
envolvendo companhias abertas. De fato, tal dispositivo obriga os ava-
liadores a informarem se os acionistas controladores ou administrado-
res da companhia avaliada de alguma forma limitaram ou dificultaram
o acesso a qualquer informação, bem ou documento relevante para a
conclusão da avaliação.
Em vista disso, compete aos avaliadores revisarem as informações
passadas por acionistas e administradores das sociedades avaliadas,
utilizando-se de procedimentos razoavelmente seguros para certifi-
car-se de que tais informações são corretas e confiáveis.
Diante do exposto, conclui-se que o cumprimento do dever de
diligência imposto ao avaliador pressupõe não apenas a utilização, com
habilidade e competência, dos métodos e práticas profissionais geral-
mente aceitos ou recomendados para a espécie de avaliação realizada,

18 Revista de Direito Mercantil, vol. 68, p. 99.

214
mas também o atendimento aos deveres de se informar adequada-
mente sobre o bem objeto da avaliação e de investigar a suficiência e
acuidade das informações que lhe foram transmitidas.

E - DA EVENTUAL RESPONSABILIDADE ADMINISTRA-


TIVA DOS AVALIADORES PERANTE A COMISSÃO DE VA-
LORES MOBILIÁRIOS

A responsabilidade administrativa verifica-se em virtude da viola-


ção de normas legais e regulamentares e tem como principal conse-
qüência, ao invés do pagamento de indenização como ocorre em rela-
ção à responsabilidade civil, a possibilidade de serem aplicadas san-
ções por parte dos órgãos estatais encarregados de fiscalizar o cumpri-
mento das referidas normas.
No âmbito do mercado de capitais e das companhias abertas, esta
função sancionadora do Estado é exercida pela Comissão de Valores
Mobiliários - CVM.
De fato, a Lei n° 6.385/1976 expressamente conferiu poderes à
CVM para fiscalizar e punir os atos praticados em violação à legislação
societária e às normas legais e regulamentares que disciplinam o mer-
cado de capitais, conforme disposto em seu artigo 11, in verbis:

"Art. 11 -A Comissão de Valores Mobiliários poderá impor aos


infratores das normas desta Lei, da Lei de sociedades por ações,
das suas resoluções, bem como de outras normas legais cujo cum-
primento lhe incumba fiscalizar, as seguintes penalidades:
1 - advertência;
11- multa;
Ill- suspensão do exercício de cargo de administrador de companhia
aberta ou de entidade do sistema de distribuição ou de outras entida-
des que dependam de autorização ou registro na Comissão de Valores
Mobiliários;
IV - inabilitação temporária, até o máximo de vinte anos, para o
exercício dos cargos referidos no inciso anterior;
V- suspensão da autorização ou registro, para o exercício das ativi-
dades de que trata esta Lei;
VI - cassação da autorização ou registro, para o exercício das ativi-
dades de que trata esta Lei;
Vll- proibição temporária, até o máximo de vinte anos, de praticar
determinadas atividades ou operações, para os integrantes do sistema

215
de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização
ou registro na Comissão de Valores Mobiliários;
VIII - proibição temporária, até o máximo de dez anos, de atuar,
direta ou indiretamente, em uma ou mais modalidades de operação no
mercado de valores mobiliários." (destacamos)

Ressalte-se, porém, que uma das características particulares do


poder administrativo disciplinar consiste no fato de ele não ser exerci-
do em relação a universalidade dos indivíduos, pois restringe-se às
pessoas que participem da relação disciplinar, isto é, aquelas que fo-
ram expressamente submetidas à fiscalização de determinado órgão
estataP 9 .
Em vista disso, é fundamental analisar os dispositivos da Lei n°
6.385/1976, a fim de determinar se as instituições avaliadoras estão
incluídas entre as pessoas passíveis de serem supervisionadas pela
CVM.
A propósito, não se encontra na Lei n° 6.385/1976 qualquer men-
ção expressa à figura das empresas de avaliação, motivo pelo qual
poder-se-ia entender que elas não estariam subordinadas à atuação
punitiva da CVM.
Ressalte-se, no entanto, que o artigo 9° da Lei n° 6.385/1976
dispõe que a CVM possui competência para "apurar, mediante pro-
cesso administrativo, atos ilegais e práticas não eqüitativas de admi-
nistradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias
abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado"
(grifamos).
Como se verifica, a Lei n° 6.385/1976 atribuiu poderes disciplina-
res extremamente abrangentes à CVM, na medida em que colocou
sob a sua tutela toda pessoa ou entidade que, genericamente, partici-
pe do mercado de capitais, ou seja, que desempenhe qualquer espécie
de atividades no mercado de valores mobiliários.
Ora, existem hipóteses em que as avaliações previstas na lei socie-
tária se destinam a viabilizar operações típicas do mercado de capitais,
como ocorre, por exemplo, quando o laudo de avaliação visa a funda-
mentar o preço de uma oferta pública de aquisição ou de distribuição
de valores mobiliários, servindo de base para a tomada de decisão por
parte dos investidores.

19 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO. "Sobre o Poder Disciplinar da


CVM". Revista de Direito Mercantil, vol. 43, p. 66. jul./set. 1981.

216
Nessas situações, a instituição avaliadora está claramente partici-
pando do mercado de capitais e, assim, poderia vir a ser responsabili-
zada disciplinarmente pela CVM.
Além disso, o conceito de "participante do mercado" também
pode ser estendido para abranger situações não tão evidentes, como
seria o caso, por exemplo, da avaliação realizada no âmbito de uma
incorporação envolvendo companhia aberta ou de um aumento de
capital de companhia aberta integralizado em bens.
Neste sentido, lembre-se que o trabalho do avaliador não produz
efeitos apenas sobre a decisão tomada pelos acionistas minoritários
em relação a uma operação societária específica, mas pode afetar a
própria negociação com as ações de emissão da companhia no merca-
do secundário.
De fato, se o laudo de avaliação, por exemplo, atribui valores aos
ativos da sociedade diferentes daqueles registrados em suas
demonstrações contábeis ou apresenta projeções e perspectivas sobre
os negócios sociais, é evidente que ele pode ter uma influência consi-
derável sobre o mercado como um todo.
Assim, em praticamente todas as hipóteses previstas em lei ou na
regulamentação expedida pela CVM, pode-se entender que a função
exercida pelo avaliador é de interesse do mercado de capitais e que,
como conseqüência, ele participa do referido mercado.
Logo, é possível que, em qualquer hipótese envolvendo compa-
nhia aberta, caso fique demonstrado que determinada avaliação foi
elaborada com culpa ou dolo, causando prejuízos aos acionistas mino-
ritários ou aos demais investidores, a CVM possa vir a responsabilizar
o avaliador, aplicando as sanções previstas no artigo 11 da Lei n°
6.385/1976.
Isto posto, vale salientar que os pressupostos da responsabilidade
disciplinar do administrador são bastante similares aos da responsabi-
lidade civil, conforme anteriormente analisados.
Deve-se enfatizar, no entanto, que seria totalmente inadmissível
aplicação dos princípios da responsabilidade objetiva para fundamen-
tar a imposição de penalidades a qualquer indiciado em processos
administrativos sancionadores 20 .
Dessa forma, para que possa legitimamente responsabilizar o ava-
liador, a CVM está obrigada a analisar a conduta por ele adotada, a fim

20 NELSON EIZIRIK. Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais. Rio de


Janeiro: Forense, 1987, p. 114.

217
de demonstrar que ele efetivamente não atendeu ao dever de diligên-
cia a que estava adstrito.
Confirmando o que foi descrito acima, a CVM recentemente emi-
tiu opinião concluindo que não é dever da comissão analisar as premis-
sas subjetivas levadas em consideração pelo avaliador, visto que tal
conduta somente pode ser considerada ilegal se ficar caracterizado
erro voluntário na elaboração da avaliação 21 :

"7. Relativamente a eventuais indenizações a serem recebidas pelo


Sudameris, por força de prejuízos causados por seu antigo controla-
dor, apuradas em processos judiciais em curso levados a efeito por
seus acionistas minoritários, na qualidade de substitutos processuais,
assinale-se que sua repercussão sobre a fixação da relação de troca na
'incorporação' deve, necessariamente, ser aferida pela assessoria téc-
nica da companhia 'incorporadora', uma vez que tais montantes in-
gressariam no patrimônio do Sudameris, avultando-o (e, por equiva-
lência patrimonial, no de seu controlador, o Banco ABN).
8. Assim, ilegalidade terá havido (a) se, em verdade, não fora reali-
zada a referida avaliação, inexistindo, portanto, laudo a respeito,
bem como (b) na hipótese de erro manifesto na avaliação do re-
sultado (prognóstico) daquelas demandas, devendo-se reconhe-
cer que se está em terreno de farta subjetividade; é dizer, não
cabe à CVM, observadas as ressalvas supra, substituir-se ao
juízo a que chegou a avaliação acaso efetivada."(destacamos)

Por outro lado, a responsabilidade administrativa, ao contrário da


responsabilidade civil, não está vinculada à demonstração ou quantifi-
cação do dano sofrido pela vítima.
Ou seja, para que possa exercer seu poder punitivo, a CVM não
precisa comprovar que a conduta do agente efetivamente causou pre-
juízos aos investidores, bastando a ela demonstrar a existência de vio-
lação a um dever jurídico que o agente estava obrigado a cumprir.
Portanto, no caso presente, a instituição avaliadora, por ser consi-
derada participante do mercado, pode também estar sujeita às san-
ções impostas pela CVM, desde que fique caracterizado que, ao ela-
borar o laudo de avaliação, ela não observou os padrões de diligência
devidos.

21 Opinião emitida no Processo Administrativo CVM RJ 2004/2274. Acessível no


website: www.cvm.gov.br.

218
F) DOS CRITÉRIOS PARA DETERMINAR O PREÇO JUSTO
DAS AÇÕES (ART. 4°, § 4° DA LEI DAS S.A.)

F .1. - Da extensão da responsabilidade do avaliador nas


hipóteses previstas na Consulta

A Consulta menciona diversas situações previstas na Lei das S .A.


ou na regulamentação sobre o mercado de capitais nas quais é exigida
a realização de avaliações de sociedades anônimas ou de bens utiliza-
dos na integralização do capital.
De fato, a Consulta refere-se às avaliações realizadas com o obje-
tivo de: (a) determinar o "preço justo" das ações para efeitos da fixa-
ção do valor proposto em ofertas públicas de aquisição de ações; (b)
estabelecer o valor de bens utilizados para integralizar o capital de
sociedades anônimas; (c) fixar o valor de reembolso devido aos acio-
nistas nas hipóteses previstas em lei; (d) fundamentar a fixação do
preço de emissão de novas ações em aumentos de capital; (e) embasar
a relação de troca das ações em operações de reorganização societária,
tais como incorporações, fusões, cisões; (f) justificar o preço de aqui-
sição do controle de outra sociedade mercantil.
Em todas estas situações, bem como nas demais hipóteses em que
vier a ser solicitada a realização de avaliações no âmbito societário ou
no mercado de capitais, os princípios para se aferir a eventual respon-
sabilidade civil ou administrativa da instituição avaliadora são essen-
cialmente os mesmos analisados ao longo do presente Parecer.
Ou seja, o avaliador, em regra, não pode ser responsabilizado em
função do resultado da avaliação, mas apenas se ficar caracterizado
que a avaliação foi elaborada de forma fraudulenta, de má-fé ou sem
observar os padrões de diligência que se espera de um profissional
competente.
Na verificação do atendimento ao dever de diligência pelo avalia-
dor, deve-se analisar, basicamente, se ele utilizou os métodos e técni-
cas usualmente empregadas no mercado para a espécie de avaliação
realizada, bem como se ele atuou de forma cautelosa no sentido de
reunir todas as informações necessárias sobre a sociedade ou o bem a
ser avaliado e de certificar-se sobre a acuidade e suficiência das
informações que lhe foram transmitidas.
Vale notar, entretanto, que a extensão da responsabilidade do
avaliador pode variar em função do objetivo a que ela se destina, uma
vez que, dependendo da finalidade da avaliação, diferente será o uni-
verso de pessoas que poderia eventualmente ser prejudicado pela
atuação do avaliador.

219
Em regra, os acionistas da sociedade envolvida nas operações men-
cionadas na Consulta são os únicos que podem sofrer prejuízos em
decorrência das avaliações previstas na Lei das S.A. ou na regulamen-
tação do mercado de capitais. Assim, em princípio, eles também se-
riam os únicos com legitimidade para acionar judicialmente o avalia-
dor por conta de sua suposta conduta culposa ou dolosa.
Eventualmente, tal legitimidade poderia ser estendida a outros
investidores do mercado de valores mobiliários, não acionistas da
companhia objeto de avaliação, desde que tais investidores conseguis-
sem comprovar que foram efetivamente lesados por uma avaliação
elaborada de forma irregular.
No entanto, nos casos em que a avaliação se destina a determinar
o valor de bens utilizados para formar o capital social, previstos no
artigo 8° da Lei n° 6.404/1976, ela pode também acarretar danos aos
credores da companhia.
Isto porque o capital social representa, tradicionalmente, a cifra
de patrimônio que os sócios são obrigados a reter na sociedade, como
garantia dos credores.
Assim, na hipótese de, em decorrência de uma avaliação fraudu-
lenta ou não diligente, determinado bem for atribuído ao capital social
por valor superior ao seu valor efetivo, os credores poderão ser preju-
dicados, visto que seus créditos estarão assegurados por um valor infe-
rior ao legalmente declarado.
Em vista disso, o § 6° do artigo 8° da Lei das S.A. expressamente
inclui os credores sociais entre aqueles que, ao lado da própria compa-
nhia e de seus acionistas, poderão responsabilizar os avaliadores pelos
danos que lhes forem causados por culpa ou dolo na avaliação de bens
conferidos ao capital social.
Vale ressaltar, no entanto, que esta responsabilidade dos avaliado-
res, em conjunto com o acionista subscritor, em face dos credores
somente subsistirá em caso de insolvência da sociedade. De fato, en-
quanto a companhia estiver honrando normalmente suas obrigações, a
superavaliação do capital não acarretará nenhum prejuízo aos credo-
res e, conseqüentemente, não poderá dar ensejo à responsabilidade
civil 22 •
Note-se, ainda, que a responsabilidade perante os credores sociais
aplica-se a todas as hipóteses em que a avaliação destina-se a funda-

22 JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA. Direito Societário. Rio de Janeiro: Reno-


var, 2003, p.Z07.

zzo
mentar o valor do capital social, ainda que, a princípio, não estejam
reguladas pelo artigo 8° da lei societária.
É o caso, por exemplo, das operações de incorporação, fusão e
cisão, as quais, apesar de não estarem diretamente vinculadas ao refe-
rido artigo 8°, constituem, em essência, um aumento de capital da
companhia incorporadora ou resultante da fusão e cisão.
Por outro lado, não existirá responsabilidade frente aos credores
em relação às avaliações que tenham por finalidade justificar a relação
de troca das ações, nos termos dos artigos 224, inciso I, e 264 da lei
societária, uma vez que, nesta hipótese, os acionistas das sociedades
envolvidas acionistas são os únicos que possuem interesses afetados
pelo resultado da avaliação.
Note-se, por fim, que o fato de os acionistas, investidores e credo-
res, conforme o caso, não serem partes no contrato firmado com a
instituição avaliadora não impede que eles requeiram indenização em
face do avaliador. Com efeito, a responsabilidade, no caso, seria de
natureza extracontratual, decorrendo da circunstância de os avaliado-
res terem causado prejuízo a terceiros em virtude da violação do dever
de diligência a que estavam obrigados.

F.2.- Dos critérios para se determinar o preço justo das ações


para efeitos das ofertas públicas de aquisição de ações ("OPA's)

A Lei n° l 0.303/2001, ao modificar diversos dispositivos da Lei n°


6.404/1976, introduziu o princípio de que as ofertas públicas de aqui-
sição de ações visando o cancelamento de registro de companhia aber-
ta deveriam ser formuladas por "preço justo".
No entanto, a lei não estabeleceu claramente o que se deveria
entender por "preço justo", mencionando apenas, nos termos da nova
redação do artigo 4°, § 4°, da Lei das S.A., que ele deveria ser "ao
menos igual ao valor de avaliação da companhia, apurado com base
nos critérios, adotados de forma isolada ou combinada, de patrimônio
líquido contábil, de patrimônio líquido avaliado a preço de mercado,
de fluxo de caixa descontado, de comparação por múltiplos, de cotação
das ações no mercado de valores mobiliários, ou com base em outro
critério aceito pela Comissão de Valores Mobiliários, assegurada a
revisão do valor da oferta, em conformidade com o disposto no art.
4-A".
Como se verifica, o legislador optou por não estabelecer um único
critério obrigatório aplicável a todas as companhias, mas por relacio-
nar, de forma exemplificativa, uma série de parâmetros que poderão

221
ser adotados, isolada ou cumulativamente, na fixação do "preço justo"
a ser proposto para as ofertas públicas de cancelamento de registro.
Em verdade, O § 4° do artigo 4o da lei societária, ao criar a figura
do "preço justo", visou a basicamente a obrigar o acionista controlador
a fundamentar o preço por ele proposto com base em um ou alguns
dos parâmetros ali elencados ou em outro aceito pela CVM, uma vez
que, no regime legal anterior, as OPA's poderiam ser formuladas pelo
preço livremente fixado pelo ofertante, sem que fosse necessário in-
formar aos minoritários como havia sido obtido aquele preço 23 .
Evidentemente, a companhia e os avaliadores por ela contratados
não estão livres para escolher, arbitrariamente, qualquer dos parâme-
tros mencionados no artigo 4°, § 4°, da lei societária como base para a
apuração do "preço justo". O critério adotado para a definição do
"preço justo" deve ser compatível com a real situação da companhia e
das ações de sua emissão.
Portanto, pode-se definir a figura do "preço justo" como sendo
aquele apurado em laudo de avaliação independente, elaborado de
acordo com o critério, dentre aqueles previstos no artigo 4°, § 4°, da
Lei das S.A., considerado mais adequado para refletir o valor efetivo e
real da companhia avaliada.
Note-se que a escolha do parâmetro utilizado como base para a
fixação do "preço justo" a ser oferecido na OPA não compete ao ava-
liador, mas à pessoa que estiver promovendo a oferta. Todavia, o ava-
liador deve declarar, no laudo por ele elaborado, se concorda com a
definição do ofertante e, caso contrário, informar qual seria, em sua
opinião, o critério mais adequado para a determinação do "preço jus-
to". É o que se infere do disposto nos incisos IV e V do § 3° da
Instrução CVM n° 361/2002, nos seguintes termos

"Art. 8°- (. . .)
§ 3° - O laudo de avaliação indicará os critérios de avaliação, os
elementos de comparação adotados e o responsável pela sua elabora-
ção, contendo, ainda, no mínimo e cumulativamente, os seguintes:
(. . .)
IV- o valor da companhia segundo o critério de avaliação adota-
do pelo ofertante para a definição do preço justo, se for o caso, e
não estiver abrangido nos incisos anteriores; e

23 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S.A. São


Paulo: Saraiva, 2002, p. 51.

222
V- declaração do avaliador:
(. .. .)
bJ sobre o critério de avaliação, dentre os constantes do laudo, que
lhe pareça mais adequado à definição do preço justo;" (destaca-
mos)

Dessa forma, o avaliador deve ter independência ao prestar a de-


claração acima mencionada, podendo ser responsabilizado caso não
ressalve a adoção, pelo ofertante, de um critério manifestamente ina-
dequado à situação concreta da companhia avaliada.
Ressalte-se, ademais, que o artigo 4°, § 4°, da lei societária confere
à CVM competência para, em situações específicas, admitir outros
critérios aceitáveis para chegar-se ao "preço justo".
A propósito, o Colegiado da CVM já manifestou o entendimento
no sentido de que pode ser considerado "preço justo" aquele tenha
resultado de uma negociação livremente realizada por partes inde-
pendentes, ainda que esta não tenha se fundamentado em nenhum
critério de avaliação, conforme se verifica da seguinte decisão 24 :

"O Colegiado da CVM, considerando que:


(. . .)
Foram realizadas, em julho próximo passado, duas transações de vul-
to com ações ordinárias de emissão de TRIKEM S!A, envolvendo
I3,4% e I O, I% do total dessas ações. Essas transações foram realiza-
das com a BRASKEM S!A pela Mitsubishi Chemical Corporation e
Nissho Iwai Corporation, partes independentes e não relaciona-
das. Ademais, foi declarada a inexistência de negócios paralelos
entre as partes envolvidas nas mencionadas transações, que
possam afetar os valores ou relação de troca contratadas;
(. . .)
Decidiu:
Nos termos da lei, aceitar o critério de avaliação da companhia,
baseado nas transações relatadas ocorridas em julho, para efei-
tos de apuração do preço justo, sem a necessidade de apresenta-
ção de laudo de avaliação.
Justifica a presente decisão, a similitude do critério de avaliação ado-
tado na operação em tela ao critério de comparação por múltiplos,
admitido na lei, com a vantagem do primeiro, em termos de qualidade

24 Decisão tomada em 28.10.2003, no julgamento do Processo CVM RJ 2003/7909.


Disponível no site: www.cvm.gov.br.

223
da avaliação, haja vista que as transações entre partes não relaciona-
das, que serviram de comparação, envolveram a própria espécie de ações
objeto da OPA e não de ações de empresas semelhantes. (destacamos)
11

Por fim, vale ainda salientar que algumas decisões do Colegiado da


CVM vêm dando a entender que somente seria considerado efetiva-
mente "justo" o valor aceito, no âmbito de uma oferta pública, por
parcela substancial dos acionistas minoritários da companhia. Neste
sentido, a decisão proferida no Processo CVM RJ 2002/3433 estabe-
leceu que 25 :

"Com efeito, somente mediante a realização da oferta pública dirigi-


da à totalidade das ações em circulação, e sendo esta bem-sucedi-
da, conforme a regulamentação da CVM, é que poderá ser vali-
dado o preço justo mencionado no § 4° do artigo 4°.
Por mais que a lei tenha previsto que o preço justo será "ao menos
igual ao valor de avaliação da companhia, apurado com base nos
critérios, adotados de forma isolada ou combinada, de patrimônio
líquido contábil, de patrimônio líquido avaliado a preço de mercado,
de fluxo de caixa descontado, de comparação por múltiplos, de cota-
ção das ações no mercado de valores mobiliários, ou com base em
outro critério aceito pela Comissão de Valores Mobiliários, assegura-
da a revisão do valor da oferta, em conformidade com o disposto no
art. 4°-A", o melhor instrumento para se verificar a validade do
preço é a maciça adesão de acionistas titulares de ações em cir-
11
culação à oferta de cancelamento de registro de companhia aberta.

No entanto, isto não significa que o ofertante e os avaliadores


tenham qualquer responsabilidade apenas em função de os acionistas
minoritários não terem aceito a OPA, hipótese em que, de acordo
com a decisão acima transcrita, o preço ofertado não poderia ser con-
siderado "justo".
O fato de os investidores eventualmente não concordarem com o
preço proposto constitui um direito inerente ao próprio conceito de
oferta pública, mas daí não decorre que tenha havido qualquer irregu-
laridade na escolha do critério adotado para fundamentar o valor ofe-
recido aos minoritários ou na própria avaliação das ações.
Foi o nosso Parecer, em junho de 2004.

zs Decisão tomada em 17.02.2003. Disponível no site: www.cvm.gov.br.

224
INEXISTÊNCIA DE ~~PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA
INDIRETA" ENTRE SOCIEDADES COLIGADAS 1

l. Vem sendo objeto de alguma discussão, particularmente no


âmbito da Comissão de Valores Mobiliários, a questão referente à
eventual existência, em nosso direito societário, de vedação à "partici-
pação recíproca indireta" entre sociedades coligadas.
2. A Lei das S.A., em seu art. 244, caput, proíbe expressamente a
participação recíproca entre uma sociedade anônima e suas coligadas
ou. controladas.
3. Nesse sentido, assim dispõe o caput do art. 244 da Lei das S.A.:

Art. 244 -É vedada a participação recíproca entre a companhia e


suas coligadas ou controladas.

4. A Lei das S.A., ao vedar a participação recíproca entre a compa-


nhia e suas coligadas e controladas, teve por objetivo, conforme a
Exposição Justificativa elaborada pelos autores do Anteprojeto, pre-
servar a integridade do capital social na sua função de garantia dos
credores.
5. As normas que vedam as participações recíprocas entre a com-
panhia e suas coligadas e controladas visam, assim, evitar o aguamento
do capital social.
6. Outro objetivo das normas que impedem a participação recí-
proca, conforme refere a doutrina, é o de evitar problemas de nature-
za política, que podem resultar do exercício do direito de voto por
parte das sociedades que participam do capital de outras. Nesse senti-
do, considera-se que, se fosse permitida a utilização do direito de voto
por ambas as sociedades em que há participação recíproca, ocorreria
anulação da influência de uma sociedade sobre outra; daí as legislações

I Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 99, p. 83. jul/set 1995.

225
societárias vedarem em geral o direito de voto da sociedade controla-
da que possui ações na controladora 2 .
7. Tais normas, dada sua feição repressiva, evidentemente não se
aplicam a todas as situações de participação recíproca, mas tão-so-
mente àquelas em que se verifica a ocorrência de controle ou de coli-
gação entre as companhias envolvidas.
8. Os conceitos de controle e de coligação estão claramente esta-
belecidos na Lei das S.A. Assim, quando a Lei veda a participação
recíproca entre a companhia e suas controladas e coligadas, evidente-
mente tal proibição aplica-se apenas quando caracterizado o controle
ou a coligação tal como definidos pela Lei das S.A.
9. Com efeito, tratando-se o controle e a coligação de conceitos
perfeitamente definidos na Lei, não pode o intérprete, por definição,
utilizar outras noções (econômicas, financeiras, contábeis, etc.) de
controle ou de coligação, nem interpretar os conceitos legais de manei-
ra ampliativa ou extensiva.
10. A Lei das S.A., em seu art. 116, considerou acionista contro-
lador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas
por acordo de voto, ou sob controle comum, que:
a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo per-
manente, a maioria dos votos nas deliberações da Assembléia Geral e
o poder de eleger a maioria dos administradores; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e
orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
11. A caracterização do controle, nos termos da Lei das S.A.,
pressupõe, assim, além da maioria dos votos, o uso efetivo de tal poder
para dirigir os negócios da companhia.
12. Assim, considera-se, em nosso sistema jurídico, que o controle
acionário constitui um poder de fato, não um poder jurídico; com
efeito, nasce do fato da reunião, numa mesma pessoa ou grupo de
pessoas, da quantidade de ações cujos direitos de voto, uma vez exer-
cidos no mesmo sentido, formam a maioria das deliberações na As-
sembléia Geral. Conforme ressalta a doutrina, o acionista controlador
não é sujeito ativo do poder de controle; detém esse poder enquanto
é titular do bloco de controle, ou seja, da quantidade de ações que lhe

2 FRAN MARTINS, Comentários à lei das sociedades anônimas, Rio de Janeiro,


Forense, 1977, vol. 3, pg. 262.

226
assegurem o número suficiente de votos para lograr a maioria nas
deliberações sociais e dirigir os negócios da companhia 3 .
13. Entre nós, portanto, é plenamente reconhecida a circunstân-
' cia de constituir o controle acionário uma situação de fato, a depen-
der de caracterização caso a caso, tendo em vista o grau de dispersão
acionária em determinada companhia. Assim, o controle acionário
tanto pode ser exercido com mais da metade do capital votante como
com um percentual de 30%, 20% ou menos das ações com direito de
voto, desde que o acionista com tal montante de ações apresente, de
fato, o poder de comandar os destinos da companhia e de eleger a
maioria dos administradores.
14. Embora não constitua a situação mais usual, entre nós, dada a
concentração do poder de controle, é plenamente admitida a ocorrên-
cia de controle acionário com percentual de ações votantes inferior a
50%, conforme já tivemos a oportunidade de analisar 4 .
15. O controle pode ser direto, quando caracterizada a estrutura
de poder na estrutura interna da companhia, caso em que tal relação
de poder se estabelece entre o acionista controlador - elemento des-
sa estrutura- e os órgãos da companhia.
16. Pode ainda ocorrer o controle indireto, o qual é modalidade de
poder dentro de uma estrutura de sociedades: no caso, a relação de
poder não integra a organização interna de uma companhia, mas vin-
cula o papel de acionista controlador de uma sociedade aos órgãos de
administração de outra 5 . Assim, se A controla B, que por sua vez
controla C, ocorre o controle indireto de A com relação à C, posto
que os órgãos de administração de C, de fato, estarão submetidos,
embora indiretamente, às determinações de A.
17. A Lei das S.A., em seu art. 243, § 2°, reconhece expressamen-
te a existência das duas modalidades de controle: o direto e o indireto.
Com efeito, ali está disposto que:

§ 2° - Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora,


diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos

3 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, Alienação de Controle de Companhia Aber-


ta, in ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, A Lei das
S.A. (pressupostos, elaboração, aplicação), Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1992, pg. 70 l.
4 Cf. nosso artigo, baseado em dados levantados pela CVM, intitulado "O mito do
controle gerencial. Alguns dados empíricos". Revista de Direito Mercantil, n° 66,
abril/junho de 1987, pg. 103.
s JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, Finanças e Demonstrações Financeiras da
Companhia, Rio, Forense, 1989, pg. 312.

227
de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas
deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administrado-
res. (destacamos)

18. Já o conceito de coligação é estabelecido, na Lei das S.A., não


como uma relação de fato, como um poder, mas em função da titula-
ridade de um determinado porcentual de ações. Assim, existe coliga-
ção sempre que uma companhia detiver 10% ou mais do capital social
de outra, sem que se caracterize a situação de controle.
19. Nesse sentido, dispõe o § 1° do art. 243 da Lei das S.A. que:

§ 1° - São coligadas as sociedades quando uma participa, com 10%


(dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.

20. A Lei não cogitou da possibilidade de coligação indireta, se-


guindo, no particular a orientação do direito comparado, especialmen-
te do direito italiano.
21. Com efeito, o art. 2.359 do Código Civil Italiano, com a reda-
ção dada pela Lei de 9 de abril de 1991, admitiu a possibilidade de
controle direito e indireto. Com relação à coligação (collegamento),
silenciou sobre a possibilidade de seu exercício indireto.
22. A jurisprudência dos tribunais firmou-se no sentido de que,
silenciando o Código sobre a possibilidade de coligação indireta, não
pode ser cogitada a sua existência, para qualquer efeito legal 6 .
23. Nesse sentido, o Tribunal de Milão teve o ensejo de decidir,
por duas ocasiões, que não existe, juridicamente, a coligação indire-
ta, enfatizando os acórdãos que:

ll codice civile, mentre ammette esplicitamente il controllo indiretto


tramite società controllate, non ammette escludendolo con il silenzio.
il collegamento indiretto. ll collegamento e infatti una partecipazione
minoritaria che non attribuisce influenza dominante di tal che appare
ragionevole che, in assenza di un potere decisorio determinante, il
legislatore non abbia considerato la collegata come uno "strumento"
nelle mani della società partecipante, poiché le scelte e i comportamen-
ti della partecipante sono a lei propri e non ríferibilí ad altro soggetto.
(Tríb.Mílano 6 novembre 1986, Giur. comm., 1987, li, 412).

6 VICENZO SCALEZE, Codice Delle Società, Milão, Dott. A. Giuffre Ed., 1991,
pg. 267.

228
Non e rilevante, alla stregua della definizione di società collegata
contenuta nell'art. 2359, 2° comma, c.c., il collegamento c.d. indiret-
W... cioe realizzato tramite una o piu società controllate. (Trib. Milano,
19 dicembre 1986, Foro it., 1987, I, 3162).

24. A Lei das S.A., em seu art. 243, § 1°, seguindo no particular a
orientação do direito italiano, igualmente excluiu, com o silêncio, a
coligação indireta.
25. Com efeito, embora tenha previsto, expressamente, a possibi-
lidade do controle indireto, a Lei silenciou a respeito da eventual
caracterização de uma coligação indireta. Daí pode-se concluir, sem
maiores esforços hermenêuticas, que o legislador excluiu, para todos
os efeitos, a possibilidade de se cogitar de uma situação de coligação,
por exemplo, entre A e C, quando A é coligada de B, que por seu
turno é coligada de C.
26. Inexistindo a coligação indireta, mas tão-somente a direta, é
de todo evidente que não se pode cogitar de participação recíproca
entre sociedades que não são diretamente coligadas. Assim, se A é
coligada de B e esta é coligada de C, não há qualquer vedação legal à
participação de C no capital de A. Tal vedação somente poderia ser
cogitada se houvesse uma relação de controle, caso em que a Lei
admite a sua ocorrência de maneira indireta.
27. Nesse sentido, a doutrina tem enfatizado, entre nós, que a
proibição da participação recíproca não se aplica ao caso da chamada
coligação indireta.
28. A propósito da inexistência da vedação às participações recí-
procas entre empresas que não participam diretamente uma no capi-
tal da outra comentou-se que:

A nova proibição (o art. 244) aparentemente não alcança, todavia, as


empresas com vínculo indireto de coligação. Assim, se a empresa A
possui participação na empresa B e esta na empresa C, C poderá, em
tese, participar de A, pois o art. 244 não se referiu à coligação indire-
ta e já vimos que o art. 243, § ZO, só conceitua como coligadas as
empresas com participação direta uma na outra 7 .

7 ARNOLDO WALD, Algumas considerações sobre as sociedades coligadas e os


grupos de sociedades na nova lei das sociedades anônimas, Revista dos Tribunais, vol.
500, junho de 1977, pg. 24.

229
29. Em estudo especializado sobre a contabilidade das sociedades
anônimas chegou-se à idêntica conclusão, entendendo seus autores
que:

Note-se que uma empresa é coligada de outra sempre que tenha uma
participação de, no mínimo, 10% do capital da outra, mas desde que
não seja uma participação acionária grande a ponto de controlá-la.
No que se refere à definição de coligada, a lei não fez qualquer refe-
rência a tipos de ações de que se constitui a participação, podendo ser
ações ordinárias com direito a voto e mesmo ações preferenciais, com
ou sem esse direito, ou mesmo com outras restrições. Cabe ainda notar
que a menção da lei é genérica em termos da participação, abrangen-
do as sociedades como um todo, podendo, portanto, ser Sociedades por
Ações ou Limitadas. A lei não faz menção sobre participações in-
diretas, concluindo-se que as empresas são coligadas somente
por participações diretas 8 (grifamos).

30. Assim, não há qualquer dúvida sobre a licitude da participação


de uma empresa no capital de outra quando inexiste, entre elas, qual-
quer vínculo direto de coligação.
31. Com efeito, nosso direito societário, da mesma forma que
ocorre no direito italiano, silenciou inteiramente sobre a possibilidade
de coligação indireta. Trata-se de noção que, embora possa ser even-
tualmente utilizada em análises de natureza econômica, financeira, ou
outras, simplesmente inexiste no universo jurídico.
32. Assim, inexistindo juridicamente a coligação indireta, não se
pode cogitar de qualquer vedação à participação recíproca entre em-
presas que, não mantendo entre si qualquer relação de controle, tam-
bém não apresentam participações acionárias diretas uma na outra.
33. É de todo evidente, assim, que seria inteiramente ilegal, carac-
terizando o abuso de poder, o eventual ato de autoridade administra-
tiva que resolvesse vedar a aquisição de ações por parte de uma com-
panhia, fundamentado na ocorrência de coligação indireta.

s SERGIO DE IUCICIBUS, ELISEU MARTINS, ERNESTO RUBENS GELBC-


KE, Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações, São Paulo, Atlas, 1981, za
ed., pg. 154.

230
OFERTA PÚBLICA DE AQUISIÇÃO NA
ALIENAÇÃO DO CONTROLE DE
COMPANHIAABERTA1

1. Introdução

A alienação do controle de companhia aberta acarreta, para o ad-


quirente, a obrigação de realizar uma oferta pública de aquisição
(OPA) das ações dos acionistas minoritários, titulares de ações com
direito de voto.
A Lei das S/A (Lei 6.404/76) em sua redação original, estabelecia,
em seu art. 254, parágrafo 1° que, por ocasião da alienação do contro-
1

le de companhia aberta, a Comissão de Valores Mobiliários deveria


zelar para que fosse assegurado tratamento igualitário aos acionistas
minoritários, mediante a oferta pública de aquisição de suas ações.
Posteriormente, mediante a promulgação da Lei 9.45 7, de
05.05.97, foi revogado o art. 254 da Lei das S/A, eliminando-se, assim,
a obrigatoriedade da oferta pública de aquisição de ações dos minoritá-
rios por ocasião da alienação do controle de companhia aberta.
A extinção do tratamento igualitário, por ocasião da alienação do
controle de companhia aberta, fundamentou-se, conforme a justifica-
ção do "Projeto Kandir", na necessidade de reduzir, para o adquirente
do controle acionário, os custos da operação. Com tal reforma, inequi-
vocamente ganharam os acionistas controladores, que passaram a se
apropriar, com exclusividade, do sobrepreço pago na operação de alie-
nação do controle acionário 2 • Ademais, interessava particularmente ao
Governo a revogação do art. 254, que lhe permitiu apropriar-se de
todo o preço obtido na venda das empresas estatais, no curso do pro-
cesso de privatização.

I Nota do Autor: Publicado em: Fusões e Aquisições: Aspectos Jurídicos e


Econômicos. Coord. Jairo Saddi. São Paulo: IOB, 2002. p. 235.
2 Cf. o nosso Reforma das S!A e do Mercado de Capitais, Rio de Janeiro, Ed.
Renovar, 1997, pg. 87.

231
Tal medida - a revogação do art. 254 - constitui inequívoco
retrocesso em nosso direito societário, pois foi altamente lesiva aos
interesses dos acionistas minoritários. Ademais, propiciou o surgi-
mento de situações de abusos praticados pelos controladores. Em al-
guns casos, os novos controladores adquiriam ações de minoritários,
reduzindo a liquidez de tais títulos, para depois proceder, a preços
aviltados, a oferta de fechamento do capital. Em outros, compravam
lotes de ações que estavam em circulação no mercado a preços dife-
renciados, sem qualquer tratamento eqüitativo entre os acionistas mi-
noritários3.
A Lei 10.303, de 31.10.01, em seu art. 254-A, visou a restabele-
cer, embora parcialmente, o direito dos acionistas minoritários de
poderem vender suas ações ao adquirente do controle de companhia
aberta. Trata-se, portanto, de medida que se inclui no conjunto de
iniciativas tendentes a melhor amparar os direitos das minorias
acionárias, com vistas ao desenvolvimento do mercado de valores
mobiliários.
Trataremos, no presente texto, de apresentar uma análise do ins-
tituto da oferta pública de aquisição na alienação de controle de com-
panhia aberta, tal como disciplinado pelo art. 254-A da Lei
10.303/01.
Para tanto, procederemos à exposição dos seguintes tópicos: defi-
nição de controle acionário; caracterização da alienação do controle
acionário no art. 254-A; modalidades de alienação do controle acioná-
rio; a oferta pública e seus destinatários; o prêmio para os acionistas
minoritários remanescentes.

2. Definição de controle acionário

A Lei 6.404/76, de forma pioneira, tratou não só de definir a


figura do acionista controlador (art. 116), como também de estabele-
cer a sua responsabilidade pelos atos praticados com abuso de poder
(art. 11 7), elencando, ademais, exemplos de modalidades de exercí-
cio abusivo do poder de controle (art. 11 7, parágrafo 1°).
Ao definir a figura do acionista controlador, permitindo a identifi-
cação do poder de controle acionário, a Lei das S/A superou a "ficção

3 MODESTO CARVALHOSA E NELSON EIZIRIK, A Nova Lei das S!A, São


Paulo, Saraiva, 2.002, pg. 387.

232
democrática" da sociedade anomma, que acarretava a diluição das
responsabilidades pelas deliberações sociais entre os administradores,
uma vez que prevalecia até então a idéia de que as decisões eram
tomadas pela comunhão dos acionistas, como se não existissem acio-
nistas controladores e minoritários.
Superando a "ficção democrática", a Lei das S/A reconheceu a exis-
tência do poder de controle, definindo-o em função da titularidade da
maioria dos votos e do exercício efetivo da direção dos negócios sociais.
Nos termos do art. 116 da Lei das S/A, considera-se acionista
controlador a pessoa ou grupo de pessoas, vinculados por acordo de
acionistas ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo perma-


nente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o
poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e
b) usa efetivamente o seu poder para dirigir as atividades sociais e
orientar o funcionamento da companhia.

Tal conceito foi praticamente repetido no parágrafo 2° do art. 243


da Lei das S/A, que estabelece ser controlada a sociedade na qual a
controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular
de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, prepon-
derância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos
administradores.
Conforme se verifica, o legislador optou por não exigir a proprie-
dade de percentual mínimo de ações votantes para caracterizar a figu-
ra do acionista controlador. Assim, deve ser examinada cada situação
em particular para que possa ser detectado quem é o titular do contro-
le acionário.
A orientação adotada na Lei das S/A é no sentido de identificar a
figura do acionista controlador como aquele que, de fato, comanda os
negócios sociais, fazendo prevalecer, de modo permanente, sua vonta-
de nas deliberações assembleares, elegendo a maioria dos administra-
dores da companhia e utilizando o seu poder para determinar, efetiva-
mente, os rumos da sociedade.
O poder de comando sobre as atividades desenvolvidas pela com-
panhia, de eleger a maioria dos administradores e determinar a ação
da sociedade, conforme já observado doutrinariamente, é exterioriza-
do na Assembléia Geral, órgão que manifesta a vontade social4 .

4 ALFREDO LAMY FILHO E JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, A Lei das S!A,
2a ed., Rio de Janeiro Renovar, 1996, vol. 2, pg. 195.

233
Trata-se, o controle da sociedade anônima, de um poder de fato,
não de um poder jurídico, visto que não há norma que o assegure;
ademais, o acionista controlador não é sujeito ativo do poder de con-
trole, mas o tem enquanto for titular de direitos de voto em número
suficiente para lograr a maioria nas deliberações assembleares 5.
Verifica-se, assim, que o poder de controle não está relacionado à
pessoa do acionista, mas com o lote de ações que confere ao seu titular
o poder de fazer valer sua vontade nas assembléias gerais, de eleger a
maioria dos administradores e de conduzir os negócios sociais.
Tal poder pode ser exercido por uma só pessoa, física ou jurídica,
ou por um conjunto de pessoas que componham a maioria e exerçam
as prerrogativas elencadas no art. 116. Com efeito, é bastante usual
que vários acionistas, ou mesmo grupo de acionistas, componham a
maioria, reconhecendo a doutrina, em tal hipótese, a existência de um
controle conjunto ou por associação 6 .
A associação para o exercício do poder de controle pode ser ins-
trumentalizada de diversas formas, inclusive mediante acordo de acio-
nistas.
Com efeito, o acordo de acionistas pode manifestar uma situação
de controle compartilhado, no qual o poder de controle é exercido,
em conjunto, pelos signatários do acordo.
Usualmente, caracterizam o controle compartilhado as seguintes
modalidades de cláusulas constantes do acordo de acionistas:

a) acordo de voto conjunto para determinadas matérias, que somente


podem ser objeto de aprovação, em assembléia geral ou em reunião
de conselho de administração, se aprovadas em reunião prévia dos
integrantes do acordo de acionistas;
b) direito de preferência para aquisição das ações do signatário que
deseja retirar-se da companhia;
c) direito de eleger um número determinado de membros da direto-
ria e do conselho de administração;
d) necessidade de aprovação, por parte de todos ou de maioria quali-
ficada dos signatários, para o ingresso de novos sócios; e
e) direito de veto sobre matérias relevantes para o desenvolvimento
dos negócios da companhia, como aumento de capital, distribuição

Idem, pg. 620.


6 FÁBIO KONDER COMPARATO, O Poder de Controle na Sociedade Anônima,
3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, pg. 46.

234
de dividendos, investimentos ou empréstimos acima de certo valor,
incorporação, fusão e cisão, etc.

3. Caracterização da alienação do controle acionário

O art. 254-A busca definir as hipóteses em que se caracteriza a


alienação do controle acionário, para o fim de obrigar o adquirente a
realizar oferta pública de aquisição das ações com direito de voto dos
acionistas minoritários.
Inicialmente, deve ser observado que a Lei das S/A, em seu art.
116, ao conceituar o acionista controlador, admite apenas a forma
interna de dominação da companhia, uma vez que impõe como requi-
sito para a sua caracterização a titularidade dos direitos de sócio. Daí
decorre que foram excluídas, tanto do âmbito do art. 116, como do
art. 254-A, as hipóteses de controle externo ou gerenciaF.
Assim, por exemplo, se determinado banco, que detém créditos
de montante elevado frente a uma companhia aberta e sobre ela exer-
ce uma influência dominante, um verdadeiro "controle" de suas ativi-
dades ("controle externo"), cede seu crédito para outra instituição,
não se caracteriza a alienação de controle, para os efeitos do art. 254-
A, pois inexistente a transferência do controle acionário.
Da mesma forma, se a companhia apresenta o seu capital tão dis-
perso no mercado que o seu "controle" é exercido, de fato, pelos seus
administradores ("controle gerencial") e estes são, por qualquer razão,
substituídos por outros administradores, igualmente não se aplica o
disposto no art. 254-A, pois não se verifica a alienação do controle
acionário.
Quando se caracteriza a alienação do controle acionário para os
efeitos do art. 254-A?
Em primeiro lugar, cabe observar que a redação do art. 254-A
incorporou toda a experiência da CVM na aplicação, à prática do
mercado, do art. 254 da Lei das S/A, durante vinte anos, desde a
efetiva instalação da CVM, em 1977, até o ano de 1997, quando da
revogação do art. 254, com a promulgação da Lei 9.457/97.
Porém, de 1997 até os dias de hoje, profundas modificações ocor-
reram na realidade empresarial do País, decorrentes do processo de
privatização e da descontrolada abertura da economia aos investidores

7 CARVALHOSA E EIZIRIK op. cit., pg. 393.

235
estrangeiros. Assim, diversas companhias abertas passaram ao contro-
le de multinacionais; ademais, várias companhias estatais privatizadas
passaram a apresentar um modelo de controle compartilhado entre
bancos, empresários nacionais e estrangeiros e fundos de pensão. Tal
quadro, bem mais complexo do que antes se verificava, deverá certa-
mente ocasionar problemas não cogitados pelo legislador quando da
elaboração do art. 254-A.
Nos termos do art. 254-A, a alienação, direta ou indireta do con-
trole acionário somente pode ser contratada sob a condição de que o
adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações
com direito de voto de propriedade dos acionistas minoritários, asse-
gurando-lhes o preço no mínimo igual a 80% do valor pago por ação
com direito a voto, integrante do bloco de controle.
O parágrafo primeiro do art. 254-A caracteriza a alienação do
controle acionário nos seguintes termos: entende-se como alienação de
controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações inte-
grantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionis-
tas e de valores mobiliários conversíveis em ações como direito a voto,
cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos
relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a
resultar na alienação de controle acionário da sociedade.
O parágrafo 4° da Instrução CVM 361/02, regulamentando a ma-
téria, estabelece que: para os efeitos desta Instrução, entende-se por
alienação de controle a operação, ou o conjunto de operações, de alie-
nação de valores mobiliários com direito a voto, ou nele conversíveis,
ou de cessão onerosa de direitos de subscrição desses valores mobiliá-
rios, realizada pelo acionista controlador ou por pessoas integrantes do
grupo de controle, pelas quais um terceiro, ou um conjunto de terceiros
representando o mesmo interesse, adquira o poder de controle da com-
panhia, como definido no art. 116 da Lei 6.404!76.
Conforme se verifica, ainda que apresentando uma redação não
muito precisa, o art. 254-A manifesta a intenção do legislador de
abranger todas as hipóteses, que foram objeto de análise pela CVM,
caso a caso, ao longo de vinte anos, em que se verifique a alienação do
controle acionário.
Assim, o art. 254-A da Lei das S/A confere uma acepção ampla à
expressão alienação de controle acionário, nela incluindo, além da
venda direta de ações que compõem o bloco de controle, os casos de
alienação indireta ou de alienação por etapas do controle.
Nos termos da Lei e da regulamentação administrativa da CVM,
em qualquer das situações acima elencadas- alienação direta, indire-

236
ta ou por etapas -para que se configure a obrigatoriedade de realiza-
ção de oferta pública é necessário que a operação resulte em transfe-
rência onerosa do controle acionário.
Assim, somente caracteriza-se a alienação de controle, para os
efeitos do art. 254-A, quando presente o seu caráter oneroso, isto é,
quando há o pagamento, em dinheiro ou em bens, pelas ações ou
valores mobiliários que ensejam a transferência do controle acionário.
Como o referido artigo 254-A determina que o preço da oferta
pública dirigida aos acionistas minoritários corresponda a 80% do va-
lor pago por ação do antigo controlador, dita oferta pública não teria
qualquer finalidade nas hipóteses em que a transferência ocorresse a
título gratuito.
Ademais, somente haverá alienação de controle, para os efeitos do
art. 254-A, quando houver a cessão de todas ou de parte das ações
integrantes do bloco de controle para terceiro e este assuma posição
de controlador da companhia. Ou seja, deve a operação, além de ser
onerosa, resultar no surgimento de um novo acionista controlador, ou
novo integrante do bloco de controle.
Assim, eventuais trocas de posições ocorridas dentro do bloco de
controle não caracterizam a alienação de controle, para os efeitos do
art. 254-A. Conforme já analisado doutrinariamente, transferências
realizadas entre acionistas, no âmbito do grupo controlador, não
operam a alteração da titularidade do poder de controle frente à
sociedade 8 .
Na vigência da redação original do antigo art. 254 da Lei das S/A,
a Resolução 401/76, do Conselho Monetário Nacional, que o regula-
mentou, exigia, para a caracterização da alienação de controle, que o
alienante transferisse o conjunto das suas ações; no caso de controle
por grupo de pessoas, era necessário que todos os integrantes do grupo
transferissem para terceiro o poder de controle da companhia, me-
diante a venda ou permuta do conjunto das ações que lhes assegura-
vam o poder de controle.
Porém, a Lei 10.303/01 seguiu orientação diversa (já consagrada
na prática da CVM), uma vez que o parágrafo 1° do art. 254-A refere-
se à transferência de (e não das) ações integrantes do bloco de contro-
le, ou de ações vinculadas a acordo de acionistas, ou, ainda, de valores
mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direi-

s NELSON CÂNDIDO MOTTA, "Alienação do Poder de Controle Compartilha-


do", Revista de Direito Mercantil, vol. 89, jan./mar. de 1993. pg. 45.

237
tos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a
valores mobiliários que venham a resultar na alienação do controle
acionário da companhia.
Assim, não é necessário, para que seja obrigatória a oferta pública,
que o controlador transfira todas as suas ações ou valores mobiliários
conversíveis em ações, nem que todos os integrantes do bloco de
controle transfiram o conjunto de suas posições acionárias, bastando
que da operação, em seu conjunto, resulte a alienação do controle
acionário.
Porém, é indispensável, para a aplicação do art. 254-A, que ocorra
alguma transferência de ações, ou de direitos sobre elas, pelo menos
por parte de um dos integrantes do grupo controlador, que acarrete a
alienação do controle acionário, ou seja, a emergência de um novo
acionista controlador.
Nesse sentido, a redação do parágrafo 1° do art. 254-A expressa-
mente estabelece que entende-se como alienação de controle a trans-
ferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de
controle.
Assim, apenas a aquisição derivada de controle acionário, isto é,
aquela que ocorre com a transferência onerosa de ações detidas pelo
controlador, ou de direitos sobre tais ações, é que dá ensejo à aplica-
ção do disposto no art. 254-A da Lei das S/A.
No caso em que o controle é adquirido sem que, para tanto, o
novo controlador adquira ações ou títulos conversíveis em ações do
antigo controlador, não é obrigatória a oferta pública de aquisição dos
minoritários.
Tais situações, que foram denominadas, em trabalho clássico 9,
aquisições originárias, podem ocorrer, por exemplo, quando alguém
compra, no mercado, ações em volume suficiente para lhe assegurar o
poder de controle. Da mesma forma, também pode dar-se a aquisição
originária quando duas ou três pessoas, que não estavam atuando em
conjunto, decidem firmar um acordo de acionistas, passando a formar
um bloco de controle.
Em tais hipóteses, conforme analisado doutrinariamente 10 , embo-
ra ocorra a aquisição de controle acionário, não existe a obrigatorieda-
de da oferta pública, dada a inexistência de alienação do controle.

9 ALFREDO LAMY FILHO E JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, ob. cit., p.


620-621.
10 LUIZ LEONARDO CANTIDIANO, Reforma da Lei das S.A, Rio de Janeiro,
Renovar, 2002, pg. 238.

238
Dessa forma, os elementos fundamentais para que se caracterize a
alienação do controle acionário, para os efeitos do art. 254-A da Lei
das S/A, são os seguintes:

l) que da operação, em seu conjunto, resulte a presença de um novo


acionista controlador ou grupo de controle;
2) que a transferência do controle, qualquer que seja a sua modalida-
de, apresente um caráter oneroso;
3) que tenha ocorrido a transferência da totalidade ou de parte de
ações ou de direitos sobre tais ações pertencentes ao antigo contro-
lador.

Assim, nas aquisições originárias, que são aquelas que resultam na


formação, no patrimônio do novo controlador, de um bloco de contro-
le, que não existia no patrimônio de outro, tendo sido adquiridas as
ações no mercado, ou mediante oferta pública (Lei das S/A, art. 257)
ou firmado um acordo por acionistas que juntos passam a deter o
controle, não se aplica, por definição, o art. 254-A
Não há, na aquisição originária de controle, obrigação, para o ad-
quirente do controle, de fazer oferta pública de compra das ações dos
minoritários, uma vez que:

a) o art. 254-A, no seu caput, dispõe que a oferta pública aos minori-
tários visa a assegurar-lhes preço no mínimo igual a 80% por ação com
direito a voto integrante do bloco de controle, daí inferindo-se a exis-
tência prévia de um bloco de controle; e
b) o preço da oferta pública é calculado sobre o valor pago pelas
ações integrantes do bloco de controle, daí inferindo-se que algum
pagamento foi feito a todos ou a parte dos integrantes do bloco de
controle 11 .

Já nas aquisições derivadas, que são aquelas em que controle é


transferido onerosamente pela pessoa ou grupo de pessoas que o deti-
nha, é obrigatória a realização da oferta pública, pois ocorre a aliena-
ção do bloco de controle.
O art. 254-A, seguindo a orientação adotada pela CVM, na vigên-
cia do art. 254 da Lei das S/A, não condiciona a obrigatoriedade da
oferta pública a que o controle tenha sido adquirido mediante a trans-

11 MODESTO CARVALHOSA E NELSON EIZIRIK, ob. cit., pg. 406.

239
ferência da totalidade das ações integrantes do bloco de controle,
conforme antes referido. Assim, pode haver aquisição do controle
mediante a compra de parte das ações integrantes do bloco de contro-
le, caso em que também será obrigatória a oferta pública.
Trata-se, conforme já analisamos 12 , de uma aquisição semideriva-
da, estando nela presentes os elementos que, para os efeitos do art.
254-A, caracterizam a alienação do controle acionário: venda de ações
(não das ações) integrantes do bloco de controle que venham a resul-
tar no surgimento de um novo acionista controlador.
Cumpre observar que a Instrução CVM n° 361/02, em seu art. 4°,
parágrafo 5°, dispõe que a CVM poderá impor a realização de OPA
por alienação de controle sempre que verificar ter ocorrido a alienação
onerosa do controle de companhia aberta.
O mencionado dispositivo regulamentar é passível de críticas: não
é a CVM que poderá impor a oferta pública, uma vez que ela decorre
da Lei, que já conferiu, conforme antes observado, uma acepção bas-
tante ampla à expressão "alienação de controle"; ademais, cria-se si-
tuação de incerteza para os participantes do mercado, pois o órgão
regulador está se auto-atribuindo o poder de decidir, caso a caso,
quando deve ser realizada a oferta pública. Na realidade, a norma
constitui um espécie de válvula de escape para a CVM, de duvidosa
legalidade, a significar que haverá oferta pública, não somente nos
casos previstos em lei, mas também sempre que a CVM entender que
ocorre alienação onerosa do controle acionário, ainda que não presen-
tes os demais elementos, acima apontados.

4. Modalidades de alienação do controle acionário

Nos termos do art. 254-A e de seu parágrafo primeiro, podemos


identificar três modalidades de alienação de controle acionária: a alie-
nação direta; a alienação indireta; e a alienação em etapas.
A alienação direta ocorre quando o acionista controlador transfere
o bloco de controle, ou seja, a totalidade ou parte das ações de que é
titular, que asseguram o poder de controle, assumindo o adquirente a
posição de novo acionista controlador.
A alienação indireta verifica-se quando o acionista controlador
aliena as ações de companhia controladora da companhia aberta e, por
conseqüência, o controle final desta última.

12 Idem, pg. 407

240
Já no regime do art. 254, em sua redação original, a CVM entendia
que deveria ser obrigatória a oferta pública quando houvesse a trans-
ferência indireta do controle acionário de companhia aberta, ou seja,
quando ocorresse mediante a alienação do controle acionário de socie-
dade controladora da companhia aberta 13 •
O art. 254-A, tanto no caput como no parágrafo 1°, estabelece que
deve ser realizada oferta pública para as ações dos minoritários não só
na alienação direta do controle, como também na alienação indireta.
Dúvidas podem surgir quanto ao preço a ser pago aos minoritá-
rios, particularmente quando a holding cujo controle é alienado con-
trola várias companhias abertas, ou exerce, ela própria, atividades
operacionais.
No passado, a CVM buscava arbitrar, caso a caso, o valor da oferta
pública, nas hipóteses de alienação indireta do controle acionário, que
constituíam exceções. Atualmente, é grande o número de companhias
abertas que são controladas por empresas multinacionais, que tam-
bém controlam várias outras companhias, em distintos países, o que
tornaria praticamente impossível à CVM a tarefa de fixar o preço da
oferta pública.
Nesse sentido, o parágrafo 6° do art. 29 da Instrução CVM n°
361/02 contém norma relevante, ao dispor que, tratando-se de alie-
nação indireta, o ofertante deverá submeter à CVM, juntamente
com o pedido de registro da oferta pública, a demonstração justifica-
da da forma de cálculo do preço a ser pago por ação dos acionistas
minoritários.
A nosso ver, deve ser realizada uma avaliação, por empresa espe-
cializada e independente, de todas as companhias envolvidas, utilizan-
do-se um mesmo critério: valor de bolsa, se todas tiverem ações com
liquidez; valor de patrimônio líquido; perspectivas de rentabilidade,
ou outro considerado mais adequado à situação. Feita tal avaliação,
segrega-se o valor que se presume tenha sido pago pelo controle da
companhia aberta, procedendo-se então ao cálculo do preço a ser pago
aos minoritários. Não deve a CVM entrar no mérito do laudo de
avaliação, se elaborado por entidade especializada e independente,
sob pena de vir a ser responsabilizada pelos prejuízos eventualmente
sofridos pelos minoritários insatisfeitos com o preço oferecido por
suas ações 14 .

13 Revista da CVM, n. 1, pg. 29.


14 MODESTO CARVALHOSA E NELSON EIZIRIK, ob. cit., pg. 402.

241
A alienação do controle pode ainda ocorrer em etapas, uma vez
que optou o legislador, nos termos do parágrafo 1o do art. 254-A, por
listar um elenco exemplificativo de operações que podem ensejar a
alienação do controle acionário, que muitas vezes se desenvolvem ao
longo do tempo: venda de ações integrantes do bloco de controle;
transferência ou subscrição de debêntures conversíveis em ações ou
de bônus de subscrição de ações com direito de voto; cessão de direi-
tos de subscrição de ações ou de debêntures conversíveis, etc.
Nesse sentido, a norma regulamentar contida no parágrafo 4° do
art. 29 da Instrução 361/02, antes transcrita, dispõe expressamente
que compreende-se no conceito de alienação de controle o conjunto
de operações que venham a nela resultar.
Assim, havendo uma seqüência encadeada de operações que resul-
tam na alienação do controle acionário, pode incidir a regra do art.
254-A; tal pode ocorrer na aquisição, em etapas, de ações ou outros
valores mobiliários conversíveis em ações que têm, como resultado
final, a aquisição do controle acionário. Se tais operações envolvem
aquisições de ações ou valores mobiliários conversíveis em ações, de
pessoas integrantes do bloco de controle, é obrigatória a realização de
oferta pública.
Visou a Lei, no particular, a alcançar os negócios jurídicos coliga-
dos, o quais, embora apresentando existência autônoma de vários ne-
gócios, cada um deles com efeitos próprios, destinam-se, todos, à
obtenção de um mesmo objetivo 15 , no caso, o da aquisição onerosa do
controle acionário.

5. A Oferta Pública e seus Destinatários

Ocorrendo a alienação do controle acionário, o adquirente é obri-


gado a realizar uma oferta pública para os titulares de ações com direi-
to de voto, pagando-lhes o preço no mínimo igual a 80% do valor pago
por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle.
Ao estabelecer como preço mínimo 80% do valor pago ao contro-
lador, não mais exigindo, como no regime anterior, o tratamento igua-
litário, a Lei, seguindo a orientação já manifestada na doutrina 16 reco-

15 JOSÉ ABREU, O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral, São Paulo, Saraiva, 1984,
pgs. 91 e 92.
16 FÁBIO KONDER COMPARATO, O Poder de Controle na Sociedade Anônima,
32 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, pg. 218.

242
nhece que o poder de controle tem um valor próprio, daí decorrendo
a legitimidade da atribuição de um preço superior às ações dos contro-
ladores.
Conforme o art. 254-A, a alienação do controle somente pode ser
contratada sob a condição suspensiva ou resolutiva de que o adquiren-
te se obrigue a realizar a oferta pública. Tal negócio jurídico é usual-
mente instrumentalizado mediante um contrato de cessão das ações
que compõem o bloco de controle.
Na condição suspensiva, de rara ocorrência na prática dos negó-
cios, os efeitos do contrato de alienação do controle ficam suspensos
até a realização da oferta pública. Já na condição resolutiva, as partes
desde logo executam o contrato, tornando-se porém nulo o negócio
jurídico caso o adquirente não promova a oferta pública.
A Oferta Pública de Aquisição constitui uma proposta irrevogável,
caracterizando-se como uma declaração unilateral de vontade, obri-
gando o ofertante, nos termos do art. 1.080 do Código Civil de 1916
(art. 427 do Código Civil de 2002) e não estando sujeita a eventuais
alterações pela vontade do ofertante. Nos termos da regulamentação
administrativa da CVM, após a publicação do Edital, a OPA será imu-
tável e irrevogável, podendo a CVM, caso tenham ocorrido alterações
substanciais e imprevisíveis nas circunstâncias, autorizar a sua modifi-
cação ou revogação (Instrução 3 61, art. 4 °, IX e art. 5°). Ainda confor-
me a mesma Instrução (art. 4, VIII), a OPA somente poderá sujeitar-
se a condições cujo implemento não dependa de atuação direta ou
indireta do ofertante ou de pessoas a ele vinculadas.
A OPA deve ser formulada pelo adquirente do controle acionário,
sendo indispensável seu registro na CVM, cujo requerimento deve ser
apresentado no prazo máximo de trinta dias contados da celebração
do instrumento de alienação das ações representativas do controle
(Instrução 361, art. 29, parágrafo 2°). Deve o instrumento da oferta
pública conter todas as informações exigidas na Instrução CVM
361/02, permitindo assim aos destinatários da oferta decidir pela sua
aceitação com pleno conhecimento dos fatos relevantes.
Embora a Lei seja omissa a respeito, a Instrução 361 (art. 4°, IV)
exige que a OPA seja intermediada por instituição financeira integran-
te do sistema de distribuição de valores mobiliários -sociedade cor-
retora; sociedade distribuidora; ou banco múltiplo com carteira de
investimento.
Cabe observar que, nos termos do parágrafo 2° do art. 254-A, a
CVM autorizará a alienação de controle, desde que a oferta pública
atenda aos requisitos legais. Daí decorre que o poder da CVM é vin-

243
culado, não lhe competindo entrar no exame de mérito da alienação
do controle, mas meramente verificar se a oferta pública atende às
exigências da Lei.
Nos termos do art. 254-A, a OPA deve ser dirigida para as ações
com direito de voto de propriedade dos acionistas não controladores,
sem qualquer discriminação. Portanto, são destinatários da oferta to-
dos os titulares de ações com direito de voto que não integram o bloco
de controle, não tendo a Lei exigido que o direito de voto seja pleno
ou permanente.
Assim, se o estatuto social não nega o direito de voto às ações
preferenciais, ou se o confere com algumas restrições, seus titulares
também são destinatários da OPA. Da mesma forma, se os titulares de
ações preferenciais adquirem o direito de voto pelo não pagamento de
dividendo, nos termos do art. 111, parágrafo 1° da Lei das S/A, tam-
bém podem eles vender suas ações na OPA. Igual direito terão os
titulares de ações preferenciais admitidas à negociação no mercado de
valores mobiliários caso a companhia não atribua a tais ações o direito
ao dividendo prioritário mínimo de 3% do valor do patrimônio líquido
ou ao dividendo 10% maior do que o conferido a cada ação ordinária
(Lei das S/A, art. 17, § 1°).
A Instrução CVM 361!02, porém, em seu art. 29, dispõe que a
OPA terá por objeto todas as ações de emissão da companhia às quais
seja atribuído o pleno e permanente direito de voto, por disposição
legal ou estatutária (destacamos).
A prevalecer tal disposição regulamentar, estariam excluídas da
OPA as ações preferenciais com voto restrito, bem como aquelas que
passaram a conferir tal direito pelo não pagamento dos dividendos,
nos termos do art. 111, parágrafo 1°.
A Lei não estabeleceu qualquer requisito quanto ao caráter pleno
ou permanente do direito de voto, não podendo evidentemente a
norma regulamentar restringir o alcance da Lei. Ademais, dita norma
regulamentar consagra evidente iniqüidade, "premiando" os controla-
dores de empresas que não pagam dividendos.
Vale observar ainda o comportamento contraditório da CVM,
que, por um lado, mediante a Instrução 361/02 visa a restringir o
universo dos destinatários da oferta pública, enquanto, por outro, na
cartilha de Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa,
de junho de 2.002, adota comportamento diverso, objetivando a am-
pliação das ações a serem contempladas com a OPA.
Com efeito, a recomendação III.2., dirigida às companhias consti-
tuídas antes da entrada em vigor da Lei 10.303/02, é que o adquirente

244
do controle realize oferta pública de aquisição de todas as demais
ações da companhia pelo mesmo preço, independente de espécie ou
classe.
Já com relação às companhias constituídas após a vigência da Lei
10.303/02, a CVM vai mais além, ao recomendar, na mesma cartilha,
que o adquirente do controle ofereça o mesmo preço a todos os acio-
nistas, (controlador e minoritários) garantindo, assim, aos acionistas
minoritários, o tratamento igualitário.

6. O prêmio para os minoritários remanescentes

O parágrafo 4° do art. 254-A permite ao adquirente do controle


oferecer aos minoritários a opção de permanecerem na companhia,
mediante o pagamento de um prêmio, equivalente à diferença entre o
valor de mercado das ações e o valor pago por ação do controlador.
Por valor de mercado deve-se entender a cotação média pondera-
da das ações objeto da oferta, nos últimos sessenta pregões (Instrução
361, art. 30, parágrafo 1°). A CVM poderá aceitar oferta de prêmio
com valor diverso, desde que preenchidos os todos os requisitos elen-
cados no parágrafo 4° do mesmo artigo, entre os quais se inclui o de
que as condições da oferta de prêmio sejam eqüitativas.
Trata-se de uma faculdade que a Lei oferece ao adquirente do
controle, que não constitui alternativa à OPA, sempre obrigatória na
alienação de controle de companhia aberta, nos termos do art. 254-A;
ou seja, o oferecimento do prêmio não libera o novo controlador de
realizar a oferta pública 17 . Nesse sentido, a norma contida no parágra-
fo 1° do art. 30 da Instrução 361 é clara, ao dispor que oferecida tal
faculdade, os acionistas poderão manifestar, no leilão da OPA, sua
opção por receber o prêmio, em vez de aceitar a OPA.

17 Em sentido contrário, LUIZ LEONARDO CANTIDIANO, ob., cit., pg. 248.

245
OBJETO SOCIAL. MUDANÇA.
DIREITO DE RECESSO

1-ACONSULTA

A COMPANHIA DELTA narra que, em AGE regularmente con-


vocada e realizada, alterou a redação de seu Estatuto Social visando
a incluir no artigo que trata do objeto social o exercício do controle
sobre empresas já controladas e atuantes no mesmo setor de ativi-
dades.
Embora tenha ocorrido alteração na redação da disposição estatu-
tário que trata do objeto social, entende a Consulente que não houve
mudança do objeto social.
Existindo acionistas minoritários que manifestaram sua dissidên-
cia e solicitaram o reembolso do valor de suas ações, solicita nosso
Parecer sobre a existência do direito de recesso na presente hipótese.

11 -O PARECER

A. AS HIPÓTESES DE DIREITO DE RECESSO

É indiscutível que vigora plenamente, no âmbito da sociedade


anônima, o princípio majoritário. Assim, considera-se que o acionis-
ta controlador é, em princípio, o intérprete do interesse social,
presumindo-se que ele age no interesse da companhia e de todos os
acionistas.
Quando, porém, a decisão majoritária contraria os interesses dos
acionistas minoritários, suprimindo algum de seus direitos individuais,
nos casos expressos na Lei das S.A., podem eles retirar-se da compa-
nhia, com o reembolso do valor de suas ações.
Consiste, assim, o direito de recesso, na faculdade legal do acio-
nista, que não lhe pode ser suprimida nem por disposição estatutária,
nem por deliberação assemblear (Lei das S.A., art. 109, inciso V), de

247
retirar-se da sociedade, nas hipóteses taxativamente previstas em lei,
dela recebendo o valor de suas ações.
O direito de recesso constitui um remédio jurídico conferido aos
acionistas minoritários contra determinadas decisões da maioria que:
a) alterem profundamente a organização da companhia, compelin-
do-os a permanecerem como sócios de uma companhia substancial-
mente diversa daquela a que se associaram; ou
b) modifiquem os direitos de participação conferidos pelas ações
de sua propriedade.
O direito de recesso, ao criar para a companhia a obrigação de
pagar o preço de reembolso das ações dos minoritários dissidentes,
significa a compensação de interesses particulares sacrificados legiti-
mamente em prol do interesse social.
Os casos em que se considera sacrificado o interesse dos minoritá-
rios em benefício do interesse social são expressa e taxativamente
enumerados em lei. Assim, o que dá ensejo ao direito de recesso é a
aprovação de matéria que, por implicar um rompimento do pacto
social, tal como reconhecido em lei, permite ao dissidente a retirada
com o reembolso de sua participação na sociedade.
A Lei das S.A. enumera expressa e taxativamente os casos enseja-
dores do direito de recesso; trata-se de um sistema de tipicidade fe-
chada, não se admitindo a interpretação analógica, muito menos a
criação de novas hipóteses de recesso não previstas em lei.
Uma das hipóteses previstas na Lei das S.A. como ensejadoras do
direito de recesso constitui a mudança do objeto da companhia (art.
136, VI, combinado com art. 137 da Lei no 6.404/76).
Assim sendo, cumpre-nos verificar o conceito de objeto social,
bem como em que condições caracteriza-se, juridicamente, a mudan-
ça do objeto da companhia.

B. A NOÇÃO JURÍDICA DO OBJETO SOCIAL DA


COMPANHIA

O objeto social da sociedade anônima pode ser definido, prelimi-


narmente, como a atividade econômica em razão da qual foi ela cons-
tituída e em função da qual desenvolve suas atividades lucrativas.
Objeto social é o negócio, gênero de operações ou atividades a que
uma companhia se dedica. É o conjunto de atividades econômicas a
ser exercido pela sociedade a partir de sua criação até sua dissolução,
conforme definição de Enrico Zanelli:

248
"Ai fini limitati di questo studio esuficiente definire l'oggetto sociale
come la attivitá economica in vista della quale si costituisce la societá,
e intorno a cu i l' organismo societario si manifesta e si svillupa. "1

Assim, o objeto é definido como a atividade econômica para a qual


a sociedade é constituída e em torno da qual, ela, a companhia, desen-
volve suas atividades.
A prática deste objeto, ou melhor, desta atividade econômica,
pressupõe uma produção continuada de bens ou serviços ao longo da
vida da companhia 2,como salientam Egberto Lacerda Teixeira e José
Alexandre Tavares Guerreiro 3 :

"Contentamo-nos, nesse particular, com uma noção singela, mas ex-


pressiva, que procura resumir na idéia de atividade negociai a defini-
ção jurídica da empresa, entendendo-se como atividade negociai a
seqüência ordenada e habitual de atos ou negócios jurídicos de con-
teúdo econômico, praticados profissionalmente com intuito de lucro.
Podemos assim dizer que, no contexto do moderno direito comercial,
voltado para a realidade crescente da empresa, a atividade passa a
ter um valor definido como série de atos ou negócios coordenados entre
si, objetivando uma finalidade econômica."

Conforme reconhece a doutrina 4 , o objeto social pode ser com-


preendido sob dois ângulos de análise: o formal e o substancial.
Sob o ângulo formal, o objeto social, a teor do art. 2° da Lei das
S .A., corresponde à definição estatutária da empresa de fins lucrati-
vos, não contrária à lei, à ordem pública e aos bons costumes; consti-
tui, nesse sentido, uma disposição estatutária, descrevendo, de modo
preciso e completo (art. 2°, § 2°) qual o âmbito da atividade empresa-
rial a ser desenvolvida pela companhia.
Já sob o ângulo substancial, o objeto social corresponde, concreta-
mente, às atividades realmente desenvolvidas pela companhia com
finalidades lucrativas.

1 ENRICO ZANELLI. "Oggetto sociale e attività economica nella società e nell'as-


sociazione". In: Ri vista della Società, 1961, p. 385.
2 FRAN MARTINS. Comentários à Lei das S.A. Rio de Janeiro: Forense, 1977. vol.
I, p. 24.
3 EG BERTO LACERDA TEIXEIRA e JOSÉ ALEXANDRE TAVARES G UERREI-
RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1979.
v. I. p. 102.
4 GIANLUCA LA VILLA. L'Oggetto Sociale. Milão: Ed. Giuffre, 1974. p. 44.

249
Tanto sob o ângulo formal, como sob o ângulo substancial, pois, a
definição do objeto social vincula-se à atividade empresarial da com-
panhia.
Em princípio, devem coincidir a disposição estatutária prescritiva
do objeto social com a atividade empresarial efetiva e concreta da
companhia. Pode ocorrer, porém, que sejam legitimamente pratica-
dos atos ou negócios jurídicos que denotam a atividade empresarial,
por lhe serem necessários ou complementares, embora não consti-
tuam, de per se, a atividade empresarial descrita como objeto social.
Tais atos podem ser caracterizados como meios para se atingir o
objeto social, devendo portanto ser considerados nele compreendi-
dos. Com efeito, como o objeto social corresponde à empresa, e como
esta corresponde à atividade, a variação dos meios para a consecução
de tal atividade não implica, em princípio, em desvio ou alteração do
objeto sociaP.
O objeto social deve ser definido de modo preciso e completo, de
forma exaustiva, para limitar a área de discricionariedade dos adminis-
tradores e acionistas controladores.
Diversamente do que ocorre com o objeto do contrato de socieda-
de, que trata das relações internas entre os sócios, o objeto social
concerne à projeção externa da companhia, à sua vinculação com ter-
ceiros no desenvolvimento de suas atividades empresariais, consti-
tuindo o ponto de contato entre a sociedade e a empresa 6 .
Daí a declaração expressa, no art. zo da Lei das S.A., de que pode
ser objeto da companhia qualquer empresa- atividade empresarial e
organização de tal atividade- com finalidades lucrativas.
Assim, o objeto social constitui a atividade empresarial desenvolvi-
da pela companhia, o fim para o qual foi ela criada; ou seja, o negócio, o
gênero de operações ou atividades a que a companhia se dedica.
Nesse sentido, a doutrina enfatiza que objeto essencial é a explo-
ração da empresa, para cuja criação foi constituída a companhia 7, o
que implica, como salienta Tavares Guerreiro, em se associar a noção
de objeto social à noção de causa do contrato de sociedade 8 .

s JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, Sobre a interpretação do objeto


social. Revista de Direito Mercantil, vol. 54, abr/jun. 1984. p. 69.
6 FABIO KONDER COMPARATO, Direito de recesso de acionista de sociedade
anônima, Revista dos Tribunais, vol.S58, abril de 1982, pg. 36.
7 TRAJANO MIRANDA VALVERDE, Sociedades por Ações. Rio de Janeiro: Foren-
se, 1959. vol. I, p. 77.
8 ob. cit., 70.

250
Assim, a noção última do objeto social repousa na atividade nego-
ciai da empresa, a finalidade para a qual foi constituída, que motiva a
subscrição do capital social da companhia por parte dos acionistas.

C- A NECESSIDADE DE CARACTERIZAÇÃO DE
MUDANÇA ESSENCIAL DO OBJETO SOCIAL PARA
ENSEJAR O DIREITO DE RECESSO

A Lei das S .A., em seu art. 13 6, VI, estabelece a necessidade de


quorum qualificado para a deliberação referente à mudança do objeto
social.
Ademais, nos termos do art. 137 da Lei das S.A., a mudança do
objeto social confere ao acionista dissidente da deliberação assem-
blear o direito de retirar-se da companhia, mediante o reembolso do
valor de suas ações.
Tradicionalmente, considerava-se, no direito societário, como
verdadeiro dogma o princípio da imutabilidade do objeto social. Nos-
so Código Comercial, a propósito, exigia, para a validade de tal delibe-
ração, o consentimento unânime de todos os sócios. Tal se dava pela
concepção, até então vigente, de que somente a unanimidade dos
sócios poderia alterar aquilo que constituía uma das bases essenciais
do negócio jurídico de sociedade.
A partir de 1882, porém, o Código do Comércio da Itália passou a
admitir a alteração do objeto social mediante deliberação majoritária,
prevendo, porém, como compensação ao acionista discordante, a pos-
sibilidade de retirar-se da sociedade com o reembolso do valor de suas
ações.
Desde então, passaram os diferentes sistemas de direito societário
a permitir a mudança do objeto social, mediante decisão da maioria
dos sócios, cabendo ao minoritário descontente rescindir parcialmen-
te o contrato de sociedade, exercendo o seu direito de recesso.
Ou seja, admite-se a modificação de uma das bases essenciais do
negócio de sociedade, da própria causa do contrato social, pela mani-
festação da vontade da maioria, atribuindo-se ao dissidente o direito
de retirar-se da companhia, recebendo o reembolso do valor de suas
ações.
Conforme anteriormente referido, o objeto social, tanto sob o
ângulo formal como o substancial, constitui noção relacionada à ativi-
dade empresarial da sociedade. Por atividade compreende-se uma
prática reiterada de atos e negócios jurídicos com vistas à consecução

251
de determinadas finalidades. O que importa, para caracterizar a ativi-
dade, são os fins almejados, podendo variar os meios utilizados para tal
desiderato.
Daí decorre que a mudança do objeto social somente é de caracte-
rizar-se quando a atividade empresarial, enquanto fim, é desnaturada
ou alterada em caráter permanente ou institucional, não se cogitando
de alteração do objeto quando se verifica mera variação dos meios
para atingi-lo 9 .
Para que se configure juridicamente a mudança do objeto social,
deve ocorrer uma deliberação que desfigure completamente as ativi-
dades desenvolvidas pela companhia, de modo a atingir em cheio as
bases essenciais do negócio societário 10 .
Ou seja, não é qualquer alteração do objeto da companhia que dá
ensejo ao direito de retirada por parte dos minoritários, mas somente
aquela que implique numa modificação substancial das atividades de-
senvolvidas pela sociedade, que descaracterize o seu fim.
A Comissão de Valores Mobiliários tem entendido que, por exem-
plo, em se tratando de uma companhia cujo objeto seja a siderurgia
propriamente dita, a alienação do ativo operacional, permanecendo na
empresa apenas os ativos financeiros, implica esvaziamento do objeto
sociafl 1•
Assim, mudar o objeto social significa colocar outro em seu lugar,
dispor de outro modo a respeito da matéria; ou seja, remover uma
atividade empresarial para substituí-la por outra. Nesse sentido,
conforme decidiu o l 0 Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal do Esta-
do do Rio de Janeiro:

"SOCIEDADE ANÔNIMA- DIREITO DE RECESSO


Ao acionista dissidente só é dado manejar o direito de recesso,
na hipótese prevista no inc. V do art. 136 da LSA, quando for
efetiva a mudança do objeto da companhia, como tal não sendo
de equiparar-se a simples redução das atividades antes desen-
volvidas, para eliminação de custos e melhoria de rentabilidade,
continuando a empresa a operar no mesmo ramo negociai, sem
qualquer setor novo, presente ainda a lembrança de que a maté-

9 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, artigo citado, pg. 70.


10 MARIO ENGLER PINTO JUNIOR, Revista de Direito Mercantil, voi. 66,
abr./jun. 1987. pg. 86.
li Parecer CVM/SJU n° 67/79.

zsz
ria -direito de recesso- é restritiva, informada pelo princípio
do numerus clausus, não admitindo exegese por método analógi-
co extensivo.
Votec Táxi Aéreo S .A. versus Adolpho H ermann Otto Thielle
Embs. Inf. n° 200!94- Relator: Des. Laerson Mauro
(. ..)
O que, porém, revelam os autos é que, a par de inocorrente qualquer
prejuízo, mudança não houve.
Mudar, diz CAUDAS AULETE, é remover, por em ouro lugar, deslo-
car; deixar por outro, trocar, cambiar, etc.
No sentido empregado pelo legislador da LSA, mudar é trocar o
objeto que existia por outro que não existia.
E nada disso se passou no caso dos autos.
Se a Companhia continuou operando dentro do mesmo ramo ne-
gociai, exercendo as mesmas atividades anteriores, apenas tendo
excluído uma delas, assim mesmo no precípuo interesse da própria
sociedade, insta concluir-se que não houve mudança, mas, isto
sim, limitação, redução, do objeto da Companhia, situação que se
não confunde ou equipara com a primeira, não dando ensejo,
assim, ao direito de recesso, cujas hipóteses legais estão adstri-
tas ao princípio do numerus clausus." 12 (grifamos)

Portanto, a mudança do objeto social que ensejao direito de reti-


rada para o acionista dissidente tem que ser uma mudança efetiva, de
forma que dela resulte uma atividade nova, diferente daquela à qual
o acionista aderiu, implicando na assunção de riscos por ele não pre-
vistos:

"O direito de recesso assiste aos dissidentes em caso de mudança do


objeto social, e não em todos os casos de modificação do mesmo objeto:
só ocorre, para que o acionista possa exercitar o recesso da sociedade,
quando a maioria haja deliberado substituir o objeto social origi-
nário por um novo objeto em tudo diverso, de forma a modificar
radicalmente as condições de risco em presença das quais o acio-
nista havia aderido à sociedade (da produção automobilística se
passa, por exemplo, à indústria têxtil). Modificação secundária do
objeto social, como extensão a setores acessórios da produção, ou

12 1° Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,


Revista Forense, n° 330, p. 3 I 9/325.

253
como a redução dos setores originários de atuação, não dá lugar ao
direito de recesso" 13 . (grifamos)

Tanto é assim, que na recente reforma da Lei das S.A. empreendi-


da pela Lei n° 10.303/01, foi incluído o direito de recesso na hipótese
de mudança de objeto decorrente da cisão da companhia, salvo quan-
do o patrimônio cindido for vertido para sociedade cuja atividade
preponderante coincida com a decorrente do objeto social da socieda-
de cindida (artigo 13 7, III, "a").
Conforme já tivemos oportunidade de analisar 14 , a Lei no
10.303/2001 confere o direito de recesso nos casos de mudança do
objeto social, exceto quando as atividades-fim das sociedades cindidas
e da sociedade decorrente da cisão coincidam.
O objetivo da Lei n° 10.303/2001, ao prever o recesso na mudan-
ça de objeto social decorrente da cisão, é impedir que o acionista seja
obrigado a mudar de uma sociedade que exerce uma atividade econô-
mica determinada, que era do seu conhecimento e interesse, para
outra companhia que desempenha uma atividade econômica diversa,
na qual ele não tenha interesse.
Assim, verificamos que apenas as mudanças substanciais do objeto
social, isto é, aquelas que resultam em uma nova atividade, diversa da
anterior, possibilitam o exercício do direito de recesso pelos acionis-
tas dissidentes.

D. CONCLUSÃO

No presente caso, embora tendo sido alterada a redação da dispo-


sição estatutária que trata do objeto social, não ocorreu a sua modifi-
cação, pois a consulente continua a atuar no mesmo setor de ativida-
des, não criando, tal alteração, riscos diversos para os acionistas da-
queles que eles haviam assumido ao tornarem-se sócios da Compa-
nhia. Conseqüentemente, não cabe o direito de recesso pois não hou-
ve mudança do objeto social
Foi o que nos pareceu, em de junho de 2002.

13 FRANCESCO GALGANO. "La Società per Azioni", in Trattato di Diritto Com-


merciale e di Diritto Pubblico dell'Economia, vol. 7. Padova: CEDAM, 1984.
14 Cf. MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK,A Nova Lei das S.A., São
Paulo, Ed.Saraiva, 2002, p.279 e seguintes.

254
DIVIDENDOS. PAGAMENTO IN NATURA OU
PARCELADO EM MOEDA CORRENTE

DA CONSULTA E DOS FATOS

A COMPANHIA ALFA, uma companhia aberta, consulta sobre


a possibilidade de pagamento de dividendos no próximo exercício
social, tendo em vista os fatos a seguir narrados.
A sociedade não paga dividendos aos seus acionistas desde 198 7,
sendo os mesmos mínimos e cumulativos, conforme dispõe o seu Es-
tatuto Social.
No entanto, a Consulente tem créditos a receber da União Fede-
ral; em conformidade com o acordo de transação firmado com a
União, o pagamento será feito com Notas do Tesouro Nacional.
Como o pagamento da mencionada indenização não será feito em
moeda corrente, a Consulente, apesar de apresentar lucro em balan-
ço, não possuirá, no próximo exercício social, recursos suficientes
para o pagamento em dinheiro dos dividendos devidos a todos os
acionistas, os quais só ingressarão na sociedade quando as aludidas
Notas forem resgatadas pelo Tesouro Nacional.
Assim, tem-se que a situação financeira da Consulente somente
permitiria que a próxima Assembléia Geral Ordinária deliberasse o
pagamento em dinheiro de dividendos aos acionistas se tal pagamento
pudesse ser feito a prazo, na medida em forem vencendo-se as Notas
do Tesouro Nacional detidas pela Sociedade.
Em razão disto, e tendo em vista o longo período durante o qual
seus acionistas estão sem receber dividendos, pergunta a Consulente
qual seria a forma adequada para viabilizar a distribuição de dividen-
dos já no próximo exercício social.

DO PARECER

Diante do exposto, a resposta à consulta pressupõe a análise dos


seguintes aspectos:

255
I -natureza do dividendo e sua disciplina legal;
II -possibilidade de o dividendo declarado não ser pago;
III - caráter essencial da distribuição de lucros nas sociedades
mercantis;
IV- prazo para pagamento do dividendo;
V- admissibilidade do pagamento de dividendos "in natura";
VI- possibilidade de pagamento de dividendo em moeda corren-
te a prazo ou in natura, à escolha do acionista;
VII - dispensa, nesse caso, de disposição estatutária expressa
admitindo o pagamento de dividendo "in natura";
VIII - medidas necessárias para o pagamento do dividendo "in
natura";
IX - Conclusões

I - NATUREZA DO DIVIDENDO E SUA DISCIPLINA


LEGAL

O direito de participar dos lucros sociais, vale dizer o direito de


receber dividendos, está elencado no art. l 09 da Lei das S/A como um
dos direitos essenciais do acionista, o que significa que dele não pode
o acionista ser despojado pela sociedade, sob pena de nulidade da
deliberação neste sentido.
Para garantir a efetividade deste direito e corrigir distorção que
ocorria no sistema legal anterior, quando os lucros sociais eram perma-
nentemente capitalizados em detrimento da distribuição de dividen-
dos a que aspiravam os acionistas minoritários, a Lei n° 6.404/76
introduziu em nosso ordenamento societário o sistema do dividendo
mínimo obrigatório, segundo o qual, havendo lucro, as companhias são
obrigadas a destinarem parte dele aos acionistas a título de dividendo.
Nesse sentido dispõe o art. 202 1 da Lei das S.A.:

1 Nota do Autor: O art. 202 da Lei n° 6.404/76 sofreu algumas modificações pela
Lei n° 10.303 de 31.10.2001, dentre elas a do seu caput e de seu § 2° que passou a
vigorar com a seguinte redação: "Art. 202. Os acionistas têm direito de receber como
dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela dos lucros estabelecida no estatu-
to, ou, se este for omisso, a importância determinada de acordo com as seguinte
normas: ( ... ) §2° Quando o estatuto for omisso e a assembléia geral deliberar alterá-lo
para introduzir norma sobre a matéria, o dividendo obrigatório não poderá ser inferior
a 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido ajustado nos termos do inciso I deste
artigo."

256
"Art. 202 - Os acionistas têm direito de receber como dividendo
obrigatório, em cada exercício, a parcela dos lucros estabelecida no
estatuto, ou, se este for omisso, metade do lucro líquido do exercício
diminuído ou acrescido dos seguintes valores:

§ 1° - O estatuto poderá estabelecer o dividendo como porcentagem


do lucro ou do capital social, ou fixar outros critérios para determiná-
lo, desde que sejam regulados com precisão e minúcia e não sujeitem
os acionistas minoritários ao arbítrio dos órgãos de administração ou
da maioria.
§ 2° - Quando o estatuto for omisso e a assembléia geral deliberar
alterá-lo para introduzir norma sobre a matéria, o dividendo obriga-
tório não poderá ser inferior a 25% (vinte e cinco por cento) do lucro
líquido ajustado nos termos deste artigo."

Verifica-se que o dispositivo transcrito ao mesmo tempo em que


consagra a obrigatoriedade de distribuição de dividendos, também
garante à companhia liberdade quanto à fixação estatutária do divi-
dendo mínimo obrigatório.
De fato, a Lei confere à companhia liberdade para fixar estatuta-
riamente o dividendo mínimo a ser distribuído anualmente aos acio-
nistas, desde que o faça com "precisão e minúcia" e não sujeite a
determinação do valor a ser distribuído apenas aos administradores ou
aos acionistas controladores.
Entretanto, se o estatuto for omisso, prevalecerá a regra legal de
se distribuir, a título de dividendo obrigatório, cinqüenta por cento do
lucro líquido ajustado nos termos do artigo 202 da lei societária.
Por outro lado, como o próprio nome indica, a garantia estatutária
de dividendos mínimos aos acionistas não significa que somente estes
podem ser distribuídos. Constatada a existência de lucros no exercí-
cio, o órgão social competente pode deliberar a distribuição de divi-
dendos em valores superiores ao mínimo previsto legal ou estatutaria-
mente.
Contudo, o dividendo distribuído acima do valor estatutariamen-
te fixado representa um plus, que a sociedade pode ou não distribuir,
ao passo que o pagamento do dividendo mínimo e obrigatório consti-
tui a quitação de uma obrigação por parte da companhia, cujo cumpri-
mento os acionistas tem o direito de exigir 2 , desde que a sociedade
apresente lucros no exercício social.

2 ALFREDO LAMY FILHO. Lei das S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p.501

257
11- POSSIBILIDADE DE O DIVIDENDO DECLARADO
NÃO SER PAGO

O legislador, entretanto, procurou contrabalançar o princípio da


obrigatoriedade do pagamento de dividendos com uma alternativa
que facultasse a não distribuição de lucros em exercícios em que tal
distribuição, por ser incompatível com a situação financeira da compa-
nhia, pudesse prejudicar a sobrevivência da empresa.
Dessa forma, a lei admite que o dividendo obrigatório não seja
pago, mesmo nos exercícios em que a Assembléia Geral Ordinária
declarar a existência de lucros. Para isto, os órgãos de administração
devem informar à Assembléia que a distribuição de dividendos é in-
compatível com a situação financeira da Companhia, nos termos do
artigo 202, parágrafo 4° da Lei de S/A. Confira-se:

"Art. 202 - (. ..)


§ 4° - O dividendo previsto neste artigo não será obrigatório no
exercício social em que os órgãos da administração informarem ser ele
incompatível com a situação financeira da companhia. O conselho
fiscal, se em funcionamento, deverá dar parecer sobre essa informação
e, na companhia aberta, seus administradores encaminharão à Co-
missão de Valores Mobiliários, dentro de cinco dias da realização da
assembléia geral, exposição justificativa da informação transmitida à
Assembléia".

Note-se que, sendo uma medida de caráter excepcional, o não


pagamento de dividendos declarados pela Assembléia Geral Ordiná-
ria pressupõe o estrito atendimento aos requisitos legais, notadamen-
te nas Companhias abertas, como é o caso da Consulente, em que a
possibilidade de captação pública de recursos exige que as normas de
proteção aos acionistas minoritários sejam mais rígidas.
Assim, caso a Consulente optasse pelo procedimento facultado
pelo dispositivo acima transcrito, seria indispensável que sua adminis-
tração elaborasse exposição justificativa da incompatibilidade entre a
situação financeira da empresa e a distribuição de dividendos.
Dita exposição justificativa teria que ser objeto de parecer do
Conselho Fiscal da Consulente, cujo funcionamento é permanente,
nos termos do seu Estatuto Social, além de ser encaminhada à Comis-
são de Valores Mobiliários, sendo esta competente para fiscalizar a
regularidade de tal decisão da Companhia.

258
Dessa forma, para que os dividendos declarados pela Assembléia
Geral Ordinária sejam legitimamente retidos pela sociedade é condi-
ção indispensável a apresentação de exposição justificativa acerca dos
motivos da incompatibilidade entre a situação financeira da compa-
nhia e o pagamento de dividendos.
Outro requisito para a regularidade da adoção de tal procedimen-
to seria a constituição de reserva especial para o registro dos lucros
que deixassem de ser distribuídos.
Dita reserva especial poderia ser utilizada, em exercícios posterio-
res, tanto para absorção de prejuízos, como para distribuição como
dividendo, assim que a situação financeira da companhia permitisse,
conforme estabelece o§ 5°, do artigo 202, da Lei n° 6.404/76.
De qualquer modo, ressalte-se que a decisão de não distribuição
de dividendo obrigatório decorre de expressa previsão legal e, portan-
to, é perfeitamente legítima, desde que os administradores da compa-
nhia demonstrem que a situação financeira da companhia é realmente
incompatível com a distribuição de dividendos.
Sobre este aspecto, vale salientar que a expressão utilizada pelo
legislador- "situação financeira" - deve ser entendida como a da
empresa que não possui liquidez, ou seja, caixa.
Assim, a companhia que não se encontra em boas condições finan-
ceiras é aquela que, inobstante até apresentar boa situação econômica,
não tem liquidez para o pagamento do dividendo obrigatório, estando
impedida de disponibilizá-lo aos acionistas.
Nesta hipótese, a decisão da administração de não distribuir os
dividendos declarados seria absolutamente legítima.
Ora, a situação financeira da Consulente enquadra-se exatamente
na hipótese descrita, visto que, apesar de possuir os recursos para o
pagamento de dividendos, que estão representados pelos títulos pú-
blicos recebidos, não pode disponibilizá-los imediatamente aos acio-
nistas, mas apenas na medida em que os aludidos títulos vencerem-se,
o que somente ocorrerá nos próximos exercícios.
Daí, conclui-se que, a administração da Consulente poderia legiti-
mamente decidir reter os dividendos a serem declarados pela próxima
Assembléia Geral Ordinária, nos termos do artigo 202, parágrafo 4°
da Lei de S/A, retardando a retomada da distribuição de lucros pela
sociedade.
Por fim, ressalte-se que a retenção de dividendos acima mencio-
nada somente pode ser legitimamente deliberada em relação ao divi-
dendo obrigatório devido às ações ordinárias de emissão da Consulen-
te, não se aplicando às ações preferenciais. Isto porque a estas é esta-

259
tutariamente assegurado o recebimento de dividendos prioritários, os
quais não podem ser retidos, conforme se infere da leitura do disposto
no artigo 203, da Lei de S/A.
Assim sendo, caso a Assembléia Geral da Consulente declare a
existência de lucros no próximo exercício, somente os dividendos
devidos às ações ordinárias poderão ser retidos em virtude da situação
financeira da companhia, devendo ser pagos aqueles assegurados às
ações preferenciais, inclusive os atrasados, já que os mesmos são cu-
mulativos.

III- CARÁTER ESSENCIAL DA DISTRIBUIÇÃO DE


LUCROS NAS SOCIEDADES MERCANTIS

É da essência das sociedades mercantis, e um de seus elementos


caracterizadores, a persecução de lucros através da exploração da ati-
vidade econômica, conforme, inclusive, estabelece o artigo zo da Lei
das S/A.
Pode-se dizer que toda sociedade comercial tem como objetivo
primordial a distribuição de lucros entre seus sócios.
Esse preceito fundamental é reforçado, na própria Lei de S/A,
pelo princípio da distribuição obrigatória de dividendos. De fato, con-
forme anteriormente mencionado, uma das principais preocupações
dos elaboradores da Lei n° 6.404/76 foi a de assegurar aos acionistas o
recebimento de uma parcela dos lucros sociais, sob a forma de divi-
dendo obrigatório, sempre que a situação financeira da sociedade as-
sim permitir.
Cite-se ainda o disposto no artigo 8°, inciso V, da Lei n° 6.385/76,
que prescreve que a CVM deve priorizar a fiscalização das companhias
abertas que não apresentem lucro em balanço ou não distribuam o
dividendo mínimo obrigatório.
Dessa forma, nas sociedades comerciais, a administração social
deve, sempre que possível, priorizar a distribuição de lucros entre os
sócios.
Nesse sentido, qualquer decisão dos administradores da Compa-
nhia que vise a possibilitar a distribuição de dividendos aos acionistas
deve ser considerada medida de boa administração, tomada no inte-
resse social e preferível à retenção dos lucros declarados pela Assem-
bléia Geral.
Isto torna-se ainda mais evidente se for levado em consideração
que a Consulente não distribui lucros há mais de dez anos, impedindo
que seus acionistas possam realizar seu principal objetivo.

Z60
IV- PRAZO PARA PAGAMENTO DO DIVIDENDO

A situação financeira da Consulente indicaria a deliberação do


pagamentos dos dividendos a prazo pela próxima Assembléia Geral
Ordinária. Contudo, o próprio texto da lei societária poderia parecer
impeditivo à adoção de tal procedimento.
De fato, a fixação de prazo máximo para a efetivação da distribui-
ção dos dividendos declarados na Assembléia Geral Ordinária foi ou-
tra regra introduzida pela Lei n° 6.404/76 visando a garantir a integri-
dade do direito do acionista ao dividendo.
A intenção do legislador, ao introduzir tal regra, foi de impedir
que administradores e/ou controladores, com óbvio prejuízo aos mi-
noritários, pudessem postergar indefinidamente o pagamento de divi-
dendos já aprovados por deliberação de assembléia dos acionistas da
sociedade.
Neste sentido, dispõe o parágrafo 3°, do artigo 205, da Lei de S/A
que:

"Art. 205- O dividendo deverá ser pago, salvo deliberação em con-


trário da assembléia geral, no prazo de sessenta dias da data em que
for declarado e, em qualquer caso, dentro do exercício social."

Como se verifica, a determinação sobre o prazo de pagamento do


dividendo é competência privativa da Assembléia Geral, que em cada
exercício social deve deliberar sobre a matéria. Todavia, apesar de
privativa, tal competência não é absoluta, visto que a discricionarieda-
de da Assembléia para determinar a data de pagamento dos dividen-
dos é limitada pela própria Lei de Sociedades Anônimas.
Nos termos da lei, não poderia a Assembléia Geral dos Acionistas
estabelecer a distribuição de dividendos para uma data posterior ao
término do exercício social. Assim, estaria, a princípio, vedado o paga-
mento de dividendos pela Consulente a prazo, nas datas em que as
Notas do Tesouro Nacional por ela recebidas forem se vencendo, visto
que tais vencimentos somente ocorrerão após o término do exercício
social.
Deve-se considerar, contudo, que, na presente hipótese, a alterna-
tiva ao pagamento a prazo dos dividendos é simplesmente a não distri-
buição de lucros pela Consulente às ações ordinárias por mais um
exercício social.
Lembre-se que a reserva especial para a qual seriam transferidos
os dividendos não distribuídos poderia ser utilizada, em exercícios

261
futuros, para a absorção de prejuízos, conforme permite o texto legal,
caso assim imponha a situação financeira da Companhia. Tal situação
faria com que os acionistas terminassem por não dispor da indenização
paga pela União Federal à Consulente e que a retomada do pagamento
de dividendos pela sociedade fosse indefinidamente postergada.
Assim, levando-se em conta que o não pagamento de dividendo
contrariaria princípio basilar de direito societário, segundo o qual a
sociedade mercantil deve ter por finalidade a distribuição de lucros
entre seus sócios, seria conveniente ao interesse social, e ao dos pró-
prios acionistas, que fosse encontrada uma solução que viabilizasse o
pagamento dos referidos dividendos já no próximo exercício, sem
contrariar a regra da lei societária que veda a transferência do paga-
mento do dividendo para exercícios posteriores.

V -ADMISSIBILIDADE DO PAGAMENTO DE
DIVIDENDO "IN NATURA"

A fórmula mais adequada para a consecução do objetivo acima


mencionado seria através da distribuição aos acionistas de dividendos
pagos "in natura", ou seja, pagamento não em dinheiro, mas em outros
bens economicamente avaliáveis.
Sobre este ponto, cabe ressaltar que no direito comercial, ramo
mais flexível do direito privado, a regra é a da liberdade contratual,
a qual somente cede diante das normas imperativas ou de ordem
pública.
Em nosso sistema constitucional, tais espécies de normas devem
ser expressas em lei, uma vez que somente em virtude de lei alguém
pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, conforme
estabelece o artigo 5°, inciso li, da Constituição Federal.
Portanto, pode-se considerar que no âmbito do direito societário,
é lícito tudo o que não seja expressamente proibido por lei, nem in-
compatível com o regime jurídico das sociedades anônimas.
Partindo deste princípio, a doutrina majoritária entende que, ine-
xistindo norma proibitiva expressa, não há, em conseqüência, qual-
quer impedimento ao pagamento de dividendos "in natura". 3
Conforme esclarece Alfredo Lamy Filho: 4 "o fato do capital ser sem-

3 ARNOLDO WALD. "Da licitude do pagamento de dividendo complementar em


ações de outra companhia", in Revista do Direito Mercantil, vol. SI, p. I 7.
4 ALFREDO LAMY FILHO. ob. cit. p. 500

262
pre expresso em dinheiro, embora possa ser formado em qualquer espécie
de bens (arts. 5° e 7° da Lei) é de todo equivalente ao dividendo, também
sempre expresso em moeda (até para satisfazer os requisitos da legislação
do imposto de renda), embora venha a ser distribuído "in natura". Tra-
ta-se, apenas, de problema de avaliação e/ou conversão em moeda".
De fato, deve-se considerar que o direito de participar dos lucros
sociais é a contrapartida a que faz jus o acionista por ter contribuído
na formação do capital da companhia através da subscrição de ações.
Assim, como a Lei n° 6.404/76, em seu art. 7°, expressamente admite
a integralização do capital social em bens, não haveria razão para vedar
o pagamento de dividendos em bens.
A regra contida no art. 205, § 1°, da Lei n° 6.404/76, segundo a
qual o dividendo poderá ser pago em duas modalidades, quais sejam,
o cheque nominativo e o crédito em conta corrente, que poderia dar a
entender que a lei impõe o pagamento em dinheiro, não veda a distri-
buição de dividendo em bens, uma vez que trata-se de preceito mera-
mente autorizativo.
Com efeito, como salienta Fábio Konder Comparato 5, "o disposto
no art. 205 não deve ser interpretado, como é óbvio, no sentido de
excluir qualquer outro tipo de pagamento, diverso dos que aí se pre-
vêem, mas como um modo de se ampliarem as possibilidades de solução
do débito".
Amoldo Wald adiciona mais um argumento a favor da licitude do
pagamento de dividendos "in natura":

"Ora, se o lucro nem sempre é em dinheiro e se o dividendo é parte do


lucro destinado a distribuição entre acionistas. parece evidente que.
conceptualmente abordada a questão nada impede que essa distri-
buição se faça "in natura". Óbice haveria se a lei, expressamente,
determinasse o pagamento em dinheiro e obrigasse a companhia a
reduzir a dinheiro os bens do seu ativo excedente para satisfazê-lo ou
se nesse sentido houvesse determinação estatutária. "6 (grifou-se)

Além dos autores já mencionados, também partilham a mesma


opinião: Waldemar Ferreira 7, Egberto de Lacerda Teixeira e José Ale-

5 FÁBIO KONDER COMPARATO. Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresa-


rial. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 166.
6 ARNOLDO WALD. ob. cit., p.22
7 WALDEMAR FERREIRA. Tratado de Sociedades Mercantis. 5° Ed., vol. 5. Rio de
Janeiro: Ed. Nacional de Direito, no 333, p. 1483.

263
xandre Tavares Guerreiro 8, Waldírio Bulgarelli 9, Wilson Batalha 10 e
José Luiz Bulhões Pedreira 11 .
A Comissão de Valores Mobiliários, através de pareceres de sua
Superintendência Jurídica (Parecer CVM/SJU/003/83, 074/83 e
001/87), também já se manifestou no sentido da aceitação do paga-
mento de dividendos em outros bens que não dinheiro.
Recentemente, a Medida Provisória n° 1.701-16 12 , de 27 de no-
vembro de 1998 13 , confirmou a possibilidade de pagamento em bens
não pecuniários não só dos dividendos propriamente ditos, como tam-
bém dos juros sobre o capital próprio. Confira-se:

"Art. 1° -Fica a União autorizada, a critério doM inistro de Estado


da Fazenda:
I - a receber de empresas públicas, sociedade de economia mista e
outras entidades de cujo capital participe, ainda que minoritariamen-
te, valores mobiliários como pagamento de juros sobre o capital pró-
prio e dividendos a que tem direito;" (grifou-se)

Diante do exposto, conclui-se que, em tese, nada impede a distri-


buição de dividendos "in natura", desde que seja respeitado o princí-
pio da igualdade entre os acionistas, isto é, deve ser determinado o
pagamento em bens não pecuniários a todos os acionistas e não apenas
a alguns, e todos os acionistas devem receber bens que possuam o
mesmo valor econômico.
A distribuição de dividendo "in natura", não pode, porém, ser
feita com qualquer bem. É necessário que sejam conferidos aos acio-
nistas bens que, ao mesmo tempo, não impliquem na descapitalização
da companhia e não violem os princípios legais de proteção ao acionis-
ta minoritário contra abusos do controlador.

s EGBERTO LACERDATEIXEIRAeJOSÉALEXANDRE TAVARES GUERREI-


RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. São Paulo: José Bushatsky Edi-
tor, 1979, vol. 2, n°.203, p. 591.
9 WALDÍRIO BULGARELLI. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. São
Paulo: Saraiva, 1978, vol. 4, p. 54, no 2.
lO WILSON BATALHA. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janei-
ro: Forense, 1977, vol. III, pp. 988-999.
11 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA citado por Amoldo Wald- ob. cit. p. 24.
12 Nota do Autor: A Medida Provisória 1. 701-16 foi reeditada pelas seguintes Medi-
das Provisórias: 1.772-17 a 1.772-23, 1.889-24 a 1.889-29, 1.957-30 a 1.95743,
2.081-44 a 2.081-50 e 2.167-51 a 2.167-53 (reedição em tramitação).
13 Medida Provisória n° 1.701-16, de 27 de novembro de 1998, publicada no Diário
Oficial da União, Seção 1, p.228-A, edição de 28 de novembro de 1998.

264
Uma alternativa viável para tanto seria a distribuição das próprias
Notas do Tesouro Nacional dadas em pagamento pela União Federal,
visto que são bens facilmente divisíveis entre os acionistas. Ademais,
seu valor econômico é calculável sem grandes problemas e elas podem
ser livremente negociadas no mercado financeiro.

VI -A POSSIBILIDADE DE PAGAMENTO DE DIVIDENDO


EM MOEDA CORRENTE A PRAZO OU IN NATURA, À
ESCOLHA DO ACIONISTA

Contudo, apesar de a doutrina majoritária admitir a possibilidade


de distribuição de dividendo in natura, conforme acima explicitado,
alguns autores ainda contestam tal procedimento.
Modesto Carvalhosa 14 , ao comentar o artigo 205 da Lei de S/A,
condena a prática do dividendo in natura, argumentando que nem o
Estatuto Social nem a Assembléia Geral podem determinar o paga-
mento de dividendos em bens que não dinheiro. O mesmo entendi-
mento era expressado, na vigência da lei anterior, por Miranda Valver-
de15 e Cunha Peixoto 16 .
Diante disto, de forma a dissipar qualquer eventual contestação
sobre o procedimento a ser adotado pela Consulente, entendemos
que a Companhia, mediante deliberação assemblear, poderia conferir
aos acionistas a alternativa de receberem os dividendos declarados in
natura, através da entrega das Notas do Tesouro Nacional, ou em
moeda corrente.
O pagamento em moeda corrente seria, porém, feito a prazo, na
medida em que tais Notas forem se vencendo e a Sociedade receba o
produto de seu resgate. Dita opção ficaria a exclusivo critério de cada
acionista.
Desde que fosse concedida a mesma opção a todos os acionistas,
respeitando-se, assim, o princípio da igualdade entre os sócios, nada
obstaria que a alternativa ora sugerida fosse adotada.

14 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, São


Paulo, Saraiva, 1997, vol. 3, p.724
15 TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE. Sociedades por Ações. Rio de Janeiro:
Forense, 1959. vol. 2, pag. 393
16 CARLOS FULGÊNCIO DA CUNHA PEIXOTO. Sociedades por Ações. São
Paulo: Saraiva, 1973. vol. 4, pag. 209.

265
De fato, não se estaria ultrapassando o prazo máximo para a efeti-
vação da distribuição dos dividendos, visto que as Notas do Tesouro
Nacional seriam conferidas à vista aos acionistas, no próprio exercício
social.
A única diferença seria que aqueles que não desejassem receber
sua parcela em bens, poderiam optar por recebê-la em dinheiro, me-
diante pagamento a prazo.
Note-se que como se trata de direito patrimonial, e portanto dis-
ponível, os acionistas que não desejarem receber os títulos públicos
poderiam abrir mão do direito de receber os dividendos no próprio
exercício, aceitando o pagamento em moeda em um prazo maior.
Dessa forma, estaria superado o obstáculo representado pela regra
do artigo 205, parágrafo 2°, da Lei de S/A, segundo a qual os dividen-
dos devem ser pagos dentro do mesmo exercício social. Além disso, a
Consulente deixaria de constituir reserva especial, a qual poderia
desaparecer, e passaria a ser obrigada a pagar dividendo aos acionistas.
Já os que não concordarem com a dilatação do prazo, teriam que
consentir com o recebimento das Notas do Tesouro Nacional, as
quais, ressalte-se, não representam prejuízo aos acionistas, visto se-
rem negociáveis no mercado financeiro.
Finalmente, note-se que a opção ora sugerida poderia ser concedi-
da tanto aos acionistas ordinários como aos titulares de ações prefe-
renciais, desde que respeitadas as regras legais e estatutárias que asse-
guram prioridade no recebimento de dividendos a estes últimos.

VII- DISPENSA DE DISPOSIÇÃO ESTATUTÁRIA


EXPRESSA ADMITINDO O PAGAMENTO DE DIVIDENDO
"IN NATURA"

Isto posto, deve ser analisado ainda se o pagamento de dividendos


"in natura" poderá ser feito sem que haja previsão estatutária para
tanto.
Quanto a esta questão aplica-se o princípio de que é indispensável
que o Estatuto Social, sendo o regramento fundamental dos direitos e
obrigações relativos às relações internas da companhia, disponha ex-
pressamente sobre a disciplina dos dividendos, em todos os seus as-
pectos, sob pena de ficar sem regulamentação o direito essencial do
acionista à participação nos lucros sociais.
Deve-se ter em vista, ainda, que o mencionado art. 202, § 1° da
Lei das S/A dispõe expressamente que o estatuto pode fixar outros

266
critérios para determinar o dividendo obrigatório, que não sejam ba-
seados em porcentagem do lucro ou do capital social, desde que tais
critérios sejam regulados com precisão e minúcia e não sujeitem os
acionistas minoritários ao arbítrio dos órgãos de administração ou da
maioria.
Em vista disso, e considerando que, verificada a existência de lu-
cros líquidos, os acionistas, em relação aos dividendos mínimo ou
obrigatório, têm o direito de exigir da companhia o seu pagamento, ou
seja, tornam-se credores da companhia, alguns autores entendem que,
se o estatuto social não dispuser de forma expressa sobre a matéria,
autorizando tais pagamentos in natura, o acionista, como qualquer
credor, não estará obrigado a receber seus créditos de outra forma que
não seja em moeda corrente, pois a companhia deve quitar este débito
como quita todos os demais, isto é, em dinheiro 17 .
No que se refere ao dividendo extraordinário, embora alguns au-
tores considerem que o órgão competente para deliberação sobre a
destinação dos lucros sociais é livre para determinar o pagamento em
bens, existem opiniões no sentido de que o artigo 202 da Lei de S/A,
inobstante referir-se apenas ao dividendo obrigatório, representa nor-
ma de ordem pública, de alcance geral e de interesse de todos os
acionistas, sendo em conseqüência também aplicável à fixação do di-
videndo extraordinário 18 .
Por este entendimento, inexistindo norma estatutária clara ares-
peito da matéria, poderiam os acionistas minoritários considerar que o
pagamento de dividendos em bens constitui ato aleatório e arbitrário
da administração ou do acionista controlador.
A Comissão de Valores Mobiliários também não possui entendi-
mento pacificado sobre a questão, conforme se verifica de extrato de
dois pareceres de sua Superintendência Jurídica. Confira-se:

"Na ausência de dispositivo estatutário. os dividendos deverão ser


pagos em moeda. A forma de pagamento em bens não pecuniários
deve ser objeto de cláusula específica e minuciosa dispondo sobre os
elementos do ativo, passíveis de distribuição, o órgão societário com-
petente para decidir sobre a matéria e os parâmetros a serem obser-
vados nas deliberações, de modo a evitar o arbítrio da maioria ou dos
administradores." 19 (grifou -se)

17 ALFREDO LAMY FILHO, ob. cit., p. 500/501.


18 MODESTO CARVALHOSA. "Ações preferenciais desprovidas de preferências".
RT, vol. 707, p. 42.

267
"Nessas condições, caso se entenda possível, isto é, não vedado implí-
cita ou explicitamente pela lei, o pagamento do dividendo em bens,
não há por que negar à assembléia geral de acionistas plenos poderes
para decidir a respeito, eis que ela "tem poderes para decidir sobre
todos os negócios relativos ao órgão da companhia e para tomar as
resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento"
(art. 121, da Lei n° 6.404/76)" 20 (grifou-se)

Na presente situação, não deve haver dúvida de que estaria dis-


pensada a necessidade de norma estatutária expressamente prevendo
tal possibilidade. Em primeiro lugar, porque o recebimento do divi-
dendo in natura será opcional, a exclusivo critério do acionista, que
poderá preferir o pagamento em moeda corrente.
Além disso, deve-se considerar que, no caso, a alternativa ao paga-
mento in natura, seria justamente a não distribuição do dividendo
obrigatório por mais um exercício social, o que não se coaduna com a
natureza comercial da atividade da Consulente.
Conforme anteriormente explicitado, a retenção de lucros deve
ser, sempre que possível, preterida em relação à sua distribuição como
dividendo. Assim, qualquer medida legalmente admitida e que vise a
possibilitar a distribuição de lucros aos acionistas deve ser considerada
de interesse social e, logo, legítima.
Em vista disso, na presente hipótese, não se faz necessário que
Consulente providencie a adaptação de seu Estatuto para poder pagar
os dividendos em outros bens que não dinheiro.

VIII- MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA O PAGAMENTO DO


DIVIDENDO IN NATURA

Para aprovação da adoção do procedimento proposto no presente


estudo o Conselho de Administração da Consulente deverá na Pro-
posta de destinação dos lucros, elaborada nos termos do artigo 192 da
Lei de S/A, a ser submetida à Assembléia Geral Ordinária, explicitar
a situação financeira da Companhia e as razões pelas quais o pagamen-
to de dividendos realizar-se-á nos termos ora sugeridos.
Em tal Proposta, o Conselho de Administração da Consulente
deverá deixar claro que a alternativa à adoção deste modelo seria a não

19 Parecer/CVM/SJU/N° 00074/83 proferido por Luiza Rangel.


20 Parecer/CVM/SJU/N° 001/87 proferido por Carmem Sylvia Parkinson.

268
distribuição do dividendo obrigatório por mais um exercício social,
nos termos do parágrafo 4°, do artigo 202, da Lei n° 6.404/76, e que,
caso os acionistas não aprovem o modelo proposto, a Companhia uti-
lizar-se-á da faculdade de reter os dividendos declarados através da
constituição de reserva especial.
Assim, a aprovação do procedimento ora sugerido ficará a cargo da
Assembléia Geral Ordinária que, ao deliberar sobre a destinação do
lucro líquido do exercício e a distribuição de dividendos (art. 13 2, II
da Lei de S/A), deve aprovar o pagamento do dividendo devido pela
Companhia em Notas do Tesouro Nacional, conferindo-se opção,
àqueles que não estiverem dispostos a receber tais Notas, de recebe-
rem sua parcela nos lucros sociais em moeda corrente, porém junta-
mente com o vencimento e/ou resgate das Notas.

IX- CONCLUSÕES

Diante do exposto, conclui-se que:


a) a Consulente poderia, face à sua situação financeira, legitima-
mente deliberar a retenção do dividendo obrigatório declarado na pró-
xima Assembléia Geral Ordinária e devido aos detentores de ações
ordinárias;
b) a retenção de dividendos, apesar de legalmente prevista, não é
a solução desejada no âmbito do direito societário, face ao princípio de
que a finalidade lucrativa constitui o objetivo essencial de toda socie-
dade mercantil, ainda mais considerando que a Consulente não distri-
bui dividendos há mais de dez anos;
c) a distribuição dos dividendos a prazo, na medida em que forem
ocorrendo os vencimentos das Notas do Tesouro Nacional dadas em
pagamento à Consulente, estaria, em princípio, obstaculizada pelo
disposto no artigo 205, parágrafo 2°, que impõe o pagamento dos
dividendos até o término do exercício em que ele foram declarados;
d) a solução para superar tal problema e permitir a distribuição de
lucros no próximo exercício social seria o pagamento dos dividendos
em outros bens economicamente avaliáveis, que não dinheiro, isto é,
in natura, prática que é admitida em nosso direito societário;
e) a forma mais conveniente para se efetivar o pagamento dos
dividendos in natura seria através da conferência aos acionistas das
próprias Notas do Tesouro Nacional, que são adequadas a tal finalida-
de, visto serem facilmente divisíveis entre os acionistas e poderem ser
livremente negociadas no mercado financeiro;

269
f) a fim de evitar qualquer contestação sobre a admissibilidade do
pagamento de dividendos in natura, poderia ser dada aos acionistas
que não desejarem receber as Notas do Tesouro Nacional, a opção de,
a seu exclusivo critério, receber os dividendos em dinheiro, pagos a
prazo, na medida em que a Companhia receba os valores decorrentes
do resgate dos referidos títulos;
g) a concessão de tal opção aos acionistas não contraria a regra do
pagamento dos dividendos no próprio exercício social, visto que ele
seria pago, no próprio exercício, com as Notas do Tesouro Nacional,
apenas conferindo-se uma opção para os acionistas que desejarem re-
cebê-lo em dinheiro, os quais abririam mão do prazo legal para o paga-
mento dos dividendos;
h) a opção ora sugerida pode ser concedida tantos aos acionistas
ordinários, quanto aos detentores de ações preferenciais, desde que
respeitadas as regras legais e estatutárias que conferem prioridade no
recebimento de dividendo a estes últimos;
i) na presente hipótese, não se faz necessária a previsão estatutária
para pagamento do dividendo in natura, pois os acionistas poderão
livremente optar pelo recebimento em moeda corrente ou in natura;
j) a adoção do procedimento ora sugerido deverá ser submetida à
Assembléia Geral Ordinária da Consulente, acompanhada de Propos-
ta elaborada pelo seu Conselho de Administração, na qual fiquem
explicitadas as razões da adoção do modelo proposto e que caso não
seja ele aprovado a Companhia constituirá reserva especial para a re-
tenção dos dividendos declarados.
Foi o nosso parecer, em dezembro de 1998.

270
DIVIDENDOS INTERCALARES. PRAZO PARA
PAGAMENTO. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO
205, §3°, DA LEI DAS S.A.

I-DOS FATOS E DA CONSULTA

Recebemos da COMPANHIA BETA consulta sobre o prazo de


pagamento de dividendos intercalares, cuja distribuição foi aprovada
pelo Conselho de Administração da Companhia.
Em reunião realizada em junho de 2001, o Conselho de Adminis-
tração da COMPANHIA BETA aprovou a distribuição de dividendos
antecipados aos acionistas, e juros sobre o capital próprio.
A Ata da referida Reunião do Conselho de Administração deixou
também consignado que "a data do pagamento desses dividendos e dos
juros sobre o capital próprio será oportunamente divulgada através de
Aviso aos Acionistas".
Por fim, foi aprovado que o valor dos dividendos e dos juros sobre
o capital próprio, atualizados pela taxa Selic, desde a data do efetivo
pagamento até a data de encerramento do exercício social, deverá ser
descontado do valor dos dividendos que vierem a ser apurados no
Balanço Patrimonial de encerramento do exercício de 31/12/2001.
Todavia, até o presente momento, não foi divulgado o Aviso aos
Acionistas, informando a data do efetivo início de pagamento dos
dividendos e juros sobre o capital próprio aos acionistas da COMPA-
NHIA BETA.
Diante disto, solicita-nos a Consulente Parecer Jurídico sobre as
seguintes questões:
a) aplica-se aos dividendos e juros sobre o capital próprio delibe-
rados pelo Conselho de Administração da COMPANHIA BETA o
prazo de 60 (sessenta) dias para início de pagamento, previsto no
artigo 205, § 3°, da Lei n° 6.404/76?;
b) caso se entenda que a regra prevista na primeira parte do artigo
205, § 3°, da Lei das S.A. aplica-se à distribuição de dividendos inter-
calares, estaria a COMPANHIA BETA obrigada a pagar os referidos

271
dividendos no prazo de 60 (sessenta) dias da data em que foram apro-
vados pelo seu Conselho de Administração?
c) caso se entenda aplicável à presente situação o prazo de 60
(sessenta) dias para o pagamento dos dividendos e juros sobre o capi-
tal próprio aprovados na Reunião de 29/06/2001, estariam os admi-
nistradores da COMPANHIA BETA sujeitos à alguma penalidade
pela não observância do referido prazo?; e
d) qual o prazo máximo para que seja efetuado o pagamento aos
acionistas dos aludidos dividendos e juros sobre o capital próprio?

11- DO PARECER

Objetivando uma análise ordenada e sistemática da matéria, de-


senvolveremos o presente Parecer da seguinte maneira:
a) o direito do acionista ao dividendo mínimo obrigatório;
b) a natureza dos dividendos intercalares;
c) o prazo para o pagamento dos dividendos previsto no artigo
205, § 3°, da Lei no 6.404/76;
d) a possibilidade de o Conselho de Administração deliberar a
dilação do prazo de pagamento dos dividendos intercalares;
e) as conseqüências da não observância do prazo estabelecido no
artigo 205, § 3°, da Lei no 6.404/76;
f) o prazo máximo para o pagamento dos dividendos intercalares;
g) as respostas aos quesitos.

A- O DIREITO DO ACIONISTA AO DIVIDENDO


MÍNIMO OBRIGATÓRIO

O objeto econômico da sociedade anônima é, fundamentalmente,


o de produzir lucros e proporcionar a sua partilha entre os acionistas;
com efeito, na sociedade anônima, "o interesse econômico imediato é a
repartição periódica dos lucros entre os associados, como uma espécie
de frutos civis dos contingentes do capital de cada um" 1 •
Em nosso sistema de direito societário, o legislador instituiu regras
claras e bastante incisivas a respeito da intangibilidade do direito de
participação no lucro, determinando que o mesmo constitui um direi-
to essencial dos acionistas, nos termos do artigo 109 da Lei das S .A.

1 HERNANI ESTRELLA. "Direito do acionista ao dividendo". In Direito Comercial


estudos. Rio de Janeiro: José Karfino Editora, 1969. p. 190 .

272
Assim, figurando o direito a participar dos lucros sociais dentre os
direitos essenciais do acionista, nos termos do artigo 109 da Lei das
S.A., conclui-se que o acionista dele não poderá ser privado nem pelo
Estatuto Social, nem por deliberação da Assembléia Geral.
Embora o acionista, a partir do momento em que se torna titular
de ações de uma sociedade anônima, possua o direito de receber
dividendos da companhia, o exercício desse direito depende, logi-
camente, da existência de lucros. A ocorrência de lucros é, por con-
seguinte, o pressuposto necessário para que se efetue a distribuição de
dividendos.
O direito ao dividendo é caracterizado, tipicamente, como um
direito expectativa do acionista. Uma vez levantado e aprovado o
balanço da companhia, e verificada a existência de lucro líquido, o
acionista, que já detinha o direito potencial de receber os lucros da
sociedade, adquire, a partir desse momento, o direito ao seu exer-
cício; ou seja, o acionista torna-se credor da sociedade. Trata-se de
um direito subjetivo do sócio: à obrigação da companhia de perseguir
um fim lucrativo corresponde o direito do acionista aos lucros da
empresa. 2
Visando a tornar efetivo tal direito, a Lei das S.A. estabeleceu o
sistema do dividendo obrigatório, passando as companhias a serem
obrigadas a, em havendo lucro, destinarem parte dele aos acionistas, a
título de dividendo.
Com efeito, o pagamento do dividendo mínimo obrigatório pas-
sou a constituir a quitação de uma obrigação por parte da companhia,
cujo cumprimento os acionistas têm o direito de exigir, desde que,
conforme referido, a sociedade apresente lucros no exercício sociaP.
O dividendo obrigatório a que tem direito ao acionista, na hipóte-
se de se verificar lucro no exercício, encontra-se previsto no artigo
202 4 da Lei das S.A.

2 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, Do Direito do acionista ao dividen-


do. São Paulo: Editora Obelisco, 1969. p 312.
3 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das SIA.
v. l. Rio de Janeiro, Renovar: 1996. p.SOO
4 Nota do Autor: O art. 202 § 2° da Lei das S.A. teve sua redação levemente alterada
pela Lei n° 10.303 de 31.10.200, passando a vigorar da seguinte forma:
"Art. 202. Os acionistas têm direito de receber como dividendo obrigatório, em cada
exercício, a parcela dos lucros estabelecida no estatuto ou, se este for omisso, a impor-
tância determinada de acordo com as seguintes normas:
(. . .)
§ 2Q Quando o estatuto for omisso e a assembléia-geral deliberar alterá-lo para intro-

273
Este dispositivo não apenas consagra a obrigatoriedade de distri-
buição de dividendos, como também garante à companhia liberdade
quanto à fixação estatutária do dividendo mínimo obrigatório.
Com efeito, a Lei societária permite que a companhia fixe, livre-
mente, em seu estatuto, o dividendo mínimo a ser distribuído anual-
mente aos acionistas, desde que o faça com "precisão e minúcia" e não
sujeite a determinação do seu valor aos administradores ou aos acio-
nistas controladores.
No caso de omissão estatutária sobre a matéria, terão os acionistas
direito a recebimento do dividendo obrigatório, que, nessa hipótese,
será equivalente a cinqüenta por cento do lucro líquido ajustado nos
termos do artigo 202 da Lei das S.A.

B-ANATUREZADOS DIVIDENDOS INTERCALARES


\. A Lei no 6.404/76, em seu artigo 204, além de reafirmar a neces-
sidade da realização de balanço para a distribuição de dividendos -
obrigação existente desde o regime legal anterior-, consagrou, ex-
pressamente, a possibilidade de distribuição de dividendos em perio-
dicidade inferior a seis meses, com base nos balanços levantados nos
respectivos períodos, além de admitir a distribuição de resultados
éom base em lucros regularmente apurados em exercícios anteriores.
; Embora a Lei das S.A., na rubrica do artigo 204, mencione apenas
os dividendos intermediários, entende-se que tal dispositivo refere-se
também aos denominados dividendos intercalares.
Os dividendos intermediários e os dividendos intercalares pos-
suem vários pontos em comum, mas não se confundem, como assinala
Modesto Carvalhosa, para quem 5:

"(. .. .) dividendos intermediários são apenas aqueles que se pagam


num exercício por conta de lucros acumulados no exercício anterior,
seja englobadamente, seja o correspondente apenas ao último semestre
do mesmo. Referem-se a balanços já aprovados pela assembléia geral.
Já os dividendos distribuídos por conta de balanços levantados
num exercício, ainda que pagos no exercício seguinte, porém, an-

duzir norma sobre a matéria, o dividendo obrigatório não poderá ser inferior a 2 5%
{vinte e cinco por cento) do lucro líquido ajustado nos termos do inciso I deste artigo."
5 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São
Paulo: Saraiva, 1997. v. 3. p. 712.

274
tes da aprovação das demonstrações pela assembléia geral, cha-
mam-se intercalares." (grifamos)

A diferença fundamental, portanto, entre os dividendos interme-


diários e os intercalares é que, no primeiro caso, existe prévia aprova-
ção do balanço pela assembléia geral, enquanto, no segundo, tal apro-
vação prévia não é exigida.
Na hipótese dos dividendos intercalares, verifica-se a derrogação do
princípio societário, segundo o qual os dividendos somente poderão ser
distribuídos após a aprovação do balanço pela Assembléia Geral.
Como característica comum a tais institutos pode ser apontado o
fato de ambos - os dividendos intermediários e os intercalares -
necessitarem de previsão expressa no estatuto para que sejam distri-
buídos, sendo a competência para tanto, nas duas situações, reserva-
da, privativamente, aos órgãos da administração.
Vale dizer, o estatuto deverá autorizar, expressamente, que os ór-
gãos da administração da sociedade distribuam dividendos intermediá-
rios ou intercalares, devendo haver, ainda, norma estatutária regulando
as épocas em que deverão ser levantados os respectivos balanços.
A natureza jurídica dos dividendos intermediários ou intercalares
vem sendo discutida pelos doutrinadores, que sustentam não consisti-
rem eles adiantamentos, nem dividendos provisórios.
Neste sentido, Modesto Carvalhosa esclarece que 6 :

"Os dividendos intercalares não têm caráter provisório, tampouco de


adiantamento. São distribuídos definitivamente para todos os efeitos,
inclusive para os previstos no art. 201. Assim, v.g., não devem ser
devolvidos se corresponderem a um semestre a que se seguiu
semestre com prejuízo". (grifamos)

Tal opinião é partilhada por Egberto Lacerda Teixeira e José Ale-


xandre Tavares Guerreiro, in verbis 7 :

"Cumpre assinalar que os dividendos intermediários previstos no ar-


tigo 202 não devem ser considerados adiantados, por antecipa-
ção àqueles que serão pagos ao cabo do exercício. O citado dispo-

6 MODESTO CARVALHOSA. Op. cit. vol. 3, p. 717.


7 EGBERTO LACERDA TEIXEIRAeJOSÉALEXANDRE TAVARES GUERREI-
RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. São Paulo: Ed. José Bushatsky,
1979.v. 2.p. 602-603.

275
sitivo legal refere-se a dividendos à conta do lucro apurado no balanço
semestral. Para nós, é quanto basta para definir a natureza do divi-
dendo intermediário. Decorre este do semestre, o qual, embora sendo
um resultado parcial do exercício, é, em si mesmo, lucro disponível,
real e tangível. Não está sujeito a confirmação no balanço final.
Ao contrário, ao fim do semestre, é uma riqueza completamente ad-
quirida pela empresa." {grifamos)

Ou seja, o dividendo intermediário e o dividendo intercalar não


constituem mera antecipação do dividendo anual; ao contrário, uma
vez distribuídos, tornam-se definitivos ou irrevogáveis, não estando
sujeitos à qualquer confirmação no balanço anual levantado ao final do
exercício 8 .
Uma outra característica dos dividendos intermediários e interca-
lares consiste no fato de serem eles mera faculdade atribuída pelo
estatuto social à administração da companhia, que pode ou não delibe-
rar a sua distribuição.
Isto significa que os órgãos da administração, podem, a seu exclu-
sivo critério, distribuir os dividendos intermediários ou intercalares.
Trata-se, portanto, de um ato discricionário da administração da com-
panhia.
Ou seja, cabe aos administradores da sociedade avaliar, em cada
caso específico, a oportunidade e a conveniência de distribuírem os
referidos dividendos, ao contrário dos dividendos previstos no artigo
202 da Lei no 6.404/76, que são obrigatórios.
Os dividendos intercalares ou intermediários serão distribuídos
quando a administração da sociedade, a seu exclusivo critério, enten-
der conveniente. É o que assinala Modesto Carvalhosa 9 :

"A distribuição de dividendos intercalares ou intermediários é da


competência dos administradores.
{... )
Daí decorre que os dividendos apurados em balanço levantado no
exercício {intercalares) poderão ser distribuídos - à vontade dos
administradores - antes da aprovação pela assembléia geral das
respectivas demonstrações financeiras. " (grifamos)

s Esta também é a opinião de LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, op. cit.
p. 49.
9 MODESTO CARVALHOSA. Op. cit., v. 3, p. 714.

276
Dessa forma, não podem os acionistas exigir a distribuição dos
dividendos intercalares ou intermediários, sem que dita distribuição
seja deliberada pelos órgãos da administração da companhia.
O fato de o estatuto conter uma autorização genérica para a distri-
buição de dividendos intermediários ou intercalares não os torna exi-
gíveis. Trata-se, como assinalado, não de uma obrigação, mas de mera
faculdade dos órgãos da administração.

C- O PRAZO PARA O PAGAMENTO DOS DIVIDENDOS


PREVISTO NO ARTIGO 205, § 3°, DA LEI N° 6.404/76

O § 3°, do artigo 205 da Lei das S.A. fixa o prazo máximo para a
efetivação da distribuição dos dividendos declarados na Assembléia
Geral Ordinária, nos seguintes termos:

"Art. 205 - (. ..)


§ 3° - O dividendo deverá ser pago, salvo deliberação em contrário
da assembléia geral, no prazo de sessenta dias da data em que for
declarado e, em qualquer caso, dentro do exercício social."

Como se verifica, o dispositivo transcrito pode ser dividido em


duas partes, visto que contém duas normas de natureza distintas.
A primeira parte confere à Assembléia Geral competência para
deliberar sobre o prazo de pagamento do dividendo, sendo que, na
ausência de deliberação assemblear, o pagamento deve ser efetivado
em 60 (sessenta) dias.
Assim, a Assembléia Geral Ordinária tem discricionariedade para,
em cada exercício social, estabelecer o prazo que entender convenien-
te para o início do pagamento dos dividendos por ela declarados.
A data determinada pela Assembléia Geral Ordinária é de funda-
mental relevância, pois estabelece o momento a partir do qual os
dividendos já aprovados poderão ser cobrados pelo acionista.
Após o término do prazo fixado pela Assembléia Geral, o acionista
fica legitimado a ajuizar ação de cobrança contra a Companhia para
receber os dividendos a ele devidos.
A segunda parte do dispositivo em tela, por sua vez, restringe os
poderes conferidos à Assembléia para determinar o termo final para o
pagamento dos dividendos.
De acordo com a Lei Societária, a distribuição de dividendos não
pode, em hipótese alguma, ser fixada para data posterior ao término
do exercício social.

277
Em vista disso, a Lei das S.A. confere ao acionista o direito de
exigir que o dividendo, em qualquer caso, seja pago, no máximo, até o
término do exercício social em que foi declarado.

D-A POSSIBILIDADE DE O CONSELHO DE


ADMINISTRAÇÃO DELIBERAR A DILAÇÃO DO PRAZO DE
PAGAMENTO DOS DIVIDENDOS INTERCALARES

A análise da possibilidade de o Conselho de Administração delibe-


rar a dilação do prazo de pagamento dos dividendos intercalares pres-
supõe a verificação se o disposto no artigo 205, § 3°, primeira parte,
constitui norma supletiva ou cogente.
Normas supletivas ou permissivas são aquelas presididas pelos
princípios da autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa. Tais
normas consagram o direito de os particulares estabelecerem os prin-
cípios que devem regulamentar as relações entre eles estatuídas, so-
mente sendo aplicáveis na ausência de declaração de vontade dos in-
teressados.
Por outro lado, as leis cogentes ou imperativas são as que se sobre-
põem à vontade individual das partes, impondo preceitos que devem
ser obrigatoriamente cumpridos por todos.
Ao estabelecer que o dividendo deve ser pago em 60 (sessenta)
dias, salvo se houver deliberação em contrário da Assembléia Geral, a
Lei das S.A. não está impondo qualquer conduta, mas apenas estabe-
lecendo a regra aplicável na ausência de deliberação assemblear sobre
a matéria.
Assim, a regra contida na primeira parte do artigo 205, §3°, da Lei
no 6.404/76 possui evidente natureza supletiva, sendo perfeitamente
legítimo que a Assembléia Geral delibere pagar os dividendos em
prazo superior aos 60 (sessenta) dias, desde que não ultrapasse o tér-
mino do exercício social. 10
Da mesma forma, caso se entenda que a norma prevista no artigo
205, § 3°, da Lei das S.A. aplica-se à distribuição de dividendos inter-
calares, pode o Conselho de Administração dispor sobre o prazo do
pagamento dos dividendos por ele aprovados, apesar de o dispositivo
legal em questão referir-se apenas à Assembléia Geral.

10 Este também é o entendimento de MODESTO CARVALHOSA, op. cit., vol. 3,


p. 723.

278
Isto porque, assim como a Assembléia Geral possui competência
privativa para deliberar sobre a distribuição dos dividendos anuais, o
Conselho de Administração é o único órgão competente para aprovar
a distribuição de dividendos intercalares, conforme estabelece o arti-
go 204 da Lei das S.A.
Ademais, como já mencionado, a distribuição do dividendo anual
é obrigatória, constituindo um direito essencial do acionista, ao passo
que o dividendo intercalar é meramente facultativo, estando a decisão
sobre a conveniência de seu pagamento inserida no âmbito do poder
discricionário da administração.
Ora, se, ao tratar do dividendo obrigatório, a Lei das S.A. facultou
ao órgão competente a postergação da data de pagamento, não faria
sentido que a mesma Lei fixasse um prazo improrrogável para o paga-
mento da modalidade de dividendo cuja distribuição é de competên-
cia discricionária da administração.
Portanto, ainda que eventualmente se entenda que a regra previs-
ta na primeira parte do artigo 205, § 3°, da Lei das S.A. é aplicável à
distribuição de dividendos intercalares, pode o Conselho de Adminis-
tração postergar o pagamento dos dividendos para além dos 60 (ses-
senta) dias previstos no referido dispositivo.

E- AS CONSEQÜÊNCIAS DA NÃO OBSERVÂNCIA DO


PRAZO ESTABELECIDO NO ARTIGO 205, § 3°, DA LEI No
6.404/76

Entendendo-se que a regra estabelecida na primeira parte do§ 3°,


do artigo 205 da Lei n° 6.404/76 aplica-se à distribuição de dividen-
dos intercalares, na hipótese de o Conselho de Administração não
deliberar em sentido contrário, os dividendos devem ser pagos no
prazo de 60 (sessenta) dias da data da aprovação de sua distribuição.
Em função da ausência de deliberação do órgão competente, a
regra supletiva adquire caráter cogente, visto que o atendimento ao
preceito nela enunciado passa a ser obrigatório para as partes.
Assim, a determinação das conseqüências do não pagamento dos
dividendos intercalares no prazo de 60 (sessenta) dias a partir da data
em que sua distribuição foi aprovada pelo Conselho de Administração
pressupõe a análise dos efeitos do não cumprimento ao estatuído em
uma norma cogente.
Neste sentido, vale lembrar que, na aplicação das regras cogentes
não se indaga se o indivíduo as aceita ou não; elas se tornam obrigató-

279
rias por força própria, uma vez que são consideradas necessárias ao
equilíbrio social, à manutenção da ordem pública e à segurança da
sociedade.
Dessa forma, tais regras, quase sempre, prescrevem uma sanção a
ser imposta ao particular, em caso de infração ou descumprimento de
seus preceitos, podendo ser classificadas em:
a) leis perfeitas, quando impõem como sanção, em caso de trans-
gressão, a decretação da nulidade dos atos praticados;
b) leis mais que perfeitas, que são as que, além de declararem nulo
o ato praticado com infração de seus preceitos, especificam uma pena
ao infrator;
c) leis menos que perfeitas, as que não decretam a nulidade do
ato, mas prescrevem uma sanção, relativamente à sua possível anula-
ção, que deixa a critério da parte lesada, desde que a obrigação assu-
mida ainda não se tenha cumprido; e
d) leis imperfeitas, que consistem naquelas que não impõem qual-
quer tipo de penalidade ao infrator, nem consideram nulo o ato prati-
cado.
Como se verifica, existem normas que, apesar de sua natureza
impositiva, são vazias de sanção, visto que o seu descumprimento não
implica a aplicação de qualquer penalidade e tampouco enseja a nuli-
dade do ato violador.
De qualquer modo, saliente-se que a infração a estas normas pode
ensejar determinadas conseqüências jurídicas, as quais, todavia, não
têm o caráter de sanção.
A respeito, lembre-se que a necessidade de se fixar a data do
pagamento dos dividendos decorre do fato de ela marcar o momento
a partir do qual os acionistas podem passar a cobrar os dividendos
anteriormente aprovados.
Assim, vencido o prazo de 60 (sessenta) dias sem que os dividen-
dos sejam pagos, o acionista fica autorizado a ajuizar ação de cobrança
contra a companhia, a fim de receber os valores a ele devidos.
Esta possibilidade de cobrança judicial, como é evidente, não
constitui penalidade, mas apenas o instrumento pelo qual o ordena-
mento jurídico assegura aos acionistas a possibilidade de exigir o cum-
primento da norma que, em função da ausência de deliberação do
órgão competente, tornou-se cogente.
Ressalte-se, ainda, que o direito de cobrar os dividendos declara-
dos devidos pela Companhia possui natureza patrimonial, o que signi-
fica que seu titular pode dele dispor.

280
De fato, o acionista, na condição de titular do direito, pode deci-
dir não cobrar os dividendos declarados, conforme, expressamente,
reconhece a própria Lei Societária, ao estabelecer, em seu artigo 287,
inciso 11, alínea "a", que prescreve em três anos a ação do acionista
para haver os dividendos postos à sua disposição, o que significa que os
dividendos não reclamados no prazo legal voltam a pertencer à socie-
dade.
Dessa forma, a companhia somente pode ser compelida a pagá-los
se e quando o acionista demandar.
Em outras palavras, não pode o titular do direito ao dividendo ser
substituído, na prerrogativa de exigir o cumprimento de tal direito,
por quem quer que seja.
Ora, a aplicação de penalidade pela não observância do prazo pre-
visto no artigo 205, § 3°, primeira parte, da Lei das S.A. constituiria
forma indireta de se obrigar a Companhia a pagar os dividendos devi-
dos aos seus acionistas.
Assim, não poderia a CVM aplicar penalidade em função do des-
cumprimento do prazo em tela, visto que, nessa hipótese, estaria se
substituindo ao acionista no direito de exigir o pagamento dos divi-
dendos a ele devidos.
Em vista disso, a Lei Societária não cominou qualquer penalidade
pelo não pagamento dos dividendos no prazo previsto na primeira
parte do artigo 205, § 3°, na hipótese de não haver deliberação em
contrário do órgão competente.
Portanto, conclui-se que o artigo 205, § 3°, da Lei das S.A. consti-
tui norma despida de sanção, visto que não confere à CVM a possibi-
lidade de aplicar penalidades às sociedades que deixarem de observar
o prazo previsto para o pagamento de dividendos declarados pela As-
sembléia Geral ou pelo Conselho de Administração.
A única conseqüência advinda do não cumprimento de tal prazo,
repita-se, é a possibilidade de cada acionista, de forma individual,
cobrar judicialmente os dividendos a que tem direito.

F- O PRAZO MÁXIMO PARA O PAGAMENTO DOS


DIVIDENDOS INTERCALARES

Como referido, a primeira parte do disposto no artigo 205, § 3o da


Lei das S.A. constitui norma dispositiva, na medida em que é faculta-
do ao órgão competente estabelecer prazo superior a 60 (sessenta)
dias para o pagamento dos dividendos deliberados.

281
Decorrido tal prazo, qualquer que seja ele, poderá o acionista exi-
gir o seu pagamento.
A segunda parte do dispositivo, no entanto, possui natureza diver-
sa, consistindo norma cogente, conforme se verifica de sua redação.
Confira-se:

"Art. 205 (. ..)


§ 3°- O dividendo deverá ser pago, salvo deliberação em contrário da
assembléia geral, no prazo de sessenta dias da data em que for decla-
rado e, em qualquer caso, dentro do exercício social." (grifamos)

Fixado este conceito, resta examinar se tal regra é aplicável aos


dividendos intercalares.
Embora a distribuição de dividendos intercalares seja mera facul-
dade dos órgãos de administração da companhia, no momento em que
são declarados, passam a ser exigíveis pelos acionistas.
Com efeito, os órgãos da administração da sociedade ao delibera-
rem distribuir dividendos intercalares fazem surgir para a companhia
a obrigação de pagá-los aos acionistas, sendo que esta declaração vin-
cula a sociedade ao seu cumprimento.
Da mesma forma, ao ser deliberada a distribuição de dividendos
intercalares, possuem os acionistas o direito subjetivo de exigir o seu
pagamento.
Assim, uma vez vencido o prazo estabelecido pelos órgãos de ad-
ministração da companhia para o seu pag3lmento, podem os acionistas
demandar em juízo o cumprimento de tál obrigação.
Ora, não basta que se confiram direitos aos acionistas; é necessário
que a Lei Societária dote os mesmos de mecanismos de garantia e de
defesa dos direitos que lhes foram atribuídos.
Conforme vem acentuando a moderna teoria jurídica, tão ou mais
importante do que conferir direitos é assegurar aos seus destinatários
meios efetivos e eficazes de alcançá-los. Nesse sentido, são crescente-
mente adotados pelo sistema jurídico os chamados "direitos-garan-
tias" ou "meios de defesa dos direitos".
Na hipótese dos dividendos, tendo em vista o princípio da intan-
gibilidade do direito de participação no lucro, estabelece a Lei Socie-
tária regras com o objetivo de garantir a integridade do direito do
acionista ao dividendo.
Dentre estas regras, encontram-se as previstas no artigo 205, § 3°,
da Lei das S.A., já aludidas neste estudo, que consistem na determina-
ção do pagamento dos dividendos, em princípio, em 60 (sessenta) dias
após sua deliberação e, sempre, até o término do exercício social.

282
Tais normas garantem a integridade do direito ao dividendo, já
que impedem a postergação indefinida de seu pagamento.
Com efeito, visando a tornar efetivo o direito aos dividendos,
estabeleceu a Lei das S.A. que, "em qualquer caso", deverão ser os
mesmos pagos até o final do exercício social.
Não tivesse a Lei societária determinado um termo para o paga-
mento de quaisquer espécies de dividendos- quer sejam eles obriga-
tórios ou intermediários ou intercalares -tal direito ao dividendo não
seria efetivo.
De fato, o prazo - até o término do exercício social - constitui
a forma de assegurar ao titular de determinado direito- no caso, de
receber os dividendos intercalares declarados pelo Conselho de Ad-
ministração- o seu efetivo exercício.
Desse modo, é aplicável a norma contida na parte final do artigo
205, § 3° da Lei das S.A. aos dividendos intercalares, devendo ser
os mesmos pagos até o final do exercício social em que forem decla-
rados.

G -AS RESPOSTAS AOS QUESITOS

Diante das considerações acima expendidas, passamos a respon-


der os quesitos formulados, à medida que forem transcritos.

"A - Aplica-se aos dividendos e juros sobre o capital próprio


deliberados pelo Conselho de Administração da COMPANHIA
BETA o prazo de 60 (sessenta) dias para início de pagamento,
previsto no artigo 205, § 3°, da Lei no 6.404!76?"

Conforme acima referido, o dividendo obrigatório, previsto no


artigo 202 da Lei no 6.404/76, constitui um direito do acionista, que,
desde que a companhia apresente lucros no exercício social, pode
exigir que parte desses lucros seja distribuído a título de dividendos.
Para que o direito ao dividendo obrigatório não pudesse ser esva-
ziado em prejuízo dos acionistas, a Lei das S.A., em seu artigo 205, §
3°, primeira parte, estabeleceu que, se a Assembléia Geral nada dispu-
sesse, o dividendo obrigatório deveria ser pago em até 60 (sessenta)
dias da data em que foi declarado.
Por outro lado, a distribuição de dividendos intercalares constitui
mera faculdade atribuída pelo estatuto social à administração da com-
panhia.

283
Ou seja, a decisão sobre a conveniência de seu pagamento insere-
se no âmbito do poder discricionário da administração.
Tratando-se, pois, de dividendos facultativos, a Lei não assegura o
seu pagamento em até 60 (sessenta) dias, visto que cabe aos adminis-
tradores da sociedade avaliar, em cada caso específico, a data mais
oportuna e conveniente para que seja efetivado o pagamento dos refe-
ridos dividendos.
Em vista disso, não se aplica aos dividendos intercalares aprova-
dos, discricionariamente, pelo Conselho de Administração, o prazo
previsto na primeira parte do § 3°, do artigo 205 da Lei no 6.404/76.

"B- Caso se entenda que a regra prevista na primeira parte do


artigo 205, § 3°, da Lei das S.A. aplica-se à distribuição de divi-
dendos intercalares, estaria a COMPANHIA BETA obrigada a
pagar os referidos dividendos no prazo de 60 (sessenta) dias da
data em que foram aprovados pelo seu Conselho de Administra-
ção?"

Ainda que eventualmente se entendesse que a regra prevista na


primeira parte do artigo 205, § 3°, da Lei das S.A. aplicar-se-ia à
distribuição de dividendos intercalares, não se poderia negar ao Con-
selho de Administração a competência para fixar o pagamento dos
dividendos para data posterior aos 60 (sessenta) dias previstos no
referido dispositivo.
De fato, se Lei Societária regulou o pagamento do dividendo obri-
gatório de forma apenas supletiva, facultando ao órgão competente-
a Assembléia Geral- postergar a data de pagamento, não faria senti-
do que a mesma Lei fixasse um prazo improrrogável para o pagamento
da modalidade de dividendo cuja distribuição é facultativa.
Na presente hipótese, o Conselho de Administração da COMPA-
NHIA BETA deliberou que "a data do pagamento de dividendos e dos
juros sobre o capital próprio será oportunamente divulgada através de
Aviso aos Acionistas".
Como se verifica, o Conselho de Administração entendeu que não
seria oportuno para a Companhia que o pagamento dos dividendos
intercalares fosse realizado imediatamente após a aprovação de sua
distribuição.
Assim, apesar de não ter fixado previamente a data em que os
dividendos intercalares seriam pagos, o Conselho de Administração
da COMPANHIA BETA excepcionou a regra que determina o paga-
mento em até 60 (sessenta) dias.

284
Diante disso, só se pode entender que, no caso presente, houve
deliberação do órgão competente em sentido contrário da norma pre-
vista na primeira parte do § 3° do artigo 205 da Lei no 6.404/76.
Assim, sendo a regra em questão meramente supletiva, está afas-
tada a sua aplicação aos dividendos intercalares aprovados pelo Conse-
lho de Administração da COMPANHIA BETA, podendo os mesmos
serem pagos em qualquer momento que o Conselho de Administração
entender conveniente, desde que, conforme adiante explicitado, não
ultrapasse o encerramento do exercício social.

"C - Caso se entenda aplicável à presente situação o prazo de


60 (sessenta) dias para o pagamento dos dividendos e juros so-
bre o capital próprio aprovados na Reunião de 29!06!2001, esta-
riam os administradores da COMPANHIA BETA sujeitos à algu-
ma penalidade pela não observância do referido prazo?"

Na hipótese de ser entendido que a deliberação contida na ata da


Reunião do Conselho de Administração da COMPANHIA BETA não
teria logrado afastar a incidência da regra prevista na primeira parte do
artigo 205, § 3°, da Lei das S.A., tal regra adquiriria natureza cogente,
visto que o atendimento ao preceito nela enunciado passaria a ser
obrigatório para as partes.
Assim, a COMPANHIA BETA estaria obrigada a pagar os dividen-
dos intercalares em 60 (sessenta) dias da data em que foram aprova-
dos pelo Conselho de Administração.
No entanto, nesta situação, a única conseqüência do não pagamen-
to dos referidos dividendos no prazo acima mencionado seria a possi-
bilidade de o acionista ajuizar ação de cobrança contra a companhia, a
fim de receber os valores a ele devidos.
Com efeito, a Lei Societária não cominou qualquer penalidade
pelo não pagamento dos dividendos no prazo previsto na primeira
parte do artigo 205, § 3°.
Isto porque o direito de cobrar os dividendos declarados pela
Companhia possui natureza patrimonial e disponível, de modo que
não pode o acionista ser substituído, na prerrogativa de exigir o cum-
primento de tal direito, por quem quer que seja.
Ora, caso a CVM pudesse aplicar penalidade aos administradores
em função da não observância do prazo previsto no artigo 205, § 3°,
primeira parte, da Lei das S.A., estaria, de forma indireta, obrigando a
Companhia a pagar os dividendos devidos aos seus acionistas e, conse-
qüentemente, substituindo-os no direito de cobrar os dividendos a ele
devidos.

285
Portanto, conclui-se que o artigo 205, § 3°, da Lei das S.A. consti-
tui norma despida de sanção, visto que não confere à CVM a possibi-
lidade de aplicar penalidades aos administradores das sociedades que
não pagarem os dividendos declarados pela Assembléia Geral ou pelo
Conselho de Administração no prazo previsto no referido dispositivo.
Dessa forma, ainda que fosse aplicável à presente situação o prazo
de 60 (sessenta) dias para o pagamento dos dividendos e juros sobre o
capital próprio aprovados na Reunião de 29/06/2001, os administra-
dores da COMPANHIA BETA não estariam sujeitos à imposição de
qualquer penalidade pela não observância do referido prazo.
A única conseqüência advinda do não cumprimento de tal prazo,
repita-se, é a possibilidade de cada acionista, de forma individual,
cobrar judicialmente os dividendos a que tem direito.

"D- Qual o prazo máximo para que seja efetuado o pagamento


aos acionistas dos aludidos dividendos e juros sobre o capital
próprio?"

Como referido, a segunda parte do artigo 205, § 3° da Lei das S.A.


constitui norma cogente, estabelecendo a Lei que "em qualquer caso"
deverão ser os mesmos pagos até o final do exercício social.
Na hipótese ora em análise, uma vez deliberada a distribuição dos
dividendos intercalares pelos órgãos de administração da companhia,
o pagamento dos mesmos torna-se obrigatório.
Constituído tal direito ao recebimento dos dividendos intercala-
res, é preciso assegurar o seu exercício, mediante o estabelecimento
de um prazo para que seja efetuado o seu pagamento sob pena de os
acionistas virem frustrado o seu direito.
Assim, a obrigatoriedade de serem os dividendos intercalares pa-
gos até o término do exercício social constitui a forma de assegurar ao
titular deste direito o seu efetivo exercício.
Desse modo, é aplicável a norma contida na parte final do artigo
205, § 3° da Lei das S.A. aos dividendos intercalares, devendo ser os
mesmos pagos até o final do exercício social em que forem declarados.
Ressalte-se, por fim, que a fixação da data de pagamento de dividen-
dos é de fundamental relevância, pois estabelece o momento a partir do
qual os dividendos já aprovados poderão ser cobrados pelo acionista.
Assim, é recomendável que o Conselho de Administração informe
ao acionista, logo que possível, quando será efetuado o pagamento dos
dividendos intercalares deliberados.
Foi o nosso Parecer, em outubro de 2001.

286
DIVIDENDOS. DISTRIBUIÇÃO COM BASE NO
SALDO EXCEDENTE DA RESERVA LEGAL APÓS
A REDUÇÃO DO CAPITAL SOCIAL

I - DOS FATOS E DA CONSULTA

Durante o exercício de 2002, foi aprovada a redução do capital


social da Companhia Alfa, no montante de, aproximadamente, R$ 1,2
bilhão, mediante a restituição aos acionistas de parte do valor de suas
ações.
Após a realização de tal operação, o capital social da Companhia
Alfa passou a ser de R$ 800 milhões, enquanto a reserva legal conti-
nuou a apresentar o montante de R$ 321 milhões.
Ou seja, em virtude da redução de capital anteriormente aprova-
da, a reserva legal passou a representar 40% (quarenta por cento) do
capital social.
A Companhia Alfa pretende distribuir dividendos no valor total
de, pelo menos, R$ 50 milhões, com o objetivo de quitar o contrato de
mútuo celebrado com a sua controladora, Companhia Beta, sendo que
o pagamento devido aos acionistas minoritários far-se-á em moeda
corrente.
Diante disso, consulta-nos a Companhia Alfa se os valores conti-
dos na reserva legal que, em decorrência da redução de capital, ultra-
passem o limite máximo previsto no artigo 193 da Lei das S.A. podem
ser utilizados na distribuição de dividendos a seus acionistas.

11 -DO PARECER

Tendo em vista o desenvolvimento sistemático da matéria,


apresentaremos o presente Parecer com base na análise dos seguintes
tópicos:
a) dos fundos disponíveis para o pagamento de dividendos;
b) das finalidades e destinações da reserva legal;
c) do limite máximo ao valor da reserva legal;

287
d) da natureza do valor excedente ao limite máximo da reserva
legal;
e) conclusão.

A- DOS FUNDOS DISPONÍVEIS PARA O PAGAMENTO


DE DIVIDENDOS

A finalidade lucrativa é da essência das sociedades anônimas,


constituindo um de seus elementos caracterizadores, conforme se in-
fere do artigo 2° da Lei n° 6.404, de 31 de dezembro de 1976, in
verbís:
Apesar de constituir um fim essencial da companhia, a distribui-
ção de lucros aos acionistas não pode ser feita de forma indiscrimina-
da, sob pena de prejudicar os terceiros que transacionem com a socie-
dade.
Desse modo, a fim de temperar o caráter fundamental da transfe-
rência dos lucros sociais para os acionistas, a Lei das S.A. consagrou o
princípio da intangibilidade do capital social, que impede que os
dividendos sejam pagos em prejuízo dos credores da companhia.
Nas sociedades anônimas, o capital social inscrito no estatuto
constitui, tradicionalmente, a garantia dos credores da sociedade, re-
presentando o montante de patrimônio que os acionistas são obriga-
dos a reter na companhia, com o objetivo de assegurar o pagamento
das dívidas sociais.
Neste sentido, a Lei das S.A. adotou normas rígidas para garantir
a intangibilidade do capital social, evitando que sejam aprovadas
distribuições de dividendos aos acionistas em prejuízo do capital
social.
A propósito, vale lembrar que, em decorrência do princípio da
intangibilidade do capital social, a companhia não poderá pagar divi-
dendos enquanto apresentar prejuízos acumulados de exercícios ante-
riores. Nesta hipótese, os lucros auferidos pela sociedade, ao invés de
serem distribuídos aos acionistas, deverão ser utilizados para absorver
os prejuízos acumulados.
Além disso, também a fim de assegurar a integridade do capital
social, preservando os interesses dos credores, a lei societária enuncia
taxativamente os únicos valores que podem servir de suporte ao
pagamento de dividendos, quais sejam, lucros líquidos do exercício,
lucros acumulados, reservas de lucros e, excepcionalmente, reservas
de capital.

288
Neste sentido, o artigo 201 da Lei no 6.404/1976 dispõe que:

"Art. 201 -A companhia somente pode pagar dividendos à conta de


lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de
lucros; e a conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais
de que trata o § 5° do art. 17." (grifamos)

Lucros acumulados são usualmente definidos como valores que a


sociedade decidiu reter em seu patrimônio, sem destiná-los a uma
finalidade previamente determinada.
As reservas, por sua vez, são formadas por recursos destinados a
uma finalidade específica, estabelecida em lei ou no estatuto social. A
Lei no 6.404/1976 classificou as reservas em três diferentes espécies,
quais sejam, as de lucro, de capital, e a de reavaliação.
A distinção entre as reservas de lucro e de capital é de fundamen-
tal relevância, pois, de acordo com a espécie de reserva de que se
trate, a Companhia terá maior ou menor liberdade para aprovar a sua
distribuição aos acionistas.
As reservas de capital, em regra, não podem ser utilizadas para o
pagamento de dividendos, visto que elas se originam de recursos rece-
bidos pela Companhia e que não transitam por sua conta de Resulta-
dos, conforme se verifica do artigo 182, § 1°, da Lei das S.A., que
enumera as contas que podem dar origem às tais reservas. 1
Assim, as reservas de capital somente podem ser distribuídas aos
sócios em caráter excepcional, na hipótese de os demais fundos legal-
mente previstos (lucros do exercício, lucros acumulados e reservas de
lucros) não serem suficientes para cobrir o valor do dividendo devido
às ações preferenciais com prioridade na distribuição de dividendos
cumulativos.
Por outro lado, as reservas de lucros são originadas de resultados
positivos auferidos em exercícios anteriores que, por determinação
legal ou estatutária ou, ainda, por decisão da Assembléia Geral, não
foram distribuídos aos acionistas, ficando retidos no patrimônio da
Companhia para atender a uma finalidade específica.
Dessa forma, as reservas de lucros são formadas por fundos cuja
destinação natural é a distribuição aos acionistas, a qual deverá ser
efetivada tão logo desapareça a finalidade que motivou a constituição
da reserva.

1 SERGIO DE IUCÍBUS, ELISEU MARTINS e ERNESTO RUBENS GELBCKE.


Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações. São Paulo: Atlas, 1995. pg. 420.

289
Vale dizer, em geral, as reservas de lucros podem ser distribuídas
como dividendos, somente sendo vedada a sua destinação aos acionis-
tas em circunstâncias excepcionais, caso haja regra legal expressa nes-
te sentido ou caso a companhia apresente prejuízos acumulados de
exercícios anteriores. Nesta última hipótese, a reserva de lucros deve-
rá, primeiramente, absorver os prejuízos acumulados e, apenas após
tal absorção, é que o saldo remanescente poderá ser distribuído aos
acionistas.

B -DAS FINALIDADES E DESTINAÇÕES DA RESERVA


LEGAL

A Lei das S .A. prevê a existência de quatro diferentes reservas de


lucros, quais sejam, (i) a legal, (ii) a para contingências, (iii) a de lucros
a realizar e (iv) a de dividendo obrigatório diferido. Além disso, a lei
societária também permite que o estatuto social crie outras reservas
de lucros, observadas as condições estabelecidas em seu artigo 194.
As reservas de lucros são usualmente classificadas pela doutrina
como obrigatórias ou facultativas, conforme a sua constituição seja
imposta pela própria lei ou dependa de previsão estatutária ou de
deliberação da Assembléia Geral. 2
A reserva legal caracteriza-se como uma reserva de lucros de natu-
reza obrigatória, na medida em que sua constituição é expressamente
determinada pelo artigo 193 da Lei no 6.404/1976, in verbis:

"Art. 193- Do lucro líquido do exercício, 5% (cinco por cento) serão


aplicados, antes de qualquer outra destinação, na constituição da
reserva legal, que não excederá de 20% (vinte por cento) do capital
social.
§ 1° - A companhia poderá deixar de constituir a reserva legal no
exercício em que o saldo dessa reserva, acrescido do montante das
reservas de capital de que trata o § 1o do Art. 182, exceder de 3 0%
(trinta por cento) do capital social.
§ 2° -A reserva legal tem por fim assegurar a integridade do capital
somente poderá ser utilizada para compensar prejuízos ou aumentar o
capital."

2 CARLOS FULGÊNCIO DA CUNHA PEIXOTO. Sociedades por Ações. vol. 4.


São Paulo: Saraiva, 1972-73. p.l83.

290
Como se verifica, o dispositivo transcrito obriga que as Compa-
nhias, antes de qualquer outra destinação, transfiram 5% (cinco por
cento) do lucro líquido do exercício para a formação da reserva legal.
A finalidade de tal reserva, conforme expresso no § 2° do artigo
193 da Lei das S.A., é assegurar a integridade do capital social. Ou
seja, a reserva legal constitui um reforço do capital social, funcionando
como uma "margem de segurança", destinada a evitar que eventuais
perdas em exercícios posteriores tenham que ser necessariamente ab-
sorvidas pelo capital social, o que tornaria a garantia dos credores
extremamente vulnerável.
Neste sentido, José Luiz Bulhões Pedreira observa que 3:

"A função da reserva legal é assegurar a integridade do capital


social, evitando que a companhia distribua todos os lucros acumula-
dos e reservas de lucros e, portanto, reduza o patrimônio líquido ao
montante do capital social, pois, ocorrendo essa redução, qualquer
prejuízo em exercícios subseqüentes importará perda do capital
social. A reserva legal cria margem de segurança dentro da qual
a companhia pode sofrer prejuízo sem atingir o capital social."
(grifamos)

Em virtude de sua função de assegurar a intangibilidade da garan-


tia dos credores, não faria sentido que a reserva legal pudesse ser
revertida em favor da distribuição de dividendos aos acionistas.
Diante disso, a Lei das S.A. veda a utilização da reserva legal para
o pagamento de dividendos, determinando que ela somente pode ter
como destinação a compensação de prejuízos ou o aumento do pró-
prio capital social.
Portanto, a reserva legal constitui uma exceção ao princípio de
que as reservas de lucros podem ser distribuídas aos acionistas por
deliberação da Assembléia Geral, uma vez que a própria lei societária
expressamente proíbe a sua utilização para tal finalidade.

C- DO LIMITE MÁXIMO DO VALOR DA RESERVA LEGAL

O caput do artigo 193 da Lei das S.A. estipula um limite máximo

3 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. Finanças e Demonstrações Financeiras da


Companhia. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 429.

291
à constituição da reserva legal, a qual não pode ultrapassar 20% (vinte
por cento) do capital social.
A previsão legal do referido limite fundamenta-se na necessidade
de se proteger os acionistas minoritários contra a retenção indiscrimi-
nada de lucros, que poderia prejudicar o seu direito ao recebimento
de dividendos, conforme enfatizado por Fran Martins: 4

"De modo geral, em relação à companhia, a formação de reservas


somente apresenta vantagem pelo esteio e reforço que significam para
o capital.
Podem, contudo, servir de instrumentos de abusos contra a mino-
ria acionária e fuga à tributação de lucros.
O Decreto-lei n° 2.627!40 estabeleceu limitação à formação da cha-
mada reserva legal como, igualmente, às denominadas reservas espe-
ciais, exatamente com o sentido de evitar abusos e procurando tem-
perar o interesse da maioria pelo autofinanciamento que confli-
ta com o da minoria acionária pela percepção de maiores divi-
dendos." (grifamos)

No mesmo sentido, Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto lembra


que: 5

"Este dispositivo, sobre ter objetivo de assegurar a integridade do


capital e, conseqüentemente, garantir a sociedade, constituí, também,
ao limitar o valor das reservas, uma proteção à minoria.
(. ..)
É de todos conhecido e lembrado o modo por que a matéria sob a
sombra do Decreto n° 434, de 1891, conseguia assenhorar-se das
empresas prósperas, esbulhando as minorias ao privá-las de lu-
cros com a criação de fundos de reserva inúteis e excessivos. (. . .)
A lei atual procurou remediar este abuso. Desta maneira, posto tenha
instituído uma reserva e permitido a criação de outras, limitou o
quantum de todas." (grifamos)

A respeito, ressalte-se que, apesar da importância de se reforçar a


integridade do capital social, a finalidade precípua das sociedades anô-
nimas consiste na repartição de lucros entre os sócios.

4 FRAN MARTINS. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. vol. 2, Tomo II.
2 ed. Rio de Janeiro: Forense, I 984. p. 679/680.
s CARLOS FULGÊNCIO DA CUNHA PEIXOTO. op. cit., p. 182.

292
Assim, caso o montante da reserva legal pudesse ser indefinida-
mente aumentado, acabariam sendo retidos na sociedade valores que,
em verdade, deveriam ser utilizados para o pagamento de dividendos
aos sócios.
Em vista disso, o caput do artigo 193 da Lei no 6.404/1976 estabe-
leceu que a reserva legal não pode exceder a 20% (vinte por cento) do
capital social.
Ademais, o artigo 193, § 1°, da Lei das S.A. permite que a reserva
legal deixe de ser constituída nos exercícios em que o seu saldo, acres-
cido do montante das reservas de capital, exceder a 30% (trinta por
cento) do capital social.
Tal regra também tem por objetivo evitar a retenção injustificada
de lucros, na medida em que, como as reservas de capital já contri-
buem para reforçar a garantia dos credores, não se justifica a destina-
ção de parte dos lucros para a formação da reserva legal nas compa-
nhias em que as reservas de capital já representaram adequada prote-
ção aos credores.
Contudo, esta hipótese constitui mera faculdade da Companhia,
que pode ou não deixar de transferir parte de seus lucros para a reser-
va legal, de acordo com a conveniência de seus administradores e
acionistas controladores.
O caput do artigo 193 da Lei das S.A., ao contrário, constitui
norma de caráter impositivo, devendo o limite ali estabelecido ser
estritamente observado, pois, conforme referido, a constituição da
reserva legal em valor excessivo pode prejudicar o direito dos acionis-
tas ao recebimento do dividendo mínimo obrigatório assegurado pelo
artigo 202 da Lei no 6.404/76.
A propósito, Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre Tavares
Guerreiro ressaltam que: 6

"Estabeleceu-se, dessa forma, um limite à constituição da reserva, de


tal sorte que, atingidos os 20% (vinte por cento) do capital social, não
deve a sociedade prosseguir, deduzindo os 5% (cinco por cento) do
lucro líquido de cada exercício. Se o fizer, poderão os acionistas
impugnar a dedução que passa a prejudicar-lhe o montante a
que têm direito como dividendo obrigatório, nos termos do art.

6 EGBERTO LACERDATEIXEIRAeJOSÉALEXANDRE TAVARES GUERREI-


RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. vol. 2. São Paulo: Bushatsky,
1979. p. 572/573

293
202. (. .. ).Ultrapassado aquele limite, torna-se indevida a dedu-
ção, ainda que respaldada por decisão assemblear ou até mesmo por
eventual cláusula estatutária que pretenda aumentar o percentual da
reserva face ao capital social." (grifamos)

Portanto, tendo sido atingido o limite de 20% (vinte por cento) do


capital social, a sociedade fica impedida de destinar parte do lucro
líquido para a constituição da reserva legal. Caso não respeite tal limi-
te, a Companhia estará sujeita às reclamações de acionistas minoritá-
rios contra a retenção excessiva de lucros, em prejuízo de seu direito
ao dividendo.

D- DA NATUREZA DO VALOR EXCEDENTE AO LIMITE


MÁXIMO DA RESERVA LEGAL

Feitas tais considerações, cumpre analisar qual seria a natureza


jurídica do eventual excesso na reserva legal, acarretado pela operação
de redução do capital social.
Conforme referido, a reserva legal constitui uma das espécies de
reserva de lucros, visto que tem origem em lucros auferidos pela
Companhia e que nela ficaram retidos para assegurar a integridade do
capital social. Tal reserva somente pode ser utilizada para aumentar o
capital social ou para a absorção de prejuízos acumulados, sendo proi-
bida a sua distribuição aos acionistas, em virtude da vedação expressa
contida no artigo 193, § 2°, da lei societária.
No entanto, na medida em foi atingido o limite máximo que a Lei
das S .A. considerou necessário para reforçar a garantia dos credores
(20% do capital social), os valores transferidos para a reserva legal
deixam de estar vinculados às destinações previstas no referido artigo
193, § 2°.
Ou seja, tais valores passam a não estar sujeitos a nenhuma regra
que imponha a sua utilização para uma destinação previamente deter-
minada.
Dessa forma, o saldo excedente da reserva legal passa a constituir
uma reserva de lucros facultativa, cuja destinação pode ser livremente
decidida pela Assembléia Geral ou pelos órgãos de administração, se
assim autorizar o Estatuto Social.
Ora, conforme mencionado, as reservas de lucros, em regra, po-
dem ser distribuídas aos acionistas, somente sendo vedada a sua utili-
zação para esta finalidade se houver regra legal expressa neste sentido.

294
Logo, a companhia passa a ter liberdade para decidir sobre a desti-
nação a ser dada ao montante excedente da reserva legal, sendo per-
feitamente legítima a sua utilização para o pagamento de dividendos,
a não ser que a sociedade apresente prejuízos a absorver.
Vale lembrar que, no regime do Decreto Lei no 2.627/1940, a
regra que restringia o montante da reserva legal não tinha caráter
impositivo, mas apenas estabelecia que, uma vez atingido o limite nela
estabelecido, a Companhia tinha a faculdade de deixar de destinar
parcela de seu lucro líquido para a formação da reserva legal.
Com efeito, o artigo 130 do Decreto Lei no 2.627/1940 dispunha
que a "dedução deixará de ser obrigatória logo que o fundo de reser-
va atinja 20% (vinte por cento) do capital social" (grifamos).
Mesmo neste sistema, a doutrina concluiu que os valores transfe-
ridos para a reserva legal que ultrapassassem o limite de 20% (vinte
por cento) do capital social constituíam reservas disponíveis, que,
assim, poderiam ser utilizadas para o pagamento de dividendos, con-
forme se verifica da lição de Trajano de Miranda Valverde: 7

"Quando a reserva legal atinge 20% (vinte por cento) do capital so-
cial, a dedução deixa de ser obrigatória. Se os estatutos, entretanto,
determinam que a dedução continue, é manifesto que o excesso cons-
titui uma reserva suplementar, disponível, portanto." (grifamos)

Da mesma forma, Aloysio Lopes Pontes também entendeu que a


Assembléia Geral poderia livremente dispor sobre a destinação do
eventual o excesso ao limite da reserva legal: 8

"Atingido, pois, o limite de 20% do capital social, a dedução de 5%


dos lucros líquidos anuais para a constituição do fundo de reserva
deverá cessar.
Entretanto, se a assembléia quiser tornar ainda mais sólida a garan-
tia, poderá determinar, nos estatutos, que a constituição dessa reserva
prosseguirá; desde então, porém, como reserva facultativa, suple-
mentar e disponível, portanto.
(. .. )

7 TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE. Sociedades por Ações. vol. II. 3 ed .. Rio


de Janeiro: Forense, 1959. p. 394
8 ALOYSIO LOPES PONTES. Sociedades Anônimas. vol. I. 4 ed. Rio de Janerio:
Forense, 1957. p.89/90.

295
Constituindo, pois, o excedente da reserva de 20% dos lucros líquidos,
uma reserva estatutária, pode a assembléia dela dispor, conforme
determinarem os estatutos." (grifamos)

Ora, se na vigência do Decreto Lei no 2.627/1940 o valor exce-


dente ao limite de 20% do capital social já era considerado uma reser-
va facultativa e disponível, à qual a Assembléia Geral poderia conferir
outra destinação, tal entendimento aplica-se, com muito mais razão,
ao regime legal em vigor, no qual, em função do caráter impositivo do
artigo 193 da Lei no 6.404/1976, a Companhia está impedida de
transferir parcela adicional do lucro líquido para a constituição da
reserva legal, após esta ter atingido o limite de 20% (vinte por cento)
do capital social.
Assim, os valores constantes da reserva legal e que, em virtude de
operação de redução do capital, passam a exceder ao limite de 20%
(vinte por cento) do capital social tornam-se uma reserva de lucros
disponível, sobre a qual os acionistas podem livremente deliberar.
Aliás, Luiz Gastão Paes de Barros Leães expressamente menciona
que a operação de redução de capital implica a transformação da par-
cela excedente da reserva legal em uma reserva de lucros de caráter
disponíveP

"Nessas condições, à vista destas e de outras considerações, subscre-


vemos a tese de que a reserva legal, no direito brasileiro, não pode ser
aplicada para aumento de capital, nem pode ser tocada sob pretexto
algum, dada a sua essencial indisponibilidade (salvo, é claro, no
caso de redução do capital nominal, no tocante à importância,
imputada à reserva legai_ que extravasar o limite legai_ por cons-
tituir, ipso facto, uma reserva livre e disponível)." (grifamos)

No mesmo sentido, Tullio Ascarelli reconhece a possibilidade de


distribuição de dividendos com base na parcela da reserva legal que,
em conseqüência de operação de redução do capital social, exceda o
limite máximo previsto pela lei societária: 10

"Prende-se, a norma, à tutela dos terceiros credores: trata-se, por isso,


de reserva legalmente obrigatória, sendo a sua constituição inderrogá-

9 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Do Direito do Acionista ao Dividen-


do. São Paulo: Ed. Obelisco, 1969. p. 172.
10 TULLIO ASCARELLI. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Compara-
do. São Paulo: Bookseller, 2001. p. 585.

296
vel por parte dos estatutos ou de uma deliberação assemblear; de re-
serva que deverá ser reintegrada caso desfalcada por perdas; de re-
serva que não poderá ser distribuída a não ser, parece-me, na
parte que se torne excessiva em conseqüência de uma redução do
capital" (grifamos)

Portanto, conclui-se que o saldo da reserva legal que, em decor-


rência da operação de redução do capital, exceder o valor de 20%
(vinte por cento) do capital social passa a constituir uma reserva livre,
podendo ser utilizado para qualquer finalidade que a Assembléia Ge-
ral entender conveniente, inclusive a distribuição de dividendos aos
acionistas.
O pagamento de dividendos com base no saldo excedente da re-
serva legal somente não seria possível se a Companhia apresentasse
prejuízos acumulados, hipótese em que apenas os valores que superas-
sem o montante dos prejuízos a absorver poderiam ser distribuídos.

E- CONCLUSÃO

Diante do exposto, e considerando que:


a) toda sociedade anônima tem como objetivo essencial, inerente
à atividade econômica por ela exercida, a obtenção de lucros, a fim de
que estes possam ser periodicamente distribuídos aos acionistas, a
título de dividendos;
b) o pagamento de dividendos, apesar de seu caráter essencial, não
pode ser feito em prejuízo da integridade do capital social, de modo a
não comprometer a garantia dos terceiros que transacionem com a
companhia;
c) as reservas de lucros constituem fundos que, em regra, podem
fundamentar a distribuição de dividendos, somente sendo vedada a
sua destinação aos acionistas caso haja alguma regra expressa neste
sentido ou caso a companhia apresente prejuízos acumulados a absor-
ver;
d) a reserva legal constitui uma reserva de lucros de natureza obri-
gatória, que, em virtude da regra expressa no artigo 193, § 2°, da Lei
das S .A., somente pode ser utilizada para a compensação de prejuízos
, ou para o aumento do capital social;
e) a regra estabelecida no caput do artigo 193 da Lei no
6.404/l976, que limita o montante da reserva legal ao máximo de
20% (vinte por cento) do capital social, tem por finalidade proteger o

297
direito dos acionistas minoritários ao recebimento de dividendos con-
tra a retenção excessiva de lucros, que seria causada pelo aumento
indefinido da reserva legal;
f) a regra que estabelece o limite máximo ao valor da reserva legal
possui caráter impositivo, de modo que, tendo sido atingido o mon-
tante de 20% (vinte por cento) do capital social, a companhia fica
impedida de destinar parcela adicional de seu lucro líquido para a
constituição da reserva;
g) os valores transferidos para a reserva legal que excederem ao
limite de 20% (vinte por cento) do capital social deixam de estar
vinculados às finalidades previstas no artigo 19 3, § 2 o, da Lei das S .A.,
adquirindo a natureza de uma reserva de lucros facultativa, cuja desti-
nação pode ser livremente decidida pela Assembléia Geral ou pelos
órgãos de administração, se estes forem autorizados pelo estatuto so-
cial.
Concluímos que, desde que absorvidos os prejuízos acumulados
apresentados pela companhia, os valores contidos na reserva legal que,
em decorrência de operação de redução do capital social, passarem a
exceder o limite de 20% (vinte por cento) do capital, previsto no
artigo 193 da Lei das S.A., podem ser legitimamente utilizados para
fundamentar a distribuição de dividendos aos acionistas.
Foi o nosso Parecer, em dezembro de 2002.

298
INCORPORAÇÃO DE RESERVAS DE CAPITAL AO
CAPITAL SOCIAL SEGUIDA DA REDUÇÃO DO
CAPITAL. LEGITIMIDADE DA OPERAÇÃ0 1

PARECER

I - A CONSULTA

A Companhia X- Consulente -solicita-nos um Parecer Jurídi-


co sobre a projetada operação de redução de seu capital social, confor-
me adiante descrito.
Para tanto, narra-nos a Consulente que:
- É uma sociedade de economia mista estadual;
- O objeto da Companhia, nos termos do art. 3o do seu Estatuto
Social, é projetar, construir e explorar sistemas de produção, trans-
missão, distribuição de energia elétrica, assim como serviços correla-
tos à realização de suas finalidades principais, inclusive a importação
de materiais e equipamentos de energia elétrica para seu uso próprio.
-O "caput" do ·~rt. 6° do seu Estatuto dispõe que:

"Art. 6°- O capital Social é de R$ 580.874.190,24 (quinhentos e


oitenta milhões, oitocentos e setenta e quatro mil, cento e noventa reais
e vinte e quatro centavos), representado por 388.669.954.000 (tre-
zentos e oitenta e oito bilhões, seiscentas e sessenta e nove milhões,
novecentas e cinqüenta e quatro mil) ações, sem valor nominal, sendo
380.669.270.000 (trezento~ e oitenta bilhões, seiscentas e sessenta e
nove milhões, duzentas e setenta mil) ações ordinárias e 8.000.684.000
(oito bilhões, seiscentas e oitenta e quatro mil) ações preferenciais, sem
direito a voto, todas nominativas".

- O § 12 do art. 6° do Estatuto Social está assim redigido:

Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 115, p. 255. julho/setembro de 1999.

299
"§ 12 -A Sociedade fica autorizada, por deliberação da Assembléia
Geral, a reduzir o seu Capital Social, observadas as disposições da
Lei no 6.404!76".

- Nos termos do art. 8° do Estatuto, o Estado deterá, obrigatoria-


mente, a propriedade mínima de 51% (cinqüenta e um por cento) do
capital votante da Consulente.
- Os arts. 54 e 55 do Estatuto Social estabelecem que:

"Art. 54- Serão deduzidos do lucro, primeiramente, e nesta ordem:


a)- prejuízos acumulados;
b) -provisão para o imposto de renda;
c) -participações referentes ao atendimento de partes beneficiárias,
se houver, após as deduções anteriores.
Art. 55 -Após as deduções previstas no artigo anterior, daquele
Lucro Líquido, serão procedidas, pela ordem, mais as seguintes:
a) - 5% (cinco por cento) do Lucro Líquido, para constituição da
Reserva Legal, obedecido o limite máximo permitido;
b) - 2 5% (vinte e cinco por cento), do Lucro Líquido ajustado a
título de dividendo obrigatório, na forma da lei, assegurando-se:
I - às Ações Preferenciais um dividendo anual mínimo, não cumula-
tivo, de 10% (dez por cento), sobre o Capital Próprio a essa espécie de
ações, que será entre elas rateado igualmente;
l i - às Ações Ordinárias, havendo saldo, um dividendo anual míni-
mo não cumulativo, de 10% (dez por cento) sobre o Capital Próprio a
essa espécie de ações, o qual será entre elas rateado igualmente".

- Lei Estadual autorizou a reestruturação societária da Consulen-


te, visando dotá-la de maior eficiência e produtividade, com a criação
de novas empresas que assumiriam parte de suas atividades;
-A Consulente, em suas demonstrações contábeis, apresentaRe-
servas de Capital no valor de 829.949.000,00 resultantes de correção
monetária e de subvenções, oriundas da Conta de Resultados a Com-
pensar, significando créditos frente ao Poder Concedente, nos termos
do § 11 do art. 7o da Lei n. 8.631/93 2, com a redação que lhe foi dada
pelo art. P da Lei n° 8. 724/93.
- A Consulente pretende promover a incorporação de parte de
tais Reservas de Capital ao seu capital social, e depois reduzir o capi-

2 Nota do Autor: A Lei n° também foi modificada pelas Leis n°s 9.069 de 29.06.95,
9.648 de 27.05.98, 10.833 de 29.12.03 e 10.848 de 15.03.04.

300
tal, não só porque ficará ele excessivo, face ao atual estágio de desen-
volvimento da empresa, mas também visando a atender ao disposto na
referida Lei Estadual.
- Narrados os fatos, consulta-nos a Consulente sobre a legalidade
da projetada operação, assim como sobre as providências que devem
ser adotadas para que os acionistas minoritários e/ ou terceiros não
venham eventualmente a ser prejudicados.

11 -A INCORPORAÇÃO DA RESERVA DE CAPITAL AO


CAPITAL SOCIAL

1. A primeira questão a ser analisada refere-se à legitimidade da


incorporação da reserva de capital ao Capital Social da Consulente.
2. Conforme narrado pela Consulente, apresenta ela reservas de
capital no montante de R$ 828.949.000,00 originadas de saldos de
correção monetária e de subvenções.
3. Vale observar, inicialmente, que a própria expressão reservas,
no contexto jurídico-contábil das sociedades, denota uma noção de
previdência, de salvaguarda frente a eventuais acontecimentos futuros
e imprevisíveis.
4. Conforme tradicionalmente reconhecido pelo Direito Societá-
rio, as reservas, uma vez constituídas pela sociedade, representam
fundos próprios, valores que lhe pertencem 3 .
S. A doutrina, no Direito Comparado, tem classificado as reservas
como "quase capital", ou "capital potencial", na medida em que, ine-
xistindo prejuízos, que as absorvam, a sua destinação natural é a incor-
poração ao capital social 4 .
6. A transformação das reservas, enquanto "quase capital", em
capital social, é juridicamente instrumentalizada pela técnica do au-
mento de capital, que permite a absorção das reservas. A utilidade
básica de tal operação reside em proporcionar uma melhor adequação
do capital ao patrimônio social 5 .
7. Referentemente às Reservas de Capital, dispõe o art. 182, caput
e seus§§ 1o e 2°, da Lei das S.A., que:

3 J.M. BERMOND DE VAULX, Le droits latents des actionnaires sur les réserves
dans les sociétés anonymes, Paris, Sirey, 1965, pg. 10.
4 SABINE DANA-DEMARET, Le Capital Social, Paris, Litec, 1989, pg. 235 e
segts.
5 Tl/LLIO ASCARELLI, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Compara-
do, São Paulo, Saraiva, 1969, pg. 408.

301
"Art. 182 -A conta do capital social discriminará o montante subs-
crito e, por dedução, a parcela ainda não realizada.
§ 1° - Serão classificadas como reservas de capital as contas que
registrarem:
a) a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nomi-
nal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que
ultrapassar a importância destinada à formação do capital social,
inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes
beneficiárias;
b) O produto da alienação de partes beneficiárias e bônus de subscri-
ção;
c) o prêmio recebido na emissão de debêntures;
d) as doações e as subvenções para investimento.
§ 2° - Será ainda registrado como reserva de capital o resultado da
correção monetária do capital realizado, enquanto não capitalizado".

8. As Reservas de Capital, assim, são formadas por valores recebi-


dos pela companhia e que não transitam pelo Resultado como Recei-
tas, pelo fato de se referirem a valores destinados ao reforço do seu
capital, sem terem como contrapartida qualquer atividade da empresa
de entrega de bens ou de produção de serviços 6 .
9. Nos termos do art. 200 da Lei das S.A., as Reservas de Capital
terão a seguinte destinação:

"Art. 200 - As reservas de capital somente poderão ser utilizadas


para:
I - absorção de prejuízos que ultrapassarem os lucros acumulados e
as reservas de lucros (Art. 189, parágrafo único);
l i - resgate, reembolso ou compra de ações;
III - resgate de partes beneficiárias;
IV- incorporação ao capital social;
V- pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa van-
tagem lhes for assegurada (Art. 17, §5°).
Parágrafo único -A reserva constituída com o produto da venda de
partes beneficiárias poderá ser destinada ao resgate desses títulos".
(grifamos)

6 SERGIO DE IUCÍBUS, ELISEU MARTINS e ERNESTO RUBENS GELBCKE,


Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações, São Paulo, Atlas, 1995, pg. 420.

302
10. O art. 169 da Lei das S.A., ademais, prevê expressamente
como uma das modalidades de aumento de capital, o da capitalização
de lucros e de reservas.
11. Como as reservas de capital, assim como a de lucros, consti-
tuem valores existentes, anteriormente declarados no patrimônio so~
cial, o aumento de capital com tais reservas caracteriza simples opera-
ção contábil, consistente no remanejamento de contas já existentes no
balanço 7.
12. É plenamente válida e legítima, assim, a incorporação da tota-
lidade ou de parte das Reservas de Capital ao Capital Social da Con-
sulente, mediante deliberação assemblear.

111 -A REDUÇÃO DO CAPITAL SOCIAL

13. Nas sociedades em que o sócio não responde com seu patrimô-
nio próprio pelas dívidas da pessoa jurídica - como é o caso das
sociedades anônimas- o capital social constitui uma noção construí-
da na prática mercantil para possibilitar a garantia dos credores e o
funcionamento da empresa.
14. O capital social, formado pela contribuição dos sócios e pelas
reservas, é representado por uma cifra constante do estatuto social,
somente podendo ser alterado pela assembléia geral nas hipóteses
previstas em lei. O capital, que tem uma existência de direito, não de
fato, evidentemente não se confunde com o patrimônio, formado pelo
conjunto de bens, direitos e obrigações da empresa; o capital constitui
um valor estático, ao passo que o patrimônio é dinâmico, por excelên-
cia, sofrendo mutações diárias.
15. Ainda que o capital social continue a ser objeto de minudente
regulação na legislação societária, vem sendo reconhecido, consen-
sualmente, que a cifra representativa do capital constitui apenas um
dos mecanismos para a garantia dos credores, os quais, na realidade,
tem a efetiva garantia de seus créditos no patrimônio social. A doutri-
na vem identificando, a propósito, nítida tendência no sentido da edi-
ção da normas que viabilizem maior congruência entre capital e patri-
mônio, quer por ocasião da constituição da companhia, quando se

7 MODESTO CARVALHOSA, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol.


III, São Paulo, Saraiva, 1997, pg. 166; MAURO RODRIGUES PENTEADO, Aumen-
tos de Capital das Sociedades Anônimas, São Paulo, Saraiva, 1988, pg. 96.

303
exige avaliação dos bens por perito (art. 8° da Lei das S .A.) quer ao
longo de toda a existência da companhia, nas diversas operações a que
o capital social está sujeito (Lei das S.A., art. 170, § 3°; art. 226; art.
228, etc) 8 .
16. Superado o caráter sacral que antigamente atribuía-se à cifra
do capital social, verifica-se que praticamente todos os sistemas jurí-
dicos aceitam e disciplinam expressamente a operação de redução do
capital, sem conferir-lhe qualquer feição de excepcionalidade.
17. No Direito Norte-Americano, quase todas as legislações socie-
tárias estaduais admitem a operação de redução do capital social me-
diante simples decisão da administração da companhia, sem necessi-
dade de aprovação assemblear.
18. No direito societário europeu, a Segunda Diretiva do Mercado
Comum Europeu, de 31!12/76, admite expressamente a operação de
redução do capital social das sociedades anônimas, subordinando-a,
porém, à decisão da Assembléia Geral.
19. Em nosso sistema de direito societário, a Lei das S.A., em seu
art. 173, prevê a redução do capital social, nos seguintes termos:

"Art. 17 3. A Assembléia Geral poderá deliberar a redução do capital


social se houver perda, até o montante dos prejuízos acumulados, ou se
julgá-lo excessivo".

20. Cabe observar, preliminarmente, que a decisão de reduzir o


capital social compete, com exclusividade, à Assembléia Geral, órgão
que, através do voto dos acionistas, expressa a vontade social.
21. Conforme o art. 121 da Lei das S .A. a assembléia geral tem
poderes para decidir sobre todos os negócios relativos ao objeto da
companhia, bem como para tomar as resoluções que entender conve-
nientes à defesa e desenvolvimento dos negócios sociais.
22. A decisão de reduzir o capital social insere-se dentrb. dos po-
deres da assembléia geral de traçar os rumos da companhià, da manei-
ra que considerar mais adequada, cujo mérito não pode ser contestado
por qualquer outro órgão, seja a Junta a Comercial, seja a Comissão de
Valores Mobiliários, seja o próprio Poder Judiciário, sob pena de ca-
racterizar-se invasão de área de competência privativa da assembléia
geral da sociedade anônima, que expressa a vontade social.
23. O direito de voto na companhia, mediante cujo exercício for-

s MAURO RODRIGUES PENTEADO ob. cit., pg. 15 e segts.

304
ma-se a vontade social, é soberano do acionista, não cabendo a quem
quer que seja a determinação do seu conteúdo, sob pena de grave
afronta aos princípios essenciais do direito societário.
2 4. A própria Comissão de V alares Mobiliários, órgão encarregado
da fiscalização das companhias abertas, nos termos da Lei 6.385/76 9,
com as modificações introduzidas pela recente Lei 9.45 7, de
05/05/97, tem reconhecido, em procedimentos administrativos, que
não detém poderes para substituir a vontade dos acionistas e determi-
nar que as companhias convoquem assembléia geral para deliberar no
sentido do entendimento considerado mais adequado pela CVM.
25. Da mesma forma, o Poder Judiciário tradicionalmente tem se
recusado a entrar no mérito das deliberações adotadas pela assembléia
geral, quando regularmente convocada e instalada 10 .
26. Também não cabe à Junta Comercial analisar e eventualmente
recusar o arquivamento de atos societários com base em qualquer
argumento ligado à inobservância de eventuais direitos patrimoniais e
disponíveis dos sócios, muito menos entrar no mérito de deliberações
que dizem respeito à gestão do patrimônio e do desenvolvimento dos
negócios da companhia, uma vez que sua competência restringe-se ao
exame formal dos atos e documentos societários, conforme a orienta-
ção da doutrina e da jurisprudência 11 .
27. Ou seja, uma vez adotados os procedimentos previstos na Lei
das S.A., e adequadamente assegurados os direitos dos credores e dos
acionistas minoritários, se for o caso, a decisão de reduzir o capital da
companhia, por constituir matéria concernente à gestão empresarial,
não pode ser, no mérito, objeto de contestação ou de reparos por
parte de terceiros.
28. A Lei das S.A., em seu art. 173, prevê expressamente a possi-
bilidade de proceder a companhia à redução do seu capital social,
mediante decisão soberana da assembléia geral dos acionistas.

9 Nota do Autor: A Lei n° 6.385/76 foi modificada pelas Leis n°s 10.303 de
31.10.2001 e 10.411 de 26.02.2002 e pelo Decreto n°3.995 de 31.10.2001.
10 NELSON EIZIRIK E AURÉLIO WANDER BASTOS, O Poder Judiciário e a
Jurisprudência sobre Sociedades Anônimas e Instituições Financeiras, Rio de Janeiro,
IBMEC, 1980, pg. 65.
11 RUBENS REQUIÃO, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, vol. I, n.
66; MIGUEL REALE Parecer publicado na Revista dos Tribunais, vol. 40, fascículo n.
530; Apelação Cível n. 584.012.934, julgada pela 1 Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em 05!11/85, in NELSON EIZIRIK, Sociedades
Anônimas -Jurisprudência, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, pg. 689.

305
29. Distingue-se tradicionalmente, tanto no Direito Compara-
do12, como entre nós 13 duas modalidades de redução do capital: a real,
ou efetiva, quando há igual diminuição do patrimônio destinado a
representar a cobertura da cifra do capital social; e a nominal, ou
contábil, que significa mera operação contábil, de redução da cifra do
capital, permanecendo intocado o valor patrimonial.
30. A redução nominal, também denominada saneamento finan-
ceiro, supõe a existência de prejuízos, daí decorrendo a redução do
capital para mantê-lo em posição de equilíbrio com o patrimônio real
da companhia.
31. Já na redução real, que pode ser ditada por razões de conve-
niência administrativa, há restituição do excesso de capital aos acio-
nistas, ou diminuição do valor das ações, quando não integralizadas; a
restituição deve ser feita pro rata, incidindo sobre todas as ações, na
mesma proporção, em respeito ao princípio da igualdade entre os
acionistas.
32. A proposta de redução do capital social, antes de ser submeti-
da à assembléia geral, deve ser analisada pelo Conselho Fiscal, que
emitirá parecer a respeito da matéria, uma vez que se trata de medida
que implica em modificação do capital (arts. 163, 111 e 1 73, § 1o da Lei
das S.A.).
33. Referentemente ao procedimento da redução do capital, deve
ser observado, inicialmente, que a matéria deve constar da ordem do
dia da convocação da assembléia geral extraordinária, em obediência
ao disposto no caput do art. 12 4 da Lei das S.A.
34. Como a medida de redução do capital ocasiona alteração do
estatuto social, o quórum de instalação será o previsto no art. 135 da
Lei das S.A.: presença de dois terços dos acionistas representativos do
capital votante, em primeira convocação, mas com qualquer número
na segunda convocação.
35. As medidas de incorporação das Reservas de Capital à cifra do
capital social e de conseqüente redução do capital, no montante cor-
respondente à totalidade ou à parte das reservas a ele incorporadas,
podem ser legitimamente deliberadas na mesma Assembléia Geral
Extraordinária, constituindo ambas, conforme já analisado, operações
de natureza contábil.

12 ANTONIO PERES DE LA CRUZ BLANCO, Reducción deZ Capital en Socieda·


des Anonimas, Bolonha, 1973, pg. 73.
13 ALFREDO LAMY FILHO, "Redução do capital social com base em balaços
intermediários" in A Lei das S.A. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2 ed., voi. II, pg. 4 71.

306
36. No caso da redução nominal do capital, procedida quando há
prejuízos acumulados, como medida de saneamento financeiro, os
credores não são afetados, não lhes cabendo manifestar-se sobre a
medida.
37. Já na hipótese de redução real do capital, que é a do presente
caso, como é atingido o patrimônio social, com a devolução aos acio-
nistas de parte do valor de suas ações, busca-se tutelar o direito dos
credores.
38. Nesse sentido, a Lei das S.A., em seu art. 174, estabelece que
os credores quirografários por títulos anteriores à data de publicação
da ata da assembléia geral que a tiver deliberado poderão se opor à
medida, mediante notificação, no prazo decadencial de sessenta dias
contados da publicação da referida ata.
39. Caso haja oposição dos credores, a ata da assembléia geral que
deliberar a redução do capital somente poderá ser arquivada no regis-
tro do comércio se a companhia demonstrar que pagou os seus crédi-
tos ou depositou judicialmente as respectivas importâncias.
40. Caso existam debêntures emitidas pela companhia em circu-
lação, a redução do capital dependerá da prévia aprovação pela maio-
ria dos debenturistas, reunidos em assembléia geral, conforme o dis-
posto no§ 3° do art. 174 da Lei das S.A.
41. No caso presente, tratando-se de redução real do capital, de-
vem ser adotados os procedimentos acima descritos, tendo em vista a
tutela dos direitos dos credores, para a plena eficácia da deliberação
de reduzir o capital.

IV -ASSEMBLÉIA ESPECIAL DOS PREFERENCIALISTAS E


O DIREITO DE RECESSO

42. Nos termos do art. 55 do Estatuto Social da Consulente, é


assegurado às ações preferenciais um dividendo anual mínimo, não
cumulativo, de 10% sobre o capital próprio a essa espécie de ações, o
qual será entre elas rateado igualmente.
4 3. A Lei das S .A., em seu art. 13 6, II e § 1o, condiciona a eficácia
da medida que ocasiona alteração nas preferências ou vantagens de
uma ou mais classes de ações preferenciais à prévia aprovação ou rati-
ficação, no prazo de um ano, por titulares de mais da metade de cada
classe de ações preferenciais prejudicadas, reunidos em assembléia
especial.

307
44. Conforme já tivemos a oportunidade de comentar, existindo
diminuição potencial ou real dos direitos patrimoniais dos titulares de
ações preferenciais, deve ser convocada assembléia especial dos prefe-
rencialistas 14 .
45. No mesmo sentido, na hipótese de redução do capital social,
Modesto Carvalhosa entende que:

"Configurar-se-á o caso típico de redução por excesso do capital com


afetação dos direitos das preferenciais se o dividendo mínimo atribuí-
do a elas pelo estatuto tiver por base o capital social. Essa hipótese,
que é comuníssima, demandará a realização de assembléia especial
dos preferenciais, com direito de recesso para os dissidentes, na forma
dos arts. 136 el37" 15 .

46. No caso, com a redução do capital ocorrerá uma diminuição


potencial dos direitos dos preferencialistas, uma vez que o dividendo
que lhes é atribuído é calculado sobre o valor do capital.
47. Conseqüentemente, deve a medida ser previamente aprovada
ou ratificada pelos titulares de ações preferenciais, reunidos em as-
sembléia especial, a ser realizada no prazo de um ano, para sua plena
eficácia, conforme o art. 136, § 1o da Lei das S.A., com a redação que
lhe foi dada pela Lei 9.457/97.
48. Ademais, deve constar da ata da Assembléia Geral que delibe-
rar a redução do capital que tal deliberação somente terá eficácia após
a sua ratificação por parte da assembléia especial dos preferencialistas,
nos termos do art. 136, § 4o da Lei das S.A., acrescentado pela Lei
9.457/97.
49. Podem os preferencialistas que discordarem da deliberação de
reduzir o capital exercer o direito de recesso, com fundamento no art.
13 7, I, da Lei das S .A., com a nova redação introduzida pela Lei
9.457/97.
50. Deve ser observado que o direito de recesso de nenhuma
forma invalida ou torna menos legítima a deliberação assemblear de
reduzir o capital social.
51. Considera-se que o acionista controlador é o intérprete do
interesse social, dada a prevalência do princípio majoritário na sacie-

14 Cf. nosso livro. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Ed.
Renovar, 1997. pg. 120.
15 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, cit.,
pg. 527.

308
dade anônima. Há, porém, certos direitos individuais que correspon-
dem a prerrogativas essenciais do acionista, das quais ele não pode ser
privado. Assim, quando a decisão majoritária contraria o interesse dos
minoritários, nos casos expressamente elencados na Lei das S.A., po-
dem eles retirar-se da companhia com o reembolso do valor de suas
ações 16 .
52. Porém, o ato praticado pela companhia que ensejao direito de
recesso não constitui ato ilícito; o recesso, na realidade, significa ape-
nas a compensação de interesses particulares dos acionistas minoritá-
rios sacrificados legitimamente em favor do interesse social 17 .
53. Daí decorre a plena legitimidade da operação de redução do
capital social da Consulente, ficando sua eficácia condicionada ao pa-
gamento aos credores que se opuserem à medida, assim como à ratifi-
cação dos titulares de ações preferenciais, reunidos em assembléia
especial.

V- CONCLUSÕES

54. Face à análise desenvolvida e

CONSIDERANDO

Que a Consulente apresenta em sua contabilidade Reservas de


Capital no montante de R$ 828.949.000,00;
Que as Reservas de Capital constituem quase capital, na medida
em que, inexistindo prejuízos que as absorvam, a sua destinação natu-
ral é a incorporação ao capital social;
Que a transformação das reservas em capital social, nos termos da
legislação societária, é realizada mediante o aumento do capital;
Que a Consulente deseja incorporar as reservas ao capital social
para depois proceder à sua redução, não só por ser ele excessivo, face
ao atual estágio de desenvolvimento das atividades desenvolvidas pela
companhia, mas também para atender ao disposto na Lei Estadual;
Que nossa legislação admite expressamente a redução do capital
social, mediante deliberação assemblear;

16 Cf. o nosso Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais, cit., pg. 61.
17 FABIO KONDER COMPARATO, "Valor de reembolso no recesso acionário",
Revista dos Tribunais, vol. 563, set./ 1982. pg. 50.

309
Que compete ao acionista exercer soberanamente o seu direito de
voto, com vistas à formação da vontade social;
Que a decisão de reduzir o capital social constitui matéria de com-
petência exclusiva da assembléia geral, cujo mérito e conveniência não
podem ser objeto de contestação por parte de terceiros;
Que as operações de incorporação das reservas ao capital e conse-
qüente redução do capital podem ser validamente praticadas na mes-
ma assembléia geral extraordinária;
Que a redução do capital, no caso, por atingir o patrimônio social,
pode ensejar a oposição dos credores, cabendo à companhia, em tal
hipótese, demonstrar que pagou ou depositou judicialmente o valor
de seus créditos;
Que, como a redução do capital, embora constituindo operação
legítima, pode ensejar a diminuição potencial dos direitos dos titula-
res de ações preferenciais, deve ser ela aprovada previamente ou rati-
ficada no prazo de um ano por assembléia especial dos preferencialis-
tas, cabendo aos dissidentes o direito de recesso;
RESPONDEMOS que a incorporação das reservas ao capital so-
cial e a conseqüente redução do capital social da Consulente constitui
operação plenamente válida e legítima, nos termos da legislação socie-
tária, condicionada sua eficácia ao atendimento dos direitos dos cre-
dores que se opuserem e à ratificação por parte dos titulares de ações
preferenciais, reunidos em assembléia especial.
Foi o nosso Parecer, em fevereiro de 1998.

310
INCORPORAÇÃO DE COMPANHIA POR SUA
SUBSIDIÁRIA INTEGRAL. EXTINÇÃO DE
ACORDO DE ACIONISTAS. INAPLICABILIDADE
DO ARTIGO 264 DA LEI DAS S.A.. PREVALÊNCIA
DO INTERESSE SOCIAL E ABUSO DE DIREITO

I - DA CONSULTA

A Consulta está formulada nos seguintes termos:

"1. A Companhia Alfa e sua subsidiária integral Companhia Beta são


co-proprietárias na razão de 90% e 10% de um lucrativo Shopping
Center. Há interesse, por razões fiscais, em concentrar a propriedade
do referido Shopping Center na Companhia Beta. Além disso, não
mais se justifica a existência das duas sociedades, levando a que se
proponha a eliminação de uma delas, recaindo a escolha na Compa-
nhia.Alfa, por razões de substancial economia de despesas.
2. Existe na Companhia Alfa um Acordo de Acionistas versando sobre
(i) direito de preferência, {ii) eleição de administradores para seu
Conselho de Administração e (i i i) exercício do direito de voto.
3. Sabe-se que a incorporação acarreta a sucessão universal dos direi-
tos e obrigações da incorporada pela incorporadora. No caso em espé-
cie, a única obrigação que poderia resultar para a sociedade, na qua-
lidade de incorporadora, em decorrência da existência de um Acordo
de Acionistas averbado nos livros próprios da incorporada, é a do
presidente da Assembléia Geral, ou de órgão colegiado de delibera-
ção, observar-lhe os termos. Todavia, para que se transfira a referida
obrigação para qualquer órgão social da incorporadora, será necessá-
rio concluir que o Acordo de Acionistas da incorporada deva ser ob-
servado na incorporadora, o que se questiona, seja porque se trata o
Acordo de Acionistas de relação intuitu personae, seja porque não
mais existirá o objeto do acordo, ou seja, a sociedade incorporada,
seja porque não se trata de obrigação com conteúdo patrimonial.

311
4. A par disso, consulta-se, também, se, na incorporação de subsidiá-
ria integral, tem aplicação o disposto no art. 264 da Lei das Socieda-
des Anônimas tendo em vista que não há, seja na incorporadora, seja
na incorporada, acionista minoritário a ser protegido contra o s.d[_
dealing, permanecendo idênticas as participações percentuais dos
acionistas na incorporadora.
5. Por fim, e considerando que, no entender da sociedade, mostra-se
visível o interesse social em que se realize a supracitada incorporação,
e que a discussão sobre a sobrevivência do Acordo de Acionistas, ou
não, é res inter alias, pergunta-se se a iniciativa, judicial ou extraju-
dicial (Junta Comercial), de algum acionista visando paralisar a in-
corporação é ato lícito, à vista do disposto no art. 187 do Novo Código
Civil?"

11 -DO PARECER

A elaboração do presente Parecer, tendo em vista o desenvolvi-


mento sistemático da matéria objeto da Consulta, pressupõe a análise
dos seguintes tópicos:
a) extinção do acordo de acionistas em decorrência da incorpora-
ção da companhia;
b) inaplicabilidade do artigo 264 da Lei das S .A. às operações de
incorporação de companhia por sua subsidiária integral;
c) prevalência do interesse social sobre os interesses particulares
dos acionistas e caracterização do abuso de direito; e
d) conclusões.

A- DA EXTINÇÃO DO ACORDO DE ACIONISTAS EM


DECORRÊNCIA DA INCORPORAÇÃO DA COMPANHIA

A. I. - Da natureza contratual dos acordos de acionistas

O acordo de acionistas constitui contrato celebrado entre acionis-


tas da companhia para compor seus interesses individuais e para esta-
belecer normas sobre a sociedade da qual participam, regulando seu
funcionamento, de forma a harmonizar seus interesses societários e
implementar o próprio interesse social.
A regulação dos acordos de acionistas foi introduzida, em nosso
direito societário, pelo artigo 118 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro
de 1976, o qual, em sua redação atual, dispõe que:

312
"Art. 118 - Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de
suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito de voto,
ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quan-
do arquivados na sua sede."

Apesar de regulados pela lei societária, os acordos de acionistas


caracterizam-se como contratos submetidos às normas comuns deva-
lidade de todos os negócios jurídicos de direito privado, conforme
leciona de Jürgen Dohm 1:

"Un teZ acte générateur d'obligations est étranger au droit des so-
ciétés anonymes, il releve au droit des obligations. (. .. .) Naus
pouvons conclure avec la doctrine unanime que les accords relatifs à
l'exercise du droit de vote de l'actionnaire sont de nature purement
contractuelle et reposent sur les príncipes généraux du droit ci-
vil." (grifamos)

De fato, a regulação dos acordos de acionistas pela Lei das S.A.


não desnatura o caráter preponderantemente civil das relações jurídi-
cas dele advindas 2 .
A regulação pela Lei das S.A. tem por finalidade apenas estabele-
cer os pressupostos necessários a que tais contratos sejam observados
pela companhia e produzam efeitos perante terceiros.
Portanto, o acordo de acionistas possui natureza jurídica de con-
trato e, como tal, está sujeito às normas comuns do Código Civil,
quanto aos requisitos de validade e eficácia do negócio jurídico.

A.2- Da natureza de contrato parassocial dos acordos de


acionistas e sua dependência em relação ao contrato social

O acordo de acionistas constitui negócio celebrado sem a inter-


venção da companhia e estranho ao regulamento das relações internas
da sociedade, ditado pelo Estatuto Social.
Apesar de a companhia ser parte estranha aos acordos de acionis-

I JÜRGEN DOHM. Les accords sur l'exercice du droit de vote de l'actionnaire.


Geneve: Georg, 1971. p. 15/1 7.
z EGBERTO LACERDA TEIXEIRAeJOSÉALEXANDRE TAVARES GUERREI-
RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. vol. 1. São Paulo: José Bushatsky,
1979. p. 305.

313
tas, estes se destinam a produzir efeitos no âmbito da sociedade, par-
ticularmente quando disciplinam o exercício do direito de voto.
Assim, o acordo de acionistas tem natureza de contrato parasso-
cial, uma vez que, embora suas disposições não integrem o contrato
social, seus contratantes são acionistas e sua execução opera-se na
esfera societária.
Por regularem, extra-socialmente, a composição dos interesses
individuais dos sócios, os acordos de acionistas são classificados como
contratos parassociais. 3
A jurisprudência de nossos tribunais também tem reconhecido a
natureza de contrato parassocial dos acordos de acionistas, a latere do
contrato de sociedade 4 .
O fato de constituir um contrato parassocial permite concluir
que, apesar de celebrado individualmente entre os sócios, a eficácia
do acordo de acionistas está condicionada à existência da pessoa jurí-
dica, em cuja esfera dar-se-á a sua execução.
Com efeito, não faria sentido, até por uma questão lógica, a exis-
tência de um contrato cujo objetivo é regular as relações das partes
enquanto acionistas de uma companhia que não existe. Diante disso,
pode-se afirmar que o contrato social precede, logicamente, o acordo
de acionistas. 5
Dessa forma, a vigência do acordo de acionistas depende da exis-
tência da sociedade na qual seus efeitos deverão ser produzidos, con-
forme ressalta Modesto Carvalhosa: 6

"São, com efeito, os acordos de acionistas, convenções marginais, em


relação ao contrato social, muito embora existam em razão do mes-
mo. O acordo de acionistas, enquanto pacto parassocial, depende
da existência da pessoa jurídica, podendo ou não, conforme a sua
causa, ter a função de implementar determinadas cláusulas do pacto
social." (grifamos)

3 FÁBIO KONDER COMPARATO. Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresa-


rial. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 75 e ss.; WALDÍRIO BULGARELLI. Questões
de Direito Societário. São Paulo: RT, 1983. p. 28.
4 NELSON EIZIRIK. Sociedades Anônimas- Jurisprudência. Rio de Janeiro: Re-
novar, 1996. p. 3.
5 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Estudos e pareceres sobre sociedades
anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 215/216.
6 MODESTO CARVALHOSA. Acordos de Acionistas. São Paulo: Saraiva, 1984.
p.38.

314
No mesmo sentido, vale mencionar a lição de Mario Leite Santos,
nos seguintes termos: 7

"Resulta de igual modo da observação empírica que o acordo paras-


social pressupõe a existência actual ou futura de um contrato de
sociedade, relativamente ao qual se encontra numa relação de
subordinação, quanto mais não seja dum ponto de vista lógico. É
difícil pensarmos num contrato parassocial que não tenha por finali-
dade incidir sobre relações jurídicas que decorrem da existência
duma sociedade." (grifamos)

Como se verifica, a existência dos acordos de acionistas pressupõe


a da sociedade, estando tais acordos interligados à sobrevivência e à
manutenção da própria companhia. 8
Assim, a eventual extinção da sociedade em cujo âmbito o acordo
de acionistas deveria ser executado implica o perecimento do referido
acordo, tendo em vista a impossibilidade do cumprimento de suas
cláusulas.
A propósito, ressalte-se que, em função de sua dependência em
relação à existência da sociedade, o acordo de acionistas pode ser
classificado como pacto acessório ao contrato social.
De fato, conforme refere a doutrina, contratos acessórios são to-
dos aqueles que têm como pressuposto a existência de outro contra-
to, e não apenas os que têm por objeto garantir o cumprimento das
obrigações contraídas no contrato principal. 9
Como o acordo de acionistas pressupõe a existência da sociedade
a qual ele se refere, fica evidenciado seu caráter acessório em relação
ao contrato social.
O vínculo de acessoriedade entre o contrato de social e o acordo de
acionistas foi expressamente reconhecido por Modesto Carvalhosa: 10

"Diante dessa colocação, fica evidente o caráter de acessoriedade


relativamente ao pacto social, havendo inclusive uma dependência

7 MARIO LEITE SANTOS. Contratos Parassociais e Acordos de Voto nas Socieda-


des Anônimas. Lisboa: Edições Cosmo, 1996. p. 53.
8 CARLOS CELSO ORCESI DA COSTA. Da rescisão imotivada de acordo de
acionistas por prazo indeterminado. Revista de Direito Mercantil. vol. 60. p. 43.
out./dez. 1985.
9 ORLANDO GOMES. Contratos. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 78.
10 MODESTO CARVALHOSA. Acordo de Acionistas. São Paulo: Saraiva, 1984. p.
40.

315
recíproca entre os dois negócios, pois tem o acordo de acionistas a
função de implementar cláusulas estatutárias. Nessa hipótese, ade-
mais, a eficácia do contrato parassocial depende não apenas da
existência da pessoa jurídica, mas também da existência de deter-
minadas cláusulas do próprio contrato social." (grifamos)

A principal conseqüência da classificação entre contratos acessó-


rios e principais decorre da aplicação do princípio geral de que o aces-
sório segue a sorte do principal. De acordo com tal princípio, a extin-
ção do contrato principal acarreta a do contrato acessório, pois este,
logicamente, não pode sobreviver ao primeiro, por faltar a sua própria
razão de ser. 11
Diante disso, extinguindo-se a sociedade em cuja esfera devem
produzir-se os efeitos do acordo de acionistas, este também não pode-
rá sobreviver, conforme enfatizado por Márcio Correia Vianna:'2

"O Acordo de Acionistas é contrato que tem como pressuposto funda-


mental um outro (contrato de sociedadeJ, existindo em função deste
outro, num fenômeno que a doutrina espanhola denomina 'dependên-
cia funcional'. Daí por que, a nosso ver, tais pactos extra-estatutá-
rios merecem ser classificados como contratos acessórios em re-
lação ao contrato de sociedade, que nas sociedades anônimas está
sintetizado nos estatutos sociais.
Sendo contrato acessório, a ele têm que ser aplicáveis os princípios e
regras especiais que regem essa categoria contratual, notadamente a
do accesorium sequitur principale. Assim, a nulidade ou a rescisão
do contrato de sociedade implica, necessariamente, na nulidade
ou rescisão dos Acordos de Acionistas, que a essa sociedade anô-
nima se referem (. ..)" (grifamos)

Portanto, sendo o acordo de acionistas acessono ao contrato


social, o desaparecimento deste, em virtude da extinção da socieda-
de, implica, necessariamente, o término da vigência do acordo de
acionistas, em função da ausência de um de seus pressupostos es-
senciais.

11 ORLANDO GOMES. Contratos. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 78.


12 MÁRCIO CORREIA VIANNA. A conceituação jurídica do acordo de acionistas e
a licitude da convenção de voto. Revista Forense. Rio de Janeiro, vol. 253, p. 471.
jan./fev./mar. 1976.

316
Ora, uma das conseqüências da operação de incorporação, confor-
me textualmente mencionam os artigos 219, inciso 11 e 227, § 3°, da
Lei das S .A., é a extinção da sociedade incorporada.
Dessa forma, não há dúvida de, no caso presente, a incorporação
da COMPANHIA ALFA pela COMPANHIA BETA acarretará a ex-
tinção do Acordo de Acionistas, na medida em que não mais existirá a
sociedade em cujo âmbito suas disposições devem ser executadas.

A.3 - Da impossibilidade de o acordo de acionistas impor


obrigações à companhia

Além da extinção da incorporada, a incorporação da sociedade tam-


bém acarreta a assunção de todos os seus direitos e obrigações pela in-
corporadora, conforme dispõe o caput do artigo 227 da lei societária.
A sucessão universal estabelecida pelo artigo 227 da Lei das S.A.,
contudo, não prejudica a conclusão acima aduzida, no sentido de que
a incorporação da sociedade tem como conseqüência a extinção do
acordo de acionistas a ela referente.
Isto porque o acordo de acionistas não pode impor nenhuma obri-
gação à companhia, mas apenas a seus acionistas, visto que estes cons-
tituem as únicas partes legítimas para figurar em tal contrato parasso-
cial13.
De fato, no sistema legal vigente, a companhia não pode ser parte,
em sentido substancial, dos acordos firmados por seus próprios acio-
nistas. 14
Sendo a companhia parte ilegítima para figurar em acordos de
acionistas, fica evidente que ela não pode assumir qualquer obrigação
em decorrência de tais instrumentos.
Apesar disso, como o acordo de acionistas destina-se a produzir
efeitos. no âmbito da sociedade, a Lei no 6.404!1976 instituiu proce-
dimento específico com o objetivo de atribuir à companhia a função
de assegurar a observância do pactuado entre seus acionistas, a fim de
aumentar a eficácia de tais contratos.
Dito procedimento consiste no arquivamento do acordo de acio-
nistas na sede social, conforme estabelece o artigo 118 da Lei no
6.404/1976.

13 CELSO BARBI FILHO. Acordo de Acionistas. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p.
90.
14 FÁBIO KONDERCOMPARATO. O poder de controlenasociedadeanônima. Rio
de Janeiro: Forense, 1983. p. 177/178.

317
Em virtude de tal dispositivo, deve a companhia, por exemplo,
impedir a transferência das ações de propriedade de um dos conve-
nentes em violação às cláusulas do acordo ou, ainda, não computar o
voto proferido em Assembléia Geral em sentido contrário daquele
previamente ajustado.
Em suma, o artigo 118 da lei societária impôs à companhia a fun-
ção de assegurar o cumprimento do disposto nos acordos de acionistas
arquivados em sua sede.
No entanto, o fato de a companhia ter a atribuição legal de garan-
tir a observância do cumprimento dos acordos de acionistas não a
torna parte de tais contratos e tampouco autoriza que, como tal, ela
possa ficar sujeita ao cumprimento de obrigações neles impostas.
A regra do artigo 118 da Lei das S .A. não acarreta propriamente
uma obrigação à companhia, mas somente atribui a ela a função de
implementar a vontade dos convenentes, com poderes para impedir
que produzam efeitos eventuais atos praticados em desconformidade
com as disposições do acordo.
De fato, obrigação, em seu sentido jurídico, constitui o vínculo em
virtude do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em
proveito da outra, tendo como um de seus requisitos essenciais o
caráter patrimonial da prestação. 15
A atribuição conferida pelo artigo 118 da Lei das S .A. à sociedade
não se caracteriza, portanto, como obrigação e, muito menos, possui
natureza patrimonial.
Assim, a função de assegurar a observância das disposições do
acordo firmado entre os acionistas da sociedade incorporada não pode
ser incluída entre as obrigações que, nos termos do artigo 227 da Lei
das S.A., devem ser assumidas pela companhia incorporadora.
Conclui-se, pois, que o acordo de acionistas não acarreta nenhuma
obrigação para a sociedade incorporada que deveria ser assumida pela
companhia incorporadora.
Dessa forma, não há como se pretender que o acordo de acionis-
tas, extinto em decorrência do desaparecimento da companhia incor-
porada, seja, automaticamente, "transferido" para a incorporadora,
passando a disciplinar a relação de seus signatários enquanto acionistas
desta.

15 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. vol. 2. 19 ed.


Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 16.

318
A.4 - Da inexistência de declaração de vontade dos acionistas da
COMPANHIA ALFA quanto à sobrevivência do Acordo de
Acionistas após a incorporação da Companhia

Vale ainda ressaltar que somente seria possível admitir que o acor-
do de acionistas passasse a ser aplicável em relação à incorporadora,
após a incorporação da sociedade a que ele originalmente se referia,
caso os contratantes tivessem expressamente previsto tal possibilida-
de.
Lembre-se que a celebração de acordo de acionistas impõe, em
regra, uma série de restrições ao exercício de direitos inerentes à
condição de sócio.
Dependendo do teor das cláusulas contratuais, o acionista poderá
ser constrangido a votar, nas deliberações assembleares, em sentido
previamente determinado, assim como terá que observar limites à
livre alienação de suas ações.
Em vista disso, a "transferência" das obrigações decorrentes do
acordo de acionistas para outra sociedade, após a incorporação da
companhia, constituiria medida de caráter excepcional, que, como
tal, somente poderia ser admitida em face de concordância expressa
dos contratantes.
Ou seja, a única forma pela qual o acordo de acionistas da compa-
nhia incorporada poderia sobreviver à extinção desta, passando a vigo-
rar em relação à sociedade incorporadora, seria mediante declaração
inequívoca da vontade das partes neste sentido.
Assim, se esta tivesse sido a sua intenção, deveriam as partes ter
previsto expressamente que, na hipótese de incorporação da socieda-
de, os direitos e obrigações decorrentes do acordo de acionistas passa-
riam a ser exercidos em relação à nova companhia.
No caso presente, as Partes do Acordo· de Acionistas comprome-
teram-se a restringir o exercício de seus direitos enquanto acionistas
da COMPANHIA ALFA, não de qualquer outra sociedade. Não há,
no Acordo de Acionistas, qualquer menção à sobrevivência da avença
em relação à companhia que eventualmente viesse a suceder a COM-
PANHIA ALFA.
Note-se, ademais, que foi expressamente prevista a possibilidade
de a Companhia vir a ser incorporada no decorrer da vigência do
Acordo, conforme se verifica de sua Cláusula 7.2:

"Os contratantes concordam em submeter à aprovação por quórum


qualificado de 2/3 (dois terços) das ações com direito de voto que

319
compuserem o capital social toda e qualquer deliberação da Assem-
bléia Geral da COMPANHIA ALFA que tenha por objeto as seguin-
tes matérias:
(. ..)
3. incorporação, fusão, clsao, transformação ou dissolução da
COMPANHIAALFA." (grifamos)

Ou seja, as Partes concordaram que a COMPANHIA ALFA pode-


ria ser incorporada por outra sociedade, mesmo sem a aprovação da
totalidade dos signatários do Acordo.
Contudo, o contrato não estabeleceu nenhuma conseqüência es-
pecial em decorrência de tal operação, muito menos, repita-se, a ma-
nutenção de sua vigência em relação à sociedade incorporadora.
Logo, não tendo sido expressamente prevista tal possibilidade,
não se pode simplesmente presumir, sem nenhuma indicação concre-
ta, que a intenção das Partes tenha sido a de manter a eficácia das
obrigações pactuadas no Acordo de Acionistas em relação à compa-
nhia sucessora da COMPANHIA ALFA.
Diante disso, reafirma-se a conclusão de que a extinção da COM-
PANHIA ALFA, em decorrência de sua incorporação pela COMPA-
NHIA BETA, acarreta o término da vigência do Acordo de Acionistas,
não estando as Partes vinculadas ao cumprimento das disposições de
tal Acordo em relação à sociedade incorporadora.

B -DA INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 264 DA LEI DAS


S.A. ÀS OPERAÇÕES DE INCORPORAÇÃO DE
COMPANHIA POR SUA SUBSIDIÁRIA INTEGRAL

B.l - Fixação das relações de substituição das ações

Um dos aspectos mais relevantes da operação de incorporação é,


inequivocamente, a definição das relações de substituição das ações,
ou seja, quantas ações de emissão da companhia incorporadora serão
entregues a cada acionista da sociedade incorporada por cada ação de
emissão desta anteriormente possuída.
Por meio da relação de substituição, obtida a partir de uma avalia-
ção comparativa dos patrimônios das sociedades envolvidas na opera-
ção, deve-se estabelecer a justa contrapartida em ações de valor equi-
valente na sociedade incorporadora, de forma a evitar a ocorrência de
prejuízos patrimoniais aos acionistas cujas ações serão extintas.

320
A lei societária exige que os critérios utilizados para determinar as
relações de substituição das ações sejam divulgados no Protocolo de
Incorporação, conforme o disposto em seu artigo 224, inciso I.
A exigência legal da indicação dos critérios de avaliação implica,
obviamente, a possibilidade da utilização de mais de um, como meio
de se alcançar a justa relação de substituição. 16
De fato, não há qualquer exigência ou determinação especial
quanto aos critérios a serem utilizados para avaliação das ações de cada
sociedade, que serão livremente escolhidos pelos administradores e
acionistas das companhias envolvidas. 17
Prevalece, portanto, em nosso direito, a ampla liberdade na esco-
lha convencional do critério utilizado para determinar as relações de
substituição das ações em operações de incorporação.

B.2- Da particularidade da incorporação de controlada

As regras acima referidas sobre a fixação da relação de substitui-


ção aplicam-se tanto às operações de incorporação entre sociedades
que não possuem qualquer relação societária, como naquelas que se
realizam entre a companhia controladora e sua controlada.
No entanto, no caso de incorporação de companhia controlada, a
lei societária optou por oferecer uma proteção adicional aos acionistas
minoritários da sociedade incorporada, procurando uma fórmula que
garantisse ser a relação de troca das ações das duas sociedades a mais
justa possível.
Justifica-se o regime especial das incorporações de controladas, já
que, quando as duas sociedades não estão submetidas a controle co-
mum, os interesses dos acionistas de cada companhia são defendidos
pelos respectivos administradores e controladores. Nestas hipóteses,
a definição das bases da incorporação representa questão meramente
negocial. 18
Por outro lado, quando a operação ocorre entre sociedades con-
troladoras e controladas, não se verifica o caráter bilateral que assegu-
ra os interesses dos minoritários de ambas as companhias envolvidas,

16 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S.A. São


Paulo: Saraiva, 2002. p. 374.
17 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A. vol. 2.
2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 562/563.
18 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A. vol. 2.
2 ed. Rio de Janeiro: Renovar,1996. p. 679.

321
visto que o mesmo acionista controlador decide pelos dois lados da
operação.
De fato, na incorporação de controlada inexistem duas vontades
na operação, pois o mesmo controlador vota e decide as condições em
que se realizará a incorporação nas assembléias gerais das duas socie-
dades, onde, a princípio, pressupõe-se que os acionistas repre-
sentariam interesses contrários.
Esta foi a razão que motivou o legislador brasileiro a adotar regras
especiais em relação à incorporação de companhia controlada, confor-
me se verifica da Exposição de Motivos da Lei no 6.404/1976:

"A incorporação de companhia controlada requer normas especiais


para a proteção aos acionistas minoritários, por isso que não existem,
na hipótese, duas maiorias acionárias distintas, que deliberem
separadamente sobre a operação." (grifamos)

Em vista destes princípios, o artigo 264 da Lei n° 6.404/1976


estabelece que, no caso de incorporação de controlada, deverá ser
apresentada aos acionistas a avaliação, tanto da incorporadora como
da incorporada, com base no critério do patrimônio líquido a preços
de mercado.
Dita avaliação é formalidade adicional ao procedimento normal de
incorporação, tendo em vista que, em regra, a lei não estabelece crité-
rios para a avaliação das companhias envolvidas.
Isso não significa, contudo, que a relação de troca das ações deva
ser determinada com base no parâmetro estabelecido no artigo 264 da
lei societária.
Nada impede que as sociedades envolvidas optem por estabelecer
a relação de substituição com base em outro critério, desde que os
acionistas sejam informados de qual seria a relação de troca se apurada
com base no valor patrimonial a preços de mercado. 19

B.3 - Das finalidades da exigência de avaliação adicional prevista


no artigo 264 da Lei das S.A.

A avaliação das sociedades envolvidas com base no critério indica-


do pelo artigo 264 da Lei das S.A. tem por primeiro objetivo conferir

19 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S.A. São


Paulo: Saraiva, ZOOZ. p. 376.

3ZZ
ao minoritário elementos para que ele possa decidir sobre a conve-
niência de aceitar ou não a relação de troca estabelecida no Protocolo
da operação.
De fato, o cálculo da relação de substituição com base no vàlor do
patrimônio líquido a preços de mercado é exigido para permitir a
comparação com o critério escolhido pela administração das socieda-
des e indicado no Protocolo, a fim de evidenciar a eqüidade da esco-
lha do referido critério, conforme leciona Alfredo Lamy Filho 20 :

"Essa informação - imposta para evidenciar a equidade no cál-


culo da incorporação votada pelo controlador dos dois lados da
operação- seria, também, (no caso de companhia fechada) uma
alternativa para o valor de reembolso dos acionistas dissidentes. Re-
vogado o direito de recesso na hipótese de incorporação (pela vigência
da Lei n° 7.958, de 1989) subsiste a exigência para esclarecimento
do critério adotado na fixação da relação de troca, e ciência dos
acionistas- tanto da incorporadora como da incorporada- da
inexistência de abuso de poder por parte do controlador (art.
115 da Lei)." (grifamos)

Como se verifica, a Lei das S.A. exigiu a avaliação das sociedades


envolvidas pelo critério do patrimônio líquido a preços de mercado
como forma de assegurar que o acionista minoritário da companhia
incorporada tenha condições de avaliar se a relação de troca proposta
pelos acionistas controladores, e indicada no Protocolo da operação, é
ou não eqüitativa.
Além de servir para demonstrar a eqüidade da relação de substi-
tuição, a avaliação do patrimônio líquido a preços de mercado tam-
bém pode constituir alternativa para a determinação do valor de
reembolso devido aos acionistas que divergirem da operação.
De fato, a lei societária determina, em seu artigo 45, que, como
regra geral, o reembolso deve ser fixado com base no valor do patrimô-
nio líquido contábil da companhia, salvo se existir norma estatutária
adotando o critério do valor econômico para tal finalidade.
No entanto, conforme dispõe o§ 3° do artigo 264 da Lei das S.A.,
caso as relações de substituição das ações dos acionistas minoritários,
fixadas no Protocolo, sejam menos vantajosas do que as que resulta-

zo ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A. vol. 2.
2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 328.

323
riam da avaliação dos patrimônios a preços de mercado, os acionistas
dissidentes poderão escolher, ao exercer o direito de recesso, entre o
reembolso de suas ações calculado com base no valor do patrimônio
líquido contábil ou com base no valor de patrimônio líquido a preços
de mercado.
Em outras palavras, a possibilidade de o valor de reembolso ser
fixado com base no patrimônio líquido avaliado a preços de mercado
somente existe na hipótese de os acionistas da companhia incorporada
serem prejudicados na relação de substituição de suas ações, em com-
paração com o critério indicado no Protocolo da operação.
Portanto, a regra prevista no artigo 264 da Lei das S.A. possui
dupla finalidade, qual seja:
a) evidenciar a eqüidade dos parâmetros escolhidos para a fixação
da relação de substituição das ações; e
b) servir como critério alternativo para o cálculo do valor de reem-
bolso devido aos acionistas dissidentes, na hipótese de a relação de
substituição estabelecida no Protocolo da Incorporação ser menos
vantajosa do que aquela que decorreria da avaliação dos patrimônios
líquidos a preços de mercado.

B.4- Da análise do caso concreto

Em princípio, a operação de incorporação da COMPANHIA


ALFA pela COMPANHIA BETA estaria subordinada ao cumprimen-
to da formalidade prevista no artigo 264 da Lei das S.A., visto que se
trata, inequivocamente, de incorporação de companhia por sua con-
trolada.
Assim, uma análise superficial da situação descrita na Consulta,
levaria ao entendimento de que a realização da aludida incorporação
dependeria da avaliação do patrimônio líquido das sociedades envolvi-
das a preços de mercado, conforme exigido pelo referido artigo da lei
societária.
Lembre-se, contudo, que, em qualquer operação de incorporação,
as ações emitidas pela companhia incorporadora são divididas entre os
acionistas da incorporada, observando-se a participação de cada acio-
nista no capital desta última. Trata-se de uma característica essencial
da incorporação, pois não se poderia admitir que a atribuição das no-
vas ações desse ensejo a privilégios para determinados acionistas, em
detrimento de outros.
No caso de incorporação por subsidiária integral, como ocorre na
hipótese da Consulta, o único acionista da incorporadora extinguir-se-
á em decorrência da operação.

324
Assim, a composição do capital social na sociedade resultante da
incorporação será, necessariamente, idêntica àquela anteriormente
existente na companhia incorporada.
Vale dizer, independente do critério utilizado para determinar a
relação de substituição das ações, os acionistas da incorporada deverão
deter, no capital da incorporadora, exatamente o mesmo percentual
de participação que possuíam antes da incorporação.
Em vista disso, pode-se afirmar que a incorporação da companhia
por sua subsidiária integral não acarreta, em nenhuma hipótese, pre-
juízos patrimoniais aos acionistas da incorporada, visto que as suas
respectivas porcentagens de participação, no novo quadro acionário,
permanecerão absolutamente idênticas.
Ora, conforme referido, a exigência da avaliação prevista no artigo
264 da Lei das S.A. visa, em essência, a conferir informação adicional
aos acionistas da companhia incorporada, de modo que estes possam
aferir o caráter eqüitativo da operação, comparando a relação de subs-
tituição fixada no Protocolo com aquela que resultaria da avaliação
pelo critério do patrimônio líquido a preços de mercado.
Na incorporação por subsidiária integral, a referida informação
adicional não possui nenhuma utilidade para o acionista da incorpora-
da, uma vez que, repita-se, qualquer que seja o critério adotado para
fixar as relações de substituição, a composição acionária da incorpora-
dora será exatamente igual à que existia na incorporada antes da ope-
ração.
Ou seja, não se justifica impor à companhia a realização de uma
formalidade adicional, cujo objetivo é permitir a comparação entre
dois resultados que serão, sempre, absolutamente idênticos.
Da mesma forma, também não faria sentido exigir a avaliação referi-
da no artigo 264 da Lei das S.A. sob o argumento de que os acionistas
dissidentes da operação poderiam requerer que o valor de reembolso de
suas ações fosse apurado com base no critério ali previsto.
De fato, a possibilidade de o valor de reembolso ser calculado com
base no parâmetro mencionado no artigo 264 da lei societária so-
mente existe na hipótese de a relação de substituição estipulada no
Protocolo ser prejudicial para os acionistas da incorporada, em com-
paração com aquela que resultaria da avaliação dos patrimônios a pre-
ços de mercado.
Caso a relação de substituição fixada no Protocolo seja mais van-
tajosa ou igual àquela que decorreria da avaliação adicional determi-
nada pelo artigo 264 da Lei das S.A., o valor de reembolso das ações
será apurado de acordo com a regra geral estabelecida no artigo 45 da

325
Lei no 6.404/1976, qual seja, valor de patrimônio líquido contábil da
companhia, se outro critério não estiver previsto no estatuto social.
Em se tratando de incorporação por subsidiária integral, a relação
de substituição estabelecida no Protocolo será necessariamente igual
a que resultaria da avaliação dos patrimônios a preços de mercado,
visto que, em qualquer caso, os acionistas manterão a mesma partici-
pação que detinham na companhia incorporada.
Vale dizer, o resultado da comparação prevista no artigo 264 da lei
societária nunca será prejudicial aos acionistas da incorporada, inde-
pendentemente do critério adotado para determinar a relação de
substituição.
Constata-se, pois, que nenhuma das duas finalidades que ensejam
a obrigatoriedade da realização da avaliação adicional exigida pelo ar-
tigo 264 da Lei das S.A. justifica a sua aplicação às operações de
incorporação da companhia por sua subsidiária integral.
Ora, o direito comercial, pela própria natureza das atividades que
ele regula, caracteriza-se pela celeridade e informalidade, o que auto-
riza a dispensa do cumprimento de formalidades inúteis, isto é, cujo
atendimento não acarreta nenhum benefício para aqueles que norma
visa a proteger.
O direito societário, sem abrir mão das formalidades necessárias à
segurança das relações jurídicas, tem dispensado rituais despiciendos
e onerosos, reconhecendo o caráter dinâmico e informal dos negócios
mercantis.
Assim, não se justifica, na hipótese da Consulta, a exigência de
apresentação da avaliação prevista no artigo 264 da Lei das S.A., visto
que, conforme referido, o atendimento a tal formalidade não acarreta
nenhuma proteção adicional aos acionistas minoritários da sociedade
incorporada.
Em verdade, a realização da aludida avaliação representaria um
acréscimo nos custos incorridos para a efetivação da incorporação,
sem que, em contrapartida, nenhum benefício fosse auferido pelos
acionistas das sociedades envolvidas.
Nessas condições, pode-se afirmar que dita avaliação, ao invés de
representar uma proteção, seria prejudicial para os próprios acionistas
da incorporada, pois seriam eles que, indiretamente, teriam que arcar
com os custos de sua realização.
Diante do exposto, conclui-se que a regra prevista no artigo 264
da Lei n° 6.404/1976 não se aplica às operações de incorporação de
sociedade anônima por sua subsidiária integral.

326
Logo, não há como se pretender sujeitar a incorporação da COM-
PANHIA ALFA pela COMPANHIA BETA à avaliação dos patrimô-
nios de ambas as companhias a preços de mercado.

C -DA PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL SOBRE OS


INTERESSES PARTICULARES DOS ACIONISTAS E DA
CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO

C.l -Da prevalência do interesse social sobre os interesses


particulares dos acionistas

A prevalência do interesse social sobre a vontade individual dos


acionistas constitui um dos princípios básicos que informam o funcio-
namento das sociedades anônimas, conforme se infere de diversos
dispositivos da lei societária.
De fato, para proteger o interesse social, a Lei das S.A. estabelece
uma série de limites, objetivando impedir que os direitos por ela ou-
torgados aos acionistas sejam direcionados para o atendimento de in-
teresses particulares dos sócios, sejam eles minoritários ou controla-
dores.
Neste sentido, o votQ a ser proferido nas assembléias gerais da
companhia deve ser manifestado tendo em vista o interesse social,
conforme expressamente determina o artigo 115 da Lei n°
6.404!l976.
Como se verifica, o acionista, quer majoritário, quer minoritário,
é responsável pelo conteúdo de seu voto e tem a obrigação de exercê-
lo sempre no interesse da companhia, como adverte Luiz Gastão Paes
de Barros Leães: 21

"Assim sendo, ao exercer o direito de voto, o sócio não pode perse-


guir nenhum interesse particular, mas o seu interesse de sócio uti
socius, que se considera coincidente com o interesse social. Neste sen-
tido, pode-se dizer que, embora o voto seja livre, o acionista está
obrigado a perseguir o interesse social." (grifamos)

21 LUIS GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Apud MAURO RODRIGUES PEN-


TEADO. Aumento de Capital nas Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 1988. p.
257/258.

327
Em conseqüência, o exercício do direito de voto do acionista so-
mente será legítimo se tendente à satisfação do interesse social. Ou
seja, o acionista que proferir voto contrário ao interesse social estará
atuando de maneira abusiva.
O acionista que exerce seu direito de voto abusivamente, em
busca unicamente de seus interesses pessoais, deve responder pelos
danos causados à sociedade ou aos demais acionistas, nos termos do§
4° do artigo 115 da Lei das S .A.
A violação ao princípio da prevalência do interesse social configu-
ra, ainda, abuso de poder por parte do acionista controlador.
Com efeito, o abuso de poder de controle deve ser entendido,
justamente, como a conduta do acionista controlador na direção dos
negócios contrária ao interesse social, da qual resulte prejuízo para a
sociedade, para seus acionistas ou para terceiros.
Nos termos da alínea "c" do § 1o do artigo 117 da Lei das S.A.,
considera-se modalidade de abuso de poder de controle "promover
alterações estatutárias, emissão de valores mobiliários ou adoção de
políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da compa-
nhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que tra-
balham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emiti-
dos pela companhia" (grifamos).
Da mesma forma, a alínea "e" do referido dispositivo qualifica
como abusiva a conduta do acionista controlador no sentido de "indu-
zir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou,
descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover,
contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembléia
geral" (grifamos).
Vale também mencionar que um dos limites ao exercício da auto-
nomia privada nos acordos de acionistas é justamente a observância do
princípio da prevalência do interesse social, conforme se depreende
zo
do § do artigo 118 da lei societária.
Ao analisar o dispositivo transcrito, a doutrina sustenta que os
acionistas podem, livremente, firmar acordos e outras convenções
para regular o exercício dos direitos atribuídos pela Lei das S.A., des-
de que tais avenças não contrariem o interesse social 22 •
Neste sentido, Trajano de Miranda Valverde leciona que o inte-

22 WALDÍRIO BULGARELLI. Questões de Direito Societário. São Paulo: Revista


dos Tribunais, 1983. p. 30.

328
resse social constitui a medida para verificar-se a licitude das conven-
ções de voto 23 :

"A licitude ou a ilicitude das convenções, que vinculam, temporaria-


mente, o direito de voto, depende, pois, da sua causa ou fim. É um
problema a resolver em cada caso, segundo o critério, que nos parece
justo, da jurisprudência americana, que considera válidas as
convenções sempre que visam ao interesse da sociedade anôni-
ma" (grifamos)

Diversos outros dispositivos da Lei das S.A. asseguram a prevalên-


cia do interesse social, erigindo-o à categoria de um princípio que deve
servir como limite à atuação não apenas dos acionistas, mas de todos
os demais participantes da vida societária, como os administradores
(artigos 154 a 15 7) e conselheiros fiscais (artigo 163, inciso IV).
Diante disso, pode-se verificar a existência de um princípio básico
que permeia nossa lei societária, qual seja: é ilegítimo o exercício de
qualquer direito decorrente da condição de acionista que não tenha
como objetivo o interesse social, mas que vise a beneficiar interesses
particulares de determinado acionista ou grupo de acionistas ou mes-
mo terceiros em detrimento da sociedade.
Dessa forma, conclui-se que os direitos decorrentes da condição
de acionista devem ser sempre exercidos visando a consecução do
interesse social.

C.2- Da caracterização do abuso de direito

Até o advento do Código Civil de 2002, não existia, em nosso


ordenamento jurídico, uma norma que reconhecesse, em termos ge-
rais, a teoria do abuso de direito. No entanto, tal teoria era indireta-
mente consagrada pela regra prevista no artigo 160 do Código Civil de
1916, que prescrevia que:

"Art. 160. Não constituem atos ilícitos:


I - Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido. (grifamos)
(. . .)"

23 TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE. Sociedades por Ações. vol. 11. Rio de


Janeiro: Forense, 1959. p. 59 e ss.

329
Como se verifica, a redação do dispositivo transcrito revelava, a
contrário senso, que os atos praticados no exercício irregular de um
direito seriam considerados ilícitos.
Contudo, o Código Civil de 1916 não estabelecia requisitos claros
e genéricos para identificar quando o exercício de um direito seria
irregular, isto é, quando um ato poderia ser considerado abusivo.
O Código Civil de 2002, inovando em relação ao texto revogado,
acolheu de forma expressa a teoria do abuso do direito, conforme se
verifica do disposto em seu artigo 187, in verbis:

"Art. 187- Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". (grifamos)

A redação do novo dispositivo, inspirada no Código Civil portu-


guês, impõe, assim, limites éticos aos exercícios de direitos subjetivos
e outras prerrogativas individuais. Tais limites serão estabelecidos ten-
do como parâmetros a função social e econômica dos direitos, os bons
costumes e o princípio da boa-fé objetiva.
Dessa forma, a verificação do caráter abusivo de determinado ato
não está limitada apenas à intenção do agente em prejudicar alguém,
mas centra-se no desvio do exercício do direito em relação à sua fun-
ção econômica ou social.
Em verdade, o ponto fundamental para a identificação do abuso
de direito, de acordo com a teoria adotada pelo artigo 187 do Código
Civil de 2002, está na aferição da existência de finalidade legítima
para a prática do ato. 24
De fato, o abuso do direito caracteriza-se quando uma pessoa, ao
exercer um direito do qual é titular, pratica um ato sem que tenha
motivo legítimo para tanto.
Neste sentido, a doutrina ressalta que a investigação sobre a even-
tual existência de abuso deve concentrar-se na busca do motivo legíti-
mo para a prática do ato: 25

24 HELOÍSA CARPENA. Abuso do Direito no Código de 2002.Relativização de


Direitos na Ótica Civil-Constitucional. In: GUSTAVO TEPEDINO (coord.).A Parte
Geral do Novo Código Civil- Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 382.
25 LUIZ ALBERTO WARAT Apud ALAÔR EDUARDO SCISINIO. As Maiorias
Acionárias e o Abuso do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 59.

330
"El abuso nos parece- afirma Josserand- como intimamente ligado
a la idea de la finalidad de los derechos, entendida como socialmente
indispensable, es asegurada, no solamente por los límites concretos
trazados dentro de los instrumentos legislativos o regulamentarias,
sino también por las fronteras menos aparentes que derivan de la
función social de las diversas prerrogativas jurídicas y que se
constatan por un processo de investigación constante, uniforme
y segura: la búsqueda deZ motivo legítimo. Y agrega, que esas prer-
rogativas que aparecen como derechos soberanos, no son más que fa-
cultades de intereses limitados, que no pueden ser realizados correcta-
mente sino dentro y conforme al espíritu de la institución." (grifamos)

Constitui, pois, ato abusivo aquele mediante o qual a pessoa que o


praticou não visa a obter uma finalidade legítima.
Por finalidade legítima, cuja ausência configura o caráter abusivo
da conduta, deve-se entender aquela que está de acordo com o fim
econômico e social que a lei pretendeu preservar ao conferir determi-
nado direito ao agente.
Ou seja, o caráter abusivo do ato deve ser analisado a partir da
adequação de seu exercício aos fins econômicos e sociais para os quais
ele foi atribuído a seu titular.
Com efeito, ao garantir determinado direito ao particular, o orde-
namento jurídico tem em vista uma função econômica ou social pró-
pria de tal direito. Esta função condiciona o exercício do direito pelo
respectivo titular, de modo que não sendo ela observada ou sendo
excedidos os seus limites estará caracterizado o abuso de direito, con-
forme menciona a doutrina: 26

"Cada direito possui uma função instrumental própria, que jus-


tifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício. Em não
raros preceitos do Cód. Civ. transparece a importância reconhecida,
na disciplina dos diversos institutos, ao fim social ou econômico que se
lhe confere. A mesma idéia sobressai aqui. O titular de um direito
deve exercê-lo nos limites do seu fim social ou econômico. Ultra-
passadas essas fronteiras, o exercício será abusivo."(grifamos)

Assim, o exercício dos direitos deve atender a sua função própria,


isto é, a finalidade econômica e social que visam a atender. O ato que,

26 MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA. Direito das Obrigações. Coimbra: Alme-


dina, 2000. p. 77.

331
embora aparentemente conforme a lei, for contrário a essa finalidade
é abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direitoY
Dessa forma, incide na prática de abuso o indivíduo que desvia o
exercício de um direito de seu fim social ou econômico próprio e
característico.
Portanto, o exercício de determinado direito será abusivo, com
fundamento no artigo 187 do Código Civil de 2002, na hipótese de
não corresponder a uma finalidade legítima, isto é, de contrariar o fim
econômico e social visado pela lei que conferiu ao titular o referido
direito.
Por fim, vale esclarecer, que, apesar de a redação do artigo 187 do
Código Civil de 2002 referir-se ao ato ilícito cometido pelo "titular de
um direito", a possibilidade de caracterização do abuso não se restrin-
ge aos direitos subjetivos propriamente ditos.
Com efeito, deve-se entender a palavra "direito", constante do
referido dispositivo legal em sentido amplo, de modo a abranger qual-
quer situação jurídica na qual o comportamento do agente apresente
os mesmos requisitos exigidos para a configuração do exercício abusi-
vo de um direito. 28
Assim, mesmo o direito de recorrer ao Poder Judiciário pode ser
utilizado abusivamente, desde que a ação do agente não seja pautada
por uma finalidade legítima, conforme refere a doutrina: 29

"Assim, tenho eu o direito de promover uma ação, para chamar al-


guém a juízo. Se o faço, porém, com a vontade viciada por dolo ou
culpa, prejudicando o promovido, claro que abusei de meu direito
de recorrer à Justiça." (grifamos)

Verifica-se, pois, que qualquer direito, inclusive o direito de re-


correr à justiça, pode ser objeto de abuso por seu titular, na hipótese
de este contrariar ou exceder os fins econômicos e sociais estabeleci-
dos pela ordem jurídica.

27 RUBENS REQUIÃO. "Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade


Jurídica". Revista dos Tribunais. v. 91, n. 803, p. 755. set. 2002.
28 MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA. Direito das Obrigações. Coimbra: Alme-
dina, 2000. p. 75; HELOÍSA CARPENA. "Abuso do Direito no Código de 2002."
Relativização de Direitos na Ótica Civil-Constitucional. In: GUSTAVO TEPEDINO
(coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil- Estudos na Perspectiva Civil-Cons-
titucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 383.
29 EVERARDO DA CUNHA LUNA. "O Ato Ilícito." Revista dos Tribunais. V. 89,
n. 773, p. 764. jan. 1996.

332
C.3 -Análise do caso concreto

Conforme referido, em função do princípio da prevalência do in-


teresse social, consagrado pela Lei das S.A., os direitos decorrentes da
condição de acionista devem sempre ser exercidos em benefício da
companhia.
Vale dizer, não pode o acionista, ao exercer uma prerrogativa con-
ferida por lei, visar a causar prejuízos ao interesse da sociedade.
Em face de tal princípio, pode-se afirmar que a preservação do
interesse da companhia constitui a finalidade econômica e social que
deve limitar o exercício dos direitos conferidos aos acionistas pela Lei
das S.A.
Ou seja, o exercício dos direitos previstos na lei societária somen-
te é legítimo na medida em que eles são utilizados em conformidade
com a consecução do interesse social.
Assim, quem utiliza os direitos de sócio em prejuízo da companhia
está, inequivocamente, atuando de forma abusiva, na medida em que
contraria o fim econômico e social da norma que lhe outorgou os
referidos direitos.
Por outro lado, o acordo de acionistas, como também já mencio-
nado, constitui contrato de natureza civil, celebrado à margem do
estatuto social e do qual não decorre nenhum direito ou obrigação
patrimonial para a companhia em cujo âmbito ocorrerá sua execução.
De fato, o acordo de acionistas visa a disciplinar, extra-socialmen-
te, a composição dos interesses individuais dos sócios.
Trata-se, assim, de um contrato que afeta apenas as relações entre
os acionistas convenentes, não influindo na relação destes com a com-
panhia da qual são sócios.
Neste sentido, o próprio artigo 118, § zo, da Lei das S.A. expres-
samente adverte que tais acordos não eximem os contratantes de ob-
servarem seus deveres como acionistas, dentre os quais destaca-se o
de priorizar o atendimento do interesse social.
Logo, não há dúvida de que a eventual discussão sobre a extinção
do Acordo de Acionistas da COMPANHIA ALFA, em função de sua
incorporação pela COMPANHIA BETA, constitui questão restrita à
esfera particular de seus signatários, que não afeta o cumprimento de
seus deveres como acionistas da Companhia.
Ora, não pode o interesse social da COMPANHIA ALFA ser pre-
judicado por discussões de natureza privada de seus acionistas. A estes
cumpre não envolver a Companhia no âmbito de tais discussões, abs-
tendo-se de tomar medidas com o objetivo de inviabilizar operações
benéficas ao interesse social.

333
No caso presente, segundo nos foi informado, a incorporação pela
COMPANHIA BETA constitui medida que claramente atende ao in-
teresse da COMPANHIA ALFA, tendo em vista os relevantes benefí-
cios de natureza fiscal que tal operação acarretará para as sociedades
envolvidas, e, indiretamente, para seus próprios acionistas.
Diante disso, o eventual ato de algum signatário do Acordo de
Acionistas da COMPANHIA ALFA que, no âmbito da discussão so-
bre a continuidade da vigência de tal Acordo, pretender inviabilizar a
incorporação da Companhia pela COMPANHIA BETA carecerá de
motivo legítimo, pois não estará observando o interesse social na rea-
lização de tal operação.
Vale dizer, a conduta de tal acionista, ao não atuar em conformi-
dade com o princípio da prevalência do interesse social, configurará
abuso de direito, em função da violação ao fim econômico dos direi-
tos que a qualidade de acionista lhe assegura.
Em princípio, nada impede o acionista eventualmente discordante
de questionar judicial ou extrajudicialmente a extinção do Acordo de
Acionistas. Porém, como se trata de questão particular entre as Partes
de tal Acordo, cujo desfecho não afeta a validade da incorporação da
COMPANHIA ALFA pela COMPANHIA BETA, deve ele restringir
a discussão aos demais signatários do Acordo, sem envolver direta-
mente a Companhia.
Caso contrário, tal acionista estaria atuando com abuso de direito,
na medida em que privilegiaria seu interesse individual, de ver manti-
da a vigência do Acordo de Acionistas, em detrimento do interesse
social, consubstanciado pelos benefícios decorrentes da incorporação.
Portanto, a eventual iniciativa, judicial ou extrajudicial, de algum
acionista da COMPANHIA ALFA no sentido de, por não concordar
com a extinção do Acordo de Acionistas, paralisar a incorporação da
Companhia pela COMPANHIA BETA, caracterizaria ato ilícito, nos
termos do disposto no artigo 187 do Código Civil de 2002.

111- CONCLUSÕES

Diante do exposto, conclui-se que:


l. A extinção da COMPANHIA ALFA, em decorrência de sua
incorporação pela COMPANHIA BETA, acarretará o término da vi-
gência do Acordo de Acionistas, visto que:
a) o acordo de acionistas tem natureza de contrato parassocial, na
medida em que regula, extra-socialmente, a composição dos interes-
ses individuais dos sócios;

334
b) por constituir contrato parassocial, a vigência do acordo de
acionistas depende da existência da sociedade, em cuja esfera dar-se-
á sua execução, de modo que, desaparecendo esta, extingue-se o acor-
do de acionistas, tendo em vista a impossibilidade do cumprimento de
suas cláusulas;
c) o acordo de acionistas constitui pacto acessório ao contrato
social, razão pela qual o desaparecimento deste, em virtude da extin-
ção da sociedade, implica, necessariamente, o término da vigência do
acordo de acionistas;
d) não há como se pretender que o acordo de acionistas, extinto
em decorrência do desaparecimento da companhia incorporada passe,
automaticamente, a disciplinar a relação de seus signatários enquanto
acionistas da incorporadora, pois tal acordo não acarreta para a socie-
dade incorporada nenhuma obrigação que, em decorrência da incor-
poração, devesse ser assumida pela companhia incorporadora; e
e) somente seria possível admitir que o acordo de acionistas pas-
sasse a ser aplicável em relação à incorporadora caso os contratantes
tivessem expressamente previsto tal possibilidade, o que não se veri-
fica no Acordo de Acionistas da COMPANHIA ALFA.
2. A regra prevista no artigo 264 da Lei n° 6.404/1976 não se
aplica às operações, como a descrita na Consulta, de incorporação de
sociedade anônima por sua subsidiária integral, uma vez que:
a) o artigo 264 da Lei das S.A. estabelece, como formalidade adi-
cional para as operações de incorporação envolvendo companhia con-
trolada, a necessidade de a incorporadora e a incorporada serem ava-
liadas pelo critério de patrimônio líquido a preços de mercado;
b) a exigência de tal formalidade adicional possui dupla finalidade,
qual seja, evidenciar a eqüidade dos parâmetros escolhidos para a fixa-
ção da relação de substituição das ações e servir como critério alterna-
tivo para o cálculo do valor de reembolso devido aos acionistas dissi-
dentes, na hipótese de a relação de substituição estabelecida no Pro-
tocolo da incorporação ser menos vantajosa do que aquela que decor-
reria da avaliação dos patrimônios líquidos a preços de mercado;
c) em se tratando de incorporação da companhia por sua subsidiá-
ria integral, a composição do capital social na sociedade resultante da
operação será, necessariamente, idêntica àquela anteriormente exis-
tente na companhia incorporada, qualquer que seja o critério adotado
para determinar a relação de substituição das ações;
d) nenhuma das duas finalidades que ensejam a obrigatoriedade
da realização da avaliação adicional exigida pelo artigo 264 da Lei das
S.A. justifica a sua aplicação às operações de incorporação da compa-

335
nhia por sua subsidiária integral, uma vez que, em qualquer hipótese,
os acionistas da incorporada deterão, no capital da incorporadora, exa-
tamente o mesmo percentual de participação que possuíam antes da
incorporação, e
e) o atendimento à formalidade adicional prevista no artigo 264 da
lei societária não representaria nenhuma proteção adicional aos acio-
nistas da sociedade incorporada, mas, ao contrário, implicaria acrésci-
mo nos custos incorridos para a efetivação da incorporação, o qual, em
última análise, seria suportado pelos próprios acionistas.
3. A eventual iniciativa, judicial ou extrajudicial, de algum acionis-
ta da COMPANHIA ALFA no sentido de, por não concordar com a
extinção do Acordo de Acionistas, paralisar a incorporação da Compa-
nhia pela COMPANHIA BETA seria caracterizada como ato ilícito,
nos termos do disposto no artigo 187 do Código Civil de 2002, na
medida em que:
a) a prevalência do interesse social sobre a vontade individual dos
acionistas constitui um dos princípios básicos que informam o funcio-
namento das sociedades anônimas;
b) é ilegítimo o exercício de qualquer direito decorrente da condi-
ção de acionista que não tenha como objetivo a consecução do interes-
se social, mas que vise a beneficiar interesses particulares de determi-
nado acionista;
c) o artigo 187 do Código Civil de 2002 acolheu de forma expres-
sa a teoria do abuso do direito, determinando que o exercício de
qualquer direito deve ser limitado pela sua função social e econômica,
pelos bons costumes e pelo princípio da boa-fé objetiva;
d) o exercício de determinado direito será abusivo, com funda-
mento no artigo 187 do Código Civil de 2002, na hipótese de não
corresponder a uma finalidade legítima, isto é, de contrariar o fim
econômico e social visado pela lei que conferiu ao titular o referido
direito;
e) qualquer direito pode ser objeto de abuso por seu titular, inclu-
sive o direito de recorrer à justiça, desde que a ação do agente não seja
pautada por uma finalidade legítima;
f) a preservação do interesse da companhia constitui a finalidade
econômica e social que deve limitar o exercício dos direitos conferi-
dos aos acionistas pela Lei das S.A., de modo que o acionista que
utiliza os direitos de sócio em prejuízo da sociedade está, inequivoca-
mente, atuando de forma abusiva;
g) como o acordo de acionistas constitui contrato que afeta apenas
as relações entre os acionistas convenentes, a eventual discussão sobre

336
a extinção de tal contrato restringe-se à esfera particular de seus sig-
natários, não interferindo no cumprimento de seus deveres como
acionistas;
h) a incorporação pela COMPANHIA BETA constitui medida
que claramente atende ao interesse social da COMPANHIA ALFA,
tendo em vista os relevantes benefícios de natureza fiscal que tal ope-
ração acarretará para as sociedades envolvidas; e
i) eventual a conduta de algum signatário do Acordo de Acionistas
da COMPANHIA ALFA que, no âmbito da discussão sobre a conti-
nuidade da vigência de tal Acordo, pretender inviabilizar a incorpora-
ção da Companhia pela COMPANHIA BETA, configurará abuso de
direito, em virtude da não observância do fim econômico e social dos
direitos decorrentes da qualidade de acionista.
Foi o nosso Parecer, em fevereiro de 2003.

337
INCORPORAÇÃO DE AÇÕES.
INAPLICABILIDADE DO A~TIGO 223, §§ 3° E 4°,
DA LEI DAS S.A. INEXISTENCIA DE ILICITO
CIVIL OU ADMINISTRATIVO CASO A
COMPANHIA INCORPORADORA NÃO ABRA
SEU CAPITAL

I - DA CONSULTA

Recebemos da Consulente solicitação de Parecer Jurídico nos se-


guintes termos:

"Uma pessoa jurídica controladora de uma companhia fechada


("Alfa"), está em vias de concretizar a aquisição do controle de uma
companhia aberta, ("Beta").
Os atuais controladores de Beta detêm praticamente 94% do capital
social. Os acionistas minoritários são titulares de cerca de pouco mais
de 6% do capital, sendo 5,62% das ações ordinárias emitidas, e
24,94% das ações preferenciais de emissão de Beta.
Caso a alienação do controle se concretize, será realizada a oferta
pública de aquisição de que trata o art. 254-A da Lei 6.404/76, com
sua atual redação, dirigida aos titulares de ações ordinárias de emis-
são de Beta.
Dentre os vários modelos de aquisição que estão em análise, e consi-
derando ainda certos aspectos fiscais, cogita-se, como uma das alter-
nativas, de realizarem-se os seguintes atos:
(i) oferta pública obrigatória aos acionistas titulares de ações ordiná-
rias de Beta, por 80% do preço de aquisição das ações de controle, e
nas mesmas condições da referida aquisição (isto é, pequena parte em
dinheiro, e o restante em ações de emissão de Alfa, companhia fecha-
da);
(ii) concomitantemente, oferta pública voluntária, dirigida aos acio-
nistas titulares de ações ordinárias e preferenciais de emissão de Beta,

339
por preço idêntico ao de aquisição das ações de controle, mas integral-
mente em dinheiro e à vista, condicionada a liquidação de tal oferta,
contudo, à adesão de acionistas minoritários em número suficiente
para preencher os requisitos de cancelamento de registro de compa-
nhia aberta de Beta, de acordo com a regulamentação da Comissão de
Valores Mobiliários- CVM; e
(i i i) posteriormente, incorporação das ações de Beta em Alfa, tornan-
do aquela subsidiária integral desta, observando-se o art. 264 da Lei
6.404!76, com sua atual redação, e efetuando-se a substituição das
ações por relação de troca idêntica à utilizada para o cálculo da per-
muta de ações no pagamento do preço das ações de controle (em que,
basicamente, cada companhia envolvida foi avaliada a 1,8 vez seu
valor patrimonial).
A questão principal diz respeito à eventual aplicação, sobre tal incor-
poração de ações, do comando do § 3° do art. 223 da Lei 6.404!76,
introduzido pela Lei 9.457/97, segundo o qual "se a incorporação,
fusão ou cisão envolverem companhia aberta, as sociedades que a
sucederem serão também abertas, devendo obter o respectivo regis-
tro ... ".
O legislador da reforma de 2001, ao alterar o art. 264, § 4°, da Lei
6.404/76, fez referência apenas "às normas previstas neste artigo",
isto é, no próprio artigo 264, e não a quaisquer normas referentes a
incorporações. Assim, nosso entendimento inicial é o de que nem todas
as disposições relativas à incorporação em geral se aplicariam analo-
gicamente às incorporações de ações, mas apenas as disposições rela-
tivas à incorporação de partes submetidas a controle comum, constan-
tes do art. 264.
Adicionalmente, gostaríamos também de obter sua opinião sobre os
efeitos da regra do§ 4° do citado artigo 223 da Lei 6.404/76, segun-
do o qual a penalidade por não efetivar-se a abertura de capital da
companhia incorporadora, ou resultante da fusão ou cisão, seria o
pagamento do valor de reembolso, caso exercido o direito de retirada
conferido por aquela norma. É que não se cogita de postular o registro
de companhia aberta de Alfa, e inclusive se pretende anunciar esse
fato já no aviso de fato relevante que der notícia da intenção de reali-
zar as ofertas antes mencionadas.
Nossa dúvida, no particular, diz respeito à possibilidade, ou não,
tanto em operações de incorporação como de incorporação de ações,
(i) de a CVM impor sanções administrativas aos administradores e
acionistas controladores da companhia incorporadora e (ii) de acio-
nistas minoritários postularem indenização contra aquelas pessoas,

340
na hipótese de não ser realizada a abertura de capital da companhia
incorporadora ou incorporadora das ações. Em outras palavras: nosso
questionamento, quanto ao ponto, seria relativo à existência de ato
ilícito, civil e administrativo, na omissão em providenciar a abertura
de capital."

11 -DO PARECER

Os fatos descritos na Consulta acima transcrita podem ser resumi-


dos da seguinte forma:
a) companhia fechada (denominada "Alfa") pretende adquirir o
controle acionário de companhia aberta (designada "Beta");
b) posteriormente, Alfa tem a intenção de promover a incorpora-
ção da totalidade das ações de emissão de Beta, convertendo-a em sua
subsidiária integral; e
c) após incorporar ao seu patrimônio as ações emitidas por Beta,
Alfa não deverá registrar-se como companhia aberta perante a Comis-
são de Valores Mobiliários- CVM, de modo que os atuais acionistas
de Beta passarão a deter ações emitidas por uma companhia fechada.
Assim, visando à exposição sistemática da matéria, desenvolvere-
mos o presente Parecer com base na análise das seguintes questões:
1 -da inaplicabilidade do artigo 223, §§ 3° e 4°, da Lei das S.A.
à incorporação de ações; e
2 - da inexistência de ilícito civil ou administrativo caso a compa-
nhia incorporadora não abra seu capital.

1 -DA INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 223, §§ 3° E 4°,


DA LEI DAS S.A. À INCORPORAÇÃO DE AÇÕES

1. A. Da regra prevista no artigo 223, §§ 3° e 4°, da Lei das S.A.

A Consulta refere-se, basicamente, à interpretação e aplicação do


disposto nos §§ 3° e 4° do artigo 223 da Lei das S.A., ambos introdu-
zidos pela Lei n° 9.457/1997, os quais estabelecem que:

"Art. 223- (... )


§ 3°- Se a incorporação, fusão ou cisão envolverem companhia aber-
ta, as sociedades que a sucederem serão também abertas, devendo
obter o respectivo registro e, se for o caso, promover a admissão de
negociação das novas ações no mercado secundário, no prazo máximo

341
de cento e vinte dias, contados da data da assembléia-geral que apro-
vou a operação, observando as normas pertinentes baixadas pela Co-
missão de Valores Mobiliários.
§ 4° - O descumprimento do previsto no parágrafo anterior dará ao
acionista direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do
valor das suas ações (artigo 45), nos trinta dias seguintes ao término
do prazo nele referido, observado o disposto nos §§ ZO e 4° do artigo
137."

Como se verifica, o § 3° acima transcrito estipula que as socieda-


des resultantes de operações de incorporação, fusão e cisão envolven-
do companhias abertas deverão também obter, perante a CVM, o
registro para negociação pública das ações de sua emissão.
Na hipótese de o referido registro não ser obtido no prazo de 120
dias contados da data da assembléia geral que aprovar a operação, o §
4° do artigo 223 da lei societária confere aos acionistas minoritários
que não desejarem permanecer como sócios de uma companhia fecha-
da o direito de retirarem-se da sociedade, mediante o recebimento do
valor de reembolso de suas ações.
O direito de recesso outorgado pelo dispositivo em tela não decor-
re da operação de incorporação, fusão ou cisão, mas do fato de a
sociedade sucessora não se registrar como companhia aberta, junto à
CVM, no prazo especificado no§ 3° do artigo 223 da Lei das S.A.
O fato gerador do recesso, conforme já analisamos, é a não aquisi-
ção, por parte da sociedade resultante da operação, do status de com-
panhia aberta. 1
Assim, mesmo acionistas que eventualmente tenham votado a fa-
vor da operação podem, após o término do prazo de 120 dias, reque-
rer o pagamento do valor de reembolso de suas ações, caso não con-
cordem em que a companhia sucessora permaneça com seu capital
fechado.

l.B. Da distinção entre as operações de incorporação de ações e


incorporação de sociedades

A operação de incorporação de ações, prevista no artigo 252 da


Lei n° 6.404/1976, não se confunde com a operação de incorporação
de sociedades, conceituada no artigo 227 da mesma Lei.

1 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro:


Renovar, 1998. p. 81.

342
Com efeito, os principais pressupostos da operação de incorpora-
ção de sociedades são a integração patrimonial entre a incorporadora
e a incorporada, com a conseqüente extinção desta última, e a suces-
são em seus direitos e obrigações pela incorporadora. Estes são os
elementos que outorgam ao instituto da incorporação de sociedades a
sua especificidade.
No entanto, a incorporação das ações de emissão de determinada
sociedade, para convertê-la em subsidiária integral, não implica a in-
corporação do patrimônio da incorporada ao da incorporadora e nem
a extinção da primeira.
Vale dizer, ao incorporar a totalidade das ações de emissão de uma
companhia, a sociedade incorporadora não absorve o patrimônio daque-
la e nem passa a sucedê-la em seus direitos e obrigações. Ao contrário, a
companhia cujas ações são incorporadas subsiste integralmente como
pessoa jurídica, em sua plenitude patrimonial e administrativa.
Logo, na operação prevista no artigo 252 da lei societária não
ocorrem os elementos essenciais que caracterizam a incorporação de
sociedades.
Em virtude da operação de incorporação de ações, os acionistas da
incorporada subscrevem aumento de capital da incorporadora com as
ações de sua propriedade, tornando-se, voluntária ou involuntaria-
mente, sócios da incorporadora.
Portanto, há no caso, tipicamente, aumento de capital mediante
integralização com bens consistentes em ações de emissão da incorpo-
rada.
Neste sentido, Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre Tavares
Guerreiro reconhecem que a incorporação de ações constitui, em es-
sência, um aumento de capital da companhia incorporadora e salien-
tam que a similitude entre tal operação e a incorporação de sociedades
é muito mais procedimental do que de substância: 2

"Apesar da semelhança da operação em tela com o instituto regulado


no art. 227, parece-nos que a expressão escolhida pelo legislador-
incorporação de ações - é, de certo modo imprópria, por suscitar
confusões com aquele instituto. Na verdade, a incorporação de a-
ções nada mais significa do que um aumento de capital social de

z EG BERTO LACERDA TEIXEIRA e JOSÉ ALEXANDRE TAVARES G UERREI-


RO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. v. 2. São Paulo: Editora José
Bushatsky, 1979. p. 727/728.

343
determinada companhia brasileira, mediante a conferência, pelos
subscritores, de todas as ações do capital de outra sociedade, que se
converte em subsidiária integral, recebendo seus ex-acionistas ações
novas do capital da primeira. Em nosso entender, a similitude da
incorporação de ações (art. 252) com a incorporação de socieda-
des (art. 22 7) é mais de processo do que de substãncia, dado que,
na incorporação de ações não se verifica extinção de sociedades,
o que é da essência da incorporação a que se refere o art. 227."
(grifamos)

Conclui-se, pois, que a incorporação de ações apresenta natureza


jurídica de um aumento de capital social integralizado em bens, o
qual apenas segue procedimento semelhante ao estabelecido pela Lei
das S.A. para as operações de incorporação de sociedades.

l.C. Da interpretação da regra prevista no artigo 223, §§ 3° e 4°,


da Lei das S.A. e da impossibilidade de sua extensão às operações
de incorporação de ações

O § 3° do artigo 223 da Lei das S.A. refere-se apenas às hipóteses


de incorporação, fusão e cisão, não tendo feito menção expressa à
operação prevista no artigo 252 da lei societária. Assim, em princípio,
a sociedade fechada que incorpora as ações emitidas por uma compa-
nhia aberta não está sujeita à aplicação da regra contida no referido
§ 30.
De fato, como as operações de incorporação e incorporação de
ações possuem natureza substancialmente diversa, devem elas serre-
guladas com base em normas jurídicas e princípios próprios, não se
podendo pretender que uma delas esteja automaticamente submetida
às mesmas regras que regulam a outra.
Vale dizer, tendo a regra em questão sido editada para disciplinar
operações de natureza diversa, não pode ela ser estendida aos casos de
incorporação de ações.
A respeito, deve ser enfatizado que o§ 3° do artigo 223 da Lei das
S.A. expressamente determina que as sociedades sucessoras das com-
panhias incorporadas, fundidas ou cindidas registrem-se como aber-
tas, ao dispor que "se a incorporação, fusão ou cisão envolverem com-
panhia aberta, as sociedades que a sucederem serão também abertas
(. .. .) " (grifamos).
A regra legal em tela utiliza a expressão "sucederem", visto que,
por força dos artigos 227, 228 e 229, § 1°, da Lei no 6.404/1976, as

344
três modalidades de operações por ela expressamente mencionadas
implicam a sucessão de todos os direitos e obrigações das sociedades
envolvidas pelas companhias resultantes da incorporação, fusão ou
cisão.
Em se tratando da operação prevista no artigo 252 da lei societá-
ria, contudo, não existe sucessão da companhia incorporadora em
relação àquela cujas ações são incorporadas. Conforme referido, esta
apenas é convertida em subsidiária integral da primeira, mantendo
plenamente a sua integridade patrimonial e administrativa.
Ou seja, a circunstância de o artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. ter
se referido expressamente ao instituto da sucessão demonstra que a
regra nele contida não visou a abranger as sociedades fechadas que
incorporarem ações de emissão de companhias abertas.
Tal conclusão é também confirmada pelo fato de a Lei das S.A. e
a própria CVM, quando pretenderam estender a aplicação de normas
destinadas a regular as operações de incorporação de sociedades às
hipóteses de incorporação de ações, o terem feito expressamente.
Neste sentido, lembre-se que a Lei no 10.303/2001, que promo-
veu diversas modificações na lei societária, alterou a redação do § 4°
do artigo 264 da Lei das S.A., passando a textualmente dispor que as
normas previstas em tal artigo aplicam-se, entre outras hipóteses, à
incorporação de ações de companhia controlada ou controladora ou
de sociedades sob controle comum, in verbis:

"Art. 264 - (. ..)


§ 4° -Aplicam-se as normas previstas neste artigo à incorporação de
controladora por sua controlada, à fusão de companhia controladora
com a controlada, à incorporação de ações de companhia contro-
lada ou controladora, à incorporação, fusão ou incorporação de
ações de sociedades sob controle comum." (grifamos)

O artigo 264 da lei societária, em sua redação original, regulava


apenas as operações de incorporação de companhia controlada por sua
controladora e de fusão entre controladora e controlada, estabelecen-
do, para tais hipóteses, uma formalidade adicional em relação ao pro-
cedimento geral de incorporação e de fusão, qual seja, a obrigatorieda-
de de avaliação das companhias envolvidas com base no critério de
patrimônio líquido a preços de mercado.
Ou seja, trata-se de um dispositivo destinado a disciplinar especi-
ficamente as operações de incorporação e de fusão, cuja aplicação foi,
de forma expressa, estendida para as hipóteses de incorporação de
ações.

345
Nessas condições, pode-se concluir que o legislador de 2001 reco-
nheceu que, quando a lei pretende que uma regra referente à incorpo-
ração de sociedades seja aplicada à incorporação de ações, deve fazer
expressa menção a esta modalidade de operação societária.
Se o mesmo legislador de 2001 optou por não submeter expressa-
mente as hipóteses de incorporação de ações à regra prevista no artigo
223, § 3°, da Lei das S.A., ao contrário do ocorrido em relação ao
preceito contido no artigo 264, deve-se entender que ele considerou
que a exigência de abertura de capital não deveria prevalecer em rela-
ção às sociedades fechadas que eventualmente incorporassem as ações
emitidas por companhias abertas.
Da mesma forma, a Instrução CVM n° 319/1999, que dispõe
sobre as operações de incorporação, fusão e cisão envolvendo compa-
nhias abertas, somente se refere à incorporação de ações em seu artigo
12, estabelecendo que:

"Art. 12 -As demonstrações financeiras que servirem de base para


operações de incorporação, fusão e cisão envolvendo companhia aber-
ta deverão ser auditadas por auditor independente registrado na
CVM.
Parágrafo Único - O disposto neste artigo aplica-se, ainda, aos
casos de incorporação de ações previstos no art. 252 da Lei n°
6.404!76." (grifamos)

Vale dizer, quando a CVM entendeu que as regras da Instrução


CVM no 319/1999 deveriam ser aplicadas às operações de incorpora-
ção de ações, ela também deixou expressa tal aplicação, como consta
do artigo supratranscrito.
Lembre-se, ademais, que constitui princípio essencial de interpre-
tação aquele segundo o qual a lei não deve conter palavras ou senten-
ças inúteis. Ora, se todas as regras referentes à incorporação de socie-
dades fossem automaticamente aplicáveis aos casos de incorporação
de ações, qual seria a utilidade do§ 4° do artigo 264 da Lei das S.A. e
do artigo 12 da Instrução CVM n° 319/1999?
Em suma, a interpretação sistemática das disposições legais e re-
gulamentares que regem a incorporação de sociedades e a incorpora-
ção de ações confirma o entendimento no sentido de que somente
mediante dispositivo legal expresso se poderia estender às hipóteses
de incorporação de ações regras que visam a disciplinar a operação de
incorporação de sociedades.

346
l.D. Da impossibilidade do emprego da analogia para se justificar
a aplicação do artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. às operações de
incorporação de ações

Poder-se-ia eventualmente entender que a regra estabelecida no


artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. seria aplicável, por analogia, à
sociedade fechada que incorporou as ações emitidas por companhia
aberta.
A analogia, como se sabe, constitui o processo de integração das
normas jurídicas, mediante o qual se aplica a uma hipótese não previs-
ta expressamente em lei uma regra que disciplina caso semelhante.
Vale dizer, a analogia consiste na extensão de um preceito legal aos
casos não diretamente compreendidos em seu dispositivo, com o ob-
jetivo de suprir uma lacuna no ordenamento jurídico.
O emprego da analogia fundamenta-se na presunção de que deter-
minado dispositivo legal deve ser estendido a um caso nele não ex-
pressamente previsto, seja porque não cogitou do assunto o legislador,
no momento de ditar a regra, seja porque tal caso surgiu ulteriormen-
te, em conseqüência do desenvolvimento da ciência, da complexidade
da vida econômica, ou das novas exigências sociais. 3
Assim, deve-se analisar se, na presente hipótese, justifica-se a apli-
cação da regra prevista no artigo 223, §§ 3° e 4°, da Lei das S.A.,
destinada a regular os casos de incorporação, fusão e cisão, às opera-
ções de incorporação de ações.
Em primeiro lugar, vale salientar que não se admite a utilização da
analogia "em se tratando de dispositivos que limitam a liberdade, ou
restringem quaisquer outros direitos" 4 .
O § 3° do artigo 223 da Lei das S.A. constitui, inequivocamente,
uma regra de natureza restritiva, visto que determina que as socieda-
des resultantes de operações de incorporação, fusão ou cisão regis-
trem-se como companhia aberta, restringindo o direito de seus acio-
nistas de decidir livremente sobre as vantagens e desvantagens de
promover o registro da companhia perante a CVM.
Com efeito, tal dispositivo estabelece uma exceção ao princípio
de que a decisão sobre a abertura ou fechamento de capital de uma
companhia possui caráter eminentemente empresarial, não cabendo

3 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. v. l. Rio de


Janeiro: Forense, 1999. p. 48.
4 CARLOS MAXIMILIANO. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1951. p. 261.

347
ao Estado, em regra, determinar quais as sociedades devem ou não
registrar-se como abertas. 5
Em vista disso, a regra prevista no artigo 223, § 3°, da Lei das S.A.,
por apresentar natureza restritiva, não pode ser objeto de analogia,
isto é, não pode ser aplicada a hipóteses não expressamente previstas
pelo legislador, como é o caso da operação de incorporação de ações.
Ademais, vale lembrar que o § 3° do artigo 223 somente foi intro-
duzido na lei societária no ano de 199 7, com a vigência da Lei no
9.457, enquanto a incorporação de ações está expressamente prevista
em nosso ordenamento jurídico desde a redação original da Lei no
6.404/1976.
Ou seja, o legislador, quando estabeleceu a exigência de as compa-
nhias resultantes de operações de incorporação, fusão e cisão registra-
rem-se perante a CVM, já tinha pleno conhecimento da possibilidade
da realização da operação de incorporação de ações. Tanto isto é ver-
dade que a Lei no 9.45 7/1997 também alterou a redação do artigo 252
da lei societária, a fim de adaptá-la às novas disposições previstas no
artigo 13 7 da Lei das S .A..
Assim, não há qualquer fundamento para se cogitar da utilização
da analogia na presente hipótese, uma vez que não se pode conceber
que o legislador, ao editar a Lei n° 9.45 7/1997, não tenha considerado
a operação de incorporação de ações e, muito menos, que tal operação
tenha surgido ulteriormente ao advento da referida Lei.
Com efeito, se o legislador de 1997 não se referiu expressamente
à incorporação de ações, deve-se entender que ele deliberadamente
optou por não submeter as sociedades envolvidas nesta modalidade
de operação ao disposto no § 3° do artigo 223 da lei societária.
Finalmente, saliente-se que constitui requisito para o emprego da
analogia a existência de uma lacuna no direito positivo, a qual deve ser
suprida pela aplicação de uma norma destinada a reger hipóteses se-
melhantes. No caso presente, entretanto, não há lacuna a ser preen-
chida, mas uma omissão deliberada por parte do legislador, posto que
este optou por mencionar, de forma expressa, as regras relativas à
incorporação de sociedades que deveriam ser aplicadas à incorporação
de ações, como é o caso do artigo 264, § 4°, da Lei das S.A ..
Por estas razões, não se justifica o emprego da analogia com o
escopo de estender a aplicação do disposto no artigo 223, § 3°, da Lei

5 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EZIRIK. A Nova Lei das S.A. São


Paulo: Saraiva, 2002. p. 43.

348
das S.A. às sociedades envolvidas em operações de incorporação de
ações.

l.E. Conclusões

Diante do exposto, e considerando que:


a) o artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. estabelece que as sociedades
resultantes de operações de incorporação, fusão e cisão de companhia
aberta devem obter, perante a CVM, o registro para a negociação
pública de suas ações, não se referindo expressamente à operação de
incorporação de ações;
b) a incorporação de ações não se confunde com a incorporação de
sociedades, pois possui natureza jurídica de um aumento de capital
com integralização em bens, o qual apenas segue o procedimento esta-
belecido na lei societária para a incorporação de sociedades;
c) a regra prevista no artigo 223, § 3°, foi editada para disciplinar
operações de natureza substancialmente diversas, não podendo ser
aplicada aos casos de incorporação de ações;
d) a Lei das S.A. e a CVM, quando pretenderam estender a apli-
cação das normas destinadas a regular a incorporação de sociedades à
operação de incorporação de ações, fizeram-no expressamente, con-
forme se verifica do artigo 264, § 4°, da Lei das S.A. e do artigo 12 da
Instrução CVM no 319/1999;
e) se o legislador optou por não submeter a incorporação de ações
ao disposto no artigo 223, § 3°, da Lei das S.A. foi por considerar que
a exigência de abertura de capital não deveria prevalecer em relação a
tal espécie de operação societária, posto que, caso contrário, a regra
prevista no artigo 264, § 4°, da Lei n° 6.404/1976 não teria qualquer
utilidade; e
f) não se justifica o emprego da analogia para estender a aplicação
do artigo 223, § 3°, da Lei no 6.404/1976 às operações de incorpora-
ção de ações, uma vez que (i) o dispositivo em tela possui natureza
restritiva, não podendo ser aplicado senão em relação às hipóteses
nele expressamente previstas; (ii) o § 3° do artigo 223 somente foi
introduzido na lei societária em 199 7, não se podendo considerar que
o legislador não tenha cogitado da operação de incorporação de ações
e, muito menos, que esta tenha surgido ulteriormente ao advento da
Lei no 9.457/1997; e (iii) não existe, no caso presente, uma lacuna a
ser preenchida, mas uma omissão deliberada por parte do legislador;
Conclui-se que a sociedade fechada que incorporar as ações emi-
tidas por companhia aberta não está sujeita ao disposto nos §§ 3° e 4°

349
do artigo 223 da Lei das S.A., os quais não podem ser aplicados às
operações de incorporação de ações.

2. DA INEXISTÊNCIA DE ILÍCITO CIVIL OU


ADMINISTRATIVO CASO A COMPANHIA
INCORPORADORA NÃO ABRA SEU CAPITAL

2.A. Do fundamento do direito de recesso e de seu caráter


excepcional

O princípio majoritário, isto é, o poder conferido aos acionistas


titulares da maioria do capital com direito a voto de alterar as bases do
contrato social, constitui uma das características essenciais da socie-
dade anônima. Com efeito, a prevalência de tal princípio é indispen-
sável para permitir o desenvolvimento da sociedade anônima moder-
na, pois seria praticamente impossível obter decisões por unanimida-
de dos acionistas.
Em função do princípio majoritário, os acionistas minoritários são
obrigados a acatar as decisões dos controladores, que, enquanto tive-
rem a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder
de eleger a maioria dos administradores da sociedade, têm assegurada
a prerrogativa de conduzir os destinos da companhia.
Todavia, a fim de manter o equilíbrio entre o poder atribuído à
maioria dos acionistas para dirigir a sociedade e a preservação dos
interesses dos minoritários, a Lei das S.A. confere a estes o direito de
retirarem-se da companhia, mediante o reembolso de suas ações, caso
discordem de determinadas decisões da maioria, nas hipóteses ex-
pressamente previstas em lei.
O direito de retirada é exercido pelo acionista mediante ato jurí-
dico unilateral, em virtude do qual a sociedade é obrigada a lhe pagar
o valor correspondente às suas ações.
O objetivo do direito de recesso, portanto, é conciliar o interesse
social, decorrente da decisão majoritária, com o interesse individual
dos acionistas minoritários, de não serem compelidos a permanecer
vinculados a uma sociedade essencialmente diversa daquela na qual
haviam ingressado. 6

6 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A.
v. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 339.

350
Vale dizer, para não condenar o minoritário a permanecer em uma
empresa que não atende mais a seus interesses e, simultaneamente,
não permitir que uma pequena minoria acionária possa obstar a toma-
da de decisões necessárias à consecução do interesse social, a Lei das
S .A. confere poderes à maioria para modificar as bases essenciais do
contrato social, mas, por outro lado, atribui aos acionistas dissidentes
dessas modificações a possibilidade de liquidar a sua parte no capital,
sem necessidade de, para tanto, encontrar um comprador para suas
ações. 7
Diante disso, pode-se afirmar que direito de recesso reflete a ten-
são permanente entre os interesses individuais dos sócios e as necessi-
dades de desenvolvimento da empresa.
Note-se, entretanto, que, por configurar uma exceção ao princípio
majoritário, privilegiando o interesse particular do acionista minoritá-
rio em relação ao interesse social, o direito de recesso constitui medi-
da de natureza excepcional. O artigo 109, inciso V, da lei societária,
evidencia tal caráter excepcional, ao dispor que o acionista dissidente
tem direito de retirar-se da sociedade "nos casos previstos em lei".
Ou seja, o direito de recesso somente pode ser exercido nas situa-
ções expressa e taxativamente tipificadas em lei, as quais não podem
ser objeto de interpretação extensiva ou de analogia. 8
Portanto, para que o direito de recesso possa ser legitimamente
exercido, é absolutamente imprescindível que a decisão da maioria
dos acionistas esteja elencada dentre as hipóteses legais que autorizam
a retirada do acionista.

2.B. Da licitude dos atos que ensejam o direito de retirada

Ao prever a existência do instituto do direito de recesso, a Lei das


S.A. reconhece que determinadas decisões majoritárias podem con-
trariar interesses individuais dos minoritários, nos casos em que tais
decisões alterem a estrutura da sociedade na qual o acionista havia
ingressado.
Isto não significa, contudo, que a lei societária considere que as
decisões que dão ensejo ao exercício do direito de retirada sejam
ilícitas ou caracterizem abuso de poder por parte dos acionistas con-
troladores.

7 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. cit. p. 66.


8 NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos de Direito Societário. Rio de Janeiro:
Renovar, 1992. p. 109!11 O.

351
Ao contrário, constituem decisões válidas e legítimas, expressa-
mente admitidas pela própria lei societária, que não violam direito
algum do acionista minoritário. 9
Tais decisões são tomadas pelo acionista controlador no exercício
de sua função de intérprete do interesse social e, portanto, presume-
se que são necessárias ao desenvolvimento da companhia.
A propósito, nunca se pretendeu questionar que operações de
incorporação ou fusão, alterações nos dividendos atribuídos a deter-
minada espécie de ações, assim como as demais matérias que ensejam
o direito de retirada, constituem, em tese, decisões absolutamente
lícitas e legítimas.
A lei societária apenas considerou que, excepcionalmente, os acio-
nistas minoritários não estariam obrigados a suportar os efeitos jurídi-
cos de tais decisões majoritárias e, assim, conferiu-lhes a prerrogativa
de retirarem-se da companhia, mediante o exercício do direito de
recesso.
Logo, o recesso não decorre de atos ilícitos pratiCados pelo contro-
lador, mas tão-somente de decisões válidas adotadas com vistas a
atender o interesse social, as quais, por modificarem a estrutura da
companhia ou os direitos conferidos pelas ações de sua emissão, a Lei
das S.A. classifica como ensejadoras do direito de retirada.
Vale dizer, o pagamento do valor de reembolso ao acionista dissi-
dente, em decorrência do exercício do direito de recesso, não possui
natureza jurídica de indenização pela prática de ato ilícito.
Para confirmar tal conclusão, ressalte-se que se o direito de retira-
da tivesse por objetivo indenizar o acionista de danos antijurídicos
causados por uma decisão majoritária, seu exercício pressuporia a pre-
cisa quantificação dos prejuízos causados pela referida decisão. De
fato, a correta fixação das perdas e danos constitui elemento essencial
da indenização por ato ilícito, visto que esta deve corresponder ao
montante que a parte prejudicada efetivamente perdeu e razoavel-
mente deixou de lucrar, a teor do disposto no artigo 402 do Código
Civil.
No caso do exercício do direito de retirada, a apuração exata do
valor dos prejuízos eventualmente acarretados ao minoritário pela de-
cisão majoritária é absolutamente irrelevante, pois o valor de reembol-
so está previamente determinado, devendo resultar da aplicação do

9 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. v. 2.


São Paulo: Saraiva, 1997. p. 746.

352
critério previsto no artigo 45 da Lei das S.A. ou no estatuto social, se
for o caso.
Diante disso, pode-se afirmar que o direito de recesso não decorre
de dano provocado por ato ilícito praticado pela maioria acionária,
uma vez que tal direito não está incluído no âmbito da responsabilida-
de civil 10 •
Neste sentido, vale ainda mencionar a lição de Fábio Konder
Comparato, para quem: 11

"A doutrina reconhece, portanto, sem discrepância, que o direito


de recesso do sócio dissidente da deliberação social não consti-
tui uma sanção de ato ilícito praticado pela maioria; não repre-
senta uma forma de indenização. Se o fora, o sócio recedente seria
obrigado a provar o prejuízo sofrido para exercer a retirada, quando,
na verdade, o recesso atua como uma espécie de 'denúncia vazia' do
vínculo societário. (. . .)
Exatamente por isso, o valor de reembolso é sempre fixo, segundo o
critério estabelecido em lei ou no estatuto da companhia. Como não
se cuida de ressarcir prejuízos individuais, mas de compensar
interesses particulares, sacrificados legitimamente ao interesse
social, o valor pecuniário a ser recolhido pelo sócio retirante obedece
a um cálculo predeterminado, já de todos conhecido." (grifamos)

Portanto, não há dúvida que a decisão tomada pela companhia que


ensejao exercício do direito de retirada não constitui ato ilícito, posto
que tal direito representa apenas uma forma de compensação de inte-
resses particulares dos acionistas minoritários sacrificados legitima-
mente em favor do interesse social. 12

2.C. Da hipótese de recesso prevista no artigo 223, § 4°, da Lei


das S.A.

O artigo 223, § 4°, da Lei das S.A., introduzido pela Lei no


9.457/1997, previu uma nova hipótese ensejadora do direito de reti-
rada para os acionistas minoritários, qual seja, aquela decorrente da

10 ARNOLDO WALD. "Da Inexistência do Direito de Recesso". Revista de Direito


Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, v. 9, p. 227, julh./set. 2000.
li FÁBIO KONDER COMPARATO. "Valor de Reembolso no Recesso Acionário".
Revista dos Tribunais. v. 563, p. 50, set.l982.
12 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. cit. p. 65.

353
decisão da sociedade resultante da operação de incorporação, fusão ou
cisão envolvendo companhia aberta de não se registrar perante a CVM
no prazo de 120 dias contados da data em que qualquer das aludidas
operações for aprovada.
Ora, se a lei societária estabeleceu, como única conseqüência da
não abertura de capital, a possibilidade de os minoritários retirarem-se
da companhia, foi por reconhecer que, assim como nas demais maté-
rias que ensejam o exercício do direito de recesso, não se está diante
da prática de um ato ilícito, mas de uma decisão legítima tomada pela
maioria dos acionistas, a qual, excepcionalmente, os minoritários não
estão obrigados a acatar.
Vale dizer, a decisão de não abrir o capital da sociedade incorpo-
radora é perfeitamente lícita, mas, por representar uma lesão ao inte-
resse individual do minoritário de que as ações de sua propriedade
possam continuar a ser negociadas no mercado secundário, dá ensejo
ao exercício do recesso pelos acionistas dissidentes.
Com efeito, os acionistas controladores da sociedade que incorpo-
rou uma companhia aberta podem legitimamente decidir que é do
interesse social manter a sociedade na condição de fechada. No entan-
to, o legislador entendeu que os minoritários da companhia aberta
incorporada não deveriam ser compelidos a permanecer como sócios
de uma sociedade cujas ações não são admitidas à negociação no mer-
cado de capitais. Assim, para conciliar ambos os interesses, foi assegu-
rado ao aos acionistas discordantes o direito de retirada.
Saliente-se, ainda, que ato ilícito, como se sabe, é aquele mediante
o qual alguém, por ação ou omissão culposa, infringe uma norma jurí-
dica impositiva, causando dano a outrem. Ou seja, a caracterização de
determinado ato como ilícito tem como pressuposto, entre outros
elementos, a violação a um dever legal ou contratual preexistente 13 •
No caso presente, a decisão de não promover a abertura de capital
da companhia incorporadora não constitui violação a nenhum dever
ou obrigação imposto pela lei societária, mas o exercício de uma sim-
ples faculdade, conforme reconhece a doutrina: 14

"(. .. .) A companhia não nasce aberta e, portanto, não há nenhuma


ilicitude em que não seja atendido, dentro do prazo de 120 dias,
o procedimento de registro.

13 SÍLVIO RODRIGUES. Direito Civil. v. l. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 308.


14 FRANCISO ANTUNES MACIEL MUSSINCH. "Reflexões sobre o Direito de
Retirada na Mini-reforma da Lei das S.A." in: JORGE LOBO (coord.). A Reforma da
Lei das S.A. São Paulo: Atlas, 1998. p. 82/83.

354
A conseqüência deste 'descumprimento' está prevista pela lei, median-
te a outorga aos acionistas dissidentes do direito de recesso, se obser-
vado o prazo de 3 Odias após o término do prazo de decadência de 120
dias. Não existe nenhuma outra sanção para os acionistas que
não seja a de ter de pagar o reembolso das ações dos acionistas
dissidentes.
(. . .) Isto não a autoriza, todavia, à conclusão da existência de qual-
quer tipo de ilícito, caso não seja promovida a abertura de capital no
prazo de 120 dias. Trata-se, ao contrário, de uma faculdade que
o legislador outorgou ao acionista controlador e à administra-
ção da companhia aberta.
( .. .)No entanto, vale frisar, a nova lei admitiu a opção de compa-
nhia não abrir seu capital, reconhecendo a validade e eficácia
da ausência de deliberação ou mesmo simples omissão por parte
da nova sociedade ou da sociedade incorporadora para abrir
seu capital." (grifamos)

No mesmo sentido, Modesto Carvalhosa, ao comentar o artigo


223 da Lei das S.A., salienta que a companhia incorporadora fechada
tem liberdade para não promover a abertura de seu capital, desde que
se sujeite ao exercício do direito de recesso pelos minoritários dissi-
dentes:15

"Isto posto, deve ficar bem claro que a causa do recesso, nesse caso,
não é o negócio jurídico em si da fusão, incorporação ou cisão, mas
sim a inobservância por parte das novas companhias do disposto no §
3°. Note-se, a propósito, que a sanção pela inobservância desse §
3° é unicamente ensejar o direito de recesso.
Não há, com efeito, nenhuma sanção prevista a denotar a intenção
do legislador de deixar as novas companhias à vontade quanto
ao descumprimento do§ 3°, desde que se sujeitem ao exercício do
direito pleno de recesso, ao assim se conduzirem." (grifamos)

De fato, ao estabelecer que a "sanção" pela não observância do


prazo previsto no § 3° de seu artigo 223 seria a possibilidade do exer-
cício do direito de recesso, a Lei das S.A. deixou claro que a compa-
nhia incorporadora tem a faculdade de não promover a abertura de

15 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. v. 4.


Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 219.

355
seu capital social, caso seus controladores entendam que tal medida
não atende ao interesse social.
Diante disso, não há que se falar, no caso ora em análise, da exis-
tência de ato ilícito, quer de caráter civil, quer de natureza administra-
tiva, conforme já tivemos a oportunidade de ressaltar: 16

"Conforme anteriormente referido, o direito de recesso não decorre de


ato ilícito, constituindo mera compensação à lesão de interesses dos
minoritários sacrificados em prol do interesse social. Assim, o fato de
não registrar-se a sociedade sucessora como companhia aberta
não constitui ilícito, seja na esfera civil, seja na esfera adminis-
trativa; a única conseqüência decorrente da omissão da prática de tal
ato é a legitimação do minoritário dissidente ao exercício do direito
de recesso." (grifamos)

Portanto, não configurando ato ilícito, a decisão de não promover


a abertura de capital da companhia incorporadora não legitima a im-
posição de sanções administrativas aos seus acionistas controladores
ou administradores e tampouco autoriza os minoritários a postularem
indenização por supostos prejuízos causados por tal decisão.

2.D. Do caráter lícito da decisão de não abrir o capital da


incorporadora nas hipóteses de incorporação de ações

A operação de incorporação de ações, conforme referido no item


1 do presente Parecer, não está submetida às regras previstas nos§§ 3°
e 4° do artigo 223 da Lei no 6.404/1976. Isto significa que os acionis-
tas minoritários da companhia aberta cujas ações forem incorporadas
por uma sociedade fechada não poderão requerer, com fundamento
nos citados dispositivos, o reembolso das ações de sua propriedade.
Diante disso, como a lei não prevê uma forma de compensar a
lesão provocada aos interesses dos minoritários em tal situação, po-
der-se-ia eventualmente entender que seria ilícita a decisão da maioria
dos acionistas de não promover o registro perante a CVM da socieda-
de fechada que incorporou as ações emitidas por companhia aberta.
Ressalte-se, no entanto, que, também no caso de incorporação de
ações, a abertura do capital da sociedade incorporadora constitui uma
opção de seus controladores e administradores, pois não existe ne-
nhuma regra jurídica que imponha a adoção de tal medida.

16 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. cit. p. 81.

356
Com efeito, a decisão de abrir o capital de qualquer companhia
fechada possui natureza eminentemente empresarial, não podendo
ser imposta a seus acionistas controladores, a não ser que houvesse
disposição legal expressa neste sentido.
Dessa forma, os acionistas controladores da sociedade fechada
que incorporar as ações emitidas por companhia aberta podem legiti-
mamente decidir não registrá-la perante a CVM, caso entendam que
tal medida não atende ao interesse social.
O fato de os acionistas minoritários da sociedade convertida em
subsidiária integral serem obrigados a suportar os efeitos jurídicos de
tal decisão constitui uma mera conseqüência do princípio majoritário
nas sociedades anônimas. Segundo tal princípio, repita-se, os minori-
tários estão sempre obrigados a acatar as decisões tomadas pela maio-
ria dos acionistas, ainda que estas afetem seus interesses individuais,
salvo nas hipóteses excepcionais em a lei societária lhes assegura o
direito de retirar-se da companhia.
Ou seja, a circunstância de a Lei das S.A. não prever o direito de
recesso nas hipóteses de não abertura de capital das sociedades fecha-
das que incorporarem as ações emitidas por companhias abertas ape-
nas significa que o legislador entendeu que os acionistas minoritários
deveriam submeter-se à decisão majoritária de manter a incorporado-
ra como fechada, não considerando ilegal ou ilegítima tal decisão.
Portanto, também na hipótese de incorporação de ações, não con-
figura qualquer ilicitude, quer na esfera civil, quer no âmbito adminis-
trativo, a decisão dos acionistas controladores e administradores da
incorporadora de não providenciar o registro para a negociação das
ações de sua emissãà no mercado secundário.
De qualquer forma, vale lembrar que, no caso presente, conforme
exposto na Consulta, pretende-se anunciar a decisão de não abrir o
capital da companhia incorporadora no próprio fato relevante publica-
do para divulgar a operação. Logo, os acionistas minoritários que não
concordarem em receber ações emitidas por companhia fechada não
estarão obrigados se submeter à decisão em tela, pois poderão exercer
o recesso em função da própria incorporação de ações, conforme pre-
visto no artigo 252, § 2°, da Lei no 6.404/1976.

2.E. Conclusões

Diante do exposto, e considerando que:


a) a previsão legal do direito de recesso fundamenta-se na necessi-
dade de conciliar o poder conferido aos acionistas majoritários, de

357
aprovarem as decisões que entendam necessárias à consecução do in-
teresse social, com o interesse particular dos acionistas minoritários
em não permanecer vinculados a uma sociedade essencialmente dife-
rente daquela na qual ingressaram;
b) as decisões majoritárias que dão ensejo ao exercício do direito
de recesso são válidas e expressamente admitidas pela própria Lei das
S.A., a qual apenas considerou que, excepcionalmente, os acionistas
minoritários não deveriam ser obrigados a suportar os efeitos jurídicos
de tais decisões;
c) o pagamento do valor de reembolso não constitui indenização
por supostos prejuízos sofridos pelos acionistas minoritários, mas ape-
nas uma forma de compensar seus interesses particulares, legitima-
mente sacrificados em favor do interesse social;
d) a lei societária, ao estabelecer que a única conseqüência da não
abertura de capital da companhia incorporadora seria a possibilidade
do exercício do direito de recesso reconhece que se está diante de
uma decisão legítima tomada pela maioria dos acionistas, a qual, ex-
cepcionalmente, os minoritários não estão obrigados a acatar;
e) a abertura de capital da incorporadora não constitui um dever ju-
rídico, posto que não existe nenhuma regra que imponha a adoção de tal
medida, mas uma faculdade de seus acionistas controladores, que deve
ser exercida tendo em vista a consecução do interesse social; e
f) o fato de, em se tratando de incorporação de ações, os acionistas
minoritários serem obrigados a submeter-se à decisão de manter a
companhia incorporadora como fechada constitui uma conseqüência
do princípio majoritário que rege a sociedade anônima, não tornando
ilegal ou ilegítima a referida decisão;
Conclui-se que, tanto no caso de incorporação de sociedades,
como na hipótese de incorporação de ações, a decisão de não promo-
ver o registro da companhia incorporada perante a CVM não constitui
ilícito civil ou administrativo, razão pela qual tal decisão não legitima
a imposição de sanções, pela CVM, aos controladores ou administra-
dores da incorporadora e tampouco autoriza a eventual condenação
destes a pagar indenização pelos prejuízos eventualmente alegados por
acionistas minoritários.
Foi o nosso Parecer, em agosto de 2003.

358
RESGATE DE AÇÕES PREVISTO NO ARTIGO 4°,
§ 5°, DA LEI DAS S.A. LEGITIMIDADE DE SUA
REALIZAÇÃO POR SOCIEDADE QUE
CANCELOU O REGISTRO DE COMPANHIA
ABERTA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI
N° 10.303/2001

I - DA CONSULTA

Recebemos da Companhia Alfa ("Consulente"), sucessora legal da


Companhia Beta, solicitação de Parecer Jurídico sobre Consulta for-
mulada nos seguintes termos:

COMPANHIA BETA realizou, em dezembro de 1999, Oferta Públi-


ca de Compra de Ações Preferenciais ("Oferta Pública") visando à
aquisição da totalidade das ações preferenciais detidas pelos acionis-
tas minoritários da COMPANHIA GAMA, objetivando o fechamen-
to de seu capital social.
Tendo sido cumpridos os requisitos da Instrução CVM n° 229!95, a
CVM promoveu, em 21 de fevereiro de 2000, o cancelamento do re-
gistro de companhia aberta até então mantido em nome da COMPA-
NHIA GAMA.
Na forma do artigo 20 da Instrução CVM n° 229!95, a COMPA-
NHIA BETA comprometeu-se adquirir as ações preferenciais da
COMPANHIA GAMA cujos titulares decidissem aliená-las após en-
cerrado o prazo da Oferta Pública e cancelado o registro de compa-
nhia aberta da COMPANHIA GAMA. Tal compromisso vigoraria
até 6 (seis) meses contados a partir da assembléia geral da COMPA-
NHIA GAMA que aprovar as demonstrações financeiras do primeiro
exercício posterior ao cancelamento do registro (i.e., até outubro de
2002).
Não obstante o sucesso da operação, determinado número de acionis-
tas preferencialistas (representando, 4,94% do capital social total)

359
não se manifestou sobre a Oferta Pública, remanescendo nos quadros
sociais da COMPANHIA GAMA.
Assim é que, em 19 de dezembro de 2002, ou seja, após a edição da
Lei n° 1 O. 303!0 1, que veiculou alterações ao texto da Lei n°
6.404/76, a Companhia Alfa (atual acionista controladora da socie-
dade COMPANHIA GAMA) deliberou e aprovou em Assembléia
Geral Extraordinária dos acionistas da COMPANHIA GAMA o
resgate das ações remanescentes em circulação após o término do pra-
zo da Oferta Pública de Aquisição de ações, com fundamento no § 5°
do artigo 4° da Lei n° 6.404/76, com as modificações da Lei n°
10.303!01.
As ações em questão foram resgatadas pelo valor de R$ 3,24 {três
reais e vinte e quatro centavos), correspondente ao preço fixado na
Oferta Pública de Aquisição de ações, devidamente atualizado pela
TR, preço esse calculado de acordo com o critério de comparação por
múltiplos.
Em janeiro de 2002, a COMPANHIA BETA e a COMPANHIA
GAMA foram citados para responder a ação judicial proposta por
antigos acionistas da sociedade que teve seu capital fechado, visando
o reconhecimento da suposta ilegalidade do resgate de suas ações, sem
a prévia Oferta Pública de Aquisição de ações (OPA) realizada de
acordo com o disposto na Lei n° 10.303!01, e a anulação da delibera-
ção tomada na Assembléia Geral Extraordinária dos acionistas da
COMPANHIA GAMA, realizada em 19 de dezembro de 2002, por
meio da qual foi aprovado o referido resgate, bem como a anulação de
todos os atos societários que tenham sido praticados sem a presença
dos Autores desde a data antes mencionada.
QUESTÕES:
(a) O artigo 4° da Lei de Sociedades Anônimas, com a redação que
lhe foi atribuída pela Lei n° 10.303/01, já se encontrava em vigor
quando da realização da Assembléia Geral Extraordinária da
COMPANHIA GAMA em 19 de dezembro de 2002, que deliberou e
decidiu pelo resgate das ações remanescentes após o fechamento do
capital daquela sociedade? Ou referido dispositivo aguardava regu-
lamentação da Comissão de Valores Mobiliários, por força do que
prescreve o § 4° do artigo 4° -A do mesmo diploma?
(b) O resgate de ações previsto no § 5° do artigo 4° da Lei de Socieda-
des Anônimas é aplicável às sociedades que tiveram seu capital fecha-
do em época anterior à edição da Lei n° 10.303!01? Ou, no caso
dessas sociedades, o resgate em questão pressupõe, necessariamente, a
realização de nova Oferta Pública de Aquisição de ações?

360
(c) É legítimo o resgate de ações realizado por companhia que teve seu
capital fechado em data anterior à edição da Lei n° 10.303!0 1 se esse
resgate se der de acordo com todos os critérios que esse ato normativo
estabelece?
( d) Quais os critérios para fixação do valor do resgate? Se a Oferta
Pública de Aquisição de ações fixava o preço de acordo com um dos
critérios previstos no § 4°, do artigo 4°, da Lei n° 6.404/76, com a
redação que lhe foi atribuída pela Lei n° 10.303!01, pode o resgate
ser levado a efeito por aquele mesmo valor, devidamente atualizado?
(e) O percentual de 5% de ações remanescentes em circulação, a que
alude o § 5° do artigo 4° da Lei n° 6.404!76, com as modificações da
Lei n° 10.303!01, deve ser verificado no momento do resgate ou quan-
do do término do prazo da Oferta Pública de Aquisição de ações?
(f) Após o cancelamento do registro de companhia aberta junto à
CVM, existe prazo máximo para a realização do resgate?
(g) A eventual anulação da deliberação que aprovou o resgate das
ações remanescentes acarretaria também a anulação das deliberações
tomadas, posteriormente, em outras Assembléias Gerais da COMPA-
NHIAGAMA?"

11 -DO PARECER

A- DA OFERTA PÚBLICA DE CANCELAMENTO DE


REGISTRO DE COMPANHIA ABERTA

O cancelamento do registro de companhia aberta (ou fechamento


de capital) constitui o procedimento mediante o qual uma companhia
aberta torna-se fechada, inviabilizando a negociação dos valores mobi-
liários de sua emissão em bolsa de valores ou no mercado de balcão.
Até o advento da Lei n° 10.303/2001, os procedimentos exigidos
para a realização da operação de fechamento de capital não estavam
disciplinados em Lei, mas apenas em atos normativos expedidos pela
CVM.
As normas da CVM que regulavam a matéria sempre tiveram em
vista a tutela dos interesses dos acionistas minoritários, de forma a
impedir que as ações de sua propriedade deixassem de ser negociadas
no mercado de valores mobiliários por simples vontade dos acionistas
controladores ou dos administradores da companhia.
Neste sentido, procurou-se assegurar ao acionista minoritário a
possibilidade de alienar suas ações previamente ao fechamento de
capital, por valor conveniente, bem como o direito de evitar o cance-

361
lamento de registro de companhia aberta, caso os acionistas contrários
a tal medida representassem uma parcela substancial das ações em
circulação no mercado. 1
Para assegurar a consecução destes objetivos, as Instruções edita-
das pela CVM sempre estabeleceram o princípio de que, para que o
registro de companhia aberta fosse cancelado, o acionista controlador
deveria promover oferta pública para a aquisição das ações em circu-
lação no mercado, que deveria ser aceita por percentual relevante dos
acionistas minoritários- no mínimo, 67% (sessenta e sete por cen-
to), nos termos do artigo 1°, inciso 11, da Instrução CVM n 229/1995.
Tal princípio foi consagrado pela Lei n° 10.303/2001, que incluiu,
no artigo 4o da Lei das S.A., dispositivo condicionando expressamente
o cancelamento de registro de companhia aberta à prévia realização de
oferta pública para a aquisição da totalidade das ações em circulação
no mercado.

B- DO REGIME JURÍDICO DO RESGATE DE AÇÕES

O resgate, segundo o artigo 44 da Lei das S.A., constitui "o paga-


mento do valor das ações para retirá-las definitivamente de circula-
ção, com redução ou não do capital social". Trata-se de faculdade
atribuída à companhia, a qual- desde que possua os fundos necessá-
rios - poderá, a qualquer momento, proceder ao resgate das ações
que compõem o seu capital social.
Neste sentido, aliás, manifestou-se a Superintendência Jurídica da
CVM, nos seguintes termos 2 :

"O resgate, a que está sujeita toda e qualquer ação, constitui prerro-
gativa da empresa, que pode deliberar e efetivá-lo a qualquer
tempo, desde que tenha lucros ou reservas disponíveis para a opera-
ção". (grifamos)

Mediante a operação de resgate, a companhia adquire compulso-


riamente as ações de sua emissão, com a finalidade precípua de retirá-
las de circulação. Opera, pois, o resgate, a transmissão forçada e irre-
corrível da propriedade das ações do acionista para o domínio da so-
ciedade, a qual, em seguida, tratará de extingui-las.

1 Nota Explicativa CVM n° 08/1978


2 Parecer sobre Resgate de Ação, in Revista da CVM, v. I, n° 3, set./ dez. 83, p. 26.

362
Quanto à sua natureza, constitui o resgate, inquestionavelmente,
modalidade de negócio jurídico unilateral, pois contém manifestação
de vontade de apenas uma parte. As conseqüências jurídicas dele de-
correntes são estabelecidas pela pessoa que manifesta a vontade -no
caso, a sociedade- independentemente da vontade da outra parte, o
acionista cujas ações são resgatadas.
Trata-se de negócio jurídico no qual só há manifestação de vonta-
de de uma parte: a companhia. Ainda que tal declaração dirija-se à
outra parte, o acionista, este não é chamado a concorrer no negócio
com o seu consentimento. 3
Ou seja, a operação de resgate é matéria a ser deliberada exclusi-
vamente pela companhia, submetendo-se os acionistas à tal manifes-
tação unilateral da sociedade.
Em função de seu caráter compulsório, o resgate, em regra, deve-
ria abranger a totalidade das ações de uma mesma espécie ou classe
ou, caso contrário, ser feito mediante sorteio, conforme prescreve o §
4° do artigo 44 da Lei das S.A. Tal regra visa a assegurar o caráter
impessoal do resgate, impedindo que o instituto seja utilizado para
possibilitar a exclusão de determinados acionistas da companhia.
No entanto, a Lei n° 10.303/2001, ao acrescentar o§ 5° ao artigo
4° da lei societária, expressamente autorizou a assembléia geral a
aprovar o resgate das ações que remanescerem em circulação após a
realização da oferta pública para cancelamento de registro de compa-
nhia aberta, desde que ditas ações representem menos de 5% (cinco
por cento) do total de ações emitidas pela companhia e que seja depo-
sitado, em favor dos seus titulares, o valor praticado na oferta pública
de cancelamento de registro.
Vale dizer, a lei societária permite que, observadas as condições
nela previstas, a assembléia geral delibere o resgate apenas das ações
pertencentes aos acionistas minoritários, permanecendo o acionista
controlador com a titularidade de suas ações, visto que estas não são
consideradas ações em circulação.
Em outras palavras, a operação de resgate ora comentada constitui
uma forma expressamente prevista pela lei societária para se conver-
ter em subsidiária integral a companhia que teve seu capital fechado,
retirando-se de circulação todas as ações não detidas pelo acionista
controlador.

3 NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro:


Renovar, 1992, p. 98/99.

363
Neste sentido, dispõe o artigo 4°, § 5°, da Lei da S.A., com a
redação dada pela Lei no 10.303/2001, que:

"Art. 4° - (. ... )
§ 5°- Terminado o prazo da oferta pública fixado na regulamen-
tação expedida pela Comissão de Valores Mobiliários, se remanesce-
rem em circulação menos de 5% (cinco por cento) do total das
ações emitidas pela companhia, a assembléia-geral poderá delibe-
rar o resgate dessas ações pelo valor da oferta de que trata o § 4°,
desde que deposite em estabelecimento bancário autorizado pela Co-
missão de Valores Mobiliários, à disposição dos seus titulares, o valor
de resgate, não se aplicando, nesse caso, o disposto no§ 6° do art. 44."
(grifamos)

Note-se que o dispositivo transcrito expressamente afasta a opera-


ção de resgate nele prevista da incidência do § 6° do artigo 44 da Lei
das S.A., também introduzido pela Lei no 10.303/2001, segundo o
qual a efetivação do resgate depende de aprovação, em assembléia
especial, de, pelo menos, metade das ações da espécie ou classe a
serem resgatadas.
Como se verifica, o artigo 4°, § 5°, da Lei no 6.404/1976 instituiu,
em nosso sistema de direito societário, uma nova modalidade deres-
gate, visto que, ao contrário das operações realizadas com fundamento
no artigo 44 da Lei das S.A., são resgatadas as ações pertencentes
apenas aos acionistas minoritários remanescentes, sem sorteio, e estes
não são consultados sobre a efetivação da operação. 4
A intenção do legislador, no caso, foi a de permitir que a compa-
nhia que cancelou o registro como aberta não seja obrigada a manter,
indefinidamente, nos quadros sociais uma quantidade muito pequena
de acionistas, possuidores de menos de 5% (cinco por cento) do capi-
tal social.
A manutenção nos quadros sociais de tais acionistas pode repre-
sentar custos desnecessários para a companhia fechada, com serviços
de emissão, registro, transferência e guarda de ações, especialmente
considerando que, na realidade, muitas vezes os aludidos acionistas
sequer têm conhecimento das ações de que são titulares.

4 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das Sociedades


Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 62.

364
Para que a nova modalidade de resgate seja legitimamente utiliza-
da, o legislador condicionou tal operação ao atendimento de apenas
três requisitos, a saber:
a) tenha ocorrido prévia oferta pública de aquisição de ações para
o cancelamento do registro de companhia aberta, de acordo com a
regulamentação editada pela CVM;
b) após a referida oferta pública tenha restado em circulação me-
nos de 5% (cinco por cento) das ações de emissão da Companhia; e
c) seja depositado em nome dos acionistas minoritários remanes-
centes, em estabelecimento bancário autorizado pela CVM, valor
equivalente ao praticado na oferta pública de fechamento de capital.

C- DOS PRINCÍPIOS RELATIVOS À APLICAÇÃO DAS


LEIS NO TEMPO

A resposta aos quesitos formuladds pela Consulente pressupõe,


ainda, um breve exame dos princípios adotados em nosso ordenamen-
to jurídico para solucionar as questões relativas à aplicação da lei no
tempo.
Isto porque, conforme mencionado, a modalidade de resgate a
que se refere o artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. somente passou a ser
prevista após a vigência da Lei n° 10.303/2001, enquanto a Oferta
Pública de cancelamento de registro da COMPANHIA GAMA foi
realizada sob a égide da Instrução CVM no 229/1995.
Assim, deve ser examinado se a norma contida no artigo 4°, § 5°,
da Lei das S.A., introduzida pela Lei no 10.303/2001, aplica-se ime-
diatamente às companhias que realizaram ofertas públicas com funda-
mento na regulamentação anteriormente expedida pela CVM, como
ocorreu com a COMPANHIA GAMA.
A respeito, saliente-se que a regra, em nosso ordenamento jurídi-
co, é a da irretroatividade das leis, ou seja, as leis não apresentam, em
princípio, efeito retroativo, somente podendo tê-lo, em caráter ex-
cepcional, por disposição expressa e desde que não ofenda o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Note-se que, em nosso sistema jurídico, tal princípio é elevado à
condição de garantia constitucional, tendo o inciso XXXVI do artigo
5° da Constituição Federal de 1988 estabelecido que "a lei não preju-
dicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
Respeitada a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico
perfeito e da coisa julgada, o direito brasileiro prescreve que a lei terá

365
efeito geral e imediato, nos termos do caput do artigo 6° da Lei de
Introdução ao Código Civil.
A propósito do princípio da aplicação imediata das leis já se mani-
festou, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes ter-
mos:5

"No sistema de direito positivo brasileiro, o princípio tempus regit


actum se subordina ao do efeito imediato da lei nova, salvo quan-
to ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada
(Constituição da República, artigo 5°, inciso XXXVI e Lei de Introdu-
ção ao Código Civil, artigo 6°).
A lei nova, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquiri-
do e a coisa julgada, tem efeito imediato e geral, alcançando, sem
dúvida, não apenas as relações jurídicas que lhes são anteriores, mas
os seus efeitos continuados, que se produzam a partir do início da sua
vigência." (grifamos)

Portanto, pode-se concluir que, em nosso sistema jurídico, as leis


possuem efeito imediato, não podendo, entretanto, retroagir para
atingir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

D- DAS RESPOSTAS AOS QUESITOS

Feitas tais considerações, passamos a responder os quesitos for-


mulados pela Consulente, a medida em que forem transcritos.

l 0 QUESITO

"O artigo 4° da Lei de Sociedades Anônimas, com a redação


que lhe foi atribuída pela Lei n° 10.303!01, já se encontrava em
vigor quando da realização da Assembléia Geral Extraordinária
da COMPANHIA GAMA em 19 de dezembro de 2002, que delibe-
rou e decidiu pelo resgate das ações remanescentes após o fecha-
mento do capital daquela sociedade? Ou referido dispositivo
aguardava regulamentação da Comissão de V afores Mobiliários,
por força do que prescreve o § 4° do artigo 4° -A do mesmo diplo-
ma?"

s EDRESP 238816/SC- DI 05.02.2001, p. 00137- Relator Ministro Hamilton


Carvalhido- 63 Turma.

366
RESPOSTA

Em primeiro lugar, vale salientar que a Lei n° 10.303/2001 foi


promulgada no dia 31 de outubro de 2001 e, nos termos de seu artigo
9°, entraria em vigor após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua
publicação oficial, que ocorreu em 01° de novembro de 2001. Logo, a
referida Lei entrou em vigor no dia 1° de março de 2002.
O § 4° do artigo 4-A da Lei das S.A., acrescentado pela referida
Lei no 10.303/2001 e citado pela Consulente no quesito acima trans-
crito, apresenta a seguinte redação:

"Art. 4-A - (. . .)
§ 4° - Caberá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o
disposto no art. 4° e neste artigo, e fixar prazos para a eficácia
desta revisão." (grifamos)

Como se verifica, o dispositivo legal em tela atribui à CVM pode-


res para regulamentar as prescrições contidas nos artigos 4° e 4o -A da
Lei das S.A., entre as quais inclui-se a regra que faculta a realização do
resgate das ações remanescentes após o cancelamento de registro de
companhia aberta.
Ressalte-se, no entanto, que o fato de a lei societária ter conferido
à CVM competência para disciplinar o disposto em seus artigos 4° e
4°-A não significa, evidentemente, que todas as disposições dos refe-
ridos artigos somente poderiam ser aplicadas após a superveniência da
regulamentação expedida pela CVM.
Com efeito, a regulamentação editada pela CVM somente consti-
tui condição imprescindível para a aplicabilidade das regras contidas
nos artigos 4° e 4°-A da lei societária em relação às matérias inseridas
no âmbito de competência da CVM e apenas quando o texto legal,
isoladamente, não contém elementos que permitam a sua executorie-
dade imediata.
Neste sentido, alguns dos dispositivos contidos nos artigos 4° e
4°-A da Lei n° 6.404/1976 claramente dependiam de prévia regula-
mentação por parte da CVM para que pudessem ser aplicados, como
ocorre, por exemplo, com o § 6° do artigo 4° da lei societária, de
acordo com o qual:

Art. 4°- (. ..)


§ 6° - O acionista controlador ou a sociedade controladora que ad-
quirir ações da companhia aberta sob seu controle que elevem sua

367
participação, direta ou indireta, em determinada espécie e classe de
ações à porcentagem que, segundo normas gerais expedidas pela
Comissão de Valores Mobiliários, impeça a liquidez de mercado
das ações remanescentes, será obrigado a fazer oferta pública, por
preço determinado nos termos do § 4 2, para aquisição da totalidade
das ações remanescentes no mercado." (grifamos)

Como se verifica, a regra prevista no parágrafo transcrito somente


poderia ser aplicada após a CVM ter determinado os critérios para se
considerar que a aquisição de ações pelo acionista controlador impedi-
ria a liquidez de mercado das ações remanescentes.
Por outro lado, não existe nada na redação do§ 5° do artigo 4° da
Lei das S .A. que subordine a realização da modalidade de resgate ali
prevista à prévia edição de regulamentação pela CVM. De fato, tal
dispositivo legal já contém todos os elementos necessários para possi-
bilitar a implementação do aludido resgate.
Em outras palavras, trata-se de norma auto-aplicável, uma vez que
o texto legal já possui todos os meios e elementos necessários à sua
executoriedade. 6
Diante disso, impõe-se a conclusão de que a faculdade conferida
pelo § 5° do artigo 4 ° da Lei das S .A. poderia ser exercida inde-
pendentemente da existência de eventual regulamentação expedida
pela CVM.
De qualquer modo, vale ressaltar que, logo após o início da vigên-
cia da Lei no 10.303/2001, a CVM regulou, mediante a edição da
Instrução n° 361, de OS de março de 2002, as matérias previstas nos
artigos 4° e 4°-A da lei societária que se inseriam no âmbito de sua
competência.
A citada Instrução disciplinou as várias modalidades de oferta pú-
blica de aquisição de ações (artigo 4°, § 4°), estipulou as hipóteses em
que seria obrigatória a oferta pública por aumento de participação do
acionista controlador (artigo 4 °, § 6°) e estabeleceu os procedimentos
para revisão do preço da oferta pública (artigo 4°-A).
A única menção feita pela Instrução CVM no 361/2002 à modali-
dade de resgate prevista pelo artigo 4°, § 5°, da Lei n° 6.404/1976
encontra-se em seu artigo 20, inciso III, segundo o qual:

6 JOSÉ AFONSO DA SILVA. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São


Paulo: Malheiros, 2000, p. 101/102.

368
"Art. 20. Do instrumento da OPA para cancelamento de registro,
além dos requisitos estabelecidos no art. 1O, deverá constar obrigato-
riamente:
(. ..)
III- declaração de que, caso a companhia venha a exercer a facul-
dade de que trata o§ 5º do art. 4º da Lei 6.404!76, o depósito do
valor de resgate deverá ser efetuado em até 15 (quinze) dias, conta-
dos da deliberação de resgate, em instituição financeira que mante-
nha agências aptas a realizar o pagamento aos acionistas, no mínimo,
na localidade da sede da companhia e da bolsa de valores ou entidade
de mercado de balcão organizado em que as ações fossem admitidas à
negociação, e nas capitais de todos os estados do País, divulgando-se
a informação através de notícia de fato relevante;" (grifamos)

Ora, o simples fato de a CVM ter se referido expressamente à


modalidade de resgate instituída pelo artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A.,
exigindo que determinadas informações sobre a sua realização sejam
incluídas no instrumento de oferta pública para cancelamento de re-
gistro, comprova que o referido dispositivo da lei societária já estava
apto a produzir todos os seus efeitos.
Vale dizer, a própria autarquia reguladora expressamente admitiu
que a operação prevista no artigo 4°, § 5°, da lei societária poderia ser
implementada de imediato, independentemente de qualquer regula-
mentação adicional.
Em verdade, a Instrução n° 361/2002 praticamente não fez refe-
rência ao resgate previsto no § 5° do artigo 4° da Lei das S.A. pois tal
operação não se insere no âmbito de competência da CVM, por se
constituir operação típica de companhia fechada.
A propósito, vale ressaltar que, como se sabe, a CVM foi criada no
interesse do funcionamento regular e do desenvolvimento do merca-
do de valores mobiliários. A Lei no 6.385/1976, que criou a aludida
autarquia, expressamente dispõe que serão disciplinadas de acordo
com os seus termos apenas as atividades relacionadas com o merca-
do de valores mobiliários, isto é, quando houver apelo à poupança
pública.
Assim, por evidente, a competência da CVM limita-se a baixar
normas reguladoras das companhias abertas, de seus administradores
e acionistas controladores, investidores, instituições financeiras e
quaisquer outras entidades ou pessoas que desempenham atividades
no mercado de valores mobiliários, conforme consta expressamente
de diversos dispositivos da referida Lei n° 6.385/1976:

369
"Art. 8°- Compete à Comissão de Valores Mobiliários:
(. ..)
V- fiscalizar e inspecionar as companhias abertas, dada priorida-
de às que não apresentem lucro em balanço ou às que deixem de pagar
o dividendo mínimo obrigatório.
"Art. 9° -A Comissão de Valores Mobiliários, observado o disposto
no § 2° do art. 15, poderá:
I - examinar e extrair cópias de registros contábeis, livros ou docu-
mentos, inclusive programas eletrônicos e arquivos magnéticos, ópti-
cos ou de qualquer outra natureza, bem como papéis de trabalho de
auditores independentes, devendo tais documentos ser mantidos em
perfeita ordem e estado de conservação pelo prazo mínimo de cinco
anos:
a) as pessoas naturais e jurídicas que integram o sistema de distribui-
ção de valores mobiliários (Art. 1 5);
bJ das companhias abertas e demais emissoras de valores mobiliá-
rios e, quando houver suspeita fundada de atos ilegais, das respecti-
vas sociedades controladoras, controladas, coligadas e sociedades sob
controle comum;
(. .. )
IV - determinar às companhias abertas que republiquem, com
correções ou aditamentos, demonstrações financeiras, relatórios ou
informações divulgadas;
V- apurar, mediante processo administrativo, atos ilegais e práticas
não eqüitativas de administradores, membros do conselho fiscal e
acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais
participantes do mercado;" (grifamos)

Ou seja, estão excluídas da competência do referido órgão todas e


quaisquer operações societárias realizadas por companhias fechadas,
como é o caso da modalidade de resgate regulada no§ 5° do artigo 4°
da Lei das S .A.
De fato, tal operação pressupõe o encerramento do prazo da pré-
via oferta pública de aquisição de ações para fechamento de capital.
Pressupõe ainda o sucesso dessa oferta, já que não poderão remanes-
cer em circulação mais de 5% (cinco por cento) das ações emitidas
pela sociedade.
Diante disso, no momento da deliberação do resgate, a companhia
já terá necessariamente cancelado o seu registro como aberta, estan-
do, portanto, excluída da jurisdição da CVM. Trata-se, pois, de ope-
ração própria de companhia fechada.

370
Daí por que a CVM, ao disciplinar em quase todos os seus aspec-
tos os artigos 4° e 4°-A da Lei n° 6.404/1976, por meio da citada
Instrução n° 361/2002, não regulamentou os procedimentos a serem
adotados para a implementação da operação de resgate prevista no §
5° do mencionado artigo 4°.
Logo, em se tratando de operação de iniciativa exclusiva de com-
panhia fechada, não poderia a CVM discipliná-la e, em conseqüência,
o referido § 5° do artigo 4° da lei societária passou a vigorar imediata-
mente após transcorridos 120 (cento e vinte) dias da publicação do
texto legal.
Assim, todas as companhias fechadas que tinham realizado a ofer-
ta pública de fechamento de capital e atendiam os demais requisitos
legais poderiam efetuar a operação de resgate ora comentada, inde-
pendente de qualquer regulamentação por parte da CVM.
Diante do exposto, conclui-se que o artigo 4°, § 5°, da Lei das
S.A. já se encontrava plenamente em vigor quando da realização da
Assembléia Geral Extraordinária da COMPANHIA GAMA de 19 de
dezembro de 2002, que aprovou o resgate das ações em circulação
remanescentes após o cancelamento de seu registro como compa-
nhia aberta.

2°QUESITO

"O resgate de ações previsto no § 5° do artigo 4° da Lei de


Sociedades Anônimas é aplicável às sociedades que tiveram seu
capital fechado em época anterior à edição da Lei n° 10.303!01?
Ou, no caso dessas sociedades, o resgate em questão pressupõe,
necessariamente, a realização de nova Oferta Pública de Aquisi-
ção de ações?"

RESPOSTA

O artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A., introduzido pela Lei n°


10.303/2001, como qualquer outro dispositivo legal, tem aplicação
geral e imediata, respeitado o direito adquirido, o ato jurídico perfeito
e a coisa julgada, conforme dispõe o artigo 6° da Lei de Introdução ao
Código Civil.
Por força de tal princípio, as companhias que realizaram ofertas
públicas com fundamento na regulamentação anteriormente expedi-
da pela CVM somente poderiam ser impedidas de aprovar o resgate
de ações previsto no artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. caso a efetivação

371
de tal operação representasse violação ao direito adquirido, ao ato
jurídico perfeito ou à coisa julgada.
Na presente hipótese, não se vislumbra a existência de coisa julga-
da que pudesse obstar a aplicação imediata do preceito instituído pelo
artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A., com a redação dada pela Lei n°
10.303/2001.
Poder-se-ia eventualmente alegar que a oferta pública de cancela-
mento de registro constituiria ato jurídico perfeito e, como tal, deve-
ria ser inteiramente disciplinada pela regulamentação anterior, que
não previa a realização do pretendido resgate de ações.
Note-se, entretanto, que a oferta pública para cancelamento de
registro de companhia aberta e a modalidade de resgate prevista no
artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. constituem negócios jurídicos inde-
pendentes e autônomos, não sendo o primeiro uma mera continuação
do segundo.
Com efeito, as normas e princípios jurídicos incidentes sobre cada
uma destas operações são absolutamente diversos.
A simples leitura do § 5° do artigo 4° da Lei das S.A. indica que a
oferta pública de compra de ações e o resgate das ações remanescen-
tes constituem operações distintas, que não se confundem. De fato,
conforme expresso na redação do referido dispositivo, o resgate das
ações de titularidade dos minoritários remanescentes somente pode
ser efetuado após terminado o prazo da oferta pública de cancelamen-
to de registro.
Ou seja, somente após o encerramento da oferta pública, e na
medida em que esta configurou um negócio jurídico perfeito e acaba-
do, tendo produzido os seus regulares efeitos, poderá ser deliberado o
resgate previsto no§ 5° do artigo 4° da Lei n° 6.404/1976.
A única relação entre os dois negócios consiste no fato de a prévia
realização de oferta pública ser um dos pressupostos exigidos pela Lei
das S.A. para possibilitar a efetivação da modalidade de resgate disci-
plinada em seu artigo 4°, § 5°.
Em suma, constituem dois negócios jurídicos inteiramente distin-
tos: de um lado, a oferta pública de cancelamento de registro de compa-
nhia aberta; de outro, o resgate de ações de emissão da companhia.
No caso presente, a oferta pública de fechamento de capital da
COMPANHIA GAMA foi realizada sob a égide da Instrução CVM n°
229/1995 e encerrou-se quando a CVM promoveu o cancelamento
do registro que era mantido em nome da Companhia.
Assim sendo, o resgate previsto no§ 5° do artigo 4° da Lei das S.A.
constitui uma nova operação, não uma mera continuação do fecha-

372
menta de capital, sendo facultado a todas as sociedades que cancela-
ram o registro perante a CVM, após observadas todas as formalidades
legais e regulamentares para tanto.
Diante disso, não há que se falar em proteção ao ato jurídico
perfeito, pois o ato em tela - a operação de resgate - será realizado
integralmente na vigência da Lei no 10.303/2001.
Também inexiste qualquer direito adquirido de os acionistas mi-
noritários remanescentes não terem suas ações resgatadas. Com efei-
to, tais acionistas sempre estiveram sujeitos ao resgate de suas ações,
na medida em que esta operação já constituía faculdade que a compa-
nhia poderia, a qualquer tempo, utilizar.
Em verdade, a Lei n° 10.303/2001 apenas criou uma nova moda-
lidade de resgate, a ser adotado em circunstâncias específicas e me-
diante procedimentos próprios.
Diante disso, não há dúvida de que a regra prevista no artigo 4°, §
5°, da Lei das S.A. pode ser aplicada de imediato, inclusive em relação
às ofertas públicas de cancelamento de registro promovidas sob a égi-
de da regulação existente antes da entrada em vigor da Lei no
10.303/2001.
Vale ainda acrescentar que a Lei das S .A. não especificou que
somente seria possível efetuar o resgate previsto em seu artigo 4°, § 5°,
se anteriormente tivesse sido realizada oferta pública nos moldes des-
critos no§ 4o do mesmo artigo 4°.
Com efeito, dispôs o legislador, apenas, que poderia ser efetuado
o resgate "terminado o prazo da oferta pública fixado na regulamenta-
ção expedida pela Comissão de Valores Mobiliários".
Ou seja, não foi estabelecido que o resgate somente poderia ser
realizado após o prazo da oferta em que o preço tenha sido apurado na
forma prevista no § 4o do artigo 4o da lei societária.
Ora, constitui princípio básico de hermenêutica jurídica que onde
o legislador não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo.
Logo, já tendo sido promovida oferta pública de fechamento de
capital na forma da regulamentação editada pela CVM e, ademais,
tendo sido, cancelado o registro de companhia aberta, está atendido
o aludido requisito para legitimar o resgate das ações remanescentes.
Conclui-se, portanto, que o resgate de ações previsto no § 5° do
artigo 4° da Lei das S.A. é aplicável às sociedades que tiveram seu
capital fechado anteriormente à edição da Lei n° 1O. 303/01, não sen-
do necessário que tais sociedades promovam nova Oferta Pública de
Aquisição de ações para poderem implementar a referida operação de
resgate.

373
3°QUESITO

"É legítimo o resgate de ações realizado por companhia que


teve seu capital fechado em data anterior à edição da Lei n°
10.303!01, se esse resgate se der de acordo com todos os critérios
que esse ato normativo estabelece?"

RESPOSTA

Conforme mencionado nas respostas ao quesitos anteriores, o ar-


tigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. constitui norma de aplicação imediata,
inclusive em relação às sociedades anônimas que cancelaram o registro
como companhia aberta antes do início da vigência da Lei no
10.303/2001.
Dessa forma, tratando-se de uma operação expressamente previs-
ta em lei, não há dúvida de que o resgate das ações remanescentes
constitui negócio jurídico absolutamente lícito e legítimo, desde que
atendidos todos os requisitos legais para a sua realização.
Ora, conforme referido, os únicos requisitos estabelecidos pela
Lei das S.A. para que a nova modalidade de resgate seja legitimamente
utilizada são:
a) a realização de prévia oferta pública de aquisição de ações para
o cancelamento do registro de companhia aberta, de acordo com a
regulamentação editada pela CVM;
b) o fato de ter restado em circulação menos de 5% (cinco por
cento) das ações de emissão da Companhia; e
c) o depósito em nome dos acionistas minoritários remanescentes
do valor equivalente ao praticado na oferta pública de fechamento de
capital.
No caso presente, estes pressupostos foram integralmente atendi-
dos, visto que a controladora da COMPANHIA GAMA promoveu a
oferta pública de fechamento de capital, na forma prevista na Instru-
ção CVM no 229/1995, a qual resultou no cancelamento do registro
desta perante a CVM, ficando em circulação ações representativas de
apenas 4,94% do capital social da Companhia.
Adicionalmente, vale lembrar que, como em qualquer operação
societária, o resgate das ações remanescentes deve ser realizado tendo
em vista o interesse da sociedade envolvida, e não o de seus acionistas
individualmente.
No que se refere à operação de resgate disciplinada no artigo 4°, §
5°, da Lei das S.A., o interesse da companhia reside, conforme já

374
explicitado, na eliminação dos custos decorrentes da manutenção, nos
quadros sociais, de acionistas possuidores de reduzida participação no
capital social.
A propósito, note-se que a própria lei societária, ao ter que expres-
samente facultado a realização desta nova modalidade de resgate, qua-
lificou este interesse como superior ao dos acionistas minoritários em
permanecerem como sócios da companhia fechada. Em vista disso, a
Lei das S .A. assegurou aos acionistas minoritários apenas o direito de
receber pelas ações de sua titularidade o valor praticado na oferta
pública, mas não lhes permitiu exigir a permanência na sociedade.
Nessas condições, em sendo pago o valor do resgate legalmente esta-
belecido, considera-se que os interesses dos acionistas minoritários fo-
ram adequadamente preservados. Logo, não se poderia alegar que a ope-
ração em tela teria prejudicado indevidamente tais acionistas.
Acrescente-se que, na presente hipótese, segundo informado pela
Consulente, o valor pago na Oferta Pública de fechamento de capital
da COMPANHIA GAMA correspondeu ao que seria apurado me-
diante a utilização de um dos critérios previstos no artigo 4°, § 4°, da
Lei das S.A., com a redação dada pela Lei no 10.303/2001, para deter-
minar o "preço justo" das ações pertencentes aos acionistas minoritá-
rios, qual seja, o da "comparação por múltiplos".
Isto significa que, ainda que a Lei no 10.303/2001 já estivesse em
vigor quando da realização da Oferta Pública visando o cancelamento
de registro da COMPANHIA GAMA, os seus acionistas minoritários
possivelmente receberiam valor semelhante ao que lhes foi efetiva-
mente pago.
Ora, tal circunstância apenas ratifica a legitimidade da operação
de resgate objeto da Consulta, pois confirma que os acionistas minori-
tários da COMPANHIA GAMA receberam a contrapartida adequada
pelas ações de sua propriedade.
Diante do exposto, estando a operação em consonância com o
interesse social e tendo sido todos atendidos os requisitos exigidos
pelo legislador, é perfeitamente lícito e legítimo que a Assembléia
Geral delibere o resgate das ações remanescentes, inde-
pendentemente da data em que o seu registro de companhia aberta
perante a CVM foi cancelado.

4°QUESITO

"Quais os critérios para fixação do valor do resgate? Se a


Oferta Pública de Aquisição de ações fixava o preço de acordo

375
com um dos critérios previstos no § 4°, do artigo 4°, da Lei n°
6.404!76, com a redação que lhe foi atribuída pela Lei n°
10.303/01, pode o resgate ser levado a efeito por aquele mesmo
valor, devidamente atualizado?"

RESPOSTA

Conforme anteriormente mencionado, o artigo 4°, §5°, da Lei das


S .A. instituiu, em nosso direito societário, uma nova modalidade de
resgate, com características próprias em relação às operações realiza-
das com fundamento no artigo 44 da lei societária.
Uma das mais relevantes das características específicas desta nova
modalidade de resgate refere-se justamente ao valor a ser atribuído às
ações resgatadas.
Nas operações ordinárias de resgate, a Assembléia Geral que apro-
var a operação tem competência para, discricionariamente, fixar o
valor de resgate, levando em consideração apenas, conforme refere a
doutrina, os parâmetros estabelecidos no artigo 170, § l 0 , da Lei no
6.404/1976 7•
Na hipótese prevista no artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A., por outro
lado, não cabe aos acionistas fixar, em assembléia geral, o preço a ser
pago pelas ações resgatadas. Isto porque tal valor já está previamente
determinado em lei, devendo ser equivalente ao valor praticado na
oferta pública que resultou no cancelamento de registro da compa-
nhia, conforme estabelece a própria redação do dispositivo legal em
tela:

"Art. 4°- (. .. )
§ 5° - (. .. .) a assembléia geral poderá deliberar o resgate dessas
ações pelo valor da oferta de que trata o§ 4°." (grifamos)

Entendeu o legislador que a adesão dos minoritários à oferta públi-


ca de cancelamento de registro de companhia aberta constitui o meio
mais eficiente para se verificar a correção do preço a ser pago pelas
ações em circulação no mercado remanescentes.
Com efeito, como a oferta pública constitui uma proposta à qual
os minoritários podem livremente aderir, justifica-se a presunção legal

7 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, vol.


I. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 422/423.

376
de que estes somente concordarão com a oferta promovida pelo con-
trolador, aceitando vender as ações de sua titularidade, caso o preço
proposto por tais ações seja adequado.
Assim, tendo a oferta pública de cancelamento de registro obtido
adesão significativa de acionistas minoritários, o que fez com que re-
manescessem em circulação menos de 5% (cinco por cento) das ações
emitidas pela companhia, seria razoável estender aos demais minoritá-
rios o preço submetido à apreciação do mercado e considerado eqüi-
tativo.
Dessa forma, a lei societária permite a conjugação do interesse
social em eliminar os custos inerentes à manutenção nos quadros acio-
nários de uma minoria pouco significativa, com a necessária proteção
aos acionistas minoritários, que, apesar de terem suas ações compul-
soriamente compradas, receberão por elas um valor considerado ade-
quado, posto que referendado pela maioria expressiva dos acionistas.
Não se pode, no entanto, deixar de ressaltar que, embora não
expresso no texto legal, o valor da oferta pública deverá ser sempre e
necessariamente atualizado até o momento do seu efetivo pagamento
aos minoritários remanescentes.
Neste sentido, a CVM sempre exigiu que os editais de ofertas
públicas de cancelamento de registro estabelecessem um índice que
deveria ser utilizado para atualizar, desde a divulgação do valor da
oferta até a sua liquidação financeira, o preço proposto aos acionistas
minoritários.
Logo, o preço das ações no resgate de que trata o artigo 4°, §5°, da
Lei das S .A. deverá ser necessariamente o mesmo praticado na oferta
pública proposta pelo acionista controlador, atualizado pelo índice
previsto no edital da Oferta.
No caso presente, conforme referido na resposta ao quesito ante-
rior, o fato de o preço da Oferta Pública ser equivalente ao valor das
ações de emissão da COMPANHIA GAMA apurado de acordo com o
método da "comparação por múltiplos", expressamente previsto no
artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A., apenas confirma a regularidade da
utilização de tal preço para efeitos de viabilizar o resgate das ações
detidas pelos acionistas minoritários remanescentes.
Portanto, sendo o valor depositado em favor dos minoritários re-
manescentes da COMPANHIA GAMA equivalente ao preço pago aos
acionistas que aceitaram a Oferta Pública de cancelamento de regis-
tro, devidamente atualizado, e considerando ainda que tal valor cor-
responde ao preço das ações emitidas pela Companhia de acordo com
o critério de "comparação por múltiplos", é inequívoco que o resgate

377
das ações detidas pelos referidos minoritários pode ser levado a efeito
pelo valor mencionado na Ata da Assembléia Geral realizada em 19 de
dezembro de 2002.

5° QUESITO

"O percentual de 5% de ações remanescentes em circulação, a


que alude o § 5° do artigo 4° da Lei n° 6.404/76, com as modifica-
ções da Lei n° 10.303!01, deve ser verificado no momento dores-
gate ou quando do término do prazo da Oferta Pública de Aquisi-
ção de ações?"

RESPOSTA

Mesmo após ter sido encerrada a Oferta Pública para fechamento


de capital e cancelado o registro de companhia aberta, os efeitos da
referida oferta ainda podem perdurar por determinado tempo, visto
que podem subsistir, para o acionista controlador, obrigações a que ele
se vinculou no edital de oferta pública.
Dentre tais obrigações está a de adquirir as ações pertencentes aos
acionistas minoritários que não aderiram à oferta, nos termos previs-
tos no artigo 20 da Instrução no 229/1995. De acordo com tal dispo-
sitivo, na hipótese de ser cancelado o registro de companhia aberta, o
acionista controlador ficaria obrigado a adquirir, pelo mesmo preço
oferecido aos demais, as ações detidas pelos minoritários que não
aceitaram a oferta pública. Esta obrigação perduraria pelo prazo de até
6 (seis) meses, contados a partir da data da realização da Assembléia
Geral que aprovasse as demonstrações financeiras do primeiro exercí-
cio social posterior ao fechamento do capital.
Obrigação semelhante está atualmente prevista no artigo IO, § 2°,
da Instrução CVM no 361/2002, com a única diferença de que o prazo
durante o qual os acionistas minoritários podem exigir que o controla-
dor adquira as ações de sua propriedade foi reduzido para 3 (três)
meses, contados da data de realização do leilão da Oferta Pública.
Como se verifica, tais regras instituem uma opção a favor do acio-
nista minoritário, que tem a faculdade de exigir que o controlador
adquira as ações de sua propriedade, pelo mesmo preço oferecido aos
demais, na hipótese de ser cancelado o registro de companhia aberta.
Dessa forma, os acionistas minoritários que, após a realização da
oferta pública, utilizaram-se do direito previsto no artigo 20 da Instru-
ção CVM no 229/1995 para venderem as ações de sua propriedade,

378
fizeram-no livremente, por terem considerado conveniente aceitar o
preço proposto pelo acionista controlador e que havia sido pago aos
acionistas aceitantes.
Isto posto, vale relembrar os fundamentos que levaram nossa lei so-
cietária a autorizar a realização desta modalidade especial de resgate.
A respeito, considerou o legislador que, havendo menos de 5%
(cinco por cento) do capital social em circulação, não se justificaria
que a companhia continuasse a incorrer nos custos inerentes à manu-
tenção de uma quantidade não representativa de acionistas minoritá-
rios. Em vista disso, o artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. permitiu que a
companhia resgatasse as ações de titularidade dos minoritários rema-
nescentes.
No entanto, a fim de proteger os interesses de tais minoritários, a
Lei no 10.303/2001 condicionou a realização do referido resgate à
prévia aceitação, por parcela relevante dos acionistas minoritários, de
oferta pública visando ao fechamento de capital da companhia. Tal
exigência fundamenta-se na presunção legal de que o preço da oferta
pública, por ter sido submetido ao mercado e voluntariamente aceito
por uma parcela expressiva de acionistas, representa a contrapartida
adequada pelas ações de emissão da companhia.
Ora, os acionistas que exerceram a faculdade conferida pelo artigo
20 da Instrução CVM no 229/1995livremente aceitaram o preço que
havia sido proposto pelo controlador e, em conseqüência, venderam
as ações de sua propriedade.
Ou seja, é inquestionável que o preço da Oferta Pública foi efeti-
vamente referendado pela parcela dos acionistas minoritários exigida
pela Lei das S.A. para legitimar o resgate das ações detidas pelos
acionistas não aceitantes.
Situação totalmente diversa ocorreria, por exemplo, se, após a
oferta pública em que tivessem restado em circulação ações repre-
sentativas de mais de 5% (cinco por cento) do capital social, este
percentual tivesse sido posteriormente alcançado em razão de um
aumento de capital subscrito pelo controlador. Nesta hipótese, o per-
centual a que se refere o artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A. não teria
resultado da concordância dos acionistas com o preço oferecido pelo
acionista controlador, mas de uma operação posterior, que acarretou
a diluição da participação acionária dos minoritários.
No caso do exercício do direito previsto no artigo 20 da Instrução
CVM no 229/1995, ao contrário, o preço proposto pelo controlador
foi submetido à apreciação dos acionistas minoritários e obteve ampla
adesão por parte destes, o que resultou na redução das ações em

379
circulação a um percentual inferior a 5% (cinco por cento) do capital
social.
Tal adesão, ainda que tenha ocorrido após a Oferta Pública, legiti-
ma a aprovação do resgate das ações de propriedade dos minoritários
remanescentes.
Diante do exposto, conclui-se que o resgate previsto no artigo 4°,
§ 5°, da Lei das S.A. pode ser validamente realizado caso, na data em
que for aprovada a aludida operação, a quantidade de ações em circu-
lação seja inferior a 5% (cinco por cento) do capital social, mesmo que
este percentual tenha sido atingido em decorrência das alienações de
ações efetuadas em virtude do exercício da faculdade estabelecida no
artigo 20 da Instrução CVM n° 229/1995.

6°QUESITO

"Após o cancelamento do registro de companhia aberta junto


à CVM, existe prazo máximo para a realização do resgate?"

RESPOSTA

A respeito, saliente-se que a lei societária não estabelece qualquer


prazo para a deliberação do resgate das ações em circulação após o
encerramento em oferta pública.
Ora, como se sabe, não cabe ao intérprete fixar restrições onde a
lei não as estabeleceu.
Dessa forma, não tendo a lei societária estipulado prazo para que
seja efetivada a operação prevista em seu artigo 4°, § 5°, é absoluta-
mente indiferente o período de tempo verificado entre o cancelamen-
to do registro de companhia aberta e a deliberação do resgate das
ações remanescentes.
Vale dizer, tal deliberação poderá ser tomada decorridos dias, me-
ses, ou mesmo anos do cancelamento do registro de companhia aber-
ta, cabendo exclusivamente à própria sociedade decidir o momento
em que a aludida operação atenderá o interesse social. Neste sentido,
já se manifestou, inclusive, a atual Diretora da CVM Norma Parente,
in verbis: 8

s NORMA PARENTE. "Principais invocação introduzidas pela Lei no 10.303, de 31


de dezembro de 2001, à Lei de Sociedades por Ações", in: Reforma da Lei das
Sociedades Anônimas (coord. Jorge Lobo). Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 20.

380
"Encerrada a oferta pública, se remanescerem em circulação menos de
5% das ações emitidas pela companhia, a assembléia geral poderá
deliberar o resgate dessas ações pelo mesmo valora oferta de fecha-
mento de capital. A lei parte do princípio de que a aprovação de 95%
dos acionistas referenda os termos da oferta. Evita-se, assim, que,
numa sociedade em que 95% dos acionistas aceitaram a oferta, esta se
veja obrigada a manter pequena quantidade de acionistas, em situa-
ções, como, por exemplo, quando se desconhece o paradeiro dos acio-
nistas.
(. ..)
A lei não estabeleceu prazo para o resgate dessas ações. Portan-
to, a companhia poderá a qualquer tempo resgatá-las." (grifa-
mos)

Portanto, não existe prazo máximo para a implementação dores-


gate das ações na forma do artigo 4°, § 5°, da Lei das S.A., razão pela
qual a assembléia geral extraordinária convocada para deliberar sobre
tal operação poderá ocorrer a qualquer tempo após o encerramento da
oferta pública de aquisição de ações.

7°QUESITO

"A eventual anulação da deliberação que aprovou o resgate


das ações remanescentes poderia também acarretar a anulação
de deliberações tomadas, posteriormente, em outras Assembléias
Gerais da COMPANHIA GAMA?"

RESPOSTA

Conforme explicitado no presente Parecer, a deliberação de res-


gate das ações detidas pelos minoritários remanescentes da COMPA-
NHIA GAMA é perfeitamente lícita e legítima, visto que foram aten-
didos todos os requisitos legais para a sua realização. Logo, não há
nenhuma razão para que tal deliberação venha a ser anulada.
De qualquer modo, admitindo-se, apenas ad argumentandum,
que a anulação da deliberação objeto da Consulta viesse a prevalecer,
tal fato, em nenhuma hipótese, poderia afetar a validade de outras
deliberações dos acionistas da COMPANHIA GAMA, aprovadas em
assembléias gerais regularmente convocadas e instaladas.

381
De fato, os efeitos de uma eventual irregularidade restringem-se à
deliberação viciada não se estendendo à outras decisões, ainda que
tenham sido tomadas na mesma assembléia. 9
Ora, se os efeitos da anulação de determinada deliberação social
não podem ser estendidos às outras decisões tomadas no mesmo con-
clave, desde que este tenha sido regularmente convocado e instalado,
é evidente que, com muito mais razão, tais efeitos também não po-
dem afetar deliberações aprovadas em outras assembléias.
A propósito, lembre-se que os acionistas minoritários da COM-
PANHIA GAMA cujas ações foram resgatadas possuíam apenas ações
preferenciais sem direito a voto. Com efeito, mesmo antes da Oferta
Pública de fechamento de capital, o acionista controlador já era titular
da totalidade das ações ordinárias emitidas pela Companhia.
Ou seja, os referidos minoritários não podiam sequer votar nas
Assembléias Gerais da Companhia e, muito menos, exercer qualquer
influência na formação da vontade social manifestada pelas decisões
assembleares. Em outras palavras, independentemente da participa-
ção dos minoritários remanescentes, tais decisões continuariam a ser
aprovadas pelo quórum legalmente previsto.
Nessas condições, a eventual anulação da deliberação tomada na
Assembléia Geral Extraordinária da COMPANHIA GAMA realizada
em 19 de dezembro de 2002 não pode ter qualquer efeito sobre a
validade de outras deliberações, regularmente aprovadas em Assem-
bléias Gerais posteriores da Companhia.
Foi o nosso Parecer, em novembro de 2003.

9 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, vol.


4, Tomo II. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4 75.

382
INCORPORAÇÃO DE CONTROLADAS
SUBSIDIÁRIAS INTEGRAIS. APLICAÇÃO DO
ART. 264 DA LEI DAS S.A.

I-CONSULTA

A Companhia Aberta Delta deseja incorporar duas controladas,


subsidiárias integrais, estando sua administração em dúvida sobre a
necessidade de ser atendido o art. 264 da Lei 6.404/76, bem como
sobre a aplicação do disposto na Instrução CVM n° 319/99, referente
à publicação de fato relevante.

li-PARECER

A. Das finalidades da avaliação dos patrimônios líquidos a preços


de mercado prevista no artigo 264 da Lei n° 6.404/1976

A incorporação constitui a operação de reorganização societária


mediante a qual uma sociedade é absorvida por outra, que lhe sucede
em todos os direitos e obrigações.
Na maioria dos casos, a incorporação implica um aumento doca-
pital social da incorporadora, o qual é subscrito com a versão do patri-
mônio líquido da incorporada, bem como a emissão de novas ações
pela incorporadora a serem atribuídas aos acionistas da incorporada,
em substituição às ações de sua propriedade, que serão extintas em
virtude da operação.
Um dos aspectos mais relevantes da operação de incorporação é
justamente a definição das relações de troca das ações, isto é, quantas
ações emitidas pela incorporadora serão entregues aos acionistas da
incorporada por cada ação de emissão desta anteriormente detida.
A lei societária não estabelece nenhum critério específico para a
avaliação dos patrimônios envolvidos na operação de incorporação,
consagrando o princípio da liberdade convencional dos parâmetros
para a determinação das relações de troca.

383
Çoptudo, em se tratando de incorporação de companhia controla-
da, o artigo 264 da Lei n° 6.404/1976 exige que seja apresentada aos
acionistas da incorporada a avaliação de ambas as companhias envolvi-
das com base no critério do patrimônio líquido a preços de mercado.
Tal exigência fundamenta-se na circunstância de que, na incorpo-
ração de controlada, inexistem duas vontades a deliberar livremente
sobre as condições da operação, pois o mesmo controlador deverá
aprová-la nas àssembléias gerais das duas sociedades envolvidas.
Note-se, contudo, que a lei societária não exige que as relações de
troca sejam determinadas com base no parâmetro estabelecido em seu
artigo 264.
As sociedades envolvidas podem estabelecer a relação de substi-
tuição com base em outro critério, bastando que os acionistas sejam
informados de qual seria a relação de troca se apurada com base no
valor patrimonial a preços de mercado. 1
A avaliação das sociedades envolvidas com base no critério indica-
do pelo artigo 264 da Lei das S.A. visa apenas a conferir ao minoritário
elementos para que ele possa decidir sobre a conveniência de aceitar
ou não a relação de troca estabelecida no Protocolo da operação.
O cálculo da relação de substituição com base no valor do patri-
mônio líquido a preços de mercado é exigido para permitir a compa-
ração com o critério escolhido pela administração das sociedades e
indicado no Protocolo, a fim de evidenciar a eqüidade da escolha do
referido critério.
Adicionalmente, a avaliação do patrimônio líquido a preços de
mercado também constitui, em determinadas situações, alternativa
para a determinação do valor de reembolso devido aos acionistas que
divergirem da operação.
A respeito, o§ 3° do artigo 264 da Lei das S.A. dispõe que, caso as
relações de substituição das ações dos acionistas minoritários, fixadas
no Protocolo, sejam menos vantajosas do que as que resultariam da
avaliação dos patrimônios a preços de mercado, os acionistas dissiden-
tes poderão escolher, ao exercer o direito de recesso, entre o reembol-
so de suas ações calculado com base no valor previsto no artigo 45 da
lei societária ou com base no valor de patrimônio líquido a preços de
mercado.

1 MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK. A Nova Lei das S.A. São


Paulo: Saraiva, 2002. p. 376.

384
Portanto, a regra prevista no artigo 264 da Lei das S.A. possui
dupla finalidade, qual seja:
a) possibilitar a comparação com os parâmetros que servem de
base para fixação das relações de troca na incorporação, a fim de
evidenciar a eqüidade de tais relações de troca; e
b) servir como critério alternativo para o cálculo do valor de reem·
bolso devido aos acionistas dissidentes, na hipótese de a relação de
substituição estabelecida no Protocolo da Incorporação ser menos
vantajosa do que aquela que decorreria da avaliação dos patrimônios
líquidos a preços de mercado.

B. Da Particularidade da Incorporação de Subsidiária Integral

A incorporação de subsidiária integral pela sua controladora cons-


titui operação perfeitamente lícita e legítima, a qual, em princípio,
deve observar os mesmos procedimentos aplicáveis a qualquer opera-
ção de incorporação.
Note-se, no entanto, que, ao contrário das operações envolvendo
sociedades pluripessoais, a incorporação de subsidiária integral por
sua controladora não acarreta, em regra, aumento de capital desta,
visto que o patrimônio da incorporada já pertence, exclusivamente, à
incorporadora.
De fato, o investimento societário da incorporadora na incorpo-
rada desaparece em função da operação, sendo substituído, no ativo
da primeira, pelos diversos elementos patrimoniais vertidos pela se-
gunda2.
Acrescente-se que a operação de incorporação de subsidiária inte-
gral efetiva-se sem a necessidade da emissão de novas ações por parte
da incorporadora, pois não existem outros acionistas para receber as
ações por ela eventualmente emitidas.
Assim, as ações de emissão da incorporada são extintas em virtude
da operação, não sendo substituídas por novas ações emitidas pela
incorporadora.
Logo, não há que se falar, nesta modalidade de incorporação, na
existência de relação de troca das ações de emissão da incorporada por
novas ações emitidas pela incorporadora.

2 EGBERTO LACERDA TEIXEIRA E JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUER-


REIRO. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro, vol. 2. São Paulo: Ed. José
Bushatsky, 1979, p. 670/671.

385
Em princípio, a operação de incorporação de subsidiária integral
por seu único acionista constitui uma hipótese de incorporação de
controlada e, assim, estaria subordinada ao cumprimento da formali-
dade prevista no artigo 264 da Lei das S.A.
Ressalte-se, contudo, que, conforme referido, a exigência da ava-
liação prevista no artigo 264 da Lei das S.A. visa, em essência, a con-
ferir informação adicional aos acionistas da companhia incorporada,
de modo que estes possam aferir o caráter eqüitativo da operação,
comparando a relação de substituição fixada no Protocolo com aquela
que resultaria da avaliação pelo critério do patrimônio líquido a preços
de mercado.
Na incorporação de subsidiária integral, a referida informação adi-
cional não possui nenhuma utilidade, visto que, como não existe rela-
ção de troca, simplesmente não há o que ser comparado com o resul-
tado da avaliação de ambas as companhias pelo critério do patrimônio
líquido a preços de mercado.
Da mesma forma, como não existem acionistas que possam exer-
cer o direito de recesso em decorrência da operação, pois a única sócia
da incorporada é a própria incorporadora, também não faria sentido
exigir a avaliação referida no artigo 264 da Lei das S.A. sob o argumen-
to de que ele apresenta um critério alternativo para a apuração do
valor de reembolso.
Portanto, nenhuma das duas finalidades que ensejam a obrigato-
riedade da realização da avaliação adicional exigida pelo artigo 264 da
Lei das S .A. justificam a sua aplicação às operações de incorporação de
subsidiária integral por sua controladora.
Isto posto, vale lembrar que o direito comercial, pela própria na-
tureza das atividades que ele regula, caracteriza-se pela celeridade e
informalidade, o que autoriza a dispensa do cumprimento de formali-
dades inúteis, isto é, cujo atendimento não acarreta nenhum benefício
para aqueles que a norma visa a proteger.
Este foi, inclusive, um dos princípios que nortearam a elaboração
da lei societária, conforme ressaltado por Alfredo Lamy Filho e José
Luiz Bulhões Pedreira: 3

"Em verdade, a atual Lei de S.A. procurou, sempre que possível,


expurgar rituais despidos de significação, e que contrariavam a

3 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A. vol. 2.
2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p.588/589.

386
índole e o espírito empresarial, que nasceu e progrediu sob o
signo da informalidade, da boa fé dos contratantes, e da celeri-
dade das relações negociais.
Neste sentido, a lei permitiu que as assembléias ordinária e extraor-
dinária se realizassem com uma só convocação, admitiu a constitui-
ção das S.A. com apenas dois sócios (dispensando dos sete 'homens de
palha' antigos), permitiu atas resumidas, consagrou praxes que eram
muitas vezes ocultadas do público, como a dos acordos de acionistas,
etc." (grifamos)

Em vista disso, não se justifica, na hipótese da Consulta, a exigên-


cia de apresentação da avaliação prevista no artigo 264 da Lei das S.A.,
posto que o atendimento a tal formalidade não acarreta nenhuma
proteção adicional aos acionistas das sociedades envolvidas.
Em verdade, a realização da aludida avaliação representaria um
acréscimo nos custos incorridos para a efetivação da incorporação,
sem que, em contrapartida, nenhum benefício fosse auferido pelos
referidos acionistas.
Diante do exposto, conclui-se que a regra prevista no artigo 264
da Lei n° 6.404/1976 não deve ser aplicada às operações de incorpo-
ração de subsidiária integral por sua controladora, razão pela qual não
se faz necessária a avaliação da Companhia Delta e de suas controladas
subsidiárias integrais pelo critério do patrimônio líquido a preços de
mercado.

C. -Aplicação da Instrução CVM n° 319/99

O artigo 2° da Instrução CVM no 319/1999 estabelece que as


condições das operações de incorporação, fusão e cisão envolvendo
companhias abertas sejam divulgadas ao mercado no prazo de até 15
(quinze) dias antes da data em que forem realizadas as assembléias
gerais para deliberar sobre a operação:

"Art. 2° - Sem prejuízo do disposto na Instrução CVM n° 31, de 08


de fevereiro de 1984, as condições de incorporação, fusão ou cisão
envolvendo companhia aberta deverão ser comunicadas pela com-
panhia, até quinze dias antes da data de realização da assembléia
geral que irá deliberar sobre o respectivo protocolo e justificação, à
CVM e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão orga-
nizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia
estejam admitidos à negociação, assim como divulgadas na imprensa,

387
mediante publicação nos jornais utilizados habitualmente pela com-
panhia." (grifamos)

Como se verifica, o dispositivo transcrito refere-se, genericamen-


te, a qualquer incorporação envolvendo companhia aberta, não seres-
tringindo às operações em que a companhia aberta participa na condi-
ção de incorporada.
Dessa forma, em princípio, a operação objeto da Consulta deveria
ser divulgada ao mercado na forma prevista no aludido dispositivo
regulamentar, visto que ela, inequivocamente, envolve uma compa-
nhia aberta, isto é, a Companhia Delta.
Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar, com base nas ra-
zões antes mencionadas, referentes à dispensa do cumprimento de
formalidades inúteis em matéria societária, que a publicação do Fato
Relevante de que trata o artigo 2° da Instrução CVM no 319/1999
seria desnecessária, na medida em que, no caso presente, as compa-
nhias incorporadas não possuem acionistas minoritários a serem pro-
tegidos e a operação não acarretaria qualquer alteração no capital so-
cial, no patrimônio líquido ou na composição acionária da Companhia
Delta.
Contudo, apesar de não provocar alterações societárias ou patri-
moniais na Companhia Delta, entendemos que a decisão de incorpo-
rar as subsidiárias integrais constitui uma informação relevante para os
acionistas da Companhia Delta e para os demais investidores do mer-
cado, os quais podem levá-la em consideração em suas decisões de
comprar, manter ou vender ações de emissão da Companhia.
Conclui-se, assim, que, mesmo sem considerar a regra prevista no
artigo 2° da Instrução CVM n° 319/1999, a operação em tela deve ser
divulgada ao mercado por meio de Fato Relevante, por força do dis-
posto na Instrução CVM no 358/2002.
Em vista disso, e a fim de evitar qualquer eventual alegação de não
cumprimento ao referido dispositivo regulamentar, seria recomendá-
vel que o Fato Relevante que divulgar a operação descrita na Consulta
contenha as informações exigidas no artigo 2° da Instrução CVM no
319/1999, naquilo que for aplicável às particularidades da incorpora-
ção de subsidiária integral por sua controladora.
Foi o nosso parecer, em fevereiro de 2004.

388
EMISSÃO DE DEBÊNTURES 1

I - Introdução

As debêntures, embora constituindo títulos há muito regulados


entre nós (desde 1893, mediante o Decreto n. 177-A) passaram a ser,
a partir da promulgação da Lei 6.404/76 - Lei das S.A., utilizados
cada vez mais intensamente pelas companhias, no processo de sua
capitalização.
Atualmente, são as debêntures os valores mobiliários de maior uso
por parte das companhias abertas, no processo de captação de recur-
sos do público investidor.
Tal se deve, em grande medida, ao adequado tratamento que foi
conferido à sua regulação, contido na Lei das S.A. e em alguns dispo-
sitivos da Lei 6.385/76, que criou a Comissão de Valores Mobiliários
- CVM e disciplinou o mercado de capitais.
Trataremos, no presente artigo, de examinar o tratamento legal da
emissão de debêntures, com ênfase especial nos seguintes tópicos:
competência dos órgãos de administração da companhia para emitir
debêntures; distinção entre emissão e subscrição de debêntures; dife-
renças entre emissão pública e privada de debêntures; papel das
instituições financeiras na emissão pública de debêntures; funções da
Comissão de Valores Mobiliários na emissão pública de debêntures;
negociação de debêntures no mercado secundário.

11 - Finalidade econômica e natureza jurídica da debênture

Nos termos do art. 52 da Lei das S.A., a companhia poderá emitir


debêntures que conferirão aos seus titulares direito de crédito contra
ela, nas condições constantes da escritura de emissão e do certificado.

l Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 101, p. 37. janeiro-março/1996.

389
Conforme a redação expressa da Lei, a debênture constitui um
título que confere ao seu titular um direito de crédito contra a com-
panhia emissora, cujas condições devem ser objeto de precisa estipu-
lação na escritura de emissão e no certificado.
A finalidade econômica da debênture é a de permitir à empresa
emissora a captação de recursos; ou seja, trata-se de instrumento que
possibilita o financiamento da companhia, mediante empréstimos dis-
tribuídos no mercado de capitais, conforme a Exposição de Motivos n°
196, de 24.06. 76, do Ministério da Fazenda, ao então Anteprojeto de
Lei das Sociedades Anônimas.
Da função econômica da debênture, que é a de servir como instru-
mento de financiamento da companhia emissora, decorre a sua carac-
terização, praticamente consensual na doutrina, como um contrato de
mútuo mercantiF . Trata-se, na realidade, de um mútuo de natureza
especial, uma vez que a quantia mutuada é dividida em frações, cor-
respondentes ao número de debêntures subscritas 3 . Cada debênture
constitui um documento de legitimação, mediante o qual o debentu-
rista pode exercer seu direito de crédito frente à companhia emissora.

111 - Emissão e subscrição de debêntures

Distingue-se, no negócio jurídico da debênture, duas fases: a da


emissão, propriamente dita, na qual produz-se uma manifestação de
vontade da companhia, necessariamente formada de acordo com as nor-
mas legais e estatutárias, cujo momento essencial é o da deliberação da
Assembléia Geral que autoriza a emissão e estabelece as suas caracterís-
ticas; e a da subscrição, na qual os tomadores do títulos manifestam sua
aceitação à oferta da companhia emissora, pagando o preço e tornando-
se, a partir daquele momento, credores da companhia 4 .

2 CARVALHO DE MENDONÇA. Tratado de Direito Comercial, Rio de Janeiro,


Freitas Bastos, 1969, vol. IV, pg. 96; WALDEMAR FERREIRA. Tratado das Debên-
tures. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1944, vol. I, pg. 225; ANTONIO BRUNETTI.
Trattato del Diritto delle Società. Turim, 1948, vol. II, pg. 432; FRANCESO GALGA-
NO La Società per Azioni, le Altre Società di Capital i, le Cooperative. Bolonha, 1981,
pg. 197; JEAN GUYÉNOT. Cours de Droit Commercial. Paris, 1977, vol. 2, pg. 634.
3 EDMUR DE ANDRADE NUNES PEREIRA NETO. Aspectos Jurídicos da Emis-
são de Debêntures Conversíveis em Ações. Dissertação de Mestrado na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, 1986, pg. 35 e seguintes.
4 ANGULO RODRIGUES. La Financiaciación de Empresas Mediante Tipos Espe-
ciales de Obigaciones, Bolonha, 1968, pg. 14 e seguintes. Para TULIO ASCARELLI,

390
A emissão das debêntures constitui a sua criação e oferta aos inte-
ressados. A palavra emissão (do latim emissione) significa o ato de
produzir e mandar para fora, designando, portanto, a emissão de de-
bêntures, o ato da companhia de criá-las e colocá-las à venda.
Já a subscrição das debêntures designa o ato mediante o qual os
tomadores dos títulos, isto é, os destinatários da oferta, manifestam a
sua aceitação, assinando o boletim de subscrição e tornando-se, a partir
daquele momento, debenturistas.
A Lei das S.A. distingue os dois momentos, apartando a emissão
das debêntures, enquanto manifestação de vontade da companhia
(arts. 53, 59 e 60) da subscrição (art. 58, § 1°), enquanto manifesta-
ção, por parte dos tomadores, da aceitação da oferta da companhia.
Tal distinção não ocorre, porém, no sistema da Lei 6.385/76, que
disciplina o mercado de valores mobiliários. As debêntures, nos ter-
mos expressos do art. 2° 5, § 1° da Lei 6.385/76, constituem valores
mobiliários, submetendo-se as companhias abertas que procedem à
sua distribuição no mercado à fiscalização exercida pela Comissão de
Valores Mobiliários, conforme analisaremos em seguida.
A referida Lei 6.385/76, repetindo as imprecisões terminológicas da
Lei 4. 728/65, as quais foram alvo de severas críticas doutrinárias 6, utili-
za, em seu art. 19 (tanto no caput como nos seus parágrafos) as expres-
sões emissão, distribuição e colocação para designar o mesmo ato de
oferta pública de valores mobiliários aos investidores do mercado. O ca-
put do art. 19 chega a dizer que nenhuma emissão pública de valores mo-
biliários será distribuída no mercado sem prévio registro na Comissão,
como se fosse possível a existência de uma emissão pública não distri-
buída no mercado, ou seja, uma emissão pública distribuída privada-
mente. Tal expressão emissão pública, embora evidentemente impró-
pria, conforme as críticas da doutrina, acabou consagrada pelo uso, sen-
do de larga utilização na regulamentação administrativa da CVM 7.

porém, a manifestação da empresa de emitir as debêntures constitui uma oferta ao


público e a subscrição consiste na aceitação da oferta, momento em que se aperfeiçoa
o negócio de emissão ("Problemi in Tema de Titoli Obbligazionari" in Banca, Borsa e
Titoli di Credito, 1951, parte I, pg. 33.
5 Nota do Autor: O art. 2° da Lei n° 6.385/76 foi modificado pela Lei n° 10.303 de
31.10.2001.
6 HEITOR GOMES DE PAIVA O Código Penal de 1969 e as figuras penais de
Direito Comercial, Revista Forense, n° 232, pg. 5 d seguintes.
7 NELSON EIZIRIK Aspectos Modernos do Direito Societário, Rio de Janeiro, Ed.
Renovar, 1992, pg. 13 e seguintes.

391
IV- Competência para deliberar a emissão de debêntures

A competência para deliberar a emissão das debêntures é privati-


va da Assembléia Geral, nos termos expressos do art. 59 da Lei das
S.A. Porém, tratando-se de Cia. Aberta, a Assembléia Geral pode
delegar ao Conselho de Administração a deliberação sobre: a época e
as condições de vencimento, amortização e resgate; a época e as condi-
ções do pagamento dos juros, da participação nos lucros e do prêmio
de reembolso, caso existente; o modo de subscrição ou colocação-
se pública ou privada; e o tipo das debêntures (art. 59, números VI a
VIII e§ 1°).
Pode ainda a Assembléia Geral delegar ao Conselho de Adminis-
tração a deliberação sobre a oportunidade da emissão, conforme o§ 1°
do art. 59. No caso, a Assembléia aprova a emissão, em tese, fixando
as características básicas das debêntures, que estão elencadas nos nú-
meros I a V do art. 59 da Lei. Cabe ao Conselho decidir qual o mo-
mento mais adequado para proceder à efetiva emissão e colocação das
debêntures, tendo em vista as condições do mercado.
A delegação ao Conselho de Administração, na Cia Aberta, da
deliberação sobre o momento mais oportuno para proceder à efetiva
criação e colocação dos papéis constitui praxe bastante comum, flexi-
bilizando o processo decisório e permitindo à companhia escolher,
com maior rapidez, qual o tíming mais adequado para o sucesso da
operação.
A possibilidade de delegação ao Conselho de Administração das
deliberações acima referidas somente existe no caso de companhias
abertas, sendo nula tal delegação na companhia fechada. Tratando-se
de companhia aberta, a delegação é possível tanto no caso da coloca-
ção pública, realizada no mercado de capitais, como no caso da colo-
cação privada, posto que genericamente autorizada, nos termos do §
1oS do art. 59.

8 Nota do Autor: O §P do art. 59 da Lei das S.A. foi modificado pela Lei n° 10.303
de 31.10.2001, passando a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 59 (. . .)
§ JO Na companhia aberta, o conselho de administração poderá deliberar sobre a
emissão de debêntures simples, não conversíveis em ações e sem garantia real, e a
assembléia-geral pode delegar ao conselho de administração a deliberação sobre as
condições de que tratam os incisos VI a VIII deste artigo e sobre a oportunidade da
emissão."

392
V- Autonomia plena da companhia para emitir debêntures

Ao longo de sua existência, a companhia pode realizar o número


de emissões de debêntures que considerar conveniente. Trata-se de
decisão interna corporis, relativa ao grau de endividamento considera-
do adequado pelos acionistas e administradores. A companhia não
pode, porém, emitir debêntures em valor total superior ao seu capital
social (art. 60, caput). Tal limite pode ser excedido até alcançar: 80%
do valor dos bens gravados, próprios ou de terceiros, tratando-se de
debêntures com garantia real; 70% do valor contábil do ativo da com-
panhia, diminuído de suas dívidas garantidas por direitos reais, tratan-
do-se de debêntures com garantia flutuante (art. 60, § 1°). Observados
tais limites, deve ser enfatizado que inexiste qualquer possibilidade de
controle, por parte da CVM ou do Poder Judiciário, sobre a quantida-
de de emissões de debêntures e sobre a oportunidade de seu lança-
mento. Não pode a CVM, mesmo no caso do lançamento público das
debêntures, proceder a qualquer exame sobre o mérito do empreen-
dimento econômico que a companhia deseja desenvolver com os re-
cursos captados com a emissão dos títulos.
Assim, a companhia tem liberdade para proceder às emissões de
debêntures que considerar convenientes. Não pode porém a compa-
nhia efetuar nova emissão antes de colocadas todas as debêntures de
séries anteriormente emitidas, ou antes de canceladas as séries não
colocadas (§ 3° do art. 59).

VI - Subscrição à vista ou parcelada

A subscrição pode ser realizada à vista ou parceladamente. No passa-


do, entendia-se que o pagamento das debêntures deveria ocorrer obriga-
toriamente à vista. Tal concepção decorria basicamente do fato de se-
rem as debêntures títulos ao portador9. Nesse sentido, o Decreto n. 177-
A, de 1.893, estabelecia, em seu art. 1°, que as companhias ou sociedades
anônimas poderão emitir empréstimos ou obrigações ao portador ( debên-
tures) ... Vedada a emissão de títulos ao portador, com o advento da Lei
n° 8.021/90, ficando juridicamente impossível a emissão de debêntures
ao portador, não há, em princípio, impedimento à colocação de debên-
tures nominativas ou escriturais com pagamento parcelado. Deve a

9 WALDEMAR FERREIRA ob. cit. pg. 194.

393
companhia, porém, por razões de cautela, promover a transferência gra-
dual da propriedade das debêntures, condicionando-a ao efetivo paga-
mento das parcelas por parte do adquirente.
Na prática, verifica-se que a CVM tem aceito, em emissões de
debêntures divididas em séries, que o pagamento seja feito parcelada-
mente. Assim, por exemplo, podem ser emitidas debêntures das sé-
ries A, B e C, integralizadas as da série A à vista, no ato da subscrição,
e as demais em datas futuras, fixadas na escritura de emissão. Em
emissões de debêntures destinadas ao financiamento de empreendi-
mentos imobiliários (construção de shopping centers, hotéis, hospitais,
etc) tem sido utilizado o expediente, plenamente lícito, de emitir-se
várias séries de debêntures, cuja subscrição ocorre de forma vinculada
ao cumprimento do cronograma de execução das obras.

VII - Registro na CVM da emissão pública de debêntures

As debêntures, conforme a disposição do art. 2°, I, da Lei


6.385/76, constituem valores mobiliários. Em nosso sistema legal, se-
guindo a orientação do direito societário francês 10 , a expressão valores
mobiliários apresenta uma feição mais estreita do que aquela de secu-
rities do direito norte-americano designando, conforme a Lei
6.385/76 e a regulamentação do mercado de capitais, os títulos emiti-
dos por sociedades anônimas, ou representativos de direitos sobre tais
títulos, passíveis de distribuição e negociação em massa, seja em Bolsa
de Valores, seja no Mercado de Balcão.
Nos termos do art. 19 da Lei 6.385/76, que disciplina o mercado
de capitais, toda e qualquer emissão pública de valores mobiliários
deve ser registrada na Comissão de Valores Mobiliários, previamente
à sua distribuição no mercado 11 • Assim, a companhia, para proceder à
emissão pública de debêntures, que constituem valores mobiliários
para os efeitos da Lei 6.385/76, deve registrar a referida emissão na
CVM. Nos termos expressos do art. 4° 12 , parágrafo único da Lei das

10 Veja-se, a propósito: ALBERT RABUT, Le Droit de Bourses de Valeurs et des


Agents de Change, Paris, 1983, pág. 30 e seguintes.
11 A Resolução n° 1777, do Conselho Monetário Nacional, de 19/12/90, dispõe, no
mesmo sentido, em seu art. 1° que a emissão de debêntures para subscrição pública,
prevista no art.52 da Lei n° 6.404, de 15/le/76, dependerá de prévia anuência da
Comissão de Valores Mobiliários.
12 Nota do Autor: O art. 4° da Lei das S.A. foi modificado pela Lei n° 10.303 de

394
S.A., somente os valores mobiliários das companhias registradas na
CVM, ou seja, das companhias abertas, podem ser objeto de distribui-
ção no mercado e de negociação em Bolsa de V alares e no Mercado de
Balcão.
O registro da emissão pública de debêntures objetiva basicamente
proteger os tomadores dos valores mobiliários, impondo à companhia
a obrigação de prestar as informações previstas na lei e na regulamen-
tação administrativa da CVM.
Nos termos da Lei 6.385/76 (art. 19, §§ 6° e 7°, e art. 20), cabe à
CVM subordinar o registro de emissão de valores mobiliários à divul-
gação das informações necessárias à proteção dos investidores. Ou
seja, considera-se, em nosso sistema legal, que a transparência de
informações (o disclosure do direito norte-americano) constitui a me-
lhor forma de se prevenir abusos e fraudes que poderiam ser cometi-
das contra os investidores.
O disclosure, com efeito, permite aos investidores do mercado, a
partir da análise das informações, exercer um verdadeiro controle de
qualidade com relação às companhias abertas e aos valores mobiliários
de sua emissão; ademais, a disponibilidade das informações relevantes
sobre os negócios das companhias coloca os investidores em posição
de relativo equilíbrio frente aos acionistas controladores e administra-
dores da companhia 13 .

VIII- Poder vinculado da CVM para aprovar o registro

No Direito Comparado, assim como em nosso sistema legal, a


atuação da entidade fiscalizadora do mercado de capitais concentra-se
na promoção do processo de disclosure; assim, não se comete ao Esta-
do o poder de aprovar ou recusar o registro de uma emissão pública de
ações ou debêntures por razões de conveniência, oportunidade ou
mérito do empreendimento econômico. O princípio básico da política
de disclosure é de que o exame do mérito do empreendimento cabe
unicamente aos investidores; uma vez convenientemente informados,
podem decidir conscientemente se desejam ou não adquirir os valores
mobiliários publicamente ofertados pela companhia.

31.10.2001, passando a matéria do parágrafo único do referido artigo a ser tratada no


§I o.
13 EODY, EYMMERSCH, "L'Information Societaire", in Convegno Internazionale di
Studi sull Informazione Societaria, Foundazione Giorgio Cini, Veneza, 1981, pg. 14 e
seguintes.

395
O princípio do disclosure, como instrumento de proteção aos con-
sumidores de produtos distribuídos em massa, como são os títulos
vendidos no mercado de capitais, foi originalmente desenvolvido nos
Estados Unidos. Já em 1914, o então Ministro da Suprema Corte da-
quele país, Louis D. Brandeis, pregava, para o mercado de capitais,
uma regulamentação inspirada no Pure Food Law, nos termos da qual
os fabricantes de alimentos ficavam obrigados a divulgar os ingredien-
tes utilizados em seus produtos, possibilitando ao consumidor avaliar
a sua qualidade. A legislação federal sobre títulos norte-americana,
baixada inicialmente em 1933 e 1934, com a edição do Securities Act e
do Securities and Exchange Act, incorporou o princípio do disclosure
para as emissões de securities em âmbito interestadual, obrigando o
emissor dos títulos a divulgar todas as informações relevantes, que
permitissem aos investidores aquilatar o mérito do empreendimento.
Tal legislação jamais conferiu à Securities and Exchange Commission
(entidade fiscalizadora do mercado, na qual inspirou-se o legislador
brasileiro para criar a Comissão de Valores Mobiliários) o poder de
examinar a qualidade dos títulos ofertados publicamente aos investi-
dores. Conforme referido, ainda que não pudesse a legislação sobre
títulos retirar do cidadão o seu inalianable riht to make a fool of
himself (ou seja, seu direito analinável de fazer bobagens), deveria ela,
por outro lado, voltar-se para preventing others from making a fool of
him (isto é, evitar que o fizessem de bobo) 14 .
Entre nós, da mesma forma, não compete à CVM realizar qual-
quer exame sobre a qualidade dos títulos ofertados, sobre a empresa
emissora, ou mesmo sobre a conveniência da emissão pública. A única
hipótese de exame de mérito da emissão por parte da CVM é aquela
prevista no art. 82 da Lei das S .A., relativo à constituição da compa-
nhia mediante subscrição pública de ações, de raríssima ocorrência na
prática.
Assim, por ocasião da emissão pública de debêntures, a CVM não
pode entrar no exame do mérito dos títulos, nem da qualidade da
companhia, nem da conveniência da colocação pública.
A CVM pode indeferir o pedido de registro da emissão pública
apenas nas seguintes hipóteses: l. caso a companhia não apresente as
informações consideradas necessárias à correta avaliação, por parte
dos investidores, sobre o mérito do empreendimento, as quais estão

14 LOUS LOSS, Securities Regulation, Boston, Little Brown and Company, 1961,
pg. 128.

396
minuciosamente descritas nas normas administrativas baixadas pela
CVM, ou caso a companhia apresente tais informações de maneira
incompleta ou insatisfatória (Instrução CVM n° 13/80 15 , Anexo I); 2.
caso o estatuto social da companhia contenha dispositivos ilegais, ou
os atos societários que precederam a emissão sejam irregulares ou
viciados. Em tais hipóteses, o deferimento do pedido do registro é
condicionado ao atendimento das exigências formuladas pela CVM,
inclusive quanto às necessárias alterações no Estatuto Social da com-
panhia para adaptá-lo à lei (Instrução CVM n° 13/80, art.13, b).
O ato da CVM de aprovar ou desaprovar o pedido de emissão
pública de debêntures (ou de ações) é necessariamente vinculado,
uma vez que a lei e a regulamentação administrativa estabelecem os
requisitos e as condições para a sua prática. Não há no caso poder
discricionário da CVM; não pode esta autarquia indeferir o pedido de
registro da emissão por razões de conveniência ou de oportunidade. O
eventual indeferimento do pedido do registro de emissão deve neces-
sariamente ser fundamentado, podendo ocorrer apenas nas hipóteses
em que as informações prestadas pela companhia sejam incompletas,
omissas ou falsas, ou ainda caso se verifiquem irregularidades nos atos
societários ou no estatuto da companhia. Se a CVM nega o registro de
emissão alegando que o momento não é o mais adequado, ou que o
empreendimento econômico que a empresa deseja financiar é inviá-
vel, caracteriza-se o abuso de autoridade, ficando comprometida a
eficácia de seu ato e cabendo ao Poder Judiciário decretar a sua nuli-
dade.

IX - Caracterização legal da emissão pública de debêntures

A diferenciação entre a emissão privada e a emissão pública de


valores mobiliários não foi fixada de maneira sistemática e precisa em
nossa legislação.
Na realidade, a Lei 6.385/76, ao invés de estabelecer uma distin-
ção conceitual entre a emissão privada e a emissão pública de valores
mobiliários limitou-se a enunciar algumas hipóteses em que se carac-
teriza esta última, repetindo, aliás, as confusões terminológicas exis-

15 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 13/80 foi revogada pela Instrução CVM n°
400 de 29.12.2003 e matéria tratada está agora regulamentada nos anexos I e II da
referida Instrução, assim como no seu art. 16.

397
tentes na vigência do § 2° do art. 16 da Lei 4. 728/65, que regulava a
matéria até o advento da Lei 6.385/76 16 .
Nos termos do § 3° do art. 19 da Lei 6.385/76, caracterizam a
emissão pública de valores mobiliários: l. a utilização de listas ou
boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios des-
tinados ao público; 2. a procura de subscritores ou adquirentes para os
títulos, por meio de empregados, agentes ou corretores; 3. a negocia-
ção feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público,
com a utilização dos serviços públicos de comunicação.
A caracterização de uma emissão como pública ou privada, confor-
me a doutrina, deve levar em consideração três elementos básicos: l.
o ofertante; 2. os destinatários da oferta; 3. os meios utilizados pelo
ofertante para a colocação dos títulos 17 .
Com relação aos meios utilizados pelo emissor, verifica-se que
foram eles elencados no § 3° do art. 19 da Lei 6.385/76. Assim, carac-
terizam a emissão púbica: l. a utilização de listas ou boletins de subs-
crição, folhetos, prospectos e outros documentos de publicidade, bem
corno anúncios destinados ao público, por intermédio da imprensa; 2.
a procura dos subscritores realizada por empregados do emissor ou
por agentes ou corretores contratados pelo emissor; 3. a negociação
feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público, desde
que precedida da utilização, pelo ofertante, de serviços públicos de
comunicação.
Os meios utilizados pela emissora para a colocação dos papéis, que
caracterizam a emissão como pública, estão elencados exemplificati-
vamente no § 3° do art. 19 da Lei 6.385/76. Quaisquer outros instru-
mentos de apelo à poupança popular, desde que não estejam indivi-
dualizados os ofertados, podem também ser considerados caracteriza-
dores da emissão pública.
O ofertante é, em regra, a companhia emissora dos títulos. Tam-
bém são considerados ofertantes as pessoas físicas (como os agentes
autônomos de investimentos) ou jurídicas (como as instituições finan-
ceiras aptas a atuarem corno underwriters) contratadas pela emissora
para venderem os valores mobiliários ao público.

16 Sobre a matéria: ARIADNA BOHOMOLETZ GAAL, Da Caracterização da


Emissão Pública de Valores Mobiliários: uma análise comparativa. Rio de Janeiro,
1982, Dissertação de Mestrado para o Departamento de Ciências Jurídicas da PUC-
RJ.
17 SAMUEL F. LINARES BRETÓN, Operaciones de Bolsa, Buenos Aires, Depalma,
1980, pg. 53; NELSON EIZIRIK,Aspectos Modernos do Direito Societário, cit. pg. 15;
Caracterização jurídica da emissão pública de valores mobiliários. Revista de Direito
Mercantil, vol. 83, pg. 55.

398
Equiparam-se à companhia emissora, nos termos do§ 2° do art. 19
da Lei 6.385/76: 1. o acionista controlador da companhia, ou pessoa
por ele controlada; 2. o co-obrigado nos títulos; 3. as instituições fi-
nanceiras integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliá-
rios; 4. qualquer pessoa que tenha subscrito os valores mobiliários
para o fim de colocá-los no mercado.
Já os destinatários da oferta constituem o elemento decisivo para
a caracterização da emissão como pública ou privada. Com efeito,
para distinguir-se a emissão privada da pública, deve-se analisar a si-
tuação dos destinatários da oferta, tendo em vista quatro elementos
essenciais: 1. o fato de serem eles, por ocasião do lançamento da ofer-
ta, pessoas indeterminadas; 2. o fato de inexistirem vínculos entre
eles e a emissora; 3. a sua qualificação como investidores sofisticados
ou não; 4. o acesso que têm às informações sobre à emissora, inde-
pendentemente do registro na CVM.
Inicialmente, considera-se que um dos traços caracterizadores da
oferta pública é o fato de ser ela dirigida a pessoas indeterminadas, ou
seja, não individualizadas 18 . Quando a oferta é realizada, há uma inde-
terminação dos destinatários, qualquer pessoa podendo aceitá-la; na
emissão pública existe, por definição, oferta dirigida à generalidade
dos indivíduos.
No caso da emissão pública, em segundo lugar, inexistem quais-
quer vínculos entre a companhia emissora e os destinatários da oferta.
Quando a subscrição dos valores mobiliários decorre do exercício do
direito de preferência (subscrição de ações ou debêntures conversí-
veis em ações por acionistas da companhia) não se pode cogitar de
emissão pública, dado o relacionamento já existente entre a emissora
e os subscritores, sendo portanto desnecessário o registro na CVM 19 .
Além dos dois elementos acima mencionados, há que se perquirir
sobre a qualificação dos ofertados. Considera-se que podem ser en-
tendidas como privadas aquelas emissões que são colocadas apenas
junto a investidores sofisticados, com elevado poder de barganha fren-
te à emissora e plenamente capazes de assumirem conscientemente os
riscos do empreendimento. Assim, vendas realizadas unicamente para
um reduzido número de investidores institucionais ou instituições fi-

18 MODESTO CARVALH OSA, Oferta Pública de Aquisição de Ações, Rio de J anei-


ro, IBMEC, 1979, pg. 23.
19 Parecer da Superintendência Jurídica da CVM n° 005/86; Nota Explicativa CVM
n° 19/80

399
nanceiras, altamente sofisticados, que podem até mesmo condicionar
a subscrição dos títulos a eventuais modificações nas condições origi-
nalmente planejadas pela emissora, devem ser considerada emissões
privadas, ainda que nelas presentes os meios de colocação elencados
no § 3° do art. 19 da Lei 6.385/76.
Deve também ser considerada privada, dispensado consequente-
mente o registro na CVM, a emissão na qual os destinatários têm
acesso a informações do mesmo tipo que teriam caso a emissão fosse
objeto de registro. Como o registro tem uma natureza basicamente
instrumental, se os investidores estão de posse de informações que
lhes permitem uma tomada de decisão consciente, não há por que
obrigar-se a emissora a proceder ao registro na autoridade governa-
mental, com custos desnecessários 20 .

X -Taxa de registro da emissão pública de debêntures

Nos termos do art. 1° da Lei n° 7.940, de 20/12/89, foi instituída


a Taxa de fiscalização do mercado de valores mobiliários. Dispõe o art.
2° da mesma Lei que constitui fato gerador da Taxa de Fiscalização o
exercício do poder de polícia atribuído à CVM.
São considerados contribuintes da Taxa de Fiscalização as pessoas
naturais e jurídicas que integram o sistema de distribuição do mercado
de valores mobiliários, as companhias abertas, os fundos e as socieda-
des de investimento, os administradores de carteiras e depósitos de
valores mobiliários, os auditores independentes, os consultores e ana-
listas de valores mobiliários e as sociedades beneficiárias de recursos
fiscais obrigadas a registro na CVM (Lei 7 .940, art. 3°).
Trata-se, a taxa de fiscalização, de instrumento legítimo, visando
dotar a CVM dos recursos necessários ao pleno desempenho de suas
funções de regulação do mercado de valores mobiliários. Vale notar, a
propósito, que, em princípio, a doutrina considera plenamente válida
a cobrança de taxas pelo exercício, por parte da autoridade adminis-
trativa, do seu poder de polícia 21 .
A jurisprudência de nossos tribunais vem igualmente consideran-
do válida a cobrança da taxa de fiscalização instituída pela Lei

20 CARL SCHNEIDER, "The Statutory Law of Private Placements", The Review of


Securities Regulation, v oi. 14, 1981.
21 HELY LOPES MEIRELLES, Finanças Municipais, São Paulo, RT, I 979, pg. 12.

400
7.940/89, uma vez que não estaria caracterizada qualquer violação ao
art. 77 do Código Tributário Nacional e ao art. 145, § 2° da Constitui-
ção FederaF 2 •

XI - Conseqüências da falta de registro na CVM

Caracterizada determinada emissão de debêntures como pública,


deve ser ela necessariamente registrada na CVM, ocasião em que se-
rão prestadas e colocadas à disposição do público investidor todas as
informações relevantes, na forma da regulamentação administrativa.
Se a emissão pública não for registrada, a CVM pode determinar
a sua suspensão. Idêntica providência pode ser adotada pela CVM na
hipótese em que, embora registrada a emissão, seja ela fraudulenta ou
ilegal, ou ainda estejam a oferta, a promoção e os anúncios publicitá-
rios ocorrendo em condições diversas daquelas constantes do registro
(Lei 6.385/76, art. 20).
Os efeitos da suspensão determinada pela CVM operam ex tunc,
ocasionando a ineficácia dos atos de distribuição pública dos títulos,
desde o seu início. Tratando-se de emissão pública sem o necessário
registro na CVM entende-se que o ato da subscrição é nulo. A nulida-
de, no caso, decorre da preterição de formalidade essencial- o regis-
tro na CVM- à realização de uma oferta pública de títulos no mer-
cado de capitais, com a captação da poupança popular 23 .
Caracterizada a emissão pública sem registro, a CVM pode deter-
minar a instauração de inquérito administrativo para apurar a respon-
sabilidade disciplinar das pessoas envolvidas, como os administradores
e acionista controlador da companhia, instituições underwriters, etc.

XII - Participação obrigatória de instituição financeira


underwriter na emissão pública

Nenhuma emissão pública de debêntures pode ser realizada sem a


participação de uma instituição financeira atuando como underwriter.

22 Tribunal Federal da 5a Região, Apelação em Mandado de Segurança n° 5585,


julgada em 31.03.92; Tribunal Regional Federal da 5a Região, Apelação em Mandado
de Segurança n° 2367, julgada em 29.02.92; Tribunal Federal Regional da 5a Região,
Apelação em Mandado de Segurança n° 2893, julgada em 06.07.91.
23 Parecer n° 088/79, da Superintendência Jurídica da CVM.

401
Conforme as disposições dos arts. 82 e 176, § 5°, da Lei das S.A. a
emissão pública de valores mobiliários deve ser necessariamente reali-
zada com a intermediação de instituição financeira.
Vale observar, a propósito, que, nos termos da regulamentação
vigente, as instituições financeiras e demais instituições autorizados a
funcionar pelo Banco Central somente podem subscrever, adquirir ou
intermediar debêntures destinadas à subscrição pública. Excepciona-
se da regra a subscrição de debêntures conversíveis em ações decor-
rentes do exercício do direito de preferência 24 .
Estão habilitadas a atuar como underwriters as instituições finan-
ceiras integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários,
nos termos dos arts. 15 e 19, § 4°, da Lei 6.385/76 e do art. 8° da
Instrução CVM n° 13/80, e que são: os bancos de investimento; os
bancos múltiplos com carteira de investimentos; as sociedades corre-
toras; e as sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários.
O contrato de underwriting pode ser firmado com uma ou com
várias instituições financeiras. Na segunda hipótese caracteriza-se o
consórcio de underwriters, aplicando-se, conseqüentemente, as
disposições constantes nos artigos 278 e 279 da Lei das S .A. 25
Há três modalidades de underwriting, tendo em vista as obriga-
ções assumidas pela instituição financeira: a) firme; b) com garantia
de sobras; c) de melhor esforço.
No underwriting firme (straight, ou com garantia de subscrição
total) a instituição financeira compromete-se a subscrever todos os
valores mobiliários emitidos pela companhia para posteriormente
vendê-los ao público. No caso, o underwriter assume o risco integral
da colocação; com efeito, subscreve os títulos, paga à companhia o seu
valor e depois passa a colocá-los no mercado.
No underwriting com garantia de sobras (stand by ou residual) a
instituição financeira assume a obrigação de subscrever as sobras, após
a colocação dos títulos no mercado. No caso, o underwriter realiza um
esforço de venda dos papéis, subscrevendo posteriormente aqueles
que não foram adquiridos pelo público.
Já no underwriting de melhor esforço (best effort) a instituição fi-
nanceira não garante a subscrição dos títulos emitidos pela companhia.
Com efeito, compromete-se apenas a realizar seus melhores esforços

24 Resolução n° 1777, do Conselho Monetário Nacional, de 19/12/90, art. 3°.


25 NELSON EIZIRIK, "Aspectos jurídicos do undenvriting." Revista de Direito
Mercantil, n. 66, abr/jun. 1987, pg. 19.

402
para vender os papéis junto ao público, não tendo a obrigação de adqui-
ri-los no caso de insucesso da colocação. Trata-se, assim, o underwriting
de melhor esforço, de um mero contrato de distribuição dos títulos,
conforme referido doutrinariamente 26 , agindo o underwriter não como
garantidor, mas como mandatário da companhia emissora 27 .
Nos dois primeiros casos - com garantia firme e com garantia
residual- a obrigação do underwriter tipicamente é de resultado, na
medida em que existe, para o credor da prestação (a companhia emis-
sora) a certeza de que os títulos serão todos subscritos, ou pela insti-
tuição financeira ou pelo público. O underwriter está, assim, compro-
metido com o resultado da operação, ou seja, com a efetiva subscrição
da totalidade da emissão. Já no underwriting de melhor esforço a
obrigação do underwriter frente à companhia emissora é de meio, uma
vez que não se compromete com o sucesso da operação, ou seja, com
a efetiva subscrição de todos os títulos 28 .

XIII- Distribuição secundária de debêntures

Seguindo o exemplo da legislação federal sobre títulos norte-ame-


ricana29, a regulamentação administrativa da CVM disciplinou as cha-
madas distribuições secundárias de valores mobiliários.
Com efeito, conforme a Nota Explicativa da Instrução CVM n°
88 30 , de 03/11/88, a distribuição de valores mobiliários pode ser pri-
mária ou secundária. Na distribuição primária ocorre a criação de
títulos novos (debêntures, ações, bônus de subscrição, etc.), destinan-
do-se os recursos obtidos à companhia emissora. Já a distribuição se-
cundária apresenta características diversas, uma vez que: a) não há
destinação de recursos para a companhia, uma vez que os títulos fo-
ram objeto de emissão no passado; b) os valores mobiliários não estão

26 MODESTO CARVALHOSA, Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, São


Paulo, Saraiva, vol. 5, pg. 300.
27 GEORGE RIPERT, Traité Elementaire de Droit Commercíal, 7a e., por RENE
ROBLOB, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1973, vol. li, pg.
20.
28 NELSON EIZIRIK, Aspectos Jurídicos do Underwriting, cit.
29 LOUIS LOSS, Fundamentais of Securities Regulation, Boston, Little Brown and
Companny, 1988, pg. 353 e seguintes.
30 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 88/88 foi revogada pela Instrução CVM n°
400 de 29.12.2003.

403
em negociação no mercado, posto que trata-se de um bloco que per-
manece nas mãos de intermediários financeiros, do acionista controla-
dor ou mesmo de investidores.
Como a recolocação no mercado de uma quantidade significativa
de tais títulos, emitidos no passado, pode ocasionar uma alteração nas
condições normais de preço, a CVM, nos termos da sua Instrução n°
88, de 03/11/88, exige o seu prévio registro, com a conseqüente pres-
tação de informações que permitam aos investidores avaliar os riscos
da transação.
A regulamentação exige o prévio registro na CVM de distribuição
pública que envolva a venda, promessa de venda, oferta à venda ou
aceitação do pedido de venda, dentre outros títulos, de debêntures
emitidas por companhias fechadas, que estejam em tesouraria ou per-
tençam ao acionista controlador ou pessoas equiparadas e que venham
a ser distribuídos ao público subseqüentemente ao processo de regis-
tro, na CVM, da companhia emissora.
É igualmente considerada distribuição secundária, sujeita portan-
to ao prévio registro na CVM, a venda, promessa de venda, oferta à
venda ou aceitação do pedido de venda de debêntures já emitidas por
companhia aberta mediante subscrição particular, por quem quer que
pretenda distribuí-las publicamente (Instrução CVM n° 88/88, art.
2°, li e III).

XIV- Negociação das debêntures no mercado

Constituindo valores mobiliários, as debêntures, uma vez registra-


das na CVM, podem ser objeto de livre e irrestrita negociação no
mercado de capitais 31 .
O mercado de debêntures, primário e secundário, é constituído
predominantemente por investidores institucionais, notadamente pe-
los fundos fechados de previdência privada (os fundos de pensão); com
efeito, não é muito expressivo o número de investidores individuais
ativos nesse mercado.
Embora a Lei das S .A. mencione expressamente a possibilidade de
serem as debêntures negociadas em Bolsa de Valores (art. 55, § 1°;

31 Até o ano de I990 era permitida a utilização de debêntures como lastro para a
realização de operações compromissadas no mercado aberto (open market). A Circular
n° I 773, de I 0/07/90, do Banco Central, vedou a realização de operações compromis-
sadas tendo por objeto debêntures emitidas a partir daquela data.

404
art. 60, § 3°; art. 61, § 3°; art. 67, parágrafo único ) 32 na prática do
mercado brasileiro não ocorrem transações de compra e venda de
debêntures nas Bolsas. Com efeito, tais títulos são, entre nós, negocia-
dos no Mercado de Balcão, que constitui um mercado secundário de
valores mobiliários, em que as transações são realizadas fora das Bolsas
de Valores, mas intermediadas por instituições finaQceiras integrantes
do sistema de distribuição, nos termos do art. 21, § 4° 33 da Lei
6.385/76.
A negociação das debêntures no mercado ocorre basicamente no
Sistema Nacional de Debêntures - SND. Trata-se de um sistema
automatizado de negociação, custódia e liquidação financeira de de-
bêntures, que funciona, em termos nacionais, através da rede de ter-
minais de computadores da CETIP- Central de Custódia e de Liqui-
dação Financeira de Títulos e é administrado pela ANDIMA- Asso-
ciação Nacional de Instituições do Mercado Aberto.
O Sistema de Distribuição de Títulos- SDT, também adminis-
trado pela ANDIMA, permite a colocação de debêntures no mercado
primário, mediante o processamento eletrônico das operações.
Os referidos sistemas- SND e SDT- proporcionaram, a partir
de sua implementação, ocorrida em 1988, maior segurança às negocia-
ções com debêntures, tanto no mercado primário como no mercado
secundário. O SDT simplificou o processo de colocação primária de
debêntures, permitindo a liquidação financeira das operações via re-
serva bancária das instituições financeiras participantes, sem a neces-
sidade de assinatura de cheques e preenchimento de boletins de subs-
crição, os quais são emitidos automaticamente pelo próprio Sistema.
No SND são negociadas as debêntures via computador, além de pro-
cessados automaticamente todos os eventos relativos às debêntures
registradas no Sistema (pagamento de juros, repactuação, resgate,
etc.), sendo os recursos creditados ou debitados diretamente na conta
dos participantes 34 .

32 A regulamentação administrativa da CVM admite, presentemente, nos termos da


Instrução n° 193/92, a utilização de debêntures conversíveis em ações como ativo
referencial para negociação no mercado de opções, desde que sejam emitidas por
empresas registradas em Bolsa e cujas ações apresentem elevado grau de liquidez no
mercado à vista.
33 Nota do Autor: O § 4 do art. Zl da Lei n° 6.385 teve sua redação modificada pela
Lei n° 9.457 de 05.05.1997.
34 Até abril de 1993 haviam sido registradas no SND 155 emissões de debêntures, no
valor total acumulado de cerca de 6.5 bilhões de dólares norte-americanos, o que
significou um crescimento do mercado de debêntures de 3.000% de junho de 1988 a

405
Os sistemas SND e SDT são disciplinados mediante normas de
auto-regulação, de conteúdo corporativo, contidas nos respectivos Re-
gulamentos de Operações. Embora não exista tratamento legislativo a
respeito do seu funcionamento, o SND foi oficialmente reconhecido
pelas autoridades fiscais e monetárias, com a edição da Instrução Nor-
mativa n° 56, de 06/04/88, da Secretaria da Receita Federal, e da
Resolução n° 1883, de 26/06/91, do Conselho Monetário Nacional.

abril de 1993. (Cf. dados do Caderno de Debêntures, publicado pela ANDIMA)

406
DEBÊNTURES. DESMATERIALIZAÇÃO.
POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO SEM A
EXISTÊNCIA DE CERTIFICADO

1-ACONSULTA

A Consulta versa sobre a possibilidade de ser proposta ação de


execução contra companhia inadimplente por titular de debêntures
emitidas sem certificado, com base na escritura de emissão e em ex-
trato emitido pela Central de Custódia e de Liquidação de Títulos -
CETIP, comprovando a titularidade das referidas debêntures.

11 -O PARECER

A) AS FORMAS DAS DEBÊNTURES:

O primeiro diploma legal a disciplinar a matéria - Decreto no


177- A, de 1893-, estabelecia, em seu artigo 1°, que as companhias
ou sociedades anônimas poderiam emitir empréstimos em obrigações
ao portador (debêntures).
Com a edição da Lei no 4.728/65, o nosso sistema legal passou a
admitir, além das debêntures ao portador, também a emissão de de-
bêntures endossáveis (artigo 40).
A elas expressamente fazia referência o artigo 63 da Lei no
6.404/76, em sua redação original, que determinava que as debêntu-
res poderiam ser "ao portador ou endossáveis, aplicando-se, no que
couber, o disposto nas seções V a VII do capítulo III".
Embora a Lei das S.A., em sua redação original, não mencionasse
as debêntures nominativas e escriturais, a remissão no artigo 63 às
seções V a VII do capítulo III da Lei das S.A. (artigos 23 a 40),
permitia que se concluísse que eram, igualmente, admitidas, em nosso
direito, as debêntures escriturais, por estarem as ações escriturais
previstas nos artigos 34 e 35 da Lei das S.A.

407
Como além da remissão contida no artigo 63 da Lei das S .A. às
seções V a VII do capítulo III da Lei das S.A. (artigos 23 a 40), a parte
final do caput do artigo 74 faz expressa referência às debêntures escri-
turais, a doutrina sempre foi unânime em afirmar que o nosso direito,
antes da edição da Lei no 8.021, de 12.04.90, admitia não apenas as
debêntures ao portador e endossáveis, como também as escriturais.
Por sua vez, consistindo os títulos escriturais uma modalidade de
título nominativo, ao prever a Lei a possibilidade da existência de
debêntures escriturais, estava também permitindo que fossem emiti-
das debêntures nominativas.
A própria Comissão de Valores Mobiliários, em mais de uma oca-
sião1, teve a oportunidade de firmar o seu entendimento a respeito da
admissão, em nosso sistema jurídico, das debêntures escriturais. Con-
fira-se a ementa do Parecer CVM/SJU n. 0 9/91:

"A debênture escritura! é valor mobiliário existente e eficaz, nos ter-


mos da Lei n. 0 6.404!76, art. 63, combinado com o art. 34 e, ainda,
art. 74, mantido pelo registro do direito creditório que representa em
conta de instituição financeira autorizada, em nome do titular".

Dessa forma, antes da edição da Lei n° 8.021/90, admitia-se a


existência das debêntures sob as seguintes formas: ao portador, en-
dossáveis, escriturais e nominativas.
Com o advento da Lei no 8.021/90, porém, alterou-se a situação
até então vigente, uma vez que tal Lei proibiu a emissão de títulos
endossáveis ou ao portador, alterando, em seu artigo 4°, a redação do
artigo 20 da Lei Societária para determinar que as ações das socieda-
des anônimas somente seriam emitidas na forma nominativa.
A Lei no 8.021/90, embora não tenha disposto especificamente
sobre o artigo 63 da Lei das SA, que tratava das formas das debêntu-
res, sem dúvida, revogou tacitamente tal dispositivo, uma vez que
extinguiu o sistema de títulos ao portador e endossáveis em geral,
visando à identificação de todos os contribuintes que atuavam nos
mercados financeiros e de capitais.
Por este motivo, com a promulgação da Lei no 8.021/90, quanto às
formas de circulação, as debêntures somente poderiam ser escriturais
ou nominativas.

Pareceres CVM/SJU n. 0 100/78 e n. 0 16/81, e o Parecer sobre Debêntures


nominativas e escriturais, Revista da CVM, v. Z, n. 0 6, p. 31-35.

408
Com a reforma da Lei das S.A. empreendida mediante a Lei no
9.457/97, não houve maiores alterações quanto a esta sistemática;
passou o artigo 63 passou a apresentar a seguinte redação:

"Art. 63 - As debêntures serão nominativas, aplicando-se, no que


couber, o disposto nas Seções V a VII do Capítulo III.
Parágrafo único- As debêntures podem ser objeto de depósito com
emissão de certificado, nos termos do art.43."

Dessa forma, foi modificada a parte inicial da redação original do


artigo 63 da Lei 6.404/76 para expressamente consignar que são ad-
mitidas as debêntures nominativas e, tendo em vista que a parte final
deste dispositivo, com a remissão às seções V a VII do capítulo 111 da
Lei, permaneceu inalterada e que o artigo 74 não foi revogado, con-
clui-se que o sistema vigente continua a admitir a emissão das debên-
tures sob a forma escrituraF.
Comentando o artigo 63 da Lei Societária, Modesto Carvalhosa
acentua que o legislador, ao editar a Lei no 9.4 57/9 7, não deveria ter
incluído o parágrafo único supratranscrito, já que os certificados, em
especial após a promulgação da Lei n° 8.021/90, são absolutamente
desnecessários e sem qualquer utilidade.
Na realidade, independentemente da edição da Lei no 8.021/90, a
emissão de certificados era inútil, como anota Modesto Carvalhosa 3 :

"(. ..) os certificados são desnecessários e incapazes de suscitar o exer-


cício dos direitos que são inerentes às debêntures nominativas regis-
tradas. Não tem o certificado qualquer função, pois não incorpo-
ra nenhum direito. O certificado não é documento constitutivo,
não tem força probante, nem é negociável. Não tem, portanto, o
certificado de debêntures nominativas registradas eficácia de docu-
mento autônomo, por lhe faltar literalidade. A declaração cartular do

2 Nota do Autor: Com a reforma instituída pela Lei n° 10.303/01, o art. 63 caput e
seus parágrafos passaram a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 63. As debêntures serão nominativas, aplicando-se, no que couber, o disposto nas
seções V a VII do Capítulo III.
§ Iº As debêntures podem ser objeto de depósito com emissão de certificado, nos termos
do art. 43.
§ 22 A escritura de emissão pode estabelecer que as debêntures sejam mantidas em
contas de custódia, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem
emissão de certificados, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 41."
3 MODESTO CARVALHOSA. Op. cit., p. 636.

409
certificado nominativo não representa uma declaração bastante de
vontade que pudesse ser exercitada mediante a simples apresentação
do documento, como no caso das extintas debêntures ao portador. O
certificado de debêntures nominativas registradas tem existência ape-
nas no mundo físico; no mundo jurídico é de absoluta ineficácia
constitutiva (grifamos)
11

Embora não tivesse tratado das debêntures, uma vez que o Decre-
to-Lei no 2.627/40 não dispôs sobre tais títulos, deixando vigorar,
quanto à matéria, os diplomas que lhe eram antecedentes, Trajano de
Miranda Valverde, ao referir-se às ações nominativas, igualmente sus-
tenta a inutilidade dos certificados, ao afirmar que 4 :

" (. .. ) o documento [certificado de açãoJ não é absolutamente necessá-


rio para legitimar a qualidade de acionista. Os direitos e as obriga-
ções deste não nascem com a redação e a entrega do documento,
e, sim, com a constituição definitiva da sociedade anônima, que
transforma os subscritores das partes de capital em acionistas dela.
Quando a ação tem a forma nominativa, por exemplo, não precisa o
acionista de documento ou título, já que a sua qualidade se positiva
com a inscrição do seu nome no livro de registro das ações da
sociedade, de onde também consta o número de ações que possui. Não
tem necessidade de documento para exercer os direitos de sócio.
A qualidade de acionista, originariamente, preexiste, pois, à confec-
ção de documento e à entrega dele ao titular (. ..) (grifamos)
11

Conclui-se, assim, que, de acordo com a legislação em vigor, é


admitida a emissão de debêntures nominativas e escriturais, sendo
que ambas podem ser custodiadas na CETIP. Neste caso, a CETIP
constará do Livro de Registro de Debêntures Nominativas ou perante
a instituição custodiante como proprietária fiduciária das debêntures,
em se tratando, respectivamente, de debêntures nominativas registra-
das ou escriturais.
Como a propriedade das debêntures nominativas registradas se
positiva com a inscrição do nome do titular no livro próprio (Livro de
Registro de Debêntures Nominativas) mantido pela sociedade emis-
sora (art. 31 da Lei das S .A.) ou por instituição contratada para reali-

4 TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE. Sociedades por ações. 2 ed. Rio de


Janeiro: Forense, 1953. v. I. p. 187.

410
zar a escrituração e a guarda dos livros de registro e de transferência
de debêntures nominativas e a propriedade das debêntures escriturais
decorre da existência de uma conta corrente de debêntures aberta em
nome do seu titular nos assentamentos escriturais da instituição admi-
nistradora ("depositária") (art. 35 da Lei das S.A.), entendemos ser
dispensável a emissão de certificados que representem as primeiras
(debêntures nominativas) e impossível a representação por certifica-
dos das segundas (debêntures escriturais).

B) OS TÍTULOS ESCRITURAIS:

As ações escriturais foram introduzidas em nosso sistema jurídico


com a edição da Lei no 6.404/76 (artigos 34 e 35), as quais, de acordo
com a Exposição de Motivos, são aquelas "mantidas como registros
contábeis na escrituração de instituições financeiras, sem emissão de
certificados, em contas de depósito semelhantes aos depósitos bancá-
rios de moeda."
Os títulos escriturais são, portanto, aqueles que têm sua existên-
cia apenas na forma de registros, sejam em livros ou em meios magné-
ticos, mantidos por instituições financeiras ou sistemas eletrônicos de
negociação, tais como os desenvolvidos pela CETIP.
Como referido anteriormente, os títulos escriturais constituem
uma modalidade de títulos nominativos. Com efeito, os títulos nomi-
nativos desdobram-se em escriturais e registrados; estes, por sua vez,
podem ser ou não corporificados em cártulas ou certificados. Assim,
os títulos cartulares são aqueles que se encontram consubstanciados
em documentos físicos.
A justificativa para a introdução, em nosso Direito, dos títulos
escriturais encontra-se na própria Exposição de Motivos da Lei no
6.404/76, in verbis:

"O objetivo é permitir a difusão da propriedade de ações entre grande


número de pessoas, com a segurança das ações nominativas, a facili-
dade de circulação proporcionada pela transferência mediante ordem
à instituição financeira e mero registro contábil, e a eliminação do
custo dos certificados."

Neste sentido, acompanhou a nossa legislação a tendência verifi-


cada no direito comparado, tendo em vista que os títulos escriturais já
vinham sendo utilizados, em larga escala, em outros países, como na
França e nos Estados Unidos.

411
Nos Estados Unidos, inclusive, inaugurou-se, no final da década
de 60, um movimento no sentido de suprimir a emissão de certifica-
dos. Os stock certificates foram, originalmente, concebidos para faci-
litar a relação entre os acionistas e a companhia por ocasião da nego-
ciação de tais títulos no mercado. No entanto, tendo em vista os novos
meios para a circulação de riquezas, em especial, os meios eletrônicos,
os certificados perderam sua função. Ademais, os certificados dão
margem ao surgimento de problemas relacionados ao seu roubo, ex-
travio ou falsificação, sendo que tais riscos podem ser solucionados
com a adoção dos registros eletrônicos, que conferem às operações
realizadas maior segurança, economia e velocidade.
Por estes mesmos motivos, países como a Suíça e a Alemanha
consagraram o princípio de que os certificados não precisam ser, ne-
cessariamente, emitidos.
Esta tendência de supressão da emissão de certificados pode ser
constatada também em nosso país, não apenas em virtude da plena
consagração dos títulos escriturais, mas também é o que se depreende
da leitura do Projeto de Lei que visa a alterar a Lei Societária, que,
atualmente, se encontra aguardando a sanção presidencial 5 .

Nota do Autor: Com a reforma da Lei das S.A. instituída pela Lei n° 10.303/01, os
arts. 31 e 41 passaram a apresentar a seguinte redação:
"Art. 31. A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome do
acionista no livro de "Registro de Ações Nominativas" ou pelo extrato que seja
fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária
das ações .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. .. . .. .. .. .. . .. . .. .. .. . .. .. .. .. . .. .. .. .. . .. . .. .. .. . "(NR) (grifamos)

"Art. 41. A instituição autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários a prestar


serviços de custódia de ações fungíveis pode contratar custódia em que as ações de cada
espécie e classe da companhia sejam recebidas em depósito como valores fungíveis,
adquirindo a instituição depositária a propriedade fiduciária das ações.
§ 1° A instituição depositária não pode dispor das ações e fica obrigada a devolver ao
depositante a quantidade de ações recebidas, com as modificações resultantes de
alterações no capital social ou no número de ações da companhia emissora, inde-
pendentemente do número de ordem das ações ou dos certificados recebidos em depósi-
to.
§ 2° Aplica-se o disposto neste artigo, no que couber, aos demais valores mobiliá-
rios.
§ 3° A instituição depositária ficará obrigada a comunicar à companhia emissora:
I - imediatamente, o nome do proprietário efetivo quando houver qualquer evento
societário que exija a sua identificação, e,
li - no prazo de até I O dias, a contratação da custódia e a criação de ônus ou
gravames sobre as ações.

412
Dessa forma, conclui-se que o direito societário brasileiro admite
expressamente a possibilidade de não serem emitidos certificados dos
títulos, provando-se sua propriedade através dos Livros de Registros
mantidos pelas companhias ou por instituição contratada para tanto
ou pelos extratos fornecidos pelas instituições custodiantes.

C) A DESMATERIALIZAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO


E A EXECUÇÃO JUDICIAL DOS TÍTULOS ESCRITURAIS:

Os títulos escriturais e os sistemas de negociação e registros de


ativos financeiros são cada vez mais utilizados na prática comercial,
tendo em vista a rapidez com que os negócios se desenvolvem e a
segurança que os registros eletrônicos oferecem aos contratantes.
A desmaterialização dos títulos de créditos, substituídos pelos re-
gistros eletrônicos, constitui uma nítida tendência nos dias atuais, in-
dicando a necessidade de uma nova disciplina jurídica condizente com
a realidade tecnológica que ora se apresenta. 6 Impõe-se, em especial,
disciplinar a cobrança dos referidos títulos.
Os títulos de crédito são tradicionalmente instrumentos que,
preenchidas as formalidades legais, possibilitam a execução imediata
do crédito neles corporificado, dispensando o procedimento probató-
rio que busque atestar a existência do negócio jurídico que originou o
crédito.
Nos termos do art. 614, inciso I, do Código de Processo Civil, o
credor deve instruir a ação executiva com o próprio título de crédito.
A interpretação restritiva de tal dispositivo impediria, a princípio, a
cobrança judicial do título escriturai, que não se encontra consubstan-
ciado em um suporte físico, não estando materializado em um certifi-
cado ou cártula.
No entanto, a definição clássica dos títulos de crédito não mais se
coaduna com os modernos sistemas de negociação de títulos, cada vez
mais emitidos sob a forma escriturai.

§ 4° A propriedade fiduciária das ações em custódia fungível será provada pelo


contrato firmado entre o proprietário das ações e a instituição depositária.
§ 5° A instituição tem as obrigações de depositária e responde perante o acionista e
terceiros pelo descumprimento de suas obrigações." (NR) (grifamos)
6 Nesse sentido: FÁBIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial. v.l. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 378/379; e PAULO SALVADOR FRONTINI. Títulos de
crédito e títulos circulatórios: o que a informática lhes reserva. in Revista dos Tribu-
nais, v. 730. RT, 1996, p. 50/67.

413
Neste sentido, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que 7:

"Diante do quadro da desmaterialização dos títulos de crédito, vale a


pena repassar rapidamente os princípios do direito cambiário, com
vistas a conferir se eles ainda têm atualidade. Quer dizer, do que se
está falando, hoje em dia, na referência à cartularidade, literalidade
e autonomia das obrigações cambiais? O primeiro estabelece que o
exercício dos direitos cambiais pressupõe a posse do título. Ora, se o
documento nem sequer é emitido, não há sentido algum em se con-
dicionar a cobrança do crédito à posse de um papel inexistente.
Representa uma dispensável formalidade exigir-se a confecção do
título em papel, se as relações entre credor e devedor documenta-
ram-se todas independentemente dele. O princípio da literalidade,
por sua vez, preceitua que apenas geram efeitos cambiais os atos ex-
pressamente lançados na cártula. Novamente, não se pode prestigiar
o postulado fundamental do direito cambiário, na medida em que
não existe mais o papel, a limitar fisicamente os atos de eficácia
cambial. (. ..)
O único dos três princípios da matéria que não apresenta incompati-
bilidade intrínseca com o processo de desmaterialização dos títulos de
crédito é o da autonomia das obrigações cambiais, e os seus desdobra-
mentos no da abstração e inoponibílidade das exceções pessoais aos
terceiros de boa-fé. Será a partir dele que o direito poderá reconstruir
a disciplina da ágil circulação do crédito, quando não existirem mais
registros de sua concessão em papel." (grifamos)

Da desmaterialização dos títulos de crédito decorre a atribuição


de importância relativa ao requisito da cartularidade, que pode ser
constatada, por exemplo, com a edição da Lei no 9.492/97.
Com efeito, o parágrafo único do art. go da referida Lei permite o
protesto das duplicatas mercantis e de prestação de serviços por meio
magnético ou de gravação eletrônicas de dados, respondendo o apre-
sentante pelos dados fornecidos ao cartório de protestos e devendo
constar do instrumento de protesto as indicações feitas (Lei da Dupli-
cata, art. 14 e Lei no 9.492/97, art. 22, III).
O parágrafo único do art. 22 da Lei no 9492/97, por sua vez,
dispensa, no registro e no instrumento de protesto, a transcrição lite-
ral do título ou documento de dívida, quando o tabelião de protesto

7 Op. cit., p. 378-379.

414
conservar em seus arquivos gravação eletrônica da imagem, cópia re-
prográfica ou micrográfica do título ou documento de dívida.
Trata-se de importante inovação no direito brasileiro, como assi-
nala Luiz Emygdio F. da Rosa Jr., uma vez que houve "o reconhecimen-
to por lei da duplicata virtual, ou seja, não materializada em papel
mas registrada em meios magnéticos" 8 .
Outra inovação significativa sobre a questão encontra-se prevista
no Projeto de Código Civil Brasileiro, recentemente aprovado na Câ-
mara dos Deputados, que, ao disciplinar os títulos de crédito, prevê,
em seu art. 891, § 3°, a possibilidade desses instrumentos serem emi-
tidos a partir de "caracteres criados em computador", in verbis:

"Art. 891 - Deve o título de crédito conter a data da emissão, a


indicação precisa dos direitos que confere, e, por último, a assinatura
do emitente.
(. . .)
§ 3°- O título poderá ser emitido a partir de caracteres criados em
computador ou meio técnico equivalente e que constem da escritura-
ção do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste ar-
tigo. "9

Embora os Tribunais, de forma geral, adotem uma posição clássica


e formalista sobre a matéria, alguns julgados vêm flexibilizando o prin-
cípio da cartularidade. É o que se depreende, por exemplo, da leitura
da seguinte decisão, em que se entendeu que a ausência do certificado
não impede que seja promovida a competente execução, com funda-
mento na escritura de emissão de debêntures:

"Processo: Ag 107738 UF: SP Registro 1996!0023529-5, Agravo de


Instrumento, Agravante: Indústria e Comércio Jorge Camasmie SIA;
Agravado: Bando Do Estado De São Paulo SIA- Banespa, Acórdão:
AGA 107738/Sp; Agravo Regimental No Agravo de Instrumento
(1996!0023529-5), DJ Data: 09/12/1997 Pg: 64686, Relator: Min
Eduardo Ribeiro (1 015), Data da Decisão: 14!1 0!1997, Órgão Jul-
gador: T3- Terceira Turma
EMENTA: Debêntures.

8 LUIZ EMYDIO F. DA ROSA JR. "Títulos de Crédito- Reflexões". In: Revista


de Direito Renovar n° 12, set./dez., 1996, p. 127.
9 Nota do Autor: O Código Civil, aprovado em 10.01.2002, manteve a redação da
norma no art. 889.

415
Não expedidos os certificados, o que cumpria fosse feito pela compa-
nhia, não há como pretender que, para a cobrança dos valores
correspondentes as debêntures, sejam eles exibidos.
Constando da escritura de emissão a obrigação de pagar, com as
especificações necessárias, e sendo completada com os recibos e
boletins de subscrição, permitindo a identificação dos credores,
não se pode negar a natureza de títulos executivos." (grifamos)

Merece destaque, ainda, o seguinte trecho do voto proferido pelo


Relator do referido Agravo Regimental do Agravo de Instrumento -
Ministro Eduardo Ribeiro:

"O primeiro dos recursos especiais diz com a questão fundamental


que constituiu a motivação nuclear dos embargos à execução. Susten-
ta-se que não haveria título executivo, uma vez que não apresentados
os certificados de debêntures.
Não há dúvida de que, em princípio, devem ser traduzidos os certifi-
cados para que se possa fazer a execução. Isso se impõe porque, poden-
do ser ao portador ou endossáveis, sujeitam-se a circular. Sem sua
exibição não se saberá, em verdade, qual o credor.
No caso dos autos, entretanto, concorre particularidade de relevo.
Consoante admitido pelas instâncias ordinárias, os certificados não
foram emitidos. Fez-se a escritura de emissão e constitui-se garantia
real. Não diligenciou a sociedade, entretanto, a emissão daqueles.
Isso não obstante, colocaram-se as debêntures no mercado - não se
controverte quanto ao ponto - e fez-se prova bastante da aquisição.
Obviamente, se não existem os certificados não se pode pretender
sejam exibidos. E a escritura constitui título executivo, pois dela
consta a obrigação de pagar com as especificações necessárias. Na-
turalmente que isso se completa com os recibos e boletins de subs-
crição que permitem identificar os credores.
Não ocorreu a violação dos dispositivos da Lei das Sociedades por
Ações. Os certificados devem ser emitidos, o que constitui ônus da
companhia.
Dele não se desincumbindo, a execução pode amparar-se na escritu-
ra de emissão". (grifamos)

Em um outro acórdão, a questão foi, igualmente, ventilada. Trata-


va-se de Recurso Especial (Recurso Especial no 32.444-Rj -
93/0004929-l; Relator: Sr. Ministro Costa Leite; Relator Desig: o Sr.
Ministro Eduardo Ribeiro; Recorrente: Geotécnica S/A; Recorrido:

416
Schahin Cury Corretora de Câmbio e Valores Mobiliários S/A; data
de decisão: 11/11/1997; Terceira Turma do STJ; DJ: 19/12/1997, p.
67 489) contra acórdão da E. Sexta Câmara do Tribunal de Alçada
Cível do Estado do Rio de Janeiro, cuja ementa encontra-se assim
redigida:

"Execução- Debêntures
A Escritura Particular de autorização da emissão de debêntures da
devedora se enquadra no inciso 11 do art. 585, como título executi·
vo extrajudicial, e segundo as normas da lei no 6404/76- (arts. 52,
§ ] 59 e 68, § 3°, alínea "b") -Dispensável a formalidade da
0
,

presença de testemunhas na escritura pela publicitação do ato, ema-


nado da assembléia geral do sócios da emitente, devedora - Anteci-
pação do vencimento das parcelas, se há número menor, deve ocorrer
dedução e não iliquidez, certeza e exigibibilidade aliás não questio-
nada nos Embargos, a ensejar a procedência dos Embargos- Provi-
mento do Recurso". (grifamos)

A Ementa do referido Recurso Especial, por sua vez, tem a seguin-


te redação:

"Execução. Debêntures
Não compromete a liquidez do débito a circunstância de os títulos
serem em número menor que o afirmado, bastando se proceda ao aba-
timento do respectivo valor."

O Ministro Eduardo Ribeiro, designado Relator para redigir o


acórdão no Recurso Especial, em seu voto, destacou que:

"(. ..) O acórdão [recorridoJ salientou que a embargante não alegara


iliquidez e incerteza do título. Cingira-se a afirmar que não se enqua-
drava no rol do artigo 585 do CPC. Considerando que menor o núme-
ro de títulos que o consignado na inicidtl da execução, entendeu que
bastava abater-se o correspondente valor.
Com a devida vênia do eminente Relator, considero correta aquela
decisão. O título apresentado [escritura particular de autorização
da emissão de debêntures] reunia as condições necessárias para
servir de base à execução. Verificou-se, entretanto, no curso do pro-
cesso, que algumas das debêntures, representando 3,30% do total,
teriam permanecido com a embargante. Determinou-se o abatimento
do respectivo valor, o que não compromete a executividade do título,
não obstando prossiga a execução pelo restante.

417
Tenho para mim que não se trata de hipótese em que a execução se
haja fundado em título carente de força executiva. Bem ao contrá-
rio, continha os elementos necessários. E não deixa de ser líquido e
certo, por se abater uma parcela. Quanto ao montante exato do débi-
to, trata-se de cálculo aritmético, a ser feito com observância dos
indexadores aplicáveis. Isto é possível, segundo jurisprudência assen-
tada. (. ..) ". (grifamos)

Em outro julgado (MS 5277 /DF, 1997/0052790-5 - DJ


25/05/1998,p. 0004, Relator Min. José Delgado, S 1 Primeira Seção
do STJ), entendeu-se que "os títulos [no caso, títulos da dívida agrá-
ria] emitidos em forma cartular ou escritura[ não possuem natureza
jurídica diferente, pelo que produzem idênticos efeitos patrimoniais".
(grifamos)
Destaque-se, por fim, a seguinte decisão proferida no julgamento
do Agravo de Instrumento no 803.628-6 (1 a Câm TACivSP. j,
10.08.1998 - rel. Juiz Ademir Benedito, publicada na RT 670,
fev.1999, p.281-283):

"EXECUÇÃO- Títulos executivos extrajudiciais originais requisi-


tados para exame pericial - Substituição por cópias devidamente
autenticadas -Admissibilidade- Força probante suficiente para a
demonstração do crédito e da obrigação assumida.
Ementa da Redação: Se os originais dos títulos executivos extrajudi-
ciais foram requisitados para exame pericial, nada impede que o pro-
cesso de execução tenha prosseguimento com cópias devidamente au-
tenticadas, pois contêm força probante suficiente para a demonstra-
ção do crédito e da obrigação assumida." (grifamos)

Dessa forma, a orientação correta, dada a desmaterialização dos


títulos, é admitir a propositura de ações executivas com base em títu-
los escriturais, os quais não se encontram consubstanciados em certi-
ficados. Para promover a ação executiva, nestes casos, far-se-á prova
da emissão dos títulos sob a forma escriturai e juntar-se-ão documen-
tos- como, por exemplo, o extrato emitido pelas instituições presta-
doras de serviços de ações escriturais e de custódia, o relatório de
posição de ativos e o extrato emitido por instituição financeira parti-
cipante da CETIP/SND que registrou a operação em nome do cliente,
no caso de custódia no SND - que comprovem, inequivocamente,
sua existência.

418
Ressalte-se, a propósito, que a Comissão de valores Mobiliários,
na Instrução 89, de 08.11.88, dispôs sobre a autorização para a pres-
tação de serviços de ações escriturais, de custódia de valores mobiliá-
rios e de agente emissor de certificados, estabelecendo, no art. 13,
que as instituições prestadoras dos serviços de ações escriturais e de
custódia fornecerão ao acionista o extrato da sua conta de depósito ou
de custódia sempre que solicitado, ao término de cada mês, quando
houver movimentação, e uma vez por ano, no mínimo, se não houver
movimentação ou solicitação. A obrigação de fornecer, ao menos uma
vez por ano, tais extratos também encontra-se consignada no art. 102
da Lei das S .A.
As disposições contidas nesta Instrução, por sua vez, aplicam-se à
prestação de serviços de valores mobiliários escriturais (aí incluídas,
logicamente, as debêntures), bem como de quotas de fundos de inves-
timento regulados e fiscalizados pela CVM (art. 21 da Instrução CVM
89/88, com a redação dada pelas Instruções 212/94 e 261/97).
Gustavo Tavares Borba, em interessante estudo sobre a desmate-
rialização dos títulos de crédito, ressalta a existência de corrente que
defende a emissão, nos casos de títulos escriturais, de cártula eletrôni-
ca. Anota, ainda, o autor que 10 :

"(. . .) apesar de o título escriturai não possuir um documento corpóreo


(título em papel) onde os direitos nele contidos estão expressos, ele
possui todas essas informações no sistema computadorizado onde
está registrado. Destarte, em virtude da impossibilidade de levar o
próprio sistema de registro para o juízo, devem os documentos dele
extraídos serem considerados idôneos para embasar uma ação exe-
cutiva, em virtude de serem os únicos documentos materiais exis-
tentes. " (grifamos)

D) CONCLUSÃO:

Diante do exposto, tendo em vista que:


a) a propriedade das debêntures nominativas registradas se positi-
va com a inscrição do nome do titular no livro próprio (Livro de Regis-
tro de Debêntures Nominativas) mantido pela sociedade emissora

10 GUSTAVO TAVARES BORBA. "A desmaterialização dos títulos de crédito". In:


Revista Renovar no 14, maio/agosto 1999. p. 85/97.

419
(art. 31 da Lei das S .A.) ou por instituição contratada para realizar a
escrituração e a guarda dos livros de registro e de transferência de
debêntures nominativas; e
b) a propriedade das debêntures escriturais decorre da existência
de uma conta corrente de debêntures aberta em nome do seu titular
nos assentamentos escriturais da instituição administradora ("deposi-
tária") (art. 35 da Lei das S.A.) concluímos, mediante uma interpre-
tação extensiva da norma processual contida no artigo 614, I do CPC,
que a escritura de debêntures e os livros de registro de debêntures
mantidos pelas companhia emissora (se forem debêntures nominati-
vas registradas) ou o extrato fornecido pelas instituições que mantêm
os sistemas de registros de títulos escriturais e de custódia, o relatório
de posição de ativos e o extrato emitido por instituição financeira
participante da CETIP/SND que registrou a operação em nome do
cliente, no caso de custódia no SND (se forem debêntures nominati-
vas escriturais) podem instruir a execução por título extrajudicial,
sendo dispensável a emissão de certificados de debêntures para tanto.
Foi o nosso parecer, em outubro de 2000.

420
OS VALORES MOBILIÁRIOS NA
NOVA LEI DAS S.A. 1

A Lei no 10.303 de 31/10/01, que reformou a Lei das S.A., ao dar


nova redação ao art. 2o da Lei no 6.385/76 disciplinou o instituto dos
valores mobiliários, fundamental para a regulação do mercado de ca-
pitais.
Da mesma forma que ocorre em outros sistemas legais, a noção de
valor mobiliário, entre nós, é basicamente instrumental, uma vez que
se destina a delimitar a regulação estatal do mercado de capitais, tido
como um mercado de risco, por envolver a captação popular de recur-
sos por parte das companhias abertas e dos demais emissores de tais
títulos.
O art. 1o da Lei 6.385/76, com a redação dada pela Lei 10.303/01,
dispõe que serão disciplinadas e fiscalizadas de acordo com esta lei,
dentre outras, as atividades de emissão e distribuição de valores mobi-
liários no mercado; a negociação e intermediação no mercado de valo-
res mobiliários; a negociação e intermediação no mercado de derivati-
vos, que também são considerados valores mobiliários; a organização,
o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores e Mercadorias,
nas quais são negociados valores mobiliários; os serviços de consultor
e analista de valores mobiliários.
Assim, a competência da CVM de regulamentar, fiscalizar e apli-
car sanções administrativas está circunscrita e limitada aos emissores
de valores mobiliários, bem como seus controladores e administrado-
res, assim como às entidades integrantes do sistema de distribuição de
valores mobiliários, auditores independentes e demais pessoas que
atuam profissionalmente no mercado de valores mobiliários.
A disciplina prevista na Lei 6.385/76 alcança não só as companhias
abertas, como também os demais emissores de valores mobiliários,

I Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 124, p. 72. out./dez. 2001.

421
nos termos de seu art. 2°, § 2°, com a redação dada pela Lei
10.303/01.
Ao regulamentar a emissão e distribuição de valores mobiliários,
poderá a CVM, nos termos do § 3o do art. 1o da Lei 6.385, em sua
nova redação:

a) exigir que os emissores de valores mobiliários destinados à distri-


buição pública se constituam sob a forma de sociedade anônima;
b) exigir que as demonstrações financeiras dos emissores, ou que as
informações sobre o empreendimento ou projeto para cujo financia-
mento são distribuídos os valores mobiliários, sejam auditadas por
auditor independente registrado na CVM;
c) dispensar, na distribuição pública de valores mobiliários, a partici-
pação de instituição integrante do sistema de distribuição, atuando
como "underwriter"; e
d) estabelecer padrões de cláusulas e condições que devam ser adota-
das nos títulos ou contratos de investimento destinados à negociação
pública, recusando a admissão ao mercado da emissão que não satis-
faça tais padrões.

A noção de valor mobiliário foi sendo objeto de construção legal,


nos diversos sistemas legislativos, visando a enquadrar tais títulos à
técnica de negociação em massa, dada a sua fungibilidade, inde-
pendentemente de constituírem ou não títulos de crédito.
A legislação brasileira, até o advento da Medida Provisória no
1.637/98, posteriormente convertida na Lei n° 10.198, de 14/02/01,
não havia conceituado os valores mobiliários, os quais eram objeto de
enumeração taxativa, mediante instrumentos legais e regulamentares.
A Lei no 1O.198/01 constituiu importante marco no direito sobre
mercado de capitais, ao conferir uma concepção abrangente aos valo-
res mobiliários, mediante adaptação do conceito de security do direito
norte-americano, tal como entendido pela jurisprudência dos tribu-
nais.
A legislação societária, até a edição da Medida Provisória no 163 7,
de 08.01.98, convertida na Lei n° 10.303.01 não havia conceituado os
"valores mobiliários", preferindo o legislador apenas enumerá-los 2 .
Entre nós, a expressão "valores mobiliários" designava os títulos
emitidos por sociedades anônimas, ou representativos de direitos so-

2 NELSON EIZIRIK e FLÁVIA PARENTE. "Aplicação do Conceito de Valor Mo-


biliário no Direito Brasileiro". Revista da CVM no 27 out./98.

422
bre tais títulos, passíveis de distribuição no mercado assim como de
negociação em Bolsa de Valores e no mercado de balcão, bem como
outras formas de investimentos coletivos previstas em leis e regula-
mentos específicos.
A Lei n° 6.385/76, em seu art. 2°, na sua feição original, conside-
rava valores mobiliários:
I - as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões desses
títulos e os bônus de subscrição;
11 -os certificados de depósito de valores mobiliários;
111 - outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anôni-
mas, a critério do Conselho Monetário Nacional.
Posteriormente, o Decreto-lei n° 2.286, de 23.07.86, estabele-
ceu, em seu art. 3°, também constituírem também valores mobiliá-
rios, sujeitos ao regime da Lei n° 6.385/76:
a) os índices representativos de carteira de ações; e
b) as opções de compra e venda de valores mobiliários.
A Resolução no 1.723, de 27.06.90, do Conselho Monetário Na-
cional, com base no inciso 111, do art. 2°, da Lei n° 6.385/76, dispôs,
em seu art. 1° 1 que são considerados valores mobiliários, para os efei-
tos da Lei n° 6.385/76, as notas promissórias emitidas por sociedades
por ações, quando destinadas à oferta pública (commercial papers).
A lei e a regulamentação administrativa também passaram a in-
cluir no conceito de valores mobiliários:
a) as opções em bolsa (Instrução CVM n° 14, de 17.10.80);
b) os direitos de subscrição, recibos de subscrição, opções, certifi-
cados de depósitos (Resolução CMN n° 1.907, de 26.02.92);
c) as opções de debêntures (Instrução CVM n° 193 3 , de
23.09.92);
d) as quotas de fundos imobiliários (art. 3°, Lei no 8.668, de
25.06.93);
e) os certificados de investimentos audiovisuais (Lei n° 8.685, de
20.07.93, regulamentada pelo Decreto n° 974, de 08.11.93);
f) os certificados representativos de contratos mercantis de com-
pra e venda a termo de energia elétrica (Resolução do CMN no 2.405 4 ,
de 25.06.97 e Instrução CVM no 267, de 01.08.97);

3 Nota do Autor: A Instrução CVM n° 193/92 foi revogada pela Instrução CVM n°
283 de 10.07.1998.
4 Nota do Autor: A Resolução do CMN n° 2.405/97 foi revogada pela Resolução do
CMN n° 2.801 de 07.12.2000.

423
g) os certificados de recebíveis imobiliários - CRI (art. 6° da Lei
no 9.514, de 20.11.97 e Resolução do CMN no 2.517, de 29.06.98).
Por outro lado, foram excluídos do âmbito de fiscalização da
CVM:
a) os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal, que
integram o mercado monetário (Lei n° 6.385/76, art. 2°, parágrafo
único, inciso I e art. l § lo da Lei no l 0.198/01 );
0
1

b) os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financei-


ra, como são tipicamente aqueles emitidos pelos bancos (Certificados
de Depósito Bancário) ou de aceite de instituição financeira (como
são as Letras de Câmbio), nos termos do inciso 11, do parágrafo único,
do art. 2°, da Lei n° 6.385/76 e art. l 0 1 § l 0 da Lei no 10.198/01);
c) as notas promissórias emitidas por instituições financeiras, so-
ciedades corretoras, sociedades distribuidoras e sociedades de arren-
damento mercantil (Resolução l. 723/90, do CMN, art. 2°).
Até o advento da Medida Provisória no 1.637/98, convertida na
Lei n° 10.198/01, a legislação brasileira adotava uma acepção estrita
de valores mobiliários, embora o elenco dos títulos tidos como valores
mobiliários estivesse aumentando gradativamente, mediante a edição
de leis e regulamentos administrativos.
A doutrina 5, há muito, salientava a necessidade de adoção de um
conceito mais amplo de valores mobiliários que pudesse abarcar as
mais diferentes hipóteses de empreendimentos, inclusive os contratos
negociados em Bolsas de Mercadorias e de Futuros, assim como quais-
quer contratos de investimentos oferecidos publicamente.
A Lei n° 10.198/01, estabeleceu, em seu art. 1°, o seguinte:

"Art. 1o - Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei


n° 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente,
os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de
participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de
prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do em-
preendedor ou de terceiros."

A redação deste dispositivo teve nítida inspiração no direito nor-


te-americano, já que pela primeira vez afastou-se o legislador brasilei-
ro da mera enumeração dos valores mobiliários, passando a conferir-
lhes uma acepção mais ampla.

s Nesse sentido: ARY OSWALDO MATTOS FILHO. "O conceito de Valor Mobi-
liário". Revista de Direito Mercantil, vol. 59, jul./set. 1985. pg. 30.

424
A principal preocupação do legislador, ao editar Lei no 10.198, foi
a de regular os contratos realizados com derivativos e commodities, e,
em especial, os chamados de "contratos de boi gordo"; desde o final
de 1997, vinha a CVM defendendo a necessidade de regulamentação
dos contratos de investimento lastreados em produtos agropecuários.
O sistema de funcionamento das empresas que negociam com
"boi gordo" é semelhante ao de um clube de investimentos: os inves-
tidores, chamados de "parceiros proprietários", aplicam seus recursos
e os vendedores ou "parceiros tratadores e criadores" encarregam-se
da compra, engorda e venda do animal.
O contrato de boi gordo pode ser considerado uma espécie de
parceria agrícola, previsto no Código Civil de 1916 6 nos artigos 1.410
a 1.423, com algumas particularidades, estabelecidas com base no
princípio da autonomia contratuaF.
Com a edição da Lei no 10.198/01, que considera valor mobiliário
qualquer contrato de investimento coletivo, ofertado publicamente,
que gere lucros que advêm do esforço do empreendedor ou de tercei-
ros, os contratos de boi gordo passaram a ser regulados e fiscalizados
pela C.V.M que, em 23.01.98, editou a Instrução no 270, dispondo
sobre o registro das companhias emissoras de títulos e contratos de
investimentos coletivos 8, dentre as quais incluem-se as empresas liga-
das à engorda de gado.
A Lei n° 10.303/01, ao dar nova redação ao art. 2° da Lei no
6.385/76, visou a: conferir maior sistematicidade ao elenco de valores
mobiliários sujeitos ao regime da Lei no 6.385/76, e incluir novos
títulos e contratos em tal elenco.
Repetindo o disposto no regime anterior, o§ 1o do art. 2° da Lei no
6.385/76 dispõe que excluem-se do regime da lei: os títulos da dívida
pública federal, estadual ou municipal, posto que integram o mercado
monetário; os títulos cambiais de responsabilidade de instituição fi-
nanceira, como são aqueles emitidos por bancos (certificados de de-

6 Nota do Autor: O Código Civil de 1916, Lei n° 3.071 de 01.01.1916 foi revogada
pela Lei n° 10.406 de 10.01.2002 e os arts. 1.410 a 1.423 não possuem equivalência
no Novo Código Civil. Ver art. 96 do Estatuto da Terra, Lei n° 4.504/64.
7 A respeito, consulte-se: HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA. "A
CVM e os contratos de investimento coletivo ("boi gordo" e outros)." Revista de
Direito Mercantil, vol. 108, out./dez. de 1997. pg. 91 e segts.
8 HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA (Ob. Cit., pg. 100) entende
que, por exemplo, o lançamento público de um edifício de flats, dos quais a grande
maioria deles é destinada para locação centralizada em um pool de administração pode
ser considerado investimento coletivo para fins da MP no 1.637/98.

425
pósito bancário, por exemplo) ou de aceite de financeiras (como são
as letras de câmbio) que integram o mercado financeiro.
Tais títulos não são considerados valores mobiliários, para os efei-
tos da Lei no 6.385/76, sendo a sua negociação objeto de fiscalização
por parte do Banco Central.
Nos termos do art. 2o da Lei no 6.385/76, com a redação dada pela
Lei no 10.303/01, são considerados valores mobiliários, cuja distribui-
ção pública e negociação é sujeita à fiscalização da CVM:

1. as ações, debêntures e bônus de subscrição;


2. os cupons, direitos, :-ecibos de subscrição e certificados de desdo-
bramento relativos aos valores mobiliários acima referidos;
3. os certificados de depósito de valores mobiliários;
4. as cédulas de debêntures;
5. as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de
clubes de investimento em quaisquer ativos;
6. as notas comerciais;
7. os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos
subjacentes sejam valores mobiliários;
8. outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subja-
centes; e
9. quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou con-
tratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação,
de parceria ou de remuneração, inclusive resultante da prestação de
serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou
de terceiros.

Em sua redação original, o art. 2°, em seu inciso III, em norma de


duvidosa constitucionalidade, dispunha que o Conselho Monetário
Nacional- CMN poderia, a seu critério, entender como valores mo-
biliários outros títulos emitidos por sociedades anônimas, além das
ações, partes beneficiárias, debêntures, os cupões de tais títulos e os
bônus de subscrição.
Com a nova redação dada ao art. 2° da Lei no 6.385/76, não mais
existe a possibilidade de ser aumentado o elenco de valores mobiliá-
rios, seja pelo CMN, seja pela CVM. Dado o caráter flexível do con-
ceito de "títulos e contratos de investimento coletivo", presume-se
que o legislador entendeu que não mais será necessária a ampliação do
rol de ativos tidos como valores mobiliários, mediante a edição de
normas regulamentares. Assim, a relação de valores mobiliários pre-
vistos no art. 2° da Lei n° 6.385/76, em sua nova redação, passa a ser
exaustiva e não mais exemplificativa.

426
Os incisos I, II, III e IV do art. 2° da Lei no 6.385/76, com a nova
redação, repetem a legislação e regulamentação anteriores, porém ex-
cluindo do elenco de valores mobiliários as partes beneficiárias, tendo
em vista a nova redação dada ao parágrafo único do art. 4 7 da Lei das
S.A., pela Lei no 10.303/01, nos termos da qual ficou vedado às com-
panhias abertas emitir partes beneficiárias.
O inciso I enumera os valores mobiliários de emissão de compa-
nhias abertas previstos na Lei no 6.385/76, em sua feição original:
ações; debêntures; e bônus de subscrição.
Já os incisos II, III e IV, visando a sistematizar a disciplina legal e
regulamentar anterior, elencam determinados direitos sobre valores
mobiliários, de emissão da companhia aberta ou de instituição finan-
ceira, como é o caso dos certificados de depósito de valores mobiliá-
rios, que são tidas como valores mobiliários para os efeitos legais.
Nos termos do inciso V, constituem valores mobiliários as cotas de
fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de inves-
timento em quaisquer ativos.
As cotas de clubes de investimento serão sempre tidas como valo-
res mobiliários, ainda que a carteira do clube seja composta por papéis
de renda fixa, como títulos da dívida pública.
Diversa é a situação dos fundos de investimento, cujas cotas po-
dem ser ou não consideradas valores mobiliários, sem que se logre
perceber qual a razão do tratamento diferenciado daquele estabeleci-
do para os clubes de investimento, de vez que ambos constituem
carteiras administradas de ativos financeiros.
Tratando-se de um fundo de investimento cujos ativos sejam títu-
los incluídos no elenco de valores mobiliários (ações, por exemplo), as
cotas de sua emissão constituirão valores mobiliários, para os efeitos
da Lei n° 6.385/76. Já no caso de fundo de investimento cuja carteira
seja composta por títulos da dívida pública, que estão excluídos do
elenco de valores mobiliários, as suas cotas não serão consideradas
valores mobiliários, cabendo a fiscalização ao Banco Central, não à
CVM.
Porém, no caso de fundo de investimento financeiro (FIF) com
carteira composta por valores mobiliários e títulos da dívida pública,
as suas cotas não estão nem incluídas nem excluídas do elenco de
valores mobiliários do art. 2°, permanecendo numa espécie de "limbo
jurídico", o que poderá ocasionar conflitos de competência entre a
CVM e o Banco Central.
O inciso VI, ao mencionar as notas comerciais ("commercial pa-
pers") confere tratamento legal de valores mobiliários a tais títulos,

427
previstos em norma regulamentar (Resolução n° 1. 723/90, do Conse-
lho Monetário Nacional).
Nos termos do inciso VII, repetindo a regulamentação vigente,
constituem valores mobiliários os contratos futuros, de opções e ou-
tros derivativos "cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários".
Já o inciso VIII define como valores mobiliários "outros contratos
derivativos, independentemente dos ativos subjacentes".
Ora, se o inciso VIII considera valores mobiliários todos os contra-
tos derivativos, quaisquer que sejam os "ativos subjacentes", a teor da
sua dicção, vazada em mau "economês", qual a razão de ser do inciso
VII? Trata-se de dispositivos não só pessimamente redigidos como
também redundantes, uma vez que bastaria dizer "todos os contratos
derivativos".
Com efeito, os incisos VII e VIII consideram valores mobiliários
todos os contratos derivativos, quer os ativos de que "derivam" sejam
valores mobiliários ou não. Assim, tanto um contrato de opção de
compra de ações como um contrato futuro de câmbio são tidos como
valores mobiliários, por tratar-se de derivativos.
A noção de "derivativo" não é jurídica; trata-se de termo traduzido
literalmente do inglês ("derivative") de uso corrente na prática dos
negócios desenvolvidos em mercados futuros. Os derivativos são, ge-
nericamente, instrumentos financeiros cujo valor é derivado, resul-
tante de outros instrumentos ou ativos financeiros, como a taxa de
juros, índice de um mercado, contrato de opções, etc. 9
Um "derivativo" constitui um contrato, ou mesmo dois contratos
conexos, ou um título, cujo valor "deriva", é resultado do valor de
determinado ativo financeiro. Assim, por exemplo, uma opção de
compra de ações preferencias emitidas pela companhia X constitui
um derivativo, cujo valor, em princípio, resulta da cotação de tais
ações, que constituem, no elíptico jargão do art. 2, VIII os "ativos
subjacentes".
Nos Estados Unidos, há grande discussão sobre o "status" legal
dos derivativos, principalmente daqueles negociados no mercado de
balcão (OTC), que não se enquadram integralmente em qualquer das
áreas objeto de regulação no mercado financeiro: sistema bancário;
"commodites"; e "securities". Daí decorrem certas "zonas cinzentas"
na regulação dos mercados de derivativos, entre a competência da

9 LUIS GASTÃO LEÃES FILHO, Derivative's suitability. Revista de Direito Mer-


cantil, vol. 102, abr./jun. 1996. pg. 60.

428
Securities and Exchange Commission (SEC), encarregada da fiscaliza-
ção do mercado de capitais e a da Commodities Futures Trading Com-
mission (CFTC), que fiscaliza os mercados futuros.
Já entre nós, tendo a nova redação do art. zo
deixado claro que
todos os derivativos são considerados valores mobiliários, não há dúvi-
da de que a fiscalização das operações com derivativos é de competên-
cia da CVM.
Os derivativos são negociados em mercados futuros, que consti-
tuem mercados cuja função econômica básica é a de propiciar o "hed-
ge", ou seja, a proteção contra flutuações de preços ocorridas no mer-
cado à vista.
A função econômica dos mercados futuros é a de oferecer aos que
deles participam a possibilidade de fazerem uma espécie de "seguro"
("hedge") contra os riscos provenientes de movimentos adversos ocor-
ridos nos preços do mercado à vista, seja de ativos financeiros, seja de
"commodities".
Nos contratos firmados no mercado futuro, a vontade é manifes-
tada com a intenção clara de proteção contra as variações de preços.
Não querem as partes comprar ou vender bens ou ativos financeiros
para pagamento à vista, nem tampouco para pagamento futuro; o mo-
tivo que as leva a optar pelo contrato futuro é a finalidade protetora
de tal modalidade de negócio jurídico 10 .
Nos mercados futuros verifica-se a presença de três atores essen-
ciais: o hedger, o especulador e o arbitrador.
O hedger é aquele que busca a proteção de sua posição à vista
mediante a tomada de determinada posição nos mercados futuros. Há
dois tipos de hedgers: de compra e de venda. O hedger de venda busca
proteção contra uma eventual redução nos preços de um ativo que
pretende vender no futuro; já o hedger de compra procura maior segu-
rança frente a uma possível alta de preços de bens que deseja adquirir.
Para proteger-se contra os riscos da variação de preços, os agentes
econômicos que atuam no mercado físico de determinada mercadoria
ou ativo financeiro assumem, no mercado futuro, uma posição igual e
inversa àquela que mantêm no mercado à vista; se os movimentos de
preços são paralelos, o ganho auferido num mercado compensa a per-
da verificada no outro. Tal é tipicamente o que ocorre na atuação do

10 FERNANDO A ALBINO DE OLIVEIRA Poder regulamentar da Comissão de


Valores Mobiliários Tese em doutoramento em Direito Econômico da Faculdade de
Direito da USP, São Paulo, abril de 1989, pg. 44.

429
"hedger", que atua no mercado futuro visando a obter uma espécie de
"seguro de preços" 11 .
Os especuladores são os investidores que objetivam apenas reali-
zar lucros nas operações a futuro, de sorte que ingressam e retiram-se
do mercado futuro rapidamente, às vezes em um dia, não demons-
trando qualquer interesse comercial direto no ativo objeto da negocia-
ção. Os especuladores desempenham uma função econômica relevan-
te, que é a de dar liquidez aos mercados futuros, assumindo os riscos
que os hedgers não desejam suportar.
Com efeito, uma das partes, o "hedger", deseja a proteção contra
os riscos; a outra, o especulador, aceita assumir tais riscos, mediante
uma remuneração determinada.
Os especuladores adquirem dois tipos de posições: de "trader" e
de "day trader". Na primeira hipótese, o especulador posiciona-se no
mercado futuro num dia e liquida-a no dia seguinte, na semana ou no
mês seguinte, sendo certo que não manterá tal posição- de compra-
dor ou de vendedor- até o vencimento do contrato. Já o "day tra-
der", como a designação bem denota, liquida a sua posição no mesmo
dia em que a adquiriu.
O arbitrador obtém o seu lucro da diferença de preços de deter-
minado bem que é negociado ao mesmo tempo em mais de um mer-
cado, normalmente no curto prazo.
No mercado de derivativos há quatro modalidades de negocia-
ções: a termo, a futuro, com opções e com "swaps".
O contrato a termo constitui um instrumento mediante o qual as
partes obrigam-se à compra e venda de uma determinada quantidade
de um ativo em determinada data futura, por um preço predetermi-
nado. Os contratos a termo podem ser negociados em bolsa, como é o
caso dos contratos a termo negociados na BM&F, ou no mercado de
balcão.
Já os contratos futuros, embora apresentem características simila-
res, são negociados somente em bolsas, daí decorrendo a sua padroni-
zação. A bolsa nos quais são negociados estabelece cláusulas obrigató-
rias, padronizadas, referentes ao ativo objeto da negociação, a unidade
de negociação (o chamado "lote-padrão"), as variações mínima e má-
xima permitidas em pregão, o tamanho do contrato, os meses de ven-
cimento, o número máximo de vencimentos em aberto, a data de
vencimento do contrato e as condições de liquidação no vencimento.

11 NELSON EIZIRIK, "Negócio jurídico de 'hedging' ."Revista de Direito Mercantil,


vol. 90, abr./jun. 1993. pg. 14.

430
Nos contratos futuros, emitidos pela bolsa, ela, por meio de sua
câmara de compensação, garante a eventual inadimplência de qual-
quer das partes: conforme o jargão bursátil, a bolsa é compradora dos
vendedores e vendedora dos compradores. Para garantir a liquidação
das operações, a bolsa usualmente requer que as partes depositem
margens de garantia, em dinheiro, em títulos ou em carta de fiança
bancária; e que acertem, diariamente, o que cada uma deve à outra,
em função da cotação dos ativos objeto da negociação, mediante o
depósito do chamado "ajuste diário".
No mercado de opções negocia-se o direito de comprar ou de
vender determinados títulos; tais direito são denominados opções,
que podem ser de compra ou de venda; nas opções de compra
("calls"), o titular adquire o direito de, se desejar, comprar ao lança-
dor, até uma data fixada, os títulos relativos às opções; nas opções de
venda ("puts"), o direito do titular é o de vender os títulos ao lança-
dor. O "prêmio" é o preço da opção, livremente negociado em pregão,
que é pago pelo titular ao lançador no dia da operação.
O contrato de "swap" constitui instrumento financeiro mediante
o qual um tomador de recursos troca o tipo de fundos que pode obter
com maior facilidade por outro, do qual realmente necessita. O
"swap" é definido como o contrato mediante o qual as partes ajustam
a permuta de fluxos de caixa futuros, de acordo com fórmula preder-
minada12.
Os contratos de swap caracterizam-se pela troca de fluxos finan-
ceiros, ou da taxa de rentabilidade entre diferentes indexadores, por
um certo período de tempo, visando a minimizar os riscos decorrentes
das oscilações de tais ativos. Assim, por exemplo, pode-se trocar o
risco do Certificado de Depósito lnterfinanceiro- CDI- por um
Certificado de Depósito Bancário -CO B -prefixado. Ou o risco da
variação do dólar norte-americano por CDI; ou os riscos decorrentes
da variação de cotação internacional entre moedas de dois países.
Nos termos do inciso IX do art. zo da Lei n° 6.385/76, com a
redação dada pela Lei no 10.303/01, também constituem valores mo-
biliários quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou
contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação,
de parceria ou de remuneração, inclusive resultante da prestação de
serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de
terceiros.

12 RACHEL STAJN, Futuros e Swaps- uma visão jurídica, São Paulo, Cultural
Paulista, 1999, pg. 215.

431
A nova redação do art. zo repete o conceito de valor mobiliário
contido na Lei no 10.198/01, o qual foi nitidamente inspirado na no-
ção de "securitíy" do direito norte-americano.
São os seguintes os traço"s distintivos de uma security, conforme
consagrado pela jurisprudência dos tribunais norte-americanos: é a
transação em que (1) uma pessoa investe seus recursos; (2) em um
empreendimento coletivo; (3) com a expectativa de obter lucro; e (4)
cujos esforços advêm daqueles que lançaram o título, ou de terceiros,
mas nunca daquele que nele investiu.
Nos termos do art. zo da Lei no 6.385/76, com a nova redação
dada pela Lei 10.303/01, considera-se que constitui valor mobiliário,
quando ofertado publicamente, qualquer título ou contrato de inves-
timento coletivo.
Tratando-se de uma venda privada, na qual não estejam presentes
os elementos caracterizadores da distribuição pública, não se aplica o
art. 2°, ainda que preenchidos os demais requisitos componentes do
conceito de valor mobiliário.
Tal conceito abrange, inicialmente, todas as modalidades de títu-
los ou contratos que já eram considerados valores mobiliários na legis-
lação anterior, e que não foram enumerados na nova redação do art.
zo: cotas de fundos imobiliários; certificados de investimentos audio-
visuais; certificados representativos de contratos mercantis de com-
pra e venda a termo de energia elétrica; e certificados de recebíveis
imobiliários.
Ademais, também deverá ser considerado valor mobiliário o título
ou contrato em que:
a) caracteriza-se modalidade de investimento coletivo;
b) há fornecimento de recursos (dinheiro ou outros bens suscetí-
veis de avaliação econômica) por parte do investidor;
c) há gestão dos recursos por parte de terceiros, não controlando
o investidor o negócio no qual seus recursos foram empregados 13 ;
d) trata-se de um empreendimento comum, cujo sucesso é alme-
jado tanto pelo investidor quanto pelo gestor, havendo entre ambos
uma comunhão de interesses econômicos interligados juridicamente;
e) existe uma expectativa de obter lucros, ou seja, o investidor, ao
decidir pela alocação de seus recursos em um valor mobiliário, visa à

13 Embora modernamente, como acentuaARY OSWALDO MATTOS FILHO (Ob.


cit., pág. 42), admita-se a participação do investidor na tentativa de obtenção do lucro
(como, por exemplo, no caso de franchising).

432
obtenção de algum tipo de ganho, benefício ou vantagem econômica,
em função do contrato de investimento de risco realizado. Esses lu-
cros podem ser auferidos através de participação, parceria ou remune-
ração, inclusive resultante de prestação de serviços; e
f) o investidor assume os riscos de financiador do negócio (ou os
riscos do empreendimento), que são diversos dos riscos comuns co-
merciais, ou seja, os riscos poderão resultar na perda total ou parcial
dos recursos investidos.

433
1

1
AÇÕES PREFERENCIAIS. LIMITE DE EMISSÃO
APLICÁVEL ÀS COMPANHIAS ABERTAS
EXISTENTES ANTES DA ENTRADA EM VIGOR
DA LEI No 10.303/2001

I-CONSULTA

Consulta-nos a COMPANHIA ALFA ("Consulente") a respeito


do limite de emissão de ações preferenciais sem direito a voto aplicá-
vel às companhias abertas constituídas antes da entrada em vigor da
Lei no 10.303/2001.
Esclarece a Consulente que é companhia aberta e que, atualmen-
te, seu capital social está dividido entre ações ordinárias e preferen-
ciais sem direito a voto, na proporção de 50% (cinqüenta por cento)
para cada espécie de ações.
Diante disso, solicita-nos Parecer sobre a seguinte questão:
"Após a entrada em vigor da Lei no 10.303/2001, a COMPA-
NHIA ALFA estará obrigada a manter a proporção atualmente exis-
tente entre ações ordinárias e preferenciais ou continuará tendo a
faculdade de aumentar o número de ações preferenciais emitidas até
o limite de 2/3 (dois terços) do capital social?"

li-PARECER

Visando à exposição sistemática da matéria, desenvolveremos o


presente Parecer com base na análise dos seguintes tópicos:
a) evolução da disciplina da emissão de ações preferenciais sem
direito a voto no direito societário brasileiro;
b) limite de emissão de ações preferenciais sem direito a voto
introduzido pela Lei n° 10.303/2001;
c) razões para a adoção de regime diferenciado para as companhias
já existentes;
d) categorias de sociedades anônimas instituídas pela Lei n°
10.303/2001;

435
e) adoção voluntária do novo regime pelas companhias abertas
preexistentes;
f) companhias abertas preexistentes que não atingiram o limite de
2/3 (dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto;
g) resposta ao quesito.

A- EVOLUÇÃO DA DISCIPLINA DA EMISSÃO DE AÇÕES


PREFERENCIAIS SEM DIREITO A VOTO NO DIREITO
SOCIETÁRIO BRASILEIRO

A criação de ações preferenciais sem direito a voto foi inicialmen-


te autorizada, em nosso direito societário, pelo Decreto n° 21.536, de
15 de junho de 1932, o qual não estabeleceu qualquer limite para a
emissão desta espécie de ações.
Posteriormente, o Decreto-Lei n° 2.627, de 26 de setembro de
1940, manteve a previsão da faculdade das sociedades anônimas emi-
tirem ações sem direito a voto, restringindo, todavia, o montante de
tais ações à 50% (cinqüenta por cento) do capital total da companhia.
Com o advento da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976, a
proporção de ações sem direito a voto que poderiam ser emitidas foi
elevada para 2/3 (dois terços) do capital social.
Além disso, a lei societária de 1976 também disciplinou expressa-
mente a questão das ações preferenciais com direito a voto restrito,
que ainda não haviam sido objeto de regulação legal, sujeitando-as aos
mesmos limites estabelecidos para as ações sem direito a voto.
De fato, o artigo 15, § 2°, da Lei n° 6.404/1976, em sua redação
original, estabeleceu que o número de ações preferenciais sem direito
a voto ou sujeitas a restrições no exercício deste direito não poderia
ultrapassar 2/3 (dois terços) do total das ações emitidas:
A permissão legal para o aumento do limite de ações preferenciais,
em relação à regra prevista no Decreto Lei n° 2.627/1940, deveu-se à
intenção do legislador de 1976 de privilegiar o empresário nacional,
conferindo-lhe condições de obter, no mercado de valores mobiliá-
rios, recursos para capitalizar sua empresa, sem que ele tivesse que
abrir mão do poder de mando sobre a companhia.
É o que se infere da Exposição de Motivos da Lei n° 6.404/1976,
nos seguintes termos:

"O Projeto adota posição intermediária, aumentando para 2/3 do


capital o limite de emissão de ações preferenciais, mas nele incluindo

436
ações sem direito a voto e com voto restrito. Recomendam esse aumen-
to de limite:
a) a orientação geral do Projeto de ampliar a liberdade do empresário
privado nacional na organização da estrutura de capitalização da sua
empresa;
b) o objetivo de facilitar o controle, por empresários brasileiros, de
companhias com capital distribuído no mercado;
c) a conveniência de evitar a distribuição, na fase inicial de abertura
do capital de companhias pequenas e médias, de duas espécies de
ações, em volume insuficiente para que atinjam grau razoável de li-
quidez."

Como se verifica, o objetivo declarado do aumento do limite de


emissão de ações preferenciais para 2/3 (dois terços) do capital total
era permitir que as empresas nacionais, em sua grande maioria fami-
liares, pudessem aproveitar os recursos oriundos do mercado de capi-
tais, sem que os empresários fossem obrigados sacrificar, total ou par-
cialmente, o poder de controle sobre a companhia.
Em função de tais objetivos, o artigo 15, § 2°, da Lei n°
6.404/1976 permitiu que o controlador mantivesse o controle acioná-
rio mesmo sendo titular de pouco mais de 16% (dezesseis por cento)
do total de ações emitidas (metade mais uma ação dos 33,33% do
capital social representados por ações ordinárias).

B- LIMITE DE EMISSÃO DE AÇÕES PREFERENCIAIS SEM


DIREITO A VOTO INTRODUZIDO PELA LEI N° 10.303/2001

Todavia, com a evolução da conjuntura econômica nacional e in-


ternacional nos mais de 25 anos transcorridos desde a edição da Lei n°
6.404/1976, o que era visto como salutar para a economia brasileira
passou a ser encarado como uma distorção de nosso ordenamento
societário, justamente por afastar a maioria dos acionistas da gestão
dos negócios sociais, conforme definiu o Deputado Emerson Kapaz,
um dos relatores do Projeto que se transformou na Lei 10.303, de 30
de outubro de 2001:

"Assim, por exemplo, a questão das ações preferenciais sem direito a


voto. É um instituto polêmico, na medida em que afasta o acionista-
sócio e divisor do risco, tanto, em princípio, quanto o controlador-
da gestão do negócio. Propõe o Deputado Luiz Carlos Hauly, no Pro-

437
jeto de Lei n° 3.519!97, sua simples extinção. Não acreditamos se
deva chegar tão longe. Contudo, depois da análise detida da questão,
inclusive em face da experiência internacional, chegamos à conclusão
de que há um verdadeiro e injustificável exagero na permissão de
emissão de tal classe de ações até 2/3 do capital. Acreditamos-
e o direito comparado assim aponta- que o percentual de 50% seria
mais do que suficiente para permitir a capitalização da empresa, sem,
contudo, manter a distorção atual em que se pode exercer o con-
trole de uma empresa com a propriedade de pouco mais que 15%
do capital. "1 (grifos nossos)

Diante de tais considerações, foi aprovada, no âmbito da ampla


reforma que a aludida Lei n° 10.303/2001 operou na legislação socie-
tária, a redução, para 50% (cinqüenta por cento) do capital social, do
número de ações preferenciais sem direito a voto que as sociedades
anônimas estão autorizadas a emitir.
Neste sentido, a nova redação do artigo 15, § 2°, da Lei n°
6.404!1976:

"Art. 15 - (. .. .)
§ 2°- O número de ações preferenciais sem direito a voto, ou sujeitas
a restrições no exercício deste direito, não pode ultrapassar 50% (cin-
qüenta por cento) do total das ações emitidas."

C -RAZÕES PARAAADOÇÃO DE REGIME


DIFERENCIADO PARA AS COMPANHIAS JÁ EXISTENTES

Reconheceu-se, contudo, que este novo limite não deveria ser


aplicado imediatamente às companhias já existentes, pois isto poderia
provocar, entre outros efeitos indesejáveis, alterações em situações de
controle acionário legitimamente constituídas sob o regime legal ante-
rior, no qual era permitida a emissão de percentual maior de ações
sem direito a voto.
Vale dizer, caso as companhias já existentes fossem obrigadas a,
imediatamente, reduzir a quantidade de ações preferenciais sem di-
reito a voto por elas emitidas, os atuais controladores, em muitos
casos, poderiam perder o comando de tais empresas.

Relatório apresentado na Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Cãma-


ra dos Deputados

438
Ora, se admitisse tal situação, o legislador estaria permitindo clara
violação ao princípio da segurança das relações jurídicas, segundo o
qual a lei nova não pode prejudicar as situações jurídicas validamente
criadas sob o império da norma modificada.
Conforme refere a doutrina, o desrespeito a tal princípio constitui
negação ao próprio Estado de Direito, visto que este não pode admitir
que as relações e direitos que se fundam sob a garantia e proteção de
suas leis possam ser arbitrariamente destituídas de eficácia 2.
A respeito, vale transcrever a lição de Washington de Barros Mon-
teiro3:

"Efetivamente, sem o princípio da irretroatividade, inexisitiria


qualquer segurança nas transações, a liberdade civil seria um
mito, a estabilidade patrimonial desapareceria e a solidez dos
negócios estaria sacrificada, para dar lugar a ambiente de
apreensões e incertezas, impregnado de intranqüilidade e alta-
mente nocivo aos superiores interesses do indivíduo e da socie-
dade. Seria a negação do próprio direito, cuja específica função, no
dizer de RUGGIERO MAROI, é tutela e garantia." (grifou-se)

Dessa forma, o legislador viu-se compelido a adotar regime dife-


renciado para as companhias já existentes na data da entrada em vigor
do novo limite de emissão de ações preferenciais sem direito a voto.
Dito regime diferenciado foi instituído sob a forma de regras de
transição, isto é, disposições contidas no texto da lei modificadora que
visam a harmonizá-la com as situações constituídas sob a égide da lei
anterior e a solucionar os conflitos originados na transição de uma lei
para outra.
As referidas normas transitórias, no caso presente, encontram-se
consubstanciadas nos§§ 1° e 2° do artigo 8° da Lei no 10.303/2001, os
quais passamos, em seguida, a analisar.

D- CATEGORIAS DE SOCIEDADES ANÔNIMAS


INSTITUÍDAS PELA LEI N° 10.303/2001

Dispõe o artigo 8°, §§ 1° e 2°, da Lei no 10.303/2001 que:

2 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, Forense, Rio


de Janeiro, 1999, vol. 1, p. 92.
3 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO. Curso de Direito Civil, São Paulo,
Saraiva, 1996, 1°Volume, pag. 31.

439
"Art. 8- (. .. .)
§ 1° A proporção prevista no § 2° do art. 15 da Lei n° 6. 404, de 19 76,
será aplicada de acordo com o seguinte critério:
I - imediatamente às companhias novas;
II - às companhias fechadas existentes, no momento em que decidi-
rem abrir o seu capital; e
III - as companhias abertas existentes poderão manter proporção
de até dois terços de ações preferenciais, em relação ao total de
ações emitidas, inclusive em relação a novas emissões de ações.
§ 2° Nas emissões de ações ordinárias por companhias abertas que
optarem por se adaptar ao disposto no art. 15, § 2°, da Lei n° 6.404,
de 1976, com a redação que lhe é conferida por esta Lei, poderá não
ser estendido aos acionistas titulares de ações preferenciais, a critério
da companhia, o direito de preferência a que se refere o art. 1 71, § 1°,
alínea b, da Lei n° 6.404, de 1976. Uma vez reduzido o percentual
de participação em ações preferenciais, não mais será lícito à com-
panhia elevá-lo além do limite atingido." (grifas nossos)

Como se verifica, o dispositivo transcrito, em conjunto com a


nova redação do artigo 15, § 2°, da lei societária, ao estabelecer dife-
rentes limites de emissão de ações sem direito a voto, resultou na
criação de duas categorias de sociedades anônimas, a saber:
a) a das companhias que estarão obrigadas a adotar o critério ou
regime de paridade entre ações ordinárias e preferenciais; e
b) a das companhias que poderão manter o critério de disparida-
de, permanecendo indefinidamente autorizadas a emitir ações sem
direito a voto na proporção de até 2/3 (dois terços) do capital total.
Nos termos dos incisos I e II do § 1° do artigo 8° da Lei n°
10.303/2001, o critério de paridade entre ações ordinárias e prefe-
renciais deve ser compulsoriamente adotado pelas:
a) companhias abertas e fechadas que vierem a se constituir após
a vigência da Lei n° 10.303/2001, ou seja, após 1° de março de 2002,
conforme dispõe o artigo go da referida lei;
b) companhias fechadas já constituídas que decidirem abrir seu
capital com a emissão de ações preferenciais após a vigência da Lei n°
10.303/2001.
Por outro lado, face ao disposto no artigo 8°, § 1°, inciso III, da Lei
n° 10.303/2001, as companhias abertas preexistentes estão excep-
cionadas da adoção compulsória do regime de paridade. Estas conti-
nuam, indefinidamente, com a faculdade de emitir até 2/3 (dois ter-
ços) de ações preferenciais sem direito a voto, inclusive nos aumentos
de capital que vierem a fazer na vigência da nova lei.

440
Igual autorização para a emissão de até 2/3 (dois terços) de prefe-
renciais sem direito a voto e apenas 1/3 (um terço) de ordinárias
aplica-se às companhias fechadas existentes. A possibilidade de manu-
tenção de até 2/3 (dois terços) do capital em ações sem direito a voto
subsistirá por todo o tempo em que a companhia se mantiver como
fechada, passando a ser obrigatória a adoção do regime de paridade
por ocasião da eventual abertura de seu capital, se houver.
Em síntese, o novo limite de emissão de ações preferenciais sem
direito a voto, instituído pela Lei no 10.303/2001, aplica-se unica-
mente às sociedades incluídas na primeira categoria (companhias
constituídas após a vigência da nova lei e companhias fechadas no
momento em que abrirem seu capital).
Em relação às sociedades inseridas na segunda categoria (compa-
nhias abertas preexistentes e companhias fechadas enquanto não
abrirem seu capital) permanece em vigor, para todos os efeitos, o
regime legal anterior, que faculta a emissão de ações preferenciais até
o limite de 2/3 (dois terços) do total de ações emitidas.
Neste sentido, os termos do Relatório do Deputado Emerson Ka-
paz4:

"Por esta razão, entendemos melhor aplicar a nova regra1 desde já1
apenas para as companhias que vierem a se constituir após a entra-
da em vigor da Lei. Quanto às companhias já existentes, optamos por
diferir a alteração acima disposta, de modo a que a estrutura acioná-
ria atual seja preservada, só devendo haver adequação à nova lei em
emissões voluntárias futuras, segundo regras de transitoriedade."
(grifos nossos)

Portanto, conforme deixa claro o trecho acima transcrito, somen-


te as companhias que vierem a se constituir após a entrada em vigor da
Lei no 10.303/2001 estão obrigadas a observar o novo limite de emis-
são de ações preferenciais.

E -ADOÇÃO VOLUNTÁRIA DO NOVO REGIME PELAS


COMPANHIAS ABERTAS PREEXISTENTES

Todavia, as companhias abertas já existentes poderão, voluntaria-

4 Relatório apresentado na Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câma-


ra dos Deputados.

441
mente, vir a adotar o novo limite de emissão de ações preferenciais
sem direito a voto em futuros aumentos de capital por elas realizados.
Com efeito, o artigo 8°, § 2°, da Lei n° 10.303/2001, faculta a
adoção do regime paritário pelas companhias abertas que já tenham
ações preferenciais emitidas. Nesse caso, o referido parágrafo permite
que a assembléia geral que deliberar sobre o aumento de capital res-
pectivo determine a suspensão do direito de preferência aos acionistas
titulares de ações preferenciais, fazendo com que apenas os detento-
res de ações ordinárias subscrevam o referido aumento de capital.
A faculdade de suspensão do direito de preferência é dada como
forma de estímulo às companhias abertas que já tenham emitido ações
preferenciais anteriormente à vigência da nova lei, para que volunta-
riamente venham a adotar o regime de paridade.
O objetivo da norma é assegurar que a adoção da paridade não
retire o controle da companhia das mãos de seus atuais controlado-
res, permitindo, para tanto, a diluição da participação dos preferen-
cialistas.
Cumpre notar que a suspensão do direito de preferência estabele-
cida pelo dispositivo mencionado é opcional. Assim, poderá a assem-
bléia geral, que deliberar a emissão de ações ordinárias visando a atin-
gir a paridade, conferir total ou parcialmente o direito de preferência
aos titulares de ações preferenciais.
Vale também salientar que a adoção voluntária do regime paritário
pelas companhias abertas preexistentes poderá ser gradativa, ou seja,
poderão suceder-se diversos aumentos de capital até que se chegue à
paridade entre ações ordinárias e preferenciais.
De qualquer modo, conforme estabelece a parte final do § 2° do
artigo 8° da Lei no 10.303/2001, uma vez que os acionistas decidam
pela adaptação ao critério da paridade, reduzindo o percentual das
ações preferenciais emitidas, a companhia ficará impedida de voltar a
aumentar a proporção de ações preferenciais sem direito a voto para
2/3 (dois terços) das ações emitidas.
Saliente-se, a propósito, que a companhia aberta preexistente so-
mente estará submetida ao critério de paridade caso seja aprovado,
em assembléia geral, aumento de capital com a emissão apenas de
ações ordinárias, com a conseqüente redução da proporção de ações
preferenciais sem direito a voto.
É o que se infere da própria redação do referido dispositivo, se-
gundo o qual a companhia somente fica impedida de elevar o percen-
tual de ações preferenciais, "uma vez reduzido o percentual de par-
ticipação" em tal espécie de ações.

442
Não havendo tal redução na proporção de ações preferenciais
existente antes da vigência Lei no 10.303/2001, a companhia aberta
preexistente permanecerá sob a égide do regime de disparidade, em
consonância com a redação original do artigo 15, § 2°, da Lei das S.A.,
conforme anteriormente mencionado.

F- COMPANHIAS ABERTAS PREEXISTENTES QUE NÃO


ATINGIRAM O LIMITE DE 2/3 (DOIS TERÇOS) DE AÇÕES
PREFERENCIAIS SEM DIREITO A VOTO

Feitas tais considerações, passamos a analisar a situação das com-


panhias abertas constituídas antes da entrada em vigor da Lei no
10.303/2001 e cujo capital, atualmente, está dividido entre ações
ordinárias e preferenciais na proporção de 50% (cinqüenta por cento)
para cada espécie de ações, como é o caso da Consulente.
Conforme anteriormente referido, a Lei no 10.303/2001 criou
duas categorias de sociedades anônimas no que concerne ao limite de
emissão de ações preferenciais sem direito a voto: a primeira formada
pelas sociedades constituídas após a entrada em vigor da aludida Lei e
pelas companhias fechadas após decidirem abrir seu capital e a segun-
da englobando as companhias abertas preexistentes e as fechadas en-
quanto permanecerem em tal condição.
Estas são as duas únicas hipóteses reguladas pelas disposições
transitórias instituídas pela Lei no 10.303/2001, de modo que todas as
sociedades anônimas devem ser enquadradas ou em uma ou em outra
categoria.
Ora, sendo a Consulente uma companhia aberta já existente na
data do início da vigência da Lei n° 10.303/2001, é evidente que ela
somente pode ser enquadrada na segunda categoria acima mencio-
nada.
Assim sendo, lembre-se que, em relação às companhias incluídas
na segunda categoria, não se aplica o novo limite de emissão de ações
preferenciais sem direito a voto, isto é, metade do capital social. Com
efeito, conforme anteriormente explicitado, a emissão desta espécie
de ações por parte de tais companhias permanece regida pelo sistema
originalmente previsto na Lei no 6.404/76, que admite a supressão do
direito de voto para até 2/3 (dois terços) do capital total.
Vale dizer, às companhias fechadas ou abertas que se enquadrem
nessa segunda categoria será lícita a manutenção do regime legal ante-
rior, de forma que poderão não apenas manter a proporção de ações

443
preferenciais já existente, mas ainda elevá-la até o limite de 2/3 (dois
terços), caso ainda não tenham atingido tallimite. 5
Dessa forma, está a Consulente sujeita à regra geral que disciplina
as companhias incluídas na segunda categoria, permanecendo com a
faculdade de aumentar a proporção de ações sem direito a voto até o
limite de 2/3 (dois terços) das ações emitidas, conforme previsto na
redação original do artigo 15, § 2°, da Lei no 6.404/1976.
A circunstância de, na data da entrada em vigor da Lei n°
10.303/2001, a companhia não ter atingido o referido limite de 2/3
(dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto é indiferente
para efeitos da questão ora analisada.
De fato, o artigo 8° da Lei no 10.303/2001 incluiu todas as com-
panhias abertas preexistentes em uma única categoria, sujeitando-as à
mesma regra geral, sem distinguir entre as que já tinham o capital
social representado por 2/3 (dois terços) de ações preferenciais sem
direito a voto e aquelas que não tinham alcançado o referido limite.
Como se sabe, constitui princípio fundamental de hermenêutica
jurídica a regra segundo a qual"onde a lei não distingue, não cabe ao
intérprete fazê-lo".
Assim, não pode o intérprete incluir, na primeira categoria criada
pela Lei no 10.303/2001, um novo grupo de companhias, que não foi
objeto de previsão legal, qual seja, o das companhias abertas preexis-
tentes que ainda não tenham 2/3 (dois terços) do capital social repre-
sentado por ações preferenciais sem direito a voto.
Tal interpretação somente seria possível caso a aludida Lei tivesse
disposto, expressamente, que as companhias abertas que, na data do
início de sua vigência, ainda não tivessem atingido o limite de 2/3
(dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto, não poderiam
aumentar a proporção destas ações em relação ao capital total.
Na ausência de disposição expressa neste sentido, a interpretação
segundo a qual ditas companhias não poderiam elevar o percentual de
ações preferenciais sem direito a voto por elas emitidas é, inequivoca-
mente, contra legem.
Diante disso, deve prevalecer o entendimento segundo o qual to-
das as companhias abertas preexistentes estão autorizadas a possuir
até 2/3 (dois terços) de seu capital representado por ações preferen-
ciais sem direito a voto, mesmo que ainda não tenham alcançado o
referido limite.

s Neste sentido, confiram-se MODESTO CARVALHOSA e NELSON EIZIRIK, A


Nova Lei das S.A., a ser publicado pela Editora Saraiva.

444
Para confirmar tal orientação, vale ressaltar que, nos termos da Lei
n° 10.303/2001, a única hipótese em que as companhias abertas pree-
xistentes passam a estar sujeitas ao critério de paridade entre ações
ordinárias e preferenciais é aquela prevista em seu artigo 8°, § 2°, ou
seja, quando elas voluntariamente optarem por se adequar ao novo
regime, caso em que ficarão impedidas de retornar à proporção de 2/3
(dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto.
No entanto, constitui condição para a aplicação de tal regra que a
companhia aberta, querendo se adaptar ao regime de paridade, realize
aumento de capital em ações ordinárias, a fim de reduzir o percentual
de ações preferenciais sem direito a voto.
Neste sentido, a própria redação da parte final do § 2° do artigo 8°
da Lei no 10.303/2001, ao dispor que "uma vez reduzido o percentual
de participação em ações preferenciais, não mais será lícito à compa-
nhia elevá-lo além do limite atingido". Interpretando-se, a contrário
senso, o citado dispositivo, verifica-se que será lícito às companhias
abertas preexistentes elevarem a proporção de ações preferenciais
sem direito a voto no capital social, desde que o percentual de tais
ações não seja previamente reduzido em decorrência da emissão de
ações ordinárias em aumento de capital.
Ou seja, caso, como ocorre com a Consulente, o percentual de
50% (cinqüenta por cento) de ações preferenciais não decorra de re-
dução ocorrida em virtude de aumento de capital realizado após a
vigência da Lei no 10.303/2001, mas da simples manutenção da pro-
porção anteriormente existente, a companhia aberta preexistente
permanecerá regulada pelo regime de disparidade, em consonância
com a redação original do artigo 15, § 2°, da Lei das S.A.
Portanto, repita-se, o regime de disparidade de proporção entre
ações ordinárias e preferenciais, permite não apenas que as compa-
nhias abertas a que ele se aplica mantenham a proporção atual de
ações preferenciais emitidas, mas também que venham a emitir novas
ações preferenciais até o limite de 2/3 (dois terços) do seu capital
social, caso este limite ainda não tenha sido atingido anteriormente à
vigência da lei nova.

G- RESPOSTA AO QUESITO

Diante do exposto, e considerando que:


a) a Lei no 10.303/2001 criou duas categorias de sociedades anô-
nimas no que concerne ao limite de emissão de ações preferenciais

445
sem direito a voto, sendo a primeira formada pelas sociedades consti-
tuídas após a entrada em vigor da aludida Lei e pelas companhias
fechadas após decidirem abrir seu capital e a segunda englobando as
companhias abertas preexistentes e as fechadas enquanto permane-
cerem em tal condição;
b) todas as sociedades anônimas devem ser enquadradas ou em
uma ou em outra categoria;
c) a Consulente, sendo uma companhia aberta já existente na data
do início da vigência da Lei n° 10.303/2001, somente pode ser enqua-
drada na segunda categoria acima mencionada;
d) em relação às companhias incluídas na segunda categoria não
se aplica o novo limite de emissão de ações preferenciais sem direito a
voto, uma vez que, por força do artigo 8°, § 1°, inciso 111, da Lei no
10.303/2001, a emissão desta espécie de ações por parte de tais com-
panhias permanece regida pelo sistema originalmente previsto na Lei
no 6.404/76, que admite a supressão do direito de voto para até 2/3
(dois terços) do capital total;
e) é indiferente a circunstância de, na data da entrada em vigor da
Lei no 10.303/2001, a companhia ter ou não atingido o limite de 2/3
(dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto, visto que o
citado artigo 8° da Lei n° 10.303/2001 incluiu todas as companhias
abertas preexistentes em uma única categoria, sujeitando-as à mesma
regra geral, sem distinguir entre as que já tinham o capital social re-
presentado por 2/3 (dois terços) de ações preferenciais sem direito a
voto e aquelas que não tinham alcançado o referido limite;
f) inexistindo disposição expressa, não pode o intérprete incluir,
na primeira categoria criada pela Lei no 10.303/2001, um novo grupo
de companhias, que não foi objeto de previsão legal, qual seja, o das
companhias abertas preexistentes que ainda não tenham 2/3 (dois
terços) do capital social representado por ações preferenciais sem
direito a voto;
g) nos termos da Lei n° 10.303/2001, as companhias abertas pree-
xistentes somente passam a estar sujeitas ao critério de paridade entre
ações ordinárias e preferenciais se, voluntariamente, optarem por se
adequar ao novo regime, ficando, então, impedidas de retornar à pro-
porção de 2/3 (dois terços) de ações preferenciais sem direito a voto;
h) a interpretação, a contrário senso, do disposto na parte final do
§ 2° do artigo 8° da Lei no 10.303/2001 indica que será lícito às
companhias abertas preexistentes elevarem a proporção de ações pre-
ferenciais sem direito a voto no capital social, desde que o percentual
de tais ações não seja previamente reduzido em decorrência da emis-
são de ações ordinárias em aumento de capital;

446
i) caso o percentual de 50% (cinqüenta por cento) de ações prefe-
renciais não decorra de redução ocorrida em função de aumento de
capital realizado após a vigência da Lei n° 10.303/2001, mas da sim-
ples manutenção da proporção anteriormente existente, a companhia
aberta preexistente permanecerá regulada pelo regime de disparida-
de, em consonância com a redação original do artigo 15, § 2°, da Lei
das S.A.
Conclui-se que a Consulente, mesmo após a entrada em vigor da
Lei no 10.303/2001, não estará obrigada a manter a proporção atual-
mente existente entre ações ordinárias e preferenciais, continuando a
dispor da faculdade de aumentar o número de ações preferenciais até
o limite de 2/3 (dois terços) do total de ações por ela emitidas.
Foi o nosso Parecer, em fevereiro de 2002.

447
BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO. CLÁUSULA DE
AJUST~ENTO DO PREÇO DE EXERCÍCIO.
APLICAÇAO EM DECORRENCIA DE AUMENTO
DE CAPITAL EFETUADO PARA ATENDERA
PLANO DE OPÇÃO DE COMPRA DE AÇÕES

I - OS FATOS E A CONSULTA

O Companhia Alfa ("Consulente"), na qualidade de titular de


determinada quantidade de bônus de subscrição emitidos pela COM-
PANHIA BETA, solicita-nos 1 a elaboração de Parecer Jurídico sobre a
aplicação da cláusula que disciplina o ajuste do preço de exercício dos
referidos bônus.
A Companhia Beta instituiu Plano de Opção de Compra de Ações
("Plano de Opção") em favor de seus administradores e funcionários
qualificados.
As principais características do Plano de Opção eram as seguintes:
a) o Plano era administrado por um comitê composto de membros
não executivos do Conselho de Administração da Companhia, ao qual
incumbia criar, periodicamente, programas de opções de ações, defi-
nindo os seus termos e os funcionários a serem incluídos, bem como
estabelecendo o preço de emissão das ações;
b) o preço de emissão das ações não poderia ser menor do que
90% (noventa por cento) do preço médio das ações negociadas em
Bolsa de Valores nos três dias anteriores à data da concessão das op-
ções, indexado pela inflação até o exercício destas;
c) o número de ações que seriam concedidas em cada exercício
não poderia exceder a 5% (cinco por cento) do total de ações de cada
espécie, naquela data;
d) quando do exercício das opções, a Companhia teria a faculdade

1 Nota do Autor: Parecer elaborado em conjunto com Modesto Carvalhosa.

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de emitir novas ações ou utilizar eventuais saldos de ações existentes
em tesouraria; e
e) as opções de compra concedidas não possuíam uma data final
para serem exercidas.
O Conselho de Administração da Companhia Beta aprovou a emis-
são de bônus de subscrição, com as seguintes características básicas:
a) a justificativa para a emissão dos bônus foi a de "dar aos atuais
acionistas a garantia de que, na hipótese de aumento de capital por
subscrição em um futuro não imediato, terão os mesmos a faculdade
de manter a sua participação no capital social" (grifamos);
b) foram emitidos 404.930.519 bônus, sendo 142.039.021 para
subscrição de ações ordinárias e 262.891.498 para subscrição de ações
preferenciais, na proporção de 1 (um) bônus para cada 17 (dezessete)
ações possuídas, tanto ordinárias como preferenciais;
c) o preço de emissão foi fixado em R$ 50,00 (cinqüenta reais)
por lote de 1.000 (mil) bônus;
d) a emissão foi privada, tendo sido conferido aos então acionistas
da Companhia Beta direito de preferência para a subscrição dos bônus
no prazo de 30 (trinta) dias, contados de 28.02.1996, sendo que as
sobras não subscritas foram rateadas proporcionalmente entre os acio-
nistas que postularam tal rateio;
e) cada bônus, respeitada a espécie, dava direito à subscrição de uma
ação, devendo tal número ser ajustado proporcionalmente em caso de
grupamentos, desdobramentos ou distribuição de bonificação em ações;
f) o direito à subscrição de ações poderia ser exercido a qualquer
tempo, de 01.04.2003 a 30.04.2003; e
g) o preço de subscrição foi fixado de R$ 1.000,00 (mil reais) por
lote de mil ações, a ser (i) atualizado de acordo com a variação do
IGP-M apurado pela Fundação Getulio Vargas ou outro índice que o
substituísse, aplicado anualmente e acrescido de juros de 12% (doze
por cento) ao ano calculados pro rata tempore; e (ii) reduzido pelo
valor dos dividendos em dinheiro pagos a partir de janeiro de 1997,
inclusive, os quais seriam reajustados, até a data do exercício do direi-
to à subscrição pelo mesmo critério de correção monetária e juros.
O Conselho de Administração da Companhia Beta aprovou ainda
a fixação de cláusula de ajuste do preço de exercício dos bônus de
subscrição, nos seguintes termos:

"Subscrições em Dinheiro- Caso sejam efetuados aumentos de ca-


pital, por subscrição pública ou privada, até o término do prazo
para o exercício do direito à subscrição, aumentos esses nos quais o

450
preço de subscrição venha a ser inferior ao valor ajustado para
o exercício de subscrição com base nos bônus calculados, no perío-
do de subscrição dessas ações será ajustado para igualar o preço de
subscrição e todas as correções e ajustes subseqüentes partirão desse
novo patamar." (grifamos)

Em 31.03.1999, a Assembléia Geral Extraordinária da Compa-


nhia Beta ratificou aumento de capital da Companhia, efetivado para
atender ao exercício de opções de compra de ações outorgadas a seus
administradores e empregados.
O Consulente sempre entendeu que os aumentos de capital da
Companhia Beta para atender ao Plano de Opção, tendo sido efetuados
por valores inferiores ao preço fixado para o exercício dos bônus de
subscrição, deveriam acarretar a redução deste, em respeito à cláusula
de ajuste estabelecida no momento de criação dos bônus de subscrição.
Segundo nos informa o Consulente, este também era o entendi-
mento do mercado, tanto que os bônus de subscrição vinham sendo
negociados, no mercado secundário, com base na expectativa de que
o seu exercício seria efetuado por preço equivalente ao do aumento de
capital homologado em 31.03.1999.
Todavia, em 04.11.2002, a COMPANHIA BETA publicou Fato
Relevante, informando que, em seu entendimento, "não são relevan-
tes, na determinação do preço de exercício do bônus de subscrição, os
aumentos de capital conseqüentes à emissão de ações decorrentes do
Plano de Opção de Compra de Ações da Companhia".
Posteriormente, em suas Demonstrações Financeiras referentes
ao exercício de 2002, a COMPANHIA BETA reafirmou sua intenção
de não considerar aplicáveis, na determinação do preço de exercício
dos bônus de subscrição, as emissões de ações realizadas no âmbito do
Plano de Opção.
Diante dos fatos acima narrados, indaga o Consulente se o preço
de exercício dos bônus de subscrição da COMPANHIA BETA deve
ser ajustado em decorrência dos aumentos de capital efetivados para
atender ao Plano de Opção de Compra, nos quais foram emitidas
ações a valores inferiores ao preço fixado para o exercício dos direitos
conferidos pelos bônus de subscrição.

11 -O PARECER

A elaboração do presente Parecer, tendo em vista o desenvolvi-


mento sistemático da matéria objeto da Consulta, pressupõe a análise
dos seguintes tópicos:

451
a) das características gerais do bônus de subscrição e das cláusulas
de ajustamento;
b) da qualificação do aumento de capital para atender ao exercício
de opção de compra como subscrição particular de ações;
c) da natureza de título de crédito dos bônus de subscrição;
d) da intenção declarada pela Companhia Beta ao emitir os bônus
de subscrição;
e) da natureza de contrato de adesão da subscrição de valores
mobiliários;
f) da violação ao princípio do full disclosure em função da não
divulgação tempestiva da interpretação adotada pela COMPANHIA
BETA; e
g) das conclusões.

A- DAS CARACTERÍSTICAS GERAIS DO BÔNUS DE


SUBSCRIÇÃO E DAS CLÁUSULAS DE AJUSTAMENTO

Em nosso Direito Societário, o instituto jurídico do bônus de


subscrição é disciplinado pela Lei das S.A. (Lei n° 6.404/1976), cujo
artigo 7 5 dispõe que:

"Art. 75- A companhia poderá emitir, dentro do limite de aumento


do capital autorizado no estatuto (art. 168), títulos negociáveis deno-
minados 'bônus de subscrição'.
Parágrafo único- Os bônus de subscrição conferirão aos seus titula-
res, nas condições constantes do certificado, direito de subscrever a-
ções do capital social, que será exercido mediante apresentação do
título à companhia e pagamento do preço de emissão das ações."

Como se verifica, os bônus de subscrição são títulos negociáveis,


de emissão privativa das companhias de capital autorizado, que confe-
rem a seus titulares o direito de, nas condições previstas no ato de sua
criação, subscrever ações de emissão da companhia, mediante o paga-
mento do respectivo preço.
O grande atrativo deste título, do ponto de vista do investidor,
está no fato de ele conferir o direito de subscrever ações a um preço
previamente estabelecido.
Assim, ao subscrever o bônus, o investidor tem a expectativa de
que, no momento do exercício do título, as ações de emissão da com-
panhia estarão sendo negociadas por valor superior ao preço de exer-

452
cício fixado no ato de emissão do bônus. Caso tal expectativa não se
confirme, o direito conferido pelo bônus não deverá ser exercido, pois
o investidor, em regra, poderá adquirir, no mercado, ações de emissão
da companhia a preços inferiores.
Vale dizer, é da própria natureza do título que a subscrição de
ações a que ele dá direito seja feita por preço inferior ao valor da ação
no momento do exercício.
A fim de proteger os interesses dos acionistas da companhia emis-
sora, a Lei das S.A. expressamente assegura o direito de preferência
para a subscrição dos bônus emitidos. No entanto, conforme mencio-
na o artigo 171, § 3°, da lei societária, tal direito deve ser exercido no
momento da emissão do título, não podendo os acionistas exigir que
lhes seja outorgada nova oportunidade de subscrição preferencial na
época do exercício dos direitos conferidos pelos bônus.
Para a companhia emissor~, os bônus de subscrição podem servir
para a captação de recursos junto a terceiros ou para estimular a colo-
cação de O)..ltros valores mobiliários de sua emissão. Com efeito, nos
termos do artigo 77 da Lei das S.A., os bônus de subscrição podem ser
emitidos para alienação onerosa ou para serem atribuídos, como van-
tagem adicional, aos subscritores de ações ou debêntures da compa-
nhia.
A competência para deliberação sobre a emissão dos bônus de
subscrição, nos termos do artigo 76 da Lei das S.A., pode ser conferida
à Assembléia Geral ou ao Conselho de Administração.
O órgão competente (Assembléia Geral ou Conselho de Adminis-
tração) deve, ao aprovar a emissão, estabelecer todas as condições que
disciplinarão o exercício dos direitos assegurados pelos bônus de subs-
crição. Entre as condições que devem ser fixadas no momento da
criação dos títulos destacam-se, especialmente, o número e a espécie
ou classe de ações em que eles poderão ser convertidos, o prazo para
o exercício do direito e o preço de emissão das ações.
Além destas condições básicas, é também usual que a Assembléia
Geral ou o Conselho de Administração estabeleçam cláusulas de
ajustamento, isto é, disposições que visam a proteger os interesses dos
titulares dos bônus contra eventos posteriores que possam afetar os
direitos assegurados por tais títulos.
Assim, por exemplo, podem ser estabelecidas regras para aumen-
tar o número de ações a cuja subscrição os bônus dão direito em caso
de aumento de capital da companhia. Outra espécie de cláusula pro-
tetora comumente utilizada é aquela que subordina a realização de
determinadas operações societárias, como incorporação, fusão e cisão,

453
à aprovação dos titulares de bônus de subscrição, à semelhança do
direito que a lei confere aos debenturistas (artigo 231 da Lei das
S.A.).
Também é perfeitamente usual, sendo, inclusive, expressamente
mencionada na doutrina 2, a previsão de redução do preço de exercício
do bônus na hipótese de emissão de ações a valor inferior ao preço de
exercício originalmente estabelecido, como ocorreu no caso presente.
De fato, o Conselho de Administração da Companhia Beta estabe-
leceu cláusula de ajustamento, nos termos da qual, na hipótese de
aumento de capital, por subscrição pública ou privada, em que o preço
de emissão fosse inferior ao valor ajustado para o exercício dos bônus,
seria este ajustado para igualar o referido preço de emissão.
Ficou, portanto, inequivocamente assegurado aos titulares dos bô-
nus de subscrição o direito ao ajustamento do preço de exercício, na
hipótese de aumento de capital, seja mediante emissão pública, seja
mediante emissão privada de novas ações, em que o preço de emissão
fosse inferior ao valor convencionado para o exercício dos direitos
conferidos pelo bônus.
Havendo o aumento de capital, na hipótese acima mencionada,
mediante subscrição pública ou privada de novas ações, dispara-se
automaticamente o gatilho do ajustamento do preço. Conseqüente-
mente, os detentores do bônus de subscrição passam a ter direito
adquirido a subscrever ações pelo valor ajustado.
Ou seja, o direito ao ajuste do preço de exercício passa a integrar
o patrimônio dos proprietários do bônus, não podendo, assim, ser
negado pela companhia emissora.

B- DA QUALIFICAÇÃO DO AUMENTO DE CAPITAL


PARAATENDERAO EXERCÍCIO DE OPÇÃO DE COMPRA
COMO SUBSCRIÇÃO PARTICULAR DE AÇÕES

A Lei das S.A., em seu artigo 168, § 3°, estabelece que, dentro do
limite de capital autorizado, o estatuto pode prever que a companhia,
de acordo com plano aprovado pela assembléia geral, outorgue opção
de compra de ações a seus administradores ou empregados, ou ainda
a pessoas naturais que prestem serviços à companhia ou à sociedade
sob seu controle.

2 MARIA LÚCIA DE ARAÚJO CINTRA. Aspectos jurídicos do bônus de subscri-


ção. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980. p. 150.

454
A opção de compra de ações constitui basicamente um direito, de
natureza contratual, que legitima o seu titular a subscrever, nas condi-
ções aprovadas pela assembléia geral, ações de emissão da companhia,
pagando o preço fixado no momento da outorga da opção 3 .
Como se verifica, da mesma forma que ocorre com o bônus de
subscrição, a opção de compra de ações também assegura ao seu titu-
lar o direito de subscrever futuramente ações da companhia por um
preço previamente estabelecido.
Constituindo a possibilidade de subscrever ações a um valor pre-
viamente determinado o grande atrativo das opções de compra, não
faria sentido que o preço das ações emitidas para atender ao plano de
opções fosse fixado apenas no momento do exercício do direito.
Isto não significa, contudo, que o preço das ações emitidas em
decorrência do exercício das opções de compra possa ser estabelecido
aleatoriamente, pois, se assim fosse, a outorga das opções causaria
diluição injustificada da participação dos acionistas da companhia.
Com efeito, para evitar tal diluição injustificada, a fixação do pre-
ço de emissão das ações, como em qualquer aumento de capital, deve
levar em consideração os parâmetros estabelecidos no artigo l 70 da
Lei das S .A. A única diferença em relação aos demais aumentos de
capital é que tal preço deve ser fixado no momento em que as opções
forem outorgadas, e não na época em que as ações a cuja subscrição ele
dá direito forem emitidas. 4
A outorga das opções de compra visa a permitir que os administra-
dores e empregados da companhia participem, em conjunto com os
acionistas, da valorização do patrimônio social.
Ou seja, a opção de compra representa uma contrapartida, confe-
rida pela sociedade, aos serviços prestados por pessoas que, em regra,
contribuem para valorizar o patrimônio do próprio acionista.
Neste sentido, a Instrução CVM no 323/2000 expressamente es-
tabelece que a instituição do plano de opções deve buscar o compro-
metimento do administrador ou do empregado com a obtenção de
resultados pela companhia, sob pena de configurar abuso de poder de
controle:

3 PAULO CEZAR ARAGÃO. "Opções de Compra de Ações e Bônus de Subscri-


ção". Revista dos Tribunais. v. 631, p. 63. maio. 1988.
4 MARIA LÚCIA DE ARAÚJO CINTRA. Aspectos jurídicos do bônus de subscri-
ção. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980. p. 179/180.

455
"Art. 1°- São modalidades de exercício abusivo do poder de controle
de companhia aberta, sem prejuízo de outras previsões legais ou regu-
lamentares, ou de outras condutas assim entendidas pela CVM:
(. ..)
XII- a instituição de plano de opção de compra de ações, para
administradores ou empregados da companhia, inclusive com a utili-
zação de ações adquiridas para manutenção em tesouraria, deixando
a exclusivo critério dos participantes do plano o momento do exercício
da opção e sua venda, sem o efetivo comprometimento com a ob-
tenção de resultados, em detrimento da companhia e dos acionistas
minoritários." (grifamos)

Assim, para que a instituição do plano de opções seja legítima é


necessário que o preço de emissão das ações a serem subscritas pelo
administrador ou empregado corresponda, no momento da outorga da
opção, ao efetivo valor econômico da companhia, apurado de acordo
com um dos critérios mencionados no artigo 170 da Lei das S.A.
Dessa forma, se, no momento do exercício da opção, o valor eco-
nômico da Companhia for superior ao fixado na data da outorga do
direito, o administrador ou empregado estará recebendo a justa con-
trapartida pela valorização do patrimônio social.
Por outro lado, caso o preço de exercício seja fixado arbitraria-
mente, a possibilidade de subscrição por um valor previamente esta-
belecido constituirá benefício indevido para o titular da opção, na
medida em que o resultado por ele auferido em tal negócio não terá
qualquer relação com a valorização que os serviços por ele prestados
devem acarretar para a Companhia.
Portanto, não há dúvida de que a determinação do preço de emis-
são das ações decorrentes do exercício das opções de compra de ações
está sujeita à observância dos critérios estabelecidos no artigo l 70 da
Lei das S.A.
No caso presente, tal regra foi devidamente observada pela Com-
panhia Beta, visto que, conforme aprovado pela Assembléia Geral da
Companhia, o preço de exercício das opções não poderia ser inferior
a 90% (noventa por cento) do valor de cotação em bolsa de valores das
ações de emissão da companhia no momento da outorga da opção.
De fato, um dos parâmetros previstos no artigo l 70 da lei societá-
ria é o valor de cotação em bolsa de valores, ao qual a lei expressamen-
te autoriza seja aplicado um deságio para que seja fixado o preço de
emissão das ações.

456
Vale ainda mencionar que, no caso presente, é inequívoco que o
exercício das opções de compra ocorreu mediante efetivo aumento de
capital da Companhia, com a emissão de novas ações, as quais destina-
vam-se a ser subscritas pelos titulares das opções de compra.
Com efeito, a Assembléia Geral Extraordinária de 31.03.1999
expressamente deliberou "ratificar os aumentos do capital social
(. .. ) deliberados pelas reuniões do Conselho de Administração (. . .),
que resultaram na emissão conjunta de 41.968.126 ações preferen-
ciais (. . .) para atender ao Plano de Opção de Compra de Ações apro-
vado pela Assembléia Geral de 26.1 0.1999" (grifamos).
Ou seja, os titulares das opções, ao exercê-las, não estavam com-
prando ações já existentes e mantidas em tesouraria, mas subscreven-
do novas ações emitidas em aumento de capital, dentro do limite do
capital autorizado.
Portanto, os aumentos de capital da Companhia Beta ratificados
na Assembléia Geral Extraordinária de 31.03.1999, apesar de even-
tualmente submetidos a algumas regras específicas, constituíram au-
mentos de capital por subscrição, na medida em que se efetivaram
mediante a subscrição de novas ações, tendo sido, inclusive, observa-
dos os parâmetros estabelecidos no artigo 170 da Lei das S.A.
Ora, a cláusula de ajustamento estabelecida para os bônus de subs-
crição da Companhia Beta previa que o preço de exercício dos referi-
dos bônus seria ajustado em função de "aumentos de capital por subs-
crição privada ou pública".
Assim, cumpre analisar se a subscrição de capital resultante do
exercício das opções de compra caracteriza-se como privada ou públi-
ca ou se, eventualmente, não se enquadra em nenhuma destas duas
categorias.
A classificação entre aumentos de capital por subscrição pública e
particular tem em vista, fundamentalmente, os destinatários das a-
ções emitidas. 5
Vale dizer, se forem considerados em função das pessoas a que se
destinam as ações emitidas, os aumentos de capital devem ser classifi-
cados como sendo por subscrição pública ou por subscrição privada.
A subscrição pública caracteriza-se, basicamente, pelo fato de ser
dirigida a pessoas indeterminadas, não individualizadas 6 .

5 NELSON EIZIRIK. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro:


Renovar, 1992. p. 17.
6 MODESTO CARVALHOS A. Oferta Pública de Aquisição de Ações. Rio de J anei-
ro: IBMEC, 1979. p. 23.

457
Ou seja, no momento em que a subscrição é ofertada há uma
indeterminação dos destinatários; qualquer pessoa pode aceitar a pro-
posta, individualizando-se apenas no momento da aceitação. Há por-
tanto, na subscrição pública, oferta dirigida à generalidade de indiví-
duos.
Em conseqüência, pode-se afirmar que, na subscrição pública, os
destinatários não mantêm qualquer vínculo com a companhia emis-
sora dos títulos.
Portanto, a subscrição pública de valores mobiliários constitui
aquela destinada a investidores indeterminados, que não possuem re-
lação direta com a companhia emissora.
A subscrição privada, por sua vez, efetiva-se perante um número
reduzido de pessoas que, por estarem, de alguma forma, vinculados à
companhia, têm acesso às informações sobre tal companhia, conforme
se deduz da Exposição de Motivos da Lei no 6.385/1976:

11
Apenas a emissão pública (isto é, a emissão oferecida publica-
(. • .)

mente) está sujeita ao registro. Não se aplica essa norma à emissão


particular, como é o caso da emissão negociada com um grupo
reduzido de investidores, que já tenham acesso ao tipo de infor-
mação que o registro visa divulgar. Se estes, porém, adquirirem a
emissão com o fim de colocar no mercado, mediante oferta pública,
estão sujeitos às mesmas restrições que a companhia emissora". (gri-
famos)

Dessa forma, a diferença fundamental entre a subscrição pública


e a particular encontra-se na localização dos supridores dos novos
recursos para o patrimônio social: se entre o público em geral ou entre
pessoas que mantenham vínculo direto com a companhia.
Em princípio, as pessoas que constituem os destinatários das
subscrições privadas, por estarem vinculadas à companhia, são os pró-
prios acionistas, que adquirem os valores mobiliários por ela emitidos
no exercício de seu direito de preferência.
No entanto, esta não é uma regra absoluta; desde que os valores
mobiliários não se destinem ao público em geral, mas a serem subscri-
tos por pessoas relacionadas à companhia emissora, ainda que não
acionistas, caracteriza-se a subscrição como privada.
Neste sentido, a doutrina expressamente menciona que o aumen-
to de capital por subscrição privada pode ter por destinatários outras

458
pessoas ligadas à companhia emitente, não apenas os acionistas no
exercício de seu direito de preferência: 7

"Um outro critério de classificação é o que distingue os aumentos de


capital tendo em vista os destinatários das ações emitidas; se as ações
forem destinadas a subscrição no círculo restrito dos acionistas, ces-
sionários do direito de preferência ou pessoas ligadas à companhia
emitente, o aumento de capital é qualificado como particular, em
oposição aos aumentos por subscrição pública, nos quais a colocação
das ações se faz com o auxílio de intermediários e dos meios de comu-
nicação, junto ao mercado de capitais." (grifamos)

Logo, o conceito jurídico de aumento de capital por subscrição


privada refere-se aos casos em que as ações emitidas destinam-se a um
grupo reduzido e determinado de pessoas, que mantenham vínculo
direto com a companhia emissora.
Ora, além dos acionistas, também os administradores e emprega-
dos titulares das opções de compra possuem, evidentemente, vínculo
direto com a companhia emissora.
Diante disso, não há dúvida de que a emissão de novas ações para
atender ao exercício das opções de compra outorgadas a administra-
dores e empregados da Companhia configura aumento de capital por
subscrição privada de ações, não qualquer outra modalidade especial
de aumento de capital.
Portanto, os aumentos de capital homologados pela Assembléia
Geral da Companhia Beta de 31.03.1999, tendo sido efetivados por
valores inferiores ao preço de exercício originalmente estabelecido
para os bônus de subscrição, devem ser levados em consideração para
efeito de ajustar o preço pelo qual os direitos conferidos pelos referi-
dos bônus de subscrição podem ser exercidos.

C- DA NATUREZA DE TÍTULOS DE CRÉDITO DOS


BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO

Conforme mencionado, os bônus de subscrição constituem títulos


que conferem a seus detentores o direito de subscrever ações da com-

7 MAURO RODRIGUES PENTEADO. Aumentos de Capital das Sociedades Anô-


nimas. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 62.

459
panhia emissora, nas condições previamente estabelecidas na delibe-
ração da Assembléia Geral ou do Conselho de Administração que
aprovou a sua criação 8 .
Ao direito subjetivo do proprietário do bônus de subscrever ações
de emissão da companhia, corresponde, por outro lado, o dever jurídi-
co desta, por ocasião do exercício do direito, de proceder ao aumento
de capital para emitir as ações correspondentes e entregá-las ao deten-
tor do título.
Ou seja, o bônus de subscrição representa, inequivocamente, um
direito de crédito de seu titular, consistente no direito de exigir a
prestação do devedor, nele especificada.
Outra característica essencial do bônus de subscrição é a negocia-
bilidade, conforme expressamente previsto no artigo 75, caput, da Lei
das S.A.
O bônus de subscrição constitui, assim, título cuja finalidade é
corporificar um direito de crédito, assegurando que tal direito possa
ser livremente negociado, em condições de certeza e segurança jurí-
dica.
Diante de tais características, a doutrina é unânime em afirmar
que o bônus de subscrição possui natureza jurídica de título de cré-
dito.9
A propósito, vale ressaltar que o fato de ser caracterizado como
título de legitimação, na medida em que legitima o seu proprietário a
tornar-se acionista da companhia, não exclui a sua natureza de título
de crédito, conforme já mencionado por um dos subscritores do pre-
sente Parecer: 10

"Acolhe-se o entendimento de tratar-se de título de legitimação, ex-


pressão, aliás, que utilizamos em várias oportunidades. No entanto,
essa legitimação, na espécie, é de função, que cabe a todos os
títulos de crédito. Com efeito, os bônus de subscrição legitimam o seu

8 MAURO BRANDÃO LOPES. S.A.: títulos e contratos novos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1978. p. 85.
9 WALDIRIO BULGARELLI. Questões de Direito Societário. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1983. p. 60. MARIA LÚCIA DE ARAÚJO CINTRA. Aspectos jurídi-
cos do bônus de subscrição. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980. p. 57.
MAURO BRANDÃO LOPES. S.A.: títulos e contratos novos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978. p. 78. JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO. Regime Jurí-
dico do Capital Autorizado. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 119.
10 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei dasS.A. v. 2. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 17/18.

460
titular a contratar a subscrição de ações emitidas pela companhia.
Tal função é idêntica à dos títulos de crédito representativos de
valor monetário ou de mercadorias, que também legitimam os seus
titulares, respectivamente, a receber o valor monetário ou as mercado-
rias expressos nos títulos representativos de tais direitos.
(. ..)
O fato de não ser representativo de um crédito monetário, como
a cambial, não lhe tira a natureza de título de crédito. Se assim
fosse, não seriam títulos de crédito os antigos certificados de depósito
de ações, nem as ora extintas ações ao portador, ou os títulos repre-
sentativos de mercadorias, nem aqueles que representam direitos de
participação. " (grifamos)

Da mesma forma, tampouco o fato de o bônus de subscrição não


ser representado por um certificado, visto que, por força do artigo 78
da Lei das S .A., com a redação dada pela Lei no 9.4 57I 199 7, deve
revestir-se necessariamente da forma nominativa ou escriturai, retira-
lhe a natureza de título de crédito.
Isto porque, conforme refere a doutrina, o objetivo essencial dos
títulos de crédito é conferir segurança e certeza à circulação dos direi-
tos por eles representados 11 .
Ora, a incorporação em um certificado constitui apenas o expe-
diente, consagrado pelo ordenamento jurídico, para preservar tal se-
gurança e certeza na circulação do direito, evitando que mais de uma
pessoa possa se declarar titular do direito.
Em se tratando de títulos nominativos ou escriturais, a mesma
segurança é garantida pela inscrição do nome do efetivo proprietário
nos livros da companhia emissora ou da instituição depositária. Com
efeito, o fato de a transferência do direito depender de ato de compe-
tência de pessoa distinta do titular evita que este possa transferi-lo a
duas pessoas diferentes, permitindo concluir que o adquirente está
protegido por um regime de circulação tão seguro quanto se o título
estivesse representado por um certificado. 12
Portanto, os bônus de subscrição, assim como os demais títulos
nominativos ou escriturais, possuem inegável natureza jurídica de tí-
tulo de crédito.

ll WALDIRIO BULGARELLI. Questões de Direito Societário. São Paulo: Revista


dos Tribunais, 1983. p. 45.
12 ALFREDO LAMY FILHO e JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A.
v. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 59/60.

461
Em função de tal natureza, os bônus de subscrição outorgam a
seus titulares direito autônomo quanto ao crédito neles declarado.
Isto significa que o direito contido no título apresenta autonomia em
relação ao negócio que lhe deu causa, ou seja, cada aquisição do bônus
é uma aquisição a título originário, independente das relações entre a
companhia emissora e os anteriores detentores do título. 13
A autonomia constitui característica essencial para garantir a cer-
teza e segurança jurídica na circulação do direito incorporado ao títu-
lo, visto que coloca o adquirente de boa-fé a salvo das exceções even-
tualmente oponíveis por possuidores anteriores do título.
O bônus de subscrição também apresenta a característica da lite-
ralidade, ou seja, o conteúdo, a extensão e as condições de exercício
do direito devem estar expressamente fixadas no título ou na delibe-
ração que aprovou a sua emissão.
O princípio da literalidade significa que o direito representado
pelo título somente pode ser exercido com base nos elementos ex-
pressamente constantes próprio título. Daí poder-se afirmar que "só
existe para o mundo cambiário o que está expresso no título". 14
No que se refere aos bônus de subscrição, em face da inexistência
dos certificados, as características e condições que devem regular o
exercício dos direitos por eles conferidos devem estar literalmente
contidas na deliberação do órgão societário (Assembléia Geral ou
Conselho de Administração) que aprovou a sua emissão.
Em decorrência do princípio da literalidade, o detentor do bônus
tem o direito de exigir da companhia exatamente o que está mencio-
nado na deliberação que aprovou a criação do título, não podendo esta
pretender restringir as condições que estão expressas na referida deli-
beração.
Em função de sua natureza jurídica de título de crédito e, conse-
qüentemente, da necessidade de se conferir certeza e segurança à sua
circulação, não se aplicam aos bônus de subscrição princípios inter-
pretativos próprios de negócios jurídicos bilaterais, que se caracteri-
zam pela existência de uma relação direta entre as partes.
De fato, a fim de assegurar a necessária segurança à circulação do
título, as condições previstas na deliberação que aprovou a emissão
dos bônus de subscrição devem ser interpretadas literalmente, sem se

13 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei das S.A. v. 2. São Paulo: Saraiva,


2003. p. 18.
14 LUIZ EMYGDIO F. DA ROSA JR. Títulos de Crédito. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. p. 56.

462
restringir ou estender o significado das disposições que regulam o
exercício do direito.
Neste sentido, ressalta a doutrina que os direitos conferidos pelos
bônus de subscrição somente podem ser exercidos nas condições que
neles constarem, não havendo "o que interpretar ou o que aclarar",
pois as "condições devem estar claramente fixadas para um entendi-
mento literal". 15
Ora, a cláusula de ajustamento estabelecida pelo Conselho de Ad-
ministração da Companhia Beta referiu-se, indistintamente, à realiza-
ção de "aumentos de capital por subscrição pública ou privada", sem
excepcionar expressamente aqueles efetuados para atender ao plano
de opção de compra de ações.
Em vista disso, deve-se concluir que todo e qualquer aumento de
capital aprovado pela Companhia, independentemente de eventual-
mente estar submetido a regras específicas, enseja a aplicação da refe-
rida cláusula de ajustamento.
Entendimento em sentido diverso submeteria o exercício dos di-
reitos conferidos pelos bônus de subscrição a uma condição não ex-
pressa no título, contrariando o princípio da literalidade e, conseqüen-
temente, prejudicando a certeza e a segurança jurídica que a circula-
ção dos referidos bônus deve apresentar.
Portanto, não há dúvida que, dada a natureza jurídica dos bônus de
subscrição e os termos constantes da deliberação do Conselho de Ad-
ministração da Companhia Beta de 14.02.1996, os aumentos de capi-
tal realizados para atender ao Plano de Opção devem ser levados em
consideração para ajustar o preço de exercício dos bônus.

D- DA INTENÇÃO DECLARADA PELA COMPANHIA


BETA AO EMITIR OS BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO

A conclusão de que os aumentos de capital para atender ao Plano


de Opção de Compra dão ensejo ao ajuste do preço de exercício dos
bônus de subscrição da COMPANHIA BETA deve prevalecer ainda
que, desconsiderando a natureza de título de crédito autônomo elite-
ral de tais bônus, as disposições que regulam o exercício dos direitos
por eles conferidos sejam interpretadas tendo em vista, primordial-
mente, a intenção da companhia emissora.

15 CLÁUDIO KOHLER. "Bônus de Subscrição". Revista dos Tribunais. v. 641. p.


102. março. 1989.

463
A propósito, ressalte-se que a intenção das partes em determinado
negócio jurídico não pode ser simplesmente presumida, com base em
considerações genéricas, que não guardem qualquer relação com os
elementos existentes no caso concreto.
De fato, a verdadeira intenção das partes deve ser apurada, funda-
mentalmente, mediante a leitura sistemática de todas as disposições
contidas no negócio em questão, isto é, a partir de elementos objeti-
vos, encontrados no próprio ato por elas praticado.
Neste sentido, a real intenção da Companhia Beta, ao emitir os
bônus de subscrição, está expressamente evidenciada na própria Ata
de Reunião do Conselho de Administração de 14.02.1996, in verbis:

"Entende a administração relevante dar aos atuais acionistas a


garantia de que, na hipótese de aumentos de capital por subscrição
em um futuro não imediato, terão os mesmos a faculdade de man-
ter a sua participação no capital social, para o que estarão sendo
emitidos bônus de subscrição, na forma dos artigos 75 e seguintes da
Lei no 6.404/76 e do art. 9°, § 5°, inciso XI do estatuto social, nos
termos abaixo:" (grifamos)

Como se verifica, o Conselho de Administração da Companhia


Beta declarou textualmente que o objetivo dos bônus de subscrição
foi conferir aos então acionistas da Companhia a faculdade de preser-
var sua participação no capital social.
Ou seja, a finalidade da emissão dos bônus de subscrição, confor-
me reconhecido pelo Conselho de Administração, era permitir que,
diante de futuros aumentos de capital, os acionistas da Companhia
tivessem condições de manter o mesmo percentual de participação
acionária.
Ora, o aumento de capital implica, por definição, a emissão de
novas ações pela companhia e, conseqüentemente, acarreta a redução
da participação proporcional dos antigos acionistas, a não ser que estes
exerçam o direito de preferência à subscrição das ações emitidas.
Assim, qualquer aumento de capital da Companhia Beta, inclusive
o decorrente do exercício de opções de compra, poderia vulnerar a
participação dos antigos acionistas da Companhia.
A respeito, note-se que o artigo 171, § 3°, da Lei das S.A. expres-
samente excluiu o direito de preferência para os antigos acionistas nos
aumentos de capital resultantes do exercício de opções de compra de
ações, tanto quando da outorga da opção, quanto no momento do seu
exercício.

464
Dessa forma, os aumentos de capital aprovados para atender ao
exercício de opções de compra acarretam, necessariamente, a redução
da participação percentual dos antigos acionistas, justamente o fato
que a emissão dos bônus de subscrição pretendia evitar.
Nos demais casos de aumento de capital, ao contrário, os acionis-
tas podem manter sua participação no capital social, bastando, para
tanto, que exerçam o direito de preferência para a subscrição das
ações emitidas.
Em vista disso, não faria sentido a emissão de bônus de subscrição
com a finalidade de proteger os acionistas contra a redução de sua
participação causada apenas pelos aumentos de capital em que hou-
vesse previsão de direito de preferência. De fato, nestes casos, os
acionistas já estão, em regra, automaticamente protegidos contra a
perda de participação proporcional, em função da garantia do exercí-
cio da subscrição preferencial.
Pode-se inferir, portanto, que o Conselho de Administração da
Companhia Beta, ao pretender proteger a participação dos acionistas
da Companhia contra a redução que poderia ser causada por futuros
aumentos de capital, estava levando em consideração todas as hipóte-
ses de aumento de capital, especialmente aqueles decorrentes do
exercício das opções de compra de ações.
Ocorre que, para tornar efetiva a proteção conferida aos acionis-
tas, era necessário que o preço de exercício dos bônus fosse equivalen-
te ao preço de emissão cobrado nos futuros aumentos de capital da
Companhia. Caso contrário, os antigos acionistas, titulares dos bônus
de subscrição, seriam igualmente prejudicados, na medida em que,
para manter o seu percentual de participação acionária, acabariam
obrigados a pagar um valor maior do que os subscritores dos futuros
aumentos de capital.
Assim, o Conselho de Administração da Companhia Beta estabe-
leceu a cláusula de ajustamento do preço de exercício dos bônus de
subscrição, com o objetivo de proteger a integridade dos direitos de-
tentores de tais títulos.
Nos termos da cláusula de ajustamento, havendo aumento de
capital da Companhia, por subscrição pública ou privada, em que o
preço de emissão fosse inferior ao preço de exercício do bônus, seria
este ajustado para igualar o referido preço de emissão.
A referida cláusula de ajustamento conferia proteção adicional aos
antigos acionistas, pois impedia que, ao exercerem os direitos atribuí-
dos pelos bônus para manter intacta sua participação acionária, tais
acionistas fossem obrigados a pagar valor superior ao cobrado daqueles

465
que poderiam, com a subscrição de novas ações, causar a redução de
sua participação no capital social.
Ora, se a emissão dos bônus de subscrição tinha por finalidade pro-
teger os acionistas da Companhia Beta contra a redução de sua participa-
ção acionária causada por qualquer futuro aumento de capital, especial-
mente aqueles efetuados para atender ao plano de opções de compra, é
evidente que a proteção adicional conferida pela cláusula de ajustamen-
to também abrangia esta hipótese de aumento de capital.
De fato, não faria sentido que o direito de subscrição assegurado
pelo bônus protegesse seus titulares contra todos os casos de aumento
de capital, mas a proteção adicional conferida pela cláusula de ajuste
do preço de exercício de tal direito ficasse restrita a apenas alguns
destes casos.
Portanto, considerando a intenção declarada pelo Conselho de
Administração da Companhia Beta na deliberação que aprovou a
emissão dos bônus de subscrição, reafirma-se a conclusão de que os
aumentos de capital efetivados para atender ao exercício das opções
de compra de ações acarretam o ajuste do preço de exercício dos
referidos bônus.

E- DA NATUREZA DE CONTRATO DE ADESÃO DA


SUBSCRIÇÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS

A subscrição de valores mobiliários possui inegável natureza de


contrato firmado entre o subscritor e a companhia emissora ou entre
o subscritor e os fundadores, na hipótese de subscrição no momento
de constituição da sociedade.
De fato, a assinatura da lista ou do boletim de subscrição equivale
à celebração de um contrato, pelo qual o subscritor adere à proposta
formulada pela sociedade. 16
Assim, ao emitir os bônus de subscrição, a sociedade oferece o
contrato de subscrição, que se aperfeiçoará com a aceitação pelos
subscritores e o pagamento do preço de emissão estipulado pela com-
panhia.
Ou seja, a deliberação de emissão do valor mobiliário e o chamado
à subscrição constituem a oferta e a assinatura do boletim de subscri-

16 MAURO RODRIGUES PENTEADO. Aumentos de Capital das Sociedades Anô-


nimas. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 216.

466
ção e o pagamento do preço representam a aceitação, concluindo,
dessa forma, o acordo de vontades entre as partes.
Note-se, ademais, que o contrato de subscrição constitui verda-
deiro contrato de adesão, isto é, aquele em que as cláusulas contra-
tuais não são livremente discutidas entre as partes, mas previamente
estabelecidas por um dos convenentes, cabendo ao outro contratante
apenas aceitá-las em bloco.
Com efeito, todas as condições do negócio de subscrição de valo-
res mobiliários são fixadas unilateralmente pela companhia, estando
expressas na deliberação do órgão social competente para aprovar a
emissão. Aos subscritores cabe somente aceitar ou rejeitar in totum as
condições previamente estabelecidas.
A deliberação que aprova as condições da emissão de valores mo-
biliários deve ser completa e intangível, não podendo os subscritores
discutir ou alterar as condições fixadas pela companhia. Isto porque
uma das características básicas dos valores mobiliários é justamente o
fato de conferirem idênticos direitos a todos os seus titulares, o que,
aliás, viabiliza a sua negociação em massa.
Verifica-se, assim, nos contratos de subscrição, a característica da
uniformidade, essencial aos contratos de adesão, posto que todos os
subscritores estão sujeitos às mesmas condições, sendo invariável o
conteúdo de suas relações contratuais com a companhia emissora.
A natureza de contrato de adesão dos contratos de subscrição já
foi expressamente reconhecida tanto pela doutrina 17 , como pela pró-
pria CVM, conforme se verifica do Parecer/CVM/SJU/No 12/96:

"Analisemos, pois o contrato que nos é submetido. Trata-se de instru-


mento preparado por uma das partes, sem qualquer possibilida-
de de discussão ou de negociação pela outra, a qual resta somen-
te a opção de assinar ou não.
Se o fizer, o subscritor aderirá à vontade do outro contraente,
submetendo-se, como parece ser o caso, a algumas das chamadas
'cláusulas vexatórias', conforme veremos melhor adiante.
Estamos, pois diante de um contrato de adesão." (grifamos)

A importância de se caracterizar o contrato de subscrição como de


adesão resulta das regras específicas que devem nortear a interpreta-
ção de tal modalidade contratual.

17 MARIA LÚCIA DE ARAÚJO CINTRA. Aspectos jurídicos do bônus de subscri-


ção, ob cit ..

467
Com efeito, a doutrina sempre reconheceu a existência de um
regime próprio de interpretação para os contratos de adesão, de acor-
do com o qual as suas disposições, em caso de dúvida, devem ser
interpretadas contra aquele que as estipulou. 18
Vale dizer, tendo em vista que as cláusulas foram estipuladas por
apenas uma das partes, sem que a outra pudesse ter participado da
elaboração contratual, aplica-se aos contratos de adesão o princípio in
dubio contra stipulatorem, isto é, as disposições contratuais, em caso
de dúvida, devem ser interpretadas em favor do contratante que se
obrigou por adesão. 19
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o referido
princípio passou a ter, em nosso ordenamento jurídico, status de nor-
ma de direito positivo, conforme se verifica do disposto no artigo 423
do novo diploma:

"Art. 42 3 - Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambí-


guas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais fa-
vorável ao aderente." (grifamos)

Diante da existência de norma impositiva, o aplicador do direito


está obrigado a, em caso de dúvida, adotar a interpretação da cláusula
contratual que seja mais favorável aos aderentes.
Na presente hipótese, é inequívoco que, ao subscreverem os bô-
nus emitidos pela Companhia Beta, os investidores aderiram a um
contrato cujas cláusulas haviam sido prévia e unilateralmente fixadas
pela Companhia.
Além disso, é evidente a existência de controvérsia acerca do ver-
dadeiro sentido da cláusula de ajustamento do preço de exercício dos
bônus de subscrição. A própria Companhia expressamente suscitou
tal controvérsia ao elaborar consulta à CVM para confirmar o enten-
dimento por ela adotado.
Assim, apesar de entendermos ser claro o alcance da referida cláu-
sula de ajustamento, a Companhia está sustentando, ao submeter a
matéria à CVM, que a redação de tal cláusula é ambígua, dando vez a
interpretações contraditórias.
Diante disso, por força do princípio expresso no artigo 423 do
Código Civil, deve-se adotar a interpretação mais favorável aos titula-

18 ARNOLDO WALD. "Do Contrato de Adesão no Direito Brasileiro". Revista de


Informação Legislativa. v. 66. p. 265. abr./jun. 1980.
19 ORLANDO GOMES. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 126.

468
res dos bônus de subscrição, qual seja, a de que quaisquer aumentos
de capital por subscrição pública ou privada, inclusive aqueles aprova-
dos para atender ao plano de opções de compra, devem ser levados em
consideração para ajustar o preço de exercício dos aludidos bônus.

F- DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO FULL


DISCLOSURE EM FUNÇÃO DA NÃO DIVULGAÇÃO
TEMPESTIVA DA INTERPRETAÇÃO ADOTADA PELA
COMPANHIA BETA

Por fim, vale salientar que a interpretação sustentada pela COM-


PANHIA BETA, ainda que fosse juridicamente admissível, o que so-
mente se admite a título de argumentação, não poderia prevalecer,
uma vez que não foi divulgada ao mercado quando da emissão dos
bônus de subscrição.
A respeito, note-se que, além de terem natureza de título de cré-
dito, os bônus de subscrição, nos termos expressos do artigo zo, inciso
I, da Lei no 6.385/1976, constituem valores mobiliários, ou seja, títu-
los emitidos em série e passíveis de negociação no mercado de capi-
tais. 20
Os bônus de subscrição apresentam, assim, as características fun-
damentais dos valores mobiliários, quais sejam, uniformidade nos di-
reitos conferidos a seus titulares e possibilidade de serem negociados
em massa no mercado secundário.
A possibilidade de negociação em massa implica a necessidade de
proteção legal e administrativa dos titulares dos bônus de subscrição.
Vale dizer, tendo em vista o interesse público envolvido na prote-
ção dos direitos dos investidores, o poder estatal deve disciplinar o
mercado de valores mobiliários, a fim de garantir a certeza e a seguran-
ça jurídica da circulação de tais títulos.
Neste sentido, a Lei no 6.385/1976 atribui à CVM poderes para pro-
teger os investidores e assegurar que estes tenham acesso a todas as
informações sobre os valores mobiliários transacionados no mercado.
Para preservar a segurança jurídica na circulação dos valores mobi-
liários, deve a CVM garantir o cumprimento do princípio do full dis-
closure, de acordo com o qual as companhias cujos títulos sejam nego-

20 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. llio de Janeiro:


Renovar, 1998. p. 140.

469
ciados no mercado de capitais estão obrigadas a promover a ampla
divulgação de todos os fatos que possam afetar seus negócios ou os
valores mobiliários de sua emissão.
A observância do princípio do full disclosure assegura o regular
funcionamento do mercado de capitais. Com efeito, de acordo com a
teoria econômica, em um mercado eficiente, o preço dos valores mo-
biliários deve refletir todas as informações publicamente disponíveis a
respeito da companhia emissora. 21
Assim, se alguma informação relevante deixa de ser divulgada, ela
não estará refletida no preço de negociação do valor mobiliário. Con-
seqüentemente, os investidores que transacionaram com tal título so-
frerão prejuízos quando a informação omitida vier a público, pois,
nesse momento, a cotação do valor mobiliário deverá ser ajustada para
refletir a nova informação.
Para evitar a ocorrência de tais prejuízos, a divulgação de informa-
ções pelas companhias abertas deve ser, nos termos da Nota Explica-
tiva CVM no 28/1984, "imediata, precisa e completa".
Ou seja, as condições que restrinjam o exercício de direitos confe-
ridos por valores mobiliários emitidos por companhias abertas devem
sempre ser informadas de forma clara e precisa, de modo a não susci-
tar qualquer espécie de ambigüidade e, por conta disso, causar prejuí-
zos aos investidores na negociação com tais valores mobiliários.
No caso presente, a informação de que a COMPANHIA BETA
não consideraria os aumentos de capital decorrentes do plano de op-
ções de compra para efeitos do ajuste do preço de exercício dos bônus
de subscrição era, evidentemente, de fundamental importância para
os investidores que adquiriram ou pretendiam adquirir tais títulos.
No entanto, o entendimento ora adotado pela Companhia não foi
objeto de divulgação ao mercado, nem quando da emissão dos bônus
de subscrição, no ano de 1996, nem após a Assembléia Geral de
31.03.1999, que homologou os aumentos de capital para atender ao
exercício das opções de compra.
Note-se que, segundo nos foi informado, após a data da referida
Assembléia Geral, os bônus de subscrição, em consonância com o
princípio de que a cotação deve refletir as informações publicamente
disponíveis, passaram a ser negociados no mercado secundário por

21 NELSON EIZIRIK. Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais. Foren-


se: Rio de Janeiro, 1987. p. 63.

470
valor que incorporava a expectativa de que seria aplicada a cláusula de
ajustamento estabelecida pelo Conselho de Administração da Com-
panhia Beta.
Contudo, a Companhia passou mais 3 (três) anos e meio sem
prestar qualquer informação pública a respeito do seu entendimento
sobre a aplicação da cláusula de ajustamento dos bônus de subscrição.
Tal omissão somente foi suprida em novembro de 2002, quando falta-
vam menos de 6 (seis) meses para o início do prazo de exercício dos
bônus.
Vale dizer, a COMPANHIA BETA permitiu que, por vários anos,
valores mobiliários de sua emissão fossem negociados com base em
uma interpretação que ela, segundo mencionado no Fato Relevante de
04.11.2002, "sempre" considerou equivocada.
Tais fatos permitem concluir que as informações prestadas pela
COMPANHIA BETA sobre o sentido da cláusula de ajustamento do
preço de exercício dos bônus de subscrição não foram "imediatas,
precisas e completas".
Caso eventualmente prevaleça a interpretação sustentada pela
COMPANHIA BETA, a omissão da Companhia na prestação de
informações acarretará relevantes prejuízos para todos os investidores
que adquiriram os bônus de subscrição com a legítima expectativa de
que o preço de exercício seria ajustado para refletir os aumentos de
capital homologados em 31.03.1999.
Com efeito, em virtude do não cumprimento, pela Companhia,
da obrigação de informar corretamente o mercado, tais investidores
estarão diante da situação de ter comprado valores mobiliários cuja
substância econômica não correspondia ao valor pelo qual eles vinham
sendo negociados no mercado.
Assim, se a Companhia não observou a obrigação de informar, de
forma clara e precisa, as condições que deveriam restringir o exercício
de direitos conferidos pelos valores mobiliários de sua emissão, ela
deve suportar os prejuízos decorrentes de tal comportamento omissi-
vo, não podendo transferi-los para os investidores.
Portanto, como a interpretação sustentada pela COMPANHIA
BETA no Fato Relevante de 04.11.2002 não foi divulgada ao mercado
quando da emissão dos bônus de subscrição, deve prevalecer o en-
tendimento de que os aumentos de capital, para atender ao plano
de opção de compra de ações, devem ser levados em consideração
para efeito de ajustar o preço de exercício dos referidos bônus de
subscrição.

471
G -CONCLUSÕES

Diante do exposto, considerando que:


a) a Companhia Beta estabeleceu cláusula de ajustamento, nos
termos da qual, na hipótese de "aumento de capital, por subscrição
pública ou privada", em que o preço de emissão fosse inferior ao valor
fixado para o exercício dos bônus, seria este ajustado para igualar o
referido preço de emissão;
b) os aumentos de capital da Companhia Beta, apesar de eventual-
mente submetidos a algumas regras específicas, constituíram aumen-
tos de capital por subscrição, visto que ocorreram mediante efetiva
subscrição de ações, tendo sido, inclusive, observados os parâmetros
estabelecidos no artigo 170 da Lei das S.A.;
c) a subscrição de ações decorrente do plano de opções de compra
constitui subscrição privada, uma vez que as ações emitidas destinam-
se a pessoas diretamente vinculadas à companhia emissora, como é o
caso dos administradores e empregados titulares das opções;
d) o bônus de subscrição possui natureza jurídica de título de
crédito, cuja finalidade essencial é assegurar a segurança e a certeza na
circulação do direito por ele representado;
e) em função de sua natureza jurídica, as disposições que regem o
exercício dos direitos conferidos pelos bônus de subscrição devem ser
interpretadas literalmente, não podendo a companhia emissora pre-
tender restringir as condições que estão expressas na deliberação que
aprovou a criação de tais títulos;
f) o entendimento sustentado pela COMPANHIA BETA subme-
teria o exercício dos direitos conferidos pelos bônus de subscrição a
uma condição não expressa no título, contrariando o princípio da lite-
ralidade e, conseqüentemente, prejudicando a certeza e a segurança
jurídica que a circulação dos referidos bônus deve apresentar;
g) o Conselho de Administração da Companhia Beta declarou tex-
tualmente que o objetivo da emissão dos bônus de subscrição foi con-
ferir aos então acionistas da Companhia a faculdade de preservar sua
participação no capital social;
h) os aumentos de capital aprovados para atender ao plano de
opções de compra, por não ensejarem o exercício do direito de prefe-
rência, necessariamente, acarretam a redução da participação percen-
tual dos antigos acionistas, justamente o fato que a emissão dos bônus
de subscrição pretendia evitar;
i) não faria sentido que os bônus de subscrição fossem emitidos
com a finalidade de proteger os acionistas apenas nos aumentos de

472
capital que dão ensejo ao exercício do direito de preferência, visto
que, nestes casos, os acionistas já estão, em regra, automaticamente
protegidos contra a redução de sua participação, em função da garan-
tia da subscrição preferencial;
j) a proteção conferida aos antigos acionistas pelos bônus de subs-
crição somente seria efetiva se o preço de exercício fosse equivalente
ao preço de emissão cobrado nos futuros aumentos de capital da Com-
panhia;
I) não faria sentido que o direito de subscrição assegurado pelo
bônus protegesse seus titulares contra todos os casos de aumento de
capital, mas a proteção adicional conferida pela cláusula de ajuste do
preço de exercício de tal direito não abrangesse alguns destes casos;
m) o contrato de subscrição possui natureza de contrato de ade-
são, na medida em que todas as suas condições são fixadas unilateral-
mente pela companhia, cabendo aos investidores apenas aceitar ou
rejeitar, em bloco, tais condições;
n) por força do princípio expresso no artigo 423 do Código Civil,
o contrato de adesão, em caso de dúvida, deve ser interpretado da
forma mais favorável aos aderentes;
o) a COMPANHIA BETA tem a obrigação de observar o princípio
do full disclosure, isto é, de promover a divulgação "imediata, precisa
e completa" de todos os fatos que possam afetar seus negócios ou os
valores mobiliários de sua emissão;
p) os bônus de subscrição da COMPANHIA BETA foram nego-
ciados no mercado secundário por mais de 6 (seis) anos, sem que a
Companhia informasse ao público que não consideraria os aumentos
de capital decorrentes do plano de opções de compra para efeitos do
ajuste do preço de exercício de tais bônus;
q) a omissão da Companhia, caso prevaleça a interpretação por ela
sustentada, acarretará relevantes prejuízos para todos os investidores
que adquiriram os bônus de subscrição com a legítima expectativa de
que o preço de exercício seria ajustado para refletir os aumentos de
capital homologados em 31.03 .1999;
r) a Companhia deve suportar os prejuízos decorrentes do não
cumprimento de sua obrigação de informar, de forma clara e precisa,
as condições que deveriam restringir o exercício de direitos conferi-
dos pelos valores mobiliários de sua emissão, não podendo transferir
tais prejuízos para os investidores;
Concluímos, sem qualquer dúvida, que o preço de exercício dos
bônus de subscrição da COMPANHIA BETA deve ser ajustado em

473
decorrência dos aumentos de capital efetivados para atender ao Plano
de Opção de Compra, nos quais foram emitidas ações por valores
inferiores ao preço fixado para o exercício dos direitos conferidos
pelos bônus de subscrição.
Foi o nosso Parecer, em março de 2003.

474
AAUTONOMIA DO BANCO CENTRAL:
ASPECTOS JURÍDICOS 1

As discussões sobre a necessidade de maior autonomia do Banco


Central tem enfatizado, até o momento, aspectos econômicos e argu-
mentos de ordem moral. Penso que é hora de ampliar o escopo do
debate, introduzindo o indispensável elemento jurídico-institucional,
até agora relativamente negligenciado.
Os clamores de especialistas e da mídia por maior autonomia do
Banco Central apresentam interessante feição pendular: em momen-
tos de aceleração inflacionária, prega-se autonomia plena do órgão
frente ao Governo, devendo caber-lhe, com exclusividade, a função
de vestal da moeda; estabilizada a moeda, e diante de aparentes escân-
dalos, a revelar eventuais relações promíscuas entre os diretores do
Banco Central e os de instituições financeiras privadas, propugna-se
então pela urgente estatização da instituição, vale dizer, sua "liberta-
ção" frente ao mercado.
As posições refletem, no fundo, uma espécie de neofundamenta-
lismo purificador: o inimigo é externo, ora o Governo e seus políticos,
ora o mercado financeiro; daí a terapêutica comum, a autonomia ple-
na, frente a uns e outros.
Os adeptos da plena autonomia frente ao Governo -abstraindo-
se o caráter ideológico da gestão neutra da moeda -partem de algu-
mas considerações tecnicamente consistentes: em termos amplos, a
substituição da moeda metálica pela moeda sem lastro garantido im-
põe à autoridade emissora a manutenção de um padrão de confiança
irreprochável; entre nós, mais aguda se torna a gestão independente
da moeda por ter predominado, nas últimas três décadas, e até recen-
temente, a tese do financiamento inflacionário do desenvolvimento.
Daí a necessidade de gestão autônoma, pelo Banco Central, da moeda,

I Nota do Autor: Publicado em: Revista Monitor Público, Rio de Janeiro, n° 6, p. 11.
1995.

475
garantido-lhe as funções de meio de troca e de medida de valor, assim
como impedindo a sua emissão para atender objetivos de política eco-
nômica.
A receita que se segue: um Banco Central dotado de autonomia
plena, administrativa, técnica, econômica e financeira. A estabilidade
da moeda seria sua atribuição exclusiva; a proibição de financiar o
Tesouro teria caráter absoluto. Os administradores do Banco Central
deteriam mandato fixo, indicados pelo Presidente da República e
aprovados pelo Senado Federal, somente podendo ser demitidos pelo
Presidente com justa causa após aceitação - mediante voto secreto
-do Senado.
Mesmo que desejáveis- se possível o controle puramente técnico
da moeda - seriam tais medidas factíveis? Como impedir que um
Poder Executivo democraticamente eleito, comprometido com polí-
ticas desenvolvimentistas ou redistributivas, financie o desenvolvi-
mento ou a distribuição de renda com políticas inflacionárias? Em tal
caso, como assegurar mandato intocável aos gestores do Banco Cen-
tra? Seria razoável a realização de eleições diretas para a presidência
do órgão?
Os defensores da autonomia do Banco Central frente ao mercado
financeiro recorrem a argumentos de natureza mais propriamente mo-
ral, partindo de aparentes escândalos para pregar a estatização do
órgão, ou seja, para "desatar os nós" que estariam a subordiná-lo aos
interesses do mercado.
Tomemos como exemplo o caso ocorrido no mercado de câmbio,
em março deste ano. O Governo decidira desvalorizar o Real aos pou-
cos, em conta-gotas e controlar o câmbio mediante o sistema de ban-
das, para manter o dólar dentro de uma determinada faixa; para tanto,
o Banco Central faria leilões para comprar dólares quando estivessem
sendo negociados a valor próximo a 86 centavos de real e leilões de
venda quando sua cotação se aproximasse de 90 centavos de real.
O comunicado de tal medida foi, porém, confuso; os dealers do
Banco Central ou foram mal informados ou não repassaram correta-
mente o teor da medida ao mercado. Daí instaurou-se enorme confu-
são, o dólar subiu para 88 centavos de real, e o Banco Central reagiu
com vigor: vendeu dólares pesadamente; modificou a banda, sem pra-
zo; reduziu o volume de dólares que poderiam ser mantidos pelos
bancos em suas carteiras; elevou as taxas de juros reais, tornando os
investimentos em renda fixa mais atrativos do que as aplicações em
dólares. Conseguiu, afinal, quebrar a onda especulativa com o dólar.

476
Curiosas - e sintomáticas - as manifestações registradas na
imprensa: um funcionário do Banco Central, comemorando que o
órgão havia vendido dólares ao mercado num dia a preço superior ao
que no dia anterior comprara: tomamos uma grana deles; um conheci-
do economista do mercado: o governo deu uma de macho. Foi como o
Mike Tysson entrar numa sala e chamar todo o mundo para a briga.
Ninguém entrou. 2
Levantou-se, em seguida, a suspeita de que ocorrera vazamento de
informações privilegiadas: alguns bancos teriam tido acesso às novas
regras do Banco Central antes dos demais e utilizado tais informações
em proveito próprio. Retomou-se a discussão sobre as relações pro-
míscuas entre o Banco Central e o mercado financeiro. A "provar" tais
ligações perigosas um indício definitivo, no entender da mídia: os
ex-administradores do Banco Central, em sua maioria, ocupam cargos
importantes em bancos privados. Daí a necessidade de uma quarente-
na purificadora: os ex-dirigentes do Banco Central deveriam ser proi-
bidos de ingressar no sistema financeiro privado por prazo determina-
do Cdois anos?) sustentados pelo erário público C70% do que recebiam
no governo?) durante o recesso profissional forçado.
Faltou à discussão o detalhe Ccomo dizem nossos locutores espor-
tivos ao comentar o mais importante no lance): a lei. Sim, porque
simplesmente, não existe, em nosso sistema jurídico, norma legal que
proíba os administradores de instituições financeiras de utilizar, em
proveito próprio ou de terceiros, informações confidenciais obtidas
do Governo no exercício de sua atividade profissional. Só é prevista a
proibição ao insider trading para os administradores de companhias
abertas, nos termos do§ 1° do art. 155 da Lei das S.A.
Ou seja, ainda que ficasse provado que os dealers utilizaram tais
informações em proveito próprio - o que pressuporia um processo
legal, com garantia de defesa - nenhuma punição lhes poderia ser
aplicada, por absoluta falta de dispositivo legal. A fritura promovida
pela imprensa, no caso, foi além dos limites usuais: não só inexistiu
processo, como também a conduta, se eventualmente provada, não
poderia ser objeto de sanção legal, dada a inexistência de norma legal
tipificando-a como ilícita.
Suponhamos que houvesse norma legal proibindo o insider tra-
ding para os administradores de instituições financeiras que obtêm
informações confidenciais do governo. Quem instauraria o processo

2 VEJA, edição de 15/03/95, pg. 39.

477
administrativo e aplicaria as sanções? Pela legislação atual, a mesma
autoridade que regula o mercado com medidas de natureza econômi-
ca- aumentando taxas de juros, comprando e vendendo dólares, etc.
E aqui introduzo o meu ponto principal, já longas se fazem as
preliminares. A autonomia do Banco Central diante do governo e do
mercado, posto que desejável, em certa medida, levada ao extremo é
utópica. Talvez mais importante- e factível- é subordinar a fiscali-
zação do sistema financeiro ao império da Lei, ao due process of law.
Como fazê-lo? Em primeiro lugar, separando as funções de guar-
dião da moeda, de executor da política monetária e cambial, das fun-
ções de normatização (com o desaparecimento do Conselho Monetá-
rio Nacional, que podemos dar como certo) e de fiscalização do siste-
ma financeiro.
Claro, é importante que se estabeleça, em lei, a autonomia do
Banco Central frente ao Tesouro, que se deixe claro que sua função
primordial é a de defender a moeda; é também importante que se crie
algum custo à rotatividade excessiva entre as funções diretivas no
Banco Central e em instituições financeiras privadas.
Porém, é essencial que a justiça administrativa provida pelo Es-
tado na fiscalização do sistema financeiro fique inteiramente subordi-
nada aos princípios que orientam o Estado de Direito.
A atuação do Banco Central, enquanto órgão que aplica a lei no
âmbito do sistema financeiro, sempre esteve contaminada pela sua
atuação como órgão regulador (no sentido econômico) da moeda, do
crédito e do câmbio. Ou seja, sempre confundiu-se a sua função de
regulação econômica - caso em que age sobre o mercado, mas com
mecanismos de mercado: aumentando a oferta de títulos, a taxa de
juros de seus papéis - com a regulação jurídica - caso em que deve
aplicar a lei, no âmbito da justiça administrativa, como acusador e juiz,
mas sempre como ator externo ao mercado e mediante a utilização de
mecanismos estritamente conformes ao postulado do devido processo
legal.
A atuação jurídica do Banco Central pautou-se muitas vezes por
aquele padrão que Wanderley Guilherme dos Santos, em análise de
escopo mais amplo, sobre o funcionamento das instituições legais em
nosso país, cunhou de justiça lotérica 3: espantosa convivência entre a
liberdade e a freqüência das denúncias e a sua quase absoluta ineficá-

3 WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS. Razões da Desordem. Rio de Ja-


neiro: Rocco, 1993. pg. 111

478
cia; punição aleatória que quase nunca se dá pelos meios institucional-
mente adequados, nem corresponde proporcionalmente às infrações
cometidas.
É necessário, inicialmente, que na Lei Complementar sobre siste-
ma financeiro sejam incluídos alguns elementos essenciais à adequada
regulação da conduta das instituições financeiras, a saber: disciplina
do sigilo bancário, de sorte a impedir a sua utilização no encobrimento
das fraudes: absoluta transparência das contas das instituições finan-
ceiras, com o estabelecimento de regras claras punindo o insider tra-
ding; padrões objetivos de conduta a serem observados na concessão
de crédito e no desenvolvimento de operações financeiras; submissão
da quebra das instituições financeiras ao Poder Judiciário, extinguin-
do-se as esdrúxulas instituições da intervenção e liquidação extrajudi-
cial, criadas pela Lei 6.024/74; estabelecimento de um regime de
registro e fiscalização especial sobre o acionista controlador da insti-
tuição financeira, superando-se de vez a irreal tese do controle geren-
cial, entre nós nunca demonstrada 4; previsão exaustiva dos ilícitos e
das penalidades cabíveis, as quais devem ser preferencialmente pecu-
niárias, na forma de multas elevadas, de sorte a tornar os custos da
infração maiores do que os benefícios dela hauridos; estabelecimento
de rito processual adequado, conciliando o amplo direito de defesa
com a necessária celeridade; previsão expressa da prescrição das pena-
lidades administrativas, o que já vem sendo aceito por outros órgãos
administrativos, como é o caso da Comissão de Valores Mobiliários,
evitando a perpetuidade dos processos.
Em suma, a regulação legal do sistema financeiro, diversamente
da econômica, pressupõe, por definição, um sistema de aplicação das
normas que se manifesta por meio de atos e decisões previsíveis e
calculáveis.
Tendo em vista a eficácia de tais normas, seria imprescindível a
criação de uma agência voltada especificamente para a regulamenta-
ção e fiscalização do sistema financeiro, que não estivesse comprome-
tida com a regulação econômica do crédito, do câmbio, da moeda 5 .
A tal agência competiriam as tarefas de regulamentar e de aplicar
a lei, no âmbito de sua justiça administrativa, sem qualquer preocupa-

4 Cf. o nosso "O mito do controle gerencial: alguns dados empíricos" Revista de
Direito Mercantil, n° 66, abril/junho, 1987. p. l 03.
5 Tal como proposto no "Anteprojeto de Lei Complementar do Banco Central do
Brasil", elaborado pela Academia Internacional de Direito e Economia, publicado em
Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, vol. 2, pg. 176.

479
ção com a política econômica do Governo. Exemplificando: a even-
tual aplicação de penalidades pelo uso do cheque pré-datado decorre-
ria da lei, não do "arrocho" no crédito; da mesma forma, o enquadra-
mento das empresas de "factoring" como instituições financeiras fica-
ria a depender da prévia definição legal, não do desejo do Governo de
limitar o acesso a instrumentos creditícios; e mais: a autorização para
funcionamento de instituições financeiras seria simplesmente deferi-
da mediante a comprovação, pelo interessado, de que preenche ele os
requisitos de capacitação ética, técnica e financeira, previamente fixa-
dos em lei, independentemente de quaisquer medidas de política-
econômica visando aumentar ou reduzir a concentração no sistema
bancário 6 .
Quais as possibilidades de vermos promulgada uma Lei Comple-
mentar sobre sistema financeiro orientada pelos postulados acima?
Afastado em boa hora o risco da tramitação em regime de urgência (re-
querido por setores do Congresso em função do atrelamento da reforma
à definição da taxa de juros de 12% ao ano, nos termos do art. 192 7 da
Constituição), são razoáveis as chances de uma discussão parlamentar
orientada por critérios de racionalidade econômica e jurídica.

6 Conforme demonstrado por Helio Portocarrero de Castro, a concentração bancá-


ria verificada no período de 1965 a 75 decorreu da regulação de cartas patentes, de
abertura de agências e de taxas de juros. (in As Causas Econômicas de Concentração
Bancárias. Rio, IBMEC, 1981)
7 Nota do Autor: O art. 197 da Constituição ganhou nova redação com a Emenda
Constitucional n° 40 de 29.052003.

480
O PROER E OS ACIONISTAS MINORITÁRIOS-
LEI TERESOCA DOS BANCOS? 1

- Lei, lei! Será que toda m. de lei neste país foi feita para me
prejudicar? Se é assim, se a lei é contra mim, então, meus senhores,
vamos ter que mudar a lei!
A frase, atribuída a Assis Chateaubriand 2, bem ilustra a tradicional
atitude do patriciado nacional frente às leis: se favoráveis, cumpra-se;
se contrárias, modifique-se1
O episódio é interessante e ilustrativo, vale a pena lembrá-lo. Assis
Chateaubriand mantivera um tórrido romance com a argentina Cori-
ta, dele resultando uma filha, Teresa. Sete anos mais tarde, Corita
foge com Clito Bockel, levando a filha; "Chatô" reage com rapidez,
resgatando Teresa à bala; mas, na Justiça, Corita recupera a guarda da
criança. Começa então uma batalha judicial; pelas leis então vigentes,
Chatô não poderia vencê-la: a guarda da menina caberia à mãe, Corita,
pois ela fora concebida quando ele era casado com Da Maria Henri-
queta, não sendo legalmente possível o seu reconhecimento pelo pai.
Qual a solução? Sendo a lei desfavorável, ora pois, mude-se1 Sabe-
se lá quais os expedientes utilizados, o fato é que, em 24 de outubro
de 1942, Getúlio Vargas baixa o Decreto-lei n° 4. 737, cujo art. 1°
dizia o seguinte: o filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode,
depois do desquite, ser reconhecido ou demandar que se declare sua
filiação.
O Decreto-lei, embora permitisse o reconhecimento de filho tido
fora do casamento, ainda não dava a Chatô o direito de guarda da filha;
continuava em vigor o art. 16 do Decreto-lei n° 3.200/41, mediante o
qual o pátrio poder seria atribuído a quem primeiro reconhecesse o

1 Nota do Autor: Publicado em: Revista Monitor Público, Rio de Janeiro, n° 9, p. 5.


abr. mai. jun. 1996.
2 FERNANDO MORAIS, Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand,
São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pg. 407; de onde se extrai, também, a
história do episódio que ficou conhecido como o da tramitação da Lei Teresoca.

481
filho. Era necessário mais, algo de encomenda para a aflitiva situação.
Getúlio então baixa o Decreto-lei n° 5.213, em 21/0l/43, que ficou
conhecido como Lei Teresoca, pelo qual, no caso de reconhecimento
de filho havido fora do casamento por ambos os progenitores, o pátrio
poder, em princípio, deveria caber ao pai. Com o novo regime jurídi-
co, Chateaubriand requer e obtém o pátrio poder e a guarda da filha,
determinando a Justiça que ficasse como tutor Orozimbo Nonato, em
cuja casa ela viveria até os dezoito anos.
Algumas das normas que integram o Programa de Estímulo à Rees-
truturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional -
PROER, referentes à situação dos acionistas minoritários dos bancos,
evocam o episódio da Lei Teresoca. Com efeito, determinados institu-
tos jurídicos fundamentais do direito societário foram suprimidos,
especificamente para beneficiar os bancos, nos processos de fusões e
incorporações ao abrigo do PROER.
O PROER foi criado com vistas a minimizar o impacto da crise
bancária, ordenando o processo de fusões e incorporações de bancos,
bem como conferindo maiores poderes para o Banco Central agir pre-
ventivamente; assim, poderá o BACEN, detectando uma situação de
insuficiência patrimonial ou financeira, determinar a capitalização da
instituição financeira, ou a transferência do seu controle acionário,
sob pena de decretação do regime especial que considerar adequado à
situação (RAET, intervenção ou liquidação extrajudicial).
Tais medidas são meritórias, sem dúvida, na medida que confe-
rem ao órgão regulador do mercado financeiro poderes para impedir a
ocorrência de quebras no setor bancário, sempre traumáticas, dada a
crise de credibilidade que elas podem ocasionar.
É igualmente elogiável a extensão da responsabilidade solidária e
da indisponibilidade de bens não só para os administradores como
também para os acionistas controladores das instituições financeiras
submetidas aos regimes de intervenção ou liquidação extrajudicial.
São também salutares as normas que estabelecem o seguro de
depósitos, atendendo, segundo dados do Banco Central, a mais de
95% dos depositantes, que ficam, assim, protegidos em casos de inter-
venção ou liquidação extrajudicial de instituição financeira 3 .
Ademais, conforme reconhecido pelo atual Presidente do Banco
Central, deverá ser modificada a filosofia de fiscalização daquele ór-

3 BANCO CENTRAL DO BRASIL, PROER- Programa de Estímulo à Reestrutu-


ração e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional. Brasília, 1996, pg. 17.

482
gão, que atualmente está concentrada mais na verificação da adequa-
ção formal dos bancos às normas legais e regulamentares do que na
análise da situação patrimonial de tais instituições 4 •
Os dados referentes ao custo do PROER ainda não são muito
claros, mesmo porque não se tem a exata dimensão do tamanho do
buraco dos bancos, do volume total do auxílio financeiro dado pelo
Banco Central; algumas situações de quebras relevantes ocorreram,
de fato, antes da implementação do referido programa, ou mesmo
antes de tomar posse o atual governo, ainda que certos políticos lhe
atribuam a responsabilidade pelo rombo total do sistema financeiro.
O pavor da equiparação do país ao México constitui, ao nosso ver,
a melhor explicação para o salvamento, a qualquer preço, dos bancos.
O argumento corrente, no governo, é o de que a inserção na economia
global justifica a injeção de recursos públicos para manter, qualquer
que seja o custo, a credibilidade no sistema financeiro; ou seja, o que
se deseja é demonstrar que o capitalismo, aqui, é levado a sério, os
bancos não serão arrastados por nenhum vendaval, os correntistas es-
tão segurados, o Banco Central tem nas mãos as rédeas da reestrutu-
ração do sistema financeiro, para promover a necessária concentração
no setor, da qual emergerão poucos e sólidos bancos, capazes de com-
petir em escala internacional e de bem administrar os recursos de
investidores estrangeiros.
Se assim é, por que a supressão dos direitos dos acionistas minori-
tários, que constituem os atores essenciais para o processo de amplia-
ção do número de participantes na economia de mercado? Sim, por-
que as normas do PROER que tratam dos aspectos societários nos
processos de reestruturação dos bancos traduzem um ranço feudal de
exclusão dos pequenos capitalistas, que investiram suas poupanças em
ações de bancos, servindo para proteger os interesses patrimoniais dos
grandes, mesmo que quebrados.
É a mudança nas "regras do jogo", estando ele em curso, quedes-
mascara a seriedade da economia de mercado local. É essencial, para a
economia de mercado, o cálculo de previsão; devem os participantes
prever o quanto ganharão ou perderão, presumindo sempre que as
regras serão mantidas; como diriam os economistas neoclássicos, a
definição dos direitos de propriedade, instrumento da sociedade que
permite aos indivíduos antecipar, com razoável precisão, o que podem

4 BANCO CENTRAL DO BRASIL ob.cit., pg. 18.

483
obter em suas relações com os demais membros da sociedade, deve
ser clara e estável.
Nesse particular, a retórica afasta-se da realidade, posto que intro-
duziu-se para os bancos, com o PROER, uma definição própria e pe-
culiar dos direitos de propriedade de seus acionistas, que nenhuma
relação guarda com qualquer postulado mínimo de economia de mer-
cado.
Com efeito, a MP 1.179 5, de 03/ll/95, que vem sendo desde
então reeditada, declara candidamente que não se aplicam aos bancos
sob a égide do PROER os arts. 230 6 e 254 7, 255 8, 256, § 2°9, 264, §
3° 10 e 270 11 , parágrafo único da Lei das S.A., para eles criando um
regime jurídico todo especial e particularmente benéfico para seus
acionistas controladores.
Tal significa, inicialmente, que não podem os acionistas minoritá-
rios do banco reestruturando sob a égide do PROER e que vier a ser
incorporado, fundido, cindido, ou a participar de grupo de sociedades,
exercer o direito de recesso, ou seja, retirar-se da companhia receben-
do como pagamento o valor patrimonial de suas ações.
O direito de recesso constitui, para os acionistas minoritários, um
remédio jurídico frente à decisão do acionista controlador 12 •13 . Em
princípio, dada a prevalência do princípio majoritário na companhia,

5 Nota do Autor: A MP 1.179 de 1995 teve sua última reedição com a MP n°


1.604-37 de 24.09.1998 que foi convertida na Lei n° 9. 71 O de 19.11.1998.
6 Nota do Autor. O Art. 230 da Lei das S.A. teve sua redação alterada pela Lei n°
9.457, de 05.05.1997.
7 Nota do Autor. O Art. 254 da Lei das S.A foi revogado pela Lei n° 9.457, de
05.05.1997, sendo criado com a Lei n° 10.303 de 31.10.2001 o art. 254-A.
8 Nota do Autor. O Art. 255 da Lei das S.A. teve sua redação alterada pela Lei n°
9.457, de 05.05.1997.
9 Nota do Autor. O §2° do art. 256 da Lei das S.A. teve sua redação alterada pela Lei
n° 9.457, de 05.05.1997.
lO Nota do Autor. O §3° do art. 264 da Lei das S.A. teve sua redação alterada pela Lei
n° 10.303 de 31.10.2001.
li Nota do Autor. O caput do Art. 270 da Lei das S.A. teve sua redação alterada pela
Lei n° 9.457, de 05.05.1997.
12 Em 28/02/96 foi apresentado no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 1.564,
pelo Deputado Antonio Kandir, que propõe algumas modificações relevantes no
direito de recesso, porém gerais, válidas para todas as sociedades anõnimas, não só
para os bancos.
13 Nota do Autor: O Projeto de Lei n° 1.564 de 1996 em conjunto com o Projeto de
Lei n° 622 de 1995 deram origem a Lei 9.457 de 1997. Sobre o assunto, vide nosso
livro Reforma das S.A. & do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
p.9-l8.

484
presume-se que o acionista controlador é o intérprete do interesse
social, ou seja, que age no interesse da sociedade anônima. Há porém,
certos direitos individuais -como o de manter-se na mesma compa-
nhia, eliminado quando é ela cindida, incorporada por outra ou com
outra fundida- que constituem prerrogativas essenciais do acionista,
das quais ele não pode ser privado. ,.
Quando a deliberação majoritária contraria o interesse do acionis-
ta minoritário, naqueles casos expressamente previsto em lei, e que
significam o rompimento do "pacto social" original, pode ele retirar-se
da companhia, recebendo como pagamento o valor patrimonial de
suas ações, apurado no último balanço regularmente aprovado. Tal
direito foi simplesmente eliminado para os bancos reorganizados no
âmbito do PROER.
Ademais a MP extingue a obrigatoriedade de realizar, o adquiren-
te do controle do banco sob égide do PROER, oferta pública de aqui-
sição das ações dos minoritários, pagando-lhes o mesmo preço que
pagou ao acionista controlador. Elimina, igualmente, o poder da Co-
missão de Valores Mobiliários de zelar para que seja assegurado trata-
mento eqüitativo aos acionistas minoritários, por ocasião da alienação
do controle de bancos que sejam companhias cqm ações publicamente
negociadas 14 . Ora, a obrigatoriedade de oferta pública para os minori-
tários nasceu exatamente pelo fato de terem sido feitas, nos anos
sessenta e no inícios dos setenta, algumas transferências de controle
de bancos nas quais o acionista controlador recebia do adquirente do
controle preço muitas vezes superior ao da cotação das ações em Bolsa
de Valores, ficando os acionistas minoritários inteiramente excluídos
da operação.
Por que eliminar os direitos dos minoritários dos bancos "reestru-
turados" sob as bênçãos do PROER? Ora, a resposta é simples: redu-
ção dos custos da operação, tanto para os acionistas controladores (os
"donos") do banco alienado como para adquirente. Fica muito mais
barata a operação se não for necessário pagar, para os minoritários,
nem o valor patrimonial de suas ações, nem o mesmo valor pago aos
acionistas majoritários, por ocasião da alienação do controle do banco.
Ganham portanto o ex-controlador e o novo controlador do banco.
Nesse particular, a legislação do PROER não encontra qualquer
justificativa de ordem ética ou jurídica; uma vez mais, mudam-se as

14 Esta questão igualmente está contemplada no Projeto de Lei n° 1.564, mas tam-
bém para todas as companhias, não só para os bancos.

485
"regras do jogo" em benefício de quem tem poder econômico e políti-
co suficiente para "capturar", em proveito próprio, legislação favorá-
vel. E uma vez mais demonstra-se que o capitalismo local não está aí
para assegurar, aos investidores em ações, sejam individuais ou institu-
cionais, como os Fundos de Pensão, qualquer cálculo de previsão;
muito menos para permitir, via mercado de capitais, apropriação por
número crescente de pessoas dos lucros e da propriedade das empre-
sas, notadamente se bancárias.

486
CESSÃO DE CRÉDITO NO
MERCADO FINANCEIR0 1

1-ACONSULTA

Os Bancos A, B, C, D e E consultam-nos sobre a legitimidade e a


legalidade de recentes atos mediante os quais a Divisão de Processos
Administrativos e de Regimes Especiais da Delegacia Regional de Belo
Horizonte do Banco Central do Brasil- DEBHO-REPAD, confir-
mando a orientação do Sr. Liquidante do Banco X, decidiu que os
contratos de cessão de crédito firmados entre os Consulentes e o
Banco X constituiriam, na realidade, dadas as suas características,
contratos de mútuo.
A prevalecer a orientação da DEBHO-REPAD, os Bancos Consu-
lentes não seriam cessionários dos créditos objeto dos contratos, mas
mutuantes, devendo, assim habilitarem-se na liquidação extrajudicial
do Banco X.
lnconformados com as decisões do DEBHO-REPAD, cada um
dos Consulentes está apresentando, separadamente, Recurso Hierár-
quico ao Chefe do Departamento de Controle de Processos Adminis-
trativos e de Regimes Especiais do Banco Central.
Apresentam-nos os Consulentes as seguintes indagações:
1. É cabível a propositura de Recurso Hierárquico da decisão to-
mada pela Divisão de Processos Administrativos de Regimes Especiais
da Delegacia Regional de Belo Horizonte à instância administrativa
Superior?
2. Os contratos sob discussão, dadas as suas características, cons-
tituem contratos de mútuo ou instrumentos de cessão de crédito?
Juntam à Consulta os instrumentos contratuais, assim como a do-
cumentação referente aos processos administrativos ora em curso junto
ao Banco Central.

I Nota do Autor: Publicado em: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico


e Financeiro, Rio de Janeiro, n° 116, p. 200. out./dez. de 1999.

487
11 -OS FATOS E SUA QUALIFICAÇÃO

Após o exame da documentação apresentada pelos Consulentes,


verificamos que são relevantes, para o deslinde das questões apresen-
tadas, os seguintes fatos:
1. Cada um dos Consulentes firmou com o Banco X grande quan-
tidade de contratos de cessão de crédito, com algumas ou todas as
seguintes características:
1.1. Em todos eles, o Banco X aparece como CEDENTE de deter-
minados créditos oriundos de financiamentos para seus clientes, livres
e desembaraçados de quaisquer ônus ou gravames, discriminados em
documentos anexos aos Contratos de cessão de crédito;
1.2. Os Bancos Consulentes figuram como CESSIONÁRIOS dos
referidos créditos, que lhes são cedidos e transferidos por um preço de-
terminado, do qual o CEDENTE lhes dá plena e irrevogável quitação;
1.3. O CEDENTE responde pela existência dos créditos e sua
correta formalização e como devedor solidário, em alguns casos, ou
subsidiário em outros, pela pontual liquidação, por parte dos financia-
dos, da totalidade dos créditos objeto de cessão;
1.4. O CEDENTE declara que a cessão dos créditos abrange todos
os direitos, prerrogativas e garantias asseguradas nos instrumentos fir-
mados com os financiados, podendo o CESSIONÁRIO deles dispor,
ceder, transferir, receber e dar quitação, assim como cobrar judicial-
mente, inclusive acionando as correspondentes garantias;
1.5. O CESSIONÁRIO constitui o CEDENTE como depositário
dos instrumentos referentes aos créditos, encarregando-o, na condi-
ção de seu mandatário, de promover a cobrança de tais créditos e de
repassar ao CESSIONÁRIO os valores recebidos; fica o CESSIONÁ-
RIO expressamente autorizado a revogar o referido mandato para co-
brança dos créditos junto aos financiados, na hipótese de ocorrência
de qualquer situação que, a critério do CESSIONÁRIO, impeça ou
possa impedir a eficácia do cumprimento do mandato e a oportuna
realização do crédito cedido;
1.6. Caso o CEDENTE não cumpra com as suas obrigações, pode
o CESSIONÁRIO notificar os devedores dos créditos cedidos, ou os
Bancos encarregados de sua cobrança, dando-lhes conta da cessão,
ficando o CEDENTE obrigado a abster-se de realizar a cobrança dos
créditos junto aos financiados ou de solicitar aos Bancos arrecadadores
a transferência de tais valores;
l. 7. Na hipótese de inadimplência de suas obrigações, entre as
quais a de atraso na liquidação financeira da cessão, o CEDENTE deve

488
pagar o CESSIONÁRIO o montante em atraso, acrescido de atualiza-
ção monetária, de juros de mora e de multa convencional;
1.8. Adicionalmente, em alguns casos, figurando como fiadora nos
Contratos de Cessão; em outros, mediante uma Carta de Fiança, ins-
tituição financeira internacional garante a totalidade ou parte das
obrigações do CEDENTE - afiançado - ocorrendo qualquer das
hipóteses contratuais de exigibilidade das obrigações afiançadas.
2. Após a decretação da liquidação extrajudicial do Banco X, o
Liquidante informou aos Consulentes que:

"A propósito das operações nominadas de "Cessão de Créditos" ...


cumpre-nos informar que segundo interpretação e orientação do Ban-
co Central do Brasil em casos análogos, das quais não nos cabe diver-
gir, referidas operações não tipificam-se como cessão de crédito a teor
das normas regulamentares em vigor, ou seja, Res. 1.962!92 e Carta-
Circular 2.605 2!95 por contemplarem condições vedadas pelos referi-
dos normativos, dando-lhes caracterização de verdadeiro "mútuo"
concedido ao (Banco X), ato que, segundo entendimentos pretéritos,
invade competência privativa do Banco Central do Brasil nos termos
do art. 10 da Lei no 4.595!64.
Nesse sentido, ficam V.Sas. NOTIFICADAS da decisão deste liqui-
dante, por extensão interpretativa, de que o produto do recebimento
dos créditos cedidos serão arrecadados pela massa, resultando em
crédito de V.Sas. a ser objeto de habilitação na forma da lei, para
pagamento consoante as diretrizes aplicáveis".

3. Os Consulentes, inconformados, apelaram, na forma do art. 30


da Lei 6.024/74, à Delegacia Regional de Belo Horizonte, argumen-
tando, em resumo, que:
a) as partes haviam firmado verdadeiros e legítimos contratos de
cessão de crédito;
b) a Resolução 1.962/92 do CMN não fora infringida em qualquer
de seus dispositivos; e
c) nem a Resolução 1.962/92, nem o Código Civil, tampouco a
melhor doutrina e a jurisprudência, autorizam o enquadramento das
cessões de crédito realizadas como contratos de mútuo.

2 Nota do Autor: A Carta-Circular n° 2.605 de 12.12.1995 foi revogada pela Reso-


lução n° 2.561 de 05.11.1998.

489
4. Os recursos interpostos ao DEBHO-REPAD não lograram êxi-
to, mantendo-se a decisão do Liquidante do Banco X; entendeu a
DEBHO-REPAD que os contratos estão caracterizados como mútuos,
embora travestidos na forma de "cessão", pois presentes algumas ou
todas as características abaixo:
a) o CEDENTE assumiu a condição de devedor solidário;
b) os créditos cedidos foram adquiridos com deságio;
c) em caso de mora, o CEDENTE seria penalizado com correção
monetária, juros e multas;
d) havia carta de fiança garantindo as obrigações do CEDENTE; e
e) não ocorreu a transferência efetiva dos créditos, pois o CE-
DENTE foi constituído como depositário dos instrumentos de crédito
e como mandatário do CESSIONÁRIO para proceder à sua cobrança.
5. Devidamente descritos e qualificados os fatos, passaremos, em
seguida, à análise das questões jurídicas pertinentes.

111- O CABIMENTO DO RECURSO HIERÁRQUICO

6. Cabe analisarmos, inicialmente, o cabimento, no caso presente,


de Recurso Hierárquico à Chefia do Departamento de Processos Ad-
ministrativos e de Regimes Especiais contra a decisão da Divisão de
Processos Administrativos e de Regimes Especiais da Delegacia Regio-
nal de Belo Horizonte, antes mencionada.
7. A hierarquia constitui, basicamente, a subordinação de uma ou
mais vontades à vontade superior, caracterizando-se como elemento
essencial à Administração Pública, na medida em que logra comensu-
rar às forças dos indivíduos- funcionários públicos- o desenvolvi-
mento das tarefas estatais 3 .
8. Dentre os princípios essenciais do funcionamento da organiza-
ção hierárquica estatal, insere-se o de que incumbe sempre ao supe-
rior hierárquico suspender, revogar ou modificar os atos administrati-
vos praticados por subalterno quando contrários ao direito, inconve-
nientes ou inoportunos.
9. Quando o ato administrativo é inválido, a doutrina entende que
a Administração tem não o poder, mas sim o dever de anulá-lo ou
modificá -lo 4 .

3 RUY CIRNE LIMA, Princípios de Direito Administrativo. São Paulo, RT, 1982. sa
ed., pg. 153.
4 ALMIRO COUTO E SILVA, "Princípios da Legalidade da Administração Pública
e da Segurança Jurídica no Estado de Direito Contemporâneo", Revista de Direito

490
1O. A plena admissibilidade da revisão de seus atos pela própria
Administração, por motivos de conveniência ou oportunidade, sem-
pre respeitados os direitos adquiridos e ressalvada a possibilidade de
apreciação judicial, é hoje pacificamente aceita, a teor da Súmula n°
4 73 do Supremo Tribunal Federal.
11. Assim, quando o ato administrativo é ilegal, inconveniente ou
inoportuno, cabe o recurso hierárquico à autoridade de nível superior
àquela que o praticou.
12. Conforme amplamente aceito em nosso Direito Administrati-
vo, admite-se o recurso hierárquico, nas decisões que causem lesão
aos interesses legítimos dos particulares, mesmo quando prolatadas
por autarquias; com efeito, a plena recorribilidade dos atos adminis-
trativos constitui um dos elementos essenciais do Estado de Direito.
13. No presente caso, em que a decisão da instância administrativa
recorrida é manifestamente ilegal, conforme mais adiante demons-
trar-se-á, não temos qualquer dúvida quanto ao cabimento do recurso
hierárquico, como forma de reparar ato que estará a causar, caso man-
tido, manifesta lesão a interesses legítimos dos particulares.

IV- A CESSÃO DE CRÉDITO

14. A decisão da DEBHO-REPAD opera a confusão entre institu-


tos jurídicos manifestamente distintos, como são o da cessão de crédi-
to e o de mútuo, além de apartar-se das práticas de negociação consa-
gradas no mercado financeiro e aceitas pelas autoridades monetárias.
15. Cumpre-nos assim, inicialmente, delinear os contornos essen-
ciais do instituto da cessão de crédito, que tem tratamento legal pró-
prio e plenamente diferenciado daquele conferido ao mútuo.
16. Vale referir, preliminarmente, que a cessão de crédito somen-
te veio a ser sistematizada e normatizada como instituto jurídico autô-
nomo com a edição do Código Civil Alemão, no século passado. Até
então, os sistemas de direito obrigacional não lhe reconheciam auto-
nomia, o que decorria da influência do direito privado romano.
17. A resistência em se tratar da transmissão dos créditos de for-
ma específica pode ser explicada pelo fato de o Direito Romano, base
de quase todas as legislações modernas, ter tardado em admitir a alte-
ração subjetiva das obrigações.

Público, n° 84, out./dez. 1987. pg. 46; WEIDA ZANCANER, Da Convalidação e da


Invalidação dos Atos Administrativos, São Paulo, Malheiros, 1993, pg. 63.

491
18. Como os romanos entendiam que a obrigação tinha um caráter
personalíssimo, era-lhes inconcebível a noção de que esta pudesse ser
transferida. A obligatio importava num vínculo pessoal que unia inde-
levelmente o devedor ao credor. Daí decorria que o credor da obriga-
ção tinha o direito de dispor da pessoa do devedor, dela utilizando-se,
inclusive para escravizá-la, até a plena satisfação de seu crédito.
19. As necessidades práticas, no entanto, fizeram com que os ro-
manos utilizassem os mais diversos artifícios jurídicos para permiti-
rem a mutação da relação creditícia.
20. Admitiram-na os romanos, inicialmente, na sucessão causa
mortis, vislumbrando no herdeiro uma continuação do de cujus. Re-
correram, posteriormente, à novação, em que o credor era "substituí-
do" por outro, na medida em que havia a extinção de uma obrigação e
a criação, paralela, de uma nova, com o mesmo objeto da obrigação
anterior.
21. Utilizaram-se, depois, do mecanismo da procuração em causa
própria (procurator in rem suam), através da qual o titular de um
crédito outorgava a outrem, seu procurador, um mandato para que
este exercesse todos os direitos de credor, recebendo do devedor a
quantia que lhe fosse devida, sem ter que lhe prestar contas.
22. Recorreram, ainda, a um outro expediente chamado "cessão
das ações úteis" (actio utilis), em que o credor cedia ao cessionário as
ações que lhe competiam como tal, habilitando-o a demandar e a
tomar todas as medidas processuais necessárias para cobrar do deve-
dor o crédito, como se fora o próprio credor.
23. Presentemente, no entanto, a cessão de crédito é amplamente
admitida, como instituto jurídico autônomo, na generalidade dos sis-
temas de direito obrigacional.
24. Com efeito, superada a noção que atribuía caráter personalista
à obrigação, os sistemas jurídicos ocidentais passaram a reconhecer a
despersonalização do crédito, aceitando a substituição do credor, in-
clusive sem a concordância do devedor.
25. Aliás, a grande tendência do direito obrigacional contemporâ-
neo é a da plena e irrestrita aceitação da circulação dos créditos. Tal
ocorre pelo fato de ser imprescindível, ao desenvolvimento da econo-
mia de mercado, a livre circulação de bens, apenas restrita, em caráter
excepcional, por parte do Estado, quando indispensável à tutela de
interesses de consumidores ou de indivíduos tidos como hipossufi-
cientes.
26. A cessão de crédito, regulada basicamente nos artigos 1.065 a
1.077 do Código Civil de 1916, constitui o negócio jurídico pelo qual

492
um credor (cedente), transmite seu crédito a outrem (cessionário),
que passa a ser o novo credor, com todos os acessórios e garantias,
salvo estipulação em contrário (art. 1.066 5 do Código Civil de 1916).
27. Trata-se de negócio jurídico bilateral, gratuito ou oneroso,
mediante o qual o credor de uma obrigação- cedente- transfere a
outra pessoa- cessionário- o seu direito de crédito, com todos os
seus acessórios e garantias, sem que se verifique a extinção do vínculo
obrigacional.
28. A cessão de crédito, assim, opera a transferência que o credor
faz de seus direitos a outra pessoa. É inequívoco, conforme tradicio-
nalmente aceito pela doutrina, que a cessão importa a alienação do
direito de crédito do cedente para o cessionário 6•
29. O principal efeito da cessão é o de transmitir, do cedente para
o cessionário, o direito à prestação; uma vez realizada a cessão, o
cessionário adquire não só o poder formal de exigir a prestação do
devedor, como também o direito à prestação, no qual se incluem o
direito aos danos moratórios e por inadimplemento, na hipótese de
descumprimento da obrigação de pagar.
30. A propósito dispõe o artigo 1.065 7 do Código Civil de 1916:

"Art. 1. 065 - O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se


opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor".

31. Quando realizada através de um contrato, em que as partes


determinam livremente como a cessão será efetuada, diz-se que a
cessão de crédito é convencional, não sendo exigida, para a sua valida-
de, quanto à forma, qualquer espécie de solenidade.
32. Em princípio, todo crédito pode ser cedido (art. 1.065 do CC
de 1916). A regra, em nosso sistema de direito positivo, é a da livre
cessibilidade dos créditos. Ou seja, o credor sempre pode ceder o seu
crédito, que, como qualquer outro elemento integrante de seu patri-
mônio, pode ser objeto de transferência.

5 Nota do Autor: vide art. 287 do Código Civil de 2002.


6 CLOVIS BEVILAQUA, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado.
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1934. 4a ed., v.4, pg. 231.
7 Nota do Autor: O Código Civil de 2002, em seu art. 286, possui disposição
semelhante ao art. 1.065 do Código Civil de 1916: "Art. 286 - O credor pode ceder
o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com
o devedor,- a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de
boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação."

493
33. Apenas excepcionalmente veda-se a cessão de créditos, nos
casos expressamente elencados no art. 1.065 do Código Civil de
1916. A proibição à cessão de crédito deve decorrer:
a) da natureza da obrigação, como é o caso das obrigações persona-
líssimas;
b) da lei, como ocorre no caso da proibição de cessão de crédito do
menor para seu tutor (art. 428 8, III do Código Civil de 1916);
c) da convenção entre as partes, isto é, quando existe cláusula
contratual proibindo expressamente a cessão.
34. Nos termos expressos do art. 1.07 4 9 do Código Civil de 1916,
o cedente não responde pela solvência do devedor, salvo estipulação
em contrário.
35. Ou seja, no silêncio do contrato, presume-se que o cedente
garante apenas a existência do direito de crédito que está a transmitir,
ou seja, assegura a validade e a consistência do direito cedido, não
respondendo, porém, pela solvência do devedor.
36. É perfeitamente lícito que as partes convencionem, válida e
legitimamente, conforme previsto no art. 1.074 do Código Civil de
1916, que o cedente seja responsável não só pela existência do crédito
como também pela solvência do devedor.
3 7. Tendo em vista a natureza da responsabilidade assumida pelo
cedente, existem duas modalidades de cessão:
a) cessão pro soluto, também denominada, na prática do mercado
financeiro, cessão sem coobrigação, na qual o cedente garante apenas a
existência do crédito, não respondendo por sua boa liquidação; e
b) cessão pro solvendo, ou cessão com coobrigação, em que o ce-
dente obriga-se a pagar ao cessionário na hipótese de insolvência do
devedor.
38. Na cessão pro solvendo, admite-se que a garantia prestada pelo
cedente seja:
a) subsidiária, hipótese em que responde o cedente caso o deve-
dor não pague e após excutidos os seus bens, nos termos do art.
1.491 10 do Código Civil de 1916; emerge a responsabilidade doce-
dente somente após ter o cessionário desenvolvido todos os meios,
inclusive os judiciais, para o recebimento de seu crédito;
b) solidária, caso em que, a teor do art. 896 11 do Código Civil de

8 Nota do Autor: vide art. 1. 749, inciso III do Código Civil de 2002.
9 Nota do Autor: vide art. 296 do Código Civil de 2002.
lO Nota do Autor: vide art. 827 do Código Civil de 2002.
11 Nota do Autor: vide art. 265 do Código Civil de 2002.

494
1916, o cedente concorre com o devedor no pagamento da dívida,
podendo o cessionário cobrar diretamente do cedente, sem a necessi-
dade de esgotar os meios de cobrança frente ao devedor original.

V- A CESSÃO DE CRÉDITO E O MÚTUO

39. O instituto jurídico da cessão de crédito, cujos contornos es-


senciais estão acima expostos, não se confunde com o do mútuo,
conforme veremos a seguir.
40. Nos termos do art. 1.256 12 do Código Civil de 1916, o mútuo
constitui o empréstimo de coisas fungíveis, ou seja, é o contrato pelo
qual uma das partes (mutuante) transfere uma coisa fungível a outra
(mutuário), que se obriga a lhe restituir coisa do mesmo gênero, qua-
lidade e quantidade.
41. Trata-se o mútuo de verdadeiro empréstimo de consumo,
uma vez que a coisa emprestada, sendo fungível ou consumível, não
pode ser devolvida, motivo pelo qual ocorre a restituição por igual
quantidade de bens do mesmo gênero e qualidade (tantudem eiusdem
generis et qualitatis).
42. O mútuo recai em coisas fungíveis, que, de modo geral, são as
que se consomem pelo uso. Pode acontecer, ainda, que uma coisa não
consumível pelo uso venha a se tornar fungível pelo seu destino, ou
mesmo por convenção entre as partes. Seu objeto mais comum, no
entanto, é o dinheiro, coisa fungível por excelência.
43. As principais características do contrato de mútuo são as se-
guintes:
a) O mútuo constitui tipicamente um contrato de natureza real,
exigindo, pois, a tradição da coisa para se perfazer. A tradição do bem
mutuado integra o contrato- é condição de sua existência, isto é, a
entrega efetiva da coisa constitui requisito de formação da relação
contratual. A traditio, considerada essencial à índole do contrato, é
elemento do mútuo e não propriamente adimplemento de dever do
mutuante. Por outro lado, sem a transferência da propriedade da coisa
emprestada, existe apenas a promessa de mutuar (pactum de mutuo
dando, contrato preliminar), que se não confunde com o próprio mú-
tuo. Com a tradição, o objeto do mútuo passa para o pleno domínio do
mutuário, que se torna proprietário da coisa emprestada, podendo
dar-lhe a destinação que entender: alienar, consumir, dispor, ou mes-

12 Nota do Autor: vide art. 586 do Código Civil de 2002.

495
mo abandonar. A tradição apresenta-se, ainda, como a conditio iuris
da restituição, ou seja, somente é exigível a restituição do bem do
mutuário que tenha efetivamente tomado posse real da coisa;
b) Como a tradição integra a constituição do contrato, não poden-
do ser considerada a entrega da coisa obrigação do mutuante, diz-se
que o mútuo tem natureza unilateral, uma vez que, em regra, somente
o mutuário contrai obrigações. De fato, o mutuante tem o direito de
exigir do mutuário a restituição da coisa mutuada, e, na hipótese de
mútuo feneratício, o pagamento dos juros estipulados;
c) A transferência da propriedade da coisa emprestada para o mu-
tuário ocorre com a tradição, motivo pelo qual considera-se o mútuo
um contrato translativo. Caio Mário salienta, no entanto, que "o mú-
tuo não é contrato de alienação, como a doação ou a compra e venda,
porque o efeito translativo não é o seu fim principal, mas o meio de
sua efetivação" 13 ;
d) A obrigação fundamental do mutuário é a de restituir o que
recebeu, em coisa do mesmo gênero, quantidade e qualidade. No
mútuo de dinheiro, que é o objeto mais comum desta espécie de
contrato, a identidade repousa na soma. A restituição de outra coisa
da mesma espécie, qualidade e quantidade é imprescindível para a
caracterização do contrato de mútuo, caso contrário o contrato seria
de troca, se o mutuante restituísse coisa diversa, ou de compra e
venda, se houvesse restituição de soma em dinheiro. A obrigação de
restituir é tão importante que perdura mesmo na hipótese de destrui-
ção da coisa;
e) Caracterizando-se o mútuo pela transferência da propriedade
da coisa mutuada e pela restituição de bem equivalente, o contrato
somente só se configura com a estipulação de que, oportunamente,
haverá a devolução. Trata-se, portanto, de um contrato temporário.
Se fosse perpétuo, o mútuo confundir-se-ia com a doação, se gratuito,
ou com a compra e venda, se oneroso. O mútuo deve ser constituído
por tempo determinado ou indeterminado, sempre, porém, com a
obrigação de restituir; e
f) Por fim, registre-se que a gratuidade não é da essência do con-
trato de mútuo, ao contrário do que ocorre com o comodato, que é
empréstimo de uso. O contrato de mútuo é, de natureza, gratuito.
Contudo, a lei permite a fixação, por cláusula expressa, de juros,

13 CAIO MÁRIO. Instituições de Direito Civil. lO ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
p. 219.

496
quando, então, o mútuo passa a ser oneroso, recebendo a designação
de mútuo feneratício.
44. Feitas estas considerações, cumpre-nos estabelecer as diferen-
ças entre a cessão de crédito e o mútuo.
45. Inicialmente, esclareça-se que ambos os institutos possuem
um ponto em comum - o cessionário e o mutuário adquirem a pro-
priedade plena dos bens respectivamente cedidos e mutuados, deles
podendo dispor como bem entenderem.
46. Assim, embora se reconheça alguma semelhança entre a ces-
são e o mútuo, vários são os aspectos que os distanciam, a saber:
a) No mútuo, tem de haver a entrega efetiva da coisa, ou seja, a
tradição é elemento integrante do contrato; na cessão, permite-se que
o cedente seja depositário da coisa cedida;
b) O objetivo, no contrato de mútuo, não é a transferência do
direito de propriedade, como ocorre na cessão; a propriedade, no
mútuo, somente é transferida porque é necessária para se poder atri-
buir ao mutuário o gozo da coisa mutuada. O fim precípuo do mútuo
é o transferir o uso da coisa. Na cessão, o fito é o de transferir a coisa
em si 14 ;
c) No mútuo, a transferência de propriedade da coisa emprestada
constitui mera circunstância acidental e não fundamental, por ser ape-
nas um efeito resultante do contrato, em virtude da tradição do bem
ao mutuário. A natureza do objeto do mútuo pressupõe sua destruição
pelo uso. A destinação do mútuo não é a alienação da coisa, mas sua
restituição. O mútuo não visa a atribuir ao mutuário um direito de
propriedade sobre o bem que lhe foi entregue pelo mutuante, mas a
conferir-lhe um direito de gozo sobre coisa determinada. A transfe-
rência da titularidade constitui um meio para a consecução do gozo
que se colhe pelo uso da coisa fungível. Na cessão, ao contrário, a
transferência de propriedade encerra um fim em si 15 ;
d) O contrato de mútuo pressupõe a obrigação de o mutuário
restituir coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade; enquanto na
cessão, há uma liberalidade, se gratuita, ou a obrigação de pagar, se
onerosa, caso em que, é considerada verdadeira compra e venda;

14 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 3a ed. São Paulo, RT,


1984, v. 42, p. 18.
15 ANTONIO CHAVES. Lições de Direito Civil. Direito das Obrigações IV. São
Paulo, RT., 1977, p. 232.

497
e) O mútuo constitui um contrato de natureza temporária, en-
quanto a cessão de créditos tem, via de regra, feições definitivas;
f) No mútuo, há dação da coisa fungível e o nascimento do crédito
contra o mutuário. Na cessão, o cedente cede o crédito e o que recebe
é contraprestação da cessão de crédito. No primeiro contrato, há nas-
cimento de um crédito; no segundo, o crédito é cedido; e
g) O mutuário deve desde o momento em que recebeu o bem
mutuado; o cedente pode vir a dever, eventualmente, se tiver estipu-
lado não somente que responderia pela existência do crédito, como
também por sua liquidação.
4 7. Estabelecidas as distinções entre cessão e mútuo, conclui-se
que as operações de cessão ora analisadas não podem ser consideradas
mútuo, pelos seguintes motivos:
a) Não há por parte do Banco X - Cedente - obrigação de
restituir, obrigação esta que constitui essência do contrato de mútuo;
b) Os Consulentes não tinham a intenção de entregar numerário
ao Banco X para que este o devolvesse, com juros. Eles entregaram ao
Banco X dinheiro para que este lhes entregasse créditos que detinha
contra terceiros; e
c) Os Consulentes, presume-se, para efetuarem a cessão, analisa-
ram a carteira de créditos do Banco X. O preço da cessão foi estabele-
cido, em princípio, tendo em vista a solidez dos créditos e a possibili-
dade de inadimplência, não tendo sido considerado o "risco Banco X",
como ocorreria caso o contrato por eles firmado fosse mútuo e não
cessão de créditos.
48. Registre-se, ainda, que, em direito obrigacional, as cláusulas
contratuais devem ser interpretadas tendo em vista a intenção mani-
festada das partes, quando da realização do negócio jurídico.
49. Na hipótese ora analisada, a vontade dos Consulentes foi a de
adquirir a carteira de créditos do Banco X e não, como entende o Banco
Central do Brasil, a de celebrar um contrato de mútuo com o mesmo.

VI- O MERCADO DE CESSÕES DE CRÉDITO E SUA


REGULAMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA

50. Nos últimos anos, verificou-se, no mercado financeiro, um


expressivo crescimento do volume de negócios de cessão de crédito
realizados entre instituições financeiras.
51. Trata-se do chamado mercado de cessões de crédito, o qual
constitui, atualmente, um dos mais ativos segmentos do sistema finan-
ceiro creditício.

498
52. A função econômica essencial do mercado de cessões de cré-
dito é a de assegurar liquidez às instituições financeiras cedentes,
que podem, mediante a cessão dos créditos, transformar créditos
em dinheiro.
53. Conforme vem sendo reconhecido pelas autoridades regula-
doras do sistema financeiro, há um interesse público no ordenado e
seguro desenvolvimento de operações de cessão de crédito entre
instituições financeiras.
54. Nesse sentido, a Diretoria do Banco Central vem enfatizando,
publicamente, que é interesse da autoridade monetária criar condi-
ções para que a liquidez do sistema financeiro não fique concentrada
em algumas instituições. A cessão de créditos ajuda a fazer com que
a liquidez fique melhor distribuída 16
55. Os negócios de cessão de crédito realizados no mercado finan-
ceiro são submetidos à regulamentação do Conselho Monetário Na-
cional- C.M.N.- e do Banco Central do Brasil.
56. Nesse sentido, foi inicialmente elaborada, pelo então Departa-
mento de Fiscalização do Mercado de Capitais do Banco Central, e
divulgada ao mercado, mediante o Ofício DEFIM-G-82/32, de
24.02.82, uma minuta de contrato de cessão de crédito, considerada
conforme aos requisitos do MNI 4-4-6-2-g.
57. Tal minuta de contrato de cessão de crédito previa:
a) a possibilidade de responder o cedente, subsidiariamente, pela
boa liquidação dos créditos cedidos;
b) a possibilidade de o cessionário constituir o cedente como de-
positário dos contratos e das garantias, assim como encarregá-lo da
cobrança dos créditos cedidos;
c) a possibilidade de multa a ser cobrada pelo cessionário no caso
de não cobrar o cedente os valores devidos pelos devedores;
d) a interveniência de fiadores, que se responsabilizariam, em ca-
ráter irrenunciável e irrevogável, sem benefício de ordem, como prin-
cipais pagadores, solidariamente com o cedente, por todas as obriga-
ções por ele assumidas.
58. A partir de então, não restou qualquer dúvida quanto à plena
legitimidade de serem tais operações realizadas no âmbito do sistema
financeiro nacional, como negócios jurídicos típicos e submetidos a
uma disciplina regulamentar própria, que não se confunde com aquela
referente às operações de empréstimo.

16 Gazeta Mercantil, 06/ll/98, p. B3.

499
59. Posteriormente, em 1992, foi baixada, pelo CMN, a Resolu-
ção n° 1.962, que regulamentou as operações de cessão de crédito
realizadas no âmbito do sistema financeiro nacional. Em 1995, o Ban-
co Central editou a Carta-Circular n° 2.605, também disciplinando
tais negócios jurídicos e estabelecendo determinadas condições veda-
das às instituições financeiras.
60. O art. 1° da Resolução 1.962/92 expressamente autoriza as
instituições financeiras a ceder a outras instituições da mesma espécie
os créditos oriundos de operações de empréstimo, de financiamento e
de arrendamento mercantil.
61. O art. 2° da Resolução admite a cessão de créditos nas seguin-
tes modalidades:
a) com coobrigação da instituição cedente, que se responsabilizará
subsidiariamente pela liquidação dos créditos cedidos; e
b) sem coobrigação da instituição financeira cedente.
62. Já o art. rda Resolução 1.962/92 estabelece que não será
admitida:
a) a cessão de créditos inscritos nas contas de créditos em liquida-
ção; e
b) a recompra, a prazo, de créditos vincendos, anteriormente ce-
didos;
63. A Carta-Circular n° 2.605, do Banco Central, determinou que
deveriam ser observadas as disposições constantes dos arts. 1.065 17 a
1.078 do Código Civil de 1916, assim como aquelas da Resolução
1.962/92, admitindo, expressamente, as cessões de crédito com coo-
brigação subsidiária da instituição financeira cedente.
64. O mercado financeiro, porém, consagrou inequivocamente os
negócios jurídicos de cessão com coobrigação solidária da instituição
cedente, por motivos de ordem prática. Com efeito, os usos e costu-
mes do sistema financeiro creditício indicam que, sem a existência de
coobrigação solidária, tais negócios estariam fadados à ineficácia.
65. Tal ocorreu pelo fato evidente de que acarretaria enormes e
desnecessários custos de transação para os participantes do mercado a
necessidade de, em cada caso de inadimplemento, ser a instituição
cessionária obrigada a esgotar os esforços de cobrança, inclusive judi-
cial, do devedor, antes de proceder à cobrança da instituição financei-
ra cedente, solidariamente responsável.

17 Nota do Autor: vide arts. 286 a 298 do Código Civil de 2002.

500
66. Jamais cogitou-se de ser a cessão de crédito desnaturada pelo
fato de prever-se, no instrumento contratual, a responsabilidade soli-
dária do cedente.
67. Em primeiro lugar, porque o Código Civil admite a coobriga-
ção do cedente, em qualquer de suas modalidades: subsidiária ouso-
lidária.
68. Em segundo lugar, pela inexistência de qualquer norma regu-
lamentar que proibisse expressamente a instituição de responsabilida-
de solidária por parte da instituição financeira cedente.
69. Ainda que se pudesse eventualmente inquinar de irregular a
previsão de solidariedade, a inclusão de cláusula de tal natureza jamais
poderia acarretar a nulidade da cessão, muito menos a sua transforma-
ção, contra a vontade das partes, em contrato de mútuo.
70. Com efeito, o Código Civil de 1916, em seu art. 153 18 , dispõe
expressamente que a nulidade parcial de um ato não o prejudicará na
parte válida, se esta for separável. Embora a nulidade da obrigação
principal implique a das obrigações acessórias, a destas evidentemente
não induz a nulidade da obrigação principal.
71. Daí decorre, sem qualquer dúvida, que a inclusão de cláusula
de solidariedade, ainda que pudesse ser considerada irregular por par-
te do Banco Central, por caracterizar obrigação acessória do cedente,
jamais poderia acarretar a nulidade do contrato de cessão de crédito,
muito menos a sua transformação em negócio jurídico de mútuo.
72. Tendo em vista a necessidade de conciliar a regulamentação
administrativa com as práticas consagradas no mercado, o CMN edi-
tou, em 05.11.98, a Resolução n° 2.561 19 , que admitiu, inequivoca-
mente, a coobrigação solidária do cedente.
73. Com efeito, seu art. 3° assim dispõe:

"Art. 3° -A cessão de créditos de que trata esta Resolução pode ser


efetuada com ou sem coobrigação da instituição cedente".

74. Conforme a interpretação do próprio Banco Central, a Reso-


lução 2.561/98 objetiva corrigir falha verificada na regulamentação
anterior, que travava o pleno desenvolvimento do mercado de ces-
sões de crédito, ao exigir que a instituição cessionária somente pudes-

18 Nota do Autor: vide art. 184 do Código Civil de 2002.


19 Nota do Autor: A Resolução n° 2.561/98 foi revogada pela Resolução n° 2.836 de
30.05.2001, que por sua vez foi modificada pela Resolução n° 2.843 de 28.06.2001.

501
se cobrar da cedente após esgotar os esforços de cobrança, inclusive
judicial, do devedor inadimplente 20 .

VII -A LEGITIMIDADE DOS CONTRATOS DE CESSÃO


DE CRÉDITOS

7 5. Analisando os contratos de cessão de créditos firmados entre


os Bancos Consulentes e o Banco X, não temos qualquer dúvida em
concluir pela sua plena legalidade e legitimidade, dada a conformida-
de de sua causa com as finalidades almejadas pelas partes.
76. A causa de qualquer negócio jurídico constitui o resultado
concreto, predominantemente econômico, que as partes contratantes
propõem-se a atingir, ou seja, a contraprestação que um dos contraen-
tes visa a obter, por meio de sua prestação.
77. No caso presente, não há qualquer dúvida de que os contratan-
tes estavam firmemente convencidos de que praticavam negócios ju-
rídicos de cessão de créditos, inexistindo qualquer contradição entre
os objetivos por eles visados e os instrumentos contratuais utilizados.
78. Da análise dos contratos que empreendemos, resulta-nos cris-
talino que as partes estavam atuando em conformidade com o prin-
cípio da boa fé que deve necessariamente presidir os negócios jurí-
dicos, sem qualquer propósito de atingir resultados diversos daque-
les que podem ser logrados com a realização de contratos de cessão de
crédito.
79. Ademais, as cessões de crédito submetidas à nossa análise
estavam não só atendendo às normas do Código Civil e da regulamen-
tação administrativa, como também plenamente conformes às práti-
cas e aos usos do mercado financeiro.
80. Não há, nos argumentos apresentados na decisão DEBHO-RE-
PAD qualquer fundamentação jurídica ou mesmo derivada das práti-
cas legítimas do mercado que possa justificar a desqualificação dos
contratos de cessão de crédito submetidos à nossa análise, muito me-
nos a sua transformação em contratos de mútuo.

VIII -AS RESPOSTAS AOS QUESITOS

81. Face à análise até aqui desenvolvida, assim respondemos aos


quesitos formulados pelos Consulentes:

20 Gazeta Mercantil, cit.

502
PERGUNTA

1. É cabível a propositura de Recurso Hierárquico à decisão


tomada pela Divisão de Processos Administrativos de Regimes
Especiais da Delegacia Regional de Belo Horizonte à instância
administrativa superior?

RESPOSTA

É plenamente cabível o Recurso Hierárquico apresentado pelos


Consulentes, dada a ilegalidade da decisão administrativa da DEB-
HO-REPAD, cuja eventual manutenção poderia causar manifesta le-
são aos interesses legítimos dos Bancos cessionários.

PERGUNTA

2. Os contratos sob discussão, dadas as suas características,


constituem contratos de mútuo ou instrumentos de cessão de cré-
dito?

RESPOSTA

Os contratos submetidos à nossa análise constituem, inequivoca-


mente, instrumentos legítimos de cessão de crédito, aptos a produzi-
rem todos os seus efeitos legais, não se confundindo com contratos de
mútuo.
Foi o nosso Parecer, em novembro de 1998.

503
CRÉDITO RURAL E ~~sECURITIZAÇÃO"
DAS DÍVIDAS

1-ACONSULTA

Do BANCO X, recebemos a seguinte Consulta:

"Em 19 de junho de 2000, a COMPANHIA ALFA ajuizou ação em


face do Banco X, requerendo que as dívidas oriundas de duas cédulas
de crédito industrial, bem como de um contrato de mútuo, fossem
objeto do alongamento previsto na Lei 9.138!95.
Tal pleito havia sido submetido ao BANCO X por meio de notificação
extrajudicial, tendo o BANCO X exarado sua negativa em atendê-lo,
tendo em vista que, no entender do Banco, tais dívidas não seriam
oriundas de crédito rural, pelos seguintes fundamentos, também in-
corporados à contestação oferecida nos autos da ação ordinária poste-
riormente promovida por COMPANHIA ALFA em face do BANCO
X:
(i) o BANCO X não possui carteira de crédito rural e não possui
autorização do Banco Central para atuar em tal segmento, fato esse
que, por si só, além de demonstrar que tais empréstimos não possuem
natureza de crédito rural, acarretaria a impossibilidade jurídica do
pedido, uma vez que não seria possível ao BANCO X efetuar o alon-
gamento requerido pelo autor;
(i i) tais créditos foram concedidos com o expresso objetivo de reforçar
o capital de giro da devedora (que não atua somente na agricultura,
mas também na piscicultura e nos setores industrial, comercial e de
importação e exportação, conforme consta de seu próprio estatuto so-
cial), não tendo, ainda, sido observadas quaisquer das formalidades
exigidas pela legislação que regulamenta o crédito rural quando da
concessão do crédito;
(iii) tais empréstimos foram concedidos com a alocação de recursos
obtidos por meio de "operações 63", conforme expressa previsão con-
tratual, não sendo possível seu enquadramento como crédito rural;

505
(i v) o simples fato de a devedora ter eventualmente, segundo suas
alegações, aplicado tais recursos em sua atividade agrícola não é sufi-
ciente para caracterizar tais empréstimos como crédito rural, que
pressupõe uma série de rígidos requisitos para sua concessão, tais
como liberação do crédito em função do ciclo da produção e da capaci-
dade de ampliação do financiamento; prazos e épocas de reembolso
ajustados à natureza e especificidade das operações rurais, bem como
à capacidade de pagamento e às épocas normais de comercialização
dos bens produzidos pelas atividades financeiras, entre outros requisi-
tos previstos na legislação e no Manual de Crédito Rural;
(v) em que pese o fato de parte da jurisprudência entender diversa-
mente, o alongamento das dívidas oriundas de crédito rural, nos ter-
mos da Lei no 9.138!95, constitui uma faculdade e não uma obrigação
das instituições financeiras, conforme maciço entendimento do 1o Tri-
bunal de Alçada Civil de São Paulo.
No entanto, em sua réplica, COMPANHIA ALFA sustentou que as
operações realizadas entre as partes constituem "63 caipiras" e, a
partir dessa premissa, qualifica-as como crédito rural, na medida em
que bastaria que os recursos obtidos por meio de tais operações fossem
destinados à atividade agrícola para que se configurasse o crédito
rural. Tal raciocínio se baseia no fato de que, tendo a Resolução 2.148
expressamente excluído as operações "63 caipiras" da incidência do
Manual de Crédito Rural, não seria necessário que tais operações
preenchessem os requisitos previstos no referido manual para que fos-
sem qualificadas como crédito rural.
O BANCO X, em sua tréplica, refutou tais argumentos, demonstran-
do que: (i) os contratos em debate são oriundos de operações "63"
propriamente ditas e não de "63 caipiras"; (ii) ainda que se tratasse
de contratos oriundos de operações "63 caipiras", os mesmos não con-
figurariam crédito rural, mesmo porque concedidos por meio de dis-
tintos instrumentos (cédulas de crédito industrial e contrato de mú-
tuo).
Diante dessa controvérsia, solicitamos a V.Sa. a elaboração de um
Parecer abordando os pontos supra mencionados, bem como quaisquer
outros julgados pertinentes sobre o assunto.

11 -O PARECER

Objetivando uma análise sistemática das questões submetidas


ao nosso exame, desenvolveremos o presente Parecer da seguinte
forma:

506
1. O crédito rural e sua disciplina no sistema jurídico nacional
1.1. Destinação dos recursos ao crédito rural
1.2. Requisitos para a concessão do crédito rural
1.3. Partes no contrato de crédito rural
1.4. Títulos de crédito rural
1.5. Origens dos recursos destinados ao crédito rural
2. Financiamentos oriundos de repasses de recursos externos (63
caipiras)
3. O tratamento privilegiado concedido ao crédito rural
4. A "securitização" das dívidas
5. A natureza jurídica da relação contratual mantida entre o Autor e
o Banco Réu
6. Conclusões

1. O CRÉDITO RURAL E SUA DISCIPLINA NO SISTEMA


JURÍDICO NACIONAL

O crédito rural constitui um dos segmentos do mercado de crédi-


to, que tem por objeto fornecer os recursos necessários ao pleno de-
senvolvimento das atividades agrárias.
Duas são as finalidades básicas do crédito rural, conforme aponta
a doutrina: melhorar as condições de vida e de trabalho daqueles que
se dedicam às atividades agrárias; e encorajar a formação e a consoli-
dação de empreendimentos eficientes, em termos de capacidade pro-
dutiva1.
Entre nós, a legislação sobre crédito rural passou a ser sistematiza-
da a partir de 1964, com a edição da Lei n° 4.595/64, que disciplinou
o sistema financeiro nacional, bem com a promulgação da Lei n°
4.829/65, que institucionalizou o crédito rural, a qual foi regulamen-
tada pelo Decreto no 58.380/66.
Posteriormente, foram editados os seguintes atos: Decreto-Lei no
79/66; Decreto-Lei n° 167/67; Lei n°8.17l/91; Lei n° 8.174/91; Lei
n° 8.880/94; Lei no 9.069/95; Lei no 9.138/95; e Lei n° 9.866/99.
Tendo em vista a atribuição genérica contida na Lei no 4.595/64
para o Conselho Monetário Nacional- CMN- regular o crédito,
em todas as suas modalidades, passou este órgão a normatizar o crédi-
to rural, mediante a edição de Resoluções.

I MARCO GOLDONI, "11 credito agrario" in Manuale di Diritto Agrario, Torino,


UTET, 1980, pg. 597.

507
Nos termos do art. 4o da Lei n° 4.829/65, compete ao CMN não
só disciplinar o crédito rural no País, como também estabelecer, com
exclusividade, normas sobre os seguintes tópicos:

I - avaliação, origem e dotação dos recursos a serem aplicados no


crédito rural;
11 - diretrizes e instruções relacionadas com a aplicação e controle
do crédito rural;
111- critérios seletivos e de prioridades para a distribuição do crédi-
to rural;
IV- fixação e ampliação dos programas de crédito rural, abrangen-
do todas as formas de suplementação de recursos, inclusive refinan-
ciamento.

A Lei 4.595/64 atribuiu genericamente ao Banco Central do Brasil


- BACEN - a função de implementar as políticas elaboradas pelo
CMN.
Ademais, a teor do art. 5° da Lei no 4.829/65, ao BACEN foi
atribuída a função de órgão de controle do sistema nacional do crédi-
to rural, competindo-lhe:

I - sistematizar a função dos órgãos financiadores e promover a sua


coordenação com os que prestam assistência técnica e econômica ao
produtor rural;
11 - elaborar planos globais de aplicação do crédito rural e conhecer
de sua execução;
111 - determinar os meios adequados de seleção e prioridade na
distribuição do crédito e estabelecer medidas para o zoneamento
dentro do qual devem atuar os diversos órgãos financiadores em fun-
ção dos planos elaborados;
IV - incentivar a expansão da rede distribuidora do crédito rural,
especialmente através de cooperativas;
V- estimular a ampliação dos programas de crédito rural, mediante
financiamento aos órgãos participantes da rede distribuidora do cré-
dito rural.

Os atos regulamentares que foram sendo baixados pelo CMN e


pelo BACEN no exercício de suas atribuições legais estão contidos no
Manual de Crédito Rural- MNR- e no Manual de Crédito Agroin-
dustrial- MCA- que disciplinam, detalhadamente, em todos os
seus aspectos, as operações de crédito ao setor rural.

508
Nos termos expressos do art. 1o da Lei no 4.829/65, o crédito rural
será distribuído e aplicado de acordo com a política de desenvolvimento
da produção rural do País e tendo em vista o bem-estar do povo.
A Constituição Federal estabelece que o crédito rural constitui
um dos mecanismos essenciais da política agrícola, elaborada com o
objetivo de concretizar a realização do bem-estar social (art. 187, 1).
Daí decorre, conforme já enfatizado doutrinariamente, que o cré-
dito rural, tendo uma finalidade tipicamente social, constitui um cré-
dito especial, com aspectos peculiares, que o tornam inconfundível
com outros tipos de financiamentos 2 .
Assim, o crédito rural é submetido a um regime jurídic"o próprio,
que não se confunde com o de financiamentos de outra natureza.
As características próprias do crédito rural, estabelecidas na legis-
lação e na regulamentação administrativa, e que o distinguem de ou-
tras operações creditícias, dizem respeito aos seguintes elementos:

1. destinação dos recursos ao crédito rural;


2. requisitos para a concessão do crédito;
3. partes no contrato de crédito rural;
4. títulos de crédito rural; e
5. origens dos recursos.

1.1. Destinação dos recursos ao crédito rural

O crédito rural, sem qualquer dúvida, caracteriza-se essencial-


mente por sua marcante e imodificável destinação, que é a de dar
suporte financeiro ao produtor rural, para que possa desenvolver a sua
atividade produtiva, com vistas ao seu fortalecimento econômico, ob-
jetivo tido como de interesse público 3 .
Assim, o crédito rural constitui tipicamente um mútuo com des-
tinação, instituto, conforme PONTES DE MIRANDA4 , que designa
o mútuo de escopo, firmado para um fim preciso, seja para atender a
interesse público, seja a interesse privado, do qual as partes não po-
dem se afastar, sob pena ensejar a resilição contratual, por adimple-
mento ruim.

2 LUTERO DE PAIVA PEREIRA, Securitização e Crédito Rural, Curitiba, Ed.


Juru~ 1997,pg. 15.
3 LUTERO DE PAIVA PEREIRA, Crédito Rural- Questões Controvertidas, Curi-
tiba, E. Juruá, 1998, pg. 89.
4 Tratado de Direito Privado, São Paulo, RT, 1984, tomo XLII, pg. 15.

509
A destinação a ser dada ao crédito rural emana de Lei, de normas
de ordem pública, não podendo, por definição, ser modificada pelas
partes, de vez que há um interesse público na aplicação de tais recur-
sos em atividades agrárias.
A obrigatoriedade de aplicação de recursos dirige-se tanto para as
instituições financeiras como para os produtores rurais.
No que toca às primeiras, a Lei 4.829/65, em seu art. 21, combi-
nado com o art. 7°, dispõe expressamente que as instituições de cré-
dito e demais entidades integrantes do Sistema Nacional de Crédito
Rural deverão aplicar, obrigatoriamente, em operações típicas de cré-
dito rural, percentagem dos recursos com que operarem, a ser fixada
pelo CMN. Conforme o § 3° do art. 21, ficam os infratores sujeitos a
elevadas multas, variáveis entre 10% e 50% sobre os valores não apli-
cados no crédito rural.
No que diz respeito aos beneficiários, o art. 2o da Lei no 4.829/65
consagra inequivocamente o princípio da destinação exclusiva do cré-
dito agrícola, ao dispor que:

"Art. 2°. Considera-se crédito rural o suprimento de recursos finan-


ceiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particula-
res a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclu-
siva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na le-
gislação em vigor". (grifamos)

A aplicação dos recursos unicamente para os fins contratuais está


igualmente expressa no art. 2° do Decreto-lei no 167/67, nos termos
do qual o emitente de título de crédito rural fica obrigado a aplicar
o financiamento nos fins ajustados, devendo comprovar essa aplica-
ção no prazo e na forma exigida pela instituição financeira.
Nos termos do art. 8° da Lei no 4.829/65, o crédito rural somente
pode ser aplicado no financiamento das atividades rurais, para suprir
as necessidades financeiras de custeio e de comercialização da produ-
ção própria, como também de capital para investimentos e industria-
lização de produtos agropecuários, quando efetuados por cooperativas
ou pelo produtor na sua propriedade rural.
A teor do art. 9° da Lei no 4.829/65, há quatro tipos de crédito
rural: custeio, destinado a cobrir despesas normais, ou os custos da
produção agrícola (plantação de milho, arroz, etc.); investimento, vol-
tado para a formação de capital fixo ou semifixo em bens ou serviços
(aquisição de máquinas ou construção de silos); comercialização, des-
tinado a cobrir despesas posteriores à colheita, relacionadas à venda

510
de sua produção rural; industrialização, voltado para financiar a trans-
formação da matéria-prima diretamente pelo produtor (beneficia-
mento do arroz, formação de sementes, etc.) 5
Tendo em vista evitar o desvio de finalidade e o conseqüente
desvirtuamento do crédito rural, o Decreto no 58.380/66, que regula-
mentou a Lei no 4.829/65, em seu art. 14, parágrafo único, vedou a
aplicação de recursos destinados aos crédito rural nos seguintes casos:

1. subsidiar atividades deficitárias ou antieconômicas;


2. financiar o pagamento de dívidas contraídas antes da apresentação
da proposta;
3. possibilitar a recuperação do capital investido;
4. favorecer a retenção especulativa de bens;
5. antecipar a realização de lucros presumíveis.

Nos termos do art. 4o do Decreto-lei no 167/67, nas operações de


crédito rural nas quais as liberações de recursos ocorram de maneira
parcelada, o financiador deverá abrir uma conta vinculada, usualmen-
te chamada conta gráfica, mediante a qual efetua-se o controle quanto
à adequada aplicação dos recursos. Conforme orientação jurispruden-
cial, a inexistência da conta gráfica acarreta a iliquidez, incerteza e
inexibilidade da dívida decorrente de cédula rural 6 .
A partir de 1989, com a drástica redução nos volumes destinados
ao crédito agrícola, verificou-se crescente número de casos de desvio
de finalidade do crédito rural, que passaram a ser conhecidos como
operações "Mata-Mata" 7 , mediante as quais matava-se o débito do
produtor rural mediante a tomada de um novo financiamento, masca-
rando-se a quitação através de malabarismos financeiros, tais como
cheques especiais, empréstimos pessoais, etc. Tais operações, que ca-
racterizavam desvio da destinação do crédito rural, foram objeto de
censura pública, no Congresso Nacional, na CPMI do Endividamento
da Agricultura.
Não basta que os recursos mutuados sejam utilizados em ativida-
des rurais para que se qualifique a operação como de crédito rural,

s WELLINTON PACHECO BARROS, O Contrato e os Títulos de Crédito Rural,


Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, Z.OOO, pg. 79.
6 Recurso Especial n° 39.529-1-GO, decidido pela Terceira Turma do STJ, Revista
Jurídica, n° 199, pg. 90.
7 RICARDO BARBOSA ALFONSIN, Crédito Rural- Questões Polêmicas, Porto
Alegre, Ed. Livraria do Advogado, ZOOO, pg. 139.

511
sendo indispensável a presença de outros requisitos, conforme a se-
guir analisado.

1.2. Requisitos para a concessão do crédito rural

Tendo em vista a necessária destinação do crédito rural às ativida-


des expressamente previstas na legislação específica sobre a matéria,
são estabelecidos determinados requisitos para a sua concessão, dos
quais as partes não podem se apartar.
Com efeito, o crédito rural não constitui uma operação bancária
em que o tomador e o emprestador dos recursos estipulam livremente
as suas condições. Devem ser seguidos requisitos específicos para a
concessão do crédito, que o qualificam como crédito rural, submeten-
do-o a um regime jurídico próprio, mais benéfico para o mutuário dos
recursos do que nos demais casos de empréstimos bancários, confor-
me analisaremos mais adiante.
Conforme enfatiza a doutrina, os bancos e os tomadores dos re-
cursos não tem o poder discricionário de atuar diversamente do que a
lei preconiza. A propósito, acentua-se que;

"NÃO BASTA SER PRODUTOR RURAL para que imediatamente


alguém se invista na condição de beneficiário do crédito rural 8". (gri-
famas)

Como o financiamento rural exige disposição clara quanto ao des-


tino a ser dado aos recursos tomados pelo produtor rural, a legislação
sempre definiu, exaustivamente, quais as exigências a que se subordi-
nam as operações de crédito rural.
A matéria foi inicialmente tratada no art. lO da Lei n° 4.829/65,
com a regulamentação que lhe foi dada pelo Decreto no 58.380/66,
exigindo-se três exigências essenciais para a caracterização de deter-
minada operação creditícia como crédito rural:

I - idoneidade do proponente;
I I - apresentação de orçamento de aplicação nas atividades específi-
cas;
III - fiscalização pelo financiador.

s WELLINTON PACHECO BARROS, ob. cit., pg. 73.

512
Presentemente, a questão é disciplinada no art. 50 da Lei no
8.1 71, que assim dispõe:

"Art. 50 -A concessão de crédito rural observará os seguintes pre-


ceitos básicos:
I - Idoneidade do tomador;
11 - fiscalização pelo financiador;
Ill - liberação de crédito diretamente aos agricultores ou por inter-
médio de suas associações formais ou informais, ou organizações coo-
perativas;
IV - liberação do crédito em função do ciclo da produção e da
capacidade de ampliação do financiamento;
V- prazos e épocas de reembolso ajustados à natureza e especifici-
dade das operações rurais, bem como à capacidade de pagamento e às
épocas normais de comercialização dos bens produzidos pelas ativida-
des financeiras.
§ 1o Vetado
§ 2° - Poderá exigir-se dos demais produtores rurais contrapartida
de recursos próprios, em percentuais diferenciados, tendo em conta
a natureza e o interesse da exploração agrícola.
§ 3°- A aprovação do crédito rural levará sempre em conta o zonea-
mento agroecológico".

A primeira exigência refere-se à idoneidade do tomador, a qual


deverá ser aferida pelo banco, com base no registro cadastral do mu-
tuário, de existência obrigatória, assim como, facultativamente, em
informações do SERASA, CADIN, SPC, etc.
Em segundo lugar, o tomador submete-se à fiscalização pelo fi-
nanciador, que não constitui uma mera faculdade do banco empresta-
dor, mas uma obrigação legal, já que lhe cumpre verificar se os recur-
sos estão, de fato, sendo alocados em sua destinação específica.
Cabe observar que, nos termos dos arts. 6° e r do Decreto-lei no
167/67 o financiado facultará ao financiador a mais ampla fiscalização
da aplicação dos recursos, podendo o financiador, sempre que julgar
conveniente, percorrer as dependências dos imóveis e verificar o an-
damento dos serviços.
O Manual de Crédito Rural- MCR- em seu Capítulo 2, Seção
7, disciplina, detalhadamente, a forma como deve ser exercida a fisca-
lização por parte do mutuante, estabelecendo que constitui falta grave
para a instituição financeira qualquer omissão ou negligência na aferi-
ção da correta aplicação dos recursos.

513
Ademais, o crédito deve ser liberado diretamente aos agricultores,
ou por meio de suas associações ou cooperativas, para que não ocorra
o desvio dos recursos para outras finalidades.
Aspecto fundamental para a caracterização do crédito rural refe-
re-se à oportunidade da liberação dos recursos, que deverá ocorrer
em função do ciclo da produção; com essa exigência, veda-se a libera-
ção do crédito rural fora do ciclo de produção objeto do contrato.
Tal como refere a doutrina, a condição imposta no preceito legal
visa a estabelecer um mecanismo de controle para que o crédito rural
seja efetivamente empregado na produção rural e não desviado dessa
função. Dessa forma, se o crédito rural se destina ao custeio de uma
lavoura de arroz, sua liberação só pode ocorrer no período próprio
para essa atividade rural 9 .
Nesse sentido, o Decreto-lei 167/67, em seu art. 3°, assim como
o Manual de Crédito Rural, em seu Capítulo 2, Seção 2, item l,
estabelecem que os créditos concedidos ficam vinculados a um orça-
mento de aplicação dos recursos, o qual deve discriminar a espécie, o
valor e a época de todas as despesas e inversões programadas, de sorte
a que se possa verificar: a oportunidade, suficiência e adequação do
financiamento; a eventual existência de duplicidade de financiamento
para itens já atendidos; e o amparo técnico do pedido.
Conforme já analisado doutrinariamente, deve o orçamento indi-
car o montante e a época de todas as despesas indispensáveis ao bom
desempenho do empreendimento, especificando-se e discriminan-
do-se todos os setores das lavouras, as despesas de custeio, de aqui-
sição de sementes, de irrigação, etc., de sorte a se afastar os riscos
da improvisação e a se determinar a destinação específica dos recur-
sos financiados 10 .
Nos termos do art. 11 do decreto-lei no 167/67, repetindo idênti-
co preceito da Lei n° 3.253/57, que até então regulava a matéria,
acarreta o vencimento da cédula de crédito rural, independentemente
de aviso ou interpelação judicial, a inadimplência de qualquer obriga-
ção convencional ou legal do emitente do título ou, sendo o caso, do
terceiro prestante da garantia real.
A infração à regra de que os recursos devem ser aplicados nos fins
ajustados no orçamento acarreta o vencimento imediato da obrigação,

9 WELLINGTON PACHECO BARROS, ob. cit., pg. 78.


10 ARNALDO RIZZARDO, Contratos de Crédito Bancário, São Paulo, RT, 2000,
pg. 207.

514
com a aplicação das penalidades moratórias previstas na cédula de
crédito rural.
Tal ocorre porque, na lição da doutrina:

"O Orçamento constitui, no teor do decreto-Lei no 167, de 1967,


documento complementar da operação de crédito rural, em que o obje-
to do financiamento fica como que 11 empenhado" a uma destinação
contratual determinada. O 11 empenho" é expressão mais de Direito
Administrativo, e, pois, de Direito Público; entretanto, dada a na-
tureza do crédito rural, que é um crédito de destinação, existe,
na aplicação do financiamento obtido, verdadeira vinculação
legal. A despesa, e, pois, o emprego da quantia mutuada só tem foros
de legalidade, se feita de acordo com a sua predeterminação. Não há
possibilidade de desvio, considerando-se ato de inadimplência
qualquer ação contrária do devedor, sob a grave sanção do venci-
mento antecipado da cédula ... " 11 (grifamos).

Assim, tão logo sejam os recursos liberados, nasce para o mutuário


a obrigação de comprovar a correta aplicação dos recursos nas ativi-
dades propostas, podendo o financiador exigir-lhe a apresentação de
documentação própria, como meio de provar a adequação do emprés-
timo às finalidades descritas no orçamento de aplicação do crédito 12 .
Finalmente, o reembolso do crédito rural deve obedecer a épocas
próprias, ajustadas ao objeto do contrato e à capacidade de pagamento
do mutuário, considerando-se os períodos normais de comercialização
da produção.
Tal como ocorre nos contratos de arrendamento ou parceria, os
contratos de crédito rural devem ter prazos de pagamento compatí-
veis com o tipo de exploração rural objeto do financiamento e a época
de sua comercialização; entende-se, assim, que o pagamento do crédi-
to rural só pode ocorrer em safra certa, não em data certa; daí decorre
que as datas de vencimento das cédulas rurais, disciplinadas pelo
Decreto-lei no 167/67, devem ser fixadas dentro de razoável proxi-
midade com a época de comercialização dos produtos rurais a elas
vinculados 13 .

11 LAURO MUNIZ BARRETO, Financiamento Agrícola e Títulos de Crédito Rural.


São Paulo: Ed. Max Limonad, 1968, pg. 35.
12 LUTERO DE PAIVA PEREIRA, Financiamento e Cédula de Crédito Rural, Curi-
tiba, E. Juruá, 1998, pg. 21.
13 WELLINGTON PACHECO BARROS, ob. cit., pg. 78.

515
1.3. Partes no contrato de crédito rural

A relação obrigacional de crédito rural não pode ser estabelecida


entre quaisquer pessoas, dadas as suas peculiaridades e regime jurídi-
co próprio, mas apenas entre aquelas expressamente mencionadas em
Lei.
Podem ser mutuantes, ou financiadores, na dicção do art. 48 da
Lei 8.171!91, que revogou o art. r da Lei no 4.829/65, o qual elenca-
va a nominata dos integrantes do Sistema de Crédito Rural, todos os
agentes financeiros, sem discriminação entre eles.
Agentes financeiros são as instituições financeiras, públicas ou pri-
vadas, entidades que tem como atividade principal ou acessória a co-
leta, intermediação e aplicação de recursos financeiros, nos termos do
art. 17 da Lei 4.595/64.
A caracterização jurídica da atividade desenvolvida pelas institui-
ções financeiras pode ser verificada em função de três elementos bá-
sicos 14 :
a) a ocorrência de intermediação, que supõe o dar e receber recur-
sos financeiros, porém atuando, o intermediário, como credor e deve-
dor; ou seja, o intermediário capta o dinheiro alheio e o vende, com
juros, assumindo diretamente o risco do negócio;
b) a participação na cadeia obrigacional, de tal sorte que não have-
rá intermediação financeira se o intermediário não é devedor de quem
lhe entregou o dinheiro e credor daquele para quem emprestou; e
c) a interposição no crédito, de tal sorte que o objeto da institui-
ção financeira é constituído precisamente pela negociação do crédito;
meramente o tomar o dinheiro ou emprestá-lo não é atividade típica
e privativa de instituição financeira; pode-se dizer, então, que o inter-
mediário financeiro é aquele que recebe o dinheiro para o fim de
emprestá-lo com juros.
Não são todas as instituições financeiras que estão habilitadas a
realizar operações de crédito rural, ainda que a Lei 8.171/91 utilize a
expressão todos os agentes financeiros, sem qualquer discriminação
entre eles.
Em primeiro lugar, tratando-se de operação de crédito rural, só
podem praticá-la as instituições financeiras cujas atividades estão vol-
tadas ao crédito: Banco Comercial; Banco Múltiplo com carteira de
crédito; e Sociedade de Crédito, Financiamento e Investimento.

14 Conf. o nosso: "Administração de cartão de crédito constitui atividade privativa de


instituição financeira?" in RDM n° 88, out./dez.l992. pág.25.

516
Em segundo lugar, tratando-se de operação de crédito rural, so-
mente podem nela atuar as instituições bancárias integrantes do Siste-
ma Nacional de Crédito Rural, que são aquelas que dispõem de uma
carteira de crédito rural, devendo inclusive, nos termos do MCR,
manter, em sua administração, um Diretor de Crédito Rural, respon-
sável pela gestão de tal carteira, compreendendo as atividades de:
concessão do crédito; fiscalização de sua utilização; e cobrança.
Com efeito, é impossível a c.oncessão de crédito rural sem que o
banco tenha uma carteira própria, com estrutura adequada, não só
porque as normas do MCR assim o exigem, como também porque as
diversas Leis que disciplinam a matéria, conforme até aqui analisado,
exigem da instituição financeira cautelas especiais na concessão do
crédito e, principalmente, na fiscalização de sua efetiva destinação,
mediante o acompanhamento da execução do orçamento e da conta
gráfica.
Além das instituições financeiras creditícias, também podem
atuar como órgãos concedentes de crédito rural, de acordo com o art.
7a da Lei n°. 4.829/65, as cooperativas autorizadas a atuar em crédito
rural.
Já os beneficiários, ou tomadores do crédito rural, são, nos ter-
mos da legislação e regulamentação administrativa (MCR 1.4.) os
seguintes:

1. o produtor rural (pessoa física ou jurídica);


2. a cooperativa de produtores rurais;
3. as pessoas físicas ou jurídicas que, embora não se conceituem como
produtores rurais, dedicam-se às seguintes atividades vinculadas ao
setor:
3.1. pesquisas ou produção de mudas ou sementes fiscalizadas ou
certificadas;
3.2. pesquisa ou produção de sêmen para inseminação artificial;
3.3. prestação de serviços mecanizados, de natureza agropecuária,
em imóveis rurais, inclusive para a proteção do solo;
3.4. prestação de serviços de inseminação artificial, em imóveis ru-
rais;
3.5. exploração da pesca, com fins comerciais;
3.6. medição de lavouras.

Os beneficiários do crédito rural são classificados, dependendo do


montante de sua renda agropecuária bruta anual, em três categorias:
a) miniprodutor; b) pequeno produtor; c) demais produtores.

517
Tal classificação, importante para efeitos de empréstimos, espe-
cialmente de crédito rotativo, é de competência exclusiva da institui-
ção financeira (M CR 1.4 .11).

1.4. Títulos de crédito rural

As operações de crédito rural são necessariamente realizadas me-


diante as cédulas de crédito rural, títulos anteriormente regulados
pela Lei no 3.253/57, e presentemente disciplinados no Decreto-lei n°
167/67.
Nesse sentido, dispõe o art. 1o do Decreto-lei no 167/67:

"Art. 1o- O financiamento rural concedido pelos órgãos integrantes


do Sistema Nacional de Crédito Rural a pessoa física ou jurídica po-
derá efetuar-se por meio das cédulas de crédito rural previstas neste
Decreto-lei".

Os títulos de crédito rural - denominados cédulas de crédito


rural- são os seguintes:

- cédula rural pignoratícia;


-cédula rural hipotecária;
- cédula rural pignoratícia e hipotecária; e
- nota de crédito rural.

Nos termos dos arts. lO a 13 do Decreto-lei no 167/67, as cédulas


de crédito rural: tem característica civil; representam uma promessa
de pagamento em dinheiro, com ou sem garantia real; originam-se
diretamente do crédito rural; são dotadas de liquidez, certeza e exigi-
bilidade.
Dada a existência de uma série de elementos que reduzem a cir-
culação da cédula de crédito rural, notadamente a necessidade de
orçamento de aplicação dos recursos, a fiscalização por parte do cre-
dor sobre utilização correta dos créditos concedidos, bem como o
vencimento antecipado pela inadimplência de qualquer obrigação le-
gal ou convencional, é ela considerada como um título causal, ou uma
promessa de pagamento sui generis 15 •

15 WALDIRIO BULGARELLI, Títulos de Crédito, São Paulo, Atlas, 1998, 14 2 ed.,


pg. 501.

518
Existem, ainda, em nosso sistema jurídico, títulos de crédito rural
assemelhados, que representam uma forma derivada de circulação de
créditos.
São eles:

-A nota promissória rural, definida no art. 42 do Decreto-lei n°


167/67;
- A Duplicata Rural, disciplinada nos arts. 46 e 4 7 do mesmo Decre-
to-lei; e
-A Cédula de Produto Rural, criada mediante a Lei n° 8.929/94.

Tais títulos, diversamente da cédula de crédito rural, não instru-


mentalizam empréstimo em dinheiro com entidades integrantes do
sistema Nacional de Crédito Rural, mas servem para embasar as rela-
ções jurídicas rurais entre os produtores rurais, entre eles e suas coo-
perativas, ou mesmo ente eles e terceiros.

1.5. Origens dos recursos destinados ao crédito rural

Os recursos para o setor rural são supridos por três modalidades


básicas de fontes: mediante empréstimos do Governo Federal; me-
diante Fundos Públicos (Fundos Constitucionais de Financiamento do
Norte, do Nordeste e do Centro Oeste; Fundo de Amparo ao Traba-
lhador e outros recursos geridos pelo BNDES; Fundo de Defesa da
Economia Cafeeira); e mediante financiamentos de instituições finan-
ceiras, públicas e privadas (MCR, 4.1.)
Os empréstimos do Governo Federal podem ser de duas modali-
dades: com opção de venda, que visam a proporcionar ao produtor
rural condições de comercialização dos produtos; sem opção de ven-
da, que visam a propiciar recursos financeiros ao beneficiário, permi-
tindo-lhe o armazenamento e a conservação de seus produtos.
Já os financiamentos fornecidos pelas instituições financeiras para
o crédito rural podem ser concedidos com os recursos:

1. obrigatórios, calculados em percentual estabelecido pelo CMN


sobre o saldo médio das rubricas contábeis sujeitas ao recolhimento
compulsório por parte das instituições financeiras bancárias;
2. da captação em depósitos a prazo vinculados ao financiamento da
atividade rural;
3. da caderneta de poupança rural;

519
4. da caderneta de poupança livre;
5. de fundos, programas e linhas específicas;
6. livres.

2. FINANCIAMENTOS ORIUNDOS DE REPASSES DE


RECURSOS EXTERNOS (63 caipiras)

A partir de 25/09/91, com a edição da Resolução 1.872, do CMN,


passou-se a facultar às instituições financeiras a captação de recursos
no mercado externo para repasses, no país, a produtores rurais e coo-
perativas, unicamente para o financiamento de custeio e de comercia-
lização da produção agrícola destinada à exportação.
Tais operações, pelo fato de envolverem repasse de recursos ex-
ternos- até então praticadas somente ao abrigo da Resolução 63/67
-passaram a ser conhecidas, no mercado, pelo curioso epíteto de 63
caipiras.
Posteriormente, mediante a Resolução 2.148/95 do CMN, que
revogou a Resolução 1.872/91, estendeu-se esta fonte de recursos,
passando-se a permitir o financiamento de operações de investimento
e incluindo-se, dentre os tomadores, também a agroindústria e os
exportadores.
Em 1997, foi baixada pelo CMN a Resolução 2.378, que deu nova
redação ao art. 1° da Resolução 2.148/95, permitindo ainda, que as
instituições financeiras concedessem empréstimos mediante repasse
de recursos externos aos complexos industriais de fertilizantes e pro-
dutos agrícolas.
Mais tarde, a Resolução 2.483, de 26/03/98, também do CMN,
revogou todas as Resoluções anteriores que tratavam da matéria, con-
solidando a regulamentação acerca da captação de recursos no merca-
do externo para concessão de financiamentos a atividades rurais e
industriais.
Vale notar que a Resolução 2.483/98 foi expressamente revogada
pela Resolução 2. 770, de 30/08/2.000, (que também revogou expres-
samente a Resolução 63//67), alterando e consolidando as normas de
operações de empréstimos entre residentes ou domiciliados no País e
residentes ou domiciliados no exterior.
As operações de repasse de recursos externos para aplicação em
atividades rurais não se caracterizam como operações de crédito rural,
para qualquer efeito legal ou regulamentar.

520
Em todas as Resoluções que tratavam da matéria, constava sempre
uma expressa norma estabelecendo que os financiamentos oriundos
de repasse de recursos externos não estavam sujeitos às normas do
Manual de Crédito Rural (MCR) e do Manual de Crédito Agroin-
dustrial (MCA).
Tais operações, ademais, jamais foram objeto de tratamento legal
ou regulamentar em normas que tratavam do crédito rural.
Com efeito, o repasse de recursos externos não está incluído den-
tre as possíveis origens de recursos para o crédito rural, em nenhuma
das normas legais ou regulamentares que disciplinam a matéria.
Além disso, sempre estabeleciam, as Resoluções disciplinadoras
do repasse de recursos externos, a obrigação do mutuário de liquidar
o empréstimo nos mesmos moldes em que os respectivos recursos
haviam sido captados, ou seja, suportando ele, mutuário, os riscos da
variação cambial.
Tal obrigatoriedade de correção cambial não só é profundamente
contrário a todo o modelo de crédito rural, como também ao sistema
de tratamento privilegiado concedido ao crédito rural, conforme ana-
lisaremos em seguida.

3. O TRATAMENTO PRIVILEGIADO CONCEDIDO AO


CRÉDITO RURAL

Dados os riscos envolvidos na atividade rural, decorrentes das


contingências da natureza, assim como da sua importância inequívoca
na produção de alimentos para a população, confere-se ao crédito
rural um tratamento privilegiado.
Tal ocorre seja ao nível de políticas públicas - empréstimos go-
vernamentais com juros subsidiados, Fundos especiais e Programas
setoriais - seja ao nível do crédito rural provido pelas instituições
financeiras privadas.
Nesse sentido, a Lei n°4.829/65, estabeleceu, em seus arts. 3°, 4o
e 14, os objetivos sociais do crédito rural, dentre os quais os de favo-
recer o custeio oportuno e adequado da produção e comercialização
dos produtos agropecuários e possibilitar o fortalecimento econômico
dos produtores rurais, notadamente os pequenos e médios, como
também a competência do Conselho Monetário Nacional- CMN-
para fixar os termos, prazos, juros e demais condições das operações
de crédito rural.

521
Mediante sucessivas Resoluções, o CMN fixou tetos máximos de
juros no crédito rural, inferiores aos pactuados entre instituições fi-
nanceiras e mutuários em outras operações de crédito e sempre con-
ferindo tratamento ainda mais privilegiado aos mini e pequenos pro-
dutores rurais.
A Lei no 9.138/95, em seu art. 5°,§ 5°, estabeleceu em 3% os juros
dos empréstimos já celebrados, permitindo a sua capitalização unica-
mente de ano em ano.
Conforme o art. 18, § 2o do Decreto no 58.380/66, as taxas de
juros em operações de crédito rural devem ser inferiores, em pelo
menos (um quarto) às taxas máximas admitidas pelo CMN para as
operações bancárias de crédito mercantil.
Nos termos do art. 5o do Decreto-lei no 167/67, a mora nos em-
préstimos rurais não pode acarretar penalização superior a 1% da taxa
de juros.
No que se refere à multa, exigível apenas se promovida a cobrança
administrativa ou judicial, estabelece o art. 71 do mesmo diploma
legal que não pode ela ser superior a 10% sobre o principal e acessórios
em débito.
Quanto à correção monetária, há muito discute-se, inclusive no
Congresso Nacional, a questão da sua equivalência ao produto rural a
que se destinou o financiamento.
Embora a questão seja bastante controversa, existe, nesse sentido,
orientação doutrinária pregando, para a mensuração da correção mo-
netária dos contratos de crédito rural, os índices de elevação dos pre-
ços da cultura agrícola proveniente do financiamento concedido 16 .
A partir de 1992, com a promulgação da Lei n° 8.427, ficou o
Governo Federal autorizado a conceder subvenções econômicas aos
produtores rurais, visando a abater ou anistiar parte das obrigações por
eles contraídas, sob a forma de:

l. equalização de preços dos produtos agropecuários ou vegetais de


origem extrativa; e
2. equalização das taxas de juros e outros encargos financeiros em
operações de crédito rural.

Em 1993, tendo em vista que o setor agrícola acumulava uma


dívida tida como impagável, foram iniciadas pressões políticas, princi-

16 ARNOLDO RIZZARDO, pg. 215.

522
palmente por intermédio da bancada ruralista, visando a apuração e
solução dos problemas gerados pelos sucessivos Planos Econômicos
sobre a política de preços mínimos e a legislação sobre crédito rural.
Após várias gestões, inclusive no Congresso Nacional, foi assinado
um Memorando de Entendimento, ratificado em Voto do Conselho
Monetário Nacional, e editada a Resolução 2.080/94 17 , que dispôs
sobre a renegociação das dívidas dos produtores rurais, reduzindo as
taxas de juros e eliminando a mora e a taxa de inadimplência.
Não havendo dita Resolução logrado resolver o problema da dívida
do setor rural, foi editada a Resolução 2.164/95 18 , autorizando-se a
prorrogação de débitos e fixando-se os critérios para a sua renegocia-
ção, mediante a aplicação de um redutor de encargos financeiros.

4. A SECURITIZAÇÃO DAS DÍVIDAS

Mais tarde, foi promulgada a Lei no 9.138/95, regulamentada pelo


Voto CMN no 158/95 e por sucessivas Resoluções do CMN, estabele-
cendo tais atos novas condições de renegociação, mediante o processo
de securitização das dívidas.
Recentemente, como resultado do movimento denominado Ca-
minhonaço II, que levou alguns milhares de agricultores a Brasília, em
agosto de 1999, foi promulgada a Lei no 9.866/99, regulamentada pela
Resolução 2.666/99, do CMN, tendo-se introduzido novas normas de
renegociação das dívidas, bem como criado um bônus de inadimplên-
cia, de até 30% dos saldos devedores.
O processo de securitização, significa, basicamente, a criação de
títulos (trata-se de evidente anglicismo: no direito inglês e norte-ame-
ricano, a security constitui um título, um valor mobiliário livremente
negociável no mercado de capitais) que garantem o "alongamento"
dos saldos de dívidas.
Com a edição da Lei n° 9.138/95 e da Resolução 2.471/98, ficou
o Tesouro Nacional autorizado a emitir títulos, com o prazo de 20
anos, atualizados pelo IG P-M, os quais serão adquiridos pelas institui-
ções financeiras credoras em operações de crédito rural, por valor

I 7 Nota do Autor: A Resolução 2.080/94 foi revogada pela Resolução 2.535 de


26.08.1998.
18 Nota do Autor: A Resolução 2.164/95 foi revogada pela Resolução 2.746 de
28.06.2000, que foi revogada pela Resolução 2.852 de 03.07.2001 que por sua vez foi
revogada pela Resolução 2.996 de 03.07.2002.

523
equivalente a 10,36% da dívida renegociada; tais títulos permanecerão
bloqueados e inegociáveis enquanto constituírem garantia e não hou-
ver manifestação do Tesouro Nacional sobre a sua recompra.
Em outras palavras, o produtor rural renegocia a sua dívida, pagan-
do 10,36% do seu valor, e entregando ao banco credor Títulos do
Tesouro Nacional, criados para este fim, com prazo de resgate de 20
anos, cujo valor nominal é idêntico ao da dívida.
Mediante tal procedimento, o produtor rural securitiza a sua dívi-
da, isto é, transforma-a em títulos, de emissão do Tesouro Nacional,
mediante o pagamento de apenas 10,36% do seu montante, pagando
o saldo devedor em 20 anos, com correção mais juros, os quais irão
cobrir os quase 90% restantes, que constituem a diferença entre o
total da dívida e o valor pago pela compra dos títulos.
Trata-se de enorme benefício para os produtores rurais, que tem
suas dívidas alongadas por 20 anos, com garantia dada pelo Tesouro
Nacional.
Por outro lado, para as instituições financeiras credoras, tal securi-
tização pode ter efeitos desastrosos; com efeito, como a mercadoria
dos bancos é o dinheiro, e dinheiro é um produto escasso, dado o longo
prazo dos Títulos, bancos com carteiras de crédito rural com recursos
muito expressivos podem vir a sofrer significativos prejuízos.
Daí não se poder cogitar de uma obrigação, para as instituições
financeiras, de aceitarem a securitização das dívidas dos produtores
rurais.
Com efeito, não poderia jamais a Lei, sob pena de afrontar os
princípios da livre autonomia das partes e do ato jurídico perfeito,
eivando-se portanto de inconstitucionalidade (C.F., art. 5°, 11 e
XXXVI), impor a uma das partes a renegociação do contrato de cré-
dito rural, em bases que lhe são manifestamente prejudiciais.
Nesse sentido, o art. 5o da Lei no 9.138/95, dispõe serem as
instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito
Rural, instituído pela Lei no 4.829, de 05 de novembro de 1965, auto-
rizados a proceder ao alongamento de dívidas originárias de crédito
rural, contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas
e condomínios, inclusive as já renegociadas (grifamos).
Conforme já descrito 19, quando da elaboração da Lei no 9.138/95,
discutiu-se muito no Congresso a propósito do art. 5°, entendendo

19 LUTERO DE PAIVA PEREIRA, Securitização & Crédito Rural, Curitiba, Ed.


Juruá, l997,pg. 78.

524
alguns parlamentares que se deveria conferir um caráter cogente à
concessão do alongamento, o que interessava inequivocamente aos
representantes dos produtores rurais.
Acabou prevalecendo, porém, a tese de que uma norma imperati-
va seria considerada inconstitucional, exatamente por violar ato jurídi-
co perfeito.
Assim, preferiu-se utilizar a expressão autorizar; a lei autorizou os
bancos a promoverem a "securitização" e deferiu-lhes condições ope-
racionais para fazê-lo.
Entendeu o Congresso que os bancos adeririam ao processo de
securitização voluntariamente por várias razões, dentre as quais: a de
que lhes interessaria, por viabilizar o pagamento de dívidas de alto
valor, já que a inadimplência do setor era elevada e havia o temor de
um calote generalizado; e de que, ademais, o lançamento de tais dívi-
das na categoria de créditos de difícil recuperação poderia comprome-
ter os balanços e a distribuição de dividendos.
A expressão autorizar, utilizada na Lei, significa, em nosso enten-
dimento, uma faculdade, jamais uma obrigação 20 .
Com efeito, a doutrina enfatiza que "o autorizado, uma vez edita-
do o ato, fica habilitado para realizar algo, um fato ou exercer um
direito, não ficando porém obrigado a fazê-lo na sua liberdade de
decidir ... "21 .
Poder-se-ia argumentar eventualmente que não seria necessário
que uma Lei autorizasse os bancos a alongarem as dívidas do setor
rural, pois poderiam fazê-lo no curso de um processo normal de rene-
gociação das dívidas, daí decorrendo a imperatividade do preceito
contido no art. 5o da Lei n° 9.138/95.
Tal argumento, porém, não procede. Nos termos da Lei 4.595/64,
além do contido na regulamentação do CMN e do BACEN, todas as
atividades desenvolvidas pelos bancos são minuciosamente disciplina-
das; os bancos, com efeito, somente podem praticar as operações ati-
vas e passivas expressamente autorizadas; a renegociação de créditos,
bem como a sua contabilização, devem ser realizadas dentro de parâ-
metros estabelecidos na regulamentação administrativa, sob pena de

20 A jurisprudência de nossos Tribunais não é pacífica a respeito. Existe decisão do


STJ entendendo que na dívida oriunda de crédito rural o alongamento previsto na Lei
no 9.138/95 é obrigatório (Resp. 166.592-MG, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixei-
ra, DJ de 22.06.98).
21 JULIO PRAT, Derecho administrativo, Montevideo, 1978, t. 3, vol. 2, pg. 40.

525
serem aplicadas penalidades disciplinares por parte do BACEN, por
má pratica de gestão bancária.
A nosso ver, caso não estivessem os bancos expressamente autori-
zados por Lei a procederem à securitização de seus créditos rurais,
dificilmente aceitariam tal modalidade de negociação, por absoluta
falta de previsão legal ou regulamentar.
Assim, quando o art. 5° da Lei no 9.138/95 utiliza a expressão
autorizar, está a lhe conferir o único significado jurídico possível, que
é o de permitir, facultar, jamais o de obrigar.

5. A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO CONTRATUAL


MANTIDA ENTRE O AUTOR E O BANCO RÉU

Conforme até aqui analisado, o instituto do crédito rural é objeto,


entre nós, de uma ordenação legal e regulamentar sistemática, da qual
podem-se extrair os princípios fundamentais que ordenam o crédito
rural.
Analisados, pois, os princípios jurídicos que informam o instituto
do crédito rural, passemos à sua aplicação ao presente caso.
Conforme narrado na consulta, e tal como pode-se verificar do
exame das peças processuais, temos que a relação contratual mantida
entre o Autor- "COMPANHIA ALFA" e o Banco Réu apresenta as
seguintes características básicas:

-A mutuária, conforme o seu Estatuto Social, tem por objeto princi-


pal a produção de cana-de-açúcar e a fabricação e comércio de açúcar
e álcool e demais derivados da cana, bem como operações de compras
e vendas no mercado externo, como importadora e ou exportadora e
a exploração da atividade de piscicultura e de outras atividades agro-
pecuárias; ou seja, desenvolve ela tanto atividades rurais como ativi-
dades industriais e comerciais;
- O mutuante é um banco comercial, que não possui carteira de
crédito rural, nem detém autorização do Banco Central para atuar no
setor de crédito rural;
- Os empréstimos foram realizados tendo como objetivo reforçar o
capital de giro da mutuária;
- Os empréstimos, conforme a redação dos respectivos instrumentos
contratuais, constituem operações de repasse de recursos externos,
ao abrigo da Resolução 63, do CMN;
- Os instrumentos contratuais prevêem, como de praxe nas opera-
ções 63, que o saldo devedor está sujeito à correção cambial;

526
-Foram emitidas, para instrumentalizar as operações creditícias, cé-
dulas de crédito industrial;
-Não existe, nem nos instrumentos contratuais, nem nas peças pro-
cessuais submetidas à nossa análise, qualquer documento que com-
prove a destinação dos recursos à atividade rural;
- Não existe qualquer documento demonstrando que a liberação dos
recursos mutuados ocorreu em função do ciclo de produção rural;
-Não há orçamentos de aplicação dos recursos como anexos aos con-
tratos;
- Não se verifica, nos instrumentos contratuais, qualquer previsão de
fiscalização, por parte do banco mutuante, quanto à adequada aplica-
ção dos recursos em atividades rurais;
-Não há qualquer previsão de que os reembolsos sejam ajustados ao
objeto do contrato e à capacidade de pagamento por parte do mutuá-
rio;
- Não há qualquer previsão de conta vinculada para efeito de efetuar-
se o controle sobre a adequada aplicação dos recursos mutuados.

Conforme analisado ao longo do presente Parecer, constituem


elementos básicos do contrato de crédito rural:

l. que os recursos sejam destinados, com exclusividade, para ativida-


des rurais, posto que se trata de um mútuo de escopo, para atender a
interesse público;
2. que seja apresentado um orçamento de aplicação dos recursos nas
atividades rurais;
3. que os recursos devam ser liberados tendo em vista o ciclo de
produção do setor em que atua o mutuário;
4. que o mutuário exerça ampla fiscalização, para verificar se os re-
cursos estão sendo destinados a atividades rurais, de forma a não
haver desvio de finalidade;
5. que as operações sejam fundadas em cédulas de crédito rural,
títulos de crédito submetidos a uma rígida disciplina legal;
6. que os recursos sejam originários de qualquer das fontes expressa-
mente elencadas na legislação e regulamentação aplicáveis;
7. que o mutuante tenha autorização do BACEN para atuar no setor
de crédito rural e disponha de carteira de crédito rural;
8. que o mutuário possa ser considerado como produtor rural.

No presente caso, encontra-se presente apenas um dos elementos


indispensáveis para a configuração de determinada relação obrigado-

527
nal como de crédito rural: a caracterização do mutuário como produ-
tor rural, embora não atuando exclusivamente em tal setor, uma vez
que também desenvolve atividades industriais e comerciais.
Ainda que restasse demonstrado que os recursos foram aplicados
em atividades rurais, sem o conhecimento do banco, que não pode
fiscalizar a sua destinação, evidentemente não se caracterizaria a pre-
sente operação como de crédito rural, pela ausência dos demais requi-
sitos essenciais à sua qualificação em tal categoria contratual.
É indiscutível, pois, que não existe qualquer possibilidade de se
considerar como sendo de crédito rural a natureza da relação jurídica
mantida entre as partes.
Trata-se, na realidade, de típica operação de repasse de recursos
externos, ao abrigo da Resolução 63, conforme expresso nos instru-
mentos contratuais.
Nesse sentido, em resposta à consulta formulada pelo Banco Réu,
o Banco Central, através do seu Departamento de Normas do Sistema
Financeiro, em ofício de 22/11/2.000 foi claró ao definir que:

"Os empréstimos em questão não são originários de crédito rural, não


sendo beneficiários, por conseguinte, do alongamento de dívidas ad-
mitido no art. 5° da mencionada Lei". (Lei n° 9.138/95).

A legislação estabelece um tratamento privilegiado para as opera-


ções de crédito rural, em vários aspectos, inclusive no que toca à
possibilidade de alongamento das dívidas, mediante o processo de se-
curitização.
Tal securitização, que importa em tratamento altamente vantajo-
so para o produtor rural, e prejudicial para o credor, dado o longo
prazo para a quitação do total da dívida e o pequeno valor despendido
como pagamento do principal, somente é cabível, nos termos expres-
sos da legislação aplicável, quando se tratar de crédito rural.
Como as operações submetidas à nossa análise não constituem
crédito rural, é impossível cogitar-se do seu enquadramento no pro-
cesso de securitização.
Aliás, o alongamento da dívida, no caso presente, seria não só
juridicamente impossível, como também financeiramente inviável.
Por operação de repasse de recursos, tal como estabelece o art. 6°
da Resolução 2. 770/2000, do CMN, que atualmente regula a matéria,
entende-se a concessão de crédito vinculada à captação externa origi-
nal na qual a instituição repassadora transfere à repassatária, pessoa
física ou jurídica no País, idênticas condições de custo da dívida

528
originalmente contratada em moeda estrangeira (principal, juros
e encargos acessórios), assim como a tributação aplicável, não
podendo ser cobrado, pelos serviços de intermediação financeira, qual-
quer outro ônus, a qualquer título, além de comissão de repasse (grifa-
mos).
Nos termos do parágrafo único do art. 6° da mesma Resolução, a
instituição financeira deve repassar ao tomador final dos recursos os
efeitos decorrentes da variação cambial da dívida originalmente con-
traída no exterior.
Ou seja, a instituição financeira repassadora cobra, do tomador
dos recursos, o custo da dívida (principal, juros e encargos acessórios),
os impostos cabíveis, além da correção cambial, mais uma comissão de
repasse, que é a sua remuneração efetiva.
As instituições financeiras procuram, ademais, casar os prazos em
que devem pagar ao provedor externo dos recursos com os prazos em
que cobrarão dos tomadores nacionais.
Tais procedimentos seriam jurídica e financeiramente incompatí-
veis com o processo de alongamento previsto na legislação sobre cré-
dito rural, assim como com o tratamento privilegiado conferido ao
mutuário produtor rural.
Em primeiro lugar, as taxas de juros em operações de crédito rural
são subsidiadas; em segundo lugar, não se prevê a correção cambial em
operações da espécie; em terceiro, uma vez alongada a operação de
crédito rural por vinte anos, o banco repassador teria que pagar ao
banco estrangeiro no prazo original mas só receberia o total de seu
crédito no prazo de vinte anos.
Ou seja, o banco repassador teria vultosos prejuízos, arcando com
o risco da correção cambial, com o diferencial das taxas de juros, assim
como com o custo de carregar um crédito por vinte anos, tendo que
pagar ao banco estrangeiro em prazo menor.
Assim, como as operações submetidas à nossa análise não consti-
tuem crédito rural, mas típicas operações de repasse de recursos ex-
ternos, é juridicamente impossível o seu alongamento e securitização,
nos termos da Lei no 9.138/95 e regulamentação posterior.
Também não procede a argumentação de que tais operações se-
riam caracterizadas como 63 caipiras e, como tais, passíveis de secu-
ritização.
Em primeiro lugar, as operações submetidas à nossa análise são
operações típicas de repasse de recursos externos ("operações 63 ");
os documentos juntados aos autos na réplica do Banco Réu (does. 1 a
3), que demonstram o registro das linhas de crédito cujos recursos

529
foram utilizados nos empréstimos ao Autor, constituem certificados,
emitidos pelo Banco Central, nos quais consta, expressamente, tratar-
se de operações realizadas ao abrigo da Resolução 63; ademais, estão,
em tais certificados, previstas as datas de pagamento dos juros e prin-
cipais, idênticas às constantes nas cédulas.
Ainda que se tratasse de operações alcunhadas de 63 caipiras, ao
abrigo da então vigente Resolução 2.148, não seria possível a sua secu-
ritização, conforme já analisado, pois não constituem elas operações
de crédito rural, determinando expressamente a regulamentação ad-
ministrativa que não estão elas sujeitas ao Manual de Crédito Rural.
Finalmente, mesmo que ficassem tais operações caracterizadas
como de crédito rurat o que se admite apenas ad argumentandum,
ainda assim, não estaria o Banco Réu obrigado a proceder à securitiza-
ção das dívidas do Autor, uma vez que, tal procedimento constitui,
nos termos do art. soda Lei no 9.138/95, uma faculdade, não uma
obrigação, das instituições financeiras credoras.

6. CONCLUSÕES

Face à analise desenvolvida, e tendo em vista uma interpretação


sistemática da legislação que disciplina o crédito rural, podemos con-
cluir que:

l. As operações realizadas entre o Autor e o Banco Réu não consti-


tuem contratos de crédito rural, faltando-lhes praticamente todos os
requisitos necessários à sua classificação em tal categoria;
2. O simples fato de o tomador dos recursos ser um produtor rural
não é suficiente para transformar típica operação de repasse de re-
cursos externos, sem orçamento de despesas, sem adequação da libe-
ração dos recursos ao ciclo de produção, sem previsão de fiscalização
por parte do mutuante quanto à correta destinação dos recursos, sem
emissão de cédula de crédito rural, e sem qualquer comprovação da
efetiva aplicação dos recursos em atividades rurais, em operação de
crédito rural;
3. Ainda que demonstrasse o Autor a aplicação dos recursos em ativi-
dades rurais, sem o conhecimento e a possibilidade de exercer, o
Banco Réu, fiscalização sobre a sua adequada destinação, não se ca-
racterizaria a operação como de crédito rural, dada a ausência dos
demais elementos.
4. Não constituindo as relações obrigacionais mantidas entre o Autor
e o Banco Réu, submetidas à nossa análise, operações de crédito rural,

530
não estão sujeitas ao processo de alongamento e securitização das
dívidas, disciplinado pela Lei n° 9.138/95 e pela regulamentação do
CMN e do BACEN;
S. Ainda que se tratasse de operações de crédito rural, o que se admi-
te apenas para argumentar, não estaria o Banco obrigado a aceitar a
securitização requerida pelo Autor, a qual constitui, nos termos do
art. 5° da Lei no 9.138/95, uma faculdade das instituições financei-
ras, jamais uma obrigação.

Foi o nosso Parecer, em fevereiro de 2001.

531
CONTRATOS PUBLICITÁRIOS.
REGIME JURÍDICO

I - DOS FATOS E DA CONSULTA

O Sr. Tício solicita-nos um Parecer sobre a natureza jurídica dos


contratos publicitários e os aspectos jurídicos da relação entre anun-
ciantes e a Agência de Publicidade e desta com terceiros fornecedores
e veículos de comunicação em vista a subsidiar a sua defesa na esfera
de processo criminal.
Para tanto, narra-nos o Consulente os seguintes fatos:
- O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu de-
núncia em face de Tício, com fundamento nos seguintes fatos:

a) que no período compreendido entre abril e julho de 1998 o repre-


sentante legal da COMPANHIA ALFA celebrou contrato com a X-
PROPAGANDA Ltda., através de seus sócio, ora denunciado, visan-
do a realização de campanha publicitária a ser vinculada nos meios
de comunicação;
b) que a COMPANHIA ALFA pagou ao denunciado a quantia de R$
116.000,00 (cento e dezesseis mil reais) referente ao custo dos anún-
cios, incluída a comissão devida à X-PROPAGANDA, sendo tais
parcelas descriminadas nas respectivas notas fiscais;
c) que o denunciado não cumpriu os contratos, não repassando aos
veículos de comunicação os valores recebidos, assim como não devol-
veu as importâncias recebidas;
d) que a COMPANHIA ALFA, afim de não comprometer sua idonei-
dade e credibilidade, honrou os débito junto aos veículos de comuni-
cação, ressarcindo-os dos valores devidos;
e) que o denunciado agiu, consciente e voluntariamente, com o dolo
próprio da espécie, apropriando-se indevidamente da quantia paga
pela COMPANHIA ALFA, consumando o delito previsto no artigo
168 § 1°, III com o agravante do artigo 29, todos do Código Penal.

533
Assim narrados os fatos, o Consulente solicita-nos um Parecer
sobre: a natureza dos contratos publicitários; a relação estabelecida
entre anunciantes e agências de publicidade; a forma de prestação dos
serviços de uma agência de publicidade; e a forma como são cobrados
tais serviços, à luz da legislação pátria, das práticas usualmente empre-
gadas no mercado publicitário e do direito comparado.
Ademais, indaga-nos o Consulente se caracterizou-se na atuação
profissional da X-PROPAGANDA Ltda. a apropriação indevida de
recursos da COMPANHIA ALFA.

11 -DO PARECER

I -O DIREITO DA PUBLICIDADE

As primeiras iniciativas de normatizar a atividade publicitária no


Brasil partiram dos próprios profissionais e entidades de classe, que
buscaram em conjunto auto-regulamentar a Publicidade, criando
princípios éticos e práticas comerciais comuns para este mercado.
Em 19 57, o I Congresso Brasileiro de Propaganda aprovou o Códi-
go de Ética, que seria o primeiro documento normativo da Publicida-
de Brasileira.
O Código define a atividade publicitária, seus principais agentes
(tais como Agências de Propaganda, veículos, anunciantes e correto-
res de propaganda) e estabelece diversas normas acerca das relações
entre os agentes, a forma de remuneração dos serviços e condutas
éticas a serem seguidas pelos profissionais do setor.
Já em 1960, foram publicadas as primeiras "Normas-Padrão", es-
tabelecidas pela Associação Brasileira de Agências de Propaganda -
ABAP que representa outro documento de auto-regulação a reger as
atividades das Agências no país.
As Normas-Padrão especificam os serviços prestados pela Agência
de Propaganda e a forma de execução e remuneração de sua atividade.
Em 18 de junho de 1965, foi editada a Lei no 4.680, que regula-
mentou as profissões envolvidas com a publicidade, os serviços pres-
tados pelas agências de propaganda, a forma de remuneração dos pro-
fissionais e agências, bem como homologou o Código de Ética aprova-
do em 1957, dando-lhe caráter legal.
Em seguida, foi aprovado o Decreto no 57.690 1, de 1o de fevereiro
de 1966, que regulamentou a citada Lei n° 4.680/65.

Nota do Autor: O Decreto n° 57.690 sofreu alterações pelo Decreto n° 4.563/02.

534
O Decreto também estabelece uma série da princípios a serem
observados na relação entre Agências de Publicidade e os clientes,
além de regras sobre ética profissional.
A atividade publicitária no Brasil é, presentemente, regida pelas
normas acima citadas, além das Normas-Padrão, aprovadas por dife-
rentes entidades de classe reunidas no Conselho Executivo das Nor-
mas-Padrão em 16.12.98, e que disciplinam o relacionamento comer-
cial entre anunciantes, agências de publicidade e veículos de comuni-
cação.
No Direito Comparado, a legislação espanhola conta com um re-
gramento abrangente e sistematizado para a atividade publicitária, in-
titulado Ley General de Publicidad (Ley 34/1988 de 11 de noviem-
bre).
A legislação francesa também encontra-se significativamente sis-
tematizada no que se refere à atividade publicitária, por meio do C ode
des usages de la publicité.
O professor Carlos Alberto Bittar define publicidade como:

"A arte e técnica de elaborar mensagens para, por meio de diferentes


formas de manifestação e de veiculação, fazer chegar aos consumido-
res, determinados produtos ou serviços, despertando neles o interesse
de adquiri-los ou dele dispor." 2

A Lei no 4.680/65 conceituou o termo "propaganda" como "qual-


quer forma remunerada de difusão de idéias, mercadorias e serviços,
por parte de um anunciante identificado", na locução de seu art. 5°.
A Ley General de Publicidad espanhola, que regula inúmeros as-
pectos desta atividade econômica, conceitua "publicidad" como "toda
forma de comunicación realizada por uma persona física o jurídica,
pública o privada, en el ejercicio de uma actividad comercial, indus-
trial, artesanal o profesional, com el fin de promover de forma directa
o indirecta la contratación de bienes muebles o inmuebles, servicios,
derechos y obligaciones".
Nos termos do art. 3° da Lei 4.680/65, a Agência de Propaganda é:

"pessoa jurídica e especializada na arte e técnica publicitária, que,


através de especialistas, estuda, concebe, executa e distribui pro-

2 CARLOS ALBERTO BITTAR, Direito de autor na obra publicitária, São Paulo,


RT, 1981, p.22.

535
paganda aos Veículos de Divulgação, por ordem e conta de Clien-
tes Anunciantes, com o objetivo de promover a venda de produtos e
serviços, difundir idéias ou informar o público a respeito de organiza-
ções ou instituições colocadas a serviço desse mesmo público." (Gri-
fou-se)

Quanto aos agentes deste mercado, a legislação publicitária espa-


nhola consagra as Agencias de Publicidad como:

"las persanas na tu rales o jurídicas que se dediquen profesionalmente


y de manera organizada a crear, preparar, programar o ejecutar pu-
blicidad por cuenta de un anunciante".

No direito francês, a Agência de Publicidade é chamada de conseil


en publicité, e a lei, em seu art. 43, assim o conceitua:
"Est conseil en publicité celui qui est capable de concevoir, diriger
et faire exécuter dans tous ses détails une campagne de publicité.
Já os Agenciadores de Propaganda, segundo o art. 2° da Lei
4.680/65, são "os profissionais que, vinculados aos Veículos de Divul-
gação, a eles encaminham propaganda por conta de terceiros".
E da mesma maneira que a Lei brasileira, a legislação espanhola
distingue agências de publicidade dos chamados medias de publici-
dad, que são:

"las personas naturales o jurídicas, públicas o privadas, que, de ma-


nera habitual y organizada, se dediquen a ala difusión de publicidad
a través de los soportes o medias de comunicación social cuya titulari-
dad ostenten".

Desta forma, verifica-se que:


a) O Direito Publicitário no Brasil é regido pela Lei no 4.680/65, o
Decreto no 57.690/66 e pela auto-regulamentação publicitária, con-
substanciada no Código de Ética dos Profissionais da Propaganda, e
nas "Normas-Padrão" editadas pela Associação Brasileira de Agências
de Propaganda - ABAP;
b) No Direito Comparado, entre as legislações que apresentam
uma disciplina jurídica própria da matéria, destacam-se a espanhola
com a Ley General de Publicidad, e a francesa, com o C ode des usages
de la publicité;
c) Tanto na Lei brasileira, com na estrangeira, distinguem-se as
figuras de Agência de Propaganda e Agenciadores de Propaganda.

536
2- DOS CONTRATOS PUBLICITÁRIOS

Os serviços prestados pelas Agências de Publicidade são ofereci-


dos mediante a celebração dos chamados contratos de serviços de
agência de publicidade.
O artigo 7° do Decreto n. 57.690/66 3 , com a redação dada pelo
Decreto n° 2.262 de 26.06.1997, prevê que:

"Os serviços de propaganda serão prestados pela Agência mediante


contratação, verbal ou escrita, de honorários e reembolso das despesas
previamente autorizadas".

Nesse sentido, as disposições das Normas-Padrão, editadas pela


Associação Brasileira de Agências de Propaganda - ABAP, estabele-
cem, em seu item 11, que os serviços básicos que a Agência de Propa-
ganda presta ao Cliente-Anunciante são os seguintes 4 :

3 Nota do Autor: O art. 7° do Decreto 57.690/66 foi modificado pelo Decreto


4.563 de 31.12.2002, passando a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 7° Os serviços de propaganda serão prestados pela Agência mediante contrata-
ção, verbal ou escrita, de honorários e reembolso das despesas previamente autoriza-
das, tendo como referência o que estabelecem os itens 3.4 a 3.6, 3.10 e 3.11, e
respectivos subitens, das Normas-Padrão da Atividade Publicitária, editadas pelo
CENP- Conselho Executivo das Normas-Padrão, com as alterações constantes das
Atas das Reuniões do Conselho Executivo datadas de 13 de fevereiro, 29 de março e 31
de julho, todas do ano de 2001, e registradas no Cartório do 1° Ofício de Registro de
Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da cidade de São Paulo, respectiva-
mente sob n° 263447, 263446 e 282131."
4 Nota do Autor: As Normas Padrão da atividade publicitária, em sua 7• edição
prevêem:
"3.1 Toda Agência, habilitada e certificada em conformidade com o item 2.5 e subitens
destas Normas-Padrão, deve estar capacitada a prestar a seu Cliente os seguintes
serviços, além de outros que constituam seu desdobramento natural ou que lhes sejam
complementares, agindo por conta e ordem do Cliente/Anunciante:
3.1.1 Estudo do conceito, idéia, marca, produto ou serviço a difundir, incluindo a
identificação e análise de suas vantagens e desvantagens absolutas e relativas aos seus
públicos e, quando for o caso, ao seu mercado e à sua concorrência;
3.1.2 Identificação e análise dos públicos e/ou do mercado onde o conceito, idéia,
marca, produto ou serviço encontre melhor possibilidade de assimilação;
3.1.3 Identificação e análise das idéias, marcas, produtos ou serviços concorrentes;
3.1.4 Exame do sistema de distribuição e comercialização, incluindo a identificação e
análise das suas vantagens e desvantagens absolutas e relativas ao mercado e à
concorrência;
3.1.5 Elaboração do plano publicitário, incluindo a concepção das mensagens e
peças (Criação) e o estudo dos meios e Veículos que, segundo técnicas adequadas,

537
"a) estudo do produto ou serviço oferecidos ao público, caracterizan-
do-lhes as vantagens e desvantagens intrínsecas e em relação à concor-
rência;
b) análise do mercado real e potencial onde o produto ou serviço en-
contre melhor possibilidade de aceitação, com referência à situação,
capacidade, estação do ano, condições econômicas e de negócio e poder
da concorrência;
c) exame das condições e sistemas de distribuição e venda;
d) estudo dos veículos de divulgação que melhor possam difundir o
produto ou serviço, no que se refere a sua natureza, influência, eficiên-
cia (quantidade, qualidade e área de difusão), as suas características
e ao custo da propaganda;
e) formular o plano definitivo da propaganda;
fJ executar o plano apresentado, isto é, conceber e redigir o texto e
idealizar e fazer a ilustração; produzir e distribuir a propaganda,
verificar a sua perfeita execução e distribuição; prestar contas com o
Cliente das despesas correspondentes ao plano aprovado;
g) cooperar com a organização do Cliente, a fim de assegurar o melhor
rendimento do plano de propaganda."

A Ley General de Publicidad Espanhola, em seu art. 15, dispõe


que "contrato de publicidades aquél por el que um anunciante encar-
ga a una agencia de publicidad, mediante una contraprestación, la
ejecución de publicidad y la creación, preparación de la misma".
O Professor Carlos Alberto Bittar comenta com propriedade a
essência da atividade de uma agência de publicidade, em que, segundo
ele, "se mesclam conotações de arte, ciência e de meio de comunicação.
Sobressaem-se, nesse contexto, o aspecto estético, acionado pelo acirra-
mento da concorrência, a sofisticação dos mercados e outros fatores
que têm imposto o aprimoramento das criações publicitárias, de que se
utilizam, regularmente, artistas, escritores, cientistas, e, enfim, inte-
lectuais inseridos dentre as expressões maiores da cultura. "5
O Prof. Geraldo Ataliba, em seu estudo Publicidade, Propaganda

assegurem a melhor cobertura dos públicos e/ou dos mercados objetivados (planejamen-
to de Mídia);
3.1.6 Execução do plano publicitário, incluindo orçamento e realização das peças
publicitárias (Produção) e a compra, distribuição e controle da publicidade nos Veícu-
los contratados (execução de Mídia), e o no pagamento das faturas."
s CARLOS ALBERTO BITTAR, Enciclopédia Saraiva de Direito. Coordenação do
Prof. R. Limonge França- São Paulo: Saraiva. 1977. Vol. 62 pg. 481.

538
e Imposto sobre Serviços, distingue duas grandes etapas do serviço
prestado pelas agências de publicidade, nos seguintes termos:

"A publicidade compreende, assim, dois grandes setores de ativida-


des: a parte intelectual de planejamento e organização de uma campa-
nha e a parte executiva de instrumentação técnica e material da mes-
ma e ulterior divulgação. Podem ainda prestar um terceiro tipo de
serviço, complementar ou acessório, como a realização de pesquisas de
opinião, promoção de vendas, controle de publicidade, relações públi-
cas, etc.
Estas atividades classificam-se como internas e externas. Internas são
as que consistem em trabalho principalmente intelectual de concepção,
planejamento, estudo, programação, pesquisa de mercado, etc. Exter-
nas são aquelas de encomenda de material, instrumentos técnicos e
serviços especializados para concretizar o plano ideal, o "projeto",
cuja culminância (atos de busca da finalidade) consiste em sua veicu-
lação."6

Conforme se verifica, o objeto do contrato de serviços de agência


de publicidade consiste na produção de uma "campanha publicitária"
-verdadeira finalidade do contrato- que reúne, de maneira com-
plexa e sistemática, as etapas de estudo, concepção, criação e distri-
buição de peças publicitárias.
Para a realização de uma campanha publicitária, a agência de pro-
paganda conta com uma infra-estrutura própria e, usualmente, con-
trata diversos serviços com outros profissionais.
Para isso, a agência utiliza-se de seu know-how na arte e na técnica
da criação publicitária, buscando no mercado profissionais e empresas
qualificadas para atuarem nas diferentes etapas da campanha publici-
tária.
Assim, estão inseridos dentro dos serviços de publicidade o traba-
lho de artistas, produtores, designers, redatores, técnicos em diferen-
tes instrumentos de comunicação e especialistas em marketing.
Nas palavras do autor espanhol Jose Tallon Garcia, "el rasgo defi-
nitorio más representativo del concepto de actividad publicitaria es su
tenaz empeno de 'promover lá contratación'; es decir, impulsionar,
acelerar y avivar la actividad centrípeta y centrífuga del mercado, se

6 GERALDO ATALIBA, "Publicidade, propaganda e imposto sobre serviços". Re-


vista de Direito Mercantil. São Paulo, RT. 1971. Vol. li pgs. 11/12.

539
deduce prontamente que su contenido versará de modo fundamental
acerca de los sistemas, técnicas y formas en que dicha promoción de
contratación pueda llevarse a cabo. "7
Também, como parte deste serviço global, a agência de propagan-
da contrata com os veículos de comunicação a inserção de suas peças
publicitárias, sendo esta a última etapa do serviço prestado e a que
mobiliza recursos mais expressivos.
Seria, então, a agência de publicidade uma mera intermediária
entre o anunciante e um feixe de contratações? Obviamente que não,
uma vez que é a partir da "idéia" concebida pela agência que se desen-
volvem todas as necessárias contratações e, sob seu comando, se dará
forma definitiva à campanha publicitária.
Assim, de maneira a conferir credibilidade à remuneração devida
pela campanha publicitária, a agência cobra separadamente seus hono-
rários (relativos aos serviços por ela executados), das demais despesas
incorridas na contratação de terceiros fornecedores e do espaço nos
meios de comunicação, sempre autorizados pelos clientes.
É por essa razão que o Decreto no 57.690/66 menciona, em seu
artigo 7°, que os serviços da agência serão prestados mediante contra-
tação de honorários e reembolso de despesas previamente autorizadas.
A legislação publicitária estabeleceu diversas normas relativas à
prestação de contas pela agência ao cliente anunciante e seu reembol-
so, visando conferir transparência às contratações efetuadas.
Relativamente à contratação de espaço de divulgação nos veículos
de comunicação, o Decreto no 57.690/66, em seu art. 15, determina
que o respectivo faturamento deve ser emitido em nome do anuncian-
te e não da agência.
Esta, na verdade, é uma praxe do mercado publicitário tanto no
que se refere à contratação de espaço nos veículos de comunicação,
assim como de terceiros para a produção de uma campanha publici-
tária.
Tal requisito, incorporado à lei a partir das práticas de mercado,
não caracteriza qualquer natureza de intermediação entre os anun-
ciantes e terceiros fornecedores e veículos de comunicação.
A razão de tal prática reside na legislação tributária, pois, se a
documentação fiscal emitida por terceiros, não o for contra o cliente,
o serviço contratado externamente sofrerá uma dupla tributação: uma

7 JOSE TALLON GARCIA, Curso de Derecho Publicitario. Valladolid. Editorial


Insade, 1972, pg. 41.

540
vez quando faturado contra a agência, e outra quando faturado da
agência para o cliente, a título de reembolso.
Isso ocorre porque a agência emite uma fatura global contra o
anunciante, ou seja, incluindo os valores devidos em razão dos serviços
executados pela agência, assim como aqueles relativos ao reembolso
da contratação de terceiros.
De posse das faturas emitidas por terceiros, é possível abater seus
valores do total a ser cobrado do anunciante, para fins de incidência do
imposto pago pela agência.
É o que diz Geraldo Ataliba quanto à problemática do faturamento:

"As empresas de publicidade fornecem geralmente a seus clientes fatu-


ras de cobrança, nas quais se incluem todas as importâncias que lhe
são devidas, em razão de determinado contrato de publicidade.
(. . .)
Como em geral as Prefeituras não têm critério, para a homologação do
imposto de serviços lançados pelos contribuintes, entendem muitas
vezes de exigir o referido tributo sobre o total do lançamento, como se
este fosse o preço do serviço (base imponívellegalmente estabelecida).
O fisco municipal confunde, assim, preço do serviço com faturamento.
Destarte, entre as outras ilegalidades, o modo de proceder das prefei-
turas infringe flagrantemente o princípio 'ne bis in idem' uma vez que
os serviços de terceiros, incluídos nas faturas, já foram tributados
oportunamente, por este critério (ou lamentável demonstração de falta
de critério), sofrem nova tributação.
Por outro lado, a tributação pelo total da fatura (ou pelo faturamento
mensal - soma totais das faturas) inclui parcelas que não repre-
sentam serviços, mas reembolso de despesas que absolutamente não
representam matéria tributável, como estabelece a lei e como decorre
das exigências do sistema, aplicadas aos fatos, tais como se dão na
prática diária desse setor de atividades. "8

Tendo em vista a natureza dos serviços desenvolvidos pela agência


de publicidade, entendemos que o contrato por ela firmado com o
Anunciante constitui contrato de empreitada.
O contrato de empreitada baseia-se na contratação de um em-
preiteiro para a execução de uma obra, mediante o pagamento daque-
le com quem contrata pelo resultado global do serviço.

8 GERALDO ATALIBA. ob. cit. pg. 11/12.

541
O empreiteiro é aquele que reúne os recursos materiais e huma-
nos, e a partir daí, com base em seu know-how sobre a natureza do
serviço prestado, obriga-se à entrega da obra como um todo.
Ainda que a realização da obra importe na execução de diversos
serviços em conjunto, o que caracteriza a empreitada é a obrigação de
entregar o resultado final da obra, e é mediante essa entrega que o
empreiteiro fará jus à sua remuneração.
Nas palavras do Professor Orlando Gomes:

"Na empreitada uma das partes obriga-se a executar, por si só, ou


com o auxílio de outros, determinada obra, ou prestar certo serviço, e
a outra, a pagar o preço respectivo.
A palavra obra tem sentido que precisa ser esclarecido para facilitar
a noção de empreitada. Significa todo resultado a se obter pela ativi-
dade ou pelo trabalho, como a produção ou a modificação de coisas, o
transporte de pessoas, ou de mercadorias, a realização de trabalho
científico ou a criação de obra artística, material ou imaterial. "9

Sobre a remuneração a que faz jus o empreiteiro, o jurista destaca


que: "A obra é estimada no conjunto e não pelas unidades isoladas de
trabalho, como acontece no salário por peça ou tarefa. "10
Nesse sentido, o contrato de serviços de agência publicidade, por
sua natureza, constitui um contrato de empreitada, pois paga-se pelo
resultado pactuado, e não pela mera prestação de uma das várias
etapas do serviço.
A doutrina espanhola também reconhece que o contrato de servi-
ços de agência de publicidade tem como objeto a campanha publicitá-
ria: "( ... ) para el anunciante, el objeto del contrato será lá campana
encargada a la Agencia; para ésta, la contraprestación em dinero con-
tratada por la ejecución de la misma. "11
A agência de publicidade, assim como o empreiteiro, obriga-se
apresentar uma obra, tratando-se portanto de típica obrigação de re-
sultado.
Os obrigações de resultado são aquelas que tem por finalidade um
objetivo final, resultante da execução de um ou mais serviços. Distin-

9 ORLANDO GOMES, Contratos. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Forense, 1975.


5a ed. pg. 335.
10 ORLANDO GOMES. Ob. cit. pg. 347.
11 JOSE TALLON GARCIA. Ob. cit. pg. 138/139.

542
guem-se, portanto, das obrigações de meio, as quais se impõem pela
mera execução de um serviço, sem que seja garantido, àquele para
quem se obriga, o fim colimado.
Nas palavras do Prof. Caio Mario da Silva Pereira:

"Nas obrigações de resultado, a execução considera-se atingida quan-


do o devedor cumpre o objetivo final; nas de meio, a inexecução carac-
teriza-se pelo desvio de certa conduta ou omissão de certas precau-
ções, a que alguém se comprometeu, sem se cogitar do resultado fi-
,]2
na.z

Dessa maneira o contrato de serviços de agência de publicidade


distingue-se dos contratos de agenciamento de publicidade, nos quais
há mera intermediação na aquisição de espaços publicitários nos veí-
culos de comunicação.
Conforme analisado, a legislação brasileira, assim como a estran-
geira, faz expressa distinção entre a agência de publicidade e o agen-
ciador de propaganda.
A atividade de agenciador de propaganda é prevista no artigo zo da
Lei no 4.680/65, porém antes, no Código de Ética dos Profissionais da
Propaganda, aprovado em 1957, esse profissional era denominado
"corretor", conforme a redação de seu item 6:

"6. Corretor é o indivíduo registrado no veículo, onde funciona como


intermediário da publicidade remunerada, estando sujeito à discipli-
na e hierarquia do veículo."

A função do agenciador é, fundamentalmente, intermediar a tran-


sação entre anunciantes e veículos de comunicação. O objeto do con-
trato de agenciamento de propaganda é, portanto, a oferta de espaços
nos veículos de comunicação e sua remuneração se baseia em uma
comissão sobre o valor da respectiva venda.
Nesse sentido, o agenciador, como intermediário na oferta e aqui-
sição de espaços publicitários nos meios de comunicação, atua como
mandatário desses veículos.
A Ley General de Publicidad espanhola, em seu artigo 19, concei-
tuao chamado contrato de difusión publicitaria, nos seguintes termos:

12 CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil vol.II. Rio de


Janeiro. Forense. 1997. pg. 37.

543
"Articulo 19. Contrato de difusión publicitaria es aquél por el que, a
cambio de una contraprestación fijada en tarifas preestablecidas, un
media se obliga a favor de un anunciante o agencia a permitir la
utilización publicitaria de unidades de espacio o de tiempo disponi-
bles y a desarrollar la actividad técnica necesaria para lograr el resul-
tado publicitario".

O que mais caracteriza, portanto, a atividade de agenciador de


propaganda, conforme analisado, é a sua mediação, sua atuação como
intermediário.
É a mesma conclusão da doutrina espanhola acerca dos Agentes de
Publicidad, cuja atividade, segundo Jose Tallon Garcia, "há de con-
sistir em la del comisionista o representante, esta es, pura mediación
entre las Agencias de Publicidad o los medias y los posibles anun-
ciantes".
A agência de publicidade, da mesma forma que os agenciadores de
propaganda, também faz jus a uma comissão sobre o valor dos espaços
de mídia, adquiridos dos veículos de comunicação. Porém, o próprio
Código de Ética distingue as duas espécies de remuneração. Vejamos:

"12. A comissão percebida pelo corretor não é, necessariamente a mes-


ma concedida às agências que dão 'del credere' efetivo e fazem as
cobranças das contas dos veículos aos anunciantes."

A locução latina del credere designa cláusula muito comum em


contratos de comissão mercantil, através da qual constitui-se o comis-
sário garante solidário ao comitente da solvabilidade e da pontualida-
de daqueles com que contratar por conta e ordem do comitente, con-
forme previsto no artigo l 79 do Código Comercial 13 •
Nas palavras de Maria Helena Diniz:

"DEL CREDERE- Comissão; prêmio pago por um comerciante (co-


mitente) a seu representante (comissário) pelo fato de ter o dever de

13 Nota do Autor: Com o advento do Código Civil de 2002 foi revogada a parte I a do
Código Comercial, em que estava inserido o referido art. 179, passando este a vigorar
sob a redação do art. 698. do Novo Código Civil que dispõe: "Se do contrato de
comissão constar a cláusula dei credere, responderá o comissário solidariamente com
as pessoas com que houver tratado em nome do comitente, caso em que, salvo estipula-
ção em contrário, o comissário tem direito a remuneração mais elevada, para compen-
sar o ônus assumido."

544
responder pela solvabilidade da pessoa com que efetuou negócios de
interesse do comitente" 14

Estabelecida a distinção, é de se concluir que enquanto o agencia-


dor de propaganda atua como mandatário dos meios de comunicação,
a agência de propaganda atua como verdadeiro empreiteiro, obrigan-
do-se a concluir a obra pactuada- no caso a campanha publicitária-
e garantindo as obrigações das partes que contrata com esse fim.
Diante do exposto, podemos concluir que:
a) As agências de publicidade prestam seus serviços mediante um
contrato de serviços de agência de publicidade, cujo objeto é a realiza-
ção de uma campanha publicitária;
h) No desempenho de sua atividade, a agência de publicidade
contrata serviços externos com terceiros e adquire espaço nos veículos
de comunicação para inserção das peças publicitárias;
c) As contratações de serviços externos e a compra de espaços de
mídia são faturados em nome do anunciante visando unicamente im-
pedir a dupla tributação das mesmas operações econômicas;
d) Diante de sua natureza jurídica, o contrato de serviço de agên-
cia de publicidade constitui-se em contrato de empreitada, que gera
em face da agência uma obrigação de resultado;
e) Diversamente dos contratos de serviços de agência de publici-
dade, os contratos de agenciamento de propaganda se caracterizam
pela intermediação na compra de espaços publicitários nos meios de
comunicação;
f) Ambos, agenciador de propaganda e agência de propaganda,
fazem jus a uma comissão sobre a compra de espaços publicitários na
mídia, sendo certo, no entanto, que a última é garante solidária daque-
le em nome de quem contrata.

111 -A ANÁLISE DO CASO CONCRETO

Diante dos fatos que nos foram narrados e à luz da natureza jurídi-
ca dos contratos publicitários, passamos às conclusões que podem ser
extraídas diante do caso concreto:
a) O contrato firmado entre a X-PROPAGANDA Ltda. e COM-
PANHIA ALFA, tinha por objeto a prestação de serviços de agência
de publicidade;

14 MARIA HELENA DINIZ. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva. 1998. Vol.II.
pag. 40.

545
b) o orçamento de mídia apresentado à COMPANHIA ALFA,
que representa a aquisição de espaço publicitário nos veículos de co-
municação, constituía parte integrante do referido contrato, haja visto
que a contratação e a distribuição de propaganda junto aos veículos
estão inseridas dentro dos serviços de agência de publicidade, seja por
expressa previsão contratual, seja pela própria natureza dos contratos
dessa espécie;
c) o orçamento de mídia, aprovado pela COMPANHIA ALFA,
não constitui obrigação distinta daquela pactuada no contrato de ser-
viços de agência de publicidade, logo a X-PROPAGANDA, em mo-
mento nenhum atuou como agenciador de propaganda;
d) como já visto, firmou-se um verdadeiro contrato de empreita-
da, através do qual a X-PROPAGANDA obrigou-se a criar e distribuir
uma campanha publicitária, para a COMPANHIA ALFA, ou seja, a
execução da obrigação da X-PROPAGANDA para com a anunciante
seria a vinculação das peças publicitárias, por aquela elaboradas, no
meios de comunicação;
f) por outro lado, as eventuais dívidas com veículos de comunica-
ção, ainda que seus serviços tenham sido faturados em nome dos
anunciantes, subsistem em face da Agência, dada a natureza dos servi-
ços de publicidade;
g) a crise financeira que se abateu sobre a X-PROPAGANDA
resultou em uma série de inadimplementos, tanto junto aos anuncian-
tes como junto aos fornecedores e veículos de comunicação;
h) o fato da COMPANHIA ALFA ter se antecipado à X-PROPA-
GANDA e saldado as dívidas consubstanciadas nas faturas emitidas
em seu nome, gera unicamente o direito de regresso em face da X-
PROPAGANDA, como garante solidário da obrigação, nos termos
da legislação publicitária;
i) portanto, os efeitos jurídicos advindos da inexecução do contra-
to de serviços de agência de publicidade por parte da X-PROPAGAN-
DA são de natureza nitidamente civil;
j) descabe, por conseguinte, qualquer imputação penal relativa à
suposta apropriação indébita, haja visto que, conforme analisado, não
se coaduna com a natureza dos serviços de agência de publicidade a
intermediação envolvendo recursos alheios; e
1) conseqüentemente, dada a natureza dos serviços desenvolvidos
pela X-PROPAGANDA, de agência de publicidade, não houve, de
sua parte, apropriação indevida de recursos da COMPANHIA ALFA.
Foi o nosso parecer, em outubro de 2001.

546
FUNDO DE INVESTIMENTO. NÃO APLICAÇÃO
DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
AOS QUOTISTAS. FATO DO PRÍNCIPE
CONSISTENTE NA MUDANÇA DAS REGRAS
DE CONTABILIZAÇÃO DOS TÍTULOS
DE SUA CARTEIRA

I - OS FATOS E A CONSULTA

As Consulentes solicitam nosso Parecer Jurídico sobre a eventual


responsabilidade das entidades administradoras de Fundos de Investi-
mento - FIF -em função de alegadas perdas sofridas pelos quotistas
em decorrência dos ajustes promovidos pela aplicação dos critérios
estabelecidos na Instrução CVM n° 365/02.
AADCON -Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, da
Vida e dos Direitos Civis, impetrou uma Ação Civil Pública contra
quatorze bancos, no foro do Rio de Janeiro com base no art. 110 do
Código de Defesa do Consumidor, alegando, em síntese, que:
-A Autora, enquanto associação regularmente constituída, é parte
legítima para pleitear em Juízo quaisquer lesões a quaisquer interesses
coletivos difusos dos consumidores, entendendo como tais os quotis-
tas de fundos de investimentos geridos pelos Bancos Réus;
- Os fundos de investimento mantidos pelos Bancos Réus podiam
contabilizar os títulos que compram do governo pelo valor de aquisi-
ção dos papéis e fazer a correção dos papéis pela rentabilidade que
teriam até o seu vencimento;
- Com as mudanças impostas pelo Banco Central e pela Comissão
de Valores Mobiliários, conforme literalmente aduzido na petição ini-
cial, os administradores dos fundos ficaram obrigados a registrar todos
os dias o valor de mercado dos títulos públicos;
- A decisão do Banco Central de antecipar para o dia 31 de maio o
fim do prazo para os fundos se adaptarem às novas regras de contabi-
lização dos títulos trouxe resultados negativos para os investidores,

547
uma vez que os fundos, que rendem em média I ,2% a 1,4% ao mês,
apresentaram perdas de 1% a 2,5%;
-Entre os direitos básicos do consumidor, prevê a Lei 8.078/90-
O Código de Defesa do Consumidor-, em seu art. 6°, inciso V, a
modificação ou revisão das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais ou que venham a colocar o consumidor
em desvantagem;
- Se as condições de aplicação dos fundos de investimentos foram
modificadas de forma unilateral pelos Bancos Réus que os mantêm,
devem as cláusulas que regulam a matéria serem modificadas, para
retornar à situação anterior;
-Finalmente, requer a ADCON que se julgue procedente o pedi-
do para o fim de condenar os Réus à obrigação de fazer, recompondo
a situação dos contratos mantidos com os aplicadores aos ditames
anteriores à Circular n° 2.618 1, de 20/09/95, do Banco Central, de-
clarando a nulidade de qualquer cláusula modificadora que permita
aos Réus alterarem as condições de taxas de juros, sua forma de apli-
cação, quaisquer outros parâmetros que importem em prejuízo ao
consumidor e os seus resultados em razão dessas novas regras.
Face ao exposto, e juntando a documentação atinente, as Consu-
lentes indagam, tendo em vista a ação proposta pela ADCON e/ou
outras que eventualmente venham a ser ajuizadas:

-As entidades administradoras de Fundos de Investimento Financei-


ro podem ser responsabilizadas pelas alegadas perdas sofridas pelos
investidores em decorrência das mudanças nas regras de contabiliza-
ção dos títulos integrantes das carteiras dos fundos?

11 -O PARECER

Objetivando uma análise sistemática da questão que nos foi sub-


metida, desenvolveremos o presente Parecer abordando os seguintes
tópicos:

a) os Fundos de Investimento e sua regulamentação;

1 Nota do Autor: Essa Circular foi revogada pela Circular 2.695/96, que por sua vez
foi revogada pela Circular 2. 712/96, que por fim foi revogada pela Circular n°
2.965/2000, ora em vigor.

548
b) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Fundos de
Investimento 2;
c) o Fato do Príncipe e as regras sobre "marcação a mercado"; e
d) a resposta ao quesito.

A) OS FUNDOS DE INVESTIMENTO E SUA


REGULAMENTAÇÃO

O Fundo de Investimento constitui, em praticamente todos os


países que dispõem de sistemas financeiros organizados, um dos mais
notáveis instrumentos de aplicação de recursos dos investidores.
A aplicação de recursos diretamente em ações ou mesmo em títu-
los de renda fixa pode constituir, para os investidores, não afeitos à
dinâmica do mercado financeiro, uma opéração operacionalmente
complexa e arriscada.
Visando à diversificação dos riscos, foram sendo criados, ao longo
das últimas décadas, diferentes instrumentos de investimento coleti-
vo, que apresentam, para o investidor, alguma~ vantagens essenciais:
permitem, para cada poupador, a aplicação d.~ pequeno volume de
recursos; e dispõem de uma administração espe.cializada.
Na prática internacional, e conforme reconhecido na Diretiva do
Conselho da Comunidade Européia 85/6ll, as entidades de investi-
mento coletivo podem revestir-se das seguintes modalidades 3 : fundos
de investimento; companhias de investiment~; e "unit trusts".
I ;_,

Os fundos de investimento, diversamepte do que ocorre com as


companhias de investimento, caracterizam~se por apresentar uma fei-
ção contratual e não societária.
Assim, os fundos de investiment.o organjzam-se, juridicamente,
sob a forma de condomínio aberto, sem persqnalidade jurídica, cons-
tituindo-se como uma comunhão de recurso~ destinados à aplicação
em carteira diversificada de ativos financeiros, como títulos da dívida
pública, ações, debêntures e outros títulps ~~contratos existentes no
mercado financeiro. ·

2 Nota do Autor: SÚMULA N. 297 -STJ. A Segunda Seção, em 12 de maio de 2004,


aprovou o seguinte verbete de Súmula: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável
às instituições financeiras.
3 EDUARDO MARTINEZ DE SALINA. El Mercado de Valores. Pamplona: Ed.
Arazandi, 1992. pg. 1.023.

549
Os investidores recebem, em contrapartida à sua aplicação, quotas
de emissão do fundo, cujo valor varia de acordo com a valorização do
patrimônio do fundo. A administração do fundo é usualmente confia-
da a uma entidade especializada, instituição financeira com capacita-
ção técnica para gerir o patrimônio comum dos quotistas.
Entre nós, a primeira experiência relevante no setor deu-se em
1956, com a criação do Fundo de Investimentos Crescinco, cuja admi-
nistração foi confiada a uma companhia brasileira subsidiária de uma
empresa financeira norte-americana, a "lnternational Basic Economy
Corporation", de Nova York 4 . A partir de então, os fundos de investi-
mento passaram a ser objeto de minuciosa disciplina regulamentar,
inicialmente por parte da SUMOC, depois, a partir de 1964, por
parte do Banco Central, e, mais recentemente, com a edição da Lei
10.303/01, pela Comissão de Valores Mobiliários- CVM.
Presentemente, conforme demonstram estudos especializados, a
indústria dos fundos constitui um dos setores mais dinâmicos do mer-
cado financeiro. No Brasil, este segmento vem crescendo significativa-
mente e já se apresenta como o 11° no mundo, representando 79% do
total da América Latina, com ativos de R$ 360.000.000.000,00 (tre-
zentos e sessenta bilhões de reais). Ademais, trata-se de setor bastante
eficiente e competitivo, em termos comparativos; enquanto nos Esta-
dos Unidos a taxa média de administração dos fundos é de 2,4%, no
Brasil está abaixo de 1% ao ano 5 .
Os Fundos de Investimento Financeiro- FIFs- foram institu-
cionalizados em julho de 1995, mediante a Resolução n° 2.183, do
Conselho Monetário Nacional- CMN.
A Resolução 2.183/95, em seu art. 2°, vedou, a partir de
O1/1 0/9 5, a emissão e colocação de quotas de fundos rpútuo de renda
fixa, fundos de investimentos em "commodities", fundos de aplicação
financeira, fundos de investimento em quotas de fundos de aplicação
financeira, fundos de renda fixa -curto prazo e fundos de investi-
mento em quotas de fundos de renda fixa - curto prazo. Segundo o
inciso I do art. 3° da mesma resolução, tais fundos deveriam, até
29.12.95, ser transformados em fundos de investimento financeiro ou
a esses incorporados ou liquidados. O objetivo visado pelas autorida-

4 Conforme o pioneiro estudo de PETER WALTER ASHTON. Companhias de


Investimento. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1963. pg. 40 e seguintes.
5 Conforme dados apresentados por MARCELO FIDECIO GIUFRIDA, in Merca-
do de Capitais - A Saída para o Crescimento, Série ABAMEC, São Paulo, Lazuli,
2002, pg. 65.

550
des monetárias foi o de "desburocratizar" o mercado, ao permitir que
uma única espécie de fundo - o de investimento financeiros - pu-
desse investir os recursos dos quotistas nos diversos títulos e ativos
financeiros existentes no mercado.
Assim, o fundo de investimento financeiro, nos termos da regula-
mentação6, pode aplicar os recursos em praticamente todos os ativos
financeiros ou modalidades operacionais disponíveis no mercado fi-
nanceiro: títulos da dívida pública; quotas de fundos de investimen-
tos; ações emitidas por companhias abertas; ouro adquirido em bolsas
de mercadorias e de futuros; derivativos; warrants e contratos mer-
cantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços, etc.
O fundo de investimento financeiro, constituído sob a forma de
condomínio aberto, é definido pela regulamentação 7 como uma co-
munhão de recursos destinados à aplicação em carteira diversificada
de ativos financeiros e demais modalidades operacionais disponíveis
no mercado financeiro.
Os fundos podem aplicar parte de seus recursos em títulos com
taxas de rentabilidade fixa, assim como parte em valores mobiliários,
tais como em ações e derivativos. Assim, mesmo compondo-se a car-
teira de um determinado fundo de uma parcela pequena de títulos de
renda variável, o risco é inerente à lógica do investimento.
A regulamentação dos fundos disciplina, detalhadamente, o que
deve constar no regulamento do fundo, as informações que devem ser
prestadas aos quotistas e à autoridade reguladora, os encargos do fun-
do, a assembléia geral de quotistas, assim como a emissão, colocação e
regate das quotas.
O amplo acesso dos investidores às informações, em especial
quanto ao perfil dos investimentos de um determinado fundo, em
escalas de "conservador" a "agressivo", busca prevenir o investidor
quanto ao grau de risco que cada aplicação representa.
A administração do fundo pode ser exercida por banco múltiplo,
banco comercial, caixa econômica, banco de investimento, sociedade
de crédito, financiamento e investimento, sociedade corretora ou ain-
da sociedade distribuidora. A instituição administradora tem poderes
para praticar todos os atos necessários à administração do fundo e para
exercer os direitos inerentes aos ativos financeiros que integram a sua
carteira. Mediante deliberação da assembléia geral de quotistas, a ins-

6 Manual de Normas e Instruções do Banco Central- MNI- 4.4.3.


7 MNI 4.4.1.

551
tituição administradora pode: contratar serviços de consultoria de
empresa especializada, objetivando a análise e seleção dos ativos fi-
nanceiros para integrarem a carteira do fundo; delegar poderes para
administrar a carteira do fundo para terceiros, sem prejuízo de sua
responsabilidade 8 .
A forma de contabilização dos ativos integrantes da carteira do
fundo de investimento financeiro, que ora constitui objeto de discus-
são, foi sendo alterada, ao longo do tempo, por atos das autoridades
reguladoras dos fundos, inicialmente o Conselho Monetário Nacional
- C.M.N. e o Banco Central, mais recentemente a Comissão de
Valores Mobiliários.
A Resolução 2.183/95, do C.M.N., ao disciplinar os fundos de
investimento financeiro, dispôs, em seu art. 1°, parágrafo 1°, II 9, que
a regulamentação do Banco Central sobre os referidos fundos deveria
contemplar a obrigatoriedade da adoção do critério de avaliação dos
ativos integrantes das suas carteiras pelo seu valor de mercado, a cha-
mada "marcação a mercado".
Verificaram-se, porém, grandes dificuldades técnicas para a modi-
ficação do critério de avaliação dos títulos, que até então eram valora-
dos pelo seu custo de aquisição.
Ainda que se possa entender que a avaliação a mercado é a mais
correta, por refletir o valor "real" dos títulos, a mudança de critérios,
por definição, sempre acarreta ganhos para alguns quotistas e perdas
para outros.
Assim, se os títulos que estavam contabilizados pelo custo de aqui-
sição apresentam deságio no mercado (ou seja, são negociados a pre-
ços inferiores ao preço de aquisição) a modificação do critério pode
ser prejudicial aos quotistas que, logo em seguida, resgatam suas quo-
tas. Isto porque o resgate ocorrerá no momento em que a quota refle-
te um patrimônio contabilizado a valores inferiores aos que apresenta-
va antes. Os quotistas que ingressam no fundo após a adoção do novo
critério poderão ser beneficiados, pois adquirirão as quotas a um pre-
ço mais baixo. Já para os quotistas que permanecem no fundo até o
vencimento dos títulos de renda fixa que compõem a sua carteira é
indiferente a mudança de critério.
Ademais, a "marcação a mercado" não constitui um modelo abso-
luto, que possa ser sempre aplicado; muitos títulos não apresentam

s MNI 4.4.2.5.
9 Nota do Autor: O inciso II do parágrafo P do art. 1° da Resolução 2.183/95 foi
modificado pela Resolução 2.931/2002.

552
maior liquidez, inexistindo pois "valor de mercado"; em algumas oca-
siões, os preços de mercado não são comparáveis ou mesmo as refe-
rências não são idênticas.
Assim, muitas instituições administradoras de fundos mantiveram
o critério anterior, de contabilização dos títulos pelo seu preço de
aquisição, dada a inexistência de parâmetros oficiais de "marcação a
mercado" dos títulos.
O Banco Central, em 15/02/02, mediante a Circular n° 3.086,
estabeleceu determinados parâmetros para a "marcação a mercado"
dos títulos. O art. 12 da mesma Circular, porém, admitiu que o en-
quadramento às suas disposições- ou seja, a "marcação a mercado"
-fosse efetuado até 30 de junho de 2002.
Percebendo que a mudança de critérios em tão pouco tempo po-
deria ser inviável operacionalmente e ocasionar turbulências no mer-
cado, o Banco Central, em 06 de março de 2002, mediante a Circular
n° 3.096, admitiu que o enquadramento fosse realizado até 30 de
setembro de 2002.
Porém a CVM, que, tendo em vista a nova redação dada pela Lei
10.303/01 ao art. 2° da Lei 6385/76 e a Decisão-Conjunta n° 10, de
02/05/02, do Banco Central e da CVM, passou a ser o órgão compe-
tente para regular os fundos de investimento financeiro, os fundos de
aplicação em quotas de fundos de investimento e os fundos de inves-
timento no exterior, disciplinou novamente a matéria, mediante a
Instrução 365, de 29/05/02.
O art. 1° da referida Instrução, de 29/05/02, estabeleceu que os
procedimentos de "marcação a mercado" deveriam ser observados a
partir de 31!05/02, inclusive. O parágrafo único do art. 1° dispôs
ademais que a adoção dos procedimentos referidos no artigo- "mar-
cação a mercado" - deveriam produzir efeitos imediatos no valor da
quota do fundo.
Os efeitos imediatos sobre o valor das quotas, conforme é de co-
nhecimento público, foram desastrosos; como muitos fundos tinham,
em suas carteiras, títulos da dívida pública, que apresentavam, naque-
le momento, substancial deságio, dadas as incertezas das eleições, o
aumento do chamado "risco Brasil" e outros fatores negativos na con-
juntura econômica, sua marcação a mercado fez com que o valor das
quotas sofresse baixa. Ademais, muitos investidores, impressionados
com o noticiário veiculado na imprensa, passaram a solicitar o resgate
de suas quotas, o que forçou os fundos a venderem títulos públicos,
que caíram ainda mais de cotação, ou seja, tiveram o seu deságio au-
mentado.

553
Na medida em que aumentavam os resgates, portanto, maiores
eram as perdas dos quotistas que os solicitavam, criando-se um círculo
vicioso, causado pela inoportuna modificação na forma de contabiliza-
ção dos títulos.
Tamanho foi o clamor público - falava-se em perdas dos fundos
na ordem de dezenas de bilhões de reais- que a CVM voltou atrás,
visando a reduzir os resgates, ao editar a Instrução n° 375, de
14/08/02. Referida norma regulamentar, em seu art. l 0 , permitiu que
os fundos de investimento financeiro, os fundos de aplicação em quo-
tas de fundos de investimento e os fundos de investimento no exterior
não "marcassem a mercado" os títulos com prazo de vencimento de
um ano.
Conforme foi então observado, a medida significava que as autori-
dades estariam "jogando o problema" para o próximo ano, à espera de
que, até lá, os problemas conjunturais seriam resolvidos 10 .

B) A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO


CONSUMIDOR AOS FUNDOS DE INVESTIMENTO

Cumpre-nos, no presente tópico, analisar o âmbito de aplicação


do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que constitui um con-
junto de normas especiais de proteção e de tutela do consumidor e
das relações de consumo, às operações das instituições financeiras.
A propósito, dispõe o art. l 0 da Lei 8.078/90:

"O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do con-


sumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°,
inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas
Disposições Transitórias."

Trata-se, assim, de legislação de cunho tutelar, aplicada adicional-


mente à sistemática geral do direito das obrigações civis e comerciais,
nas hipóteses em que o consumidor se coloque numa posição de fragi-
lidade nas relações de consumo com fornecedores.
Conforme observou Fábio Konder Comparato, "o consumidor é,

10 Declarações do Dr. EDGAR DA SILVA RAMOS, Presidente da Associação Na-


cional das Instituições do Mercado- ANDIMA- ao jornal O Estado de S. Paulo,
15/08/02, pg. B3.

554
de modo geral, aquele que se submete ao poder de controle dos titulares
de bens de produção, isto é, os empresários" 11
No presente caso, cumpre-nos verificar se o COC é aplicável às
relações entre instituições financeiras e os clientes dos fundos de in-
vestimento financeiro, investigando:

a) o conceito de consumidor instituído pelo COC;


b) se o investidor e a instituição financeira podem ser considerados,
respectivamente, consumidor e fornecedor, e se entre eles se estabe-
lece uma relação de consumo;
c) se a aplicação de recursos em fundo de investimento financeiro
pode ser considerada um "serviço de natureza bancária" abrangido
pela disposição do § 2° do art. 3° do coe.

Como referido, aplica-se o COC somente para a tutela de relações


entre consumidores e fornecedores, motivo pelo qual o Código cui-
dou de definir tais figuras em seus artigos 2° e 3°, que têm a seguinte
redação:

"Art. r - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire


ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo Único - Equipara-se a consumidor a coletividade de pes-
soas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de
consumo.
Art. 3° - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou
privada, nacional ou estrangeira, bem como entes despersonalizados,
que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, cons-
trução, transformação, importação, exportação, distribuição ou co-
mercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imate-
rial.
§ 2° - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consu-
mo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, finan-
ceira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de
caráter trabalhistas." (Grifou-se)

Diante disso, embora bastante ampla e abrangente, a definição de


consumidor não deve ultrapassar o campo de incidência do CDC, que

11 FABIO KONDER COMPARATO. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio


de Janeiro: Forense, 1978. pg. 4 76.

555
é o das relações de consumo, ou seja a aqulSlçao ou utilização de
produto ou de serviço, sempre como destinatário final.
Na conceituação de consumidor, inserida no art. 2o do CDC, duas
figuras essenciais vêm à tona: a relação de consumo e o destinatário
final.
Economicamente, tem-se que o objetivo final de todo processo
produtivo é o consumo, ou seja, a utilização, a aplicação, uso ou gasto
de um bem. Vale acrescentar que, no caso dos serviços, na maioria das
vezes o consumo ocorre simultaneamente à sua produção. Conclui-se,
portanto, que o consumo é a ultima etapa de um determinado proces-
so produtivo 12 .
O Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de
Holanda, define o ato de "consumir" como "gastar", "destruir", "ex-
tinguir".
Para Luiz Gastão Paes de Barros Leães, "o consumo se define, antes
de tudo, como função de satisfação das necessidades, significando o
uso imediato e final de bens e serviços para a satisfação das necessida-
des humanas" 13
Ou ainda, segundo Carlos Alberto Bittar, o consumo constitui o
elo final da cadeia produtiva, destinando-se o bem ou serviço à sua
utilização pessoal" 14
Poucos são os conceitos legalmente expressos de "consumo". Des-
taca-se o art. 86 do Código Civil de 2002, que, repetindo o art. 51 do
Código Civil de 1916, abrange os chamados bens naturais e juridica-
mente consumíveis, ao esclarecer que "são consumíveis os bens mó-
veis, cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sen-
do também considerados tais os destinados à alienação".
Assim, diante das diferentes acepções, a noção de consumidor
instituída pelo CDC caracteriza-se, essencialmente, por se encontrar
o agente na posição de destinatário final dos bens ou serviços objeto
de uma relação de consumo.
Nesse sentido, a lição de Amoldo Wald:

12 MAÍLSON DA NÓBREGA e GUSTAVO LOYOLA. "A caderneta de poupança


e o código do consumidor". Revista de Direito Bancário e de Mercado de Capitais, n.
6, set./dez. 1999. pg. 256.
13 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. "As relações de consumo e o crédito
ao consumidor". Revista de Direito Mercantil, vol. 82, pg. 16.
14 CARLOS ALBERTO BITTAR. Direitos do consumidor. Forense Univ., 1990. p.
28

556
"A lei de defesa do consumidor amplia, num sentido, e restringe, no
outro, o conceito de bens de consumo do Código Civil, pois abrange
tanto os de consumo como de uso (que se degradam com o tempo), mas
exclui da sua acepção os bens juridicamente consumíveis mantendo,
tão-somente, os naturalmente consumíveis, pelo fato de se referir (a
defesa do consumidor), aos produtos adquiridos pelo destinatário
final, o que não ocorre com produtos utilizados para a alienação a
terceiros pois quem aliena, evidentemente, não é destinatário fi-
nal."
E conclui o autor:
"Complementando, assim, sistematicamente, a interpretação da nor-
ma da lei de defesa do consumidor pelas regras do Código Civil,
verificamos que todos o bens destinados à produção ou à alienação
pelo adquirente não são bens de consumo para o fim específico. A
relação de consumo se refere, pois, tão-somente, aos bens de con-
sumo ou de uso adquiridos pelo destinatário final para uso pró-
prio e de suafamília." 15 (Grifou-se)

Nota-se, portanto, que o CDC delimita o conceito de consumidor


com base em seu conteúdo econômico, ou seja, se o sujeito se posicio-
na como último participante do processo produtivo (destinatário fi-
nal), ele será considerado consumidor.
É o que se conclui do magistério do economista Albert L. Meyers,
em seu Elementos de Economia Moderna:

"Consumo é o uso imediato e final de bens e serviços, para satisfazer


as necessidades de seres humanos livres. Consumo não significa uso
de um bem, a menos que seja usado pelo consumidor final. Dia-
riamente, emprega-se o carvão para gerar força que movimenta as
fábricas; entretanto, este constitui parte do processo produtivo, e não
do consumo." 16 (Grifou-se)

Assim, diferente será a situação do sujeito que adquire o bem para


revendê-lo, ou aplicá-lo em processo posterior de produção. Nesse
sentido, não são consumidores os comerciantes, no que se refere aos

15 ARNOLD WALD. "O direito do consumidor e as suas repercussões em relação às


instituições financeiras". Revista dos Tribunais, n. 666, abril de 1991. p. 13.
16 ALBERT L. MEYERS. Elementos de Economia Moderna, Rio de Janeiro: Livro
Ibero-americano, 1962, pg. 13.

557
bens para revenda, nem tampouco os industriais que adquirem maté-
rias-primas para transformá-las em produtos finais.
Não muito diversos são os conceitos de consumidor oferecidos
pelo direito comparado. A Resolução 543 de 17.05.1973 do Conselho
da Europa, que aprovou a Carta de Proteção do Consumidor, no âm-
bito da União Européia, assim o define: "uma pessoa física ou coletiva
a quem são fornecidos bens e prestados serviços para uso privado."
A lei portuguesa (Lei no 24, de 31.07.1996), por seu turno, dá a
seguinte definição de consumidor: "Considera-se consumidor todo
aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmiti-
dos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa
que exerça com caráter profissional uma actividade econômica que
vise a obtenção de benefícios."
Diante do exposto indaga-se: os investidores em fundos de inves-
timento podem ser considerados consumidores?
Para responder à questão, faz-se necessário verificar se há nos
contratos de aplicação em fundos de investimento uma relação de
consumo e se o investidor pode, nesta hipótese, ser considerado o
destinatário final de um processo produtivo.
Investimento é toda a aplicação de recursos (dinheiro ou títulos)
de forma a se obter um rendimento. Num sentido amplo, o termo
aplica-se tanto ao financiamento da atividade produtiva com uma ex-
pectativa de retorno, quanto à compra de ativos financeiros (títulos de
renda fixa, ações etc.). Nestes termos, investimento constitui toda
aplicação de dinheiro com expectativa de rendimentos 17 .
O investidor- seja de fundos de investimento, seja de uma sim-
ples caderneta de poupança- participa do Sistema Financeiro, que
tem como função básica promover os canais adequados de interme-
diação, mediante os quais os agentes econômicos deficitários obtêm
os recursos necessários aos seus projetos de investimentos e os agentes
econômicos superavitários aplicam as suas reservas.
Cabe enfatizar, a propósito, que os conceitos de consumo e inves-
timento são ontologicamente antinômicos e excludentes. Com efei-
to, o indivíduo que consome, por definição, não está investindo ou
poupando. A propósito, comentam Gustavo Loyola e Maílson da Nó-
brega:

17 PAULO SANDRONI. Novo Dicionário de Economia. 6 ed. São Paulo: Best Seller,
1994. p. 176.

558
"Normalmente, o principal destino dado por um indivíduo à sua ren-
da é o consumo. Alternativamente, o indivíduo pode poupar (. ..).
Fica claro que, economicamente, poupança e consumo são atos
diametralmente opostos e mutuamente excludentes. Um implica o
uso e desgaste total ou parcial de um produto ou o uso de um serviço.
O outro implica acumulação. O consumo é a negação da poupança e
vice-versa. Assim, a decisão de consumir implica automaticamente a
decisão de não poupar." (Grifou-se)

Nesse sentido, são claras as posições que podem ser assumidas


pelos diferentes agentes econômicos:

a) Um indivíduo normalmente destina grande parte de seus rendi-


mentos ao consumo, buscando a satisfação de suas necessidades;
b) caso haja excedente de recursos, após o consumo, o indivíduo
(agente superavitário) opta por aplicar esses valores em fundos de
investimentos, ações, cadernetas de poupança;
c) a instituição financeira que recebe esses recursos transfere-os,
através de operações financeiras, para agentes que necessitam de tais
recursos (agentes deficitários), seja para a produção, seja para o con-
sumo, seja para o Tesouro Nacional financiar as ações governamentais
(através da compra de títulos emitidos pelo governo);
d) ao final de um dado período de tempo, o investidor recebe uma
remuneração (dividendos ou juros) na proporção de seus recursos
aplicados.

Assim, as instituições financeiras atuam no processo de interme-


diação financeira, transferindo fundos das pessoas que os têm em
excesso Cagentes superavitários) para aquelas que deles necessitam
Cagentes deficitários).
É pois evidente que entre a instituição financeira administradora
do fundo e aqueles que nele investem não se configura uma relação de
consumo, uma vez que a instituição financeira repassa tais valores aos
emissores dos títulos que compõem a sua carteira, restando clara a sua
atividade de intermediação de recursos
A propósito, diversos doutrinadores apontam a absoluta impossi-
bilidade jurídica de se aplicar o CDC às operações ativas e passivas das
instituições financeiras, dada a clara inexistência de relação de consu-
mo em tais transações.
Tal impossibilidade é comentada pelo ex-ministro Paulo Brossard,
no seguintes termos:

559
"Definem-se instituições financeiras como agentes econômicos, cuja
atividade tem por objeto a coleta, a intermediação e a aplicação dos
recursos monetários próprios ou de outrem. São, numa palavra, inter-
mediários na circulação do dinheiro, Lei 4.595, art. 17, donde Pon-
tes de Miranda ter acentuado: O que caracteriza a atividade ban-
cária é a função de intermediariedade na circulação do dinheiro
op. cit., 52/3, § 5.412.
(. . .)
Operações bancárias ou operações de crédito não dizem respeito ao
consumo; ao contrário, envolvem aplicação de reservas poupadas,
exatamente do que sobejou por não ter sido utilizado no consumo, ou
seja, na satisfação de necessidades." 18 (Grifou-se)

Para Waldirio Bulgarelli, da mesma forma, a lei do consumidor


"está voltada para um campo estritamente delimitado, que é o das
relações de consumo, o que, em termos econômicos corresponde ao mer-
cado de consumo, que se distingue e se contrapõe nitidamente ao mer-
cado produtivo. Situando-se o mercado de consumo no final da cadeia
produtiva, e o conceito de consumidor põe em evidência o termo desti-
natário final, certamente se excluem as posições intermediárias".
E completa o autor:

"Acresce ainda que a ciência econômica de há muito vem demonstran-


do a utilização da poupança para fins produtivos, sendo certo e incon-
testável que a poupança, afinal, é justamente o contrário do con-
sumo."19 (Grifou-se)

Há, portanto, uma absoluta antinomia ontológica entre a noção de


"consumir" e a noção de "investir e poupar".
O 1o Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, a propósito, reconhe-
ceu a inexistência de relação de consumo entre os investidores e a
instituição financeira, no julgamento da apelação n. 526.620- 2, sob
a relataria do Juiz Franklin Nogueira, nos seguintes termos:

"Ementa: Embasamento nos arts. 81, parágrafo único, III; 82, VI e 87


do CDC e art. 5°, III da CF - Inadmissibilidade -Ausência de

18 PAULO BROSSARD DE SOUZA PINTO. "Defesa do Consumidor". Revista dos


Tribunais, vol. 718, Agosto de 1995. pg. 89.
19 WALDIRIO BULGARELLI. Questões contratuais no Código de Defesa do Consu-
midor. São Paulo. Atlas, 1998. pg. 31.

560
relação de consumo entre depositante em caderneta de poupança e
estabelecimento bancário - Estatuto Social da entidade que alude
apenas à propositura de ações para a defesa dos consumidores -
. ( ... )20

Na realidade, as normas de defesa do consumidor não se adequam


à proteção dos investidores em face das instituições financeiras, dada
i) a total inaplicabilidade de diversos dispositivos do CDC às ativida-
des desenvolvidas pelas instituições financeiras; e íí) a enorme com-
plexidade de tais operações, cuja regulamentação e fiscalização são
exercidas por órgãos especializados, como o Banco Central e a Co-
missão de Valores Mobiliários.
Com efeito, somente um órgão governamental especializado de
fiscalização e regulação pode, em princípio, tutelar os direitos dos
investidores, dada a complexidade técnica que se requer para identi-
ficar os problemas advindos da relação entre as instituições financeiras
e seus clientes.
Nesse sentido, entende Pedro Paulo Cristófaro, ao comentar
a matéria, que:

"Consumidores e investidores são categorias diferenciadas, quer con-


ceitualmente, quer do ponto de vista legal. A poupança não se confun-
de com o consumo nem do ponto de vista econômico nem do ponto de
vista jurídico. Essas diferenças conceituais e jurídicas levam a
que consumidores e poupadores, embora apresentando caracte-
rísticas comuns, carecem- até para serem adequadamente pro-
tegidos em seus interesses legítimos- de tratamento diferencia-
do, que leve em conta as peculiaridades de cada categoria." 21
(Grifou-se)

Os quotistas de fundos de investimento financeiro não são consu-


midores, mas investidores do mercado de valores mobiliários.
Com efeito, nos termos do art. 1° da Lei 6385/76, com a redação
que lhe foi dada pela recente Lei 10.303/01, as quotas de fundos de
investimento são consideradas valores mobiliários 22 .

20 Transcrito na Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 2,


maio/agosto de 1998. pg. 197.
21 PEDRO PAULO CRISTÓFARO. Revista de Direito Mercantil, n. 92, out./dez.
1993. pg. 89/90.
22 MODESTO CARVALHOSA E NELSON EIZIRIK, A Nova Lei das 5/A, São
Paulo, Saraiva, 2002, pg. 4 79 e seguintes.

561
Nos termos da Lei 6385/76, a Comissão de Valores Mobiliários
detém amplos poderes de regulamentação e fiscalização de todas as
entidades que emitem ou colocam valores mobiliários no mercado,
dentre as quais se enquadram os fundos de investimento. Verificando
qualquer infração às normas legais e regulamentares que disciplinam o
mercado, a CVM pode instaurar procedimento administrativo sancio-
nador, visando à aplicação de penalidades administrativas 23 .
Ademais, a CVM mantém, em caráter permanente, um serviço de
proteção a todos os investidores em valores mobiliários, de reconheci-
da especialização.
Assim, quem adquire quotas de um fundo de investimento finan-
ceiro é considerado investidor- e não consumidor -do mercado de
valores mobiliários, o qual é submetido à regulamentação e fiscaliza-
ção da CVM, agência reguladora que dispõe de amplos poderes para
proteger os investidores.
O investidor do mercado de valores mobiliários não pode ser con-
fundido com o consumidor de serviços bancários, financeiros, credití-
cios e securitários a que se refere o CDC em seu art. 3°, § 2°.
A propósito, faz-se necessário indagar se a aplicação em fundos de
investimento caracterizaria os chamados "serviços de natureza bancá-
ria" a que alude a§ 2° do art. 3 o do coe, nos seguintes termos:

"§ 2° - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de con-


sumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, fi-
nanceira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações
trabalhistas." (Grifou-se)

É evidente que nem todas as atividades exercidas pelos bancos


podem ser incluídas na noção de "serviços de natureza bancária" apre-
sentada pelo art. 3°, § 4o do CDC, uma vez que só poderão estar nela
inseridas aquelas fornecidas no mercado de consumo, como expressa-
mente determina o dispositivo.
Como já vimos, o investimento não se situa no mercado de consu-
mo, caracterizando-se como ato oposto ao conceito de consumo.
Luiz Gastão Paes de Barros Leães, a propósito, destaca, ao comen-
tar o alcance da expressão "mercado de consumo", constante do art.
3°, § 2° do CDC, que:

23 NELSON EIZIRIK, Reforma das SIA e do Mercado de Capitais, Rio de Janeiro,


Ed. Renovar, 1998, pg. 167 e seguintes.

562
"O mercado de consumo tem um significado unitário, e não abrange,
evidentemente, todas as relações econômicas de troca, produção e cir-
culação de bens e serviços. Caso contrário haveria não só uma indese-
jável imbricação de disciplinas legais para diferentes relações jurídi-
cas, como se daria a legislação relativa a esse mercado uma abrangên-
cia ilimitada. Na realidade, esse mercado abarca especificamente as
relações jurídicas de uso e consumo de produtos fabricados em massa,
bem como os serviços a eles atinentes (. .. ) "

Ao incluir as atividades bancárias, financeiras, creditícias e securi-


tárias entre os "serviços", o Código de Defesa do Consumidor refere-
se somente àquelas desenvolvidas no mercado de consumo." 24
Com efeito, os bancos, no atual cenário das relações econômicas,
prestam uma gama de serviços que não se confundem com as ativida-
des privativas de instituições financeiras, quais sejam, aquelas relacio-
nadas, direta ou indiretamente, à intermediação de crédito.
Tais serviços, oferecidos pelos bancos aos clientes, como destina-
tários finais, no mercado de consumo, dizem respeito, por exemplo,
ao pagamento de contas, cobrança de títulos (contas, duplicatas, etc.),
serviços de "banco 24 horas", aluguel de cofres para a guarda de valo-
res, e tantos outros que, até por sua natureza, poderiam ser prestados
por instituições não bancárias.
A propósito, Maílson da Nóbrega e Gustavo Loyola comentam
que:

"Resta saber quais atividades de natureza bancárias, financeira, de


crédito e securitária a que se refere o § zo, que seriam reguladas pela
Lei n° 8.078/90.
A nosso ver, são muito poucas, e todas de natureza secundária em
relação aos serviços prestados pelos intermediários financeiros. Em
primeiro lugar temos as atividades que independem de intermedia-
ção financeira, tais como cobrança, venda de seguros e o recebimento
de contas, impostos e taxas ou, em alguns casos, a transferência direta
de numerário entre pessoas. São atividades igualmente desempenha-
das por outros agentes econômicos e que em muitos países são con-
duzidas por prestadores de serviços que não os bancos. É o caso, por

24 LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. "As relações de consumo e o crédito


ao consumidor", in Lei de defesa do Consumidor- Coordenação de Geraldo Vidigal.
São Paulo: IBCB, 1991, p.69-70.

563
exemplo, das agências do correio na França, no Reino Unido, no Ja-
pão e em outros países". 25

A distinção entre as atividades próprias e privativas das institui-


ções financeiras não é, contudo, tema recente, conforme lembra Pau-
lo Brossard, em seu parecer já citado:
11
"Muito antes do Banco Central editar suas Normas" e muito antes
dele existir, Carvalho de Mendonça dava notícia dessa prática com
que os bancos procuram atrair clientela, bem servindo-a, prática que
o insigne comercialista encontra no velho Regulamento 737, de 1850,
as operações bancárias acessórias, ou subsidiárias complementares
da atividade econômica própria dos bancos, não revestem o caráter de
operações qualificativas do tráfico bancário, visto não se prenderem
às funções de intromissão entre os que têm e os que precisam de capi-
tais. (. . .) Quem se dedicasse ao exercício exclusivo dessas operações
não teria a qualidade jurídica de banqueiro, por que não serviria de
intermediário de crédito".

Saliente-se o que, a propósito, escreveu Pedro Paulo Cristófaro 26 :

"No conceito de "serviços bancários, financeiros, creditícios e


securitários" não se incluem as atividades ligadas ao investi-
mento. Serviço bancário ou financeiro podem ser conta-corrente, o
empréstimo, a cobrança de títulos. Jamais, a meu ver, o investimento.
Investimento e poupança não são serviços nem produtos, nem no
sentido em que seus termos são entendidos pelo homem comum e
nem com o significado que lhes empresta a Lei 8.078!90. O cor-
rentista do banco, o tomador de empréstimo, o segurado não são inves-
tidores e, por isso, certamente, foram incluídos pelo Código de Defesa
do Consumidor dentro da categoria por ele tutelada, a dos consumido-
res". (Grifou-se)

Na atividade desenvolvida pelas instituições financeiras distin-


guem-se, pois, duas categorias distintas: uma, a principal, consistente
em operações; outra, secundária, caracterizada pela prestação de de-
terminados serviços, que poderiam, inclusive, ser fornecidos por enti-
dades não bancárias.

25 MAÍLSON DA NÓBREGA E GUSTAVO LOYOLA, ob. cit., p. 265.


26 PEDRO PAULO CRISTÓFARO, ob. cit., p. 88-91.

564
As operações das instituições financeiras tem por objeto o dinhei-
ro, ou créditos, que se traduzem em dinheiro, ou mesmo títulos ou
quotas de fundos, que também sempre se traduzem em dinheiro; já os
serviços, ao contrário, atendem a interesses acessórios dos clientes,
como cofres de aluguel, cobrança de títulos, etc. O CDC, no seu art.
2°, define o consumidor como o destinatário final; ou seja, o produto
ou serviço se extingue, necessariamente, quando entregue ou presta-
do ao consumidor. Assim, conforme, já apontado doutrinariamente, o
dinheiro jamais será um bem final, pois não passa, além de reserva de
valor, de meio de troca de outros bens; daí decorre que não pode ser
o dinheiro, por definição, objeto da relação de consumo 27 .
Face ao exposto, pode-se concluir, sem qualquer dúvida, que há
entre consumidores e investidores uma diferença ontológica, não sen-
do juridicamente possível estender a estes últimos as regras contidas
no CDC.
Assim, por definição, não se pode aplicar aos quotistas de fundos,
que são investidores, as normas do CDC, que se aplicam, única e
exclusivamente, às relações de consumo.

C) O FATO DO PRÍNCIPE E A "MARCAÇÃO A MERCADO"

O fato do príncipe, instituto oriundo do direito administrativo,


constitui-se, originalmente, em qualquer ato ou medida, por parte da
Administração Pública, que venha a repercutir nos contratos adminis-
trativos, tornando-os mais onerosos para os contratantes.
Em tais casos, a solução oferecida pelo direito administrativo seria
a modificação das cláusulas contratuais, de forma a se restabelecer o
equilíbrio econômico-financeiro na relação da Administração com os
contratantes, ou mesmo, não sendo esta possível, a efetiva indeniza-
ção em favor daquele que contratou com o Poder Público.
Nas palavras de Helly Lopes Meirelles:

"Fato do príncipe é toda determinação estatal positiva ou negativa,


geral, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execu-
ção do contrato administrativo. Essa oneração constituindo álea ad-
ministrativa extraordinária e extracontratual, desde que intolerável e

27 GALENO LACERDA, Direito Comercial. Obrigações Mercantis, vol. VIII, Rio de


Janeiro, Forense, 2002, pg. 14.

565
impeditiva da execução do ajuste, obriga o Poder Público contratante
a compensar integralmente os prejuízos suportados pela outra parte, a
fim de possibilitar o prosseguimento da execução e, se esta for impos-
sível, rende ensejo à rescisão do contrato, com as indenizações cabí-
veis."28

Nosso ordenamento jurídico prevê, expressamente, a hipótese de


alteração contratuaC no campo do direito administrativo, em razão de
fato do príncipe, conforme se verifica do art. 65, § 5° da Lei n°
8.666/93, que rege as licitações da administração pública:

"Art. 65- Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
(. ..)
§ 5° - Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou
extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quan-
do ocorridas após a data da apresentação da proposta de comprova-
da repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão des-
tes para mais ou para menos, conforme o caso." (Grifou-se)

É o que Caio Tácito denomina superveniência de novo quadro


legal, cujo efeito opera uma modificação dos motivos determinantes do
contrato. 29
Conforme vem sendo admitido doutrinariamente, a teoria do fato
do príncipe é igualmente aplicável aos contratos de natureza privada,
da mesma forma que ocorre, pacificamente, no campo do direito ad-
ministrativo.
Nesse sentido, enfatiza Caio Tácito que:

"Nem cabe invocar, na matéria, o princípio da imutabilidade dos


contratos (pacta sunt servanda) ou parêmia de que o contrato é lei
entre as partes (lex inter partes).
Mesmo no campo do direito privado, a noção não conserva mais
o caráter absoluto, penetrando a lei no domínio da vontade,
para, sob certa forma, patrocinar o dirigismo contratual, em res-

28 HELLY LOPES MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Ma-


lheiros, 1997, pg. 222.
29 CAIO TÁCITO. "Fato Príncipe e Contratos Administrativos" in Temas de Direito
Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 1389.

566
guardo de interesse público ou na garantia da igualdade entre as
partes". 30 (Grifou-se)

No campo do direito privado, nosso ordenamento jurídico há mui-


to consagra a inimputabilidade na inexecução dos contratos, em razão
dos pressupostos do caso fortuito e da força maior, conforme dispõe o
art. 393 do Código Civil de 2002, repetindo quase idêntico preceito
do art. 1.058 do Código Civil de 1916:

"Art. 393 - O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de


caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles
responsabilizado.
Parágrafo Único - O caso fortuito ou de força maior verifica-se no
fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."

Assim, coube à doutrina e à jurisprudência identificar situações


em que, de maneira geral, se verifica a ocorrência de caso fortuito e de
força maior. É pacífico que uma dessas hipóteses é a do fato do prín-
cipe.
Nesse sentido, verifique-se a lição de Caio Mario da Silva Pereira,
para quem:

"Consagrado em nosso Direito o princípio da exoneração pela inimpu-


tabilidade enuncia-se em tese a irresponsabilidade do devedor pelos
prejuízos, quando resultam de caso fortuito ou de força maior. (. . .)
Costuma-se dizer que caso fortuito é o acontecimento natural, ou
evento derivado da força da natureza, ou o fato das coisas, como o
raio do céu, a inundação, o terremoto. E, mais particularmente,
conceitua-se a força maior como o damnum' que é originado do
fato de outrem, como a invasão de território, a guerra, a revolução,
o ato emanado da autoridade (factum principis), a desapropria-
ção, o furto, etc". 31 (Grifou-seJ

O Professor Silvio Rodrigues, comentando o Código Civil de


2002, da mesma forma, localiza o fato do príncipe nas hipóteses de
exoneração da responsabilidade, nos seguintes termos:

30 CAIO TÁCITO. Ob. cit. p. 1388.


31 CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. v. II. Rio de
Janeiro: Forense, 1997. p. 244.

567
"Se o fato é externo, assim as ordens da autoridade (fait du prin-
ce), os fenômenos naturais (raios terremotos, inundações etc.), as
ocorrências políticas (guerras, revoluções etc.) então se trata de força
maior." (Grifou-se)

E conclui:

"O ato da autoridade, fait du prince, é irresistível, pois cumprir a


obrigação que o desobedece representa procedimento ilegal". 32

Tal entendimento é, da mesma forma, pacífico na jurisprudência,


em especial na aplicação do princípio em relação às instituições finan-
ceiras, as quais são submetidas à rígida regulamentação do Banco Cen-
tral. Nesse sentido, as seguintes decisões do Superior Tribunal de
Justiça aplicadas aos bancos:

"CRUZADOS NOVOS BLOQUEADOS. AÇÃO DE INDENIZA-


ÇÃO POR OMISSÃO CULPOSA DO BANCO DEPOSITÁRIO.
RUPTURA DO CONTRATO. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABI-
LIDADE DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ART. 1.058 DO CÓ-
DIGO CIVIL.
- Inexistente a responsabilidade da instituição financeira por omissão
culposa, reconhecido que se operou a ruptura "ex vi legis" do con-
trato de depósito, verdadeiro fato do príncipe, equiparado à for-
ça maior prevista no art. 1058 do Código Civil. Precedentes. Recurso
especial conhecido e provido.
(Acórdão da 4a Turma do STJ- Resp no 253727/SP- Relator Min.
Barros Monteiro- publicado no D.J.U. de 18.12.2000, pg. 204-
Grifou-se)
"PROCESSO CIVIL. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. CADERNE-
TAS DE POUPANÇA.PLANOS ECONÔMICOS. DIFERENÇAS
DE CORREÇÃO MONETÁRIA.
As diferenças de correção monetária não creditadas em cadernetas de
poupança podem ser diretamente reclamadas das instituições finan-
ceiras, se o prejuízo resultou do "Plano Verão", na medida em que este
- só afetando o indexador - manteve o contrato sem outras altera-
ções.

32 SILVIO RODRIGUES. Direito Civil- Parte Geral das Obrigações, vol. II. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 239.

568
lá o "Plano Collor", tornando indisponíveis os ativos financeiros, e
transferindo-os para o Banco Central do Brasil, atingiu a integridade
dos depósitos; deles despojados por "fato do príncipe", as institui-
ções financeiras não respondem pelas obrigações contratuais
durante o período em que deixaram de administrar esses depósi-
tos".
(Acórdão da 3a Turma do STJ- EEERSP 158837 I SP- Relator
Min. Ary Pargendler- publicado no D.J.U. de 10.04.2000, pg. 83
- Grifou-se)

Diante do exposto, pode-se afirmar que o fato do príncipe, carac-


terizado pela modificação do quadro legal, ao repercutir na execução
dos contratos de natureza privada, autoriza a adequação das condições
do negócio jurídico às novas regras, sob pena de uma das partes incor-
rer em ato ilegal.
No presente caso, é inequívoco que a Instrução CVM n° 365, de
31/05/02, ao antecipar o prazo de adaptação às regras de "marcação a
mercado" dos títulos integrantes das carteiras dos fundos, de 30 de se-
tembro para 31 de maio, modificou o quadro legal, obrigando os admi-
nistradores dos fundos a se adaptarem imediatamente às novas regras.
A adaptação imediata às regras de "marcação" dos títulos, sem
dúvida, constituiu medida que os fundos foram obrigados a adotar
dentro do prazo fixado na Instrução 365/02, sob pena de sofrerem
sanções administrativas aplicadas pela CVM, no exercício do seu po-
der de polícia, nos termos do art. 11 da Lei 6385/76.
A própria CVM reconheceu que a aplicação dos novos critérios
poderia ocasionar "ajustes", com "impacto" no valor das quotas, ou
seja, que elas poderiam apresentar variação no seu valor, o que, con-
forme é notório, ocorreu; em grande número de casos, as quotas tive-
ram seu valor diminuído, causando clamor público e levando a CVM a
baixar a Instrução 375, de 14/08/02, antes analisada, com o propósito
de reduzir o impacto negativo causado pela antecipação da " marcação
a mercado".
Nesse sentido, o Ofício Circular CVM/SIN 004/02, de
18//07/02, dispôs expressamente que:

"Referimo-nos a Instrução CVM no 365!02, que dispõe sobre critérios


para registro e avaliação contábil de títulos e valores mobiliários e de
instrumentos financeiros derivativos pelos fundos de investimento fi-
nanceiro, pelos fundos de aplicação em quotas de fundos de investi-
mento e pelos fundos de investimento no exterior.

569
A propósito, determinamos que sejam remetidas correspondências, até
30!08!2002, para todos os quotistas de fundos que sofreram ajustes
decorrentes da aplicação dos critérios estabelecidos na referida
Instrução, esclarecendo qual foi o montante dos ajustes, os efeitos no
resultado do fundo e o impacto no valor de suas quotas" (Grifou-
se).

Não há dúvida, portanto, que, se algum dano sofreram os quotistas


que optaram pelo resgate imediato de suas quotas, tal decorreu de
Fato do Príncipe, ou seja, das modificações do quadro legal impostas
pelas autoridades reguladoras do mercado.

D) RESPOSTA AO QUESITO

Face ao que foi até aqui exposto, assim respondemos ao quesito


formulado pelas Consulentes:
Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, que disciplina as
relações de consumo, ao investidor do mercado de valores mobiliários.
O quotista de fundo de investimento é investidor, não podendo
ser juridicamente equiparado ao consumidor.
Conseqüentemente, não pode ser invocado o Código de Defesa
do Consumidor às relações mantidas entre o quotista do fundo e a
instituição financeira que o administra.
Se alguma eventual perda sofreram determinados quotistas que
imediatamente após a edição da Instrução CVM 365, de 29/05/02,
resgataram as suas quotas, foi ela decorrente de Fato do Príncipe,
caracterizado, no caso, pelo ato da autoridade reguladora do mercado,
de cujo cumprimento não podiam os administradores dos fundos se
furtarem, de antecipar o enquadramento às normas sobre "marcação a
mercado" das quotas.
Entendemos, pois, que as entidades administradoras dos fundos
não podem ser responsabilizadas pelas alegadas perdas sofridas pelos
investidores em decorrência das mudanças nas regras de contabiliza-
ção dos títulos integrantes das carteiras dos fundos.
Foi o nosso Parecer, em outubro de 2002.

570
SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO-
SPE. IMPOSSIBILIDADE DE FALÊNCIA. ABUSO
DE DIREITO POR PARTE DOS DEBENTURISTAS

1-ACONSULTA

A COMPANHIA ALFA DE RECEBÍVEIS S.A., doravante referi-


da como "Consulente", solicita-nos um Parecer Jurídico, sobre ques-
tões relativas ao pedido de falência formulado contra ela.
A Consulente é uma Sociedade de Propósito Específico - SPE
constituída em 1996 com a finalidade exclusiva de emitir debêntures
para captação de recursos necessários ao financiamento das obras de
instalação e aquisição de assinaturas de linhas telefônicas, no âmbito
dos planos de expansão de empresas de telefonia então controladas
pela TELEBRÁS.
A companhia foi constituída e registrada em conformidade com a
legislação e com a devida aprovação da Comissão de Valores Mobiliá-
rios e as debêntures foram emitidas com dupla garantia: a primeira,
representada pela caução dos créditos decorrentes da venda das assi-
naturas de linhas telefônicas pelas empresas do antigo sistema tele-
brás; a segunda, representada pelas ações emitidas pelas concessioná-
rias, além das próprias linhas telefônicas.
Assim, a Consulente emitiu as referidas debêntures com garantias
reais, tendo sido as mesmas subscritas pelos seguintes investidores
institucionais: os Fundos de Pensão D, E, F, G e H.
Conforme nos foi narrado pela Consulente, parte das debêntures
não foi paga pela companhia, motivo pelo qual os debenturistas resol-
veram, em assembléia, renunciar às garantias reais com o objetivo de
propor requerimento de falência contra a companhia emissora.
Tal requerimento de falência foi proposto pela GAMA DTVM, na
qualidade de Agente Fiduciário dos debenturistas.
Em anexo à consulta, recebemos cópias dos seguintes documen-
tos: requerimento de falência; contestação da Consulente; ata da as-
sembléia de debenturistas da Consulente, realizada em 20 de setem-

571
bro de 2001; e Estatutos dos Fundos de Pensão D, E, F, G e H,
debenturistas presentes na referida assembléia.

11- OS QUESITOS E AS RESPOSTAS

a. A SPE NÃO PODE TER SUA FALÊNCIA DECRETADA

"Sendo a COMPANHIA ALFA uma Sociedade de Propósito


Específico - SPE, ela pode ser considerada uma sociedade mer-
cantil para os fins previstos no Decreto-lei n° 7.661!45 (Lei da
Falências)? Pode uma SPE ter sua falência decretada?"
As sociedades de propósito específico, inspiradas no modelo nor-
te-americano da SPC- Special Purpose Company, não estão defini-
das em nosso sistema legal. Contudo, pode-se conceituá-las a partir da
redação do art. 1363 do Código Civil de 1916 1 segundo o qual "cele-
bram contrato de sociedade as pessoas que, mutuamente, se obrigam
a conjugar esforços ou recursos, para lograr fins comuns", bastando
que se acrescente "tendo um único objetivo de constituição".
A utilização deste tipo de sociedade no Brasil passou a se difundir
com o desenvolvimento das privatizações promovidas em meados da
década de 90.
O Governo, ao conceber os processos de desestatização das socie-
dades das quais detinha o controle, em alguns casos, determinava que
fossem constituídas "sociedades de propósito específico", as quais de-
veriam ser organizadas sob a forma de sociedades anônimas, tendo
como acionistas pessoas que tivessem o objetivo de participar do pro-
cesso de privatização.
Estabelecia o Governo, ainda, que tais sociedades de propósito
específico tivessem como única finalidade e exclusivo objetivo deter
o capital ordinário da companhia a ser objeto de alienação no leilão de
privatização.
A SPE pode ser comparada a umajoint-venture para a qual duas ou
mais sociedades vertem seus esforços econômicos, tecnológicos, de
pessoal, etc., com a finalidade de criar uma pessoa jurídica cujo único

Nota do Autor: Atualmente esse dispositivo encontra-se previsto no art. 981 do


Código Civil de 2002 que entrou em vigor em janeiro de 2003 com a seguinte redação:
Caput "Celebram contrato a de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a
contribuir, com bens ou serviçoes, para o exercício de atividade econômica e a partilha
entre si dos resultados." Parágrafo único: "A atividade pode restringir-se à realização
de um ou mais negócios determinados."

572
objetivo é realizar um empreendimento ou negócio específico 2 . Sua
existência fica expressamente condicionada à realização do seu propó-
sito específico, tendo, normalmente, uma duração mais curta do que
as sociedades mercantis.
Nos Estados Unidos as SPC não se revestem necessariamente de
uma forma societária, podendo se constituir como partnerships, sem
personalidade jurídica3 . No Direito Francês a Groupement d'intérêt
économique- GIE é dotada de personalidade jurídica, mas não é uma
sociedade, e sim um instrumento de colaboração entre empresas já
existentes, podendo inclusive ser constituída sem capital próprio 4 •
No Brasil, as sociedades de propósito específico, embora normal-
mente revestidas da forma de sociedade anônima, não são considera-
das propriamente sociedades 5, pois essas SPEs não têm interesse pró-
prio, normalmente possuem um capital social simbólico e não desen-
volvem uma vida social própria, mas tão somente o projeto para o qual
foram criadas.
Com efeito, as SPEs são criadas única e exclusivamente para pres-
tar um serviço ou desenvolver um projeto específico; atingido esse
objetivo, o seu destino é a dissolução.
A doutrina enfatiza que a SPE não é um novo modelo de socieda-
de mercantil, mas sim uma forma de joint venture :

A primeira consideração importante a ser ventilada acerca desta inte-


ressante forma de joint venture gira em torno da sua natureza jurídi-
ca. Trata-se a SPE de um novo modelo de sociedade mercantil? A
resposta que se nos afigura mais acertada é não, porquanto, para
que possa existir, exige-se da SPE, enquanto corporate joint venture
- ou seja, joint venture constituída separadamente do corpo das suas
controladoras -, que se revista de uma das formas societárias previs-
tas no ordenamento jurídico pátrio. Destarte, à SPE, em si, não se
pode conferir a qualidade de sociedade mercantil." 6 (grifamos]

2 LEORNARDO GUIMARÃES, "A SPE- Sociedade de Propósito Específico",


Revista de Direito Mercantil, n° 125, jan./mar. de 2002. p. 137.
3 LEORNARDO GUIMARÃES, art. citado, p.130.
4 MAURICE COZIAN e ALAIN VIANDIER, Droit de Société, Paris: Editions
Litec, 9a ed., 1996, p. 542.
s JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA, Direito Societário, Rio de Janeiro: Reno-
var, 7" ed., 2001, p. 497.
6 LEONARDO GUIMARÃES, art.cit., p. 134.

573
A SPE, portanto, utiliza-se de uma estrutura societária existente,
embora ela não seja propriamente uma empresa comercial.
No caso ora em análise, a Consulente foi criada como uma socie-
dade anônima de propósito específico com o objetivo de emitir de-
bêntures que financiassem as obras de instalação e aquisição de assina-
turas de linhas telefônicas, no âmbito dos planos de expansão de em-
presas de telefonia então controladas pela TELEBRÁS.
A escolha do tipo societário - sociedade anônima - deveu-se
unicamente ao fato de ter sido a Consulente criada para realizar uma
operação de securitização, regulada pela Resolução do Conselho Mo-
netário Nacional n° 2.026/93 (atual Resolução n° 2.686/2000 7), que
estabelece no seu artigo 1° que esse tipo de operação somente pode
ser realizada por sociedade anônima de objeto exclusivo.
As referidas debêntures foram emitidas com garantias reais e em
conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis.
Desta forma, a Consulente já cumpriu a sua função social e não
pratica nenhuma outra atividade, até porque não poderia, visto que
foi constituída para servir a um propósito único e específico - a
emissão de debêntures.
Assim, a Consulente, por não constituir uma sociedade comercial,
mas sim uma SPE, não poderá ter sua falência decretada.
Com efeito, o artigo 1° da Lei de Falências determina que : "con-
sidera-se falido o comerciante que, sem relevante razão de direito,
não paga no vencimento obrigação líquida, constante do título que
legitime a ação executiva".
Ao comentar este dispositivo, Trajano de Miranda Valverde 8
acentua que:

"o decreto-lei manteve e acentuou a tradição do direito brasileiro,


filiado ao sistema latino, no sentido de que o instituto da falência é
peculiar à classe dos comerciantes. Falido, só o comerciante pode
ser (. ..) ". (grifamos)

O artigo 4° do Código Comercial, por sua vez, estabelece que


comerciante é a pessoa, natural ou jurídica, que faz da mercancia
profissão habitual.

7 Nota do Autor: O Art. l 0 e o inciso li do art. 2° da Resolução 2.686/00 foram


modificados pela Resolução 2.836 de 30 de maio de 2001.
s TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE. Comentários à Lei de Falências. Rio de
Janeiro: Forense, 1948. Vol. l, p. 22.

574
As atividades realizadas pelos comerciantes denominam-se atos
de comércio. O comércio, de acordo com o conceito econômico,
constitui atividade de intermediação, de circulação de riqueza entre
produtores e consumidores. Já a noção jurídica de comércio pressu-
põe, além da mediação, a habitualidade e o intuito lucrativo.
Para o Código Civil de 2002, "considera-se empresário quem exer-
ce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou de serviços"(art. 966).
Desta forma, comerciante ou empresário comercial é a pessoa
física ou jurídica que, com habitualidade e intuito lucrativo, desem-
penha atividade organizada, promovendo a circulação de bens ou a
realização de serviços.
Assim, sendo a SPE uma sociedade criada para executar um em-
preendimento ou negócio específico, não possuindo portanto uma
vida social própria, ela não se enquadra na figura do comerciante.
Embora a Consulente se revista de uma forma societária existente
- a sociedade anônima-, ela foi criada como uma SPE e, portanto,
não pratica atos de comércio com habitualidade e intuito lucrativo.
Sua criação como sociedade anônima deveu-se única e exclusiva-
mente à exigência contida na regulamentação do Conselho Monetário
Nacional de que somente sociedade anônima de objeto exclusivo po-
deria realizar operação de securitização.
Daí decorre que não se aplica à Consulente o disposto no § 1° do
artigo 2° da Lei das S.A.
A Lei de Falências é clara ao estabelecer, no seu artigo 1°, que a
falência só pode alcançar os comerciantes.
Ora, como a Consulente não pode ser considerada uma sociedade
mercantil, então não pode jamais vir a ter sua falência decretada.

b. REQUERIMENTO DE FALÊNCIA POR PARTE DO


AGENTE FIDUCIÁRIO

"Pode o Agente Fiduciário requerer a falência de companhia


emissora de debêntures com garantias reais?"
Inicialmente convém definir a função e os deveres do Agente Fi-
duciário dos debenturistas.
Em se tratando de emissão de debêntures no mercado, ou seja,
dirigida à generalidade do público investidor, deve obrigatoriamente
constar da escritura de emissão do título o nome de pessoa, física ou
jurídica, que irá representar a comunhão dos debenturistas junto à
companhia emissora. Caberá a esta pessoa, precipuamente, defender

575
os interesses e direitos da coletividade de debenturistas com vistas a
garantir o cumprimento dos termos pactuados na escritura de emissão
das debêntures.
Ao criar a figura do agente fiduciário, a Lei n° 6.404/76- Lei das
S.A., procurou se inspirar na figura do "Trustee" do direito anglo-sa-
xão, sem contudo repetir todas as características determinantes do
trust, em virtude das dificuldades de sua integral aplicação a um siste-
ma jurídico de origem romano-germânico, como o nosso.
Em sentido estrito, "trustee" é a pessoa que detêm um título de
propriedade administrando-o em benefício de outrem. Em sentido
lato, "trustee", pode ser entendido como uma pessoa que se encontra
mantendo uma relação de confiança, fiducia, com outra pessoa, como
um agente, advogado, etc.
Como ressalta a doutrina "o trust, em seu sentido jurídico próprio,
pressupõe a transferência fiduciária da coisa, ou do direito, para as
mãos do trustee. Esse a recebe com a obrigação de administrá-la em
benefício ou para o uso e gozo de um terceiro, chamado cestui que
trust" 9 .
Depreende-se daí a primeira grande diferença entre a figura do
trustee do direito americano e a figura do agente fiduciário do direito
pátrio. Naquele, ocorre a transferência da propriedade do título, en-
quanto neste transfere-se apenas a administração, a gestão, permane-
cendo nas mãos do debenturista a titularidade do direito de crédito
contra a companhia.
Outra distinção que aqui merece relevo reside precisamente no
fato de que o trustee atua mediante um contrato firmado com a com-
panhia (deed), contrapondo-se entre a emissora e os debenturistas,
assumindo a posição de parte no negócio de emissão, que adquire
características de ato bilateral.
No direito pátrio, o agente fiduciário não tem poderes para agir
em nome próprio, limitando-se a atuar como representante da comu-
nhão dos debenturistas.
A Lei das S.A. regula o exercício da função do agente fiduciário
nos artigos 66 a 70, e a Comissão de Valores Mobiliários, regulamen-
tando os dispositivos da referida Lei, com base na competência que
lhe atribui a Lei n° 6.385/76, disciplinou o exercício da função através
da Instrução n° 28, de 23 de novembro de 1983.

9 MARIO ENGLER PINTO JÚNIOR, "Debêntures. Direitos de debenturistas.


Comunhão e assembléia. Agente fiduciário", Revista de Direito Mercantil, n° 48,
out./dez. 1982. págs: 27.

576
O artigo 68 da Lei das S .A. estabelece os deveres e atribuições que
o agente fiduciário, na posição de representante legal dos debenturis-
tas, deve desempenhar para que o negócio realizado não beneficie
apenas a companhia emissora, mas também às pessoas que investiram
capital na companhia na certeza de que teriam um retorno satisfatório
no fim de determinado período de tempo.
Entre as funções do Agente Fiduciário previstas no artigo 68 da
Lei das S.A. estão incluídas o dever de executar as garantias reais,
receber o produto da cobrança e aplicá-lo no pagamento, integral ou
proporcional, dos debenturistas e, na hipótese de não existirem garan-
tias reais, requerer a falência da companhia.
Tratou a Lei n° 6.404/76, no artigo acima citado, assim como a
instrução CVM, n° 28, nos artigos 12 e 13, de arrolar os deveres
básicos do agente fiduciário com vistas a garantir aos debenturistas
uma representatividade eficiente junto à companhia emissora no
transcorrer do período do negócio jurídico pactuado.
Ora, no presente caso, as debêntures emitidas pela Consulente
possuíam garantias reais, consubstanciadas primeiro na caução dos
créditos decorrentes da venda das assinaturas de linhas telefônicas
pelas empresas do antigo sistema Telebrás e, em segundo lugar, repre-
sentada pelas ações emitidas pelas concessionárias, além das próprias
linhas telefônicas.
No momento em que ocorreu o inadimplemento da companhia,
cabia ao Agente Fiduciário inicialmente comunicar a inadimplência
aos debenturistas.
Nas hipóteses em que as debêntures inadimplidas possuem garan-
tias reais, é dever legal do Agente Fiduciário executar as garantias,
promovendo as ações cabíveis para, posteriormente, utilizar o produto
no pagamento proporcional ou integral da dívida.
O §3°, "c", do artigo 68 da Lei das S.A., assim como o artigo 13,
inciso 111 da Instrução CVM n° 28, determinam claramente que com-
pete ao Agente Fiduciário requerer a falência da emissora das debên-
tures, apenas se não existirem garantias reais.
Ora, no presente caso, o Agente Fiduciário agiu de forma total-
mente contrária ao que determinam a lei e as normas da CVM aplicá-
veis a matéria, em flagrante abuso de direito.
Com efeito, não houve qualquer intenção ou tentativa por parte
do Agente Fiduciário de executar as garantias reais, conforme deter-
mina a Lei das S.A.
Ademais, não há registro em ata de assembléia dos debenturistas
que o Agente Fiduciário tenha proposto executar as garantias.

577
Na assembléia dos debenturistas, realizada em 20/09/01, não há
uma única referência à execução das garantias reais, o que seria perfei-
tamente factível, ou mesmo, uma justificativa para não proceder à
referida execução.
Nesta assembléia, os debenturistas presentes decidiram simples-
mente requerer a falência da Consulente e para tal, acatando uma
sugestão do representante de uma das fundações, optaram por renun-
ciar às garantias reais.
Há aqui um inequívoco abuso de direito, pois os debenturistas se
utilizaram da renúncia às garantias apenas para que o Agente Fiduciá-
rio pudesse requerer a falência da companhia emissora, com visível
intuito de prejudicá-la.
A teoria do abuso de direito foi reconhecida, ainda que indireta-
mente, no Código Civil de 1916, que prescreve, em seu artigo 160,
que:

"Art. 160. Não constituem atos ilícitos:


I - Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido. (grifamos)
( ...)"

No Código Civil de 2002, esta teoria foi acolhida expressamente


em seu artigo 187, que dispõe:

"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim eco-
nômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

O abuso de direito consiste, assim, no exercício irregular ou anor-


mal de um direito, de modo a prejudicar alguém 10 .
Conforme leciona Caio Mário 11 :

"Não se pode, na atualidade, admitir que o indivíduo conduza a


utilização de seu direito até o ponto de transformá-la em causa de
prejuízo alheio ( .. .). Abusa, pois, de seu direito o titular que dele

10 CLOVIS BEVILAQUA. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Ed. Rio,
1980, p. 276.
11 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1971. Vol. l, p. 399-400.

578
se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção
de fazer mal, e sem proveito próprio. O fundamento ético da teoria
pode, pois, assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva
de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem" (grifamos).

Ou seja, o indivíduo titular de um direito deve observar limites


éticos e morais quando de seu exercício, não podendo fazê-lo abusiva-
mente.
Os debenturistas presentes na assembléia de 20 de setembro de
2001 decidiram renunciar às garantias reais com o intuito exclusivo de
requerer a falência da companhia emissora, o que caracteriza exercício
abusivo de direito. Ressalta-se que o patrimônio da Consulente é de
R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, portanto, a sua falência em nada apro-
veitará aos debenturistas.
Assim, entendemos que o Agente Fiduciário não poderia ter re-
querido diretamente a falência da Consulente, deixando de executar
as garantias reais, pois a Lei das S.A. e a Instrução CVM n° 28 obrigam
o Agente Fiduciário a primeiro executar as garantias, para depois, se
necessário, requerer a falência. Trata-se de um dever legal e não de
mera faculdade do Agente Fiduciário.
Por fim, podemos concluir que a renúncia das garantias reais foi
decidida pelos representantes dos debenturistas em flagrante abuso
de direito, com o intuito único de prejudicar a companhia.
Foi o nosso parecer, em outubro de 2002.

579
DIREITO DE DEFESA EM PROCESSO
ADMINISTRATIVO SANCIONADOR.
DIREITO DO INDICIADO DE SER
INFORMADO DE TODOS OS
TERMOS DA ACUSAÇÃO

PARECER

1-ACONSULTA

A Consulente narra que:

- "Na 17a Sessão do Conselh9 de Recursos do Sistema Nacional de


Seguros Privados, de Previdência Privada Aberta e de Capitalização
- CRSNSP -, realizada em. 31 de janeiro de 2001, foram aprova-
dos, por unanimidade, quatro Enunciados do referido Conselho.
- Na 24a Sessão do CRSNSP, realizada em 30 de agosto de 2001,
também por unanimidade, foi aprovado o Enunciado n° 5.
- Tais enunciados, referentes dos processos administrativos sanciona-
dores dos quais cabe recurso ao CRSNSP, à semelhança das súmulas
dos tribunais, visam a consolidar a jurisprudência administrativa do
referido Conselho, para que se alcance uniformidade no julgamento
de processos administrativos versando sobre a mesma matéria.
- O Enunciado n° 4 estabelece literalmente que: "A majoração do
valor básico da multa por reincidência depende de fundamentação em
data anterior à intimação p~ra apresentação de defesa inicial".
- Objetivou-se, com o Enunciado n° 4, permitir ao acusado, já na fase
de primeira instância do procedimento administrativo, defender-se
da acusação de reincidência, tendo em vista o atendimento pleno ao
postulado do devido processo legal; até então, entendia-se, no âmbito
da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP -, órgão fiscali-
zador do mercado de seguros, capitalização e previdência -que o
acusado, em processo administrativo, somente poderia defender-se da

581
acusação de reincidência, após a decisão punitiva de primeira instân-
cia, quando da interposição de recurso ao CRSNSP.
-A imposição de sanção pecuniária sem que o acusado pudesse defen-
der-se da acusação de reincidência, ademais, agravaria substancial-
mente a sua situação nos processos administrativos instaurados pela
SUSEP, uma vez que: a) a reincidência acarretava a possibilidade de
ser multiplicada por oito vezes a multa imposta, nos termos do art. 34
da Resolução CNSP n° 14!95; h) o recurso somente é admitido se o
administrado depositar o valor da multa majorada.
- Em alguns processos administrativos cujos recursos ainda estão pen-
dentes de decisão junto ao CRSNSPC, a decisão de primeira instân-
cia, tendo verificado a reincidência do infrator, majorou a sanção em
oito vezes o valor da multa imposta, sem que tal circunstância tivesse
sido mencionada na acusação.
- Atualmente, nos casos em que o infrator possua antecedentes, a san-
ção será acrescida do triplo do seu valor ou do triplo do seu prazo, nos
termos do art. 51, § 2°, da Resolução CNSP n. 0 60!200 1, a qual
revogou expressamente a Resolução CNSP n° 14/95."

Tendo em vista os fatos acima expostos, apresenta-nos a Consu-


lente os seguintes quesitos:

l. O procedimento adotado antes de ser aprovado o Enunciado n° 4,


que permitia ao administrado defender-se da acusação de reincidên-
cia somente na fase recursal, atendia plenamente ao princípio do
devido processo legal?
2. São legítimas as razões que levaram o CRSNSP a aprovar o Enun-
ciado n° 4, tendo em vista o princípio do devido processo legal?
3. Existe inconciliável antagonismo entre o Enunciado n° 4 e as nor-
mas que disciplinam o processo administrativo da SUSEP?

11 -O PARECER

A) O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E O


DIREITO DE DEFESA

A questão a ser enfrentada no Parecer que nos é solicitado refere-


se, basicamente, à aplicação aos processos sancionadores da SUSEP
do princípio do devido processo legat do qual decorre a necessidade
de ser assegurado o mais amplo direito de defesa ao acusado.

582
Trata-se de matéria que vem sendo objeto de notável desenvolvi-
mento doutrinário e legislativo, não somente no Direito Comparado,
mas também em nosso sistema legal.
A responsabilidade dos administrados submetidos à fiscalização
estatal é apurada mediante a instauração e julgamento de um processo
administrativo sancionador (ou "disciplinar"); trata-se de uma das
modalidades de processo administrativo, mediante o qual a autorida-
de administrativa julga e eventualmente aplica sanções às pessoas sub-
metidas ao seu poder de polícia, uma vez constatado que elas pratica-
ram atos qualificados em norma legal ou regulamentar como ilícitos
administrativos.
Verifica-se uma crescente e fundada preocupação em assegurar-se
ao administrado o mais amplo direito de defesa em processos adminis-
trativos sancionadores, que se justifica pela dupla função desempe-
nhada pelo ente público, na medida em que ele atua como autor e
como juiz 1• Com efeito, em processos de tal natureza, diversamente
do que ocorre nos feitos judiciais, a administração acusa e julga; daí a
necessidade de rigor absoluto no atendimento, por parte da adminis-
tração pública, dos princípios que asseguram ao administrado o mais
amplo direito de defesa.
Assim, o entendimento dominante é de que o processo adminis-
trativo sancionador não é discricionário, mas vinculado ao devido pro-
cesso legal. Em conseqüência, a decisão administrativa deve ser sem-
pre motivada, com base na acusação, na defesa e nas provas, sob pena
de nulidade 2 .
Em nosso sistema de direito positivo, o amplo direito de defesa
constitui garantia constitucional. Com efeito, a Constituição Federal,
em seu art. 5°, inciso LIV, estabelece que ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. O mesmo artigo,
no inciso LV dispõe expressamente que: aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Assim, a garantia do devido processo legal, em sua acepção mais am-
pla, constitui um direito subjetivo público do acusado em processo
administrativo sancionador, decorrente de dispositivos constitucio-
nais expressos.

RENATO MARTINS PRATES. "O Processo Administrativo e a Defesa do Admi-


nistrado". Revista de Direito Público, n. 86, p. I3l.
2 HELY LOPES MEIRELLES. Estudos e Pareceres de Direito Público. v. IV. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 136.

583
A propósito, entende-se que a amplitude das normas constitucio-
nais é de tal magnitude que não podem elas sofrer qualquer tipo de
restrição, seja por parte da Lei, seja pela atuação da autoridade admi-
nistrativa3. Com efeito, conforme já comentado, a defesa pela metade
se presta mais como instrumento de acusação do que como esforços em
benefícios do acusado 4 . Assim, defesa restrita não constitui defesa.
Conforme enfatiza a doutrina 5 , a garantia do devido processo legal
no processo administrativo sancionador reveste-se de extremo rigor,
somente podendo ser cominadas penalidades mediante processo re-
gular em que seja facultado ao interessado a mais ampla defesa; a
cláusula do due process of law, nesse contexto, opera, conjuntamente
com o princípio da legalidade, como autêntica salvaguarda contra
apenações arbitrárias.
A propósito, ODETE MEDAUAR comenta que:

"A constituição Federal de 1988 alude, não a simples direito de defe-


sa, mas, sim, a ampla defesa. O preceito da ampla defesa reflete a
evolução que reforça o princípio e denota elaboração acurada para
melhor assegurar sua observância. Significa, então, que a possibilida-
de de rebater acusações, alegações, argumentos, interpretações de fa-
tos, interpretações jurídicas para evitar sanções ou prejuízos, não
pode ser restrita, no contexto em que se realiza. Daí a expressão
final do inc. LV, "com os meios e recursos a ela inerentes", englobados
na garantia, refletindo todos os seus desdobramentos, sem interpre-
tação restritiva "6 (grifamos)

Para garantir-se o amplo direito de defesa é fundamental que se


assegure ao administrado prerrogativas da mesma natureza do que
aquelas existentes no âmbito do processo penal.
Conforme amplamente reconhecido no Direito Comparado 7 e

3 PAULO BROSSARD. "Defesa do Consumidor. Atividade do Ministério Público.


Incursão em operações bancárias e quebra do sigilo. Impossibilidade de Interferência".
Revista dos Tribunais, vol. 718, pg. 93. Agosto de 1995.
4 JOSÉ ARMANDO DA COSTA. Teoria e Prática do Processo Administrativo
Disciplinar. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 70.
s CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO. O Devido Processo Legal e a
Razoabilidade das Leis na Nova Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 34 7.
6 ODETE MEDAUAR. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993. p. 112.
7 FRANCK MODERNE. Sanctions Administratives et Justice Constitucionnelle.
Paris: E. Econômica, 1993. p. 77.

584
mesmo entre nós 8, ainda que as sanções penais sejam diversas das
administrativas, como em ambas prevalece a atuação punitiva do Esta-
do, as causas de justificação e de isenção da pena consagradas no Di-
reito Penal devem ser reconhecidas na esfera do processo sanciona-
dor. Daí decorre uma nítida tendência de jurisdicionalização do pro-
cesso administrativo, particularmente quando de cunho sancionador,
com vistas a assegurar ao administrado o mais amplo direito de defesa.
A doutrina, a propósito, enfatiza que o processo sancionador está
jurisdicionalizado, isto é, o poder disciplinar deve exercer-se dentro
de determinadas formalidades, como o contraditório, o direito de
defesa, a motivação da pena, a competência do julgador, a proibição
de documentos secretos, vedando-se tudo que possa ferir as garantias
constitucionais 9 .
Tal tendência de jurisdicionalização do processo sancionador é
manifestamente verificada na Lei 9. 784, que, ao disciplinar o processo
administrativo, incorporou, em seu texto, diversas garantias típicas do
processo judicial, quais sejam:

l. o direito do administrado ter ciência da tramitação do processo em


que seja interessado, de ter vista dos autos, de obter cópias de docu-
mentos, de conhecer as decisões proferidas, de apresentar alegações
e documentos antes da decisão e de fazer-se assistir por advogado
(art. 3, I a III);
2. o direito de argüir a suspeição de autoridade ou servidor (art. 20);
3. a garantia de ser intimado dos atos do processo que resultem na
imposição de deveres, ônus, sanções ou restrições ao exercício de
direitos e atividades, bem como dos atos de outra natureza de seu
interesse (art. 28) ou da necessidade da prestação de informações ou
apresentação de provas (art. 39);
4. o direito de, na fase instrutória do processo e antes da tomada de
decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perí-
cias, bem como aduzir alegações, devendo os elementos probatórios
ser considerados na decisão (art. 38);
5. o direito de ter vista do processo e de obter certidões e cópias dos
documentos que o integram (art. 46);

8 RENÉ ARIEL DOTTI. "Algumas Reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios",
in Direito Penal dos Negócios. organizado por EDUARDO AUGUSTO MUYLAERT
ANTUNES. Associação dos Advogados de São Paulo, 1989.
9 ÁLVARO LAZZARINI. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 405.

585
6. a obrigatoriedade de a administração motivar, com a indicação dos
fatos e dos fundamentos jurídicos, os atos administrativos que impo-
nham ou agravem deveres, encargos ou sanções (art. 50, II).

B) O DIREITO DO ADMINISTRADO DE SER INFORMADO


DE TODOS OS TERMOS DA ACUSAÇÃO

A Constituição Federal estabelece expressamente, em seu art. 5°,


LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória.
Trata-se da incorporação, ao texto constitucional, do princípio
essencial da presunção de inocência, o qual é aplicável, em toda a sua
extensão, não só no processo penal, como também no processo admi-
nistrativo sancionador 10 .
A presunção de inocência representa o princípio do favor liberta-
tis; o caráter hipotético da sanção tem a dúvida como base do proces-
so punitivo, seja judicial, seja administrativo, a qual somente se desfaz
com a decisão final da autoridade; até que a ela se chegue, persiste a
dúvida e, com ela, a presunção de inocência.
Dada a prevalência do postulado constitucional da presunção de
inocência, vige plenamente, tanto no processo penal, como no proces-
so administrativo sancionador, o princípio essencial do contraditório,
o qual garante ao acusado o direito de contradizer todas as afirmações
contidas na peça acusatória. Insere-se na noção de contraditório o
exercício do direito de contradizer a posição contrária, a ela reagindo.
É evidente que somente pode existir contraditório se o acusado
tem plena ciência de todos os elementos da acusação; caso contrário,
ver-se-á na terrível situação vivida pelo personagem Josef K., no céle-
bre O Processo, de Franz Kafka, que luta para descobrir do que é
acusado, quem o acusa e com base em que norma jurídica.
O direito de ser informado da acusação, em toda a sua extensão,
constitui um direito essenciat integrando o direito de defesa; sem a
informação plena de todos os termos da acusação e das sanções cabí-
veis não há contraditório e, conseqüentemente, não pode ser exercido
o direito de defesa.
Com efeito, como o contraditório desdobra-se em dois momentos
- a informação e a possibilidade de reação - é inegável que o conhe-

10 NELSON EIZIRIK. Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro,


Ed. Renovar, 1998, 2 ed., p. 201.

586
cimento, necessariamente inserido no contraditório, constitui pressu-
posto para o exercício do direito de defesa 11 . Assim, a informação é
tida como condição essencial ao exercício da plena defesa. A propósi-
to, a jurisprudência de nossos tribunais, conforme se verifica no voto
do Min. Fernando Gonçalves (STJ, MS 5316/DF, de 14.10.98, 3 3
Seção) acentua que "ninguém pode defender-se eficazmente sem pleno
conhecimento das acusações que lhe são imputadas" 12 •
A doutrina é enfática ao proclamar que, no âmbito do processo
administrativo sancionador, nenhuma defesa pode resultar eficaz se o
acusado desconhece, antes de exercê-la, de que fatos é acusado e
quais as sanções que lhe podem ser aplicadas. Assim, o direito de ser
informado de todos os termos da acusação, além de impedir a situa-
ção, própria de processos inquisitoriais, no quais o acusado não sabe
do que está sendo acusado, nem a que penas está sujeito, constitui
um direito instrumental indispensável para o exercício do direito de
defesa 13 .
A informação completa sobre a sanção cabível, inclusive com rela-
ção a circunstâncias agravantes, que possam torná-la mais severa,
constitui elemento essencial, devendo o acusado dela tomar ciência
antes de apresentar sua defesa, sob pena de ficar prejudicado o con-
traditório.
A propósito, o administrativista espanhol JOSÉ GARBIERI LLO-
BREGAT comenta que:

"Ya hemos podido advertir, por una parte, que el cambio de calificción
jurídica em favor de uma infracción de mayor gravedad genera el
derecho deZ administrado a replicar la misma em términos de defensa,
y por outro lado, que la utilización por parte de la autoridad decisora
de circunstancias agravantes de la pena implica idêntica consecuen-
cia. La adopcion de oficio de un título de condena más grave o de
uma cirunstancia agravante sin someter ambas novedosas op-
ciones al presunto infractor vulnera su derecho fundamental a
ser informado de la acusación" 14 • (grifamos)

11 ODETE MEDAUAR, op. cit., p. 102.


12 FÁBIO MEDINA OSÓRIO. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 2000. p. 399.
13 JOSÉ GARBIERÍ LLOBREGAT. El Procedimiento administrativo sancionador.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 215 e ss.
14 Idem, p. 231.

587
Ou seja, a utilização, na decisão condenatória, de uma circunstân-
cia agravante, sem que o administrado tenha podido manifestar-se a
respeito, em sua defesa, constitui manifesta ofensa ao princípio do
contraditório.
A propósito, a doutrina salienta que a administração pública, ao
cominar a pena sugerida no relatório do processo administrativo, onde
está contida a acusação, toma uma "atitude absolutamente idêntica à
do Juiz, preceituada no art. 42 do Código Penal, que determina a
dosagem da pena, levando em consideração a intensidade do dolo ou
o grau da culpa e ainda as circunstâncias do ilícito, bem como da
personalidade do agente" 15 .
O art. 41 do CPP, de aplicação analógica aos processos administra-
tivos sancionadores, determina que "a denúncia ou queixa conterá a
exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qua-
lificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifi-
cá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemu-
nhas". (grifamos).
Os fatos criminosos são rodeados de circunstâncias (pessoa do
criminoso, meios, causas, local, tempo, etc.). As circunstâncias, pois,
são os dados que se encontram ao redor do crime e que servem para
atenuar ou agravar a pena. Assim, a circunstância representa concreta-
mente uma certa "quantidade de pena". Tal é o caso típico da reinci-
dência, que constitui uma circunstância agravante, tornando mais se-
vera a sanção. Daí decorre que as partes - autor e réu - devem ter
conhecimento prévio de todas as circunstâncias para promover a acu-
sação e a defesa.
No momento em que se reconhece uma circunstância agravante
sem antes ouvir o acusado, está se subtraindo dele o direito de defesa
e, conseqüentemente, ferindo os princípios constitucionais do contra-
ditório e da ampla defesa 16 .
A instauração válida do processo pressupõe o oferecimento de
denúncia ou queixa contendo a narração do fato criminoso, com todas
as suas circunstâncias (art. 41 do CPP), atenuantes e agravantes, den-
tre as últimas incluindo-se a reincidência.
A doutrina, a propósito, enfatiza que:

15 EGBERTO MAIA LUZ. Direito Administrativo Disciplinar. São Paulo: José Bus-
hatsky, 1977. p. 84.
16 GILBERTO FERREIRA. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.
105.

588
"A narração deficiente ou omissa, que impeça ou dificulte o exercício
do direito de defesa, é causa de nulidade absoluta, não podendo ser
sanada porque infringe os princípios constitucionais" 17 .

Daí decorre que o acusado em processo sancionador deve ter co-


nhecimento prévio (antes de apresentar sua defesa) de todas as cir-
cunstâncias do ato ilícito de que está sendo acusado, nelas incluindo-
se a reincidência, sob pena de caracterizar-se o cerceamento do direi-
to de defesa, que acarreta a nulidade absoluta do processo.

C) O PROCESSO SANCIONADOR DA SUSEP E O DIREITO


DE DEFESA DO ADMINISTRADO

A SUSEP- Superintendência de Seguros Privados- foi criada


pelo Decreto-lei n. 0 73/66, o qual instituiu o Sistema Nacional de
Seguros Privados.
Trata-se a SUSEP de entidade autárquica, vinculada ao Ministério
da Fazenda, dotada de personalidade jurídica de Direito Público, com
autonomia administrativa e financeira (art. 3 5 do Decreto-lei n. 0
73/66).
Constitui a finalidade principal da SUSEP a execução da política
traçada pelo CNSP e a orientação e fiscalização da constituição, orga-
nização, funcionamento e operações das sociedades de seguro (art. 36,
caput, do Decreto-lei).
Dentre as inúmeras competências conferidas à autarquia pelo re-
ferido Decreto-lei, inclui-se o seu poder de polícia, que consiste na
faculdade atribuída ao Estado de disciplinar e restringir direitos e
liberdades individuais, em favor do interesse público.
De fato, o Decreto-lei n. 0 73/66 conferiu à SUSEP amplos pode-
res de normatização e fiscalização sobre as sociedades seguradoras,
nos seguintes termos:

"Art. 36. Compete à SUSEP, na qualidade de executora da política


traçada pelo CNSP, como órgão fiscalizador da constituição, organi-
zação, funcionamento e operações das Sociedades Seguradoras:

17 ADA PELEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCANGE FERNANDES e ANTO-


NIO MAGALHÃES GOMES FILHO. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo:
RT, 1996. p. 95.

589
(. .. )
h) baixar instruções e expedir circulares relativas à regulamentação
das operações se seguro, de acordo com as diretrizes do CNSP;
(. ..)
h) fiscalizar as operações das Sociedades Seguradoras, inclusive o
exato cumprimento deste Decreto-lei, de outras leis pertinentes,
disposições regulamentares em geral, resoluções do CNSP e aplicar as
penalidades cabíveis".

Assim, cabe à SUSEP exercer seu poder de polícia mediante a


edição de normas disciplinando o acesso e as condições de exercício
de determinadas atividades no mercado de seguros e mediante a apli-
cação de sanções administrativas aos infratores de tais normas.
Desta forma, quando há indícios de que seus fiscalizados comete-
ram alguma infração a normas legais ou regulamentares, compete à
SUSEP instaurar processos administrativos para eventual aplicação de
penalidades.
A Resolução CNSP n. 0 42/00 18 , com as alterações que lhe foram
feitas pelas Resoluções CNSP n. 0 58/2001 e 91/2002, regula o pro-
cesso administrativo sancionador no âmbito do Sistema Nacional de
Seguros Privados, de Previdência Complementar Aberta e deCapita-
lização.
De acordo com esta Resolução, o processo administrativo sancio-
nador poderá ser instaurado de ofício ou por provocação de parte
interessada (art. 2°, caput, da Resolução n. 0 42/2000), podendo, as-

18 Nota do Autor: A Resolução CNSP n° 42/2000 foi revogada pela Resolução CNSP
n° lOS de 03.02.2004, constando dentre outras, as seguintes alterações:
"Art. 33. O auto de infração conterá os seguintes elementos:
( ... )
V- a ocorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes, inclusive reincidência;"
"Art. 44. Ultrapassada a fase de mediação de que trata o art. 42 destra Resolução e
restando indícios de violação a dispositivo legal ou ingralegal, o setor competente
instaurará o processo e intimará o denunciado, cuja intimação conterá os seguintes
elementos:
(... )
V- a ocorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes, inclusive reincidência;"
"Art. 46. A representação será formalizada por escrito, em modelo apropriado, e
conterá os seguintes elementos:
( ... )
V- a ocorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes, inclusive reincidência;"
"Art. 69. A decisão de primeira ou de segunda instância deverá conter:
V- a ocorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes, inclusive reincidência;"

590
sim, ser iniciado por Auto de Infração, Denúncia ou Representação
(art. 32 da Resolução n. 0 42/2000, alterado pela Resolução n. 0
91/2002).
É lavrado Auto de Infração nos processos em que a verificação de
infração às disposições legais ou regulamentares é feita pelos servido-
res da autarquia que tenham competência para as atividades de fisca-
lização (arts. 33 e 34 da Resolução n. 0 42/2000).
O Auto de Infração deverá conter: i) a qualificação do autuado; ii)
o local, a data e a hora da lavratura; iii) a descrição circunstanciada da
infração; iv) o dispositivo legal ou infralegal infringido e a sanção
prevista; v) o local para vista do processo; vi) a intimação para efetiva-
ção do pagamento, quando se tratar de sanção administrativa de mul-
ta, ou a apresentação de defesa e o prazo correspondente; VII) a
assinatura do autuado, seu representante ou preposto; e VIII) a assi-
natura do autuante, a indicação do seu nome por extenso, cargo ou
função e o número da matrícula, ressalvada a hipótese de emissão por
processo eletrônico, a carimbo, ou outra forma legível (art. 35, incisos
I a VIII da Resolução n. 0 42/2000).
Nos casos em que um terceiro (pessoa física ou jurídica) toma
conhecimento de atos ou fatos que considere infração às disposições
legais ou regulamentares do mercado de seguros e afins, o processo
administrativo se instaura mediante denúncia (art. 40 da Resolução
n. 0 42/2000).
Constituem elementos da denúncia: i) a indicação, com a precisão
possível, do infrator e da infração cometida; ii) os documentos e
quaisquer outros elementos de prova em que, porventura, se baseie a
Denúncia; iii) a qualificação do denunciante ou de quem o represente;
iv) o domicílio do denunciante ou local para recebimento de comuni-
cação; e v) a data e a assinatura do denunciante ou de quem o repre-
sente (art. 41 da Resolução n. 0 42/2000).
Ocorre representação, por sua vez, quando um servidor verifica a
ocorrência da infração e comunica o fato, em representação circuns-
tanciada, ao seu chefe imediato, para registro e autuação (art. 43 da
Resolução n. 0 42/2000).
A Representação conterá: i) a qualificação do representado; ii) a
indicação, com precisão possível, do infrator e da infração constata-
da; iii) o dispositivo legal ou infralegal infringido e a sanção prevista;
iv) os documentos ou quaisquer outros elementos em que se baseia a
Representação; e v) a identificação do servidor, a assinatura, e a indi-
cação do seu cargo ou função e sua matrícula (art. 44 da Resolução n. 0
42/2000).

591
Instaurado o processo, as fases que se seguem, nos termos da
Resolução n. 0 42/2000, constituem:

• apresentação de defesa- a parte é intimada para, em quinze dias,


apresentar sua defesa (arts. 9°, IV, a, 50 e 51, caput, da Resolução n. 0
42/2000);
• instrução - destina-se a verificar e comprovar os fatos alegados
tanto no Auto de Infração como na defesa (arts. 45 a 49 da Resolução
n. 0 42/2000);
• relatórios - serão elaborados dois relatórios, sendo um deles pelo
setor responsável pela instrução do processo, e o outro pela Procura-
doria Geral, examinando a regularidade do primeiro (art. 52 da Reso-
lução n. 0 42/2000); e
• julgamento pelo Conselho Diretor (arts. 53 a 57 da Resolução n. 0
42/2000).

A decisão proferida pelo Conselho Diretor deverá apresentar os


seguintes requisitos: i) o relato resumido do processo; ii) os funda-
mentos de fato e ·de direito; iii) as disposições legais em que se baseia;
iv) a conclusão; e 'v) a sanção administrativa imposta (art. 68, incisos I
a V da Resolução n. 0 42/2000).
Nos termos da Resolução n. 0 60/2001 19 , com as alterações que lhe
foram implementadas pela Resolução n. 0 87/2002, expedida pelo
Conselho Nacional de Seguros Privados, constituem as sanções admi-
nistrativas: i) advertência; ii) multa; iii) suspensão do exercício do
cargo; iv) inabilitação temporária ou permanente para o exercício de
cargos; v) suspensão temporária do exercício da atividade; vi) suspen-
são temporária do exercício da profissão; vii) cancelamento de regis-
tro; viii) suspensão temporária; e ix) destituição (art. 2° da Resolução
n° 60/2001).
Ressalte-se, no entanto, que a aplicação tanto do tipo como da
gradação da sanção administrativa pelo Conselho Diretor não poderá
ser feita de forma arbitrária; ao contrário, deverá observar expressa-
mente o disposto nas normas regulamentares.
De fato, a Resolução n° 60/2001, alterada pela Resolução n°
87/2002, regula minuciosamente que tipos de sanções, bem como a sua
gradação, poderão ser aplicadas a cada agente do mercado de seguros.

19 Nota do Autor: A Resolução CNSP n? 60/01 foi alterada pela Resolução CNSP n°
108/2004.

592
Deverão os conselheiros, na fixação da sanção, verificar a ocorrên-
cia de circunstâncias agravantes, atenuantes, bem como os anteceden-
tes do infrator, tendo em vista que, de acordo com a presença de tais
elementos, a gradação da sanção poderá aumentar ou diminuir consi-
deravelmente. Por exemplo, nos casos em que o infrator é reinciden-
te, o art. 51,§ 2°, da aludida Resolução determina que a sanção será
acrescida do triplo do seu valor ou do triplo do seu prazo. 20
Realizada a sessão e concluída a votação, caberá à Secretaria do
Conselho Diretor lavrar o Termo de Julgamento, que registrará a de-
cisão proferida, a fundamentação resumida do voto vencedor, capitu-
lará as sanções aplicadas e consignará, se houver, o teor dos votos
contrários (art. 60 da Resolução n. 0 42/2000).
Encerrado o julgamento, caberá à Secretaria do Conselho Diretor
executar a decisão proferida, intimando as partes para, em cinco dias,
acatarem a sanção ou interporem recurso (art. 64, caput, da Resolução
n. 0 42/2000).
Na hipótese de surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes
que possam ensejar a revisão da decisão proferida pelo Conselho Di-
retor da SUSEP, caberá pedido de reconsideração, no prazo de cinco
dias, que deverá ser encaminhado ao Presidente do Conselho Diretor.
O pedido será, então, remetido ao Conselheiro Relator, que terá o
prazo de cinco dias para elaborar relatório e proferir voto, incluindo-o
na pauta de julgamento da primeira sessão subseqüente. Ressalte-se
que o pedido de reconsideração suspende o prazo para a interposição
de recurso (art. 70 da Resolução n. 0 42/2000).
Caberá, ainda, no prazo de quinze dias, recurso, total ou parcial,
sem efeito suspensivo, em face da decisão condenatória proferida pelo
Conselho Diretor da SUSEP ao Conselho de Recursos do Sistema
Nacional de Seguros Privados, de Previdência Complementar e de
Capitalização - CRSNSPC. (art. 71, caput, da Resolução n°
42/2000)
Contudo, poderá o recurso ter efeito suspensivo se, a pedido da
parte interessada, comprovando esta o possível prejuízo, o Conselho
Diretor assim entender (art. 71, caput, da Resolução n. 0 42/2000,
alterado pela Resolução n. 0 58/2001).

zo Note-se que em alguns processos administrativos cujos recursos ainda estão pen-
dentes de decisão junto ao CRSNSPC, a decisão de primeira instância, tendo verifica-
do a reincidência do infrator, majorou a sanção em oito vezes o valor da multa imposta,
sem que tal circunstância tivesse sido mencionada na acusação, nos termos do art. 34
da Resolução CNSP n° 14/95 que, conforme já mencionado, foi revogada pela Reso-
lução CNSP n. 0 60/2001.

593
Terão, por sua vez, efeito suspensivo os recursos interpostos em
face de decisões relativas a penas de advertência, suspensão e inabili-
tação, quando se tratar de entidade aberta de previdência comple-
mentar e de seus administradores. (art. 74, § 3°, da Resolução n°
42/2000, acrescentado pela Resolução n° 58/2001).
Recebido o recurso pela Secretaria do Conselho Diretor da SU-
SEP, esta o enviará ao Conselho Diretor, se houver pedido de efeito
suspensivo ou à Secretaria Executiva do CRSNSPC, no prazo de dois
dias (arts. 72, parágrafo único e 73 da Resolução n. 0 42/2000).
A interposição de recurso em processos cuja decisão estabeleceu
como sanção administrativa a cominação de multa deverá ser precedi-
da de pagamento da importância cominada, sob pena de não recebi-
mento, salvo nos casos em que houve concessão de efeito suspensivo
(art. 74, caput, da Resolução n. 0 42/2000).
Nos casos em que o Conselho Diretor da SUSEP proferir conde-
nação em face de entidade aberta de previdência complementar, o
recurso só será conhecido mediante o depósito correspondente a 30%
(trinta por cento) do valor da multa aplicada (art. 74, §4°, da Resolu-
ção n. 0 42/2000, acrescentado pela Resolução n. 0 58/2001).
Transcorrido o prazo de quinze dias para a interposição de recur-
so, a parte será intimada para que, em oito dias, efetue o recolhimento
da multa. Verificado o não recolhimento, o processo será remetido à
Procuradoria Geral da SUSEP para que esta proceda à inscrição do
inadimplente na Dívida Ativa da SUSEP (art. 74, §§ I 0 e 2° da Reso-
lução n. 0 42/2000).
Verificado o esgotamento do prazo para a interposição de recurso,
sem que este tenha sido oferecido, transita em julgado a decisão pro-
ferida pelo Conselho Diretor da SUSEP, bem como a decisão proferi-
da por este órgão, na parte que não tiver sido objeto de recurso (art.
76 da Resolução n. 0 42/2000).
Não há qualquer dúvida de que a garantia do amplo direito de
defesa deve ser assegurada no âmbito de processos administrativos
sancionadores instaurados pela SUSEP. A propósito, já comentamos
que:

"Os processos administrativos sancionadores da CVM, da mesma


forma que os do Banco Central, enquanto órgão fiscalizador do siste-
ma financeiro nas áreas de crédito, mercado aberto, câmbio e sistema
financeiro de habitação, os da Superintendência de Seguros Privados
- SUSEP, nas áreas de seguros, previdência e capitalização, assim
como de todos os demais órgãos reguladores de atividades desenvolvi-

594
das por particulares, devem pautar-se pelo postulado do due process of
law, assegurando portanto aos acusados o exercício do direito de de-
fesa, em sua acepção mais ampla" 21 .

Assim, não temos qualquer dúvida de que o princípio do devido


processo legal aplica-se integralmente aos processos sancionadores da
SUSEP; serão, pois, absolutamente nulos os processos nos quais não
seja assegurado o pleno direito de defesa.
Constitui, conforme antes analisado, direito essencial do acusado
o de ser informado de todos os termos da acusação. Assim, eventuais
circunstâncias agravantes, dentre as quais inclui-se a reincidência, in-
tegram a sanção proposta na acusação, devendo necessariamente dela
constar, para que o acusado possa manifestar-se a respeito, antes da
decisão de primeira instância.
Suponha-se, por exemplo, que antes da formulação da acusação
(representação, denúncia ou auto de infração), o acusado, pessoa jurí-
dica que cometera ilícito idêntico, e que seria, em tese, reincidente,
tenha tido o seu controle acionário alienado, ou tenha sido incorpora-
do por outra entidade. Em princípio, poderia, em suas razões de defe-
sa, alegar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica in banam partem 22 , elidindo, pois, a acusação de reincidência.
Como poderá fazê-lo, porém, se não tiver sido informado de que o
órgão acusador entende haver reincidência, no caso?
Pode ocorrer, ademais, que o acusado seja condenado por reinci-
dência tendo, porém, a decisão que o condenou por infração anterior
transitado em julgado há mais de três anos.
Com relação aos processos instaurados ainda sob a vigência da
Resolução n. 0 14/9 5, a qual prevê tanto a reincidência específica
como a genérica, pode caber discussão a respeito da caracterização das
circunstâncias agravantes como sendo uma ou outra. Isto porque po-
dem surgir, diante de um caso concreto, controvérsias a respeito da
caracterização da reincidência específica, cujos pressupostos são o
mesmo dispositivo legal, mesmos fatos ou motivos determinantes.
Podem, até mesmo, ocorrer erros em relação à identidade do acu-
sado (homonímia), se pessoas físicas, quando do julgamento por rein-
cidência.

21 Op. cit., p.l68.


22 Cf. o nosso Reforma das S.A. e do Mercado de Capitais, op. cit., p. 198.

595
Em todas estas hipóteses, a defesa dos acusados ficaria prejudica-
da, pela falta de conhecimento de todos os termos da acusação, den-
tre os quais se insere a reincidência, por representar uma circunstân-
cia capaz de agravar a sanção.
Nos processos sancionadores da SUSEP, como a reincidência acar-
reta a majoração das multas, ocorrendo ainda, em várias hipóteses, a ne-
cessidade de depósito de todo ou de parte do valor da multa para a inter-
posição de recurso administrativo, agravar-se-ia substancialmente a si-
tuação do acusado se não tivesse a oportunidade de manifestar-se sobre
elemento essencial da acusação - a intensidade da sanção - por oca-
sião de sua defesa, ficando sensivelmente prejudicado o contraditório e
comprometida, pois, a legalidade do processo.
Ademais, como o art. 50, 11, da Lei n. 0 9.784/99 estabelece a
obrigatoriedade de a Administração Pública motivar os atos adminis-
trativos que imponham ou agravem sanções (e a acusação é um ato
administrativo) deve-se informar, já na peça acusatória, a existência
de circunstâncias que possam agravar a sanção e os motivos pelos quais
se acredita que haja circunstâncias agravantes.
A propósito, vale enfatizar que não existe defesa parcial, ou defesa
sobre apenas alguns dos elementos da acusação, havendo outros que so-
mente serão conhecidos por ocasião do recurso; a defesa deve ser ampla,
sem quaisquer restrições, sob pena de afronta ao texto constitucional.
É inequívoco que o Enunciado n° 4 do CRSNSP, ao exigir que o
administrado tenha conhecimento de todos os termos da acusação,
dentre os quais o da reincidência, antes da apresentação da defesa,
permite o contraditório e o amplo direito de defesa nos processos
sancionadores da SUSEP, afastando os riscos de sua eventual contes-
tação judicial.

O) RESPOSTAS AOS QUESITOS

Face à análise até aqui desenvolvida, assim podemos responder aos


quesitos formulados pela Consulente:

1° QUESITO

O procedimento adotado antes de ser aprovado o Enunciado


n° 4, que permitia ao administrado defender-se da acusação de
reincidência somente na fase recursal, atendia plenamente ao
princípio do devido processo legal?

596
RESPOSTA

O procedimento verificado antes da edição do Enunciado


CRSNSP n° 4, ao não permitir ao administrado o conhecimento de
todos os termos da acusação antes da apresentação de sua defesa,
prejudicava o seu direito de defesa e comprometia o contraditório no
processo sancionador.

2° QUESITO

São legítimas as razões que levaram o CRSNSP a aprovar o


Enunciado n° 4, tendo em vista o princípio do devido processo
legal?

RESPOSTA

São inteiramente legítimas as razões que levaram o CRSNSP a edi-


tar o Enunciado n° 4, uma vez que bem adequou as normas e procedi-
mentos existentes no âmbito da SUSEP aos princípios constitucionais;
ao permitir a ampla defesa, deixou explícito o que já estava implícito na
regulamentação, a qual menciona genericamente que a sanção deva es-
tar prevista na peça acusatória, assegurando o contraditório e, pois, o
devido processo legal no processo sancionador do órgão.

3° QUESITO

Existe inconciliável antagonismo entre o Enunciado n° 4 e as


normas que disciplinam o processo administrativo da SUSEP?

RESPOSTA

Não existe qualquer contradição ou antagonismo entre a regula-


mentação aplicável aos processos sancionadores da SUSEP e o Enun-
ciado n° 4, uma vez que este meramente tornou expressa a regra
subentendida na regulamentação de que a sanção deveria estar previs-
ta integralmente na acusação, compatibilizando-a à Lei n. 0 9. 784/99 e
à Constituição Federal, às quais a Administração deve obediência.
Foi o nosso Parecer, em dezembro de 2003.

597
ÍNDICE REMISSIVO

• ABERTURA DE CAPITAL- 346 a 358


o Conseqüências da não abertura do capital- 354
• ABUSO DE DIREITO- 330 a 336, 578,
o De voto- 10, 97, 110, 117
o Caracterização- 329 a 332
• ABUSO DE PODER
o Da CVM (vide "Comissão de Valores Mobiliários")
o Das minorias - 103
o De controle (vide "Poder de Controle: Abuso")
o Do administrador (vide "Administradores: Abuso de Poder")
• ACIONISTA CONTROLADOR- 9, 50, 226 a 227, 232 a 234
o Abuso de poder do (vide "Poder de Controle: Abuso")
o Deveres e responsabilidades do- 9, 50, 75
o Poder de controle (vide "Poder de controle")
• ACIONISTAS MINORITÁRIOS
o Proteção- 46, 49 a 51, 100, 138, 151, 231 a 232, 350 a 351, 361,
384, 483 a 484
o Abuso de poder- l 03
• AÇÕES PREFERENCIAIS
o Na Lei No 10.303/2001-435 a 447
o Direito de participar na OPA- 244
o Alteração nas preferências e vantagens- 307 a 31 O
• ACORDO DE ACIONISTA
o "Acordo em Cascata"- extensão dos efeitos as sociedades contro-
ladas - 36 a 38
o De voto em bloco ("pooling agreements")- 30 a 35
o Arquivamento e seus efeitos- 6, 27 a 30, 305, 317

599
o Conceito- 25
o Extinção de - 315 a 31 7
o Natureza Jurídica- 3, 25 a 26, 313 a 317
o Objeto- 6, 26
o Partes Legítimas - 3 a 7
• Companhia como parte do- 4 a 7, 20
o Vinculação dos administradores aos termos dos- 31 a 36
• ACORDO DE VOTO EM BLOCO (vide "Acordo de Acionistas")
• ADMINISTRADORES (vide "Conselho de Administração")
o Abuso de poder- 35
o Contas dos- 106 a 114
o Deveres e responsabilidades- 33, 44, 51, 68 a 74, 86 a 87, 115 a
120
• AGENTE FIDUCIÁRIO- 575 a 577
• ALIENAÇÃO DE CONTROLE
o Modalidades (direta, indireta e "em etapas")- 240 a 242
o Oferta Pública de (vide "Oferta Pública: De alienação de controle")
• AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO NO PROCESSO ADMI-
NISTRATIVO- 582 a 588, 594 a 596
• ANULABILIDADE (vide "Nulidade I Anulabilidade")
• APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO- 365 a 366
• AQUISIÇÃO DE AÇÕES (vide "Oferta Pública")
o De emissão própria I para tesouraria - 17 a 19
• AQUISIÇÃO DE CONTROLE (vide "Oferta Pública")
o Derivada e originária- 239 a 241
• ASSEMBLÉIA ESPECIAL
o Dos preferencialistas- 307 a 309
o Para resgate de ações- 364
• ASSEMBLÉIA GERAL
o Competência:
• Para eleger o presidente do Conselho de Adminsitração - 61 a
63
• Para deliberar sobre a ação de responsabilidade civil contra o
admnistrador- 74, 99 a 100
• Para deliberar sobre conflito de interesses entre companhia e
administração - 102
• Para aprovar as contas dos administradores e as demonstrações
financeiras - 106 a 111
• Para deliberar sobre o prazo de pagamento dos dividendos -
261, 277 a 279

600
• Para deliberar sobre a destinação do saldo excedente da reserva
legal- 294 a 297
• Para deliberar sobre a redução do capital social- 304
• Para deliberar sobre a emissão de debêntures- 392
• Para deliberar sobre a emissão de bônus de subscrição - 453 a
454
o Convocação- 59 a 60
o Natureza dos poderes da- 58 a 59
o Nulidade de deliberação em- 381 a 382
o Para resgate de ações- 17 a 19, 363, 376
• ATAS- 58, 73, 87, 109
• ATIVIDADE EMPRESARIAL/ ATOS DE COMÉRCIO- 574 a 575
• ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO DA COMPA-
NHIA- 276 a 277
• ATO JURÍDICO PERFEITO- 365 a 366, 371, 524
• ATOS ANULÁVEIS (vide "Nulidade I Anulabilidade")
• ATOS DE LIBERALIDADE- 69, 133 a 135, 142, 147
• ATOS NULOS (vide "Nulidade I Anulabilidade")
• AUDITORES INDEPENDENTES
o Função- 11 O a 111, 159 a 166, 181 a 183
o Regra que impõe a rotatividade dos - 183 a 186, 191 a 193
o Sigilo profissional do - 166 a 1 74
• AUTO DE INFRAÇÃO- 591
• AUTONOMIA PRIVADA DAS PARTES
o Limite ou Restrições- 5, 8, 16, 20, 328
• AVALIAÇÃO DE COMPANHIA
o Critérios- 207 a 208, 221 a 224, 322 a 324, 383 a 387
o Relação de Substituição de ações- 320 a 326, 384 a 386
• AVALIADORES- 205 a 210
o Responsabilidade (civil e administrativa perante a CVM) dos- 215
a 221
• BÔNUS DE SUBSCRIÇÃO- 452-474
o Características- 452 a 454
o Natureza jurídica- 459 a 463
• CANCELAMENTO DE REGISTRO DE COMPANHIA ABERTA
(vide "Oferta Pública: De cancelamento de Registro")
• CAPITAL SOCIAL
o Aumento (vide "Incorporação de ações")
o Aumento por capitalização de lucros e reservas - 301 a 303
o Aumento por subscrição- 454 a 459

601
• Pública- 457 a 458
• Privada- 458 a 459
o Conceito- 288, 303
o Redução- 295 a 297, 304 a 309
o Intangibilidade do- 288 .
• CARÁTER SISTEMÁTICO DO ORDENAMENTO JURÍDICO -
140 a 141
• CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR- 567 A 568
• CELERIDADE E INFORMALIDADE NO DIREITO COMERCIAL-
326, 386 a 387
• CESSÃO DE CRÉDITO- 491 a 495
o Diferenças quanto ao mútuo- 497 a 498
o No mercado financeiro- 498 a 502
• CISÃO- 254, 342, 344, 346 a 347, 387
• CLÁUSULA "REBUS SIC STANTIBUS"- 11 a 15
• CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
o Definição de 'Consumidor'- 203 a 205, 554 a 565
o Não aplicação da Responsabilidade Civil do CDC ao Mercado de
Capitais- 199 a 205
o Não aplicação do CDC aos Fundos de Investimentos- 554 a 565
o Responsabilidade Civil no - 198 a 199
• COISA JULGADA- 365 a 366
• COLIGAÇÃO (vide "Sociedades Coligadas")
• COMERCIANTE (vide "Empresário Comercial")
• COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS - "CVM"
o Poder de polícia- 160 a 166, 182 a 184, 240 a 244, 367 a 370, 421
a 422, 561 a 562
o Abuso de poder da - 173
• COMUTATIVIDADE DOS CONTRATOS (vide "Condições Comu-
tativas nas Relações entre Sociedades")
• COMPETÊNCIAS DOS ÓRGÃOS SOCIAIS- 18
o Assembléia (vide "Assembléia Geral: Competência")
o Conselho de Administração (vide "Conselho de Administração:
Competência do")
• CONDIÇÕES COMUTATIVAS NAS RELAÇÕES ENTRE SOCIE-
DADES- 50 a 51, 93, 128 a 133
• CONFLITO DE INTERESSES- 48 a 49, 71 a 73, 95 a 99
• CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO (vide "Administradores")
o Deveres e responsabilidades (vide "Administradores: Deveres e
responsabilidades")

602
o Competência do -19, 61 a 63, 141, 278 a 279, 392,453
o Conceito- 54 a 55, 58 a 59, 61 a 62
o Convocação- Pauta de Reunião- 59 a 61
o Presidente do- 56 a 58, 61 a 63, 82
o Representação no- voto por procuração nas reuniões do- 55
o Sistema de eleição dos Conselheiros do - 150 a 156
• CONSELHO FISCAL
o Competência individual dos conselheiros- 43 a 45, 51
o Composição - 46
o Deveres e responsabilidades- 44 a 45, 110
o Funções- 41 a 42, 110, 306
o Impedimentos do- 46 a 48
• CONSUMIDOR (vide "Código de Defesa do Consumidor: Definição
de Consumidor")
• CONTAS DO EXERCÍCIO- 106 a 114
• CONTRATO ACESSÓRIO- 315 A 316
• CONTRATO DE ADESÃO- 466 a 469
• CONTRATO DE EMPREITADA- 206 a 207, 541 a 543
• CONTRATO DE OPÇÃO DE VENDA-16 a 20
• CONTRATO PARAS SOCIAL- 3 a 4, 313 a 315
• CONTRATO PUBLICITÁRIO
o Objeto e natureza dos- 537 a 545
o Regime Jurídico dos- 534 a 536
• CONTROLE ACIONÁRIO (vide "Acionista Controlador" e "Poder
de Controle")
o Alienação do (vide "Alienação de Controle" e "Oferta Pública: De
alienação de controle")
o Aquisição- 238
o Definição- 232 a 234
• CONTROLE COMPARTILHADO- 234
• CONTROLE GERENCIAL- 235
• CONTROLE INDIRETO- 37,227 a 230
• CORREÇÃO MONETÁRIA- 568
• CRÉDITO RURAL- 505 a 532
o Disciplina no sistema jurídico nacional- 507 a 509
o Natureza jurídica da relação contratual- 526 a 530
o Origem dos recursos - 519 a 520
o Partes do Contrato de - 516 a 518
o Princípio da destinação exclusiva - 51 O
o Repasse de recursos externos- 520 a 521

603
o Requisitos para concessão - 512 a 515
o Securitização das dívidas- 523 a 526
o Tipos e Características- 509 a 511, 527
o Títulos de - 518 a 519
o Tratamento privilegiado do- 521 a 523
• DEBÊNTURES
o Características- 389
o Com garantias reais - 57 7
o Distribuição secundária - 403
o Emissão e subscrição de- 390 a 395
o Emissão pública de - 597 a 403
o Formas das- 407
o Finalidade econômica e natureza jurídica da- 389 a 390
o Negociação no mercado- 404 a 406
o Registro- Poder vinculado da CVM para aprovar- 595 a 597, 401
• DEL CREDERE- 544
• DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS- 106 a 108, 158 a 160, 163 a
165
• DESVIO DE FINALIDADE- 72 a 73
• DEVER
o De Diligência- 68, 199, 21 O a 211
o De informar (vide "Disclosure")
o De lealdade- 69, 174
o Do acionista controlador (vide "Acionista Controlador: Deveres e
responsabilidades")
o Dos Avaliadores (vide "Avaliadores")
o Dos administradores (vide "Administradores: Deveres e responsa-
bilidades")
• DEVIDO PROCESSO LEGAL- 582 a 589
• DIREITO AUTÔNOMO (do bônus de subscrição)- 462
• DIREITO DE PREFERÊNCIA- 399, 402, 442, 453, 458 a 459, 464 a
465, 472 a 473
• DIREITO DE RECESSO I RETIRADA
o Conceito- 350 a 353
o Contratual - 1 7
o E sua aplicação quanto aos bancos - 484 a 486
o Na incorporação, fusão e cisão- 342, 353 a 357
o Na incorporação de subsidiária integral- 384 a 386
o Por mudança do objeto social- 24 7 a 248, 251 a 254
o Por redução do capital social- 307 a 309

604
• DIREITO DE VOTO
o Aquisição do- Direito de participar da OPA- 244
o Conflito de interesse- 71 a 72, 97, 225
o Direito soberano- 304 a 305
o Exercício Abusivo (vide "Abuso de Direito: De voto")
o Responsabilidade pelo exercício de- 8 a 10, 21, 71,327 a 329
• DIREITO EXPECTATIVO- 273
• DIREITOS DOS ACIONISTAS
o Ao dividendo- direito essencial- 256 a 260, 272 a 274, 282 a 283
a 293
o Minoritários- 232, 291 a 293
• DIREITOS SUBJETIVOS
o Limites- 330
• DIRETORIA- 58 a 59, 85 a 86
• DISCLOSURE- 69 a 70, 84 a 85, 158 a 159, 212, 395 a 396, 469 a
471
• DIVIDENDO
o Ação de Cobrança- 277 a 283
o Características, natureza e disciplina legal- 256 a 25 7, 272, 288
o Caráter essencial (vide "Direitos dos Acionistas")
o Intercalares- 274 a 286
o Intermediários- 274 a 277
o Obrigatório- 256 a 260, 266 a 268, 272 a 274
o Possibilidade de pagamento "IN NATURA" - 262 a 269
o Possibilidades e consequências do não pagamento- 244, 258 a 260
o Prazo para pagamento- 261 a 262, 277 a 283
• EDITAL DE CONVOCAÇÃO- 60
• EMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS
o Pública- 91, 391 a 403
o Privada- 392, 397 a 400
o De debêntures- 389 a 406
o De ações preferenciais (vide "Ações Preferenciais")
• EMPRESÁRIO COMERCIAL/ COMERCIANTE- 554 a 555, 574 a 575
• ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL- 190 a 191
• EXECUÇÃO DIFERIDA-15
• EXERCÍCIO DO DIREITO DE VOTO (vide "Direito de Voto")
• EXPECTATIVA DE DIREITO (vide "Direito Expectativa")
• FALÊNCIA
o DeSPE -Sociedade de Propósito Específico- impossibilidade- 572
a 579

605
• FATO DO PRÍNCIPE- 265 a 270
• FATO RELEVANTE- 71,387 a 388
• FECHAMENTO DE CAPITAL (vide "Oferta Pública")
• FINALIDADE LEGÍTIMA DO ATO- 331 a 332
• FORNECEDOR- 554 a 555
• FUNDOS DE INVESTIMENTO FINANCEIRO- FIF'S
o Características e regulamentação- 549 a 554
o Definição de investimento- 558
o Enquanto valor mobiliário- 426 a 427
o Intermediação financeira- 559
o Marcação de Mercado- 569 a 570
o Não aplicação do CDC- 554 a 565
• FUSÃO- 187 a 189, 342, 344, 346 a 347,387
• GOVERNANÇA CORPORATIVA- 77 a 82
• GRUPOS DE SOCIEDADES
o Grupo de Fato e Grupo de Direito- 40 a 41, 49, 52, 126 a 130
• IMPEACHMENT -101 a 104, 118, 121 a 122
• INCORPORAÇÃO
o De ações- 342 a 349, 356 a 357
o De companhia- 187, 189, 320 a 321, 342 a 344, 383, 387 a 388
o De companhia controlada- 321 a 324, 383 a 388
o De controladora por sua subsidiária integral- 324 a 327
o De subsidiária integral por sua controladora- 385 a 387
• INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA- 84 a 85
• INIMPUTABILIDADE NA INEXECUÇÃO DOS CONTRATOS-
567 a 568
• INSIDER TRADING- 69 a 70,477 a 479
• INTENÇÃO DAS PARTES - 463 a 464
• INTERESSE PÚBLICO- 137 a 138, 182 a 183,469
• INTERESSE SOCIAL (vide "Princípio da prevalência do interesse so-
cial")
• INTERPRETAÇÃO
o Analógica- 201, 248, 347 a 348
o Ampliativa- 185
o Restritiva- 4 7 a 48, 118, 185
o Sistemática- 141
• INVESTIDOR- 203 a 205
• INVESTIMENTO (vide "Fundos de Investimento Financeiro")
• IRRETROATIVIDADE DAS LEIS- 365,439
• JOINTVENTURE- 573

606
• LEIS (vide "norma")
o Cogentes, imperativas ou de ordem pública -18, 135 a 140, 278 a
279
o Imperfeitas- 280
o Mais que perfeitas - 280
o Menos que perfeitas - 280
o Perfeitas - 280
• LUCROS ACUMULADOS- 289
• MARCAÇÃO A MERCADO- 569 a 570
• MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA (vide "Leis: cogentes, imperativas
ou de ordem pública")
• MERCADO DE CESSÃO DE CRÉDITOS (vide "Cessão de Crédito:
no mercado financeiro")
• MÚTUO
o Com destinação - 509 a 51 O
o De natureza mercantil- 390
o Diferença da cessão de crédito- 497 a 498
• NORMA (vide "Leis")
o Cogente, imperativa ou de ordem pública- 18, 135 a 140, 278 a
279
o Despida de sanção- 281, 286
o Dispositivas - 136
o Excepcional- 47 a 48, 118, 121
o Permissiva ou supletiva- 278
• NULIDADE I ANULABILIDADE- 98, 137 a 140, 256, 280, 381 a
382,401,501,589
• OBJETO ECONÔMICO DA SOCIEDADE ANÔNIMA- 272
• OBJETO SOCIAL
o Conceito- 143, 248 a 250
o Mudança- 251 a 254
• OBRIGAÇÃO
o de meio- 205 a 210
o de Resultado- 205 a 207, 542 a 543
• OFERTA PÚBLICA- 216 a 217,224, 391, 399
o De alienação de controle- 37, 235 a 245, 485
o De cancelamento de registro- 195, 361 a 365, 368 a 382
o Destinatários- 242 a 245
• OPÇÃO DE COMPRA- CLÁUSULA DE- 454 a 457
• OPÇÃO DE VENDA (vide "Contrato de Opção de Venda")
• ORDEM DO DIA (vide "Conselho de Administração: Convocação")

607
• PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA INDIRETA- 225 a 230
• PODER DE POLÍCIA (vide "Comissão de Valores Mobiliários:Poder
de Polícia")
• PODER DE CONTROLE (vide "Acionista Controlador" e "Controle
Acionário")
o Abuso- 10, 21, 50, 75, 93, 110, 128 a 130, 328,455 a 456
o Alienação do (vide "Oferta Pública: De alienação de controle")
o Como matéria do acordo de acionistas- 26, 29 a 30, 33 a 37
• PREÇO JUSTO - 221 a 224
• PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA- 586
• PRINCÍPIO
o Da ampla defesa e do contraditório (vide "Ampla defesa e contra-
ditório")
o Da celeridade e informalidade (vide "Celeridade e Informalida-
de")
o Da irretroatividade (vide "Irretroatividade das Leis")
o Da liberdade profissional- 184 , 193
o Da literalidade - 462 a 463
o Da prevalência do interesse social- 8 a 11, 21 a 22, 133, 138, 327
a 329, 333
o Da segurança das relações jurídicas- 439
o Do full disclosure (vide "Disclosure")
o Do in dúbio contra stipulatorem - 468
• PRINCÍPIO MAJORITÁRIO- 100, 247, 350
• PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR- 583 a 596
• RECURSO HIERÁRQUICO- 490 a 491
• REDUÇÃO DE CAPITAL (vide "Capital Social: Redução")
• REEMBOLSO- l 7, 23, 248, 323 a 325, 352, 384
• REGISTRO
o cancelamento de registro de companhia aberta (vide "Oferta Pú-
blica")
o na CVM de emissão de debêntures (vide "Debêntures")
o na CVM de OPA (vide "Oferta Pública")
• REINCIDÊNCIA- 582, 588 a 589, 595 a 596
• RELAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DE AÇÕES (vide "Avaliação de
Companhia")
• RELAÇÃO INTERSUBJETIVA DE CONFLITO- 96
• RESERVAS
o Reserva de capital- 289, 293, 303, 309
o Reserva de lucro- 289 a 290

608
o Reserva Legal- 287, 290 a 297
• RESGATE DE AÇÕES -18 a 19,362 a 378
• RESOLUÇÃO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA (vide "Teoria da
Im previsão")
• RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DOS AVALIADORES
(vide "Avaliadores: Responsabilidades")
• RESPONSABILIDADE CIVIL
o Conceito- 195 a 196
o Dos administradores - 73 a 7 5, 100 a 104, 11 5 a 118
o Na Lei das S.A. e regulamentação do Mercado de Capitais- 73 a
75, 100 a 104, 115 a 118, 200 a 202
o Não aplicação do CDC ao Mercado de Capitais - 199 a 205
o Objetiva X Subjetiva- 195 a 200
o Por violação do dever de diligência- 220 a 221
• RETIRE ARRANGEMENTS- 17
• SECURITIZAÇÃO DE DÍVIDAS- 523 a 526, 528, 530
• SOCIEDADES
o Controladas- 38, 92 a 93, 127 a 130, 143, 321 a 322
o Controladoras- 38, 92 a 93, 127 a 130, 321 a 322
• SOCIEDADES ANÔNIMAS- CATEGORIAS DE- 439 a 441,443
• SOCIEDADES COLIGADAS- 225 a 230
• SUBSCRIÇÃO (vide "Valores Mobiliários: Subscrição")
o Pública X Privada- 457 a 459
• SUBSIDIÁRIA INTEGRAL
o Direito de Recesso na incorporação de- 384 a 386
o Incorporação de subsidiária integral por sua controladora - 385 a
388
o Incorporação de controladora por sua subsidiária integral - 324 a
327
• SUCESSÃO DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES- 186 a 187, 317, 344
a 345
• TEORIA DA IMPREVISÃO- 11 a 16
• TÍTULO DE CRÉDITO (vide "Bônus de Subscrição: Natureza Jurídi-
ca")
o Execução judicial dos títulos escriturais - 413 a 419
o Rural (vide "Crédito Rural: Títulos de")
o Escriturais - 411 a 413
o Desmaterialização - 413 a 419
• TRUSTEE- 576
• UNDERWRITER- 91 a 92, 165, 213 a 214, 401 a 403

609
• VALORES MOBILIÁRIOS- 394,421,423
o Emissão de (vide "Emissão de Valores Mobiliários")
o Distribuição - primária e secundária - 403 a 404
o Na nova Lei das S/A- 425 a 429, 432 a 433
o Subscrição- 466 a 467
• VOTO (vide "Direito de Voto" e "Acordo de Acionistas")
o Por procuração (vide "Conselho de Administração")
• VOTO MÚLTIPLO
o Conceito - Sistema de eleição pelo - 150 a 151
o Condições de legitimidade do requerimento- 151 a 152
o Destituição e vacância dos conselheiros eleitos pelo- 152 a 156

610

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