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pistas-sobre-a-escravidao

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 268, 01 de Dezembro | 2013

Prática Pedagógica

Em busca de pistas sobre a


escravidão
Entrevistas e fontes diversas levaram à construção de
saberes sobre esse período
Wellington Soares

A garotada entrevistou antigos moradores da região, como Jacyra da Silva Coelho,


100 anos
Em exemplares de jornais antigos, a classe encontrou evidências da escravidão na
cidade

Os alunos registravam suas descobertas no caderno, que era analisado pelo


docente
Com a ajuda de Araújo, a turma elaborou uma pauta de perguntas para as
entrevistas

O festival anual de samba é um dos principais eventos do pequeno


distrito de Tebas, no município de Leopoldina, a 323 quilômetros de
Belo Horizonte. O ritmo, popular no local, é característico da cultura
afro-brasileira presente ali, assim como as centenárias e modestas construções,
as histórias sobre escravos transmitidas de pai para filho e a composição étnica
da população. Filhos, netos e bisnetos dos cativos que compunham a mão de
obra no século 19 fizeram do local o seu lar e foram deixando, no decorrer do
tempo, vestígios de sua existência.

Apesar disso, os alunos de 6º ano da EE Justiniano Fonseca não conheciam esse


passado. "Na avaliação diagnóstica, notei que eles não identificavam a presença
negra em Leopoldina e tinham ideias parciais sobre a escravidão", explica o
professor João Paulo Pereira de Araújo. Quando perguntados sobre o modo de
vida dos negros, quase todos citaram apenas a submissão ao senhor e os castigos
físicos. "Eles apanhavam quando não faziam alguma coisa direito", respondeu o
aluno Marcos Paulo Barreto Araújo, 11 anos. Já Vanessa de Souza Moreira, 12
anos, disse que a vida do escravo era "sem estudo". Boa parte da classe apontava
a princesa Isabel (1846-1921) como a única responsável pela abolição.

O docente decidiu, então, guiar a garotada em um processo de exploração do


passado que envolveu pesquisas na internet e em jornais e entrevistas com os
moradores locais. Dessa forma, ele fez com que todos revissem suas opiniões.
"Esse tipo de estudo permite que as crianças entendam as origens das diferenças
sociais entre as etnias no Brasil", diz Martha Abreu, professora da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Tal abordagem exige um planejamento cuidadoso e
uma boa curadoria das fontes que serão usadas. Antonia Terra de Calazans
Fernandes, docente da Universidade de São Paulo (USP) e selecionadora do
Prêmio Victor Civita Educador Nota 10, sugere que sejam analisados materiais de
diferentes naturezas: cartas, obras literárias, fotos, gravuras e biografias, como as
do livro Memórias do Cativeiro (Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, 304 págs., Ed.
Record, tel. 11/3286-0802, edição esgotada). O objetivo é desconstruir o senso
comum e aprender, por exemplo, que muitos cativos tinham papel ativo nas
decisões sobre seu futuro e nem sempre eram vistos como mercadorias. Devem
ser mostradas situações do cotidiano, como as de convívio familiar, sempre
convidando a turma a refletir sobre as fontes analisadas, com perguntas como
"Qual era a posição social do produtor desse material?" e "Quando foi
produzido?". A questão das punições precisa ser tratada com cautela. "Não
podemos bombardear as crianças com imagens de sofrimento. Imagine como se
sente um aluno negro diante disso", defende Antonia.

O principal recurso usado por Araújo foi uma fonte primária produzida durante o
período estudado: exemplares do jornal O Leopoldinense, disponíveis na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde há periódicos de todo o país.
"Trabalhar com essas fontes é um exercício de olhar muito rico. O estudante
compara versões e formula hipóteses", comenta Sonia Regina Miranda, docente
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

As crianças foram convidadas a procurar nos textos menções aos escravos. "Elas
encontraram diversos anúncios, tanto de senhores que buscavam por negros
fugidos como daqueles que queriam vender trabalhadores", afirma Araújo. Em
sala, a garotada teve de analisar o material. "A escrita dos textos era diferente da
de hoje. Tebas está escrito com H", diz Gina de Rezende Oliveira, 11 anos. Vitor
Pinheiro Mendes, 12 anos, conta que encontrou anúncios em que os senhores
buscavam por um escravo que sabia ler e escrever. "Isso significa que alguns
também tinham estudo. Então não era só sofrimento a vida deles!", concluiu.
Antonia recomenda também que o professor aproveite esse momento para
problematizar o contexto de produção das informações analisadas. "É natural que
o anunciante queira destacar só as boas características daquela mercadoria",
exemplifica. Todas as conclusões eram registradas no diário de bordo, caderno
que cada aluno manteve durante o trabalho. Semanalmente, o professor recolhia
o material para verificar como a sala estava avançando. "Quando notava que
alguém não havia entendido algo já discutido, eu retomava o assunto", explica.

Com base na descoberta de que existiram negros cativos no local, a turma


passou a procurar mais pistas sobre o assunto. A pesquisa começou no
laboratório de informática da escola. Araújo sugeriu que todos buscassem
informações em textos e blogs de pesquisadores indicados por ele. Ali, os
estudantes descobriram que o município possuía a segunda maior população de
cativos em 1888, quando foi promulgada a Lei Áurea. A maioria trabalhava no
plantio de café.

História, memória e narrativas orais

Se tantos escravos tinham vivido na região, era provável que a história deles
ainda estivesse em circulação pelo distrito. Pensando nisso, o professor propôs
que a classe fosse a campo ouvir antigos moradores. "Esse contato com os mais
velhos humaniza o conhecimento histórico", explica Sonia. Antes, todos
montaram coletivamente uma pauta de entrevista. "O professor ajudou em nossa
preparação: fomos pensando juntos nas perguntas e ele anotava no quadro",
conta Christoff da Silva Cirino, 11 anos. Quando surgia uma questão que não era
adequada ao contexto, Araújo questionava: "Será que essa dúvida está
relacionada ao nosso tema?". A turma repensava, então, a necessidade de incluí-
la.

O professor deixou claro que os estudantes podiam reformular as perguntas no


momento das conversas, que foram gravadas em vídeo. "Quando fui entrevistar a
dona Jacyra da Silva Coelho, 100 anos, foi difícil fazer com que ela entendesse
tudo. Então, eu repetia, mas de um jeito diferente", conta Paula Balbino Leal, 12
anos. "Também pulava perguntas de acordo com a resposta anterior. Em sala,
nós tínhamos conversado que poderiam surgir outras dúvidas na hora, e foi o
que aconteceu", completa. Foi nessa etapa do estudo que a meninada conheceu a
história de Maria Preta, ex-escrava que no início do século passado vagava por
Tebas e seus arredores. Hoje, uma capela da cidade tem o nome dela.

Ao fim do projeto, o professor constatou que as visões estereotipadas do início


tinham sido desconstruídas. O negro passou a ser visto como um ser humano
completo, com distrações, afetos, capacidade intelectual e desejo de ser liberto.

1 O que já sabemos Faça um diagnóstico para saber quais são os conhecimentos da


garotada sobre a escravidão. Considere perguntar: "Como era a vida dos escravos no
Brasil?", "Como ocorreu sua libertação?" e "Houve cativos na nossa região?".

2 Novas fontes, nova visão Leve a classe a refletir sobre fontes como biografias,
cartas e imagens que tratem do país e de sua região. Questione: "Quem as
produziu?", "Qual sua intenção ao fazê-lo?" e "Existem outras visões sobre esse
tema?".

3 História dos mais velhos Proponha que a turma realize entrevistas com
moradores mais velhos da região para descobrir vestígios da escravidão. Auxilie na
montagem da pauta e oriente todos a registrar os encontros em vídeo, áudio ou texto
escrito.

Vídeo com análise de fotos de escravos e homens libertos:

Vídeo: //www.youtube.com/embed/SxCqzWLEMCk

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