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MULHERES E DEUSAS

Um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina

Andréa B. Osório

IFCS/UFRJ
Mestrado em Sociologia e Antropologia
PPGSA

Profa. Dra. Mirian Goldenberg


Orientadora

Rio de Janeiro

2001
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MULHERES E DEUSAS
Um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina

Andréa B. Osório

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e


Antropologia – PPGSA, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em
Sociologia (com concentração em Antropologia).

Aprovado por:

________________________________
Profa. Dra. Mirian Goldenberg - Orientadora

________________________________
Profa. Dra. Patrícia Birman

________________________________
Profa. Dra. Yvonne Maggie

________________________________
- Suplente

Rio de Janeiro

2001
iii

Osório, Andréa B.
Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre
bruxaria wicca e identidade feminina / Andréa B. Osório.
Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001.
vi, 302pp.
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IFCS.
1. Bruxaria. 2. Identidade Feminina. 3. Nova Era. 4.
Tese (Mestr. – UFRJ/IFCS/PPGSA). I. Título.
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RESUMO

OSÓRIO, Andréa B. Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e


identidade feminina.
Orientadora: Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001. Diss.

Na literatura antropológica, a bruxaria é invariavelmente o espaço do malefício e das


acusações. No entanto, é possível verificar hoje, no Brasil, um grupo de mulheres – e homens –
que vê na bruxaria um espaço religioso vinculado ao paganismo e ao culto da natureza, onde uma
Deusa e um Deus são adorados com atributos sexuais e de gênero bem marcados. Esta bruxaria
moderna, vinculada em parte ao mundo esotérico da Nova Era, é chamada wicca. Nesta
cosmologia, o feminino representa um papel central, o que permite que a wicca seja um local de
construção de uma determinada identidade feminina. Sujeito classicamente vinculado à natureza,
a mulher mantém essa ligação na wicca e, conseqüentemente, sua ligação com a magia. A
reafirmação da diferença e dos atributos tradicionais de gênero é, do meu ponto de vista, a
intenção de construir um novo papel para a mulher.
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ABSTRACT

OSÓRIO, Andréa B. Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e


identidade feminina.
Orientadora: Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001. Diss.

At the anthropologic tradition, witchcraft is always seen as the space of evil and
accusations. Nevertheless, there is a group of women – and men - in Brazil nowadays that sees
witchcraft as a religious space in the pagan field and earth cults, where a Goddess and a God are
honored within strong lines of sexual and gender attributes. This modern witchcraft, here seen as
part of the New Age movement, is called wicca. In this cosmology, the feminine represents a
central role, and it allows wicca to be a space of building a certain female identity. Classically a
subject in very straight touch with nature, the woman keeps this association within the wicca and
consequently her association with magic. The affirmation of the traditional difference and
attributes of gender is, in my point of view, the intention of building a new role for the woman
today.
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AGRADECIMENTOS

À orientação dedicada e competente de Mirian Goldenberg, sempre disponível e disposta


a dar apoio. Sua inesgotável paciência, generosidade e respeito contribuíram em definitivo para o
sucesso desta pesquisa.

A todos que se dispuseram a conceder seus depoimentos, abrindo suas casas e corações,
contribuindo para a viabilização desta dissertação.

À Yvonne Maggie e Patrícia Birman, cujas valiosas sugestões em muito contribuíram


para o desenvolvimento de minhas reflexões.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes) que, com a concessão da bolsa de


estudos, permitiu a dedicação plena a esta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e


Ciências Sociais, solo fértil onde amadureci minhas reflexões.

Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Paulo, Heloísa


e Fernando, sempre amáveis e disponíveis a resolver eventuais problemas. Seus apoios foram
fundamentais na elaboração desta dissertação.

A Alexandre Veronese, amigo de todas as horas, cuja paciência, dedicação e amor serão
sempre lembrados.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................................1

CAPÍTULO 1: Considerações Teóricas sobre a Bruxaria Wicca................................................13


A Bruxaria Wicca: o que é?...............................................................................................14
Wicca como Parte da Nova Era..........................................................................................36
Bruxaria e Identidade Feminina..........................................................................................48
Reflexões sobre a Wicca.....................................................................................................69

CAPÍTULO 2: A Teórica do Campo: o pensamento de Márcia Frazão.......................................71


Márcia Frazão: uma bruxa hereditária................................................................................76
O Pensamento de Márcia Frazão: visões de bruxaria e feminino.......................................94
Reflexões sobre a Identidade de Bruxa.............................................................................126

CAPÍTULO 3: Para Compreender a Wicca no Brasil................................................................132


Perfis e Acusações: entrevistas com bruxas cariocas.......................................................136
Formação e Concepções de Coven .................................................................................168
Internet na Formação e Disputa de um Grupo..................................................................209
Pensando o Perfil das Bruxas Estudadas..........................................................................245

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................................257

APÊNDICE 1: Resenhas da Obra de Márcia Frazão..................................................................270

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................298
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INTRODUÇÃO

A bruxaria tem sido um tema amplamente estudado pela antropologia, rendendo a este
campo de saber obras clássicas e importantes. O uso e a crença na magia têm sido estudados tanto
em sociedades simples quanto complexas. No Ocidente, principalmente a partir da Inquisição, a
bruxaria se tornou um domínio quase exclusivamente feminino, e a bruxa passou a tomar a forma
de uma mulher diabólica. As acusações de malefício, que a antropologia recolheu em inúmeras
sociedades, se tornaram parte da idéia que temos sobre bruxaria. O uso da magia e o conluio com
forças maléficas e diabólicas fazem parte do imaginário ocidental a respeito da bruxa. Esta figura
já folclórica, parte dos contos de fadas, preserva ainda hoje sua face malfazeja na literatura
infantil, no folclore, nos filmes do cinema. A mulher má, umas vezes velha e feia, outras jovem e
sedutora, lasciva, desregrada, sem laços de parentesco ou solidariedade, por vezes suja e louca,
ainda povoa o imaginário ocidental. É uma mulher a ser temida.
Esta bruxa que vive nos contos infantis parece, contudo, estar saindo das páginas
empoeiradas dos livros para ganhar espaço no mundo moderno. Participando de programas de
televisão, atuante da imprensa especializada em esoterismo, publicando obras próprias, a bruxa
folclórica parece ter tomado uma roupagem moderna: não voa mais sob o céu noturno montada
numa vassoura nem ostenta a face enrugada cheia de verrugas, não traz consigo o chapéu em
forma de cone nem o gato preto, mas continua mexendo seu caldeirão fumegante, misturando as
ervas de seus feitiços e poções, proferindo palavras mágicas rimadas a um movimento da varinha.
A bruxa moderna emerge, assim, para contar sua própria história. Ela não é mais agente do
malefício, mulher diabólica, desprovida de laços de solidariedade. Ela agora pode ser mulher
casada, com filhos, profissão e um emprego fora da dimensão doméstica. Não é mais a
camponesa tosca, perdida no âmago da floresta, raptando crianças que cozinhará em seu
caldeirão. Ela é uma mulher com alto grau de instrução, pertencente à classe média, habitante
urbana, em contato com outras bruxas. A bruxaria para ela agora é religião.
Ao nos depararmos com esta nova bruxa, várias questões surgiram. Em primeiro lugar, a
pergunta sob a qual muitos já se debruçaram antes: o que há de tão específico que inclina a
mulher à bruxaria? Mas desta vez não se tratava de desvendar páginas passadas, e sim presentes.
O que faz uma mulher moderna do Brasil contemporâneo procurar na bruxaria uma religião e
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assumir publicamente sua condição de bruxa? Qual o processo que permite inverter a valoração
negativa da categoria bruxa, transformando-a? Que bruxaria é esta, moderna, que recrutou seus
praticantes entre os jovens e as mulheres urbanas de classe média? Que conjuntura é esta que
permite que esta crença floresça e tome determinados sujeitos como seus membros; o que estas
mulheres buscam na bruxaria que a sociedade mais ampla não lhes dá; como o embate entre o
tradicional e o moderno estaria acontecendo nos diferentes níveis deste processo.

* * *

Encontramos a bruxa moderna, num primeiro momento, nas prateleiras das livrarias, nas
seções de esoterismo e auto-ajuda. Títulos como “Conversas com uma feiticeira” e “Revelações
de uma Bruxa” chamaram nossa atenção. Havia uma série de obras em parte autobiográficas de
bruxas descrevendo seu cotidiano - o uso da magia, o aprendizado da bruxaria – disponível para o
grande público. São obras que mesclam uma narrativa charmosa sobre o que é uma bruxa com a
intenção clara da auto-ajuda, seja na conversão do leitor à bruxaria, seja na transformação interna,
subjetiva. O ramo literário da auto-ajuda e do esoterismo é um dos mais lucrativos no país,
especialmente após o fenômeno Paulo Coelho. Esoterismo e auto-ajuda se tornaram quase que
um ramo único, que o leitor mediano consome como se fosse um só. É nesta conjuntura que a
literatura sobre bruxaria começa a tomar maior volume no país. Ela não é encontrada apenas nas
lojas esotéricas, mas nas grandes livrarias e eventualmente um livro sobre bruxaria se torna best-
seller.
Se o movimento de revelação das bruxas nos chamou a atenção, foi a partir da leitura
desses livros que a curiosidade de antropóloga emergiu. Os autores eram, como continuam sendo
ainda hoje, em sua maioria mulheres. Havia, então, apenas uma autora brasileira. Dirigiam-se
normalmente para um público feminino e raramente personagens masculinos entravam na
narrativa. Dava-nos a impressão de ter ingressado num mundo mítico constituído apenas de
mulheres. Havia homens, é claro, mas não dominavam a narrativa. Não eram mestres nem
superiores, pelo contrário: eram o filho, um parente, o cônjuge ou um incrédulo, mas dificilmente
um bruxo. A bruxaria emergia, sob nossas vistas, como um espaço eminentemente de mulheres.
A leitura mais precisa dessas obras indicava uma inclinação para um universo feminino. O
mundo se transforma sob a ótica das bruxas: Deus passa a ser mulher e a natureza é expressão
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dessa divindade; a magia é uma forma de compreender o mundo, e fornece as explicações que a
limitada ciência não possui; a arte passa a manter uma ligação intrínseca com a magia, numa
associação que exclui a racionalidade científica; o mundo de hoje passa a ser visto
pejorativamente, como um mundo masculino e caótico. Estas concepções nos pareciam o inverso
do que é corrente na sociedade ocidental. A valoração parecia invertida: para as bruxas, a
natureza vale mais que a civilização; o feminino é mais sofisticado e positivo que o masculino; a
modernidade é caótica; a ciência não explica o mundo. Surgiu a questão: que sistema de
pensamento é esse? E que momento vivemos hoje que permite este tipo de pensamento?
Muitas questões foram levantadas, ao longo desta dissertação, pois o tema é amplo e
dialoga com assuntos importantes. O que norteou a pesquisa, contudo, foi a preocupação com as
discussões de gênero. Tínhamos em mente a idéia de que a bruxa é mulher, de que o espaço da
bruxaria é feminino, e nos perguntávamos o porquê. Paralelo a esta percepção, a bruxaria
moderna como era apresentada nesta literatura produzida pelas bruxas parecia engendrar uma
concepção de gênero com valorações distintas daquelas da sociedade em geral, o que nos parecia
permitir a construção de um pensamento distinto do dominante, a ponto de apresentar-se como
proposta para uma nova ordem social. Esta hipótese nos indicava que as concepções de gênero
poderiam ser a raiz de uma nova visão de mundo que tentava oferecer soluções para o que julga
serem problemas das sociedades contemporâneas. Essas soluções apareciam sob a égide de uma
nova ordem, mais justa e equânime, a ser um dia alcançada. Não havia, portanto, apenas a
preocupação com a bruxa, a mulher que abraçava estas concepções, mas surgiu também o
questionamento acerca destas concepções, o que indicariam sobre a sociedade em que vivemos,
quais problemas viam e quais as soluções que apresentavam. A centralidade da mudança estava
na mulher e na natureza, não no trabalho, na ordem econômica ou política. A mudança proposta
era no cotidiano, na maneira de lidar com o feminino e a natureza – já quase sinônimos – e não na
reestruturação de uma luta política. O cotidiano seria capaz de promover a mudança em outras
esferas, a econômica e a política incluídas, pois o pensamento das bruxas fornece uma lógica
explicativa para o mundo de hoje e propõe a sua mudança.

Está claro que a bruxaria da qual tratamos não é a mesma dos tempos medievais e do
começo da modernidade. É uma bruxaria moderna, revista para que feitiços possam ser
executados no microondas, para que as bruxas se reúnam pela internet, para que os misteriosos
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grimórios que guardavam ritos e feitiços secretos sejam hoje publicados em várias edições. Nem
os tempos hoje são os mesmos, permeados pela mesma fé religiosa ou pela crença salvadora na
ciência. Hoje, as igrejas pentecostais crescem com a conversão das classes populares e
eventualmente da classe média. Mas esta tem realizado um movimento próprio, a conversão à
Nova Era, da qual julgamos que a bruxaria moderna – chamada wicca – faz parte.
Na literatura antropológica, a bruxaria é invariavelmente o espaço do malefício e das
acusações. Para as bruxas modernas, a bruxaria wicca é um espaço religioso vinculado ao
paganismo e ao culto da natureza, onde uma Deusa e um Deus são adorados com atributos
sexuais e de gênero bem marcados. Os atributos femininos e masculinos se alinham em pólos
complementares e opostos, onde o feminino é valorado positivamente. Nesta religião, o feminino
representa um papel central, o que permite que a wicca seja um local de construção de uma
determinada identidade feminina. Sujeito classicamente vinculado à natureza, a mulher mantém
essa ligação na wicca, e conseqüentemente sua ligação com a magia. A reafirmação da diferença
e dos atributos tradicionais de gênero é, do nosso ponto de vista, a intenção de construir um novo
papel para a mulher. Ao mesmo tempo, a wicca é hoje um dos poucos espaços religiosos que
permite que a mulher atue como sacerdotisa, numa hierarquia religiosa que a eleva à posição
principal.
Posto de outra maneira, começamos a nos perguntar em que medida esta lógica
explicativa de mundo da bruxaria, suas concepções e atribuições de gênero não estavam
formulando uma identidade para a mulher. Se os manuais propunham uma mudança do mundo,
havia uma crítica. Esta crítica baseava-se, freqüentemente, em categorias como sociedade
patriarcal, ciência objetiva, pensamento retilíneo. O masculino apresentava-se imbuído em
valores negativos. Um novo masculino parecia ter que emergir para este novo mundo enquanto
um determinado feminino deveria ser acessado. E que feminino seria esse? Que identidade seria
essa que permite às bruxas formular uma nova ordem calcada numa determinada mudança dos
padrões de gênero?
Na leitura dos manuais, parece haver um feminino vinculado a atribuições tradicionais de
gênero. A mulher mantém sua estreita ligação com a natureza, mantém-se como sujeito
privilegiado da magia, cujo espaço é o doméstico, vinculada à procriação e à criação dos filhos,
bem como à transmissão de cultura. E, de fato, as bruxas reelaboram sua história como grupo,
criando uma História da bruxaria como religião que se reporta a épocas pré-históricas. A busca
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do tradicional é tão forte que se estende até os primórdios da humanidade. É o lugar do


matriarcado, espécie de paraíso perdido que deve ser resgatado, agora sob a forma de
matrifocalidade. A ênfase continua recaindo sob o feminino. Contudo, a bruxa não se prende ao
tradicional, apenas faz recurso a ele. Como sujeito de seu tempo histórico, ela está inserida no
movimento mais amplo da sociedade. Como mulher, apóia as conquistas feministas embora possa
não vir a se definir como feminista. Como profissional, busca uma carreira de sucesso fora da
esfera doméstica, alinhada com suas necessidades como sujeito, e neste sentido a própria bruxaria
pode se tornar profissão.

Entre a teoria e a prática

Para a compreensão deste discurso apresentado pelas bruxas em seus livros, recorremos à
análise da obra de Márcia Frazão. Bruxa e escritora, publicando no mercado interno desde 1991,
sete obras lançadas, esta autora é a pioneira da bruxaria no país em termos literários. Apenas em
1998 surgiu outra publicação sobre wicca que não proviesse de Frazão. Ela se tornou referência
na bruxaria wicca para o Brasil e uma liderança desse campo.
Não foi apenas pela sua importância como pioneira num mercado em expansão que a obra
de Frazão é importante para nossa análise. Há concepções do que a bruxaria é e representa
permeando todos os seus livros, e de como ela se opõe ao mundo moderno. Neste contexto, a
bruxa emerge definitivamente como mulher marginal, à frente de seu tempo, procurando soluções
para os problemas que um mundo masculino impôs ao ser humano e à natureza. Misto de auto-
ajuda – quando procura guiar as leitoras no lento processo de transformar-se em bruxa, que
significa romper com os padrões atualmente dominantes - e manual de bruxaria – quando dá
receitas de meditações, feitiços e rituais - as obras da autora venderam juntas em torno de
duzentas mil cópias.
As obras de Frazão fornecem, na verdade, indícios importantes para compreendermos o
pensamento da wicca e das bruxas. Por muitas vezes as bruxas que entrevistamos expressaram
pontos de vista presentes nas obras de Frazão. Embora ela não tenha se tornado espécie de mestra
ou guru, pelo contrário, é alvo de crítica das bruxas, a pesquisa de campo nos permitiu ver na
autora uma pioneira não apenas na exposição pública como bruxa ou na dedicação ao tema da
bruxaria. Mesmo quando não é nominalmente citada, há idéias presentes em seus livros que
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observamos no discurso das bruxas brasileiras, sobretudo as entrevistadas. É na obra de Frazão,


também, que as questões de gênero pertinentes se apresentam mais claramente dispostas, num
raciocínio que tenta explicar o mundo moderno.
A bruxa de Frazão é mulher livre, de sua condição marginal à sua sexualidade; é mulher
sábia, que guarda segredos desvendados apenas pela sensibilidade feminina, conhecimentos que
um homem jamais acessaria da mesma forma e com a mesma intensidade; é mulher
revolucionária, pois está fora da ordem dominante, é marginal. Ao mesmo tempo, a bruxaria se
desenvolve sempre no espaço doméstico, na cozinha, entre facas, vassouras, ervas, taças e
panelas, no quintal da casa, no cuidado doméstico, nas relações familiares. Esse universo
feminino tradicional levanta, mais uma vez, a questão sobre a ligação da bruxaria com o universo
feminino.

* * *

Todo pesquisador atento sabe que entre a teoria e a prática vai um longo caminho. A
questão de gênero aparece como fundamental na compreensão da wicca segundo apresentada nos
manuais. Mas seria também uma questão pertinente às bruxas em seu cotidiano? Estariam elas
preocupadas com isto, elaborando análises sob o mundo moderno e tentando mudá-lo? Não havia
outra maneira de estabelecer esta comparação que não passasse por um contato direto com elas.
Poderíamos, deste modo, também definir um perfil para as bruxas modernas brasileiras. Foi
assim que nos dedicamos, entre 1999 e 2000, a realizar entrevistas com bruxas cariocas. No total
foram oito entrevistas, com sete mulheres e um homem. O único representante masculino é
marido de uma das bruxas entrevistadas, também bruxo, e desta forma foi realizada uma
entrevista conjunta com os dois.
Os perfis obtidos através destas entrevistas constam do capítulo 3, que é dedicado à
análise do trabalho de campo. As bruxas surgem como pessoas com aceso ao ensino superior, em
profissões ligadas ao mercado esotérico, algumas casadas, outras separadas, e metade delas com
filhos. Tentamos traçar, segundo seus relatos, o percurso religioso percorrido na esperança de
entender o movimento que as levou a se tornarem bruxas. Foi assim que descobrimos que a wicca
é alcançada após uma busca. O sentido da busca é o de encontrar algo que dê expressão a
sensações interiores do indivíduo. Não é raro que uma bruxa afirme que procurava aquilo em que
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sempre acreditou, uma crença que ela não conhecia, nem ao menos sabia que nome dar, mas que
já existia internamente. A busca é o processo pelo qual se encontra a expressão da crença. É com
esta mesma lógica que algumas afirmam que não se tornaram bruxas, mas que sempre o foram. A
categoria bruxa se define na crença: existindo internamente a crença, era já uma bruxa. É assim
que o aprendizado da bruxaria se diferencia da conversão. A conversão pode ser vista como
anterior ao aprendizado, que é apenas a conseqüência do fim da busca.
Como os relatos lidam sempre com a reformulação, por parte do entrevistado, de sua
própria história de vida, deve-se ter em mente que nossa análise partiu da narrativa das bruxas
sobre si mesmas, dessa reapropriação posterior dos fatos. Trata-se de uma análise sobre a maneira
como as bruxas pensam, uma análise sobre o seu discurso. Tanto do ponto de vista da literatura
por elas produzida quanto de seus perfis, o que analisamos é o discurso que elas apresentam sobre
a wicca e sobre a própria bruxa.

Através das entrevistas começamos nossa imersão no campo. Freqüentamos diferentes


encontros de bruxas, organizados por diferentes grupos, participamos de um ritual, visitamos a
casa de algumas delas, conhecemos parte de suas famílias, observamos as discussões teóricas
sobre a bruxaria, as acusações, seu gosto musical, suas profissões, faixa etária, maneira de se
vestir. O que mais nos chamou a atenção, contudo, foi a profusão de encontros e bruxas que
haviam se conhecido através da internet. A bruxa, identidade tão tradicional, agora se
comunicava pela modernidade da rede virtual.
Instigados pela situação, decidimos ingressar nas listas de discussão que promoviam os
encontros. A correspondência trocada pelas listas nos suscitou novos questionamentos, ao mesmo
tempo em que permitia compreender melhor o campo da wicca no país, e o próprio diálogo entre
as concepções nativas e as importadas. A wicca é um sistema europeu trazido para o Brasil a
partir, principalmente, de uma literatura importada, de alguns poucos pioneiros, e da própria
internet. A facilidade de se obter informação pela rede é um dos pontos que marcam a crescente
popularização da wicca no país, fazendo com que as trocas entre as bruxas tenham aumentado,
possibilitando até mesmo a idéia de um encontro nacional anual de bruxas, que ocorre desde1999
em Brasília.
A partir da participação na internet, que será apresentada no capítulo 3, algumas questões
surgiram e outras se esclareceram. Em primeiro lugar, a correspondência trocada nas três listas
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que participamos permitiu obtermos um perfil das bruxas internautas que não se diferenciava
muito daquele obtido nas entrevistas. Desta forma, um perfil das bruxas wiccanas estudadas pode
ser definido. Em segundo lugar, a internet se mostrou um campo de atuação real para estas
bruxas, não no sentido da prática de magia, mas no sentido de formar uma comunidade,
estabelecer laços, lideranças e disputas. O peso da internet é tão grande que é através dela que a
liderança de Márcia Frazão tem sido posta em cheque. É nesta rede virtual que algo próximo a
uma comunidade tem sido formada, o que possibilitou o encontro nacional de Brasília e
possibilita a disputa pela liderança do campo, que se reverte em status e dinheiro, pois muitas
lideranças têm como profissão – ou segunda fonte de renda - a bruxaria: são escritores, dão
cursos, jogam oráculos, mantêm espaços dedicados à bruxaria.
Como a internet é um meio de comunicação mediada, cuja interação não se dá em tempo
real, novamente recaímos na análise de discursos. Poderíamos, apesar de tudo, ter seguido outro
caminho. O material escrito, a mensagem do correio eletrônico, é complementado pela interação
face-a-face dos encontros. Freqüentamos sete encontros de listas de discussão. Foi nesse trânsito
pelo campo que percebemos a presença de homossexuais masculinos entre os praticantes de
wicca, após sermos alertados pelas bruxas entrevistadas de que eles constituíam a maioria dos
homens bruxos. Sem dúvida, apenas a análise do discurso não teria nos dado a dimensão dessa
constatação: eles de fato existem, mas há também um certo número de bruxos que não é
homossexual. Este é um exemplo de como o discurso, muitas vezes, encobre o fato real. Estamos
cientes de que no caso da homossexualidade, a observação foi crucial. Em outros pontos, ela
apenas mantinha o discurso. Queremos dizer com isso que, embora tenhamos conscientemente
valorizado o discurso das bruxas em nossa análise – através da literatura, das entrevistas, de e-
mails – o campo não foi abandonado, nem se tornou uma fonte menor.
Em se tratando de uma religiosidade tão recentemente chegada ao país, que se desenvolve
principalmente a partir de fontes escritas, sejam elas literárias ou virtuais, optamos pelo contato
direto com estas fontes mais do que por uma eventual tradição oral. Não acreditamos, após a
análise do campo, que uma tradição oral da bruxaria européia realmente exista no país. Desta
forma, nos encaminhamos para aquilo que nos parecia mais certo e passível de verificação. Há
bruxas que afirmam que seus conhecimentos foram adquiridos dentro da família, com base em
uma cultura oral própria. Se tivéssemos optado por este caminho, este trabalho teria se
desenvolvido em função destas tradições familiares e abandonado a “cultura escrita” da wicca.
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Essas tradições orais são, de nosso ponto de vista, menos a wicca – que nos propusemos estudar –
do que reminiscências de antigas crenças populares, de origem européia ou não. Não é a tradição
popular ancestral que vem se popularizando, mas um sistema formulado continuamente sob o
nome de wicca e que se remete a esta tradição em menor grau do que aos conhecimentos
difundidos pela Nova Era. Neste sentido, entendemos que a wicca se propaga sobretudo através
de fontes escritas, e tentamos nos manter alinhados com este movimento.

A imersão no campo nos possibilitou também refazer a história de um grupo de prática de


wicca. A partir desta reconstrução, que se faz novamente com base no discurso, pois o grupo em
questão havia já rompido laços quando começamos a entrevistar alguns de seus membros,
entendemos a dinâmica de funcionamento de um coven, que se mostrou idêntica à do grupo mais
amplo das bruxas do país, como foi possível observar através da internet. A mesma estratégia de
disputa e acusação foi usada pelas lideranças da wicca no país e pelas lideranças do coven
estudado, como se ele fosse o microcosmo de um recorte mais amplo. Desta forma,
estabelecemos um perfil amplo do campo da wicca no país, fazendo um levantamento dos perfis
de seus praticantes, o percurso religioso, acusações, disputas, organização. Não nos limitamos,
portanto, à análise do discurso, mas conseguimos elaborar um panorama mais vasto de modo a
retratar o que a wicca é no Brasil, que público atinge, o que propõe e o que traz de novo. A idéia
era, fundamentalmente, entender o resgate da bruxa como uma identidade feminina, entender o
que ela traz para quem a procura e que sociedade é esta que permite que ela se realize.
Quando analisamos a história de um coven, traçando seu perfil como vínhamos fazendo
com sujeitos individuais, percebemos o quanto a idéia de família é forte entre as bruxas. O coven
aparece em todos os relatos, sejam eles das bruxas entrevistadas, dos membros do coven ou na
literatura, fortemente marcado pela idéia de que ele é uma família, a família da bruxa. Desta
forma, o universo doméstico da bruxaria permanecia intacto, pois a família se refere ao mundo
privado. A família apareceu também de maneira marcante nos diversos relatos sobre a existência
de outras bruxas entre os parentes, ou nos relatos de aprendizado da bruxaria dentro de uma
tradição familiar.
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Bruxaria no Brasil

Ao começarmos a pesquisa bibliográfica, já tínhamos a pergunta sobre a identidade da


bruxa em mente. A hipótese colocada era a de que esta identidade trazia fortes concepções de
gênero que de alguma forma agradavam à mulher que se tornava bruxa, e restava saber o porquê.
Ao longo da pesquisa de campo, observamos que a identidade de bruxa não consistia apenas em
uma identidade feminina. Ela englobava categorias profissionais. Os perfis das bruxas indicavam
que ela estava restrita a pessoas de classe média, de centros urbanos, com alto grau de
escolaridade formal e com determinado percurso religioso. Este último dado abriu mais uma série
de questionamentos, pois os perfis não eram apenas parecidos na conjuntura sócio-econômica,
mas também no caminho relatado pelas bruxas. O sentido de busca havia feito com que muitas
partissem da religião da família - catolicismo, no caso das entrevistadas, e espiritismo ou
catolicismo no caso das internautas – em direção a outras formas de religiosidade distantes
daquela, em maior ou menor grau, culminando com o ingresso na Nova Era.
Estes percursos são importantes para compreendermos que a conversão à wicca não
constitui somente uma adesão a uma determinada identidade de gênero, mas a uma identidade
que vai mais além, que indica um determinado percurso pessoal, visto aqui a partir da religião,
mas que não se atém a ela: há uma tendência profissional, religiosa, de gênero que indicam uma
busca por status, uma busca por um lugar no mercado de trabalho, uma busca por ascensão social
que se apresenta como um distanciamento da cultura popular. A bruxa que abandona o
catolicismo da esfera familiar – nem sempre considerado a religião individual do sujeito em
questão – não recorre a quaisquer outras religiões, mas engendra um percurso de afastamento em
direção a formas mais mágicas de sagrado. Deste modo, o espiritismo e a umbanda costumam ser
o próximo passo, raramente o candomblé, pois como as religiões pentecostais ele é associado às
classes baixas. Após este percurso, a bruxa entra em contato com diferentes correntes
participantes da Nova Era, e se estabelece em definitivo neste espaço, seja através do budismo,
das religiões orientais ou das ordens herméticas.
Quando nos perguntamos sobre a centralidade da questão de gênero para a compreensão
da identidade de bruxa, uma outra questão veio à tona: o candomblé é também uma religião que
lida com o feitiço, e onde as mulheres se apresentam em situação privilegiada; por que, então,
estas bruxas optaram pela bruxaria moderna européia? Uma primeira hipótese é a de que
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candomblé e wicca não fornecem aos seus seguidores as mesmas vantagens. Uma segunda é de
que as concepções de gênero não são idênticas. Uma terceira é a idéia de que há um afastamento
de formas religiosas populares por parte da classe média em vias de ascensão. Estas três hipóteses
não são excludentes.
Na busca por esse entendimento, percebemos que, de fato, a wicca faz recurso a formas
religiosas estrangeiras, afastando-se tanto quanto possível das nacionais. Em um primeiro
aspecto, isto se dá pela adoção de elementos mágicos oriundos de tradições importadas,
sobretudo as européias. Em um segundo aspecto, as formas mágicas nacionais são, de modo
geral, rechaçadas. Por outro lado, a crença na magia instituída na sociedade brasileira lida, em
grande medida, com idéias como possessão, mediunidade e feitiço. Isso abre espaço para a wicca,
pois a crença na magia existe. Mas a crença na magia segundo o sistema da wicca não é o mesmo
que a crença nacionalmente instituída. Desta forma, observamos que crenças estrangeiras em
fadas e gnomos convivem com a idéia de que a bruxa é médium, o que não está escrito em
nenhum manual de wicca. A tradição brasileira, nesse sentido, foi incorporada pelos praticantes
de wicca no Brasil, em grande parte pela influência do espiritismo. Para aqueles preocupados
com a ruptura total entre a wicca estrangeira e a magia brasileira, a possibilidade de troca cultural
é invalidada e rechaçada, e só a cultura estrangeira é consumida, venha de que lugar vier. A bruxa
toma forma, então, não somente a partir da busca ou do aprendizado de um sistema determinado,
a wicca, mas também através de concepções brasileiras, como a idéia de dom ligada à de
mediunidade.
Percebemos que a crença na magia no Brasil mantém-se ainda como um dado que
permeia toda a sociedade brasileira. A classe média, contudo, tem atualizado esta crença através
da Nova Era. De fato, percebemos a wicca como uma das inúmeras correntes participantes do que
se convencionou chamar de movimento Nova Era. Tanto as suas críticas ao mundo moderno
quanto as suas concepções de um mundo ideal e o perfil de seus praticantes em muito se
assemelham as da Nova Era. Neste sentido, a wicca parece ser uma atualização da bruxa
tradicional e ao mesmo tempo uma reação aos papéis tradicionais de gênero.
A magia tem ingressado no imaginário da classe média urbana nacional agora também
através da influência da Nova Era. Vista como uma crítica à modernidade, pré-moderna ou pós-
moderna, ela tem servido como espaço de atualização das crenças nacionais em magia.
Procedendo ao que tem sido chamado de um reencantamento do mundo, e baseando-se em
12

culturas tradicionais como seus pontos de referência, a Nova Era permite um ambiente onde a
crítica à modernidade é composta com recurso ao tradicional, mas sempre visando uma
reformulação social que não é tradicional. Afinal, a bruxa moderna não pensa em voltar a ser
agente do malefício, tanto quanto a mulher moderna não deseja ser novamente a rainha do lar. Há
uma nova identidade na bruxa moderna que está sendo formulada para mulheres modernas, que
faz recurso ao tradicional visando ganhos que a modernidade ainda não alcançou. A crítica ao
patriarcado não visa a volta ao matriarcado, mas a constituição de sociedade matrifocal1.
Desta forma, entendemos que há um constante diálogo entre tradicional e moderno,
expresso tanto através da Nova Era quanto dos percursos religiosos das bruxas estudadas. A
tradicional categoria bruxa é reformulada, e agora anda em chats, home pages e mailing lists da
internet. A tradicional polarização complementar de masculino e feminino é retomada e
transformada na medida em que as valorações são invertidas. O paganismo é acessado e entra
num embate com as formas cristãs. A magia passa a explicar o mundo, e a ciência se torna um
modelo insuficiente para explicar a realidade, embora não se possa negar sua validade, recaindo
no conjunto de atributos negativamente valorados. Nesta conjuntura, não é mais de causar
estranheza que as bruxas freqüentem a internet.

____________________________________
1 - Não vamos discutir a realidade da matrifocalidade para determinados grupos sociais. Está claro que no Brasil as
classes populares viveram, em alguma medida, essa realidade. Estamos, contudo, tratando de sujeitos oriundos da
classe média.
13

CAPÍTULO 1

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A BRUXARIA WICCA

Neste primeiro capítulo faremos uma imersão na teoria sobre o campo. A bruxaria e a
magia são temas freqüentes na antropologia. Foi necessário recorrermos a esta tradição para
compreendermos porque a mulher é sujeito privilegiado da bruxaria. No discurso das bruxas, que
será analisado tanto do ponto de vista do campo quanto da literatura produzida por elas, a mulher
surge como sujeito privilegiado desta prática. A partir da análise do discurso religioso/filosófico
da wicca, percebemos que o feminino era mais valorizado que o masculino. Cabia, portanto, as
perguntas: por que a mulher é sujeito privilegiado nesta prática e por que o feminino é mais
valorizado?
Para respondermos a estas questões, foi necessário entender o sistema mágico-religioso da
wicca. Percebemos que as divindades desta religião apresentam uma associação direta com a
natureza. O feminino também aparece associado à natureza, bem como à magia. Esta série de
associações sucessivas nos permitiu elaborar uma conjugação de autores na qual a natureza e a
magia se aproximam na medida em que constituem pólos opostos à ciência e/ou à civilização,
entendida tanto quanto ordem que rompe com a desordem da natureza como enquanto
modernidade.
Por outro lado, embora a wicca se apresente alinhada com concepções de bruxaria
próprias à maioria das práticas mágicas, ela é uma prática moderna, e não podemos nos esquecer
de que as bruxas que estudamos são sujeitos de um espaço-tempo definido. A partir desta
preocupação, quisemos aproximar a análise das teorias da modernidade, sobretudo através da
obra de Giddens (1991). A modernidade é um período de quebra com concepções mágicas do
mundo. Por que estariam sujeitos modernos recorrendo às práticas mágicas, especialmente
definindo identidades a partir delas?
Com esta questão em mente, antecipamos a hipótese demonstrada em campo de que a
bruxaria tem sido um lugar de construção de uma determinada identidade. A princípio, pensamos
que esta seria uma identidade vinculada principalmente à questão de gênero, visto que a wicca se
apresenta como uma prática voltada para o que considera feminino, e visto que a maior parte de
seus adeptos são mulheres. Descobrimos, a partir da pesquisa de campo, que não apenas a
14

identidade de bruxa traz consigo considerações de gênero como sugere um determinado percurso
profissional e religioso associado a questões de classe e apropriação cultural. Estes percursos
estão inseridos dentro do movimento mais amplo chamado Nova Era, que aparece dentro da
modernidade com um discurso que remete à tradição tanto quanto estabelece uma crítica à
modernidade. Parte da Nova Era, a wicca se apresenta segundo suas definições, e seus praticantes
têm perfis próximos aos dos new agers.
Quisemos ressaltar aqui o ponto de partida teórico que nos permitiu realizar a análise de
campo e solucionar as questões que nos colocamos.

BRUXARIA MODERNA WICCA: O QUE É?

A bruxaria que estudamos e a qual nos referimos neste trabalho é a bruxaria wicca.
Formulada ou disseminada – há uma polêmica quanto a isto – por Gerald Gardner, na Inglaterra,
constitui uma forma de religiosidade que, segundo as bruxas, remonta à era pré-histórica da
humanidade. Primeira religião do homem, ela teria sua origem no matriarcado, período anterior
ao patriarcado, e constituiria uma religião de culto à terra, na forma de uma divindade feminina, a
Grande Mãe ou Deusa, e uma divindade masculina, o Deus Cornífero. Sobrevivendo ao processo
histórico, seria a mesma religião das bruxas medievais levadas às fogueiras. Hoje, apresenta uma
faceta moderna, evidenciada através da categorização wicca.
Os praticantes de wicca autodenominam-se bruxos, wiccanos ou wiccanianos.
Diferenciam-se, desta forma, de outros praticantes de artes mágicas e outras correntes de
bruxaria. Segundo as bruxas, é wiccano aquele que celebra os rituais da wicca, chamados sabás e
esbás, aquele que segue o conselho ou lei wiccana (“faça o que quiseres desde que não machuque
ninguém”), aquele que se submete à Lei Tripla (“tudo o que você fizer, voltará para você em
triplo”), e aquele que presta culto à Deusa. Como é corrente ao senso-comum, bruxa é uma
categoria de acusação que indica a prática do malefício. Entre os wiccanos, no entanto, a
categoria bruxa toma outra conotação. Tanto a partir da pesquisa de campo quanto na literatura
produzida pelas bruxas, percebemos que a bruxa wiccana não é associada por eles ao malefício.
Pelo contrário, é vista como uma figura sábia, guardiã de conhecimentos ocultos, prestativa, sem
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preconceitos, alinhada às forças mágicas e telúricas, ecologista, entre outros. Aparece,


normalmente, como uma figura feminina, embora tenhamos observado a prática da wicca entre
homens também.
A bruxaria wicca está divida em diversas correntes de prática, chamadas tradições. Cada
tradição mantém mitos cosmogônicos próprios e fórmulas rituais próprias, que são revelados ao
iniciado. Há muitas tradições diferentes, e não nos debruçamos sobre nenhuma em particular,
nem esta foi uma preocupação nossa. O corpo teológico da wicca, a mitologia, a sua estrutura
ritual, seu calendário é que foram estudados, sempre com vistas às questões de gênero presentes.
Há dois calendários possíveis, um referente ao hemisfério norte, de onde a wicca provém,
e outro referente ao hemisfério sul, onde está o Brasil. A elaboração de um calendário para o sul
indica que esta prática está sendo adaptada às condições geográficas do país. Veremos, no
desenrolar deste trabalho, que estas adaptações não se limitam ao calendário.
Para a prática da magia e dos rituais, a bruxas fazem uso de instrumentos mágicos. Eles
apresentam um caráter sexualizado, bem como os rituais das bruxas, sempre alinhados em pólos
masculino e feminino. A junção destes pólos é sempre procurada como ponto de equilíbrio e
posição ideal. Ou seja, a complementaridade destes dois pólos se apresenta na forma de
equilíbrio, que é a forma idealizada. A sexualização pode ser percebida através da junção destes
pólos, que encerra também a idéia de fertilidade e vida, pois as divindades da wicca são ligadas
aos ciclos sazonais da natureza.
A bruxa que pratica seus rituais sozinha é chamada de bruxa solitária. O grupo de prática
é chamado coven. Segundo a tradição das bruxas, este grupo deve ser liderado por uma mulher,
chamada Alta Sacerdotisa ou Grã Sacerdotisa. Lidera, a seu lado, um homem, o Alto Sacerdote
ou Grão Sacerdote, mas suas atribuições no corpo do ritual não são as mesmas. Ela está em
posição hierarquicamente superior à dele. Esta posição reflete tanto a posição da Deusa frente ao
Deus quanto a posição do feminino frente o masculino. Percebemos na wicca uma forte
inclinação para o universo feminino e uma valorização positiva do mesmo. Masculino e feminino
aparecem como pólos opostos de uma interação complementar e necessária. Contudo, o pólo
feminino é sempre o mais valorizado, o que nos chamou a atenção para o modo como o feminino
é tratado e visto na wicca, e nos fez perguntar quais seriam os seus atributos e porque ele era
sempre o mais valorizado. A partir destas questões, foi necessário mergulhar na literatura e no
discurso das bruxas para compreendermos como a disposição de gênero de formula neste grupo.
16

As divindades da wicca

A wicca, além de sistema de magia, reivindica para si o status de religião. Ela


desenvolveu um pensamento próprio, com práticas e ritos definidos, datas festivas e divindades.
Existem duas divindades principais: a Deusa e o Deus. Na prática, cabe ao wiccano escolher qual
panteão utilizará, quais serão as divindades de sua devoção. O sistema comporta qualquer
panteão, do celta ao grego, do hindu ao maia. Segundo o pensamento wicca, a Deusa é o
princípio da vida, a Criadora do universo. Em algum momento de Sua existência Ela se divide em
duas, e Sua outra parte toma a forma masculina: é o Deus. O Deus surge da Deusa, a partir de
uma “gravidez” espontânea, que não é suscitada por nenhum outro agente fertilizador que não Ela
mesma. Uma vez dividida em duas, Ela instaura a divisão entre o feminino e o masculino.
Nascido Dela, o Deus é Seu filho, mas também se torna Seu consorte, e juntos Eles geram vida.
Na wicca, a Deusa se divide em três faces, constituindo a Deusa Tríplice: Donzela, Mãe e
Velha. A Donzela simboliza a juventude e a fertilidade: ela pode ser vista como uma virgem,
como a menina antes da menarca ou como uma mulher solteira e jovem, sexualmente ativa, mas
sem filhos. A Mãe simboliza a maturidade sexual e os frutos da fertilidade, isto é, a mulher
sexualmente ativa que gera e cria, a mulher grávida, a amante, a esposa. A Velha é a mulher
estéril, a mulher após a menopausa, que não tem possibilidade de gerar, mas que guarda segredos
e sabedoria. Ela também representa a morte, o fim do que existe.
Notamos que existem três faces de mulheres que são fisicamente definidas, em especial
por sua capacidade e disposição de gerar filhos ou não. A Mãe se torna o centro dessa trindade
uma vez que a Donzela e a Velha lhe estão em oposição, embora não pelos mesmos motivos:
enquanto a Donzela se recusa a conceber, a Velha está impossibilitada de fazê-lo. Há uma outra
faceta da Velha, no entanto, que sana essa impossibilidade criativa: uma vez que Ela é a Senhora
da Morte, e uma vez que os wiccanos acreditam em reencarnação, crêem que tudo o que morre
retorna à escuridão do útero da Deusa para, a partir de lá, renascer. A face escura da Velha
simboliza o fim, mas para haver recomeço deve haver antes um fim e, portanto, ela simboliza o
recomeço também, num movimento circular, e aí está preservada sua face criativa. Por outro
lado, como força feminina, é a Deusa quem cria e traz de volta à vida, através de seu útero, parte
criativa de seu “corpo”.
17

Esta concepção tripla da Deusa não rompe com a idéia de mulher como fonte reprodutora.
Os livros wiccanos referem-se à Deusa como a Grande Mãe, demonstrando que seu aspecto de
procriadora e nutriz é o mais importante. Sem dúvida, a wicca é, em seu aspecto religioso, um
culto da fertilidade. A Deusa está associada aos ciclos de fertilidade da terra, dos animais e dos
homens. Está associada também à lua e suas fases: a Donzela é representada pelo quarto
crescente, a Mãe pela lua cheia e a Velha pela lua minguante e nova. A lua nova representa a face
de recomeço da Velha, aquele útero escuro onde o que morreu aguarda para renascer. Essa
correspondência com a lua é central nos rituais wiccanos. A lua crescente é o período em que se
diz que as coisas crescem, só atingindo seu ápice na lua cheia. Desta forma, feitiços são
programados segundo seus objetivos a partir de cada lua. Não é de estranhar que os rituais
mensais das bruxas (esbás) sejam praticados na lua cheia, período em que acredita-se que o poder
mágico esteja mais forte. Não é, portanto, à revelia que a face de Mãe que adquire a Deusa muitas
vezes suplante a Donzela e a Velha: sendo o ápice de qualquer poder, ela é sempre preferida, pois
representa todo o tipo de abundância.
O Deus da wicca enquadra-se dentro da categoria de dying God, ou Deus Agonizante,
utilizada por Frazer (1971). Ele é também o que Murray (1970) categorizou como horned God,
ou Deus Cornudo (ou Cornífero). O Deus porta chifres e encarna a progressão do sol, nascendo,
ascendendo e fenecendo segundo este ao longo do ano. A movimentação do sol durante o ano,
segundo as estações, representaria exatamente a movimentação do Deus, que nasce, procria e
morre. Como o sol, o Deus fertiliza a terra (a Deusa), constituindo-se, portanto, num Deus da
fertilidade. Como Ela, Ele comporta três diferentes faces: jovem, ele acompanha a Donzela, por
quem se apaixona; homem, ele é amante da Mãe, que concebe um filho Dele, e é então Senhor da
Vegetação, pois dá frutos; maduro, ele começa a perder suas forças e morre, tornando-se o
Senhor dos Mortos. Após sua morte ele repousa até nascer novamente da Deusa, como Seu filho,
e tornar-se novamente Seu amante, refazendo o ciclo a cada ano.
A Deusa dá vida quando Mãe e é Ela mesma quem a tira quando Velha. O Deus
representa, de certa forma, essa vida que Ela dá e tira. Ele nasce Dela, a Ela se une no amor, e
morre todo ano quando seu tempo fértil já passou. Como divindades da fertilidade, Eles são em
grande parte definidos por essa capacidade. A Deusa, ao contrário Dele, nunca morre. Ela carrega
morte e vida em si, enquanto Ele é sujeito de vida e morte. Temos aqui duas disposições
diferentes. Por um lado, a Deusa encarna a passividade, pois como terra é fertilizada pelo sol, isto
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é, pelo Deus. Ele toma o papel ativo, consagrando o já estabelecido esquema de oposição
masculinidade/atividade versus feminilidade/passividade. Percebemos que na wicca essa relação
se apresenta tanto como complementaridade quanto como oposição.
A atividade do Deus é demonstrada através de seu percurso: ele vive e morre, toma uma
forma dinâmica, ainda que cíclica. Podemos vir a observar uma dinâmica na existência da Deusa
de duas maneiras diferentes: através dos ciclos lunares e das estações do ano. O nascimento do
Deus e sua trajetória são seguidos pela Deusa: quando o Deus é jovem, Ela também é jovem,
quando Ele fenece, Ela se reveste da face da Velha. As fases da lua apresentam também esse tipo
de correspondência, como vimos acima. Podemos estabelecer uma outra correspondência,
baseada nas diferentes faces da Deusa Tríplice, entre a lua e as estações do ano. Deste modo, à
lua crescente corresponde o período de primavera, regido pela Donzela; à lua cheia corresponde o
verão, quando Deus e Deusa estão em força plena, visto que é a época de exuberância e
abundância vegetal e animal; à lua minguante corresponde o outono, período em que o Deus
morre e o sol começa a declinar seu poder; à lua nova corresponde o inverno, época do
nascimento do Deus.
Apesar de haver alguma dinâmica também na trajetória da Deusa, é comum no
pensamento wiccano que Ela seja vista como passiva e o Deus como ativo. O princípio feminino
é visto como passivo e o masculino como ativo, embora tenhamos percebido que a Deusa segue o
mesmo ciclo de atividade que o Deus. Ser ativo significa também ser doador assim como ser
passivo significa ser receptor. Na sua face de Mãe, a Deusa é doadora, e portanto ativa. Ela não
deveria ser vista como passiva.
O mito de criação do Deus coloca o princípio masculino como subordinado ao feminino,
nascendo dele e dele dependendo para continuar (reproduzir-se). O princípio feminino, ao
contrário, é autônomo, pois cria sozinho o princípio masculino – há um todo que se divide - e
opta por se juntar à ele num processo, apesar de tudo, complementar, onde ambos entram com
partes iguais na reprodução. Desta forma, notamos que embora o princípio masculino possa ser
compreendido como subordinado ao feminino, ele não é inferior. Do mesmo modo, o princípio
feminino não se torna, em momento algum, superior àquele, mas pode ser independente deste,
sem problemas para a sua reprodução, visto que a Deusa é eterna, ao contrário do Deus, que
nasce e morre. A Deusa é transcendente enquanto o Deus é imanente.
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Tomamos aqui um lado interessante da wicca, que é a construção de uma tealogia, termo
usado para designar o sistema de crença numa Deusa (Tea). Uma vez que o termo teologia
implicaria numa orientação exclusivamente masculina, que ignora o feminino, alguns autores
wiccanos (STARHAWK, 1989) optaram pelo termo tealogia, o que demonstra como o seu sistema
de crenças se volta para o feminino preponderantemente ao masculino. O que nos chama a
atenção neste pensamento é a maneira como ele trabalha as relações idealizadas de gênero, com
um princípio feminino que não é subjugado por um masculino por sua necessidade de
reprodução, e que tampouco subjuga. Talvez por isso o feminino não seja visto exclusivamente
como o portador da vida. Ele é criador mas também destruidor, o que abre um leque de
possibilidades para os papéis de gênero e quebra as amarras de interpretações que encerram a
mulher como uma reprodutora. Aqui o feminino parece ter liberdade para ser mais do que o lugar
da reprodução humana.

Cultura versus natureza

O Deus e a Deusa estão intimamente relacionados aos ciclos de fertilidade da natureza e à


própria natureza. Para as bruxas, toda a natureza é expressão da divindade. A Deusa, que gera
vida e dá frutos, pode ser representada pela natureza, que nutre e sustenta o homem. O Deus é tão
natureza quanto Ela. Ele pode ser representado como o Homem Verde, Senhor da Vegetação. Em
sua faceta de Deus Cornudo, Ele é senhor dos bosques, da fertilidade e da sexualidade. A
sexualidade aqui se torna quase um sinônimo de fertilidade e vida. Mas Ele pode ser tomado
também como senhor de tudo o que é livre, indomado e selvagem. Neste aspecto, ele se
contrapõe explicitamente à idéia de cultura.
Notemos, então, que embora o Deus e a Deusa sejam a natureza mais do que estejam a ela
ligados, o Deus assume uma faceta que incorpora o elemento selvagem e fora de controle que há
nela. A Deusa assume esta face de descontrole de uma outra maneira: é a Mãe Natureza que dá
abundância no verão e toma tudo de volta no inverno, deixando o homem sem recursos à sua
sobrevivência. Poderíamos mesmo pensar que Ela está mais próxima da cultura do que da
natureza se nos for necessário estabelecer este par de oposição: Ela simboliza também uma
sabedoria oculta (Velha), um mistério, enquanto o Deus representa o instinto, o que é sem
controle e sem razão. Por outro lado, Ela também representa os campos semeados, a agricultura
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(Mãe). A agricultura é, sem dúvida, uma atividade de domínio sobre a natureza, portanto uma
atividade cultural que se lhe coloca em oposição.
Segundo Ortner (1979), que pretende compreender a universalidade da subordinação
feminina a partir das especificidades culturais, a mulher adquiriu um valor inferior ao do homem
porque foi identificada com algo que cada cultura desvaloriza: esta coisa é a natureza. O homem,
por sua vez, é identificado com a cultura. Se a cultura sempre submete a natureza, e se a mulher
faz parte da natureza, nada mais “natural” do que o homem subjugar a mulher. As mulheres se
aproximam da natureza, segundo ela, em conseqüência de sua função reprodutiva natural, que lhe
é específica.
A mulher cria a partir de si própria enquanto o homem deve transcender esta
impossibilidade inerente, criando além de seu corpo, produzindo bens culturais. Deste modo, a
ele competem atividades ligadas à destruição e que, culturalmente, são de maior importância do
que as de gerar vida, pois a superioridade da humanidade não é devida ao sexo que gera, mas ao
que mata (ORTNER, 1979). Para esta autora, apesar de tudo, o lugar da mulher na sociedade é o de
intermediário entre natureza e cultura, visto seu papel no processo de socialização inicial do ser
humano.
A wicca nos apresenta uma inversão dos pares de oposição natureza/cultura e
masculino/feminino, visto que a natureza, em seu sentido de oposição à cultura, está alinhada do
lado masculino, enquanto cultura pode ser alinhada do lado feminino. O feminino, contudo,
nunca deixa de ser natureza também, no sentido tanto do ecossistema quanto da fertilidade
(reprodução). Ele ocupa exatamente este papel intermediário entre natureza e cultura de que fala
Ortner (1979). E mais uma vez notamos a inversão, pois não há ninguém no papel de cultura. O
feminino na wicca engloba tanto natureza quanto cultura. Por este ponto de vista, a
preponderância do feminino no pensamento wicca ainda obedece à lógica que valoriza a cultura
em detrimento da natureza.
Podemos, no entanto, fazer o caminho contrário, afirmando que a natureza é mais
valorizada na wicca, e que por esta razão o feminino tem preponderância sobre o masculino. Essa
preponderância só é possível porque a wicca toma a reprodução como um valor positivo acima de
qualquer outro. Podemos notar esta valorização na tônica de fertilidade do culto e na disposição
de potencial criativo das três faces da Deusa e do próprio Deus. Neste ponto, podemos afirmar
que o masculino se coloca ligeiramente abaixo do feminino em força e poder justamente porque
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dele depende para se reproduzir, enquanto o feminino é eterno. A partir daí podemos dizer que a
capacidade de reprodução é um dos valores positivos que fazem com que o feminino detenha
maior ênfase neste culto. Outras atribuições seriam tanto sua associação com a natureza quanto
com a cultura. Ao mesmo tempo em que é natureza, mas uma natureza boa e nutriz, o feminino é
cultura, da mesma forma uma cultura boa que traz a sofisticação. O masculino, exatamente ao
contrário, é natureza quando bárbaro e retido à força física e à destruição, e encarna a cultura
quando ela também é destruição. Estes atributos e associações ficarão mais claros no capítulo
referente à obra de Márcia Frazão.
As atribuições do feminino são marcadas com mais valor do que as do masculino,
formando uma hierarquia que se reflete no trabalho dos grupos de bruxas (a ser visto adiante). O
masculino e o feminino, contudo, não são apenas opostos mas também complementares. Essa
diferenciação entre eles pode ser melhor concebida na forma de uma assimetria de valorações do
que opressão ou subordinação.

O coven

Como sacerdotisa de uma religião, a bruxa tem obrigações rituais1. Essas obrigações
podem ser cumpridas solitariamente ou em grupo (coven). O grupo tende a ser permanente no
sentido de manter-se coeso, isto é, uma vez formado um grupo permanente ele se mantém
trabalhando unido em todas as datas festivas e rituais. O coven pode durar anos e dar origem a
novos covens sem necessariamente ser extinto.
Existem dois tipos de grupo: o círculo e o coven. O círculo pode vir a formar um grupo
permanente ou não. Ele é, na verdade, um grupo de estudos de magia ou assuntos afins à prática
da wicca, como mitologia, por exemplo. O círculo não tem uma organização hierárquica nem
tampouco uma rigidez em sua forma. Os membros não formam um grupo coeso, que deve
manter-se unido em obrigações rituais. Eventualmente, o círculo começa a praticar os rituais e
pode vir a tornar-se um coven. Starhawk (1989), autora wiccana americana, afirma que a maioria
______________________________________________________
1 – A idéia de “obrigações rituais” não está explícita na wicca. Pelo contrário, os rituais têm uma forte conotação
festiva e diz-se que todos os atos de prazer são rituais à Deusa.
dos covens nasce a partir de círculos de estudo. O coven é um grupo fechado, de ordem
hierárquica ou não. Todos os seus participantes são considerados sacerdotes e sacerdotisas, uma
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vez que desempenham papéis rituais. Tradicionalmente comporta no máximo treze pessoas e no
mínimo três pessoas (LAGÔAS, 1998). Rituais públicos podem ser realizados com mais de treze
pessoas (STARHAWK, 1989).
A liderança do coven, quando existe, cabe, normalmente, a uma Grã Sacerdotisa, ou Alta
Sacerdotisa, e a um Grão Sacerdote, Alto Sacerdote ou Homem de Negro. É possível, no entanto,
que a liderança esteja somente nas mãos da Alta Sacerdotisa, sem a presença de um Alto
Sacerdote, ou somente nas mãos de um Alto Sacerdote. É possível ainda que a liderança seja
exercida em forma de rodízio por todos os membros do coven ou que simplesmente não haja
liderança.
Tradicionalmente, a Grã Sacerdotisa comanda o coven. É ela quem programa os rituais,
divide entre os membros as tarefas relacionadas a eles, define os papéis nos rituais, encontra o
local adequado. A Grã Sacerdotisa deve ser obedecida, uma vez que sua experiência é,
usualmente, maior que a dos outros membros do coven. Ela desempenha o papel da Deusa nos
rituais, sendo portadora de Sua autoridade e poder. Ela representa a Deusa na Terra para os
membros do coven, e por isso lhe é devido respeito. Essa forma de autoridade, contudo, jamais
deve ser desempenhada de maneira autoritária. A Alta Sacerdotisa não deve ser obedecida
cegamente. O princípio de sua autoridade é a sabedoria, a maior experiência e conhecimento,
definido normalmente por um maior tempo de prática mágica do que o restante dos membros do
coven. Da mesma forma atua o Grão Sacerdote, que representa o Deus nos rituais e para os
membros do coven. Quando não comanda diretamente o coven, como o faz a Grã Sacerdotisa, ele
apenas a auxilia na organização dos rituais e tarefas.
Nem todos os covens trabalham rigidamente dentro desse esquema hierárquico. Segundo
Starhawk (1989), é possível eleger-se uma Grã Sacerdotisa para que comande o grupo por um
período determinado, depois passando à frente esse comando para outro membro, inclusive um
homem. Esse procedimento visa, segundo ela, uma maior democratização do poder dentro do
coven, uma vez que a Grã Sacerdotisa ainda mantém seu poder de autoridade, embora eleita. No
caso dos homens, visa transcender o espaço criado pela hierarquia usual dos covens, abolindo a
diferenciação entre homens e mulheres. Essa diferenciação só toma forma, de fato, na autoridade
da Grã Sacerdotisa. Abolindo a regra em que o comando é dado exclusivamente à mulher, abole-
se também a diferença entre os gêneros dentro do coven. Usualmente, os covens mantêm a
mesma Grã Sacerdotisa e o Grão Sacerdote enquanto durarem. Esta duração será definida pela
23

disposição dos membros em permanecerem juntos ou não. Nada impede um membro de


abandonar seu coven caso esteja insatisfeito ou enfrente alguma impossibilidade.
Não existe entre os praticantes de wicca nenhuma hierarquia fora do coven. Os covens não
são unidos numa organização hierárquica sob o comando de determinada pessoa. Ao contrário,
cada coven constitui uma unidade autônoma. É possível, contudo, que vários covens estejam sob
a influência de um ou mais Altos Sacerdotes e Altas Sacerdotisas. Quando uma Alta
Sacerdotisa/Alto Sacerdote é formado por seu coven (A) e instruído a organizar um novo coven
(B) onde poderá exercer liderança, este novo coven (B) fica de alguma forma sob o escopo de
influência do coven (A) que formou aquele Sacerdote/Sacerdotisa. Deste modo, diz-se
(FARRAR,1999) que a Alta Sacerdotisa do primeiro coven em questão (A) adquire o título de
Rainha das Feiticeiras, pois de seu coven (A) originou-se outro coven (B), o que faz com que ela
tenha influência sobre dois covens distintos. Quanto mais covens surgirem a partir do primeiro
(A), maior a influência e autoridade da Rainha das Feiticeiras. A Rainha usa uma liga na perna
como símbolo do status alcançado. Essa liga terá tantas fivelas quantos forem os covens sobre os
quais ela exercer influência, aqueles que derivam diretamente de seu próprio coven
(FARRAR,1999). O coven que formou a bruxa pode ser sempre procurado quando há necessidade
de qualquer tipo de ajuda. Os covens sobre influência de uma Rainha das Feiticeiras formam uma
verdadeira rede.
Há uma outra faceta do coven que se torna explícita na fala das entrevistadas: a noção de
família. De fato, um coven só é formado quando seus integrantes têm alguma afinidade entre si e
algum grau de amizade. O sentimento característico de um coven que expressa essa afinidade é
“em perfeito amor e perfeita confiança” (DUNWICH, 1991). A expressão quer dizer que os
membros de um coven devem manter relações de amor e confiança entre si, onde quaisquer
sentimentos contrários a essa harmonia não são bem-vindos e podem prejudicar o funcionamento
do coven.
Sobre a relação familiar de um coven, o grupo de participantes é visto como uma família e a
Alta Sacerdotisa é encarada como uma mãe. Na wicca, a figura da Deusa Mãe é voluptuosa, é a
figura de fertilidade e maturidade sexual. O Alto Sacerdote pode assumir, então, a posição de
consorte/amante da Alta Sacerdotisa, exatamente como o Deus é o consorte da Deusa. Neste
sentido, é comum encontrarmos na literatura wicca vários casais de escritores que são
conjuntamente as Altas Sacedotisas e Altos Sacerdotes de seus próprios covens, como o casal
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Farrar. Se o Grande Rito completo for encenado, isso só poderá ser possível se a Alta Sacerdotisa
e o Alto Sacerdote constituírem-se como um casal de fato. Na wicca, o culto é baseado em
simbologias sexuais e pode vir a ser o palco de alguns encontros.
O Grande Rito é parte dos rituais wiccanos, embora ele seja mais indicado para os sabás
de Beltane e Samhain (FARRAR,1999). Consiste na encenação simbólica da união sexual do Deus
e da Deusa. Caso seja encenado com os instrumentos mágicos, a faca de cabo negro (athame)
será introduzida dentro da taça - normalmente repleta de vinho tinto, numa clara alusão ao sangue
menstrual e à fertilidade feminina, mas também possivelmente repleta de sidra, suco de frutas ou
leite, todos símbolos da abundância da natureza. A faca representa explicitamente o órgão
masculino, enquanto a taça representa o útero. A encenação do Grande Rito com os instrumentos
mágicos não é bem vista por alguns wiccanos, que afirmam que o correto é que ele seja encenado
pela Alta Sacerdotisa e o Alto Sacerdote com um intercurso sexual real.
Em Farrar (1999), o Grande Rito é descrito e ilustrado com fotos. A Alta Sacerdotisa se
deita no chão, suas pernas afastadas, os braços longe do corpo, e sobre ela é proferida uma
invocação na qual o corpo da mulher é claramente associado à terra, ou seja, à Deusa.

“Assiste-me para erigir o antigo altar, no qual em dias pretéritos todos veneravam;
O grande altar de todas as coisas.
Pois outrora, a Mulher era o altar. ” (FARRAR,1999: 49)

A invocação acima serve tanto para o rito real quanto o simbólico. O ato sexual em si deve
ser consumado sem a presença do coven, que aguarda o desenrolar da situação longe do casal
sacerdotal. Entendemos, a partir daí, que a Alta Sacerdotisa e o Alto Sacerdote formem um casal
de fato, não só dentro dos rituais mas fora deles. Janet e Stewart Farrar (1999: 47) afirmam que
“o casal que representa o Grande Rito está oferecendo a si mesmo, com reverência e alegria,
como expressões dos aspectos de Deus e Deusa da Fonte Suprema. (...) E é porque o Grande Rito
sob sua forma ‘real’ deve, nós o sentimos, ser representado por parceiros casados ou por amantes
que detenham uma união ou unidade semelhante à do casamento”. Segundo informações de Ana,
uma das entrevistadas, quando realiza rituais em grupo, como Alta Sacerdotisa, ela se recusa a
manter um Alto Sacerdote no ritual, mesmo que haja bruxos presentes, pois entende que esses
cargos devem ser divididos por um casal de fato e não apenas ritualmente. A idéia implícita na
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opinião de Ana é a de que a união sexual do Deus e da Deusa é uma união de amor e com amor
deve ser encenada. Se os sacerdotes não constituírem um casal de fato, sua união não representará
a união amorosa da divindade. Os Farrar (1999: 47) afirmam que “pelo fato de ser um rito
mágico, poderoso e carregado pela intensidade da relação sexual, se interpretado por um casal
cujo relacionamento é menos estreito, pode ativar vínculos em níveis para os quais tal casal não
esteja preparado e que podem se revelar desequilibrados e perturbadores”. Portanto, parece haver
uma interdição mágica a essa prática.
O Alto Sacerdote deve representar a masculinidade do Deus. A rigor, não há espaço para
o homossexualismo masculino na wicca como há, por exemplo, no candomblé (BIRMAN, 1995).
Quanto ao homossexualismo feminino, a prática se mostra distinta. Na literatura wicca, pelo
menos, há sinais de que covens formados por lésbicas são comuns. Não existe, contudo, nenhuma
informação sobre covens formados por gays, embora, sem dúvida, existam gays praticantes de
wicca. A idéia implícita é de que, sendo uma religião voltada para o feminino, ela atrairia homens
mais vinculados à feminilidade, ou seja, gays. Neste sentido, levantamos a hipótese de que o gay
é um pólo feminino na wicca, e não masculino. O masculino é representado pelo homem
heterossexual, patriarcal ou não. A representação que a wicca guarda do masculino é a de
atividade, força, energia.
A idéia de que há muitos gays na wicca é comum entre seus praticantes. Pudemos
averiguar, em campo, que há gays praticando a wicca, mas não podemos afirmar que eles
representam a maioria dos bruxos. Dos dez bruxos que conhecemos ou sobre os quais foi possível
obter informação, três são tidos como gays e um como bissexual.
A nossa hipótese se assenta no fato de que a wicca é uma religião inclinada a valorizar
positivamente o feminino em detrimento do masculino. Este se torna pólo complementar e
necessário a uma harmonia total. Neste sentido, o homossexualismo só se encaixa nas divisões de
gênero wiccanas quando é alinhado ao feminino. A ritualística wicca não engloba a possibilidade
de homossexualismo masculino. Como vimos acima, está implícito que o Alto Sacerdote seja
heterossexual. A força criativa, nesta religião, decorre exatamente da união dos opostos
masculino e feminino. É necessário, portanto, que os homens incorporem qualidades vistas como
masculinas. As mulheres, do mesmo modo, devem portar qualidades femininas.
Porque então existem oficialmente covens lésbicos mas não gays? Nossa resposta se baseia
na idéia de que a wicca trata feminino e masculino também a partir de uma divisão biológica e
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não apenas de gênero. Neste sentido, uma mulher é alguém que possui um útero e, mesmo sendo
lésbica, não deixa de ser mulher e encarnar a idéia de feminino. Portadora de um útero, ela não
perde a oportunidade de procriar. O homem gay, por outro lado, tem um falo que não é usado
para a procriação, e pode deixar de ser pólo masculino. Só há lugar na wicca para o gay, como há
para a lésbica, em um artifício de gênero onde eles se alinham ao pólo feminino.O lugar das
lésbicas é um lugar próprio, em separado: um coven só de lésbicas. Não existe, contudo, em
nosso material de campo, nada que nos leve a afirmar que lésbicas e gays são proibidos de fazer
parte de covens conjuntamente com heterossexuais.
O feminismo entrou fortemente nas concepções wiccanas, e autoras como Starhawk,
Stein, Frazão e Budapest declaram-se feministas, no sentido da luta pelos direitos da mulher. O
feminismo abriu uma porta de entrada para as lésbicas, mas sua permanência na wicca se deve à
própria dinâmica de gênero dessa religião. Não obstante, existem gays na wicca. Na literatura
wicca a que tivemos acesso, apenas Starhawk (1989) pretendeu absorver gays e lésbicas, com
uma preocupação “politicamente correta” pelo assunto.
No candomblé, comparativamente, apesar de as mulheres manterem cargos superiores, a
valoração dada ao feminino é menor que aquela dada ao masculino, o que se apresenta, por
exemplo, em servir a comida primeiro aos homens e àqueles de orixá masculino (BIRMAN, 1995).
A mulher é associada ao doméstico, ao sacrifício, ao cuidado da família. Ela ascende aos cargos
superiores na hierarquia sacerdotal porque o espaço do feminino é propício à religião e à
possessão e não porque o feminino seja mais valorizado do que o masculino. O que temos na
wicca é exatamente o contrário: é por ser mulher que cabe à Alta Sacerdotisa – idealmente, pois
como vimos isto não é mais uma regra - a maior autoridade num coven, e não por simbolizar o
feminino, senão teríamos uma situação análoga ao do candomblé, onde uma maioria de pais-de-
santo é homossexual. Como vimos acima, dificilmente um homossexual conseguirá exercer o
cargo de Alto Sacerdote. Da mesma forma, é por isso que não há impedimento teológico – ou
tealógico – aos covens formados por lésbicas: o poder feminino reside na sua constituição física
de mulher, que ela não perde sob hipótese alguma.
Embora os grupos sejam a prática mais usual descrita na literatura wicca, uma bruxa pode
praticar os mesmos rituais que o coven, mas com alguma alteração de formato para se adequar a
uma só pessoa. Neste caso ela é chamada bruxa solitária. Uma bruxa solitária pode já ter
pertencido a algum coven ou não. No primeiro caso, os rituais de passagem de grau serão feitos
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por ela mesma (auto-dedicação e iniciação) e o ritmo do aprendizado mágico também será de seu
próprio critério.

Os rituais

Existem dois tipos de rituais na wicca: esbás e sabás. Os esbás constituem rituais do coven
(ou da bruxa solitária) que tomam lugar usualmente nas luas cheias. Contam-se treze no período
de um ano. Nestes rituais é trabalhada a magia ou algum aspecto das divindades que o grupo
deseje explorar. Os esbás não têm um tema de trabalho específico. Este deve ser eleito pelo
coven, segundo suas necessidades e disposições. A lua cheia é escolhida porque é o período do
ápice de poder mágico. É possível, no entanto, que os sabás sejam feitos em cada lua diferente.
Nada impede que um coven faça esbás a cada lua cheia, nova e crescente, trabalhando deste
modo os três diferentes aspectos da Deusa, a saber, Donzela, Mãe e Velha. Esta disposição fica a
critério de cada grupo.
Os sabás são rituais que marcam o caminho do sol, rituais sazonais de fertilidade que
louvam o Deus e a Deusa em seu aspecto de casal divino. São oito por ano: Yule (solstício de
inverno), Imbolc (Candlemas), Ostara (equinócio de primavera), Beltane, Litha (solstício de
verão ou meio de verão), Lammas (Lughnasadh), Mabon (equinócio de outono) e Samhain
(Halloween). Os sabás dos solstícios e equinócios (sabás menores) são direcionados a aspectos do
Deus enquanto os quatro restantes (sabás maiores) direcionam-se a aspectos da Deusa. Como
rituais sazonais, os sabás obedecem a um calendário que se guia pelo sol, pelas estações do ano,
portanto, essas datas serão diferentes segundo cada hemisfério. Do mesmo modo, solstícios e
equinócios não têm data fixa porque dependem da movimentação do sol. Existe, contudo, uma
margem de cerca de três dias em que cada um destes sabás pode cair. Janet e Stewart Farrar
(1999) afirmam que, originalmente, os quatro sabás da Deusa eram os únicos existentes na
tradição religiosa dos celtas, de quem os sabás seriam originários. Os demais quatro, que marcam
o começo de cada estação, teriam sido implementados entre os celtas a partir das invasões de
povos nórdicos aos seus territórios.
Os rituais nos sabás mudam sua forma de coven para coven, mas obedecem sempre ao
tema da época, o aspecto que tomam a Deusa e o Deus segundo a época do ano. O conjunto dos
oito sabás marca um ciclo de um ano chamado pelos wiccanos de Roda do Ano. Um período de
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seis meses é chamado “meia Roda”. O termo Roda encerra a idéia de uma passagem de tempo
circular e cíclica, que após findada recomeça novamente.

Instrumentos mágicos

Para praticarem seus rituais, as bruxas precisam de instrumentos mágicos. Esses


instrumentos guardam correlações explícitas com princípios masculinos e femininos, mantendo a
idéia de fertilidade e procriação. Deste modo, muitos dos instrumentos não são mais do que
representações dos órgãos reprodutores feminino e masculino. A sua utilização nos rituais
também demonstra que servem como metáforas para a união sexual (geradora de vida) do Deus e
da Deusa. Os principais instrumentos são: o athame, a espada, a vassoura, a varinha, o caldeirão,
o pentagrama, o cálice, o incensário e o sino. Existem vários outros instrumentos mágicos, como
a foice, o chicote e o bolline (faca de cabo branco), por exemplo. Esses instrumentos mágicos são
de uso menos comum nos rituais ou não se destinam em absoluto a eles. Cada instrumento
mágico corresponde a um elemento diferente: o athame e a espada correspondem ao elemento
fogo (para alguns, ao ar), a varinha corresponde ao ar (para alguns, ao fogo) assim como o
incensário e o sino, o cálice e o caldeirão correspondem à água, o pentagrama corresponde à terra
e a vassoura à quintessência (nível espiritual).
O incensário é o objeto onde se queima incenso durante os rituais. O incenso pode ser
queimado sobre a brasa de carvão na forma de tablete ou ervas secas ou pode ser queimado o
incenso industrializado na forma de bastão. Ele serve para purificar o ambiente do ritual e para
consagrar objetos. Seu propósito seguirá a propriedade da erva que esteja sendo queimada. O sino
é um instrumento dedicado à Deusa, devido à sua forma arredondada. Ele serve para purificação.
O cálice e o caldeirão são instrumentos similares, que representam a Deusa e seu útero criativo.
Instrumentos com formas arredondadas costumam representar o feminino, enquanto instrumentos
com formas alongadas ou fálicas representam o masculino. No cálice colocam-se a água com sal,
utilizada para purificar o ambiente do ritual, e qualquer bebida a ser consumida ritualmente. O
caldeirão é uma panela de ferro ou barro, pintada de preto. Pode apresentar duas asas laterais e
três pés de apoio. É um objeto utilizado para diversos fins rituais. Pode ser colocado no altar, com
flores, frutas e velas em seu interior ou ser usado em feitiços, como representante da
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transmutação, bem como ser levado ao fogo para servir de panela no cozimento de feitiços,
poções e banhos.
A espada e o athame (faca de cabo negro) são instrumentos do Deus. Podem substituir um
ao outro durante os rituais. Eles simbolizam a força do falo do Deus. Quando há necessidade de
representar o Deus fertilizando a Deusa, o athame é colocado ritualmente dentro do cálice, numa
metáfora do ato sexual. O athame é utilizado nos rituais tanto para traçar o espaço designado ao
ritual quanto para cortar qualquer coisa de que se precise, a comida inclusive, e para marcar
símbolos mágicos em velas. A espada é um instrumento que apenas a Alta Sacerdotisa e/ou Alto
Sacerdote costumam possuir. É com ela que eles traçam o espaço consagrado ao ritual. Neste
sentido, a sua posse pode vir a indicar um signo de distinção.
A varinha também simboliza o falo do Deus, o princípio masculino. Constitui-se de um
galho fino de árvore sem folhas, mas pode ser feita artesanalmente de materiais diversos como a
madeira e a prata, e depois adornada com símbolos mágicos ou pedras. Ela também é usada na
consagração de objetos e na delimitação do espaço de trabalho mágico e ritual. A vassoura é um
instrumento que se destina à limpeza e purificação do ambiente de trabalho ritual. Ela representa
a união do casal divino. Seu cabo é o falo do Deus e a palha da vassoura representa a Deusa
recebendo o Deus nela, ou seja, a vassoura representa o próprio ato sexual criativo. Ela é também
um símbolo de fertilidade. Seu cabo pode ser feito com qualquer tipo de madeira escolhida,
embora algumas sejam preferidas a outras (o que vale também para a varinha), e preso a ramos de
árvores para formar a palha.
O pentagrama é uma estrela de cinco pontas virada para cima e disposta dentro de um
círculo. Ele é um símbolo da transmutação da matéria em direção ao espiritual. Se a wicca possui
um símbolo comparado à cruz cristã, um símbolo de identificação de seus praticantes, este é o
pentagrama, embora outros sistemas de magia também o utilizem como símbolo. Na wicca, ele é
disposto sobre o altar em rituais. É também um símbolo de proteção e não é raro que uma bruxa
use um pequeno pentagrama pendurado no pescoço como bijuteria.
Frazão (1994) costuma incitar seus leitores a fazerem eles mesmos instrumentos como a
varinha e a vassoura. À exceção da varinha, pudemos verificar que todos os demais instrumentos
podem ser encontrados em diversas lojas do Rio de Janeiro, nem todas voltadas a produtos
esotéricos. É interessante notar que grande parte desses instrumentos se confunde com
instrumentos de uso doméstico. O athame é uma faca, o caldeirão é uma panela, o cálice é uma
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taça, a vassoura usa-se ainda normalmente na limpeza da casa. Como instrumentos da esfera
doméstica, eles são instrumentos típicos do uso feminino. Embora a faca e a taça sejam comuns a
todos que morem na casa, o seu cuidado ainda é feminino. O espaço da cozinha é inegavelmente
ainda hoje um espaço feminino. Os instrumentos mágicos, contudo, só devem ser utilizados para
fins mágicos e rituais.

Origens da wicca

Os autores wiccanos afirmam que suas práticas religiosas são herdeiras daquelas dos
homens pré-históricos. Sítios arqueológicos como os de Trois Frères, na França, e Çatal Huyuk,
na Turquia são comumente citados em livros de wicca como lugares onde a pesquisa
arqueológica demonstrou a existência pré-histórica da crença na Deusa Mãe e no Deus Cornífero.
Na verdade, pesquisadores como Gimbutas (1997) afirmam a existência dessa crença, tentando
usá-la como prova do período matriarcal ou matrifocal da humanidade.
O discurso dos entrevistados afirma que essa religião pré-histórica teria se mantido no
período do patriarcado, modificando um pouco sua forma. Deste modo, a mitologia greco-romana
está cheia de exemplos de deusas da lua, da fertilidade, da terra, e cheia de deuses da vegetação,
deuses do sexo, do sol. Frazer (1971) demonstra essas associações. Para os wiccanos, elas seriam
provenientes da crença na Deusa Mãe e no Deus Cornífero, modificadas para que se
enquadrassem melhor na sociedade patriarcal: o Deus se torna mais forte que a Deusa e o
masculino é associado à guerra. Assim, temos Zeus governando os outros deuses do Olimpo. Mas
se retornarmos à gênese dos deuses gregos, acharemos uma Deusa, Gaia, dando à luz sozinha o
seu filho e consorte, e a partir daí povoando o mundo de deuses.
Já sob perseguição da Inquisição, os praticantes da bruxaria teriam mantido seu culto sob
sigilo (FRAZÃO, 1994). Seria essa a forma de se defenderem das perseguições da época. O diabo
ao qual eram associadas seria na verdade o Deus das feiticeiras: um Deus com chifres que
simbolizava a efervescência da vida, tanto no reino vegetal, através das estações do ano ou do
calendário agrícola, quanto no reino animal, através o impulso sexual (MURRAY, 1996).
Frazer (1971) e Murray (1970, 1996) demonstram como o folclore europeu está cheio de
passagens que se remetem ao culto à Deusa Mãe e ao Deus Cornífero. Murray (1996) afirma que
se tratam de resquícios das formas de culto e crença das bruxas. Neste sentido, são citadas a
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tradições folclóricas européias como a dos noivos da primavera e o mastro de maio como
resquícios de práticas rituais pagãs. Frazer (1971), embora não fale em bruxas, tenta demonstrar
que a crença numa Deusa doadora de vida e num Deus da vegetação que tem sua vida regulada
pelas estações do ano, morrendo anualmente, é disseminada por vários pontos do mundo.
Murray (1970, 1996) ignora a figura da Deusa e centra-se somente na figura do Deus,
como única divindade das bruxas. Sua afirmação de que haviam covens dirigidos por Sacerdotes
homens – e não mulheres - provém de relatos de torturados da Inquisição. Esses Sacerdotes
oficiavam sozinhos os grupos, e alguns o faziam em companhia da Sacerdotisa, que figura em
segundo plano nas obras de Murray. Não se sabe o que levou os torturados ao silêncio quanto à
Deusa – caso Ela realmente fosse objeto de culto. Acredita-se que ela passasse desapercebida nas
confissões das bruxas, visto que os inquisidores procuravam provas sobre o culto ao diabo.
Foi apenas recentemente, na década de 1950, na Inglaterra, que surgiu de fato a
designação wicca e o significado a ela dado: bruxaria moderna. Ela se propunha a ser uma
releitura e um resgate da bruxaria folclórica, amparada por estudos arqueológicos, históricos e
antropológicos. É unânime apontar o grande responsável pelo ressurgimento da bruxaria como
sendo Gerald Gardner, que publicou obras de ficção sobre bruxaria para então admitir que era ele
mesmo um bruxo (assim que a Inglaterra aboliu sua última lei contra a prática de bruxaria).
Gardner era membro de ordens esotéricas secretas e ficou conhecido como o disseminador da
wicca. Existe entre os wiccanos, contudo, uma vasta polêmica sobre a veracidade dos relatos de
Gardner: teria ele inventado uma nova religião com base em informações históricas e práticas
esotéricas ou teria ele descoberto de fato a prática da bruxaria em pleno século XX? Até hoje, não
foi possível encontrar esta resposta. Tudo o que sabemos de Gardner está disponível em várias
páginas na internet. Seus livros são de difícil acesso no Brasil. Os ensinamentos que Gardner
depositou em sua obra literária deram origem à chamada tradição gardneriana, pessoas que
seguem suas práticas.
Um outro nome aparece como celebridade no mundo da bruxaria wicca: Alex Sanders. A
princípio um discípulo de Gardner, Sanders desenvolve uma obra própria e dá origem à tradição
alexandrina de wicca.

Autores nacionais
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A partir da década de 1990, no Brasil, os livros de wicca têm aparecido nas livrarias já
com autores brasileiros, embora a maior parte da literatura sobre o assunto seja importada. A
autora que mais se destaca é Márcia Frazão, pioneira dessa literatura em português. Até o
momento, ela publicou sete livros, sendo seis sobre bruxaria wicca e um sobre oráculos. Existem
pelo menos mais três autores brasileiros de livros sobre a wicca. Luiza Lagôas lançou, em 1998,
um livro sobre wicca destinado ao público adolescente. Claudiney Prieto escreveu dois livros
sobre o assunto, o último lançado em 2000. Cláudio Crow Quintino também lançou um livro
sobre wicca em 2000.
De um modo geral, a literatura wicca é voltada para iniciantes. Os livros contêm
informação sobre a religião wicca, alguns rituais para praticantes solitários ou covens, exercícios,
e algumas receitas de feitiços. Há informações sobre ervas, planetas, deuses, cores e
procedimentos mágicos, segundo os fins desejados, com um único aviso: “faça o que quiser,
desde que não machuque ninguém”. Esta é, basicamente, toda moral wiccana. Sua única lei é um
desdobramento dessa moral: a lei do retorno tríplice, segundo a qual qualquer bem ou mal feito
ou enviado retorna três vezes àquele que o enviou.
Luiza Lagôas é bailarina e reside em Niterói. Como já dissemos, seu livro destina-se ao
público adolescente, prioritariamente a meninas, que desenvolveriam com as amigas um círculo
ou coven. O livro explica quando e como fazer os sabás e dá receitas de feitiços e outros rituais.
O final do livro guarda um agradecimento especial àqueles que tornaram o livro viável, entre eles
Márcia Frazão. Claudiney Prieto é uma das lideranças da wicca no país. Fundador e presidente da
ABRA-WICCA, Associação Brasileira Para a Religião e Filosofia Wicca, aparece freqüentemente

nos meios de comunicação falando sobre a wicca. Reside em São Paulo, onde dá cursos sobre
bruxaria. Seus livros seguem a idéia de apresentação da wicca a um público iniciante, fornecendo
listas de rituais, feitiços, instrumentos, mitos, entre outros. Cláudio Crow Quintino é tradutor de
várias obras sobre wicca em língua inglesa. A partir deste trabalho, decidiu escrever seu próprio
livro, que não difere muito dos outros.
Os livros de Márcia Frazão indicam as crenças básicas da religião wicca, rituais, feitiços,
leitura de oráculos e uma boa dose de autobiografia. É através de suas experiências pessoais que
Frazão ensina grande parte do que aprendeu. Ela afirma ter aprendido bruxaria com as mulheres
de suas família: as avós materna e paterna e algumas tias, todas bruxas. Seus livros são dirigidos
ao público feminino. Existe um tipo de feminismo em Frazão que é próximo do “feminismo
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essencialista” (CASTELLS, 2000). Frazão exalta um modo feminino de ser em contraposição ao


modo masculino de ser, tendo em vista, como meta, uma nova sociedade mais feminina. O modo
de ser masculino é descrito como retilíneo, enquanto o feminino é descrito como curvilíneo. O
“mundo retilíneo” dos homens é o do capitalismo, da opressão feminina, da ciência, da razão
iluminista que não crê na magia (desencantamento do mundo). O “mundo curvilíneo” é o das
emoções, da magia, da natureza, da delicadeza feminina. Os modos feminino e masculino de ser,
além de construírem a realidade que nos cerca – patriarcado e matriarcado -, são naturalizados e
expressos como inerentes a cada sexo, ou seja, como parte de sua essência. A essência feminina
seria mais interessante, senão superior, para servir de parâmetro para uma reformulação de nossa
sociedade, vista como decadente, desprovida de amor ao próximo e à natureza. Frazão crê, como
as feministas essencialistas, que houve um período de matriarcado na História da humanidade,
marcado pela harmonia social e com a natureza.
Segundo Castells (2000), o feminismo essencialista coaduna ideais feministas com o
espiritualismo e o ecofeminismo. Do nosso ponto de vista, a wicca não está longe de poder ser
classificada como espiritualismo, pois, como veremos, ela é parte do movimento Nova Era, ou
ecofeminismo, uma vez que as divindades da wicca estão intimamente relacionadas à natureza e,
portanto, a defesa da natureza tanto quanto a defesa dos direitos da mulher parecem estar em
pleno acordo com o pensamento wiccano.

Wicca Tupiniquim?

Ao perguntarmos às bruxas se havia uma forma genuinamente brasileira de bruxaria, dois


tipo de resposta vieram à tona. No âmbito da magia, o sincretismo africano pode ser visto como
uma genuína bruxaria brasileira. No que concerne à wicca, adaptações precisas podem vir a
revelar o que uma bruxa chamou de “wicca tupiniquim”.
O candomblé e a umbanda, tratados como cultos afro-brasileiros, podem ser vistos como
expressão de uma bruxaria brasileira. A mãe-de-santo, tão sacerdotisa quanto a bruxa wiccana,
conhecedora de ervas, curas, orações, danças, feitiços é vista como uma espécie de bruxa. é
brasileira na medida em que foi formulada no Brasil, a partir de elementos presentes em nossa
cultura. O candomblé pode ser visto como mais próximo do paganismo do que a umbanda,
embora ambos sejam sincréticos. A umbanda ocupa uma posição mais próxima ao espiritismo do
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que ao paganismo. As concepções de magia presentes nestas duas religiões, contudo, são
fundamentais para compreendermos as concepções mágicas do brasileiro (MAGGIE, 1992) e
também das bruxas que pesquisamos. Concepções de feitiçaria ligadas ao dom, à mediunidade,
ao contato com espíritos estão presentes nas bruxas brasileiras.
Quanto à wicca, especificamente, uma série de adaptações possibilitam pensarmos numa
wicca à brasileira. A primeira, como apontamos, é a concepção de bruxaria vinculada às
concepções de magia presentes na sociedade brasileira, sobretudo a advinda dos cultos afro-
brasileiros. Deste modo, quando a bruxa afirma possuir um dom ou um poder, este se apresenta
de duas formas distintas: sob a forma de mediunidade ou sob a forma de paranormalidade. No
primeiro caso, diferentes tipos de contato com espíritos tomam forma. No segundo caso, poderes
mentais ou advindos de estados emocionais alterados são relatados, entre eles: movimentar
objetos, ler mentes, sugestionar mentes, prever o futuro, ver o passado, telepatia, intuição,
modificar o destino. Quanto à mediunidade, ela se apresenta das seguintes formas: ver espíritos,
vultos ou reflexos, ouvir espíritos, comandar espíritos, perceber sua presença.
Uma das adaptações que permitem falar em wicca brasileira é a adequação do calendário
ao hemisfério sul. O calendário original da wicca segue as estações do ano no hemisfério norte.
Os sabás são comemorados segundo este calendário sazonal, que quando é adaptado ao sul,
inverte as datas de comemoração, pois quando é inverno no hemisfério norte, é verão no sul. Esta
inversão não é usada por todas as bruxas: algumas mantêm suas comemorações rituais seguindo o
calendário do norte, o que gera uma primeira classificação entre elas: ser nortista ou sulista. O
calendário é um ponto importante da prática da wicca, e é possível observar-se que esta é um
polêmica freqüente. Cada lado procura argumentos próprios para legitimar a escolha por um ou
outro calendário, e até mesmo um calendário misto já foi suscitado, onde os solstícios e
equinócios seriam realizados pelo sul e os sabás maiores pelo norte. Há um problema de fato:
quando os sabás seguem o calendário norte, as celebrações e seus temas rituais freqüentemente
acompanham aqueles do cristianismo, com datas muito próximas. Como exemplo, podemos falar
sobre o Natal: comemorado pelo cristianismo em 25 de dezembro, ele está próximo a um dos
sabás das bruxas, Yule, cujo tema é exatamente o nascimento do Deus. No hemisfério norte, Yule
marca o solstício de inverno, e é comemorado entre 21 e 23 de dezembro, próximo ao Natal.
Segundo o calendário do hemisfério sul, ele é comemorado no inverno também, entre 21 e 23 de
junho, perto das festas juninas e não do Natal. O choque entre o calendário da wicca e o
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calendário de festas cristãs, vistas como originárias dos sabás, faz com que algumas bruxas optem
por manter o calendário do hemisfério norte, pois este não entra em choque com as
comemorações religiosas mais amplas de nossa sociedade. Há outros argumentos mais ou menos
mágicos para a manutenção de tal ou qual calendário. Importa aqui somente ressaltar que a
prática estabelecida para o sul fornece uma ruptura ainda mais brusca com a sociedade cristã.
Além desta, uma outra adaptação de calendário diz respeito também à flora nativa. As
bruxas que seguem uma inspiração celta costumam também se orientar por um calendário de
origem celta em que a cada mês do ano corresponde uma árvore. Suas propriedade mágicas
entram em sintonia com as atribuições de cada mês, numa série complexa de associações.
Algumas bruxas, uma vez estabelecido o calendário para o sul, modificaram as árvores de cada
mês, introduzindo árvores pertencentes à flora brasileira, e que cresçam em solo nativo. Árvores
dificilmente encontradas aqui, como o carvalho, foram permutadas por outras mais facilmente
encontradas. Há uma série de permutas possíveis para árvores, frutas e ervas de origem européia.
Seguindo este raciocínio, observamos também que as ervas, flores, frutas utilizadas em
feitiços podem ser adaptadas à realidade brasileira. Ervas usadas no sincretismo africano,
inclusive, podem vir a manter as mesmas propriedades para a bruxa wiccana brasileira, como a
arruda. Ervas que não são encontradas no Brasil, mas estão presentes nas receitas e no folclore
europeu, como a mandrágora, podem ser permutadas por ervas nativas e usadas do mesmo modo
que as receitas indicam.
Uma outra adaptação possível é o panteão. Como a wicca é um sistema que aceita
diversos panteões, nada impede que a bruxa brasileira utilize panteões africanos ou indígenas em
seus rituais. Cabe a ela decidir. Da mesma forma, lendas e folclore de nossa cultura popular
podem ser inseridos nos rituais, como uma forma de manter a relação com a terra cultuada, em
sua posição geográfica e histórica. Frazão é uma bruxa que realiza este tipo de inserção.
Normalmente afeita a divindades gregas, uma de suas obras (1996) apresenta a figura de
Yemanjá. Frazão também é uma pessoa preocupada com o folclore nacional, e tenta resgatar a
bruxa brasileira na figura da rezadeira ou benzedeira. Mulher humilde, de pouca instrução, que
ajuda sem cobrar nada, que detém conhecimentos de ervas, orações e feitiços, ela é apresentada
como a bruxa folclórica do Brasil, pois se aproxima da figura européia da curandeira, e
normalmente tem influência portuguesa e indígena.
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Para outras bruxas, todavia, a wicca é um sistema importado da Inglaterra, estrangeiro ao


Brasil, e assim deve ser mantido. Não aceitam a inversão do calendário, não aceitam a entrada do
folclore nacional em seu sistema nem procuram a adaptação da herbolária mágica. Permanecem,
deste modo, fiéis à wicca segundo se apresenta para o hemisfério norte, especialmente através de
autores estrangeiros, sites e home pages.

WICCA COMO PARTE DA NOVA ERA

Acima explicamos o que vem a ser a bruxaria moderna ou wicca. Percebemos que ela tem
muito em comum com o fenômeno Nova Era, embora alguns praticantes de wicca não gostem de
ser vistos como pertencentes à Nova Era. Seguiremos explicando o que é a Nova Era e o que
apresenta em comum com a wicca.

O movimento Nova Era

A Nova Era é formada por um conjunto de práticas, valores e comportamentos que


remontam ao movimento beat e à contracultura dos anos 1950 e 1960. Difundiu-se mais
fortemente a partir do movimento hippie, assumindo novas dimensões. O que diferencia a Nova
Era de outros movimentos posteriores à década de 1960 é o seu caráter religioso, de inspiração
pré-moderna. A religiosidade Nova Era foi definida como “religiosidade do Eu”, que refere-se
tanto à falta de mediação entre sujeito e divindade quanto ao fato de que o Eu é o locus da
divindade (HEELAS, 1996).
As atividades e serviços oferecidos pela Nova Era vão de artes divinatórias a terapias não-
convencionais, exercícios de inspiração oriental, vivências xamãnicas, meditação, cursos e
workshops sobre princípios filosóficos de diferentes origens, música Nova Era e world music,
literatura de auto-ajuda, incensos, cristais, pêndulos, imagens de anjos, duendes, fadas, bruxas, e
outros (AMARAL, 1999). Formam ainda o conjunto das atividades Nova Era diversas correntes
espirituais, tradições religiosas e esotéricas, ciências não convencionais, culto a seres
sobrenaturais ou extraterrestres, espiritualidade feminina, ritos pagãos e religiões não-cristãs,
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conhecimento da Deusa, peregrinações, entre outros (HEELAS, 1996). A Nova Era, deste modo, é
constituída por práticas diversas, exercidas em diferentes combinações, independentes da
inserção religiosa de seus praticantes. Constitui-se em um espaço onde o indivíduo elege suas
preferências dentro de um mercado de bens simbólicos. Embora haja uma diversidade grande, a
Nova Era apresenta uma língua franca, de veia esotérica, empregada por todos os seus adeptos,
que permite enxergar as diferenças entre as diversas práticas muito mais como aparentes do que
reais (MAGNANI, 1999).
Em quase todas as atividades da Nova Era é possível observar um esquema binário de
organização do mundo que opõe dois conjuntos: de um lado a natureza e de outro a civilização.
No lado “natureza”, observa-se agrupados os seguintes elementos, mais valorizados e
sacralizados pela Nova Era: passado, magia/rito/mito, arte, feminino, infância, Oriente, indígenas,
corpo, inconsciente, intuição, receptibilidade, sensação/emoção, prazer, espontaneidade, ritmo,
gesto/movimento/contato, manipulação direta. No lado “civilização”, apresentam-se os seguintes
elementos: presente, cultura, ciência, tecnologia, masculino, maioridade, Ocidente, europeus,
mente, consciente, racionalidade, crítica, intenção/vontade, esforço, controle, melodia, palavra,
máquinas e ferramentas. A sacralização do lado “natureza” evidencia uma inversão da valoração
que atribuía ao progresso, à racionalidade e à tecnologia papéis centrais na transformação
positiva do mundo, predominante na década de 1950 (CAROZZI, 1999). A contracultura da qual a
Nova Era provém já afirmava essa rejeição aos valores científicos e tecnológicos, embora eles
não sejam rejeitados in toto. Essa ruptura de paradigma pretendida pela Nova Era permitiu que
ela influenciasse alguns movimentos sociais como as alas espiritualistas dos movimentos
ambientalista e feminista (TERRIN, 1996).
A ciência é denunciada pela Nova Era como objetivista, mecanicista, determinista,
positivista e linear. Há uma tendência à procura por uma mudança de paradigma em todas as
áreas do conhecimento. Esta mudança se direciona para a transformação individual, sacralização
do self e da natureza, cura, espiritualidade, sincretismo, liberação do corpo, anti-autoritarismo e
autonomia. Há um propósito milenarista na Nova Era que se expressa na busca pela instauração
de uma nova era para a humanidade. Ao mesmo tempo, seu discurso pode ser visto como pós-
tradicional na medida em que é contrário à modernidade e ao projeto iluminista do Ocidente
(TERRIN, 1996). Torna-se, deste modo, uma narrativa romântica.
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Além de uma ala contracultural, a Nova Era apresenta também uma ala capitalista. Esta
ala não vê contradição entre o sucesso no mercado e o progresso espiritual (HEELAS, 1996).
A contracultura que influenciou a Nova Era constituía o estilo de vida da juventude
universitária de classe média (HARRIS, 1978), o que ainda hoje se reflete na posição sócio-
econômica dos new agers. Os praticantes da Nova Era são majoritariamente habitantes urbanos
do Ocidente, com altos graus de educação formal e acesso a informação, e que participam de sua
extensa gama de atividades. São indivíduos preocupados com a qualidade de vida e interessados
por temas como filosofias orientais, ecologia, valorização do feminino e terapias não-
convencionais (CONTEPOMI, 1999).
O espaço de consumo da Nova Era é o das lojas que vendem seus produtos, centros
terapêuticos voltados à medicina alternativa, feiras, seminários, festivais, congressos, eventos e
encontros onde um mercado de produtos e serviços é oferecido e consumido.

Heelas (1996) é o autor que melhor trata a questão da diversidade que a Nova Era
apresenta. Embora as fontes utilizadas por este movimento sejam inúmeras e diversas, não
existem muitos conflitos de crença na Nova Era. Pelo contrário, maneiras a princípio diferentes
de ser Nova Era partem dos mesmos pressupostos básicos a respeito da condição humana. Para
este autor, existe uma constância em meio à diversidade, que se apresenta numa “língua franca”,
de veia esotérica, empregada por todos os que fazem parte deste movimento. As diferenças entre
as práticas são mais aparentes do que reais. Quanto à maneira como vivem, os adeptos da Nova
Era seguem caminhos os mais divergentes. Ela não é um movimento organizado, existindo
mesmo um certo grau de competição e rivalidade em seu interior. Poderia ser definida como um
conjunto de caminhos que representam, na verdade, variações sobre o tema da “religiosidade do
eu”.
Heelas (1996) apresenta os pressupostos básicos, por assim dizer, do pensamento e crença
enquadrados sob a categoria Nova Era. As mais importantes são: toda vida (existência) é
manifestação do Espírito (cosmo, divindade); o objetivo de toda existência é proporcionar a
manifestação mais plena do Amor; todas as religiões são expressões desta mesma realidade
interior; toda vida é apenas o véu exterior de uma realidade invisível interior e causal; os seres
humanos são criaturas de natureza dupla, possuindo um corpo e uma alma; o corpo é limitado e
tende ao materialismo; a alma é infinita e tende ao amor; existem mestres espirituais; toda vida
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consiste em energia interligada; embora façamos parte da dinâmica do amor cósmico, somos co-
responsáveis pelo estado de nossos próprios eus, de nosso meio ambiente e de todas as formas de
vida existentes; vivemos agora um período de evolução no sentido de uma transformação
espiritual do planeta.

Wicca como parte do movimento Nova Era

É a bruxaria moderna parte da Nova Era? Do nosso ponto de vista a resposta é afirmativa.
Várias das características da Nova Era podem ser percebidas na bruxaria moderna: a religiosidade
do Eu, a diversidade, os pressupostos, o contraculturalismo, o consumismo (HEELAS, 1996).
A religiosidade do Eu na wicca é expressa de forma análoga à da Nova Era: existem livros
que dão sugestões de rituais, feitiços e encantamentos ao adepto, muitas vezes na forma de auto-
ajuda, mas ele só deve praticar aquilo que sente ser correto. Não há um expoente que traduza em
si legitimação ou autoridade sobre os demais adeptos. Cada um segue aquilo que melhor lhe
apraz, e com isso chegamos a mais um ponto da Nova Era: a falta de mediador entre o sujeito e a
divindade. Na wicca, o praticante não é somente adepto de uma religião, mas ele mesmo espécie
de sacerdote, pois professa os cultos independente de qualquer “funcionário religioso”. Ele se
comunica com o divino sem a interferência de ninguém. Isso vale tanto para praticantes solitários
ou membros de covens.
No caso do coven, o Grão-Sacerdote e/ou Grã-Sacerdotisa não devem ser encarados como
líderes autoritários, nos dois sentidos do termo: tanto não devem eles tomar decisões arbitrárias,
sem consulta prévia ao grupo, quanto não exercem uma autoridade de direito, embora possam a
vir exercer uma autoridade de fato. Em todo caso, a marca de um coven, pelo menos idealmente,
deve ser a confiança que seus membros depositam uns nos outros, e não a autoridade ou qualquer
tipo de hierarquia. Na confiança reside a idéia Nova Era de fazer apenas aquilo que se sente ser
correto. Por outro lado, existe um conhecido texto de wicca, The Charge of the Goddess,
atribuído a Doreen Valiente, que ressalta que o que não é encontrado dentro de si, nunca será
encontrado fora, o que quer dizer que a espiritualidade reside no interior do ser humano.
A diversidade marca a wicca da mesma forma que marca a Nova Era. Diversos panteões
pagãos são usados pelos praticantes, dos lugares mais óbvios aos mais remotos. Entre os panteões
já citados por diversos autores estão o celta, o nórdico, o grego, o romano, o sumério, o havaiano,
africano, nativo sul-americano, nativo norte-americano, indiano, chinês e japonês. E não só nos
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panteões se expressa a diversidade da wicca: ela é, em si, um grande caldeirão de influências. As


oito festas sazonais anuais, ou sabás, seguem a tradição da cultura celta, e são utilizadas por todos
os adeptos, independente do panteão de divindades a ser venerado. Não é raro encontrar um
praticante que louve divindades gregas segundo o calendário celta. As tradições da wicca, isto é,
correntes de práticas e doutrinas que se distinguem segundo sua origem, também apresentam
grande diversidade. Algumas das tradições mais comuns são a Old Dianic, a Diânica (de
inspiração grega e aberta somente a mulheres), a Faery (de inspiração irlandesa), a gardneriana e
a alexandrina. Entre as mais conhecidas, estão ainda as tradições escocesa (PectiWita) e italiana
(stregheria), ambas utilizando o calendário festivo celta. Há autores (FARRAR,1999), inclusive,
que afirmam que este calendário é parte celta, parte germânico. A wicca é, sem dúvida, de uma
diversidade completa.
Quanto aos pressupostos normalmente aceitos pela Nova Era, e mencionados
anteriormente, a wicca, de um modo geral, aceita-os sem restrições. No entanto, não temos
certeza se está de acordo com o pressuposto de que a “personalidade exterior” tende ao
materialismo e o “ser interior” ao amor. É certo que a wicca enxerga o ser humano como cheio de
potenciais e não visa fazer o mal ao próximo, mas as constantes receitas de feitiços para ganhos
materiais faz com que nos indaguemos a respeito deste pressuposto. Tampouco conseguimos
visualizar a existência de mestres espirituais entre os praticantes de wicca. O mestre espiritual é
um espírito que instrui o sujeito em determinados ramos de conhecimento e aconselha suas ações.
Existem autores que são mais lidos, o que nem sempre significa que sejam os mais aceitos. É
provável que os primeiros autores sobre a wicca, Gerald Gardner e Alex Sanders, tidos como
disseminadores da bruxaria moderna e fundadores das tradições gardneriana e alexandrina, sejam
os únicos em posição de serem aceitos como possíveis mestres. No entanto, os dois já são
falecidos e suas obras são de difícil acesso tanto no Brasil quanto no exterior. O Alto Sacerdote
ou a Alta Sacerdotisa, quando ensinam bruxaria aos iniciantes, podem ser vistos como mestres
também.
Os demais pressupostos nos parecem bem aceitos na wicca. Toda existência é vista como
manifestação das divindades, o que se expressa na proibição de sacrifícios animais ou uso de
qualquer componente animal que tenha causado dano ao animal em questão, mas apenas para uso
ritual ou em feitiços. Isso não faz com que os praticantes de wicca sejam todos vegetarianos, nem
o vegetarianismo é pré-requisito à participação nesta religião. É possível, inclusive, acharmos
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feitiços que incluam um pedaço de carne de vaca, peixe ou morcego na receita, ou feitiços que
consistem em receitas culinárias que envolvem algum tipo de carne animal. Do mesmo modo,
plantas utilizadas em feitiços devem, segundo Frazão (1994), ser colhidas pela própria bruxa,
mediante um pagamento à planta e um singelo pedido de licença. Contudo, as bruxas não têm que
colher toda comida que ingerem, como seria também lógico imaginar. Parece aqui que a “veia
utilitária” da Nova Era fala também através da bruxaria moderna. O utilitarismo da Nova Era,
para Heelas (1996), aparece claramente quando o Eu é acionado e tratado como um meio para
chegar a determinados fins materiais e psicológicos. É impossível desvencilhar-se da paraticidade
do mundo moderno, ficando os costumes de respeito à natureza limitados à esfera do uso mágico
e ritual de plantas e produtos animais. O utilitarismo se expressa, ainda, na prática de feitiços. É
comum as bruxas fazerem feitiços para si buscando melhoria financeira, um novo amor ou apenas
tempo bom.
O objetivo da vida, na wicca como na Nova Era, é a manifestação do Amor. Na bruxaria,
o Amor é sinônimo de Vida, numa acepção que nos remete a Freud e a sua teoria sobre instinto
de vida e punção de morte (MARCUSE, 1969). O amor é vida na medida em que se associa ao
sexo, e a wicca é uma prática bastante sexualizada em toda sua simbologia ritual. Como vimos
acima, os instrumentos pontiagudos, como a espada, athame e varinha, diz-se que pertencem ao
Deus, e simbolizam seu falo masculino, força criadora e doadora de vida. O caldeirão e a taça
pertencem à Deusa e representam seu útero gerador de vida, sua força criativa. A taça e o athame
são usados ritualmente para simular a união entre as divindades masculina e feminina, união essa
que é fonte de vida pois está relacionada às estações do ano e à vida vegetal e animal bem como à
sobrevivência humana. Outros pontos dessa sexualização são o hábito de realizar-se os rituais
“vestidos de céu” (nus) e eventualmente a união divina não ser representada através do athame e
da taça, mas ser consumada de fato entre o Sacerdote e a Sacerdotisa.
Quanto ao consumismo, existem diversas lojas esotéricas que vendem produtos
relacionados à wicca. Pedras, incensos, ervas secas, incensários, caldeirões, punhais e até mesmo
vassouras podem ser encontradas nessas lojas, bem como uma profusão de livros sobre o assunto.
Completam a lista de comparas da bruxa diversos oráculos como o tarot ou o jogo de runas,
também encontrados à venda. Não só estão esses produtos disponíveis em diversas lojas, como
estas lojas se encontram com facilidade no Rio de Janeiro. É de se imaginar que o consumo de
produtos esotéricos, ligados à Nova Era, movimente uma boa quantia em dinheiro. Quanto às
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oficinas, cursos, seminários e retiros de que fala Heelas (1996), eles são comuns também no Rio.
Não temos informações sobre seus freqüentadores, mas uma das entrevistadas organizou alguns
eventos de Nova Era, espécie de feiras onde palestras e cursos eram ministrados e atendimento
personalizado era dado por profissionais de várias áreas da Nova Era. Outras três entrevistadas e
um entrevistado já fizeram parte de eventos similares como expositores, locais onde trabalhavam
como astrólogas, palestrantes, runólogas ou tarólogas.
Apesar da esfera de consumismo atingir a wicca, entendemos que ela se enquadra melhor
na ala contracultural da Nova Era do que na ala capitalista (HEELAS, 1996). A wicca não
apresenta uma filosofia de “ganhar dinheiro” ou “obter sucesso no mercado”, que a ala capitalista
da Nova Era apresenta. Ela estaria mais próxima da vertente contracultural pelo tipo de relação
que mantém com a natureza. Esta é enxergada como o próprio corpo da Deusa, parte integrante
da divindade. A defesa da natureza é, portanto, a defesa da própria divindade. Há uma ânsia por
fazer-se rituais em contato com a natureza, que é vista romanticamente como bondosa em
contraposição à civilização moderna, vista como destrutiva. A tentativa de libertar-se das
instituições da modernidade é aqui, na verdade, a tentativa de estar mais diretamente ligada à
própria divindade. Este foi o caminho de Frazão, por exemplo, que se mudou do Rio de Janeiro
para Friburgo, no interior do estado, para estar mais próxima de um determinado estilo de vida,
mais próxima à natureza.
Quanto à abordagem tradicional ou pós-tradicional, é comum que os livros sobre a wicca
apresentem-na como bruxaria moderna, herdeira da bruxaria “antiga”, chamada Fé Antiga, a
Arte, Antiga Religião. A bruxaria seria a religião mais antiga do mundo, a primeira de todas,
sobrevivente do período matriarcal da civilização. Com esta crença em vista, não é incomum os
paraticantes de wicca procurarem traços do matriarcado nos cultos a divindades do período
patriarcal, como o culto da deusa Diana. O recurso à pré-história da humanidade (matriarcado) é
um recurso que visa a legitimação de uma prática que, se algum dia existiu de fato, foi quase
completamente modificada e apresenta-se sobre nova roupagem, como uma bruxaria moderna.
Os panteões pagãos ocidentais só poderiam ser buscados em tempos antigos e medievais. Eles
encerram assim uma porção de tradição numa prática que foi reformulada – na melhor das
hipóteses - durante e após a Inquisição (FRAZÃO, 1994). Se o uso que fazem dessa tradição é o
mesmo uso que a Nova Era faz do tradicional, podemos então seguir a análise de Heelas (1996), e
afirmar que a wicca é pós-tradicional, especialmente se entendermos que é uma religião de culto
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não-centralizado, onde o julgamento individual do que deve ou não ser feito e aceito é a única
autoridade válida.

Tradição e Modernidade

A Nova Era se apresenta, segundo Heelas, (1996), como um discurso contrário à


modernidade, em particular ao projeto iluminista, um discurso pós-tradicional. Ela faz recurso ao
tradicional para formular um discurso que é ao mesmo tempo contrário à modernidade, pois se
lhe constitui uma crítica, e que se insere na modernidade. A partir desta análise, pode ser
compreendida como pós-moderna.
Do mesmo modo, a bruxaria wicca busca no tradicional elementos que possam formular
uma crítica à modernidade, ao mesmo tempo em que está inserida nela. Como tradição e
modernidade dialogam, tanto para o âmbito da Nova Era quanto para a wicca? Desejamos
apontar o diálogo entre a identidade tradicional da bruxa e a identidade moderna da mulher
contemporânea, que observaremos adiante. A pergunta, neste sentido, é em que medida uma
identidade tradicional como a de bruxa é reapropriada na modernidade, e para que fins.
A tradição e a modernidade devem ter sua oposição relativizada, pois a modernização da
tradição tem sido fundamental para a reprodução da modernidade, e tem se articulado ao
desenvolvimento de instituições tradicionais na modernidade. A modernização da tradição
consiste em adaptar a tradição ao mundo moderno, racionalizando-a, ou seja, apresentando
argumentos a seu favor e desenvolvendo práticas. Não devemos supor que haja exatamente uma
ruptura entre modernidade e tradição. Na modernidade, as tradições que antes dependiam de
contextos locais e de uma forte ritualização, puderam se livrar desses constrangimentos espaço-
temporais. Elas podem agora, inclusive, se reproduzir diretamente através de meios de
comunicação de massa (DOMINGUES, 1999). Julgamos que este é o caso das bruxas modernas e
da wicca.
Nas culturas tradicionais, segundo Giddens (1991), o passado é honrado e os símbolos
valorizados porque perpetuam a experiência de gerações. A tradição é uma maneira de lidar com
o tempo e o espaço que insere qualquer atividade numa continuidade entre passado, presente e
futuro, que são estruturados por práticas sociais recorrentes. Apesar disso, afirma o autor, a
tradição não é estática porque é reinventada a cada geração. Ela tanto resiste à mudança quanto
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pertence a um contexto no qual existem poucos elementos temporais e espaciais em cujos termos
a mudança possa ser capaz de ter alguma forma significativa.
Nas culturas orais, as mais tradicionais de todas, a tradição não é reconhecida como tal.
Para compreendermos a tradição como distinta de outros modos de organizar a ação e a
experiência, é preciso penetrar no espaço-tempo de maneiras que só são possíveis com a
intervenção da escrita (GIDDENS, 1991). A escrita expande o nível de distanciamento espaço-
tempo, criando uma perspectiva de passado, presente e futuro onde a apropriação reflexiva do
conhecimento pode ser destacada da tradição. Na civilizações pré-modernas, a reflexividade
ainda está limitada à reinterpretação da tradição, de modo que o tempo passado tem maior peso
do que o futuro. Sua rotina prende-se à tradição. Na modernidade, não se sanciona uma prática
por ser tradicional. A tradição pode até ser justificada, mas apenas à luz do conhecimento, que
não é autenticado por ela. A Nova Era, em seu recurso à tradição, nada mais faz do que recuperar
práticas tradicionais que são revistas com olhos modernos. Neste caso, tradição e ciência (razão
moderna) podem algumas vezes se fundir.
A tradição justificada e o hábito quando combinados resultam que, mesmo nas sociedades
mais modernizadas, a tradição continua a desempenhar um papel. No entanto, uma tradição que é
justificada é uma tradição falsificada, pois recebe sua identidade apenas da reflexividade moderna
(GIDDENS, 1991). A reflexividade da vida moderna consiste em que as práticas são examinadas e
reformadas constantemente à luz de informação renovada sobre elas mesmas, o que altera o seu
caráter.
Quando a razão substituiu a tradição, ela parecia oferecer uma maior certeza, mas, afirma
Giddens (1991), isto parece persuasivo apenas se não atentarmos para o fato de que a
reflexividade da modernidade subverte a razão, pelo menos onde ela é ganho de conhecimento
certo, visto que este conhecimento está sendo reflexivamente refeito todo o tempo. Nunca
estamos seguros de que qualquer dado do conhecimento não vá ser revisado. Na modernidade,
não existem certezas. Para o autor, é a íntima relação entre o Iluminismo e a defesa da razão que
tem feito com que a ciência natural seja tomada como distinção entre a modernidade e a pré-
modernidade. O pensamento iluminista e a cultura ocidental emergiram de um contexto religioso
que enfatizava a teologia e a graça divina. A divina providência foi uma idéia diretiva da
cristandade. Sem estas orientações, afirma ele, o Iluminismo dificilmente teria sido possível. Não
é surpreendente, portanto, que a defesa da razão apenas remodele idéias de providência ao invés
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de extinguí-las. A lei divina foi substituída pela certeza da observação empírica, e a providência
divina pelo progresso. Giddens (1991) aponta ainda a simultaneidade conjuntural do crescimento
do poder europeu com a ascensão da razão como a origem da suposição de que essa nova
perspectiva moderna fundamentava-se em base sólida e oferecia segurança ao mesmo tempo em
que emancipava da tradição.

Religião, tradição e o sujeito moderno

Na modernidade, os sujeitos desencaixados possuem características como fluidez,


heterogeneidade, personalidade desenraizada e fugacidade das construções simbólicas e
identidades. Indivíduos e grupos podem vir a perder referenciais (DOMINGUES, 1999). Dentro de
nosso tema, cabe perguntar se a modernidade, e principalmente a modernidade radicalizada
(GIDDENS, 1991), fez com que a mulher perdesse referenciais do feminino, uma pergunta análoga
a de vários autores que estudam a perda do referencial de masculinidade dos homens.
O sujeito moderno não deve obrigações pessoais a ninguém e pode viver onde bem
entender. Sua identidade é um dado em aberto e é de sua própria responsabilidade. É através da
reflexividade que ele escolhe que tipo de pessoa deseja ser, que tipo de vida deseja levar, para
onde quer ir, que profissão ter. Em limites mais ou menos largos ou estreitos, dependendo da
conjuntura material dada (recursos intelectuais, materiais e de poder), essas são decisões
pensadas pelo sujeito. Há, na modernidade, uma forte individualização, quando o sujeito passa a
ter de construir sua trajetória. A construção dessa identidade, no entanto, demandam uma certa
estabilidade. No mundo moderno, essa estabilidade pode ser buscada no recurso à tradição ou à
religião, por exemplo. O recurso à estabilidade é o inverso, e também uma resposta aos
mecanismos de desencaixe (GIDDENS, 1991). Como membro de um grupo ou de uma religião (ou
classe, ou etnia) o indivíduo se sente incluído por esse grupo, que lhe dá sentido (DOMINGUES,
1999).
Acreditamos ser este o caso das bruxas pesquisadas. Aquelas que foram entrevistadas
afirmaram que “sempre” tinham acreditado no sistema de crenças da wicca, mas não havia um
nome a ser dado a este seu sistema. Elas se definem como sendo bruxas desde “sempre”, e
justificam esta definição com recursos parecidos: jogando cartas como oráculo intuitivamente
quando crianças, apresentando premonições e visões ou uma “forte relação com a lua”. É a
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religião, nesse caso, que dá sentido a essas experiências pessoais, ao mesmo tempo em que
fornece um grupo que apóia o sujeito nesse tipo de experiência e faz com que ele encontre uma
identidade pessoal vinculada a uma identidade coletiva, a de ser bruxa. O que buscamos saber é o
quanto essa identidade não está vinculada também com a experiência de gênero.
A construção da biografia, no que tange o gênero, é mais complexa na modernidade do
que dentro de modelos onde os papéis sexuais e a duração do casamento já eram dados. No caso
especificamente das mulheres, no começo da modernidade elas eram tidas como seres
incompletos, indivíduos limitados, em cuja racionalidade não se devia confiar (DOMINGUES,
1999). Seriam dotadas de pouca razão e muita emocionalidade, o que fazia delas seres frágeis.
Isso fazia com que fossem excluídas da vida pública e subordinadas aos maridos e pais,
enclausuradas na esfera doméstica. Mas as transformações de lá para cá foram grandes. A
revolução feminista mudou o perfil da vida privada de modo que as mulheres têm ganho mais
poder na família. A esfera pública deixou, por outro lado, de ser exclusividade masculina. Deste
modo, a mulher atingiu uma maior individualização: ela passa a responder por seus próprios atos
e decisões, livre para tomá-los e correr riscos semelhantes aos masculinos.
O reencaixe alcançado pela religião, no caso das bruxas, fornece uma valorização de uma
maneira de ser que talvez não fosse valorizada em outros contextos. Dons como intuição, visões e
premonições afastam a bruxa do ser humano comum. Nos relatos de algumas bruxas, esses dons
acarretam – tanto quanto a própria condição de bruxa – um estigma que, a princípio, elas não
desejam. O reforço de um grupo que apresenta um mesmo padrão funciona como forma de
reencaixe.
Para Domingues (1999), todas as formas de reencaixe, tanto pela religião quanto pelo
gênero, apontam para formas particulares de desencaixe que são impulsionadas pelo
desenvolvimento do mercado e estado moderno e pelo modo como o indivíduo moderno foi
pensado. Esses desencaixes podem impulsionar reencaixes que ressuscitam ou dão continuidade a
tradições díspares. No nosso caso, vemos a bruxaria com um apelo não só ao reencaixe pela
religião, mas também pela tradição uma vez que a religião faz uma releitura de tradições pagãs e
a partir dessas releituras tradicionais e de pontos de vista da modernidade constrói determinadas
identidades.
Para Giddens (1991), as cosmologias religiosas proporcionam interpretações morais e
práticas da vida pessoal e social, bem como do mundo natural. Representa um ambiente de
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segurança para o fiel. Não só as divindades e forças religiosas fornecem apoio, mas também
eventuais funcionários religiosos. As crenças religiosas trazem fidedignidade à vivência de
eventos e situações e formam uma estrutura em termos da qual podem ser explicados e
respondidos.
Para este autor, um dos contextos principais das relações de confiança na pré-
modernidade era a própria tradição. A tradição, diferente da religião, não se refere a um corpo
particular de crenças e práticas, mas à sua organização, especialmente temporal. A estruturação
do tempo na tradição é diferente. É uma temporalidade de repetição onde o passado é o meio de
organizar o futuro. A modernidade ao contrário, é voltada para o futuro. Na verdade, na tradição,
nem o passado nem o futuro são separados do presente contínuo, como na modernidade. Na
tradição, o passado é incorporado às práticas presentes de forma que o futuro se curva para cruzar
o passado, constituindo uma temporalidade circular.
Deste modo entendemos porque a tradição contribui para a segurança ontológica
(GIDDENS, 1991), pois mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro,
vinculando essa confiança a práticas rotinizadas. A segurança ontológica é uma forma de
sentimentos de segurança que se referem à crença na continuidade e constância de ambientes de
ação circundantes, o que não quer dizer que os cenários tradicionais fossem mais
“psicologicamente aconchegantes” do que os modernos.
No caso da religião, ela tem uma influência dual. Suas crenças e práticas fornecem um
refúgio do cotidiano, mas também podem se transformar em fonte de ansiedade e apreensão.
Segundo Giddens (1991), isto se deve ao fato de que a religião permeia muitos aspectos da
atividade social. As ameaças naturais podem ser interpretadas através dos códigos religiosos. A
religião pode criar seus próprios terrores.
Quanto à influência da religião em geral na vida moderna, pode-se dizer que houve um
declínio no envolvimento popular com igrejas e da influência das instituições religiosas. Esse
declínio se deve a alguns fatores, dentre eles a racionalização da vida e dos sistemas de
explicação do mundo. A religião hoje é uma escolha do indivíduo. Ela se mantém importante
quando se mistura com outras questões da vida pessoal que não apenas a relação com o
sobrenatural (DOMINGUES, 1999). Pode ser um meio de preservar uma determinada identidade
sob risco na modernidade, ou de construir uma. No primeiro caso, que acreditamos ser o caso da
bruxaria, a identidade é mantida através da recuperação de doutrinas, crenças e práticas de um
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passado sagrado, que é exatamente o que entendemos que a wicca faz. Essas doutrinas, crenças e
práticas são modificadas e sofrem inovações, dando ensejo a um perfil religioso novo. A religião
passa a servir de reencaixe, tradicional apenas na aparência, porém moderna e contemporânea de
fato. É um discurso de retorno à tradição que inova e se direciona para a modernidade. A wicca é
um exemplo disto tanto quanto toda a Nova Era.

BRUXARIA E IDENTIDADE FEMININA

Nesta primeira parte do trabalho tentamos estabelecer um elo entre a bruxaria e a


modernidade passando pela mulher enquanto sujeito. A modernidade é um período marcado pelo
predomínio da razão. O seu surgimento marca o declínio de concepções mágicas sobre o mundo.
A mulher é classicamente um sujeito vinculado à natureza e à magia, e o declínio desta é, de certa
forma, o declínio daquela. Do ponto de vista inverso, a ascensão da magia em nossos tempos
constitui-se tanto uma crítica à razão quanto à modernidade e suas instituições, como a ciência, o
Estado ou o capitalismo. Esta ascensão e crítica serão vistas sob a forma que tomaram
contemporaneamente no movimento Nova Era.
A mulher entra em nossa análise a partir do momento em que, numa determinada prática
mágica – a bruxaria wicca – a sua ligação com a magia e a natureza é exacerbada, e sofre não
uma crítica, mas uma reafirmação. Essa reafirmação é, do nosso ponto de vista, a intenção de
construir um novo papel para a mulher, papel este de certa forma vinculado àquele que ela
“perdeu” quando da passagem à modernidade. Em sociedades tradicionais, determinadas visões
de feminino corroboram as atribuições de gênero. Entre estas visões, está a idéia de que a mulher
é mais próxima à natureza do que o homem. A partir destas visões, utilizaremos o pensamento de
Adorno e Horkheimer (1985) para compreendermos como a mulher se tornou sujeito privilegiado
desta relação, e como a modernidade lida com o encantamento e o desencantamento do mundo.
Seguiremos, então, nas definições da identidade feminina e as categorias de bruxaria.
Há na wicca um recurso à tradição como modo de reencaixar a mulher e seu papel de
gênero dentro da modernidade radicalizada (GIDDENS, 1991). A mulher de hoje, pós-revolução
feminista, entrou no mundo competitivo do trabalho, e perdeu espaço nas funções domésticas e
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familiares antes restritas a ela, e - segundo alguns – se masculinizou neste processo. A busca por
uma nova identidade feminina seria, então, a busca por um novo espaço na sociedade, que a
aceite como mulher mas não a discrimine por isso.
Começaremos nossa análise buscando o vínculo entre o papel e as visões do feminino na
sociedade pré-moderna européia e tradicional brasileira, a constituição da modernidade e a
bruxaria através do período inquisitorial europeu e Brasil colonial. Europa e Brasil servem como
exemplos tempo-espaciais de um processo ocidental. Seguiremos com a análise da modernidade e
sua aversão à magia, para então observarmos que a religião é um dos processos de reencaixe dos
sujeitos através e da tradição, o que julgamos também ser o caso dos que procuram na wicca uma
determinada identidade social.

Visões da mulher nos princípios da modernidade

A que tipo de identidade feminina a bruxaria moderna recorre? No nosso entender, àquela
de princípios da modernidade ocidental, de sociedades que estavam em transição para a
modernidade ou mesmo sociedades ainda tradicionais, como o Brasil Colônia, que veremos mais
adiante. A mulher européia do período inquisitorial, por exemplo, foi perseguida pelo papel que
desempenhava naquela sociedade. Curandeira, concorrente do padre na religião doméstica, ela
difundia a cultura popular às crianças numa época em que as escolas rurais eram raras. Este era o
processo de construção do homem moderno, que se deu também pela derrota da mulher-bruxa.
Ela é uma mulher vencida, encarregada da continuidade da sociedade camponesa tradicional,
como curandeira, mãe, filha ou esposa, num tempo de adaptação à modernidade (MUCHEMBLED,
1987).
Na época tratada por Muchembled (1987), séculos XVI e XVII na Europa, e segundo o
direito da época, a mulher era dependente das vontades dos homens: seu pai, marido ou irmão.
No campo, entretanto, a condição feminina se distanciava deste modelo. A necessidade de
trabalhar tanto quanto os homens acarretava uma relativa igualdade entre os cônjuges. Enquanto
peça fundamental na transmissão cultural e nas relações sociais, nas estratégias matrimoniais, na
vida comunitária e familiar, ela dispunha de um determinado conhecimento e poder. A condição
feminina se modifica a partir da entrada lenta do antifeminismo no campo, nos séculos XVII e
XVIII.
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No campo, a mulher é uma produtora: suas atividades são complementares às de seu marido.
Ela não está confinada dentro de casa. Por essência e necessidade, ela é o veículo da cultura
popular que transmite nos diversos locais que freqüenta, reais ou simbólicos: o interior da casa de
outras mulheres na ocasião de um parto, os velórios, o forno, o lavadouro, praças, caminhos,
mercados. Marcam o espaço rural portando um conjunto de conhecimentos e técnicas vindas de
suas mães, e que transmitem às suas filhas. Dentro desses conhecimentos, o tratamento do corpo
é uma das funções primordiais das mulheres. Elas tomavam o lugar dos médicos, enquanto
parteiras e curandeiras. No campo, os médicos eram raros e se encontravam a grandes distâncias.
Sua ligação privilegiada com o corpo humano vinha do próprio cuidado com as crianças. Feridas
e doenças eram por elas tratadas. Seus remédios de base empírica e francamente mágicos eram a
solução em épocas de peste e guerra. Esse tipo de conhecimento valorizava a mulher, que dele
retirava o poder que exercia sobre as crianças, sobre o mundo masculino e sobre as mulheres
mais jovens (MUCHEMBLED, 1987; DEL PRIORE, 1997). Além disso, é às mulheres, enquanto
transmissoras de cultura, que concernem os problemas de religião. Enquanto guardiãs e difusoras
de crenças, as mulheres fazem a passagem da natureza à civilização.
A mulher passou a encarnar o passado mágico que recusa a ideologia dominante: ou se
juntava aos padres, oligarquia alfabetizada e massas submissas ou perecia como bruxa. Os
processos por bruxaria constituiram, portanto, verdadeira pedagogia. Difundiram um novo
modelo religioso onde a mulher estava associada ao perigo e à ação do diabo no mundo, quando
na verdade seu universo era o da tradição popular, da magia e da natureza que ela encarnava. Ao
mesmo tempo, afirmavam a força da civilização escrita, realocando vagarosamente o discurso e a
memória das mulheres na cultura camponesa (MUCHEMBLED, 1987).
A mulher não foi submetida sem alguma resistência. Após o período da Inquisição, já em
plena modernidade, ela conservou, para o essencial, suas funções anteriores, visto que uma
sociedade não abandona em pouco tempo o conhecimento adquirido e utilizado durante mais de
um milênio. Ela continuou a ensinar às crianças a língua materna e manteve a cultura oral,
malgrado o processo de alfabetização, que as deixa de fora. No campo, a mulher guardou uma
importância social que a mulher da cidade perdera, e praticou sua revanche ensinando às crianças
da cidade, como ama de leite, a cultura camponesa, marcando assim a transmissão de
superstições e crenças populares. A escola se transformou em sua concorrente, bem como os
livros. Essa privação da cultura dominante bem como de sua própria cultura oral é observada
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também no campo médico. O avanço da medicina sobre o curandeirismo privou as camponesas


de uma parte de seu poder sobre o corpo humano. A desvalorização da magia e bruxaria toma
delas o prestígio anterior e torna-as suspeitas e perigosas (MUCHEMBLED, 1987; SOUZA, 1989).

Estigmatizar era andar meio caminho no sentido de construir coletivamente um estereótipo de


feitiçaria. A bruxa era associada à prostituta e à mulher lasciva. Mulheres sozinhas ou que
trabalhavam para viver, mulheres sem laços familiares de solidariedade, eram quase sempre tidas
por prostitutas. Nessa categoria entravam mulheres que vendiam filtros de amor, ensinavam
orações para “prender” homem, receitavam beberagens e lavatórios. Magia sexual e prostituição
pareciam andar juntas. O assédio de muitos homens (que era uma história comum entre as
acusadas no Brasil Colônia), a vida errante, o conhecimento de palavras estranhas e ervas
medicinais, tudo contribuía para a construção desse estereótipo. As bruxas ou suspeitas de
bruxaria incorporavam tudo o que se considerava anti-social, perigoso e perturbador. A bruxa é a
antítese do ideal feminino da época (SOUZA, 1989).
O fundamento de toda essa repressão contra a mulher era a idéia de que o homem lhe era
superior, e que a ele, por conseguinte, cabia exercer autoridade. Eva parece ser o princípio desse
mal, inoculando, segundo Araújo (1997), na própria natureza feminina o estigma da
predisposição à transgressão. Nesse ponto, a bruxa é o epíteto da mulher maligna: seus saberes
ocultos e forças mágicas amedrontam e adoecem, saberes esses conferidos pelo próprio diabo e
seus servos endemoniados. E mais: a bruxa é uma mulher lasciva, sexualmente insaciável,
predisposta aos prazeres da carne. Ela é o extremo oposto da mulher idealizada pela sociedade de
então, aquela mulher passiva, submissa, casta, ignorante, mãe de família. Sexualidade e feitiçaria
formam um fio que abarca o estereótipo da bruxa e as acusações sobre ela. Como Souza (1989)
demonstrou, a bruxa é sempre tida como meretriz, pois é uma mulher sozinha e sem marido, que
pratica magia sexual para seus clientes, alcoviteira. A ligação entre sexualidade e feitiçaria fica
mais clara no sabá, reunião em que dizia-se que as bruxas entregavam-se ao coito com o diabo.
Qualquer doença que atacasse uma mulher, segundo Del Priore (1997), era interpretada como
um indício da punição celestial contra os pecados cometidos, ou então vista como feitiço ou sinal
diabólico, uma vez que a natureza feminina era tida como mais vulnerável à tentação do
demônio. Os remédios receitados pelos médicos, além de ineficientes, como a sangria, pareciam
saídos dos próprios livros das feiticeiras, pois carregavam um conteúdo mágico implícito. O
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corpo da mulher era considerado com inferioridade pela medicina de então. Além disso, médicos
e sacerdotes passaram a perseguir mulheres que tinham algum conhecimento empírico sobre o
corpo humano. Esse saber, segundo Del Priore (1997) e Muchembled (1987), era passado de mãe
para filha, dentro de uma tradição oral, e afirmava toda uma cultura feminina. A ciência afasta a
mulher dessa sua tradição.
Nesta época, segundo Del Priore (1997), acreditava-se também nas propriedades curativas
de lagoas e rios. Segundo ela, o elemento líquido inscrevia-se tradicionalmente nos ritos de
fecundidade das mulheres. A ausência ou presença de menstruação era fator determinante para a
saúde da mulher, sua ausência indicando período de esterilidade, a menopausa. Reflexo das fases
da lua, a menstruação inscrevia a mulher no calendário da natureza. Os homens nutriam um
grande preconceito contra o sangue menstrual. Dizia-se que se tratava do sangue mais infecto que
havia no corpo. Saído do útero oco (sem feto), que desta forma se tornava encantado e sedutor,
ele seria capaz de enlouquecer e enfeitiçar quando ingerido, causando visões de fantasmas e
monstros, medo e lágrimas. O tempo da menstruação era o tempo de uma morte simbólica para a
mulher, quando deveria afastar-se de tudo o que era produzido ou se reproduzia, pois sua
influência poderia degenerar e contaminar qualquer coisa. A menstruação remete à própria
sexualidade da mulher, diabólica por natureza, e que se presta à feitiçaria.
Segundo Del Priore (1997), a raiz mens refere-se etimologicamente à mudança da lua. De um
tempo em que facilitava as previsões do tempo, ela passa a se relacionar com a serpente – nossa
velha e boa Eva – e as deusas selênicas. A mulher menstruada passa a ser, então, relacionada com
a morte, a destruição e o diabólico. Para esta autora, a menstruação foi transformada pelas
mulheres de esterilidade em fecundidade, preservando assim valores especificamente femininos.
No Brasil Colônia, como nas sociedades tradicionais, a mulher era submetida à influência
cósmica, relacionada à natureza. Muchembled (1987) também vê a mulher mais próxima da
natureza, e parte daí para localizá-la como a ponte entre a natureza e a cultura, e por isso também
transformada em alvo na luta do erudito racional contra o popular mágico.
Os remédios das curandeiras baseavam-se na semelhança entre as ervas e plantas e partes do
corpo humano. Junto a outros ingredientes, eram utilizadas em mezinhas, chás, lavatórios. O
mundo vegetal levava as mulheres a práticas tradicionais, e as ligava ao quintal onde ervas eram
plantadas, um espaço feminino por excelência, local da subsistência, da criação e da cozinha.
Para Del Priore (1997), a intimidade da mulher com a doença e a morte tornava-a perigosa e
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maldita. A acusação de curandeirismo é uma acusação dupla, portanto: contra mulher e contra o
saber empírico que esta guardava.
Na medicina de então, o corpo da mulher e a natureza feminina apontavam para o seu destino
inescapável: o de ser mãe. Ao mesmo tempo, a natureza feminina apontava não só para um
estatuto biológico, mas moral e metafísico: não apenas mãe, mas frágil e submissa por natureza,
cheia de bons sentimentos. O útero da mulher era quase o símbolo de sua existência: era a
possibilidade de ser mãe e a causa de quase todos os seus achaques. A valorização do útero
levava a uma valorização da sexualidade feminina, mas no sentido de sua disciplina e não de sua
realização. O útero era tido como causa de uma série de enfermidades femininas que iam da
melancolia à loucura ou à ninfomania, doenças essas de conexão íntima com o demônio. Manter
o útero ocupado, ou seja, manter-se grávida, era manter o seu bom funcionamento, pois afinal era
para isso que ele servia (DEL PRIORE, 1997).

Modernidade versus natureza

Por que a natureza é o elemento de ligação e oposição entre a bruxaria, a mulher e a


modernidade? A mulher, sujeito mais próximo à natureza, é também o sujeito mais próximo à
magia dentro da ordem moderna. Vejamos agora que tipo de pensamento operou esta junção na
modernidade, para então entrarmos na visão antropológica deste problema, quando acessaremos
as obras de Mauss e Douglas, sobretudo. Neste tópico, trabalharemos exclusivamente a partir do
pensamento de Adorno e Horkheimer expresso na Dialética do Esclarecimento (1985), onde os
autores se debruçam, entre outros, sobre o problema da racionalidade moderna. Esta obra nos
permite compreender a disjunção fundamental que a modernidade opera entre a natureza e a
razão. Será crucial entendermos esta parte para ingressarmos no pensamento das bruxas acerca da
magia e da bruxaria, principalmente a obra de Márcia Frazão, vistos nas partes subseqüentes
deste trabalho.

Segundo Adorno e Horkheimer (1985), o projeto iluminista é o projeto do esclarecimento.


Seu objetivo é o conhecimento e o poder: livrar os homens do medo e investí-los na posição de
senhores. Seu programa era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e
substituir a imaginação pelo saber. A essência desse saber é a técnica. O saber era a arma para
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dominar a natureza, que tanto amedronta o homem. A natureza que ele deseja controlar. O
entendimento, segundo os autores, é patriarcal: ele vence a superstição e impera sobre a natureza
desencantada. Desencantar o mundo é destruir o animismo.
Para os autores, o pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem
científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, que podem ser
interpretados tanto como axiomas arbitrariamente escolhidos quanto como idéias inatas ou
abstrações supremas. O sistema visado pelo esclarecimento é uma forma de conhecimento que
lide melhor com os fatos e apóie o sujeito na dominação da natureza de maneira mais eficaz.
Podemos perceber porque a natureza é vista como o que pode romper com a modernidade. Sendo
o esclarecimento um projeto de dominar racionalmente a natureza, desencantando o mundo, o
reencantamento do mundo e o apelo ao natural, como faz a Nova Era, constituem uma tentativa
de romper com a modernidade, não necessariamente conseguindo ir além dela, visto que o
recurso à natureza é um recurso ao pré-moderno. O que é atacado com o reencantamento do
mundo ou o retorno à natureza não é o industrialismo ou o capitalismo, mas a própria lógica do
esclarecimento, isto é, da modernidade.
O problema do esclarecimento, segundo os autores, é que ele se reconhece a si mesmo no
mito que tentou destruir. O mito se tornou argumento para a oposição ao esclarecimento.
Significa que ele próprio, mito, adotou o princípio da racionalidade que era a acusação que
pairava sobre o esclarecimento: uma racionalidade corrosiva. Os mitos que foram vítimas do
esclarecimento são, para eles, já o produto do próprio esclarecimento. O primeiro movimento do
mito era de relatar, denominar, dizer a origem, expor, fixar, explicar. Mas cedo deixaram de ser
um relato para tornarem-se uma doutrina. As deidades olímpicas deixam, então, de identificarem-
se com elementos, e passam a significá-los. Tornam-se sua suprema manifestação. É desfeita a
distinção entre a existência e a realidade, e o mundo é submetido ao domínio dos homens. O
mito, segundo eles, se converte em esclarecimento, e a natureza torna-se objetividade. A magia
buscava fins, e atuava pela mimese. A ciência, também em busca de fins, atua agora pelo
distanciamento em relação ao objeto.
A oposição entre o esclarecimento e a mitologia é delineada pela oposição entre a razão e
o irracional. A mitologia conhece o espírito que está imerso na natureza como potência natural. A
realidade exterior e a interior são potências de origem divina ou demoníaca. Para escapar ao
medo supersticioso da natureza, a razão despe tudo o que é objetivo como um disfarce de um
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material caótico, lançando sobre esse material a idéia de que ele escraviza a humanidade. O
esclarecimento repõe a coerência e o sentido dentro da subjetividade, que só se constitui nesse
exato processo. O sujeito se converte na única autoridade irrestrita e vazia. (Aqui encontramos
um elo da modernidade com a religiosidade do eu presente na Nova Era). A natureza se reduz,
então, a uma resistência a esse poder abstrato do sujeito.
Para os autores, o mito patriarcal solar é ele próprio esclarecimento. Eles entendem que a
própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepção teórica
acaba por sucumbir à crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos do espírito,
de verdade, e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista. A
explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a
imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. Mito e esclarecimento, portanto, confundem-se.
No esclarecimento, as explicações do mundo como o nada ou o todo são mitologias. Os caminhos
garantidos para a redenção são práticas mágicas sublimadas. O esclarecimento rompe com as
práticas mágicas anteriores. O método do esclarecimento é o método analítico, a decomposição
pela reflexão. O seu problema é, contudo, que o processo está decidido de antemão, e nisso o
esclarecimento “regride à mitologia da qual jamais soube escapar”. A mitologia refletia a ordem
existente: um processo cíclico, o destino, a dominação do mundo. Para os autores, no mundo
esclarecido a mitologia invadiu a esfera profana.
O eu do esclarecimento extermina todos os vestígios naturais como algo de mitológico,
em busca de comportamentos normalizados, mais “naturais, decentes e racionais”. Esse eu que
não queria nem mesmo ser natural, constituiu o ponto de referência da razão, instância
legisladora da ação torna-se um sujeito transcendental ou lógico. O instinto é visto a partir daí
como mítico, como uma superstição.
O processo do esclarecimento é, entre outras coisas, um processo de afastamento da
natureza e construção da razão em oposição a ela. Um processo mesmo de dominação. Os
autores enxergam nos momentos decisivos da civilização ocidental, da transição para a religião
olímpica ao Renascimento, da Reforma ao ateísmo burguês, e em todas as vezes que novos
povos e camadas sociais recalcavam o mito, o medo da natureza não compreendida e
ameaçadora – conseqüência de sua própria materialização e objetualização –, que era degradado
em superstição animista, e a dominação da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto
da vida. O que mito e esclarecimento guardam em comum é a necessidade de dominar a
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natureza. Uma necessidade patriarcal de elevar a razão ao domínio do caótico. Para os autores, é
com a economia burguesa que o mito é aclarado pela razão. Mas no caminho entre mito e lógica,
o pensamento perdeu a capacidade de refletir sobre si mesmo. O pensamento é aquilo que
distancia os homens da natureza, e permite a sua dominação. O esclarecimento é, portanto, mais
que esclarecimento: ele é natureza perceptível em sua alienação.
A mulher é a representante da natureza por excelência, opondo-se à razão esclarecedora
patriarcal. Ela encarna a fascinação da natureza, do que foi inferiorizado fisiológica, biológica e
socialmente. Para os autores, essa é a origem da dominação feminina na sociedade burguesa. O
estigma da fraqueza que a mulher carrega e o seu desamparo em virtude daquela seriam a
justificação de sua opressão. É interessante notar como os autores acreditam que houve um
período matriarcal da humanidade onde a mulher desfrutava de uma condição mais feliz.
Enquanto ser natural, ela é o produto da história que a desnatura.
O cristianismo exerce, sem dúvida, papel central na dominação da mulher no Ocidente.
Acreditam que ele tentou compensar essa opressão através da ideologia do respeito à mulher,
uma tentativa de relembrar tempos arcaicos, cujo resultado foi o rancor pela mulher e pelo
parazer, visto que o sentimento que melhor se ajusta à opressão é o desprezo, e não o respeito ou
a veneração. Historicamente, o culto da madona teria sido pago com a caça às bruxas, que os
autores entendem ter sido espécie de vingança exercida sobre a imagem da profetisa da era pré-
cristã, que punha em questão a dominação patriarcal. Os autores, em sua concepção da bruxa,
chegam perto do que a própria wicca professa. A bruxa de hoje se remete à sacerdotisa pré-cristã
tanto em sua prática quanto em sua ideologia, buscando o rompimento com o patriarcado através
de uma prática inerentemente feminina, e um retorno a fontes tradicionais em busca de
legitimidade para um fenômeno moderno.
A opressão à mulher guarda, segundo os autores, a intenção de extirpar a tentação de
recair na natureza. E aí exatamente mora a barbárie, o outro lado da cultura, que faz com que a
razão pareça desvanecer-se em sua luta contra a natureza. É aí que o homem forte paga a sua
força de dominação com um cada vez maior distanciamento da natureza, no qual o medo está
sempre proibido. A barbárie, na concepção dos autores, é a civilização trazendo de volta a
natureza terrível como se ela fosse seu último resultado. Os autores vêem a modernidade
afundando, o colapso da civilização burguesa, a autodestruição do esclarecimento, único
pensamento capaz de trazer a liberdade. Na verdade, os autores não fazem uma crítica ao
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esclarecimento, mas observam os rumos que ele tomou, voltando-se ao mito e à natureza ele
próprio e colocando em cheque a liberdade humana, pois é veículo de dominação.
O esclarecimento moderno é mais uma etapa de desmitologização, mas é radical, e nisso se
distingue das mudanças anteriores que colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no
lugar das antigas. Depois que a natureza foi posta de lado a título de prejuízo e mito, restou a
natureza enquanto matéria. A magia transferiu-se para o fazer, a indústria. E temos então que a
indústria e o capitalismo – a sociedade burguesa – são fruto da radicalização do esclarecimento,
do projeto de modernidade, o projeto iluminista.

Não são apenas filósofos como Adorno e Horkheimer, preocupados com a modernidade,
que efetuaram a junção entre a mulher e a natureza, por um lado, e a ciência como expressão do
pensamento racional moderno, do outro. Como vimos, há historiadores como Muchembled
(1987) e Del Priore (1997) que também efetuam esta junção. Outros autores, como Ortner (1979),
apresentam uma oposição entre natureza e cultura, e não natureza e razão. É neste ponto que o
pensamento de Adorno e Horkheimer se fez necessário em nossa análise. Veremos adiante que as
bruxas trabalham como concepções duplas de natureza e civilização. Para entendermos esta
duplicidade, é necessário ter em mente que a cultura nem sempre implica em racionalidade.
Especialmente no pensamento de Frazão, a razão se alinha à civilização, mas não à cultura de
povos em contato direto com a natureza, que ela chama de “primitivos”. O pensamento desta
autora segue, de certo modo, o pensamento de Adorno e Horkheimer. Apenas Frazão não
acredita, como estes autores, que a racionalidade e a civilização possam ser melhores ao homem
do que a natureza. É este ponto que torna o pensamento das bruxas interessante e o distingue de
outras formas de pensamento correntes na sociedade ocidental.
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Bruxaria e feminino

Vejamos agora algumas associações entre bruxaria e feminino para a antropologia. Marcel
Mauss e Mary Douglas são autores que se debruçaram com maior ênfase sobre o tema da magia,
numa abordagem antropológica que foi amplamente utilizada por nós. A idéia da bruxa como ser
marginal foi fundamental na compreensão do universo pesquisado. Não poderíamos, contudo,
nos furtar a mencionar Evans-Pritchard e Durkheim. Este dispensa as apresentações, mas é
necessário dizer que seguimos sua idéia de que a religião é um fenômeno social, cujas
representações são coletivas e expressam realidades coletivas. Quanto ao outro, a hereditariedade
da substância-bruxaria, a bruxa como categoria de acusação e malefício, e sobretudo a magia
como uma lógica de explicação de incidentes (ou o que chamamos de acaso) foram todas idéias
fundamentais para a realização do corrente trabalho.
Não estaremos, no presente momento, demasiadamente preocupados com a estreita
ligação entre a bruxaria e o malefício. As bruxas que pesquisamos não costumam fazer uso de
acusações de malefício, embora possam ser acusadas segundo esta lógica. A acusação de
malefício, contudo, é fruto da própria condição desviante da bruxa, que é o que nos interessa
prioritariamente. A posição estrutural de marginalidade da bruxa numa sociedade será um dos
pontos de apoio da análise do material de campo, vindo as noções de dom e hereditariedade a
seguir.

Uma das obras mais importantes sobre bruxaria é o clássico de Evans-Pritchard, Bruxaria,
Oráculos e Magia entre os Azande (1976). A partir de um estudo de campo na África, o autor
desvenda como funciona a bruxaria na sociedade Zande, para o que ela serve e como regula as
relações sociais. Um dos pontos que nos chamou a atenção nesta obra foi a idéia de que a
categoria bruxo(a) é uma categoria de acusação, uma acusação que é lançada, geralmente, sobre
vizinhos com quem se estabeleceu algum tipo de conflito, e que por isso quereriam à vítima de
bruxaria algum mal. No entanto, existem várias formas de se praticar magia na sociedade Zande,
nem todas maléficas. Evans-Pritchard divide bem a linha entre bruxaria e feitiçaria: a primeira é
praticada por um(a) bruxo(a), pessoa que nasceu com substância-bruxaria em seu corpo, herança
de sua família; o feiticeiro, ao contrário, é aquele que atua através do poder das ervas, sempre no
sentido de praticar o mal.
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No Brasil, bruxa(o) também constitui uma categoria de acusação. Diz-se normalmente


que “fulana é uma bruxa” quando é pessoa que age com maldade. Este tipo de acusação pode ser
ouvida tanto nas ruas quanto nos meios de comunicação. No entanto, esta categoria de acusação,
usada como acima descrito pelo senso comum, nem sempre é sinônimo de uma acusação de uso
de magia. Quando uma pessoa lida com o chamado “ocultismo”, também é comum que se diga
que é bruxa. Por “ocultismo” compreendemos diversas formas de oráculos e conhecimento
esotérico. Neste caso, não costuma constituir acusação, pelo contrário, o domínio de determinado
“conhecimento oculto” pode ser visto como positivo, e aí a categoria bruxa inverte sua valoração
negativa, tornando-se um elogio. Este é o caso das bruxas que estudamos, inseridas neste meio
ocultista, onde o conhecimento serve como uma ferramenta na busca por status.
Aqui, diferentemente dos Azande, a categoria bruxa é uma acusação normalmente
dirigida a mulheres. Maluf (1993) estudou como essa categoria de acusação era usada nas
narrativas dos habitantes da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, Santa Catarina. Lá a mulher
acusada de bruxaria também é geralmente uma vizinha, descoberta após uma consulta à
benzedeira local. A bruxaria recai normalmente sobre crianças, onde algumas doenças dão o
sintoma de embruxamento. A mãe procura então uma benzedeira, mulher que reza a criança e
indica algum tipo de banho, profetizando, segundo as reações da criança, se ela viverá ou não. É
também a benzedeira que descobre quem é a bruxa. Esta dificilmente sabe que possui o dom da
bruxaria, algo intrínseco a ela. Fica claro que a acusação é voltada para o universo feminino: são
mães que têm seus filhos atacados por vizinhas bruxas, e que para sanar o problema procuram
benzedeiras. Nunca um homem é acusado de bruxaria. Quando em contato com o universo
masculino (segundo a autora: os barcos de pesca, a estrada à noite, o trabalho fora da esfera
doméstica), a bruxa é sinônimo de desregramento sexual. Ela se torna uma mulher sexualmente
atraente, com interesses sexuais explícitos pelo homem que encontra, mulher que quebra a
relação costumeira local entre os gêneros ao entrar no espaço masculino. Souza (1989) afirma
que uma das acusações que pesavam sobre as bruxas na Colônia era a de serem mulheres
lascivas, prostitutas, alcoviteiras, que faziam filtros de amor e lavatórios afrodisíacos. Qualquer
mulher pobre, sem laços familiares, sem marido, podia ser vista como uma prostituta, e acusada
de bruxaria.
A bruxa é uma operadora de magia, e a magia não é racional, como Evans-Pritchard
(1976) aponta, embora tenha uma lógica própria. Esta lógica não está, segundo Douglas (1976),
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amparada na coerência intelectual, mas na ação simbólica. A crença na feitiçaria é um exemplo


de que poderes impessoais são receptivos à comunicação simbólica. Apoiada na mimese, o
discurso e a prática da magia não constituem filosofias. Quando falamos em bruxaria wicca, deve
estar claro que há uma filosofia passada por autores em seus manuais, mas há também uma
prática mágica que opera da mesma forma que os autores acima apontam, com base na ação
simbólica e no recurso à mimese, a divindades, invocações e outras formas.
Para Douglas (1976), a magia dá sentido à existência, classifica o mundo, impõe uma
ordem. Como veremos quanto ao pensamento das bruxas, o que chamamos de filosofia é, na
verdade, um pensamento que organiza o mundo em dualidades opostas e complementares, mas
que, antes de tudo, impõe uma ordem e uma hierarquia, valorizando um pólo em detrimento do
outro. Desta forma, a bruxaria wicca fornece uma compreensão de mundo própria para seus
adeptos. Neste sentido, a wicca segue a idéia de que o ritual e a magia são espaços que lidam com
a desordem e a potência da desordem: sonhos, frenesis, a desordem da mente que permite acessar
poderes e verdades que o esforço consciente não alcança (Douglas, 1976). Esta desordem é uma
quebra com a razão, como expressa acima em Adorno e Horkheimer (1985), e permite um
alinhamento com as forças mágicas, como veremos na análise das obras de Frazão.
Retornando destas regiões desordenadas com novos conhecimentos, a bruxa adquire um
poder inacessível aos outros. Movimentando-se entre a ordem e a desordem, ela toma uma
posição marginal, perigosa. Ela se dispõe num estado de transição entre ambos. Ter estado nas
margens é ter estado em contato com o perigo, com o poder (Douglas, 1976). Algumas das
bruxas que entrevistamos recorrem a este tipo de metáfora para definir a bruxa: ser que lida com
magia e está a meio caminho entre a natureza (desordem, irracional) e a cultura (ordem,
civilização, razão). Neste sentido, a bruxa pode ser vista como um ser humano que se muda para
o âmbito da natureza e a esfera animal. Percebemos, então, que a bruxa tem uma posição
marginal na sociedade: não é apenas definida segundo uma força psíquica, um dom, mas pode ser
estruturalmente definida segundo seu status ambíguo e inarticulado. São pessoas em áreas
relativamente não estruturadas da sociedade, onde o controle é difícil (Douglas, 1976).
A partir da obra de Douglas, gostaríamos de levantar ainda mais um ponto: sujeito
marginal, desalinhado com a sociedade, a bruxa pode ser vista como louca, o que conduz a uma
associação explícita com a sujeira. Sanidade e impureza ocupam o mesmo pólo de uma ordem
que as opõe ao sagrado. A sujeira se apresenta, assim, como subproduto de uma ordenação que
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rejeita elementos inapropriados. No universo por nós pesquisado, é comum encontrarmos


associações entre bruxaria e loucura como formas de acusação. A loucura é tanto uma acusação
que a sociedade aplica sobre a bruxa quanto uma acusação usada pelas próprias bruxas para
desmerecer o potencial mágico de uma oponente, que se torna, deste modo, não bruxa, mas louca.

Mauss (1974) é outro autor que se dedicou ao estudo da magia e sua prática. O operador
de magia aparece, para ele, também como um sujeito marginal. Não define a magia pela forma de
seus rituais, mas pelas condições em que são realizados e que marcam o lugar que o mágico
ocupa em sua sociedade. Não fazendo parte de um culto organizado, ele toca o limite do proibido.
É secreto, privado e misterioso.
O que torna a magia eficaz é um poder desconhecido. Este poder provem de dons
espirituais que qualificam o indivíduo para a prática mágica. Veremos que freqüentemente as
bruxas fazem recurso à idéia de dom para reforçar a condição de bruxa, ao mesmo tempo em que
é um poder que legitima o uso da magia. Neste sentido, certos indivíduos estariam destinados à
magia: especialmente aqueles a quem a sociedade guarda determinadas atitudes. Este é, também,
o caso das mulheres. Sua posição estrutural na sociedade e a maneira como são vistas e tratadas
por esta, em termos de atribuições, fazem com que seja considerada mais apta para a magia
(MAUSS, 1974). No âmbito da dominação masculina, a mulher se torna ser desviante e, por
conseguinte, sujeito da prática mágica. Mas não apenas pela sua posição. Neste caso, Mauss
aponta que as características físicas também são determinantes. Quando está prestes à comunhão
sexual, durante as regras, a gestação e o parto, e após a menopausa a mulher é considerada mais
intensamente como portadora de poderes mágicos. Estas passagens são aquelas que marcam a
divindade feminina da wicca, demonstrando que a lógica da bruxaria segue a lógica explicitada
por Mauss. Marca, dessa forma, não apenas diferentes estágios do corpo feminino, mas picos de
poder mágico. O uso do sangue menstrual em receitas de feitiços segue este padrão lógico.
O mágico - e a bruxa – pode não apenas ser imputado com qualidades mágicas, mas
também afirmar possuir estes poderes, que é o caso das bruxas modernas. Não apenas se
aproveitam da idéia de que a mulher é mais inclinada à bruxaria do que o homem como afirmam
possuir poderes – dons – muitas vezes presentes em outros membros da família, sobretudo
mulheres. Esta idéia da família de mágicos se apresenta em outras sociedades, como a Índia
(MAUSS, 1974). Espaço de legitimação para as bruxas, a bruxaria vista como hereditária não o é
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no sentido de que o dom seja herdado, mas sim de que há uma genealogia que permite o dom.
Não são qualidades físicas que são herdadas, como Frazão deixou-nos claro, mas um ambiente
em que a prática mágica se torna propícia. Gostaríamos de ressaltar também que o mágico só o é
na medida em que há uma crença que o possibilita. O recurso à família como legitimação da
condição de bruxa busca reforçar esta crença. Quanto à família de mágicos, não é qualquer de
seus membros que se torna mágico. É preciso determinadas condições para que ele apareça. A
família se torna uma sociedade mágica e a magia uma riqueza conservada na família (MAUSS,
1979).
Não só o mágico se apresenta entre os de condição social marginal como enquanto
mágico o sujeito apresenta uma situação social definida como desviante. O mágico é muitas
vezes visto como um ser mais próximo à natureza, como Mauss (1974) e Douglas (1976)
apontam. Essa proximidade foi vista em Adorno e Horkheimer (1985) e será vista também
quando analisarmos as obras de Frazão. A própria divindade da wicca está mais próxima à
natureza do que à cultura. Desta forma, a bruxaria se alinha com as forças naturais e indomadas
ao invés de se alinhar com as forças de ordem social e pensamento racional.

Identidade feminina

O papel da mulher na sociedade brasileira tradicional, organizada a partir da família


hierárquica, extensa e patriarcal, era definido no casamento. Como apontado por Durham (1983),
a divisão sexual do trabalho guarda à mulher os cuidados da esfera privada da vida, a esfera
doméstica e o cuidado com as crianças. A mulher da sociedade tradicional tinha sua própria
identidade definida nessa hierarquia: inferior ao homem, a ela cabia os cuidados da esfera
doméstica. Seu comportamento, sentimentos, vestimentas e linguagem eram definidos dentro
desse rígido esquema hierárquico (FIGUEIRA, 1987). Lipovestky (2000) afirma que nas
sociedades pré-modernas, mesmo consagrada às tarefas domésticas, a mulher não se dedicava
exclusivamente a estas. Seu trabalho é fundamental para a economia familiar, seja ela baseada na
agricultura ou algum tipo de manufatura. A esposa-mãe-dona-de-casa é, para este autor, uma
idealização.
A mudança desse tipo de sociedade para uma sociedade mais igualitária, moderna, abre a
possibilidade da mulher construir uma identidade de sujeito definida a partir do gosto pessoal, e
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não mais dado por uma hierarquia social. Embora o processo de modernização no país esteja
ainda incompleto, ele abre a possibilidade de que a mulher encontre novas identidades que não a
definam exclusivamente pela sua atuação na esfera doméstica (FIGUEIRA, 1987). É a mudança na
autonomia feminina, em grande parte fruto do crescimento do nível de escolaridade das mulheres
e sua entrada no mercado de trabalho, que tem proporcionado a mudança nos arranjos familiares
brasileiros. Essa mudança proporciona também a possibilidade de que a identidade feminina seja
agora construída não mais exclusivamente na família e casamento, mas também na esfera
pública, no mercado de trabalho (GOLDANI, 1993; BERQUÓ, 1998; OLIVEIRA, 1996).
Na modernidade, segundo Lipovetsky (2000), o ideal da “boa esposa e mãe” não
desaparece, mas a retórica de sacrifício que o acompanhava encontra-se mascarada por normas
individualistas. Hoje, a nova condição da mulher se caracteriza por uma recusa em construir uma
identidade baseada nas funções de mãe e de esposa. A atividade profissional das mulheres se
tornou um valor e uma aspiração. Para este autor, este foi um processo no qual as mulheres
tiveram suas habilidades tradicionais cada vez mais desqualificadas em nome de uma nova ordem
científica e médica. Esta tentativa de “aculturação” do saber feminino foi acompanhado da
reclusão da mulher à esfera doméstica exclusivamente. Muchembled (1987) é um outro autor que
afirma que a modernidade retirou das mulheres saberes que lhes eram tradicionais. No caso da
bruxaria wicca, pode-se notar que as bruxas de hoje retomam, em alguma medida, este mesmo
discurso para retomar seu papel tradicional e seus saberes tradicionais, hoje não mais contra a
ordem científica vigente, mas contra o domínio masculino e o patriarcado. Em várias das obras de
Frazão, é possível perceber como os conceitos de ciência e racionalidade são associados ao
patriarcado e ao modo masculino de ser. Segundo Lipovetsky (2000), a única função que escapa à
desvalorização sistemática da mulher é a maternidade. Interessante notar como esse ponto é
fundamental na bruxaria wicca, onde o tema é trabalhado à exaustão, tanto nos rituais e mitologia
quanto na própria aproximação com a divindade.
A conversão a uma religião onde o feminino é valorado positivamente em detrimento do
masculino só é possível numa sociedade moderna ou à caminho da modernidade (GIDDENS,
1991; LIPOVESTKY, 2000; FIGUEIRA, 1987). Nesse caso, o fato de serem as bruxas
prioritariamente de camadas médias urbanas dá a tônica da mudança social brasileira no que
concerne à mulher, pois a entrada de novos padrões modernos na sociedade brasileira têm se
dado primeiramente nessas camadas. Ao perguntarmos o que essas mulheres buscam na bruxaria,
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deparamo-nos com relatos construídos de modo a fazer com que a bruxaria se tornasse um
destino quase inescapável, tornando a categoria bruxa uma construção identitária, uma vez que o
discurso das mulheres entrevistadas apontam a idéia de que elas são bruxas “desde sempre”: ou
por terem nascido bruxas ou porque toda mulher é uma bruxa. Mas, que identidade é essa?
Do nosso ponto de vista, e a partir do material de campo analisado, percebemos que a
identidade de bruxa não constitui apenas uma identidade de gênero com recurso ao tradicional.
Para as bruxas que entrevistamos, pode-se tornar uma profissão. De um modo geral, a bruxaria
wicca tem se apresentado também como parte de um percurso religioso que indica um
afastamento das religiões populares em direção à Nova Era e a uma tradição recebida de fora do
país.
Para Lipovetsky (2000), o ingresso da mulher em atividades profissionais leva a adoção
de atitudes que significam a busca por um sentido para a vida pessoal, e expressam um desejo de
ser sujeito da própria existência. Para o autor, a cultura do trabalho propicia às mulheres a
conquista de uma identidade profissional plena e indica um desejo, por parte delas, de serem
reconhecidas a partir do que fazem e não do que são “por natureza”, como mulheres. No caso das
bruxas, todo um discurso é construído no sentido de mostrar que toda mulher é uma bruxa, ou de
que a bruxa o é desde o nascimento. Nesse caso, o que ela faz – a profissão de bruxa - nada mais
é do que uma expressão do que ela é: uma bruxa e, em última instância, uma mulher.
Segundo este autor, o que domina o perfil da mulher “pós-moderna” (não desejamos
entrar aqui na discussão sobre a modernidade e a pós-modernidade) é o investimento feminino na
vida profissional e a rejeição a uma identidade baseada exclusivamente nos papéis domésticos.
Nesse caso, as bruxas entrevistadas se apresentam como fruto da modernidade tanto em sua busca
por uma identidade profissional quanto em sua busca por saberes tradicionalmente femininos, de
modo a romperem com uma identidade construída como mãe e esposa e também em relação ao
homem quando numa posição de subordinação.
Das sete bruxas e um bruxo que entrevistamos, seis se inserem direta ou indiretamente no
mercado esotérico como profissionais. Desses, apenas dois não trabalham diretamente como os
conhecimentos que uma bruxa possui, no sentido de transformar a bruxaria em profissão. Quando
uma das entrevistadas manifesta interesse em ingressar também no mercado esotérico, percebe-se
que esse é um desejo movido pela necessidade de se adequar o trabalho remunerado com a
identidade de bruxa e não somente pela dificuldade de entrada em outros ramos do mercado de
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trabalho. Este desejo fica mais claro quando observamos que a entrevistada em questão tem um
emprego estável (funcionária pública), bem remunerado (R$1300 mensais) e futuramente terá
qualificação para conseguir ganhos ainda mais altos (estuda Direito). Embora uma das
entrevistadas tenha relatado sua entrada no mercado esotérico como fruto do desespero
financeiro, não vejo essas duas posições como opostas. Na verdade, o fato de serem bruxas, além
de possuírem qualificação formal (nível superior), possibilitou a essas mulheres a perspectiva de
ingresso em mais de um ramo de atividade profissional. A permanência no ramo esotérico se
deve a uma escolha deliberada por parte delas. Essa visão é corroborada pelo desejo de ingresso
nesse mercado por quem está de fora dele, mesmo sem problemas financeiros e com grandes
chances de sucesso profissional, dada sua qualificação.
Através dessas entrevistas, nota-se também que a maior parte das bruxas é ou foi casada,
o casamento entendido aqui também como coabitação (união consensual). Das sete mulheres
entrevistadas, seis são ou já foram casadas. Destas, quatro têm filhos. Estes dados apontam que a
identidade de bruxa não impossibilita essas mulheres para o matrimônio. Estes dados apontam
para um outro lado: através da bibliografia produzida pelas bruxas, percebe-se que toda a esfera
de atuação da bruxaria é feminina e doméstica (instrumentos mágicos como o caldeirão, a
vassoura, o punhal e a taça deixam isto claro, bem como a idéia de se manter uma horta de ervas
mágicas, realizar feitiços na cozinha ou enquanto se faz trabalhos domésticos ou na idéia de que o
útero é o lugar de força e poder de uma bruxa, sendo o sangue menstrual considerado
magicamente poderoso); neste ponto cabe um questionamento sobre o quanto a identidade de
bruxa rompe com valores tradicionais e expressa a “modernização” da mulher e o quanto essa
identidade, na verdade, ajuda a reconstruir para a mulher moderna papéis tradicionais de gênero.
Segundo Lipovestky (2000), o que caracterizaria a mulher contemporânea (pós-moderna) seria a
recusa de uma identidade constituída exclusivamente pelas funções de mãe e de esposa. Neste
caso, as bruxas demonstram através das entrevistas que esse não é exatamente o modelo seguido
por elas, visto que embora muitas tenham se casado e tido filhos, elas também trabalham fora de
casa.
Quando tomamos as camadas médias urbanas brasileiras, das quais as entrevistadas fazem
parte, como modernizadas ou em um processo de modernização (FIGUEIRA, 1987), então é
possível enxergar a identidade de bruxa tanto como fruto dessa modernização quanto como um
recurso à tradição. Neste último caso, trabalhamos com a hipótese de que essas camadas fossem
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modernizadas, causando em seus sujeitos o que Giddens (1991) chama de desencaixe. Como
sujeitos desencaixados, as bruxas podem recorrer ao tradicional para a reformulação de uma nova
identidade que mantenha os ganhos da modernidade para as mulheres ao mesmo tempo em que
estabelece atividades de gênero em parte tradicionais para elas.
Verifica-se que a bruxaria wicca não rompe, na verdade, com a tradicional atribuição de
funções aos gêneros, nem com a tradicional divisão sexual do trabalho. O que ela traz de
inovador é a inversão da valoração usual para os gêneros. Na wicca, o feminino é mais valorizado
pela sua capacidade de criação, e por uma série de atributos tidos como naturais nas mulheres:
sensibilidade, generosidade, beleza, sutileza, calma, intuição, imaginação, criatividade, entre
outros. O masculino, por sua vez, seria eminentemente agressivo, belicista, forte, racional, entre
outros. Essas atribuições não são modernas, mas tradicionais. A inovação da bruxaria wicca é a
visão de que exatamente por ser o que é, o feminino é positivamente valorado, o que não ocorre
nas sociedades tradicionais.
A análise do campo realizado mostra que a identidade de bruxa propicia a essas mulheres
autonomia, inclusive no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que pode vir a reforçar
padrões tradicionais de divisão sexual do trabalho, sem romper de todo com o modelo de família
brasileira (casal com filhos). Neste caso, exatamente como a sociedade brasileira, a filosofia
expressa pela bruxaria wicca parece exercer regras de “modernização reativa” (FIGUEIRA, 1987),
pois mantém o padrão em que um dos sexos é valorizado em detrimento do outro, mas muda o
sexo em questão do homem para a mulher. Fica, portanto, uma indicação de como a wicca tem
sido professada no país e do porque ela ter atingido camadas médias urbanas quando sua proposta
de “comunhão com a natureza” apontaria para um caminho mais rural.
Quanto ao aparente reforço que a bruxaria traz aos padrões tradicionais, é interessante
aqui tomar a discussão que Lipovestky (2000) faz sobre a mulher contemporânea. Para este autor,
existem três tipos de mulher: a “primeira mulher” é aquela diabolizada, associada ao caos e ao
mal, que lida com magia; a “segunda mulher” é aquela idealizada a partir da Idade Média, vista
como mais próxima da divindade do que o homem, é a mãe enaltecida, a força civilizadora; a
“terceira mulher” seria a mulher que rompe com essas idealizações e abole a hierarquia social dos
sexos, apresentando uma autonomização do seu ser (característica das democracias ocidentais)
embora as desigualdades entre os sexos não desapareçam de todo. A identidade de bruxa bebe,
claramente, em todas essas fontes. A princípio mais próxima da “primeira mulher” por sua íntima
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relação com a magia e pela visão folclórica da bruxa como um ser ligado ao mal, pode-se
perceber no discurso atual das bruxas uma certa influência da “segunda mulher” tanto na
adoração da face de Mãe que sua divindade apresenta como na idéia da mulher enquanto força
civilizadora e ser mais próximo da divindade - no caso das bruxas, pela relação óbvia entre uma
divindade feminina prevalecente e a mulher. A partir dessas influências a bruxa contemporânea
parece emergir como uma identidade nova, absorvendo – ou graças a - as conquistas da “terceira
mulher”. Para as próprias bruxas, contudo, sua identidade é vista muito mais como tradicional do
que moderna, uma vez que acreditam que sua religião foi reformulada a partir da religião
praticada no período matriarcal da humanidade e uma vez que procuram pelos saberes
tradicionais femininos.

A wicca e a mulher de hoje no Brasil

Vimos como a mulher é sujeito privilegiado da bruxaria, especialmente no Ocidente. O


que faz dela bruxa é a sua posição desviante numa ordem dada: ela é associada à natureza na
modernidade; ela é feita marginal como sujeito subordinado na ordem da dominação masculina;
ela retém atributos que a diferenciam do ideal dominante, que é masculino. Nas últimas décadas,
a mulher tem conseguido rever alguns aspectos de seu status social frente ao patriarcado. Com
todos os ganhos de hoje, porque ela estaria disposta a retomar uma identidade vinculada à
marginalidade e a atribuições tradicionais de gênero? Mas será que é isto que as bruxas modernas
tem de fato buscado, quando decidiram em primeiro lugar tornarem-se bruxas?
Se o espaço da mulher não é ainda de plena igualdade com os homens, não é também possível
dizer que nada mudou. O papel da mulher dentro da economia doméstica, apesar de tudo, foi o
que sofreu a menor mudança. Embora ela seja hoje, muitas vezes, a única provedora do lar, ou
pelo menos uma contribuinte importante, na maior parte das vezes o trabalho doméstico ainda é
tarefa sua.
A bruxaria parece, como afirma Del Priore (1997), ser uma inversão do pejorativo feminino
numa afirmação de suas qualidades enquanto mulher. Se para os homens a menstruação continua
parecendo algo impuro, na bruxaria ela é divina e repleta de poder. Se a atividade da mulher
como dona-de-casa ainda é vivenciada por muitas como uma submissão, na bruxaria ela é
percebida como um espaço de liberdade para plantar ervas para feitiços, proteger a casa de
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influências nefastas, tomar conta da cozinha onde se utilizam vários instrumentos mágicos e
realiza-se feitiços com o caldeirão, a taça, o athame (punhal), a varinha, a vassoura, entre outros.
Em suma, o que estamos sugerindo é que, dadas as mudanças na condição feminina, o que
vimos nos últimos anos foi a perda, por parte da mulher, exatamente daquilo que fazia dela
mulher. Ela continua a parir filhos, cuidar deles, da casa, da família, mas ao entrar no mercado de
trabalho ela sofre uma transformação na tentativa de se manter competitiva e alcançar outros
postos. As mulheres que trabalham fora não raras vezes deixam a casa nas mãos de uma
empregada doméstica e os filhos nas mãos de uma babá ou parente. Em parte, elas perderam
aquela ligação com o que era antes o mundo feminino, e perderam também aquela cultura
feminina que o processo de modernização lhes roubou. Nesse sentido, a bruxaria parece um
caminho aberto para algumas mulheres recuperarem uma identidade feminina, uma cultura e um
mundo feminino perdidos. Claro que essa recuperação não é a de uma nova rotina. As bruxas
modernas trabalham, se casam e têm filhos. Elas são mulheres do mundo contemporâneo, mas
parecem buscar na bruxaria um pouco daquela velha condição feminina que lhes foi de certa
forma roubada.
As bruxas entendem que a wicca é uma religião orientada para o feminino. Afirmam que a
evocação da divindade feminina orienta a wicca para o feminino e vão além: para algumas, toda
mulher é bruxa, isto é, “tem útero, é bruxa”. Essa afirmação desvenda o papel do útero na
formulação do poder mágico dentro da bruxaria. É o poder de procriação, de gerar vida, que o
útero traz implícito, e por isso ele se torna tão importante. Ele é um gerador de energia. É ele que
faz a mulher ser mulher e faz da mulher uma bruxa, pois é um poder feminino.
Na época da Inquisição, considerava-se que a bruxaria era um mal hereditário. Hoje a idéia
persiste, mas a bruxaria, de mal, tornou-se um dom. Frazão (1995) afirma ser uma bruxa
hereditária, que teria aprendido sua arte com suas avós e tias, também bruxas. Entre as bruxas
brasileiras, é comum afirmarem que há outras bruxas na família, normalmente definidas pelo
dom. Neste caso, costumam se referir a familiares mulheres mais do que a homens, o que parece
reforçar a idéia de que a bruxaria é um esforço do feminino no sentido de organizar uma nova
identidade, e nesse sentido formular uma história familiar que corrobore o sentido dessa
identidade é fundamental. É um recurso de legitimidade da condição de bruxa.
De acordo com as bruxas pesquisadas, a wicca é um caminho tanto de busca quanto de
transformação. Essa transformação é interna, uma mudança “em todos os níveis” que viria
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através da magia, dos rituais, as práticas religiosas, uma busca pelo equilíbrio. Para as
entrevistadas, a bruxaria modifica o seu praticante, sua maneira de ver o mundo ou o seu próprio
eu. Em outras palavras, poderíamos dizer que ela modifica a identidade social de seu praticante.

REFLEXÕES SOBRE A WICCA

Gostaríamos de ressaltar alguns pontos deste primeiro capítulo. Observamos que as


concepções mágicas da wicca sobre o feminino se alinham com aquelas apresentadas pela
antropologia, tanto na associação do feminino com a magia quanto na associação de ambos com a
natureza. A natureza se apresenta, tanto na wicca quanto na Nova Era, como oposta à civilização,
e positivamente valorada neste sentido. Tudo que se associe a ela será também positivamente
valorado, formando-se deste modo duas colunas de atributos antagônicos. A civilização em
questão é a modernidade, logo há uma crítica tecida quanto aos processos que a definem. Esta
crítica vem através da Nova Era, do ambientalismo, do feminismo, entre outros.
Como prática moderna, a wicca se apresenta também como crítica à modernidade. A
sacralização da natureza e a valoração do feminino que ela traz contribuem para que a
coloquemos alinhada aos movimentos ambientalista, feminista e da Nova Era. Percebemos,
então, que a wicca é uma prática que permite, pelo menos na teoria, uma crítica à modernidade ao
mesmo tempo em que oferece soluções, na forma de uma nova ordem social. Esta nova ordem
valoriza o feminino e seus atributos, a magia, a natureza, em detrimento dos processos vividos
atualmente de ruptura e domínio da natureza, principalmente através do pensamento científico.
Há na wicca uma crítica ao racionalismo que procura adequar meios a fins tanto quanto um
questionamento sobre estes fins.
Para a mulher de hoje, a crítica à modernidade é uma crítica também ao modo como foi
inserida na sociedade moderna: idealmente reclusa no lar, subordinada ao homem, sem liberdade
como sujeito. A procura das mulheres modernas pela identidade de bruxa, que não de alinha ao
ideal acima, é reflexo da quebra progressiva que este padrão tem sofrido nos últimos tempos. A
bruxa de hoje rompe menos a partir de padrões de gênero do que de concepções de mundo
baseadas, sobretudo, na magia. Mas como vimos, a identidade feminina ainda está
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intrinsecamente vinculada aos processos mágicos. O que decorre disto é uma identidade – a bruxa
- que flerta com o tradicional ao mesmo tempo em que se insere nos processos últimos da
modernidade, chamada tardia ou radicalizada. É uma identidade que faz recurso ao tradicional,
que tece críticas aos padrões modernos, e que se constrói nessa dualidade. Neste processo, a
bruxa deixa de ser sujeito de malefício e passa a ser uma sacerdotisa – e por isto inserida numa
ordem hierárquica e estrutural. Mantém sua ligação com a natureza, mantém os atributos
correntes de gênero, e inverte sua valoração. Na bruxaria ela toma o que há de mais distante da
ordem moderna, o que há de mais feminino, e transforma no mais valorizado. Usa e pratica a
magia, mas não se afasta da tecnologia produzida pela ciência.
Como sujeito moderno, ela escolhe ser bruxa, identidade que dá sentido a uma
experiência vivida e um determinado perfil relatados de modo a traçar o destino inevitável: ser
bruxa, ser desviante que se alinha com a posição desviante da mulher na sociedade de dominação
masculina; mas também ter poder, conhecimento, e o status advindo desta posição. Torna-se,
assim, um espaço em que a mulher transita por definições ora tradicionais ora modernas,
construídas numa hierarquia valorativa que lhe é sempre generosa, espaço em que ela domina, ao
contrário da sociedade mais ampla. Dominando este espaço, ela faz uma crítica à sociedade que
não a inclui como mulher.
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CAPÍTULO 2

A TEÓRICA DO CAMPO: O PENSAMENTO DE MÁRCIA FRAZÃO

Quando a bruxaria wicca se apresentou como tema de pesquisa para nós, foi através da
literatura produzida pelas próprias bruxas que começamos a delinear o discurso e as concepções
de gênero da bruxaria. A obra de Frazão, nesta época, chamou nossa atenção, pois ali o debate de
gênero é claro e explícito. Escrevendo para leitoras, falando do universo feminino da casa, da
cozinha, do romance, do casamento, dos filhos, e dedicando parte de suas obras ao relato
autobiográfico, Frazão passou a simbolizar, para a pesquisadora, o que seria a bruxa brasileira. É
claro que, uma vez em campo, percebemos que esta autora é apenas uma bruxa brasileira, dentre
tantas que conhecemos. Mas seu significado no universo da wicca no país vai além de seu perfil.
Quando o campo foi pesquisado, percebemos que Frazão é uma liderança nacional dentro
da bruxaria. Seus pontos de vista são próprios e bem marcados, angariando com isto tanto
simpatizantes quanto inimigos. No último caso, a defesa feroz do que julga ser o correto caminho
para o desenvolvimento da bruxaria no país fez de Frazão alvo daqueles que não concordam com
ela. Estabeleceu-se, deste modo, uma disputa pela liderança no universo da wicca no país, onde
não é apenas o poder de ter seguidores que está em jogo, mas diferentes concepções de bruxaria.
Veremos este embate no próximo, deste modo teremos os pontos de vista de Frazão e de seus
acusadores.
O cerne da disputa é a concepção de como praticar a bruxaria, do que ela é de fato e do
que representa. Em suas obras, o pensamento de Frazão a este respeito vai se desenvolvendo
progressivamente. Os mesmos temas permeiam toda a sua obra: o amor, o sagrado, a culinária, o
encontro com os deuses através da comunhão com a natureza. Há, também, uma posição
marcadamente feminista. A escritora fala para mulheres. Ela incita suas leitoras a se despirem de
sentimentos de culpa, de vergonha, a viverem seus amores sem medo das restrições morais e
sociais, a viverem sua sexualidade livremente. É uma nova mulher que Frazão traz à tona, uma
mulher que, embora possivelmente dona-de-casa, esposa e mãe, não define sua personalidade às
custas destes papéis. Não é uma mulher trancada na prisão do lar, impossibilitada de ingressar na
esfera da rua, sob o jugo da dominação masculina. O lar é um micro-cosmo, e simboliza a própria
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mulher. Ele não deixa de ser um espaço feminino, mas adquire uma nova significação,
exatamente como a cozinha. Nela, a mulher transforma os alimentos, enquanto faz feitiços que
transformam a si mesma e ao mundo ao seu redor. Há um limite tênue entre o feitiço e a auto-
ajuda.
Na cozinha, a mulher-bruxa que Frazão apresenta consegue inverter a ordem hierárquica
dos gêneros, subvertendo a dominação masculina. Ela se torna dominadora, sujeito de seu próprio
desejo e do desejo dos homens que se encantam com seus feitiços de amor, a boa mesa e a
amante desinibida. Há, sem dúvida, uma romantização da bruxa. Ela se torna um ser cheio de
qualidades e sem defeito algum. É a portadora de uma nova ordem, onde a mulher e o feminino
se tornam o pólo mais valorizado nesta hierarquia de gêneros. Esta nova ordem se remete a uma
concepção de mundo própria da autora, mas com raízes visíveis na filosofia ocidental e na
própria ideologia da Nova Era. A natureza, a magia, o corpo e o sentimento se tornam mais
valorizados do que a civilização, a ciência, a mente e a razão, características fundadoras da ordem
que vivemos hoje, a modernidade. Neste sentido, há um constante embate entre tradição e
modernidade, embate esse presente na própria Nova Era. O selvagem, o primitivo, o silvícola se
tornam sujeitos privilegiados nesta nova ordem, assim como as mulheres. Eles encarnam os
valores da natureza, da correção moral, da sofisticação ética. São o oposto do masculino racional
dominante. Eles são os excluídos da ordem instaurada pela modernidade, e que agora formulam
uma nova ordem onde sejam incluídos.
Ao longo deste trabalho, será possível observar que os pontos de vista expressos por
Frazão são análogos aos de algumas bruxas que entrevistamos. Isto demonstra que o pensamento
da autora, embora próprio, é o retrato do discurso da bruxaria. Ao mesmo tempo, não esqueçamos
que Frazão é uma autora lida pelas bruxas, e podemos dizer que seus conceitos e idéias foram, em
certa medida, assimilados. O mais importante é percebermos, em sua obra, como as concepções
de gênero dão origem a concepções de mundo, à busca de uma nova ordem social, pelo menos ao
nível dos valores. O papel tradicional da mulher, de amante, esposa, mãe, dona-de-casa, não é de
todo modificado. Mas o valor que se atribui a este papel é transformado.
Quanto ao perfil da autora, que será apresentado adiante, é necessário dizer que ele está
disposto por toda a sua obra. Foi com recurso a estes relatos autobiográficos e a uma entrevista
realizada por nós que pudemos formular o perfil da bruxa. O que mais chama a atenção é a força
da tradição familiar. Criada numa família de bruxas, segundo conta, Frazão é socializada neste
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universo lúdico da magia desde a tenra infância. O ingresso na faculdade de Filosofia afasta-a
momentaneamente deste mundo. Mas a filha pródiga abandona a Filosofia e retorna ao universo
de infância, se tornando escritora e bruxa “assumida” a partir de 1991. Como a vida da autora e
seu pensamento estão intrinsecamente ligados, pois é dos ensinamentos das bruxas de sua família
que ela retira boa parte de seu repertório de bruxa, foi necessário falar de cada um
separadamente. A experiência pessoal marca a condição de bruxa. A vida da autora marca, em
acontecimentos sucessivos, o padrão que permite a ela dizer que é bruxa, e permite pensar e
teorizar a bruxaria em seus livros.
Buscamos, portanto, analisar o perfil e o pensamento de uma autora pioneira na exposição
pública da bruxaria wicca no país, liderança constituída neste universo, teórica da bruxaria e
feminista. Tentamos perceber, tanto no relato biográfico quanto em sua obra, o que faz a bruxa, o
que as questões de gênero tem a ver com a bruxaria, o que exatamente ela é. Num escopo mais
amplo, este capítulo nos ajudará a entender melhor porque uma mulher decide vivenciar a
bruxaria como tem sido apresentada aqui.

* * *

Quando a idéia de elaborar uma dissertação sobre bruxaria e papéis femininos surgiu, a
única literatura sobre bruxaria moderna que tínhamos nas mãos eram as obras de Márcia Frazão.
Ela é vista como a primeira autora brasileira a escrever livros sobre bruxaria, e a primeira a falar
sobre wicca. Seu pioneirismo nessa área é reconhecido por todas as bruxas e bruxos com quem
tivemos contato durante o trabalho de campo. É comum, inclusive, que muitas bruxas,
principiantes ou não, procurem a autora pessoalmente em busca de algum tipo de ajuda ou apenas
para conhecê-la. Quando estivemos em sua casa para a realização de uma entrevista para o
corrente trabalho, seu marido nos disse que era comum a visita de bruxas à procura da autora.
Todas querendo conhecê-la pessoalmente. Isto no dá a dimensão da referência em Frazão se
tornou no mundo da bruxaria wicca no Brasil. Fomos os primeiros não-bruxos a procurar Frazão
em sua casa, segundo seu marido.
Nesse sentido, seus livros são vistos como “diferentes” da wicca praticada por estas
pessoas, mas ainda assim são recorrentemente citados. O Manual Mágico do Amor (1995),
terceiro livro da escritora, é invariavelmente descrito como um livro belíssimo, escrito numa
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linguagem poética, mas longe de se adequar ao uso na wicca. A Cozinha da Bruxa (1996) é um
livro que as entrevistadas têm como de muita utilidade, pois apresenta cada erva com suas
respectivas correspondências mágicas e seus usos próprios em feitiços.
De fato, a autora jamais afirmou que praticava a bruxaria wicca. Ela limita-se a dizer que
é praticante da Arte, nome genérico para a bruxaria européia. Embora seja leitora de Gardner,
visto como o fundador ou disseminador da wicca pelas bruxas, a autora critica o que a wicca se
tornou no Brasil. Essas críticas recaem sobre determinados comportamentos que algumas bruxas
estariam difundindo no país. Criticando os comportamentos dessas bruxas, Frazão se tornou,
igualmente, alvo de críticas. Nas listas de discussão das quais participa, não é incomum as brigas
da autora com outras bruxas e bruxos incomodados com seus pontos de vista. Podemos dizer que,
na comunidade brasileira que a wicca formou na internet, Frazão é a principal interlocutora. Os
outros grupos existentes tendem a se formar com base nos prós e contras às suas visões da
bruxaria. Ela se tornou, dessa forma, uma referência também no espaço virtual.

Frazão têm sete obras publicadas que, juntas, venderam cerca de duzentas mil cópias,
segundo ela. Seus livros têm várias reedições e praticamente toda bruxa já comprou ou pelo
menos já leu uma de suas obras. Ela é, ainda, a única autora brasileira com mais de dois livros
publicados sobre o assunto. Começou a escrever em 1991, e seu último livro foi lançado em
2000.
Suas obras são recheadas de feitiços, rituais, receitas, ervas mágicas, instrumentos, enfim,
o que é necessário para a prática da bruxaria. Contudo, o que mais nos chamou a atenção é que a
autora se dirige sempre para uma leitora mulher, e possui um discurso de libertação feminina que
expõe sua preocupação com o papel da mulher na sociedade de hoje. A mulher de Frazão deve
ser livre, dona de seu próprio corpo e de sua vontade, deve se permitir o prazer, deve viver
intensamente seus desejos sem ser criticada pela sociedade em que vivemos, ainda marcada pela
dominação masculina. Feitiços para acabar com a violência doméstica ou para despertar o desejo
sexual da mulher são exemplos de sua preocupação com o bem-estar da mulher.
Na verdade, o discurso de Frazão é uma verdadeira teoria não apenas sobre bruxaria, mas
sobre o papel do feminino na sociedade. Foi neste sentido que sua obra nos chamou a atenção.
Como vimos, a bruxaria wicca tem um discurso afinado com as questões de gênero, e é uma
prática religiosa centrada nos papéis femininos. O pensamento da autora vem corroborar nossa
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hipótese, pois é mais direto ainda do que os mitos e a cosmologia wicca. Na bruxaria de Frazão,
mais até do que na wicca, a bruxa é uma mulher reclamando uma nova identidade. Esta
identidade está pautada no recurso a identidade tradicionais de gênero, como a parteira, a
curandeira, a cozinheira, a benzedeira, a bruxa. O recurso ao tradicional marca não só o seu
discurso como o da wicca e o da Nova Era de um modo geral. A diferença reside na inversão
valorativa que Frazão propõe, exatamente como a wicca e a Nova Era propõem: o que a
sociedade da dominação masculina entende como atributos ligados ao feminino e ao masculino
permanecem os mesmos, mas os primeiros são alternativamente mais valorizados neste contexto.
O que podemos concluir desse processo é que Frazão, exatamente como a Nova Era, está
claramente propondo uma inversão de valores com vistas a uma renovação da ordem vigente, ou
melhor, uma transformação onde os valores dominantes devem ceder lugar a outros valores, num
processo de construção de uma nova sociedade. A ordem atual, da ciência, do consumo e da
dominação masculina, é mal vista. É uma sociedade corrompida que deve ser transformada.
O pensamento da autora será analisado adiante. Por enquanto, gostaríamos de apresentar o
sua perfil. Como veremos, ele é fundamental para a compreensão dos seus pontos de vista. Por
outro lado, o perfil da autora, segundo seus próprios relatos, fornece a medida do processo de
tornar-se bruxa. Os conceitos mais importantes de sua teoria estão intimamente ligados ao seu
percurso como mulher e como bruxa, com destaque especial para a família. Deste modo,
podemos analisar o perfil de uma bruxa e o discurso que já vendeu duzentas mil cópias e que se
tornou referência para praticantes de wicca. A análise do perfil da autora é fundamental para
compreendermos tanto as representações de gênero da bruxaria wicca quanto as diferentes
correntes e grupos que se formaram ultimamente no país. Ao mesmo tempo, podemos
acompanhar como uma bruxa reformula a sua própria vida de modo que a bruxaria se torne parte
integrante de seu ser e destino quase inescapável. Como veremos no capítulo seguinte, a idéia de
ser bruxa desde o nascimento ou desde sempre é comum também às bruxas do Rio de Janeiro que
pudemos entrevistar. Seus relatos se alinham, em parte, com o de Frazão, embora a autora
apresente um universo diferente, que é seu universo familiar.
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MÁRCIA FRAZÃO: UMA BRUXA HEREDITÁRIA

Em junho de 2000 fomos até a casa da autora, em Nova Friburgo, interior do estado do
Rio de Janeiro, para entrevistá-la. Começamos a entrevista com Márcia Frazão na sala de estar de
sua casa. As constantes interrupções de Ronaldo, seu companheiro, que tentava de toda forma
participar da conversa, fizeram com que Frazão nos mudasse para a cozinha. Ronaldo não se deu
por vencido: embora tenha tentado permanecer trabalhando no computador, fez-se presente o
quanto pode, e diversas vezes deu sua opinião sobre as perguntas que fazíamos a Frazão,
obrigando-nos a algumas pausas. O companheiro de Frazão é um sujeito falante. Às vezes ela
debatia com ele, ambos com necessidade de falar e apenas uma pessoa para ouvir. Falavam sobre
filosofia, linguagem, psicologia, sobre os tempos em que eram hippies e Ronaldo trabalhava no
meio artístico, sobre figuras conhecidas da música e da literatura, sobre a boemia que Frazão
havia freqüentado quando ainda era criança, na companhia de uma tia, e todas as figuras
importantes que conhecera.
O gravador não foi solidário. Obrigou-nos a recomeçar a entrevista uma vez, e, em outro
momento, nos deu a impressão de que havíamos perdido quase meia hora de gravação, o que
felizmente não ocorreu. Ao resmungarmos nosso desgosto com o aparelho, Frazão respondeu
que aquilo ocorria porque estávamos na casa de uma bruxa.
A partir da entrevista a nós concedida para o corrente trabalho, e a partir dos relatos em
seus livros, pudemos reconstituir a vida da autora, procurando o que condicionou sua escolha
pela bruxaria, o que a impulsionou para este mundo e a razão de manter-se nele.

A referência familiar

Um dos fatores mais fortes na relação da autora com a bruxaria é sua própria família, que
ela descreve ao longo de suas obras. Nascida num universo de matriarcas, criada pelas tias e avós,
socializada entre mulheres fortes, rezas e feitiços, a bruxa Márcia Frazão começa a tomar forma
antes mesmo de nascer, e vai sendo modelada por toda a infância até a idade adulta. Neste
processo há um episódio que marca a autora em definitivo. A relação com o universo mágico,
contudo,vai sendo vista como inevitável numa perspectiva atual, ao olhar-se para o passado. As
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passagens da vida da autora, segundo seu próprio relato, se tornam quase indissociáveis de sua
história familiar, o que vai fornecendo dados relevantes de sua vida como bruxa. Durante a
infância, Frazão foi afastada da mãe e criada por uma tia. Paralelamente, a avó Vitalina se
encarregava de socializar a menina em seu universo de rezadeira, ensinado-lhe feitiços e técnicas
mágicas que aprendera com sua mãe e tias. Herdeira “natural” dessa descendência bruxa, Frazão
não escapa à sua sina.
Segundo a autora, a bruxaria é o seu caminho de comunhão com a divindade. Este
caminho já teria sido traçado para ela, desde o seu nascimento, “como uma herança”. Esta
herança está sinalizada em seu corpo por uma marca de nascença no ombro direito e que lembra
uma lua cheia. Quando era criança, achava que esta marca era mágica e poderosa, e mostrava-a
sempre que podia. Numa dessas “exibições”, descobriu o “segredo das mulheres da família”, isto
é, descobriu que todas as mulheres de sua família possuíam o mesmo sinal no mesmo lugar do
corpo. Ao perceber que não era a única portadora do sinal, ficou decepcionada, mas mais tarde
compreendeu que o sinal indica que “faz parte de uma tradição passada ao longo do tempo
somente a nós, mulheres”.
Vejamos então quem eram as pessoas da família, e como elas marcaram a vida da autora.
Paralelamente, veremos episódios de sua vida que marcam seu perfil de bruxa. A primeira a ser
apresentada é a avó Vitalina, que apresenta a bruxaria à autora e que se transforma na sua
referência e modelo ideal de bruxa.

A avó bruxa

A família é elemento central no perfil de Frazão como bruxa. É na família que ela aprende
a ser bruxa, observando e recebendo ensinamentos mágicos de suas tias e avós, especialmente de
dona Vitalina. É o fato de estar imersa numa família onde a magia faz parte do dia-a-dia que faz
com que ela desperte para este universo e decida dedicar-se a ele. Neste ponto, o tornar-se bruxa
nada mais é do que continuar a história de suas ancestrais. O relato sobre a família é, na verdade,
o relato sobre as mulheres da família. Poucas vezes os homens entram no relato de Frazão, e estes
são seu pai e seus dois irmãos. As tias e avós, por outro lado, misturam-se ao seu próprio
percurso como bruxa. Os agregados da casa - agregadas, melhor dizendo - também se tornam
peça fundamental da família, exercendo seus dons igualmente mágicos na solução de problemas.
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Mas a magia praticada pelas empregadas da casa é a africana, oriunda dos terreiros de
candomblé.
Vitalina é a figura central na vida da bruxa Frazão. Era rezadeira e conhecia o poder das
orações e das ervas. Fazia remédios e feitiços com os quais curava quem a procurasse. Vivia
sozinha em sua casa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, onde criava seus animais, e
guardava a poeira nos cantos e as teias de aranha para usar em seus feitiços. Conversava com as
plantas e com elas aprendia os segredos para seus remédios. Rezava para a lua e falava da Deusa
e do seu consorte para a neta. Mas nem só de rezas vivia essa bruxa. Segundo Fazão, era
especialista em maldições, e lançava uma vez por outra. Vitalina não tinha pudor de desejar a
morte de alguém, mas lidava com suas maldições em termos de justiça.
Mãe do pai de Frazão, Vitalina era oriunda de uma família da aristocracia rural e fora
criada nas fazendas. Era uma rezadeira pagã que se recusava a entrar numa igreja e não batizou
os filhos, criando-os no universo de sua crença. Suas irmãs também eram pagãs, conta a autora.
Vitalina nasceu numa fazenda, no século XIX, e depois mudou-se para outra quando de seu
primeiro casamento. Era analfabeta, segundo a autora, porque “ler era proibido às mulheres”
naquela época. Mesmo assim, a autora considera a avó como mulher sábia. A mãe dessa sua avó
fora considerada louca. Contudo, a autora partilha da opinião de sua avó de que não era louca,
mas bruxa, mulher de sensibilidade aflorada que “conversava com o rio, entendia os pássaros,
curava com ervas e sentia as pedras”. A capacidade de realizar estes feitos extraordinários teria
sido passada então para sua avó, e dela para a autora. Teria morrido com 102 anos, e sua mãe (a
bisavó Luiza) com 110.
Descendente de portugueses e índios da tribo Araras, Frazão descobriu recentemente que
o sobrenome da avó ligava-a a uma ilha grega, cujo destino dos habitantes foi marcado pela
aparição do pirata turco Barba Rossa, que após dizimar metade da população da ilha, vendeu a
outra metade nos mercados de escravos no século XV ou XVI. De alguma forma, dona Vitalina
insistia no fato de possuir ascendência turca, mas nunca a família havia conseguido comprovar a
veracidade da estória.
Segundo a autora, a avó não se referia a si mesma como bruxa. Preferia afirmar que sua
família era “de feiticeiras”. Hoje, a última feiticeira de seu ramo familiar é Frazão, única neta de
dona Vitalina, que teve nove filhos “sozinha dentro de um quarto”, onde realizava seus próprios
partos. Enxergava os homens da família como fracos. Para Frazão, eles eram mesmo fracos, mas
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porque as mulheres da família eram fortes. A complementaridade entre masculino e feminino se


mantém, mas ao invés do padrão vigente em que homens fortes e mulheres submissas formam
um todo complementar, temos uma ordem inversa onde mulheres fortes se relacionam com
homens fracos.
Feiticeira convicta, a avó narrava à neta estórias sobre a violência exercida contra as
bruxas, especialmente a partir do período inquisitorial. Segundo conta, o medo da Inquisição
quase conseguiu erradicar as tradições pagãs nas famílias de bruxas. A bruxaria é retratada como
uma religião do populacho, misturada ao cotidiano, e que passa a ser secreta devido às restrições
conjunturais. Foi dentro das famílias que a bruxaria pode ser resguardada, de maneira secreta,
como uma tradição pagã. As divindades pagãs cultuadas teriam, então, perdido seus nomes
originais. Do mesmo modo, os instrumentos mágicos tiveram que ser reformulados e disfarçados.
Vitalina possui amigas que também eram bruxas. Vez por outra elas se reuniam, e a
autora recorda que ouvia as conversas e experiências ali trocadas. As amigas da avó, recorda,
eram sérias, não sorriam, e freqüentemente ignoravam sua presença na casa. A avó as desculpava
dizendo que tais mulheres tinham sido submetidas a tratamentos psiquiátricos e tinham sido
vítimas de escárnio por serem bruxas. Adotaram, por conta da situação, uma vida reclusa, mas
ainda assim ajudando a quem as procurasse. Quebrando o protocolo costumeiro, afirma a autora,
uma das amigas de sua avó certa vez resolveu lhe dar conselhos. Disse-lhe para olhar o céu, sentir
o sabor dos alimentos, conversar com os outros à mesa, observar os caminhos por onde andasse,
cumprimentar todos que encontrasse, contar a um amigo tudo o que vivera desde o último
encontro e dizer a ele que está feliz em vê-lo, dar atenção aos animais que encontrasse, observar o
entardecer, agradecer pela comida, conversar com a noite e agradecer o dia vivido aos deuses.
Frazão tomou o conselho de bom grado e hoje os recomenda às suas leitoras como rituais a
serem feitos ao menos três vezes por semana. Mas seguir as determinações à risca, conta, não foi
fácil. Recorrendo a avó, que sempre a repreendia por não agradecer a dádiva do alimento, ouviu
que cumprimentar estranhos a manteria sempre fora de perigo, e foi assim quando teve que
encarar três integrantes de uma gangue local num beco escuro, quando morava nos EUA.
Cumprimentou-os e, para seu espanto, eles lhe alertaram que corria perigo andando sozinha por
aquele lugar, e decidiram acompanhá-la a seu destino para protegê-la.
Quando o homem chegou até à lua, Frazão recorda ter ficado fascinada, mas a avó, ao
contrário, tinha ficado preocupada: previu que aquela seria uma lua de malefícios, trazendo
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doenças, guerras e crimes, pois a lua se zangara com os humanos. Outra estória de dona Vitalina
narrada pela autora é a da maldição que sua avó jogava em quem quer que usasse casacos de pele.
Dizia que a ira dos animais abatidos recairia sobre tais pessoas. E, coincidentemente ou não,
Frazão observava-os sofrendo tragédias pessoais. Ecologista antes do tempo, dona Vitalina era
capaz de parar em pleno Parque Guinle apenas para ouvir um feitiço dado por uma planta.
Mesmo na família, as atitudes de dona Vitalina causavam espanto. Pensava-se que tinha
arterioesclerose, uma acusação mais cientifizada da mesma loucura da bisavó no século anterior.
Antes de se tornar bruxa, relata a autora, até mesmo ela pensou na possibilidade de que a avó
estivesse doente. É interessante notarmos que Frazão teve o seu estar no mundo remodelado na
prática da bruxaria. Antes do compromisso total com a bruxaria, ela pensava em termos de
loucura. Depois, ela passa a pensar em termos de magia.
O comportamento sui generis de dona Vitalina, com o antecedente do comportamento de
sua mãe – a bisavó da autora – e de suas amigas, traz à tona a categoria de loucura em oposição à
de bruxaria. Para a autora, as bruxas são incompreendidas em nossa sociedade, e o eram mais no
tempo de sua avó e bisavó. Essa incompreensão, segundo ela, estaria enraizada no medo da
liberdade. As bruxas, para ela, são seres livres, e é o medo de sua liberdade que leva à dificuldade
de lidar com elas. Essa liberdade está calcada na recusa à submissão e no compromisso de honrar
os sonhos.
A categoria loucura é uma categoria que se contrapõe à de razão. Na medida em que a
bruxaria é vinculada ao amor, ao sonho, à infância - através dos relatos da autora -, ao feminino, à
natureza, à sociedade primitiva e à magia, como veremos a seguir, Frazão paulatinamente
constrói uma categoria que é oposta à de razão. A razão está em eterna contraposição à bruxaria
através das categorias de interesse, coerção social, mundo adulto, pensamento acadêmico,
masculino, civilização, modernidade e ciência. O mundo passa a ser cindido em duas metades
opostas e raramente complementares, onde a bruxaria se salvaguarda das acusações do mundo
racional, seu principal inimigo.

O nascimento numa família de bruxas

Por ter sido criado por uma rezadeira pagã, o pai de Frazão não fora batizado. A mãe da
autora, no entanto, era filha de uma portuguesa católica, e o casamento se deu na Igreja, o que
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obrigou o pai da autora a ser batizado, para desgosto de dona Vitalina. O pai era advogado, e foi
também professor. A mãe “é a Barbie”, diz, numa referência à boneca. Não trabalhava, era dona-
de-casa, mas o que gostava mesmo de fazer era passar as tardes em compras e cabeleireiro. Hoje,
os dois vivem em Friburgo. Mudaram-se do Rio de Janeiro para lá seguindo os passos da filha.
O pai de Frazão tinha vinte e um anos quando casou com sua mãe, então com dezesseis.
Frazão nasceu em 1951. Quando a autora contava cerca de seis meses de vida, uma das tias,
preocupada com a pouca idade de sua mãe, resolveu criar a menina. Ela recorda que foi criada
por todas as mulheres da família, o que deixou marcas em sua maneira de ver o mundo.

“Tia Mariza, que era a filha mais velha da minha avó, entrou numa que mamãe não
tinha condições psicológicas de ficar comigo, então simplesmente me tirou. Me pegou
e me levou pra casa dela. Era casada, mas nunca teve filhos, então, quer dizer, desde
pequena eu rodei nas mãos dessas mulheres todas. Por exemplo, minha tia Nazir, o
marido dela foi um dos fundadores da Banda [de Ipanema], e com dez anos ela
resolveu que eu tinha que conhecer a noite. Até os treze anos, eu ficava no Jangadeiro
até as três horas da madrugada, eu assistia os shows. Porque as mulheres da família
da minha avó sempre foram mulheres muito pioneiras. A minha tia foi a primeira
mulher a ter uma rádio no Rio. Ela foi a primeira empresária de artistas. E todas elas
tinham vício. Eram mulheres que jogavam carta, bebiam. Eu rodava por elas e todas
tinham estórias, então eu acho que eu já nasci nesse complô.”

A socialização no meio de mulheres tão independentes, fez com que Frazão passasse a
observar o papel da mulher na sociedade de forma diferente do ponto de vista da época, quando o
ideal de feminilidade era representado por sua mãe: mulher que se casa cedo, cuida da casa e dos
filhos, gosta de compras, da última moda, dos artista do cinema e de cabeleireiro. Contra essa
mãe conformada, a autora parece guardar alguma mágoa. A mãe é uma personagem pouco citada
em seus livros, e na entrevista que nos concedeu, ela limita-se a compará-la a uma boneca.
“Mamãe é a Barbie”, diz. As tias, por outro lado, eram pioneiras, independentes, empresárias e
empreendedoras, frequentavam a boêmia, mantinham comportamentos masculinos que definem
bem o rompimento com o padrão ideal: eram mulheres de vícios, que jogam cartas e bebem.
Essas tias eram as herdeiras diretas da personalidade forte da avó. Elas formavam um grupo que
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se indispunha à ordem vigente e escapava aos padrões tentando manifestar uma mudança, uma
outra forma de estar no mundo. Ao conviver com estas mulheres, Frazão aprende suas estórias,
guarda-as em si, e se torna parte do mundo de mulheres fortes e fora dos padrões. A socialização
nessa família marca em definitivo a sua relação com a bruxaria e o papel que imputa a esta, como
instrumento de libertação da mulher das amarras da dominação masculina. Afinal, a bruxa de
Frazão é uma mulher livre, independente e à margem, exatamente como as mulheres de sua
família eram. É por isso que a figura da mãe se torna obliterada nos relatos da autora; ela não
segue este padrão.
A avó materna de Frazão chamava-se Virgínia, uma descendente de portugueses tão
devota da Virgem Maria, que mandou construir uma réplica da gruta de Fátima em seu jardim.
Os desentendimentos com dona Vitalina eram corriqueiros e previsíveis, devido ao choque
religioso. O fato de ser católica, contudo, não impede a autora de enxergar na avó uma faceta
mágica, exposta no costume que tinha de confeccionar breves para proteção. Por outro lado, dona
Virgínia e a mãe da autora costumavam freqüentar um centro espírita, “centro de mesa”, como
diz. Lá, dona Virgínia tentava se comunicar com o marido falecido. A mistura de diferentes
religiosidades tem, para Frazão, uma lógica, e a autora monta um raciocínio explicativo que junta
o paganismo que pratica com as crenças da família materna.

“O catolicismo do português é muito engraçado, e do brasileiro. Aliás, no mundo


inteiro, você já se tocou de que todas as visões são de santas? Todas as visões são de
mulheres. Na verdade, eu acho que existe o catolicismo, o cristianismo institucional,
que é esse da Igreja, e tem o catolicismo, o cristianismo carnavalizado, pagão, que é o
da esfera da Virgem.”

Quando chegou a época de ser batizada, as correntes divergentes que dona Virgínia e dona
Vitalina representavam entraram em choque. A mãe da autora, católica que era, fez questão de
batizar a filha. Seu contato com a Igreja católica, contudo, se resumiu aos ritos do batismo e da
comunhão. Após a comunhão, Frazão conta que jamais retornou a uma igreja. Se o batismo é um
sacramento involuntátio, visto que é decidido pela família da criança, a comunhão nem sempre
chega a sê-lo.
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Infância e juventude

Em suas obras, Frazão se remete constantemente à infância, período no qual estava mais
suscetível à influência da avó Vitalina. A narrativa ganha maior impulso pessoal a partir dos treze
anos, quando Frazão está saindo da infância. Mas o que marca o percurso como bruxa, segundo
entrevista da autora, é menos a influência da avó do que um fato específico em sua vida. A
Primeira Comunhão aos dez anos de idade se torna um marca e constrói a certeza de um lugar no
mundo. A sensação de não pertencer àquele grupo, a dificuldade em adequar-se ao ritual, a
sucessão de acidentes, o constrangimento, as ameaças, a culpa e o erro se tornam tão marcantes
que levam a autora a enxergar ali o seu momento de ingresso na bruxaria.

“Aí fui estudar em colégio religioso, e tive que fazer Primeira Comunhão. Se alguém
perguntar pra mim quando é que você se descobriu, resolveu assumir que era bruxa?
Foi exatamente no dia da minha Primeira Comunhão. Antes de fazer a comunhão, um
dia antes, tinha que confessar os seus pecados. Pelo que eu tinha aprendido na aula de
catecismo, quando o padre chegou pra mim e falou ‘confesse seus pecados’, eu olhei
pra ele e falei ‘eu não tenho pecados’, porque eu não tinha matado ninguém, não tinha
cobiçado ninguém, não tinha feito nada daquilo. O padre me deu um esporro, disse
que eu estava pecando pela vaidade, porque imagina se eu não tinha pecado e tal. Eu
me senti com um torturador, sabe? Aí eu comecei a inventar pecado pra ele. Aí, claro,
o cara me mandou rezar. Aí nós fomos ter uma reunião. A madre falou assim: eu
queria que vocês pensassem muito bem, porque amanhã é o dia da comunhão e se
alguém cometer um pecado e se comungar, vai cair em sacrilégio. Sacrilégio era
entrada franca pro inferno. Aí eu falei: meu deus do céu, eu menti pra um homem da
Igreja; isso é demais! Aí fui caçar o padre. Cadê o padre? Já tinha ido embora. Não
dormi a noite inteira. No dia seguinte cacei o padre e nada. Entrei com as outras
meninas como se estivesse indo pro cadafalso. Aí falei: não, na hora em que ele for se
aproximando com a hóstia, eu vou dizer ‘não, eu não posso porque eu estou com um
pecado e tal’. Eu tava quase no final da fila. Aí vinha ele: pá e pá com a hóstia.
Quando chegou perto de mim, eu ia [falar] ‘ahh’, e ele enfiou a hóstia na minha boca.
Eu saí da Primeira Comunhão pensando assim: agora é o inferno. Eu acho que foi
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exatamente ali que me deu a marca. Sabe, ali neguinho me marcou. Não há mais como
ser igual, sabe?”

A sensação, no entanto, era anterior ao episódio, que apenas deu um cunho institucional e
social ao que a autora já sentia subjetivamente. O ritual dá a legitimação de uma realidade que era
apenas interna ao sujeito. No ritual, ela se torna institucionalmente marcada, socialmente
diferenciada. Interessante notar que a série de situações que desembocam na comunhão sob
pecado é alheia à autora. Ela tenta de todas as formas intervir no processo, pará-lo, mas só
consegue entrar mais fortemente, se envolvendo cada vez mais na trama. Ao fim, não há
possibilidade de escolha nem saída. Ela se vê numa situação da qual é vítima. O padre é
comparado a um torturador: ela confessa os crimes não cometidos depois de ser condenada de
antemão pelo que não fizera. Cai então em um pecado real, quando antes não tinha nenhum. O
padre desaparece antes que possa conversar com ele, e só reaparece quando é tarde demais. Ele
coloca a hóstia em sua boca antes que ela possa se manifestar. É ele o agente ativo da estória,
ocupando o papel de vilão. As situações se aglomeram sem que a autora possa agir. Seu papel é
passivo. Toda vez que tenta remediar seu erro, ela apenas comete mais um, pois a trama na qual
está inserida não lhe deixa possibilidades. Afinal, fora na própria Igreja, no curso de catecismo,
que aprendera o que era pecado e realizara que não tinha nenhum. A igreja se tornou um local
desagradável e a autora jamais retornou a uma.
O sacrilégio traz a marca sobre Frazão. Ela não pertence mais àquele mundo onde via suas
amigas se tornando anjos e indo para o céu. Ela estava condenada ao inferno. Diferente das
outras, estava fadada a um caminho marginal, marcado desde a sua Primeira Comunhão. O lugar
de “última na fila” é, neste sentido, simbólico. Ela está apartada das primeiras, está no fim, nas
margens. A comunhão toma ares de excomunhão: o torturador medieval condena-a ao inferno por
sacrilégio, e ela não pode retornar à igreja. Está marcada, uma marca indelével, que não sai, uma
marca na alma. O sacrilégio empurra-a para o caminho da bruxaria: não pertencendo à Igreja,
condenada ao inferno, pecadora sem perdão, ela volta seus olhos na direção da tradição familiar,
e constrói um mundo seu, um universo apartado daquele das “outras”, as que vão para o céu com
asas de anjos. Ela cai no inferno, ou sobre a Terra, e envereda pelo caminho oposto. Se alguma
dúvida havia antes, o episódio esclarece seu lugar no mundo.
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Dos dez anos aos treze a autora foi criada paralelamente pelas tias, que levaram-na a
freqüentar a vida artística da cidade ainda muito jovem. Com treze anos, a autora começa a
formular suas próprias teorias sobre a realidade, e começa a perceber como o mundo funciona.
Lia compulsivamente, praticava magia com a avó, tinha algumas amizades. O corpo começava a
incomodá-la. Achava-se gorda, feia, sempre atrás de óculos e livros, CDF, “meio retardada”. O
espelho era um inimigo que aprendeu a domar com o tempo. Viajava num mundo de fantasia
criado a partir das experiências mágicas que vivia com a avó e dos romances que lia. As
angústias eram tamanhas que criaram uma apendicite. Em outro momento, a autora narra um
episódio no qual ficou “fora do ar”, como diz, por duas semanas. O psicólogo recomendava
terapia, a avó insistia em problemas mágicos. Com paciência, diz, conseguiu voltar à realidade.
Esta passagem é semelhante à história de suas ancestrais: a bisavó dada como louca, a avó com
seus comportamentos questionados em família, a mãe e suas crises de depressão.
Adolescente, ela começou a se relacionar com o mundo dos homens: descobriu as
diferenças entre papéis masculinos e femininos e namorou rapazes. Desprezou muitos
namorados por serem machistas e mandões, interferindo até nas roupas que usava. Sua
liberdade de bruxa e de mulher, conforme a avó havia-lhe ensinado, não poderia ser afetada.
Por este tipo de comportamento, passou a ser chamada de rebelde e estranha e diziam que “não
batia bem”, o que nos leva de volta à categoria de loucura. É no comportamento de bruxa, no
exercício da sua liberdade, que toma atitudes que aos outros parecem sem sentido, e torna-se
alvo das acusações de loucura. Magoada com as acusações de ser gorda, feia e “quatro olhos”,
pensou em desistir de seu sonho de liberdade, mas o apoio do espírito de uma falecida tia fez
com que mudasse de idéia. Leu O Segundo Sexo, de S. Beauvoir, e compreendeu que o feminino
causava terror.
Quando reconciliou-se com o espelho e começou a achar-se bela, passou a seduzir por
seduzir. Numa dessas aventuras, foi ao apartamento de um rapaz solteiro e quase foi violentada
por ele. A intervenção mágica ajudou-a a se livrar da companhia indesejável, que passou por
uma dolorosa crise renal. A partir daí, passa a assumir um comportamento menos arriscado.
Os feitiços de amor ajudavam as amigas e faziam-na ser popular. Na verdade, realizava-a
mais ser a confidente das amigas do que ser bruxa, diz. Os feitiços da avó eram um meio de
integrar-se socialmente. Sem eles, achava-se desinteressante e sem atrativos para manter
amizades. Sentia-se rejeitada.
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Anos mais tarde resolveu romper com a magia. Negou os ensinamentos das avós,
questionou suas superstições e práticas. Ingressou na faculdade de Filosofia, no IFCS/UFRJ, mas
não se formou. Faltando apenas dois meses para a conclusão do curso, ela se indispôs com um de
seus professores e abandonou a faculdade. Não cursou nenhuma outra faculdade nem lecionou
filosofia. A Academia e o trabalho acadêmico não eram o que queria. Resolveu dedicar-se aos
estudos pelo resto da vida, mas por conta própria.

A emergência como bruxa no universo da contracultura

Quando o irmão resolveu viajar para Londres ela acabara de entrar na adolescência e
sentiu-se desprotegida. Queria acompanhá-lo. Deu-se conta de que ele não retornaria. Era um de
seus esteios de relação com o masculino. A morte do irmão, anos depois, foi um choque para
Frazão. Em seus livros ela relata a sensação de vazio que vivenciou após o episódio. Foi somente
aos poucos que superou o choque. A crença da bruxaria na transformação e renascimento parece
ter se tornado peça chave nesse processo de cura emocional. Contudo, nessa época, ela ainda não
havia descoberto os livros de wicca.
Foi este irmão, de Londres, quem primeiro lhe descreveu o movimento hippie. Jovem, ela
adentrou esse estilo de vida e foi de carona até os Estados Unidos, onde ficou morando algum
tempo. Foi então que voltou a aprender magia, discutindo bruxaria com as amigas. Uma delas lhe
emprestou o livro de Starhawk, The Spiral Dance, sobre wicca, que fez com que a autora se
interessasse novamente pelo assunto.

“(...) Pois é, Starhawk foi a primeira pessoa que li quando comecei a decifrar o
quebra-cabeça mágico da minha tradição familiar. A li nos Estados Unidos, numa
época em que o mundo acadêmico ainda pesava muito na minha vida.”

Viu a prática mágica de seu universo familiar descrita como bruxaria. Foi então
despertada por outro livro, Living with Magic, de David Farren. Retornou, enfim, às práticas
ensinadas pelas avós. No ápice desse processo, se mudou do Rio para Friburgo, procurando um
estilo de vida mais condizente com suas opções e comprometimentos. Continuou hippie, como
gosta sempre de lembrar, embora isso lhe traga alguns inconvenientes. Quando criança, ela
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recorda, o filho deixou de ser convidado para a festa do amigo por que a mãe era hippie e
considerada uma presença imprópria.
Para a autora, foi o movimento hippie que possibilitou a volta à cena das antigas bruxas,
escondidas em tradições familiares. Este movimento criou um estilo de vida que ela vê presente,
atualmente, na Nova Era. Para ela, os hippies, em seu modo de vida, se aproximavam dos ideais
da bruxaria: a não-violência, o pacifismo, o respeito pela natureza, a liberdade sexual, a igualdade
de gêneros. A revolução sexual, diz, só foi possível através dos hippies e das bruxas, que lhe
atribuem um caráter sagrado. Com os hippies compreendeu melhor o feminino e “seu papel
transformador na sociedade”. Com suas antepassadas bruxas, já aprendera as “funções mágicas
do feminino”, mas não conseguia vislumbrar o que faria no mundo com esse conhecimento. Foi
no movimento hippie que encontrou outras bruxas hereditárias. Nenhuma delas, contudo, tinha
idéia do que fazer com esta herança. Estavam divididas entre o conhecimento mágico e o não-
mágico. O que fizeram, então, foi aliar a bruxaria às idéias da época.

Vida adulta: trabalho e casamento

Embora não tenha concluído a faculdade, a autora trabalhou em vários lugares diferentes.
Deu aula de OSPB durante um ano para o ginásio, e desistiu de ser professora. O lado hippie
falava mais forte.

“Eu não gosto do esquema de como é o ensino, como passar o conhecimento. Eu não
gosto de hierarquia. Quase fui solicitada a me retirar da escola.”

Trabalhou em outros ramos também: foi jornalista, guardadora de carros, criou cachorros
e hoje, além de escritora, traduz livros para três diferentes editoras.
Casou-se em 1975. O “casamento” com Ronaldo Periassu não foi realizado nem em
cartório civil nem em qualquer tipo de cerimônia religiosa, constituindo-se em coabitação.
Periassu também é escritor, fez a mesma faculdade que Frazão, e foi professor e produtor
cultural. Conheceram-se aos oito anos de idade. A irmã dele era amiga da autora. Quando foram
morar juntos, a irmã dele teria lhe dito que Frazão havia feito macumba, mas ela garante que o
companheiro sempre soube que era uma bruxa.
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Ronaldo nasceu em 1944. Fez faculdade de Filosofia e foi professor e produtor cultural.
Hoje trabalha como escritor e tradutor. O filho do casal nasceu em 1978. Quando o menino
estava com sete anos, em 1985, eles mudaram-se para o interior do estado do Rio. Hoje o rapaz
estuda Direito e se interessa pela carreira diplomática.
Ainda residindo em Nova Friburgo com o filho e Ronaldo, Frazão trabalha como
tradutora e escreve seus livros. Os pais dela residem também em Friburgo, para onde se mudaram
posteriomente. Dos dois irmãos que teve, um é falecido e o outro mora no Rio de Janeiro.

Participante do movimento hippie, o pensamento de Frazão reflete, como veremos a


seguir, o ideário da contracultura. A crítica do mundo moderno, do patriarcado, da relação que
vivemos hoje com a natureza são uma constante. Oferecendo soluções para o que considera
problemas da humanidade, a autora sugere ao leitor um caminho de auto-transformação. No perfil
da autora, essa transformação é sentida tanto do ponto de vista da mudança do Rio para o interior,
quanto da inserção na contracultura e na política de esquerda. Os partidos de esquerda no Brasil
são aqueles que representam, de uma maneira geral, a crítica a um modelo atual de mundo e
soluções para essa crítica que implicam em uma transformação. É neste contexto que está
inserida a militância política da autora. Quando lhe perguntamos se participava de algum partido
ou movimento social, respondeu que tinha orgulho de ser a inscrição número cento e vinte e nove
no PT, embora estivesse prestes a abandonar o partido e filiar-se ao PSTU, com o qual tem se
identificado mais. Não fez parte de outro movimento social.
O lado hippie, diz ela, faz com que não goste de hierarquias. Por isto, explica, não se
envolve diretamente em movimentos sociais, nem é uma militante política atuante. A expressão
de sua militância ela deixa para suas obras, que considera feministas. A política tradicional,
institucional, não a seduz. Diz que é “muito anarquista” para acompanhar a política institucional.

A mudança para Friburgo

A mudança para Friburgo ocorreu em 1985 e tem vários motivos que são alternadamente
apresentados pela autora. Em seus livros, ela diz ter buscado um contato maior com a natureza e
uma mudança na alimentação que lhe trariam maior equilíbrio. Em entrevista por nós realizada,
ela dá outra explicação. A cidade interiorana foi escolhida ao acaso, porque era fria. O casal não
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conhecia nem a cidade nem a casa que estavam alugando quando da mudança. Conseguiram até
mesmo perder-se no caminho até lá.

“Na verdade, eu podia dizer que eu estava de saco cheio do Rio e aquela coisa toda.
Não, não era isso. Era um negócio de... já tinha cumprido, sabe, já tinha cumprido
aquele ciclo e eu queria dar pro meu filho uma coisa que eu já tinha tido quando
criança, que era espaço, verde, uma vida mais mansa, mais doce.”

A procura por Friburgo é uma procura pelo lugar ideal, que poderia estar naquela cidade
ou em qualquer outra que tivesse “espaço, verde, uma vida mais mansa”. A busca nostálgica é
por algo que não existia mais no Rio de Janeiro, algo perdido na infância da autora, que ela
desejava oferecer ao filho. Essa mudança é quase um resgate da infância.
Em mensagem enviada a uma lista de discussão, a autora retrata a mudança como o
resgate das crenças ensinadas pela avó. Como a mensagem foi escrita em inglês, fizemos a
tradução.

“Quando eu tinha trinta e dois anos, minha avó (de cento e dois anos) foi assassinada
por um neto. O ano era 1982. Aquele evento me fez pensar sobre todas as coisas que
ela aprendeu (eu era sua única neta) sobre sua tradição familiar. Depois disso eu
desisti de todas as teorias e entrei em seu universo. Um universo de velhas tradições
relacionadas com a Terra.”

A morte da avó, e as circunstâncias desta, fazem com que Frazão tente resgatar o universo
da infância, no qual a avó era figura presente, sempre prestes a ensinar-lhe um novo feitiço ou
mostrar-lhe uma erva mágica. De fato, esta explicação não se opõe, de forma alguma, às
anteriores. A mudança é, ao mesmo tempo, o resgate da infância perdida, na forma da infância do
filho, e o retorno às tradições da avó, ou seja, o contato com a natureza e o exercício da magia.
A morte da avó faz com que sua única neta se disponha a ser a nova guardiã das tradições
familiares. Sem este passo por parte da autora, provavelmente não haveria mais ninguém para
tomar a posição de bruxa da família. Frazão toma, então, o lugar que era da avó. Ela rompe de
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vez com o mundo acadêmico, o mundo racional, o mundo das teorias, e embarca em um universo
de crenças mágicas.

A casa da bruxa

A família cuida da casa sozinha, sem auxílio de nenhum tipo de empregado. Não possui
máquina de lavar roupa ou louça nem microondas. Prefere não as ter. É ela quem faz a comida,
lava a louça e a roupa na casa. A recusa por tecnologia é quase uma recusa ao mundo moderno, o
mundo racional dos seres civilizados. É um posicionamento que se destaca no terreno ideológico,
e não no prático. Ao recusar as tecnologias, ela procura integrar-se mais ao meio em que habita e
à natureza à sua volta. A autora não possui nem celular nem secretária eletrônica, não lê jornal há
três anos e nem revistas. Prefere ler sobre filosofia, psicologia e História. O computador, contudo,
está conectado à internet, onde ela participa de várias listas de discussão.
A casa da autora situa-se no bairro Cascatinha. A numeração da rua é irregular.
Escondida atrás de arbustos e um portão para automóveis, está a casa de dois andares, pintada de
branco, com o Fusca vinho guardado na garagem. Abaixo da casa, situada numa ladeira,
podemos vislumbrar um pequeno jardim. As janelas da casa, que lembra um chalé dos Alpes,
guardam pinheiros de Natal e estrelas recortados em papel prateado e colados no vidro.
Recordamos então que para as bruxas do hemisfério sul, o Natal chama-se Yule, o sabá que
comemora o equinócio de inverno. O pinheiro de Natal é um símbolo pagão relacionado a este
sabá.
Dentro da casa, vários molhos de ervas secas estendiam-se pendurados das paredes,
especialmente na sala e na cozinha. Um adesivo do Museu das Bruxas de Salém, EUA, estava
colado na porta da geladeira. Na subida da escada para o segundo andar da casa, havia uma
pintura de bruxa. Na sala de jantar, uma mesa guardava inúmeros vidros antes usados para
guardar maionese ou conservas. Num dos vidros, um perfume feito com uma pimenta vermelha
gigante e paus de canela. Em outro vidro, com uma estrela na tampa, havia álcool de cereais
conchas de praia, ervas, flores, uma lacraia e um sapo. Receita da avó, disse Frazão. Havia
outros potes ainda, pequenos e grandes, com perfumes e poções. Três bonecas de pano se
escondiam entre os vidros. Uma delas representava a sogra da autora, que havia lançado sobre
ela um encantamento a partir da boneca. Sobre a mesa de jantar, o livro recém-lançado jazia
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dentro de uma guirlanda de ervas secas. Ao perguntarmos se aquele era um feitiço, Frazão
limitou-se a sorrir.
Na parede oposta aos perfumes, retratos em preto e branco das mulheres de sua família.
Frazão me indicava quem eram suas tias, e como haviam morrido. Uma delas morrera
assassinada em circunstâncias consideradas por ela suspeitas. O casal achava que o assassino era
o namorado. De uma caixa grande de papel saíram outros retratos: Ronaldo, mais jovem, nos
anos 1970; as tias de Frazão fantasiadas para o Carnaval, a barriga à mostra e o comentário da
bruxa: ‘Olha essas mulheres; olha como eram livres...’; retratos da família reunida com a avó
Vitalina ao centro, uma mulher baixa, cabelo preso num coque, a pele queimada de sol, o rosto
coberto de rugas.
Uma vassoura artesanal, de cabeça para baixo, fora colocada atrás da porta principal da
casa. A vassoura era, na verdade, um instrumento de defesa, segundo ela explicou. Nas casas
rurais, mulheres deixadas sozinhas por longo tempo durante o dia podiam fazer uso do cabo da
vassoura como um instrumento de defesa, caso algum estranho aparecesse. Por isto era colocada
tradicionalmente atrás da porta, onde estaria acessível.
Na parte dos fundos da casa, havia uma horta. Lá a autora planta as ervas que usa em seus
feitiços. Ela arrancava as ervas daninhas quando chegamos. Reclamava que quanto mais ervas
arrancava, mais apareciam. No quintal estava enterrada sua cadela. Sobre o “túmulo”, o casal
dispôs uma pedra igual à estatueta da Vênus de Willendorf, representação pré-histórica da Deusa
Mãe. A pedra fora encontrada por Frazão na terra.
O local de trabalho do casal é uma biblioteca onde estantes cobrem as quatro paredes, do
teto ao chão, todas completamente tomadas por livros. Uma mesa grande e o computador
preenchem o espaço restante do meio do cômodo. Dentre as obras visíveis estavam algumas
sobre a história das mulheres celtas, mitologia dos Orixás e obras de Gerald Gardner,
considerado o fundador da wicca.
No segundo andar da casa ficam os quartos. Num deles, a bruxa faz seus feitiços. No
outro, dorme Daniel, filho do casal. O quarto de Márcia e Ronaldo é simples. A cama é um
colchão colocado diretamente no chão, pois a inclinação de uma das paredes não permite muitos
móveis. Sobre ela, há um coletor de sonhos, instrumento indígena norte-americano que prende
os pesadelos. Ganhou-o de uma índia, cuja tribo fabrica estes dispositivos. Não há armários no
quarto. As roupas são guardadas em araras. Em uma das paredes, pode ser vista a coleção de
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chapéus de Frazão. E sobre a penteadeira, está guardada a coleção de bijuterias, algumas


presenteadas por mulheres indígenas.

Ancestralidade

Criada com as estórias e a experiência dessas mulheres, o mundo vivenciado por Frazão
está sempre voltado para dentro, para a família. As poucas amizades da menina são quase parte
do mundo familiar. Os namorados são pouco citados. O atual marido raramente entra nas
narrativas, os irmãos e o pai também. O filho de Frazão é um dos personagens masculinos mais
presentes. Ainda assim, perde para a ala feminina da família. Alguns vizinhos já percorreram as
páginas de seus livros, mas eles traçam a linha exata do “dentro” e “fora” da família na narrativa
da autora.

“Eu acho que eu já nasci [bruxa], porque eu já nasci no meio de mulheres loucas. E
tem toda uma estória que antes de eu nascer, poucos anos antes, morreu minha tia
Nadir, a amazona da família, linda. E no dia em que eu nasci, o melhor amigo dela [da
tia Nadir] estava lá em casa. Então eu cresci ouvindo essas estórias. Tipo: ah, você
sabe que quando você estava pra nascer acharam os patins da tia Nadir? Porque a tia
Nadir morreu patinando. Então eu gostava disso.”

Essa família que se mantém unida, perpetua sua história nas estórias que conta, nos
valores que atribui a elas e aos objetos de seus membros, encontrando para cada um deles um
papel a ser desempenhado. Antes mesmo de nascer, o novo membro já tem seu papel definido,
exatamente como em sociedades hierárquicas (DUMONT, 1992). A família é um microcosmo onde
a autora habita.
As mulheres dessa família, como vimos, tomam preeminência sobre seus homens, pelo
menos na narrativa da autora. São elas que movem dinamicamente essa pequena sociedade. É
simbólica uma passagem de O Feitiço da Lua (1997), em que a autora afirma que as mulheres da
família mantinham um pacto de silêncio sobre suas fraquezas e jamais mostravam sua fragilidade
em público, mas apenas entre si. O comportamento delas é masculino, no sentido de que estão
sempre em posições ocupadas por homens: como vimos, são mulheres que bebem, jogam,
freqüentam a boêmia, empreendedoras, empresárias, pioneiras, mulheres de negócios, de feitiços,
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mais fortes do que os seus homens, que são sutilmente escondidos por trás de suas saias nas obras
da autora. Como os homens, elas não choram, pelo menos não em público.
A vivência desse universo é evocada por Frazão como determinante na produção de uma
bruxa. A bruxa, apresentada por ela sempre como um ser marginal, é formada não através de
livros, mas através da socialização em um universo de mulheres fortes e determinadas, sensíveis
a ponto de se comunicarem com a natureza, e cientes de seu papel no mundo. Como as mulheres
de sua família, a bruxa descrita por Frazão não segue a cartilha da esposa-mãe e rainha do lar. As
mulheres que se tornam seu parâmetro de liberdade feminina e poder de decisão, são mulheres de
comportamento masculino, fechadas em um universo familiar onde apenas outras mulheres
podem ingressar. O aprendizado desse comportamento, o rompimento com os padrões
dominantes anteriores à revolução feminista, são traços marcantes da bruxa. E, neste caso, ela é
de fato um ser marginal, pois adota um comportamento não adequado a seu papel social e de
gênero.

“A primeira coisa que ela tem que fazer, uma mulher, para se tornar bruxa, é que ela
vai ter que construir a sua história. Então, se não foi socializada, ela vai ter que fazer
uma pesquisa dentro da própria família. Não é uma coisa de fora. É fundamental.
Você não se torna bruxa lendo o livro de alguém.”

A idéia da hereditariedade é forte nos relatos de Frazão. Não é a hereditariedade do


sangue, como se a bruxaria fosse a famosa substância descrita por Evans-Pritchard, nem é um
dom passado a cada geração. A bruxa, para a autora, nasce dentro de um contexto social. Ela é
fruto de uma realidade matrifocal.
Reconhecer a bruxa, então, se torna um exercício de observação: aquela que é “torta”, a
que é marginal em algum sentido, será a bruxa. E como ser “torto”, ela apresentará suas marcas:
não usará a roupa da moda, não terá um discurso afiado com o dominante, não estará inserida no
sistema. Ela não será uma bruxa apenas para ser de vanguarda ou estar na moda. Ela não cobrará
por seus serviços, pois a profissão de bruxa faz parte do sistema, e a bruxa legítima é alguém fora
dele.
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“Ela não será igual ao rebanho, então esteticamente alguma coisa ela terá torto. Não
estará com a roupa da moda, entendeu? E o discurso dela será torto. Se conhece uma
bruxa pelo brilho no olhar. Porque alguém que tem tesão na vida, o olho brilha. É
fácil, não é nenhum dom.”

A referência ao “brilho no olhar” indica que a situação de marginalidade da bruxa não é


um fardo, mas um comprometimento com a vida. O sistema se transforma em morte, e estar fora
dele significa a procura pela vida. Ela está numa situação marginal por estar comprometida com
valores que a sociedade atual abandonou. Essa sociedade é corrompida. A bruxa não, ela se
mantém fiel a seus ideais. Ela vive um mundo que os outros desistiram de viver. Ela está em
contato com a natureza, enquanto o homem civilizado se apartou desta. A natureza é vida. A
civilização é morte e destruição. A bruxa segue a sua intuição, se comunica com a natureza,
sonha, sua forma de estar no mundo é lúdica. Por todas essas qualidades, ela é um ser com
“brilho no olhar”.
Veremos a seguir a síntese da teoria da autora, como ela define a bruxa e alguns de seus
diferentes interlocutores.

O PENSAMENTO DE MÁRCIA FRAZÃO: VISÕES SOBRE BRUXARIA E FEMININO

Márcia Frazão é a bruxa mais conhecida do país. É a única autora brasileira sobre bruxaria
com mais de duas obras lançadas. Com sete livros publicados, seis deles sobre bruxaria e um
sobre oráculos, no mercado interno desde 1991, afirma já ter vendido duzentos mil exemplares de
toda a sua obra. Já consolidada no mercado literário “esotérico” e de auto-ajuda, não é difícil
encontrar um de seus livros nas maiores redes de livrarias da cidade – ou do país – bem como nas
pequenas lojas, exceção feita às lojas esotéricas propriamente ditas, que, segundo Frazão, se
recusam a vender seus livros1.
____________________________________
1 – Frazão afirma que as lojas esotéricas não vendem seus livros. O motivo apresentado seria uma briga da autora
com a “comunidade” esotérica. Segundo ela, “eles [os esotéricos] me odeiam”. Em sua obra, Frazão abre guerra
aberta contra os esotéricos, se colocando contra suas posturas, taxadas de busca pelo poder, hierárquicas, retilíneas.
Veremos o teor dessa disputa mais adiante.
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Cada vez que lança uma nova obra no mercado, Frazão percorre uma maratona: viaja
pelas principais capitais para lançamentos em livrarias, programas de rádio e de televisão, dá
entrevistas para diversas revistas e participa de palestras e seminários acadêmicos2. Além dos
livros, ela possui uma home page na internet, onde receitas, feitiços, bibliografia editada pela
autora, fotos artísticas e poesia estão disponíveis em português e inglês. Há ainda links para
outras home pages e uma lista de discussão, Lâmias, voltada apenas para mulheres. Apesar de
tentarmos ingressar nesta lista por duas vezes, jamais obtivemos resposta. No gerenciador da
lista, o E-groups, ela não apresenta movimento de envio de mensagens.
Em todas as suas obras, Frazão apresenta um mesmo ponto de vista sobre a bruxaria, o
feminino e a magia. São considerações próprias, em que a autora formula uma verdadeira teoria
sobre modernidade, patriarcado e bruxaria, teoria essa que muitas vezes não difere das
considerações encontradas no universo Nova Era. Veremos a seguir, de um modo sucinto, do que
trata a sua obra, livro por livro, para, a seguir, fazermos uma análise mais profunda de seus
pontos de vista e da mensagem que leva às suas leitoras e leitores. A discrepância quanto ao
tamanho de cada descrição é devida ao própria discrepância no tamanho das obras e seus
conteúdos.
É necessário ressaltar que a autora mantém, em toda a obra, três interlocutores principais:
as cartas de suas leitoras, a sua família extensa e ela mesma, num relato quase sempre auto-
biográfico. A personagem principal da jornada em busca da bruxaria e da magia, do reino do
sonho e do amor, é sempre a própria Frazão, desde a infância até a maturidade. A única
personagem capaz de ofuscar o brilho da autora-personagem é sua avó Vitalina - bruxa e
rezadeira -, uma presença constante em seus relatos de vida.

_______________________________________
2 – Em quatro de outubro de 2000, Frazão realizou a palestra de encerramento do seminário “Língua e Pensamento
na Antiguidade”, na Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense, que teve duração de três dias. Ao
longo dos dez anos em que é escritora, já pudemos assistir à autora em diversos programas de entrevistas como
Programa Livre, do SBT, o Sem Censura, da TVE, Programa Sílvia Poppovic, da Bandeirantes, e em 2000 ela
esteve no Mais Você, na Globo, por mais de uma vez. Revistas tão diferentes quanto Cláudia, voltada ao público
feminino de 20 a 40 anos, e Destino, voltada ao público esotérico, já publicaram matérias com a participação da
autora. Em 2000, realizou o lançamento do seu livro A Panela de Afrodite numa das lojas da cadeia de livrarias
Siciliano, em um shopping da Zona Sul do Rio de Janeiro.
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Bruxaria gastronômica ou a Tradição da Tia Anastácia

Dos seus sete livros publicados até hoje, um versa sobre oráculos, um sobre amor, outro
sobre as divindades gregas Eros, Afrodite e Dioniso, um é auto-biográfico e dois deles contém
receitas culinárias. O primeiro e o último lançamentos da autora são livros de uma bruxaria
gastronômica que leva os feitiços ao fogão e à cozinha, e são capazes de atingir um público que
vai além das bruxas e candidatas a bruxas.
Mesmo em suas outras obras, a autora apresenta a idéia da bruxaria que passa pela
cozinha, espaço de transformação do alimento e da própria cozinheira-bruxa, onde a natureza
estaria presente em seus quatro elementos: água, fogo, terra e ar. A predileção pelo tema
gastronômico, a intimidade com a cozinha e a originalidade da idéia3 renderam a Frazão a
alcunha de fundadora de uma nova tradição da bruxaria, a Tradição da Tia Anastácia, numa
alusão à personagem que habitava o Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato, e que
passava a maior parte do tempo cozinhando. Foi no lançamento de A Panela de Afrodite que
ouvimos os comentários de bruxas e bruxos a respeito da Tradição da Tia Anastácia. Na verdade,
trata-se de um comentário ácido ao perfil da autora e de sua obra, e é sempre dito de maneira
velada, entre cochichos, e nunca diretamente à própria.
No lançamento de A Panela de Afrodite no Rio de Janeiro havia uma mesa de pães e
pastas que se dizia terem sido feitas pela própria Frazão, a partir de receitas do livro em questão.
Quando estivemos em sua casa, em Nova Friburgo, interior do estado do Rio de Janeiro, para
realizar uma entrevista para o corrente trabalho, a autora e seu marido, gentilmente, nos levaram
até a Rodoviária da cidade. Perguntamos, então, se não tinham vontade de abrir um restaurante.
Ela respondeu que seu sonho era abrir uma espécie de padaria-café-bistrô, pois gosta de preparar
pães, bolos, biscoitos e doces.
O que as críticas à Tradição da Tia Anastácia escondem, é que há mais por trás dos livros
de receita do que se pode supor. Aparentemente servindo a qualquer cozinheira, as receitas de
_________________________________
3 – Embora o candomblé faça uso da correlação entre comida e divindades, o mesmo não pode ser dito sobre o
universo Nova Era. Se observarmos o costume das “comidas de santo”, a idéia de uma bruxaria gastronômica não se
torna assim tão original. Contudo, entre os new agers a correlação não é tão explícita. Prova disto são as críticas que
a autora recebe por sua predileção pela culinária.
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Frazão direcionam-se sempre a um objetivo determinado; necessitam de uma preparação prévia


da cozinha, da cozinheira e da mesa onde a comida será servida; e se trata de feitiços para todas
as finalidades. No ato de misturar farinha, ovos e leite, a cozinheira-bruxa mistura alimentos
dedicados a divindades, e transforma suas presenças em um feitiço, enquanto transforma a si
mesma. A auto-transformação é a chave de compreensão não só dos livros de receita da autora,
mas de toda a sua obra.
A cozinha é ainda um espaço feminino, por excelência, e Frazão é uma autora que escreve
para o público feminino. O domínio da casa e da cozinha se mantém, na obra da autora, como um
espaço feminino onde a mulher tem a liberdade de realizar encantamentos, mudar o curso do
destino, transformar o seu próprio eu. O lar não é mais a prisão da mulher, o espaço contraposto à
rua que serve para guarda-la do mundo externo. Ele se torna um microcosmo, simbolizando o
próprio eu interno que espera por mudanças e transformações. Parte destas transformações se dá
ao nível da sexualidade da mulher. A autora aponta freqüentemente para a mudança necessária
neste âmbito para que a bruxa existente em cada mulher possa aflorar. Livre de restrições morais,
de preconceitos, de vergonha, de culpa, e outros sentimentos correlatos, a bruxa é uma mulher
que vive a sexualidade em sua plenitude.
O sexo e a comida têm a mesma importância na obra da autora. O ponto comum entre
ambas é a esfera do sentido, do corpo, da sensação. O paladar, o estômago saciado, o prazer do
sexo são formas de entrar no mundo dos sentidos, onde a razão tem pouca influência. Veremos
que o resgate desse universo sensorial é fundamental, para Frazão, para a formação de bruxa. O
rompimento com a razão é necessário para que o sentido aflore, e essa ruptura se dá, entre outras
formas, pela cozinha e pela cama. Além da comida, entra em cena também o vinho, a
embriaguez. Dioniso é resgatado como o deus das bruxas, este deus grego do vinho e do sexo, em
cujo cortejo seguiam as bacantes, mulheres que rompiam com a ordem patriarcal dilacerando os
homens.
O sexo, o vinho e a comida formam um triângulo de rompimento. Como vimos, o vinho é
elemento essencial nas práticas da bruxaria wicca. Agente da embriaguez, o vinho se torna mais
uma porta para o rompimento com a razão. Neste sentido, se torna um instrumento mágico,
libertando a mente da razão e levando-a ao mundo dos sentidos. Através da dominância dos
sentidos por esses três agentes, o sujeito é capaz de romper com as amarras sociais e abrir-se para
o universo mágico. A magia, para Frazão, está em franca oposição à ordem civilizada. A autora
98

formula uma série de pares de oposição e alinha a bruxaria em um dos lados, que é o mais
valorizado por ela.
Na sociedade brasileira, sexo e comida, cama e mesa, mulher e paladar, estão
intrinsecamente ligados de diversas formas. É comum ouvir-se de um homem que ele deseja
mulher de cama e mesa, ou seja, boa cozinheira e boa amante, traçando uma correlação entre
sexo e comida que Affonso Romano de Sant’Anna já havia detectado na prosa e na poesia
brasileira, em seu livro O Canibalismo Amoroso (1985), onde as mulheres mais voluptuosas e
faceiras são sempre comparadas a frutas e pratos a serem degustados.
DaMatta foi outro autor que observou esta equação na sociedade brasileira. Segundo ele,
“equacionamos simbolicamente a mulher com a comida e o doce com o feminino, deixando o
salgado e o indigesto para estarem associados a tudo o que nos ‘cheira’ a coisas duras e cruéis”
(1994: 52). O autor refaz, nesta passagem, a mesma lógica que apresentamos para o feminino e o
masculino na bruxaria wicca. O masculino é dotado de adjetivações menos valorizadas e até
socialmente repreendidas, como o ser cruel. O feminino, por outro lado, é doce, é compreensivo,
amável. Este é o tipo de pensamento que levou uma das bruxas que entrevistamos a afirmar que o
feminino civiliza, que o requinte e a sofisticação são produto das mulheres. De fato, o duro e o
cruel se alinham mais fortemente a um pólo de rudeza e barbárie. Notamos, a partir de DaMatta,
que as concepções de gênero apresentadas na wicca, tanto no discurso das bruxas brasileiras
quanto nos livros e manuais de bruxas estrangeiras, não estão longe das próprias concepções da
sociedade brasileira.
Indo mais além, DaMatta (1994) ainda relaciona o cru com o estado selvagem e o cozido
com o universo social da cultura e da ideologia. Não é mero acaso, portanto, que o mundo da
mulher se torne o pólo mais valorizado na bruxaria como apresentada por Frazão e pela wicca. O
feminino é, neste pensamento, a origem daquilo que civiliza. Não é mero acaso que a bruxa de
Frazão tenha se tornado uma quituteira. Cozinhando, ela modifica o mundo no sentido de
melhora-lo, pois simbolicamente o cozido é o civilizado, e quem cozinha são as mulheres.
Poderíamos nos remeter, ainda, ao pensamento que vê nas mulheres a origem da cultura popular,
passada oralmente de mãe a filha, uma verdadeira cultura feminina (MUCHEMBLED, 1989),
exatamente como a bruxaria que Frazão aprendeu em família e que divide com suas leitoras.
No ato de cozinhar, as mulheres sensuais da literatura brasileira se tornaram ainda mais
atraentes, invertendo a lógica da dominação masculina e subjugando o homem através de seu
99

desejo (DAMATTA, 1994). Exatamente como Frazão aponta, o sentido rompe com a razão, o
homem dominador é dominado por quem ele subjuga, a mulher. A arma dessa inversão é o
desejo, o sentimento que rompe com a ordem instituída. Queremos dizer com isto que o
pensamento de Frazão, embora traga uma ótica feminista de libertação da mulher, se alinha de
certa forma com a tradição cultural brasileira. Para DaMatta, “nós, brasileiros, concebemos a
sexualidade e a vemos não como um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que
seriam indivíduos donos de si mesmos), mas como um modo de resolver essa igualdade pela
absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro” (1994: 60). Formula-
se, deste modo, uma sociedade hierarquizada em termos de gênero, onde um come e o outro é
comido, há um englobador e um englobado. No caso de Frazão, há um esforço para que a mulher
deixe de constituir o sujeito comido e englobado para constituir o sujeito comedor e englobante.
Pensamos que é disso que a questão de gênero, na obra da autora, trata. Pensamos que é disso que
a bruxaria fala, em todo o seu discurso, quando a mulher toma o pólo mais valorizado de uma
relação hierarquizada. Pois esta hierarquia não está sendo posta em cheque, mesmo que a
igualdade seja almejada. E por enquanto, esta estrutura hierárquica reflete a estrutura da
sociedade brasileira.

Algumas reflexões sobre a obra de Márcia Frazão

A autora, ao longo de sua obra4, formula uma teoria própria sobre a bruxaria e seus
adeptos. Nesta teoria, o mundo se divide em dois pólos em constante conflito, e a solução para tal
é a reformulação da sociedade e do indivíduo, numa busca por um mundo melhor.
Transformação é palavra-chave tanto na resolução dos conflitos quanto no próprio exercício da
bruxaria. Há uma necessidade de mudar a realidade e de não estar alijada do mundo. Por isso
afirma que a bruxa é um ser no mundo, e não fora dele. A mulher, ao se reconhecer bruxa, deve
buscar a transformação no seu interior, enquanto pessoa.
A bruxa, ao executar um feitiço, tenta transformar uma situação. Ao cozinhar, ela
transforma os ingredientes. É nesta analogia que a cozinha torna-se o altar da bruxa. Nela
encontramos os quatro elementos necessários à bruxa: ar, terra, fogo e água. Nela, os
__________________________________
4 – Para que o leitor entenda melhor a análise feita sobre a obra de Márcia Frazão, em anexo encontram-se as
resenhas de todos os seus livros.
100

instrumentos da bruxa estão disponíveis: a faca, a colher de pau, o caldeirão, a taça, a vassoura.
Na cozinha, os feitiços têm aromas e sabores e se transformam em pratos de festa. Como vimos, a
cozinha é um espaço predileto de Frazão. Dona-de-casa, cozinheira, ela se sente à vontade neste
que ainda é um espaço essencialmente feminino. Mas para ela, a mulher na cozinha deve se
despir das “humilhações”, ou seja, deve-se construir uma nova identidade feminina em que a
mulher possa entrar na cozinha e cuidar da casa sem que se transforme em escrava do lar e da
família. A bruxa de Frazão é uma mulher que possui da liberdade de escolha à liberdade do
prazer sexual.
Sua bruxaria traz ainda uma outra marca: é uma bruxaria cabocla, forjada nos
ensinamentos de rezadeira da avó Vitalina e na procura pelo herbolário e folclore nacional.
Frazão é das poucas autoras que traz listas completas de ervas, com seus usos mágicos e
terapêuticos, em cada livro que lança. E na preocupação com as raízes brasileiras, a mandrágora
européia – que não nasce em solo brasileiro - é substituída pelo melão-de-são-caetano, o
hemisfério norte é substituído pelo sul, e uma Yemanjá entra em ação a cada Ano Novo na praia.
A avó, diz ela, teria lhe ensinado uma tradição brasileira, não estrangeira. Não obstante, a
bibliografia que consta nas obras da autora é toda composta por livros estrangeiros, traduzidos ou
não. A busca pelas raízes brasileira de uma tradição européia é o cerne das críticas que ela
direciona a determinados grupos que praticam a wicca e aos esotéricos.

A teoria da autora expressa em suas obras é composta de uma visão de mundo próxima
àquela da Nova Era. Nela, pares de oposições se encadeiam de forma a construir uma cisão no
mundo vigente: duas colunas, representadas no quadro abaixo, guardam os atributos de cada
diferente mundo. De um lado está o mundo da bruxa, de outro a sociedade dominante. Como
veremos, o ponto de vista da bruxa é radicalmente diferente daquele dominante na sociedade. Por
isso a bruxa é vista como um ser marginal. Veremos também o quanto o ponto de vista da autora
se aproxima daquele expresso na Nova Era.

Algumas categorias são usadas pela autora, num conjunto de pares de oposição, em que o
mundo da bruxaria é apartado do mundo racional. Para entendermos o seu pensamento acerca da
bruxaria, iremos dispor as categorias em questão em um quadro de oposições.
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Quadro de Oposições
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
magia ciência
bruxa esotérico
sonho razão
loucura doença mental
amor interesse
prazer dor / culpa
natureza civilização
primitivo moderno
culto religião
feminino masculino
matriarcal / matrifocal patriarcal
curvilíneo retilíneo
Quadro n. 1: Oposições entre magia e razão.

A categoria de magia está diametralmente oposta à de ciência5. Esta é a forma de


pensamento da modernidade, do mundo racional, representado muitas vezes pelo meio
acadêmico, a faculdade de Filosofia que a autora iniciou mas não concluiu. O pensamento
racional da academia é repressor, afasta-a da magia, leva-a a pensar com as categorias do mundo
racional. Para aquele mundo acadêmico, diz, a magia é o irracional, o ilógico, a desordem.
Liberta desse estrangulamento, a autora imerge cada vez mais no mundo lúdico da bruxaria. Essa
ludicidade aparece, de forma incontestável, da própria narrativa da autora, sempre buscando nos
fragmentos de sua infância e adolescência as experiências que teriam feito dela uma bruxa. É
neste período da vida que o contato com a família está mais próximo, família esta que é
________________________________________
5 - Douglas (op. cit.), como Frazão, afirma que é um erro pensar em idéias como destino, feitiçaria e magia como
fazendo parte de filosofias ou como sistematicamente pensadas. O universo da magia é o da ação simbólica. O mago
não está empenhado na coerência intelectual. Observamos, portanto, a partir de Douglas, que magia e razão
constituem pólos opostos. Isto quer dizer que a lógica da magia está baseada em correspondências simbólicas que
não necessariamente fazem sentido para a mente racional. Elas fazem sentido no contexto mágico. Douglas trabalha
com dois planos de representação na passagem acima: o simbólico e o racional. No racional, a magia não faz sentido.
No mágico, o racional é inoperante. É este tipo de diferenciação que encontramos no pensamento de Frazão.
102

fundamental para a autora, formada quase exclusivamente por mulheres, todas elas bruxas.
Poderíamos, portanto, incluir no quadro mais dois pares de oposição que ajudam a reforçar o
mundo no qual é possível acessar a magia: de um lado, a infância e o comportamento lúdico, de
outro a racionalidade dos adultos; de um lado, a família e suas bruxas – e aqui podemos inserir as
empregadas da casa e as amigas de Frazão e sua avó -, de outro o mundo exterior que não
compreende aquelas mulheres.
A infância é também o período de descobertas e sonhos. É neste período que ela desvenda
os segredos que a avó guarda, a leitura da sorte em oráculos, a essência do feminino que enxerga
nas mulheres de sua família, o encanto das bruxas. A cada experiência, a autora vai formando sua
identidade de bruxa, em oposição à do mundo externo àquela realidade vivida em família. Os
sonhos de infância, deve-se guardá-los, como a todas as lembranças. Os sonhos também revelam
o futuro, revelam mensagens do inconsciente, dão conselhos, são iniciatórios. Eles rasgam o
reino do pensamento racional do ser desperto, levando-o a outras dimensões. É uma das chaves
para se fugir da razão, e uma porta de entrada para a magia.
A razão também é categoria oposta à loucura. A conversa com as plantas, com as águas,
as visões que os sonhos trazem, o comportamento em tudo atípico da bruxa combinam-se para
dar a impressão de que é louca. No já cientifizado e psicologizado século XX, a loucura passa a
ser doença mental, psicopatologia. Há várias acusações de loucura na família da autora. Ela
mesma fora taxada de “estranha” pelo comportamento inadequado. Mas para uma bruxa, a
loucura é apenas o sintoma de que se está diante de outra bruxa. A loucura não existe, é uma
invenção da razão para aqueles que conseguem romper com ela. É uma acusação para aqueles
que são livres de amarras sociais e racionais. A bruxa apresenta-se, portanto, como esse ser livre.
Uma última contraposição à razão se apresenta: a emoção. Na obra de Frazão, a emoção
mais descrita e louvada é, sem dúvida, o amor. Ele é visto como capaz de libertar, de transformar,
de curar, de salvar. Ele é feitiço perfeito, o mais poderoso de todos. É outra chave da bruxaria, de
uma bruxa que prepara poções de amor e é cúmplice do Cupido, procurada pelos enamorados. No
reino dos sentimentos, a razão não governa. Àqueles que se deixam levar pela razão quando
deveriam se entregar às paixões sofrem a acusação de serem interesseiros. Quando o interesse se
acumula acima do amor, é necessário uma reestruturação pessoal. É necessária uma
transformação interior. Na esperança de que essa transformação traga um mundo melhor,
dominado pelo sonho e pelo amor, a autora dedica longas páginas ao sentimento. Mas suas
103

tentativas parecem vãs: recebe cartas de amores interesseiros, e não verdadeiros; recebe pedidos
para feitiços de amor sem o compromisso da auto-transformação.
Na categoria amor poderíamos inserir uma subcategoria: prazer sexual. A autora se
reporta, muitas vezes, às bruxas como mulheres livres, no sentido também da liberdade sexual,
liberdade do prazer. O ato sexual passa a ser representativo das bruxas e, seguindo a lógica de
oposições formulada por ela, passa também a tipificar a bruxa. Enquanto fonte de percepção
sensorial, o prazer sexual pode perfeitamente ser colocado na primeira coluna do quadro, aquela
que se opõe à razão e seus instrumentos. O sexo, sem dúvida, está longe de ser racional. E o sexo
livre que a autora evoca é o rompimento das últimas amarras de coerção racional e social. A
intenção de Frazão, no entanto, é exortar a mulher à liberdade de sua condição feminina, à quebra
aos padrões de submissão à dominação masculina. E o sexo figura, para ela, como uma das portas
de rompimento com essa submissão. Podemos estabelecer que o sexo é o símbolo do corpo na
teoria da autora, que se oporia à mente racional da segunda coluna do quadro.
É nesse sentido que a autora se dedica a escrever sobre Dioniso e as Bacantes. Estas são
mulheres livres, devoradoras de homens, uma metáfora para as bruxas que estariam devorando o
sistema masculino, científico, patriarcal e moderno dominante hoje em nossa sociedade. Deus da
vegetação, ligado aos ciclos da natureza, “deus dos fracos e oprimidos”, celebrado
essencialmente por mulheres, Dioniso encarna toda a transgressão que a bruxaria de Frazão se
propõe. O medo que as Bacantes suscitavam em seus conterrâneos masculinos, diz, é o mesmo
medo que a liberdade feminina suscita nos homens, o medo que se tem de bruxas e que leva a
serem classificadas, como as Bacantes o foram, de mulheres histéricas e más. O sexo é uma
chave de libertação da sociedade retilínea, onde o prazer não é livre pois é visto com culpa. A
sociedade patriarcal, como ela a descreve, seria guiada pela dor, enquanto as bruxas dirigiriam
seu comportamento a partir do prazer.
Podemos estabelecer aí mais um par de oposições: para a autora, em seu dia-a-dia,
conforme nos disse, não há diferença entre trabalho e lazer. Todo o tempo gasto é tempo lúdico.
Todo o trabalho, da tradução de livros ao cuidado doméstico é um prazer. Na sociedade
dominante não é assim. O trabalho é cansativo e exaure. Ele é um sacrifício, por isso as pessoas
têm hobbies, passatempos prediletos para seus tempos de lazer. A autora afirma que não tem
hobbys pois todo o seu tempo é de lazer.
104

A categoria de natureza é também central ao pensamento da autora, e formula os pares de


oposição subseqüentes no quadro acima. A natureza é, em primeira instância, a própria divindade
feminina, a Deusa ou Grande Mãe. Como vimos anteriormente, é a divindade nutriz, a divindade
adorada pelas bruxas, essência do feminino. A natureza, portanto, é sagrada e deve ser preservada
a qualquer custo, o que dá ensejo a pontos de vista ecologistas. A natureza sacralizada da
bruxaria torna tudo que está nela mágico.
A natureza, ligada à divindade feminina da terra e da lua, representa também, em um nível
simbólico, tudo o que é não domesticado, o que é selvagem, em última instância, o que é livre.
Temos, deste modo, uma das pontas do raciocínio da autora fechadas: natureza, feminino e
liberdade se tornam aspectos correlatos e necessários à bruxa. Esta deve manter contato com a
natureza, plantar uma horta, um jardim, cuidar de suas ervas mágicas, colhê-las com suas
próprias mãos. Representando a divindade e a liberdade, essa correlação coloca as bruxas como
mulheres cuja essência feminina prima pela liberdade de espírito e de ação. Daí a categoria de
loucura se tornar na verdade, conforme a autora, um epíteto de liberdade. A louca é livre pois
rompe com as amarras da racionalidade. A bruxa é livre porque se mistura à natureza, que é livre
por definição. A bruxa que não observa a natureza e não mantém estreito contato com esta na
verdade não é bruxa, como a mulher que não é livre não pode se tornar bruxa.
O contraponto racional da natureza é a civilização. A civilização é o constrangimento
social, é a perda da liberdade, é o local de domínio masculino e preponderância da razão, que se
torna, deste modo, um atributo masculino também. Afinal, nenhum homem é acusado de louco
em toda a obra da autora, apenas mulheres. É a civilização que perverte o ser humano, afastando-
o da natureza e tornando-o um ser incompleto, dominado pela razão, afeito à violência contra a
natureza e contra outros seres humanos. A civilização é caótica enquanto a natureza é
harmoniosa. Notemos que a categoria civilização se refere mais ao modo de vida ocidental do
que ao oriental. Em última instância, a autora se refere a um estilo de vida que está apartado da
natureza, como civilizados estão apartados de indígenas.
Os povos em contato com a natureza são vistos pela autora como mais equilibrados mais
harmoniosos. Há uma romantização das sociedades primitivas, vistas como fora do escopo de
influência da civilização devastadora. Os “primitivos” – com aspas, como escreve a autora – são
o bom selvagem, seres humanos em perfeita harmonia com a natureza, retirando desse convívio a
sabedoria que os civilizados perderam. Eles nos dão o exemplo a ser seguido. Todas as virtudes
105

residem no “primitivo”: ele é honesto, sábio, equilibrado, harmonioso, virtuoso, pacífico, natural.
Ele não sofreu as restrições racionais da civilização e ainda trabalha a magia e a natureza de
forma sagrada. A magia é a sua forma de explicar o mundo enquanto a ciência é a nossa.
Nós, civilizados, ao contrário, somos seres caóticos, violentos, beligerantes, dominadores,
corrompidos, perversos. Nós destruímos a natureza e a nós mesmos. Nós esquecemos as
divindades. Não acreditamos mais em magia, não ouvimos nossos sonhos, não acreditamos nos
sentimentos. Nossa maneira de pensar faz com que observemos a natureza, ao invés de nos
integrarmos a ela. Somos consumistas e dirigidos pelo interesse econômico. A sociedade
desequilibrada na qual vivemos seria responsável também pelas nossas doenças. Esse
desequilíbrio teria gerado, nas mulheres, doenças como a depressão pós-parto e a tensão pré-
menstrual. Essa sociedade moderna é vista como um mal que deve ser extinto. Outra sociedade
deve ser erguida em seu lugar, na qual homens e mulheres serão iguais, na qual a magia terá
lugar, a natureza voltará a ser sagrada e a divindade louvada.
Mais um par se dispõe: masculino e feminino. O feminino é a mulher, a sensibilidade, a
intuição, a emoção, o sonho, a sutileza, a harmonia, a magia, a lua, a terra, a natureza, a
liberdade. O masculino é a violência, a dominação, a coerção, a força bruta, o caos, a razão. É
neste par de opostos que a autora formula claramente a essência da bruxaria como feminina. É a
mulher, e especialmente ela, o sujeito que pratica a bruxaria e a magia. O homem precisa sofrer
uma transformação maior do que a mulher para conseguir ingressar neste mundo, afinal, ele vai
contra o que a autora apresenta como sendo sua própria natureza. Se a mulher moderna
desaprendeu a magia, a intuição, a sensibilidade, é mais fácil para ela operar esse resgate. O
homem, ao contrário, não tem o que resgatar. Ele deve mudar, transformar-se para acessar um
mundo que é feminino, um mundo de magia e sonhos, acessando uma nova forma de
masculinidade, que não esteja ligada aos velhos padrões. Essa nova masculinidade será um dos
instrumentos de queda da ordem vigente, e abrirá as portas para a nova ordem que deve se
estabelecer. No entanto, o homem está mais preso à razão do que a mulher, e para ele é mais
difícil libertar-se dessa prisão. Fatalmente, nem todos conseguem essa proeza.
Observando estas oposições mais de perto, poderíamos imaginar que há uma contradição.
O feminino ora é cultura, ora natureza. A mulher ora é independente, ora é doce. O masculino ora
é natureza, ora civilização. De fato, percebemos que existem duas lógicas superpostas,
estabelecidas como dois eixos centrais para efeito de análise, tanto no que tange à obra da autora
106

quanto no discurso da wicca e das bruxas de um modo geral. Em ambos os eixos, aquilo que é
associado ao feminino é sempre positivamente valorizado. O que é associado ao masculino é
sempre desvalorizado. Num primeiro eixo, o feminino está vinculado à natureza, enquanto o
masculino está vinculado à civilização. A natureza, neste caso, é sagrada, representa a Grande
Mãe, divindade nutriz. É uma natureza boa, que serve a acolhe o homem. A civilização é a sua
inimiga, pois se baseia num movimento contínuo de destruição da natureza, seja do meio-
ambiente, seja dos povos “primitivos” e sua formas de vida mais ligadas a ela. Num segundo
eixo, o feminino é civilização, é o conhecimento das ervas e artes de cura, é a agricultura,
enquanto o masculino é a barbárie, a força física, o selvagem. Neste eixo, há uma concepção de
ordem e desordem que são inversas àquelas do primeiro eixo. A civilização não é mais
destruidora da natureza, ela atua em conjunto com esta, respeitando-a e seguindo os ciclos
naturais (agricultura). A natureza retratada pelo masculino, por outro lado, é a desordem do
selvagem, o caos da barbárie, a falta de regras, a destruição, a força física que não é capaz de
dialogar. Toma, assim, uma conotação negativa.
Observamos, a partir destes dois eixos, que essa lógica dupla que opera no pensamento
das bruxas é, na verdade, única. O civilizado do primeiro eixo efetuou o rompimento entre
natureza e cultura, fazendo com que se tornassem pólos opostos. Este é o pensamento da
modernidade, da racionalidade moderna. O “primitivo”, por outro lado, não efetuou esse
rompimento. A sua cultura está, ainda, estritamente vinculada – na ótica das bruxas – à natureza.
Ele é um sujeito em comunhão com ela. Desta forma, quando o conceito de civilização remete a
este tipo de interação, ela é positiva, e é delegada ao escopo feminino. Quando ela retrata a noção
que a modernidade tem de civilização, ela é vista negativamente. São duas óticas em jogo, em
dois eixos complementares: em uma, estão em jogo os valores da modernidade; em outro, os
valores das bruxas. Como seres de um momento histórico determinado, elas atuam nestas
diferentes frentes, tentando fazer delas um pensamento único. O importante é percebermos que a
lógica aponta que aquilo que é valorizado está sempre no pólo feminino, delegado a funções
prioritariamente de nutrição, enquanto o masculino é associado à destruição. Um é vida, o outro é
morte.
Estas concepções de feminino e masculino se alinham com as concepções correntes na
sociedade brasileira. Goldenberg (1992) aponta estas mesmas características de destruição e
morte: o homem seria visto como um guerreiro, um caçador, provedor e ser carnal. Seria ainda
107

competitivo, agressivo e conquistador (GOLDENBERG, 1991). O feminino, por outro lado, é


definido em termos de sua relação com o homem, num processo complementar que envolve
diretamente a idéia de família: mãe, esposa ou filha, a mulher seria maternal, acolhedora e
romântica. Não é difícil ver em Frazão estes tipos de atributo para cada gênero. Todavia, o valor
atribuído a estas características é invertido. Se na sociedade brasileira um homem deve ser
agressivo, sob a ótica da bruxaria isto é negativamente valorizado, embora as concepções de
Frazão indiquem a idéia de que os homens são agressivos e devem deixar de sê-lo. Do mesmo
modo, se para a sociedade brasileira uma mulher deve ser romântica, em Frazão percebemos que
a bruxa é romântica (o amor rompe com a razão), e isto é positivamente valorizado não apenas
como um padrão para as mulheres, mas para homens também. Há uma tendência a fazer com que
as diferenças se atenuem e se afinem em um padrão único ideal que é, em última instância, um
padrão de rompimento com o esquema valorativo da ordem atual. Com isso queremos dizer que
as atribuições não mudam drasticamente para cada gênero, mas há uma valorização dos atributos
femininos.
A ordem vigente na modernidade é o patriarcado, a dominação masculina. A ela se
contrapõe tanto matriarcado quanto sociedade matrifocal. Em sua obra, a autora reveza o uso das
duas últimas categorias como se tivessem o mesmo significado, embora ela faça, a princípio, uma
diferenciação. O matriarcado, segundo ela, é a dominação feminina, a dominação da sociedade
pelas mulheres onde o feminino era o centro da organização social, a divindade era feminina, a
natureza era vista com olhos ecológicos e se vivia em comunidade, na mais perfeita harmonia. A
sociedade matrifocal é aquela na qual homens e mulheres são idênticos em direitos, sem a
predominância de um sobre o outro. O matriarcado é tão rechaçado pela autora quanto o
patriarcado, mas ela acredita que a humanidade um dia esteve organizada em termos matriarcais,
movendo-se posteriormente para o patriarcado. A sociedade matrifocal teria sido um continuum
entre uma ordem e outra. Esta organização é a ideal e deve ser aquela adotada para a construção
de uma nova ordem, após a queda do patriarcado. Nesse sentido, as mulheres estariam já
resgatando seu papel de matriarcas enquanto os homens devem resgatar o papel que exerciam na
sociedade matrifocal – sem dominarem nem serem dominados.
O papel da mulher teria sido de suma importância nessa sociedade matrifocal. Para ela,
esse papel central foi perdido na introdução do patriarcado, quando então as mulheres deixaram o
“pensamento masculino destacar-se”, adquirindo um “comportamento fálico”, perdendo os laços
108

com a Grande Mãe, sua divindade, e gerando dor e sofrimento tanto para homens quanto para
mulheres, visto que, no patriarcado, o homem também é escravo de um modelo de masculinidade
e de uma modelo de racionalização que não abre espaço para o feminino. Para ela, o papel da
bruxaria é o de retomar a mulher como centro do sistema humano, fazendo com que volte ao seu
“papel ancestral”. “Descobrimo-nos bruxas quando nos percebemos enquanto mulher”, diz. As
mulheres têm o papel central nessa mudança pois são “fonte de vida para si próprias e para os
outros”. Essa capacidade de gerar vida parece ser o trunfo primordial da mulher. A composição
da mulher que a autora faz aponta sempre para um papel maternal. A mulher parece ser definida
na sua capacidade de gerar filhos - gerar vida. Como vimos, a divindade na bruxaria é
classificada segundo essa capacidade: Virgem, Mãe e Anciã.

Os conceitos de culto e religião têm sido também postos em pólos opostos pela autora. Ela
tem sido reticente em chamar a bruxaria de religião, embora em seus livros ela faça tal tipo de
afirmação. Hoje, diz, vê a bruxaria como culto. Religião é um conceito que associou àqueles que
não mantiveram sua ligação com a natureza.

“Eu acho loucura você colocar o conceito de religião em cima de atividades pagãs.
Porque religião é um conceito para o homem que vive essa ruptura de
natureza/cultura. O primitivo não vive isso, então ele não precisa de religião. Ele não
precisa porra nenhuma para religar ele.”

Não só religião denota um rompimento com a natureza, mas também um rompimento com
o feminino: é um conceito patriarcal, visto que o mundo patriarcal foi aquele, na visão da autora,
que dominou a natureza como dominou a mulher. Esse mundo é o mundo da ordem, da razão.
Em dois diferentes e-mails, ela diz:

“A utilização da palavra ‘religião’ não é adequada para nenhum sistema de crença


pagão. A concepção de religião vem do sistema patriarcal, que procurou enquadrar o
‘culto’ em um sistema ordenado de regras, visando a ‘ordem’ social. No paganismo, a
palavra religião não tem sentido e sim ‘culto’.”
109

“Se o homem civilizado precisa se religar e o ‘primitivo’ não, o primeiro passo é ver
como o civilizado ‘está no mundo’ e como o primitivo está. A questão fundamental do
religare é o laço com a terra. Nós, que nascemos num mundo em que se precisa
primeiro pensar para depois sentir, precisamos desse tal religare, mas os verdadeiros
povos pagão não.”

Na tentativa de formular categorias que abraçassem todos esses pares de oposição, dando
um sentido único a eles, a autora forjou as categorias de curvilíneo e retilíneo. O curvilíneo é o
mundo das curvas sensuais do corpo da mulher, mundo feminino, vinculado à natureza, onde o
tempo é cíclico, como nas sociedades primitivas, como os ciclos naturais com sua idéia de
repetição. O curvilíneo é o ideal a ser alcançado. É neste mundo que a bruxaria opera. A
categoria de retilíneo engloba as ramificações da razão, o tempo reto que tenta alcançar o futuro
que nunca chega, a racionalidade que opera no mundo moderno, o governo do falo, da dominação
masculina, a inflexibilidade de posições, a rigidez de pensamento, a ausência de transgressão. À
distância, tem-se a impressão de que o retilíneo é estagnado, tentando em vão alcançar algo que
reside num futuro metafísico, habitado por elocubrações da racionalidade, enquanto o curvilíneo
é o eterno movimento de ir e vir sobre si mesmo, amparado na natureza e na materialidade da
vida, sempre o mesmo e sempre renovado, exatamente como uma mulher: virgem ou grávida, ela
guarda em si o mesmo poder de criação a ser acessado. Após dar à luz, ela volta a ser o que era
antes. O corpo do homem não sofre esse processo: é o mesmo, do começo ao fim, sem mudança.
O corpo é uma das oposições à mente, ao pensamento racional. As emoções, o corpo, as
sensações, tudo isso faz parte do processo de rompimento com a razão. Não é por acaso que
Frazão escreve tanto sobre culinária. A comida faz parte dessa ordem de sensações capaz de
romper com as amarras racionais. O sexo, o vinho e a comida formam um triângulo de
rompimento. Como vimos, o vinho é elemento essencial nas práticas wiccanas. Agente da
embriaguez, o vinho se torna mais uma porta para o rompimento com a razão. Neste sentido, se
torna um instrumento mágico, libertando a mente da razão e levando-a ao mundo dos sentidos.
Dioniso se faz presente novamente, pois era deus do vinho.
O vinho, o sexo e a comida formam os pés de uma estrutura que se dirige à quebra com a
razão dominante, a racionalidade de nossos tempos. Através da dominância dos sentidos, por
esses três agentes, o sujeito é capaz de romper com as amarras sociais e abrir-se para o universo
110

mágico. Em nossa sociedade, especialmente, sexo e comida, cama e mesa, mulher e paladar,
estão intrinsecamente ligados de diversas formas. É comum ouvir-se de um homem que ele
deseja mulher de cama e mesa, ou seja, boa cozinheira e boa amante, traçando uma correlação
entre sexo e comida que Affonso Romano de Sant’Anna já havia detectado na prosa e na poesia
brasileira, em seu livro O Canibalismo Amoroso, onde as mulheres mais voluptuosas e faceiras
são sempre comparadas a frutas e pratos a serem degustados.

A bruxa para Márcia Frazão

A bruxa é, para Frazão, mais do que a praticante de magia e feitiços, mais do que a
vidente ou taróloga. Ela transforma o mundo à sua volta, transforma a energia negativa em
positiva, sempre imbuída de “profundo amor ao próximo”. Ela é um ser comum, despreocupada
de imagens místicas, comprometida com o cotidiano e com uma existência simples, sem as
complexidades do mundo moderno. Ela é uma pessoa no mundo e não fora dele, buscando a sua
mudança. É uma sacerdotisa dos deuses, uma guardiã das tradições e costumes antigos, cujo
único comprometimento é com estes deuses. O poder de realizar os feitiços não vem das receitas,
afirma a autora, mas do contato da bruxa com a natureza, de sua capacidade de “falar a língua da
natureza”.
Tanto em seus livros quanto na entrevista a nós concedida, Frazão apresenta a bruxa como
marginal. Ela é uma pessoa “torta” na contramão do que é dominante. Se as meninas se vestem
de cor-de-rosa, a bruxa usa jeans. No mundo civilizado, ela procura a natureza. Na sociedade
moderna, ela valoriza os “primitivos”. Em um mundo dominado pelo masculino, ela afirma o
poder da mulher. Numa sociedade voltada para o científico, ela usa magia. Quando a
racionalidade desencantou o mundo, ela presta atenção à sua intuição, aos seus sonhos e
emoções. Quando não há mais tempo sobrando, ela se recolhe para conversar com a lua ou com
as plantas. Em todos os aspectos, a bruxa é uma pessoa marginal, fora dos padrões dominantes.
Como aponta Mauss (1974), os indivíduos aos quais o exercício da magia é atribuído têm uma
condição particular no interior da sociedade, que os trata como mágicos. Embora nem toda
condição anormal indique a prática de magia, aqueles que a ela se dedicam o fazem por força de
sentimentos sociais ligados à sua condição específica. E o mágico enquanto tal tem uma situação
socialmente definida como anormal.
111

A bruxa que não está à margem, que não é pessoa “torta”, fora dos padrões, não pode ser
uma verdadeira bruxa. Nesse sentido, a religião pagã ou não, diz menos sobre a bruxa do que sua
posição na sociedade. Frazão diz:

“Eu acho que pode acontecer o que acontece, não o sincretismo. Eu acho que as
religiões são mais ou menos como clubes. Mas o que rola, ao nível de inconsciente
coletivo, é uma coisa muito carnavalizada, uma coisa muito pagã. As pessoas não têm
consciência disso. Agora, no momento que você tem consciência, aí é impossível.
Quando você não tem consciência, sabe, ‘não estou preocupada em ser bruxa, tenho a
minha vida, sou católica’, aí dá para ser [bruxa], porque aí você está sendo sem
perceber.”

A mulher que procura a bruxaria para ser de vanguarda ou estar na moda, também não é
uma bruxa. Ela age segundo os padrões da moda, logo não está numa posição marginal. As
rezadeiras e benzedeiras, por outro lado, embora cristãs, são bruxas: a posição marginal e o
contato com a natureza, além do uso da magia, lhes assegura isso. As próprias mulheres, numa
estrutura de dominação masculina, são sujeitos considerados marginais. Segundo Mauss (1974),
as mulheres só são tidas como mágicas dada a particularidade de sua posição social. O autor
sugere que os fenômenos corporais femininos, como a menstruação e a gravidez, são sinais dos
poderes específicos delegados às mulheres. Neste sentido, não é uma coincidência que o sangue
menstrual tenha um uso mágico tão difundido. Frazão dá várias receitas de feitiços em seus livros
onde este sangue deve ser utilizado. O vinho tinto usado nos rituais wiccanos faz uma alusão a
este sangue. Percebemos também que a face de Mãe da Deusa é a face de maior poder e a face
preferida pelas bruxas. Se alguma dúvida restava sobre a centralidade do feminino na bruxaria
wicca, entendemos que está aqui definitivamente desfeita.
Para Mauss (1974), a bruxaria é espaço privilegiado das mulheres não só pela sua situação
marginal frente a uma estrutura social de dominação masculina, mas pelo distanciamento que esta
estrutura inflige à mulher no que tange o seu aceso aos postos religiosos. A sua situação religiosa
diferente faria com que se voltassem para a magia, pois é onde uma inversão de posições ocorre.
Na magia a mulher é soberana enquanto na religião ela é subordinada. Isto não está, de forma
alguma, em desacordo com o que observamos sobre a wicca. Em nossa sociedade há poucas
112

expressões religiosas onde a mulher possa ocupar um cargo religioso de mando. A wicca é um
lugar onde isto pode ocorrer. O que observamos em campo, porém, é que a bruxa wiccana não é
apenas uma operadora de magia. Ela é também uma sacerdotisa. Deste modo, a wicca está
oferecendo às mulheres não só o papel ancestral que desempenham e desempenharam em
diversas sociedades, como bruxas, mas um papel que dificilmente elas desempenham no
Ocidente moderno, o de sacerdotisas. A wicca é um espaço onde religião e magia se encontram e
onde antigas e novas oportunidades de expressão do feminino têm lugar.
É possível, a partir daqui, compreendermos melhor porque a autora enxerga a bruxaria
como prioritariamente feminina, e desloca o universo da bruxaria para o universo feminino, como
se constituíssem uma única ordem. A marginalidade da mulher é expressa nas sociedades de
dominância masculina, a marginalidade da magia é expressa perante a ciência, a marginalidade
do “primitivo” frente ao moderno, da natureza frente à civilização. Constituem, na verdade, uma
ordem única de opostos, que seguem a mesma lógica.
O que seria, para Frazão, uma verdadeira bruxa? Como tornar-se bruxa? A bruxa para ela,
está claro, é um ser marginal ao sistema dominante, que na maior parte do tempo luta contra ele.
Para se tornar bruxa, então, diz a autora, uma mulher tem que construir a sua história. Se não
tiver sido socializada num meio de bruxas, ou seja, se não for uma bruxa hereditária, a mulher
deve procurar dentro da família algo que a leve de volta ao contato com a natureza. A
ancestralidade é fundamental. Por isso a autora se atém à família e recorre freqüentemente à sua
ascendência. Não é exatamente o sangue ou a genética que fazem a bruxa, mas o universo onde
ela foi criada e socializada.

“Vai ter que ter uma pesquisa dentro da própria família. Não é uma coisa de fora.
Você não se torna bruxa lendo o livro de alguém. Isso é louco. Tem que haver uma
história. Até a própria conexão não é uma coisa que você decide aqui e agora: ‘oba,
vou me conectar com a natureza’. Para você se conectar com isso é preciso que
alguém, um dia, antes de você, tenha se conectado.”

Como reconhecer a verdadeira bruxa? Segundo Frazão, é fácil. Basta buscar aqueles que
são desviantes. É a observação que aponta quem é a bruxa, não um dom específico a ela.
113

“Alguém que é torto, que está à margem é reconhecível! Ela [a bruxa] não será igual
ao rebanho, então esteticamente alguma coisa ela terá torto. Não estará com a roupa
da moda, entendeu? E o discurso dela será torto. Se conhece uma bruxa pelo brilho do
olhar. Por quê? Por que alguém que tem tesão na vida, o olho brilha. É fácil, não é
nenhum dom. Não é dom, é raciocínio.”

A mulher bruxa é livre, marginal, desviante, independente. E um homem, poderia ser


bruxo? Para Frazão, homens não podem ser bruxos, pois não tem a essência do feminino que
permeia a bruxaria. Podem, no entanto, participar como personagens menores.

“Eu acho que [a bruxaria] é essencialmente feminina. A mulher tem um dom muito
maior de imaginar, de criar. Ela é mais solta nisso. Os homens se esforçam demais. A
mulher é natural. O imaginário, essa coisa de liberdade, é muito feminina. (...) Eles
podem ser aquilo que sempre fizeram. Eles são chefes de cerimônia. O homem sempre
gostou de aparecer. A mulher é mais reservada. Magia é você saber que você
pertence, que você está no mundo. Eu sou um pedaço dessa mesa, eu sou a louça que
eu lavo (...) e o homem, é muito difícil ele conseguir isso. Na verdade, o homem tem
dificuldade de lidar com ele mesmo, né? O homem sempre espera resultados. Eles não
têm paciência. A feitiçaria, a magia, é a arte da paciência. A sabedoria é uma coisa
que requer muita paciência, muita observação, lidar com o fracasso. Tudo isso a
mulher consegue. A mulher, ela lida com a diversidade. Ela caiu? Ela levantou. A
minha avó dizia que a mulher tem o poder, o homem não.”

Como vimos acima, a autora prossegue construindo pares de oposição que valoram
positivamente a mulher e negativamente o homem. O homem retratado por ela é um ser frágil,
carente, psicologicamente abalado, incapaz de lidar com a perda, o fracasso e a espera. É um ser
imediatista que não consegue nem mesmo se integrar com o ambiente onde vive, sendo um
eterno deslocado, reprimido e egocentrado. No final, qualquer chance é deles retirada quando a
autora saca o discurso legitimador da avó: os homens não têm poder.
Observamos em campo, contudo, que a bruxaria wicca tem se tornado atraente aos
homens também. Embora Frazão não enxergue na bruxaria espaço para os homens além da
114

figuração, pois lhes falta poder real, alguns jovens têm engrossado as fileiras de bruxos. Como
vimos anteriormente, há papéis para os homens na wicca, tanto na cosmologia quanto nos rituais.
O que nos chama a atenção, no entanto, é mais a faixa etária desses homens e sua sexualidade.
A primeira impressão é que as mulheres que praticam wicca são de todas as faixas etárias,
começando a se interessar por bruxaria aos treze ou catorze anos e estendendo-se até os
cinqüenta. Os homens, por outro lado, são todos jovens. Dificilmente se encontra um wiccano
acima dos trinta anos. O reflexo das mudanças quanto aos papéis de gênero na nossa sociedade
parecem fundamentais para compreendermos o fenômeno tanto quanto a estrutura de gêneros que
a wicca apresenta. Apesar do ingresso de homens na bruxaria, esta ainda tem sido um espaço
feminino onde a predominância numérica das mulheres é sensível.
As mulheres que procuram a wicca não são, claramente, mulheres imbuídas de
concepções hierárquicas sobre os gêneros, no sentido da dominação masculina. Os homens que as
acompanham, portanto, não podem manter um comportamento considerado machista. Uma
mulher que acredita que toda mulher nasce bruxa, ou que o poder de uma bruxa reside em seu
útero, não delega aos homens nenhum tipo de supremacia. Os homens que as acompanharem,
portanto, terão que ser homens pós-revolução feminista. No Brasil, a mudança no status da
mulher na sociedade só se deu a partir da década de 70, e mais fortemente da década de 80
(GOLDANI, 1993; OLIVEIRA, 1996; BERQUÓ, 1998). Não seria possível, portanto, que uma grande
quantidade de homens com mais de trinta anos pudesse comungar das crenças wiccanas.
Quanto à sexualidade, por ser a bruxaria um universo tão vinculado ao feminino, foi
possível observar, no campo, um fenômeno análogo àquele que ocorre nos terreiros de
candomblé (BIRMAN, 1995), que é a predominância de homens homossexuais. Percebemos que as
bruxas sempre falavam sobre o homossexualismo masculino na wicca, e se referiam à maioria
dos homens como sendo homossexuais. Eles encontram na wicca um espaço de feminilidade,
relativamente parecido com aquele que pais-de-santo encontram no candomblé. Embora na
literatura wiccana estrangeira seja possível encontrar algumas referências à presença de lésbicas
na bruxaria, o mesmo não se dá a respeito dos gays. Lésbicas, embora sejam homossexuais, são
ainda mulheres, portanto têm úteros. Isto significa que o poder da bruxa, aquele que reside em
seu útero, é intrínseco à mulher, não importando qual a expressão de sua sexualidade. Ele é
inerente, e por isso não exclui as lésbicas. Os homossexuais, contudo, só se fazem inserir no
sistema wiccano através de um artifício de gênero.
115

Vimos que o princípio masculino é definido na wicca em relação à sua sexualidade: ele é
fertilizador, e só poderá sê-lo se estiver numa relação com o princípio feminino. Um gay não
incorpora esses atributos masculinos. Ele é levado, então, a tentar incorporar os atributos
femininos. Se utilizarmos as categorias de Fry (1982), entenderemos que homem está em
oposição à mulher, enquanto bicha ou entendido (homossexual) estão em oposição ao homem
(heterossexual). Enquanto a bicha é sempre passiva, e o seu parceiro não deixa de ser homem, o
entendido é o homossexual tanto ativo quanto passivo. Deste modo, o homossexual masculino na
wicca se torna mais próximo às mulheres, e tende a buscar, tanto quanto elas, um espaço de
identidade de gênero e de atuação profissional.
Não estamos afirmando que todos os homens bruxos sejam gays. Na verdade, poucos
assumem a condição homossexual, que é comentada em sussurros por meio de fofoca.

Críticas ao esoterismo

A preocupação da autora de manter-se ligada à realidade nacional, tanto no folclore


quanto nas práticas mágicas, faz com que ela critique duramente aqueles que, sob seu ponto de
vista, preferem consumir uma cultura importada a dar valor às manifestações mágicas populares e
ao folclore brasileiro. Dois interlocutores são, então, o alvo das críticas da autora: de um lado, os
esotéricos, de outro, os próprios wiccanos que tomam posturas próximas aos dos esotéricos. A
autora passa, então, a formular categorias de acusação para esses dois grupos.
A própria necessidade de escrever livros mistura-se à sua oposição ao tipo de religiosidade
que o mundo esotérico tem trazido ao país. Uma religiosidade estrangeira que, segundo ela, não
olha para a cultura brasileira e que não respeita a natureza, beirando quase a loucura. Os
estrangeirismos são vistos pela autora no sentido de colonização, que ela tenta combater.

“Eu resolvi escrever livros por mero terrorismo. Eu mudei para Friburgo, e Friburgo
é o paraíso esotérico. Só tem pastel. Neguinho que faz cura por cristais, cura por
sementes de abacate, meditação transcendental, é um leque. E esse pessoal começou a
freqüentar a minha casa, e são aquelas pessoas burras, estúpidas, imbecis, e o pior de
tudo é que essas pessoas estão ganhando um espaço muito grande. Se fosse só
dinheiro, eu não me incomodaria nem um pouco. Só que essas pessoas estão mexendo
116

com uma coisa que eu acho que é sagrada. Elas estão mexendo com a identidade
cultural de uma geração. E de uma geração é de um povo. Elas estão vendo duendes
que fazem parte do imaginário europeu, especificamente do imaginário da Grã-
Bretanha. Acontece que o imaginário de um povo é o que faz com que haja identidade
cultural. Eles estão sendo batedores de toda e qualquer colonização. Aí eu falei: porra,
eles estão querendo saber o que é magia? Eu vivi isso. Aí eu comecei a escrever livro,
por causa disso.”

A ação militante de terrorista expressa a preocupação da autora em tomar posições e


concretizar ações contra aquilo a que se opõe. É uma atitude comprometida com a mudança. A
colonização da qual fala é a importação de símbolos de culturas estrangeiras, símbolos que não
fazem sentido para a cultura brasileira. A aceitação passiva deste processo ou a participação nele
constituem a acusação da autora.
Ela critica também os wiccanos que não se comprometem com a realidade brasileira,
desprezando a cultura popular das rezadeiras, parteiras e benzedeiras. Em mensagens postadas a
uma lista de discussão, em setembro de 2000, a autora afirma que as benzedeiras são as
verdadeiras bruxas, embora sejam cristãs.

“Quanto às rezadeiras, as considero as verdadeiras bruxas.”

“(...) Mulheres de poder, mulheres que mesmo não tendo a oportunidade de freqüentar escolas e
conviver com a dita sociedade moderna, foram acusadas de serem MIXÓRDIA ( = lixo).”6
Há por parte da autora, uma necessidade de resgatar o que o Brasil propõe em termos mágicos,
não só a cultura européia das benzedeiras, mas os cultos afro-brasileiros e a cultura indígena.

“O Brasil tem uma religiosidade própria, que é a indígena. Mas isso foi misturado. Todos
nós somos filhos da Europa, então vamos ver como é que agente misturou isso. Agora, virar
celta, virar isso, aí é loucura. Aí é melhor trabalhar para CIA. (...) O Feitiço [da Lua] eu
termino com Yemanjá! A gente tem que ter divindades, é uma barafunda, e eu coloco muito
bem. A gente tem uma identidade mulata, a gente tem que assumir isso.”
_________________________________
6 – Os grifos são de Frazão.aqui.
117

“Gerald Gardner e Aleister Crowley? Não, não. Tivemos aqui o Raoni. Tem Mário
Terena. A gente tem um puta imaginário. A gente tem mulheres sagradas. Toda vez que
eu falo de parteiras, não é à toa. É tipo terrorismo mesmo. Pegar uma débil mental
que fica ‘bênçãos de Danu’, Danu é uma deusa da Irlanda, porra.”

Há nestas acusações o mesmo cuidado com o passado que há nos livros da autora em
relação à ancestralidade e à família. Se o passado familiar de uma mulher deve ser por ela
resgatado no seu processo de tornar-se bruxa, o passado cultural de um país deve também ser
mantido nas suas expressões culturais. Estas não devem ser invadidas de elementos externos, mas
mantidas como a memória de um povo. A sacralidade que atribui às expressões culturais
brasileiras é a mesma que atribui às suas antepassadas. São duas faces do mesmo processo.
Nos perguntamos então porque a idéia de hereditariedade da autora é tão bem aceita pelas
bruxas a ponto de ser comum encontrarmos no campo, entre nossas entrevistadas e na internet
pessoas que afirmem que alguma parenta é bruxa, e a preocupação com a cultura nacional não.
Na verdade, a hereditariedade fornece às bruxas um argumento para a legitimação de sua
condição. Já o compromisso com o folclore nacional anda na contramão dos perfis que pudemos
averiguar através de entrevistas. As bruxas têm perfis religiosos claramente definidas em termos
de ascensão social. Há um progressivo afastamento das religiões populares em direção ao
esoterismo da Nova Era, consumido especialmente pela classe média urbana. O consumo de
símbolos importados está de acordo com esse perfil, que busca uma associação com patamares
mais elevados da pirâmide social.
Sobre seus livros, Frazão admite que sua intenção é resgatar aqueles que teriam caído na
“farsa esotérica”.

“Eu escrevo para nego não entrar. (...) Então, já não entra mais no esperto que sai
por aí fazendo essas coisas.”

Para a autora, uma bruxa nunca deve ser confundida com um esotérico. Os esotéricos
representam o oposto da bruxa, e não são marginais. Seu sucesso no mercado indica que a autora
118

pode ter razão. Os esotéricos são um sucesso editorial, há inúmeras lojas que vendem produtos
destinados a este público, revistas, jornais de distribuição gratuita, terapias e todo tipo de curso.
As terapias destes grupos são criticadas pela autora como mais uma farsa. O total
descompromisso com o que ela considera efetivamente sagrado – o homem e a natureza – são os
pontos principais de sua acusação.

“Ele vai curar o teu rim com uma ametista. Como é que você vai entrar nessa?
Primeiro, que uma ametista, uma pedra, uma coisa sagrada da terra, que foi tirada
como? Com matança de índio, com garimpeiros mortos de fome, que pegam malária,
que estão com doenças venéreas. Como é que você pensa que essa pedra vai te curar,
porra? Essa pedra está puta!”

Criticados por ela de todas as formas, eles tornaram Frazão uma persona non grata em
seu meio, o que se reflete, em última instância, na dificuldade em encontrar suas obras à venda
em qualquer loja esotérica. Segundo a autora, eles se recusam terminantemente em vender seus
livros. É possível encontrarmos livros de outras autoras sobre bruxaria, mas nunca os de Frazão,
o que demonstra que não há uma recusa ao tema, mas à autora.
Para ela, os esotéricos estariam preocupados apenas com o seu sucesso financeiro e sua
auto-promoção, construindo a imagem de gurus e líderes espirituais, fomentando o mercado de
produtos esotéricos e um consumismo desenfreado. O esotérico é definido pela autora como uma
categoria oposta à de bruxa. No esoterismo, a magia é cheia de pompa e circunstância. Na
bruxaria, ela é simples e ligada à natureza. Ao escrever seu livro, ela diz, quis compartilhar seus
conhecimentos com um púbico mais amplo. A bruxa, portanto, compartilha conhecimentos. O
esotérico, por outro lado, ensina. Aquele que ensina torna-se um mestre e guru, posição que a
autora rechaça. A posição de superioridade daquele que ensina traz também a idéia de poder. Para
Frazão, as bruxas não desejam poder e não possuem poderes mágicos. O poder é associado por
ela à sociedade patriarcal na qual vivemos. Ou seja, o poder está vinculado às idéias
representadas na segunda coluna do quadro acima, e que são opostas à bruxaria. O poder é o
desequilíbrio dos opostos. A verdadeira bruxa é um ser equilibrado e, portanto, desinteressado em
poder. Ela não se deixou levar exclusivamente pelos atributos da razão, mas circula entre os dois
mundos formados pelas duas colunas do quadro anterior.
119

Ao associar a busca pelo sucesso financeiro com os esotéricos, e apartar essa preocupação
do mundo da bruxaria, Frazão começa a traçar críticas a todos aqueles que vivem dos dividendos
de sua atuação no mercado de serviços esotéricos. A venda de bonecos de duendes, gnomos,
anjos ou fadas é criticada. Para a autora, é o retrato do consumo moderno ao qual as bruxas não
são afeitas. Cursos e workshops são igualmente criticados. Embora seja procurada por pessoas
interessadas em que ministre cursos sobre bruxaria, relata a autora, ela não se propõe a tal.
Afirma que o caminho da bruxaria é o da mudança interna, impossível de ser ensinado.
Outra diferença que marca a bruxaria e o esoterismo é a preocupação que a primeira tem
com os processos históricos, ausente no esoterismo. O sujeito da Nova Era é um ser a-histórico.
A bruxaria estaria amparada, segundo a autora, em comprovações históricas da sua existência
desde eras pré-históricas (neolítico). Teria sido a primeira religião da humanidade, e não mais
uma seita. Notemos que o recurso à História e a definição como uma religião – embora hoje
prefira usar a palavra culto - denotam a procura pela legitimidade das práticas da bruxaria. Os
esotéricos, ao contrário, seriam seitas sem amparo histórico.
O mesmo teor de críticas que guarda para o mundo esotérico e da Nova Era, Frazão
guarda também para aquelas bruxas que, segundo sua visão, se comportam de maneira análoga
aos esotéricos, mais interessadas em dinheiro e poder do que na comunhão com a natureza e no
compromisso de transformação do mundo. O que mais caracteriza a bruxa, para Frazão, é um
senso de estar à margem, de ser um pouco desviante. Aqueles que insistem na profissão de bruxa
estão no lugar errado. Os cursos de bruxaria são criticados por ela.

“Eu acho que o que caracteriza a bruxa é estar à margem, sempre. Você não pode,
por exemplo, ser uma bruxa e estar dentro do sistema, bonitinho. Aí você não é uma
bruxa. O que caracteriza é acreditar naquilo que ninguém acredita. Estabelecer
relações com coisas que ninguém estabelece. Aí você é uma bruxa. Não é sabe, dar
cursos. Aí não, é você querer entrar para o sistema. A mulher que é bruxa é mais livre,
é mais dona do seu nariz. Não depende, não tem rabo preso, por isso está fora.”

O ingresso no “sistema”, como ela diz, o mercado e a ordem vigente, não só estabelecem
quem é e quem não é bruxa, como fazem com que uma bruxa não consiga atuar de fato. O
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comprometimento com essa ordem é oposta à bruxaria e impede que ela sobreviva. Para ser
bruxa, é necessário estar de fora, à margem.

Críticas à wicca no Brasil

Embora a bruxaria de Frazão esteja norteada pela preocupação com uma vinculação forte
com a natureza e folclore brasileiros, ela traz diferenças da bruxaria wicca correntemente
encontrada em nossa pesquisa de campo. A autora dedica grande parte de seu livro Revelações de
uma Bruxa descrevendo a wicca, seus rituais e instrumentos mágicos, no entanto, é comum que
se furte a definir sua prática entre bruxaria tradicional, normalmente chamada pelo inglês
witchcraft, e wicca, preferindo sempre o termo ambíguo de praticante da Arte.
Independente de qual seja a prática da autora, a bruxaria descrita em seus livros contém os
mesmos elementos da wicca: um par de divindades masculina e feminina, instrumentos mágicos,
feitiços, contato com a natureza, rituais solares (sabás) e lunares (esbás), ênfase no feminino. A
principal diferença parece residir no uso do círculo mágico enquanto local de culto e na
constituição de covens. O círculo é rechaçado pela autora como parte de práticas de magia
cerimonial, vinculadas ao esoterismo. Em nenhum de seus livros há explicações de como traçar o
círculo e fazer uso dele.
Enquanto os praticantes de wicca descrevem o coven como um grupo mágico, na maior
parte das vezes fixo, com algum tipo de liderança constituída e formado para a execução de
rituais por membros wiccanos, Frazão descreve outras associações como sendo covens. Os
almoços promovidos por sua avó Vitalina, por exemplo, constituíam, na visão da autora,
verdadeiros covens, pois ali a comemoração tinha ares de ato mágico, especialmente quando o
vinho era passado de taça em taça, e nestas ocasiões a avó realizava seus feitiços. Quando se
reúne com amigas de São Paulo ou de Friburgo para jogar tarot, conversar, trocar informação,
fazer planos, plantar sonhos, essas reuniões são também descritas como covens.

“Outro dia a J. veio para cá e nós passamos o dia inteirinho num coven, sabe? A gente
leu tarot uma para outra, a gente falou mal dos outros, a gente desejou a morte de
uma porrada de gente, a gente construiu montes de sonhos, coisas que a gente quer.
Eu quero comprar uma casa. A gente fez de uma forma lúdica. Isso é um coven, e foi
121

isso que eu vi com a minha avó. Era isso, não essa palhaçada ‘estamos aqui, abro o
círculo’, isso é loucura.”

A autora guarda muitas críticas ao esquema wiccano de culto, que não se restringem
somente à composição do coven. Ela desvincula a prática da bruxaria ou Arte daquela levada à
cabo pelos esotéricos, e que se manifestaria através das práticas ocultistas do século XIX. Essas
práticas seriam avessas ao paganismo, pois estariam longe do contato com a natureza.

“Todas essas manifestações que nego está dizendo aí, dizendo que é bruxaria,
feitiçaria, são manifestações, estão todas impregnadas do ocultismo do século XIX.
Não tem nada de pagão, nada! Tem Cabala atrás, tem Maçonaria, tem Rosa Cruz.”

A evocação da Maçonaria e da Rosa Cruz dá a medida do repúdio da autora. Estas são as


ordens ocultistas mais famosas do país. Lembremos que é fato corrente o pertencimento de D.
Pedro I à Maçonaria. Embora lidando com conhecimento esotérico, os adeptos destas instituições
não são necessariamente pagãos. A Cabala, por outro lado, é um conhecimento de origem
judaica.
Frazão critica, ainda, a forma como os rituais wiccanos estão dispostos no calendário,
questionando a validade de se celebrar os sabás. Estes estariam hoje desvinculados de sua função
original.

“Na verdade, um coven de bruxas é um círculo. Um círculo como é feito entre os


povos primitivos: uma festa, uma dança, uma manifestação lúdica. Por exemplo, os
grandes sabás, que hoje transformaram na palhaçada que a gente tem, eram festas
ligadas à colheita e ao plantio. Nego feliz porque tinha plantado. Nego feliz porque
tinha colhido. Bebendo para cacete. Isso que o povo está fazendo é esquizofrenia
social.”

Esquizofrenia social é a acusação usada pela autora para aqueles que pensam viver num
espaço-tempo distinto do real. O sabá verdadeiro é aquele celebrado segundo o ano agrícola. Não
se resume a uma comemoração religiosa. É uma festa agrícola com sentido social, não um ritual
122

fora do mundo. Estas acusações que a autora formula nos remetem ao conceito de desencaixe, no
sentido que Giddens (1991) dá ao termo. Neste sentido, várias práticas dos wiccanos são
questionadas por Frazão pois estariam fora do espaço-tempo. Não apenas a celebração do sabá,
mas também o uso de espelhos mágicos como se fossem uma tradição pagã européia ancestral é
refutado, exatamente como o uso dos banhos de ervas para purificação.

“O que transformaram, aí é outro departamento. Porque isso aí é patético. Imagina se


na Idade Média, se as mulheres se vestiriam com aquele aparato todo, sabe, teriam
todas espelho! (...) Banhos de purificação! Cara, o banho é uma invenção moderna.
(...) Claro que eu coloco, tanto que eu morro de rir quando nego chega para mim e
diz: ‘eu fiz aqueles rituais todos do seu livro’. Eu penso: está louca! As pessoas não
identificam o que é ficção e o que é realidade. Eu sou uma pessoa que gosta de
escrever. Eu começo A Panela de Afrodite dizendo de um encontro que eu tive, mas
aquilo é i-ma-gi-ná-rio. Aquilo é ficção.”

“Um grupo de mulheres malucas, com um outro maluco no meio, vestido todo mundo
de preto, capuz, para mim teria que estar num hospício.”

Embora a autora fale freqüentemente em suas obras sobre as sutis nuanças entre o uso da
magia e a loucura, ela refuta a possibilidade de que uma bruxa venha a ser uma pessoa louca ou
aja como tal. A loucura passa a servir, então, como categoria de acusação usada pela própria
autora. Os que acreditam na sua prosa de ficção sem diferencia-la dos ensinamentos mágicos são
acusados pela autora. E são exatamente eles que expressam quão fina é a linha que separa a
magia da loucura. O sujeito perdido no espaço-tempo é tão louco quanto o leitor incauto.
Nesse sentido, as falsas bruxas são definidas por Frazão como mulheres problemáticas.
Ao mesmo tempo, sua atuação beira o mundo esotérico que ela critica, tanto na atuação como
videntes quanto na manutenção de segredos ocultos. A alusão à voz monocórdica é uma
referência à falta de sentimento e amor à vida que a autora enxerga nessas pessoas.

“Geralmente elas [as falsas bruxas] falam de uma forma monocórdica. Falam muito
do que elas podem fazer. Falam de um segredo alucinado, que inventaram um segredo
123

que eu não sei que segredo é esse. Elas todas sempre estão envolvidas em alguma
coisa tipo atendimento, tarot, sabe? E a coisa pior: são pessoas, mulheres
extremamente problemáticas, que não são realizadas sexualmente, afetivamente,
fisicamente. São muito parecidas com as beatas, aquelas beatas tradicionais. São
fanáticas.”

Frustradas em todos os níveis de sua vida, as falsas bruxas buscam uma aparência de bruxa,
de mulher realizada. Elas buscam, na verdade, ser em aparência aquilo que não são na realidade.
O grande segredo que inventaram e ao qual não dão acesso é o de bem-viver. Imaginamos que
para pessoas frustradas, esse é o grande segredo da vida. É por isso que este segredo é inacessível
e Frazão o desconhece: como tudo o mais sobre as falsas bruxas, ele também é uma aparência. É
assim que se tornam semelhantes às beatas. Estas procuram a aparência de santidade. As falsas
bruxas são fanáticas, como aquelas, por defenderem ferrenhamente algo que não passa de uma
aparência para a verdadeira bruxa, mas que para elas é bem real. Seu fanatismo esconde o medo
da perda daquele segredo, que deve ser defendido e mais parece uma fórmula mágica do que um
mistério.
O fato de não serem realizadas é o que traz para essas mulheres a idéia do poder.
Infelizes, elas buscariam na fantasia de ser bruxa uma nova identidade de mulher poderosa e
bem-sucedida, capaz de lidar com os obstáculos do dia-a-dia. Mas os obstáculos que Frazão
apresenta a elas são interiores ao sujeito. Sem a transformação desse sujeito interno, não é
possível tornar-se uma verdadeira bruxa. Isso se expressa na intolerância que demonstram: são
fanáticas. Defendem a bruxaria como uma religião, como as beatas fazem. De novo vemos como
Frazão operou o corte entre paganismo e religião. As falsas bruxas operam no nível da religião,
absorvendo os vícios das religiões institucionalizadas através do paralelo com as beatas.
Fanáticas, reprimidas, infelizes, essas mulheres não podem ser bruxas, pois não têm “tesão na
vida” nem “brilho no olhar”. Precisam, antes de mais nada, de uma boa faxina interna.
A busca pelo exercício de poder sobre outros é vista também pela autora na fundação de
associações de praticantes de wicca que cobram mensalidades de seus membros. A atitude é mal
vista pela autora, que enxerga no dinheiro uma outra faceta da profissão de bruxa, como os cursos
e qualquer outro serviço cobrado por uma bruxa, inclusive o de leitura de oráculo.
124

“Isso é loucura, isso é para enriquecer alguém! Por exemplo, essa ABRA-WICCA cobra
dez paus por mês. Quantos sócios têm? Vamos dizer que tenha uns quatrocentos
sócios. Por mês, quanto alguém está ganhando? Se eu tiver que entrar para uma
instituição, vai ser uma instituição que utilize o dinheiro para, sabe, para bibliotecas,
para pagar intelectual, sabe? Eu fico muito puta quando eu vejo um cara, um débil
mental, ganhando quatro mil por mês, que é o que deve estar tirando, para dar umas
apostilas que são copiadas de outros lugares. Porque o tipo de informação que eles
têm é informação de internet.”

A acusação de “ter informação de internet” é, claramente, uma acusação de não ser uma
bruxa de verdade. Isso apenas se reflete na idéia de espoliar financeiramente outras pessoas e
fundar uma associação que visa, tão somente, o lucro em proveito próprio. Esse tipo de
posicionamento da autora é público, e já foi veiculado na própria internet, através de uma das
listas de discussão da qual ela fez parte, no período em que realizávamos trabalho de campo.
Numa mensagem de junho de 2000, ela deixa bem clara sua posição:

“(...) Sempre fui contra a criação de uma entidade ‘institucional’, isso desde que o
falecido R. inventou de criar uma ‘Igreja Wicca’. Sou fortemente contra todo e
qualquer tipo de institucionalização, como também sou contra a vulgarização do
paganismo. (...) No entanto, me parece que a instituição que foi formada com a
intenção de proteger a wicca, não se preocupa muito com a utilização que a mídia irá
fazer dela. (...) Tenho o máximo cuidado em não expor bizarramente a Arte. (...)
Também serei contra o caráter fake que alguns estão dando à Arte (como as fotos de
um coven que me mostraram recentemente, com adolescentes vestidos de franciscanos,
e empunhando punhais recém comprados das mãos do sacerdote do coven (...)).”

Esse tipo de posição, sem dúvida, faz de Frazão alvo de muitas críticas, até porque suas
opiniões atingem diretamente membros importantes das listas de discussão mais concorridas da
internet atualmente. Veremos o universo virtual da wicca em outro capítulo.
125

Uma das acusações mais constantes, tanto nas listas quanto por parte de Frazão, é a
acusação de busca pelo poder. Poder seria o exercício de influência direta sobre outras pessoas.
Em alguns momentos, toma a forma de uma espécie de manipulação. Em outros, significa
ambição, tanto por status dentro do grupo quanto por oportunidades financeiras. A necessidade
de estar em evidência nos meios de comunicação pode, também, servir como acusação de busca
de poder, visto que a mídia é uma das maneiras que as bruxas têm de legitimar suas atuações
como bruxas. Através da mídia elas ganham espaço e são procuradas por pessoas ainda iniciantes
na bruxaria. É sobre estas pessoas que elas passam a exercer uma influência forte e duradoura, se
tornando lideranças. O passo seguinte, neste caso, costuma ser escrever um livro. De qualquer
forma, é interessante notar que poder é uma categoria que implica uma disputa de espaço num
grupo real dado, jamais uma disputa de dons mágicos e sobrenaturais.
Para Frazão, contudo, o caminho foi inverso. De escritora ela passou a figura pública, e
apenas depois de alguns livros lançados começou a freqüentar o mundo da internet. Em junho e
setembro de 2000, respectivamente, em diferentes listas, fica clara a acusação de busca pelo
poder que a autora faz. Na primeira mensagem abaixo, a autora aproveita para criticar os cursos
de bruxaria e um outro fenômeno passível de ser observado entre as bruxas, tanto nossas
entrevistadas quanto aquelas que freqüentam as listas de discussão: a idéia de que há uma outra
bruxa na família, normalmente a avó. A hereditariedade é uma forma de legitimação num
universo como o da bruxaria e da magia.

“Depois que Gardner escreveu o primeiro livro que afirmava categoricamente a


existência de um culto antiqüíssimo, sobrevivente em algumas famílias, a coisa se
espalhou e ficou praticamente fora de controle. Um frenesi de ‘quero ser bruxa’,
‘quero aprender a ser bruxa’ se espalhou, dando origem a uma infinidade de ‘métodos
práticos de feitiçaria’, ‘seja bruxa em um ano e um dia’, ‘curso de bruxas por
correspondência’. O frenesi chegou a tal ponto que, hoje, no cenário global da
feitiçaria, são muito poucos aqueles que conseguiram resistir às tentações do poder e
do dinheiro fácil. Enquanto as pessoas estiverem utilizando a Arte como meio de
comprovação de poder, haverá essa multidão de fórmulas que só servem para denegrir
uma coisa tão imensa e bonita como é a Arte. Enquanto o poder careta estiver
misturado com a Arte, ela será vista de maneira jocosa, de maneira vil, como os
126

panfletinhos e apostilas de cursinhos tão bem a colocam, de maneira institucional,


igualzinho as outras religiões que têm um sem número de associados, e... deixará de
ser Arte! É hora de trocarmos experiências sem mestres, sem padrinhos, sem nenhuma
hierarquia.”

“Estou deixando esta lista por saber que NUNCA irei me calar quando ouvir disparates
e pressentir ‘busca pelo poder’.”7

No universo que experimentamos no campo, as acusações de busca de poder são


freqüentes. Qualquer exposição da bruxa que deliberadamente a torne uma liderança será vista
como busca de poder. O poder que está sendo buscado é o poder sobre o grupo que pratica a
bruxaria wicca no país. O que está em jogo é tanto um domínio intelectual e moral sobre as
posições que as bruxas brasileiras ocupam quanto o domínio financeiro de um mercado rentável e
em crescimento. Quanto maior o número de seguidores, mais bem cotada a liderança. As listas de
internet se tornaram um lugar privilegiado para a disputa desta liderança, pois atingem todo o
país e são abertas a qualquer pessoa que queira se inscrever, não apenas aos wiccanos. Deste
modo, as opiniões construídas nelas espelham-se por uma rede e podem vir a tornar-se posições
majoritárias entre as bruxas brasileiras. É um espaço cujo domínio é estratégico.

REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE DE BRUXA

Três pontos distintos devem ser levantados: quem é a bruxa, qual a lógica em que a
bruxaria opera, e se existe uma bruxaria brasileira. Em primeiro lugar, vejamos a bruxa segunda
Frazão.
Seguindo a linha apresentada por antropólogos como Mauss (1974), Frazão apresenta a
bruxa como ser marginal e desviante, mas de um desvio um pouco diferente daquele apresentado
por este autor. Como Douglas (1976), Mauss enxerga uma necessidade de que o operador de
magia seja um desviante. Esse caráter de desvio mantém sua aura de mistério e misticismo,
______________________________________
7 – O grifo é de Frazão.
127

contribuindo para a idéia de que possui poderes mágicos. Ao mesmo tempo, o desviante pode ser
tido como mágico, num movimento duplo. Esta dinâmica não se apresenta nestes exatos moldes
em Frazão. A bruxa não deve buscar a marginalidade com o intuito de apresentar poderes
mágicos frente à sociedade. Não, é de sua condição marginal, dada no âmbito de sua socialização,
que ela consegue romper com uma determinada ordem, e acessar o universo mágico. Não
queremos simplificar, com isto, o pensamento de Mauss ou Douglas. Queremos apenas indicar
que, em Frazão, a marginalidade é uma conseqüência de ser bruxa. Apesar de a autora tratar esta
condição marginal como fundamental à bruxa, ela não é a sua causa. Como diria o próprio
Mauss, o sujeito marginal está numa situação privilegiada para ser considerado mágico, mas
apenas alguns sujeitos o serão, pois nem todo ser marginal é considerado operador de magia.
A questão da marginalidade nos leva ao nosso segundo ponto. É no rompimento com a
ordem instituída atual que a bruxa de hoje se forma. Queremos dizer que as considerações sobre a
marginalidade da bruxa apresentadas aqui são válidas para este caso particular, não constituindo
uma generalização que se contraponha às teorias de Mauss e Douglas, pelo contrário. No nosso
caso, e seguimos na análise do pensamento de Frazão, a bruxa surge quando rompe com uma
ordem racional associada à modernidade ocidental. É na posição de marginal a esse padrão que a
mulher de hoje consegue acessar a identidade de bruxa, segundo Frazão. A autora elabora uma
série complexa de referências, de modo a compor um quadro de oposições, onde a magia foi
excluída do mundo pela racionalidade moderna. Para resgatar a magia, a bruxa tem de romper,
por sua vez, com essa ordem moderna racional. Observemos que a magia não é o irracional, ela é
uma lógica simbólica que pode operar em conjunto com formas racionais de explicação do
mundo, conforme Douglas (1976) e Evans-Pritchard (1976) apontam. No relato deste autor, o
cupim rói a madeira, e o Zande sabe que é por isto que o teto desaba. Isto é uma explicação
racional. Mas para explicar o por que de o teto ter desabado sobre determinada pessoa, ele acessa
a magia como solução.
Queremos com isto ressaltar que é no pensamento de Frazão que a magia e a razão foram
colocadas em oposição, num mecanismo capaz de prover uma nova lógica para aquele que quer
acessar a magia. Desta forma, a intenção da autora é fornecer uma ferramenta para que a mulher
possa romper com a ordem dominante e tornar-se bruxa. Ela rompe com aquilo que não lhe
128

permite acessar a magia. Por isto qualquer atributo não racional é associado, pela autora, ao pólo
da magia: a loucura, o sonho, a intuição, o sentimento, a sensação, o corpo, o sexo, a infância, o
lúdico, a natureza.
Rompendo com a ordem racional que impede ou rechaça o acesso à magia, a bruxa
também rompe com os papéis sexuais delegados por esta ordem, onde a dominação masculina é
regra. A bruxa de Frazão é, assim, uma mulher livre, forte e independente, e não a submissa
esposa e rainha do lar. Ela não deixa de ser doce e amável, pois estes são ainda predicados
femininos, mas não é mais um ser passivo. Segundo Goldenberg (1992), o padrão para o
feminino na sociedade brasileira é estabelecido através de sua relação com o masculino,
especialmente em termos de família. A identidade feminina é, desta forma, a de esposa, mãe ou
filha. Nestes três casos, o padrão apresentado por nossa sociedade é a de uma mulher romântica,
maternal e acolhedora. A bruxa se alinha melhor ao padrão da “mulher forte”, descrito por
Goldenberg (1992) como a mulher que decide, arrisca e escolhe, que tem personalidade e
temperamento forte; que transgride as regras sociais; militante social e política consciente;
independente, livre, corajosa, auto-suficiente; que não é submissa; bem sucedida
profissionalmente e que enfrenta sozinha as dificuldades. De fato, grande parte destes atributos
são masculinos, se nosso padrão de feminino se referir à esposa submissa e rainha do lar. Como
dona-de-casa, ela não tem chances de ser profissionalmente bem sucedida: a profissão é esfera da
rua, esfera masculina, enquanto a casa é o lugar do feminino (DAMATTA, 1991). Do mesmo
modo, a escolha e a decisão, a independência, a coragem, a política e a auto-suficiência são
atributos que definem o masculino na sociedade brasileira, onde ele deve buscar sempre a
negação da dependência (GOLDENBERG, 1992). Observamos que o próprio perfil de Frazão indica
um padrão mais próximo ao da “mulher forte”, assim como veremos para as bruxas entrevistadas:
militante política consciente, profissional bem sucedida, transgressora de regras sociais,
independente, ela não se nega ao papel de mãe e dona-de-casa. A bruxa se apresenta, desta forma,
como uma categoria que traz atributos da “mulher forte” combinados com papéis tradicionais de
mãe, esposa e dona-de-casa.
Quanto à questão da sexualidade, presente em toda a obra de Frazão, a bruxa é
apresentada como livre também nesse âmbito, num movimento que simboliza o rompimento com
os padrões da dominação masculina que, salvo exceções, encarcerou mulheres, domando sua
sexualidade e direcionando-a para um único homem, o marido. Nessa configuração, a esposa fiel
129

e casta, a mulher honrada, a “santa” se contrapõe à mulher da rua, de sexualidade desregulada, a


“puta” (GOLDENBERG, 1995). Maluf (1993) apresenta a bruxa do folclore catarinense como um
equivalente à esfera da “puta”, pois é mulher da rua, que circula pelos espaços masculinos da rua
e dos barcos de pesca. A bruxa de Frazão, em nosso entender, constitui esta mesma identidade.
Não é por acaso que a autora faz recurso constante às Bacantes, cuja desregulação era extrema. A
acusação de “puta” é forte em nossa sociedade, e recai sobre as mulheres que não mantém o
padrão exigido. A bruxa de Frazão, de fato, rompe com todos esses padrões. Consistiria numa
sexualidade que não é reprimida com a da “santa”, tornando-se mais liberta de padrões, como a
da “puta”.
Neste sentido, as acusações corriqueiras à figura folclórica da bruxa como mulher má,
“puta”, histérica/louca são a medida do repúdio à desregulação do papel feminino em sociedades
de dominação masculina. Rompendo com a ordem estritamente racional e acessando a magia ela
é acusada de ser louca. Rompendo com os padrões de sexualidade, ela se alinha com a “puta”.
Deste modo, ela se torna mulher má, pois o malefício provém também de situações marginais
(DOUGLAS, 1976).
A partir dos padrões acima, entendemos porque a autora faz recurso constante à família.
Na sociedade brasileira, o lugar que define a identidade feminina é a família. Para romper com o
padrão dado, Frazão não sai do âmbito da família: ela recorre à sua própria família, que
apresentava uma estrutura distinta à da sociedade mais ampla no que tange aos padrões
femininos. Não obstante ser marginal e desviante, a bruxa ainda mantém os laços primários de
família: ela não é o ser totalmente desregulado que a “puta” e a bruxa folclórica representam. Ela
é ainda uma mulher inserida na família, disposta a viver os papéis de esposa e mãe, mas definidos
em outras bases. No caso de Frazão, a família inverte o padrão costumeiro da dominação
masculina, e apresenta mulheres fortes em companhia de homens fracos, segundo palavras da
própria autora. A idéia da família e das relações de gênero como totalidades englobantes se
mantém. Homens e mulheres não se tornam indivíduos iguais, eles ainda são intrinsecamente
diferentes em relações definidas com base na complementaridade.

O terceiro ponto que queremos discutir é o da possibilidade de uma bruxaria brasileira.


Frazão tem uma preocupação constante em não apartar a cultura popular brasileira do universo da
bruxaria. É neste sentido que ela incorpora o Ano Novo como festa de Yemanjá, fazendo recurso
130

às tradições africanas no Brasil. Não esquece, tampouco, o legado indígena, presente quando
afirma que parte de sua família descende de uma tribo brasileira. A influência da Europa, já
mesclada ao universo nativo, vem na forma de sua defesa das rezadeiras e benzedeiras. Em Maluf
(1993), esta figura é aquela que combate o malefício causado pela bruxa, especialmente a doença
em crianças. Para Frazão, a benzedeira é a genuína bruxa brasileira, conquanto seu arsenal de
orações faça uso do imaginário cristão. A benzedeira, mulher humilde do povo que cura de graça
com preces e ervas que só ela conhece, também transcende a importância do feminino na
sociedade patriarcal. Toma o lugar do médico cientifizado onde este recurso não está de todo
disponível, ou onde ele ainda não foi bem assimilado. Como legítima representante desta ordem
que Frazão defende, que se remete à tradição da qual as benzedeiras fazem parte, ela se torna a
bruxa brasileira. Não é mais bruxa do que qualquer mulher, mas não deve ser desconsiderada
apenas por seu recurso ao imaginário cristão. A bruxa aparece, na figura da benzedeira, como
uma mulher cujo conhecimento foi legado numa linha feminina, mulher do povo, humilde, sem
pretensões além da arte de curar.
O cuidado com a cultura brasileira encerra a idéia de que a bruxaria não é apenas ligada à
terra, no sentido do elemento, do solo. Ela deve estar também ligada ao país, a um determinado
legado cultural, a uma sociedade historicamente constituída. É uma preocupação que Frazão não
vê em algumas bruxas wiccanas e especialmente nos esotéricos. Por isto os acusa de serem
“colonizados”, de buscarem em tradições estrangeiras algo que existe e é acessível na própria
cultura de seu país. De fato, observamos entre as bruxas brasileiras um constante recurso ao que
constitui cultura estrangeira. O universo indígena se apresenta sobre as formas nativas norte-
americanas, inclusive na obra da própria Frazão. Mesmo quando a cultura africana é acessada,
costuma o ser através de tradições caribenhas, não brasileiras. Esse é também um resgate de
Frazão: tirar a magia africana dos aposentos da criadagem e traze-la para as bruxas de classe
média que consomem seus livros. A terra é sacralizada não apenas como elemento, mas também
como fonte de referências culturais. Frazão acredita que a memória de um povo e suas
manifestações culturais são sagradas e devem ser valorizadas.
Em termos de wicca, isto se reflete na preocupação com o calendário, a Roda do Ano, e as
ervas usadas pela bruxa no Brasil. Os rituais sazonais devem seguir as estações do hemisfério sul,
onde se encontra o país. Os mitos nativos podem e devem ser acoplados àqueles importados. A
natureza brasileira deve ser preservada, bem como as populações que mantém com ela estreitos
131

laços. As ervas que a bruxa daqui usa devem ser as ervas que crescem em solo nacional, muitas
vezes boas substitutas de ervas européias, como a autora indica. O herbolário nacional é o que de
mais genuíno uma bruxa brasileira pode buscar, pois a alinha com as forças da terra onde ela
reside. Os usos populares mágicos destas ervas alinham-na com a memória do povo, sujeito agora
sagrado.
É nesta repaginação da bruxaria para terras brasileiras que a autora sofre críticas, pois
estaria formulando uma bruxaria que não consta nos manuais de autores estrangeiros. De fato,
como poderiam eles elaborar um sistema próprio a uma realidade que não é a deles? É isto que
Frazão se propõe, entre outras coisas, fazer: uma revisão da bruxaria européia de modo a que ela
possa servir, também, para resgatar crenças e costumes nacionais pouco valorizados, e que se
alinham tão bem com suas concepções de magia e quebra da racionalidade moderna e da ordem
vigente que ela apresenta.
Percebemos, enfim, que as próprias concepções que a autora apresenta sobre o que seja
brasileiro seguem a idéia de uma cultura formada pela junção de três populações diferentes, seus
imaginários e costumes: o europeu, na pele do português; o africano; o indígena. As formas em
que a magia se apresenta entre estes três interlocutores podem ser associadas pela bruxa moderna,
sem perigo.
132

CAPÍTULO 3

PARA COMPREENDER A WICCA NO BRASIL

Até conseguirmos ingressar no campo, nossa visão da wicca era dada pelos livros que
tínhamos encontrado. Eram livros dispostos nas prateleiras de grandes livrarias, no setor de
ocultismo e auto-ajuda. Estas obras haviam, em primeiro lugar, chamado nossa atenção para a
questão da bruxaria moderna, ou wicca. Traziam um forte apelo de gênero, um culto
aparentemente voltado ao feminino, definiam seus praticantes como bruxas e afirmavam ser a
bruxaria uma religião. Como contrastar o que estes manuais traziam com a realidade
experimentada pelas bruxas? Seriam elas, de fato, iguais às bruxas apresentadas nos livros de
wicca? E a wicca no Brasil, com toda a especificidade de sua sociedade, seria ela a mesma
bruxaria praticada nos Estados Unidos e na Europa, de onde provém a maioria dos autores sobre
wicca? Apenas o trabalho de campo poderia fornecer material comparativo para isto. Ao mesmo
tempo, já nos perguntávamos como seriam as bruxas de carne e osso, em que difeririam das
outras mulheres, em que se assemelhariam.
Nosso ingresso no campo foi realizado em janeiro de 1999, e se estendeu até dezembro de
2000. Foi através de um programa de televisão que pudemos alcançar bruxas do Rio de Janeiro
que nos abriram as portas para que conhecêssemos outras bruxas. Formou-se um circuito de
indicações e deste modo pudemos realizar oito entrevistas com bruxas e um bruxo cariocas. A
partir delas, montamos perfis que nos ajudaram a entender as bruxas de carne de osso. Até então,
havia apenas a idéia passada pelos manuais escritos por autores estrangeiros. Houve a
oportunidade de contrastar o pensamento e os perfis apresentados por estes autores com a
realidade da wicca no país. Foi assim que percebemos que a wicca se inseria no âmbito mais
amplo da Nova Era, e seus praticantes não diferiam muito, em termos de perfil sócio-econômico,
dos new agers.
Pudemos traçar, também, os perfis religiosos das bruxas brasileiras, e deste modo
entendemos quais religiões faziam sentir mais fortemente sua influência sobre elas. Havia,
claramente, entre as bruxas pesquisadas, um sentido de busca religiosa. Essa busca formava
perfis muitas vezes correlatos. São pessoas que vinham de um universo católico ou espírita – um
133

universo cristão - e se dirigiam para práticas de Nova Era, freqüentemente passando pelo
espiritismo, tanto a umbanda quanto o kardecismo. O espiritismo se tornou um elemento chave
na compreensão da categoria magia para o Brasil. Esta discussão será vista mais adiante.
A sociedade brasileira é uma na qual a magia convive com a ciência e a religião no
imaginário popular, no folclore, na cultura do povo. Como as concepções de moderna magia
européia, a wicca, estariam sendo tratadas aqui pelas bruxas brasileiras? Nossas tradições
mágicas mais fortes são a africana e a das benzedeiras de tradição portuguesa ou indígena. Como
estas duas correntes se relacionariam com esse novo universo de práticas mágicas? Será que se
relacionariam?

O trabalho de campo realizado não se limitou às entrevistas. Algumas entrevistadas


tinham relatado que haviam chegado a wicca através da internet. Isto se tornou um dado
relevante para a pesquisa de campo. Conforme o campo ia se revelando, novas questões iam
surgindo e novos caminhos foram buscados. A internet, como veremos, se mostrou um veículo
privilegiado na comunicação das bruxas brasileiras, um veículo formador de opiniões,
legitimador de determinada posição no grupo da wicca no Brasil, um espaço de disputa neste
grupo. Como acompanhar as manifestações das bruxas na internet?
A princípio, foi Vanessa quem nos levou a duas reuniões de bruxas internautas no Rio de
Janeiro. Ambas foram realizadas em um bar no Leme. O perfil dos presentes a estes encontros
revelava uma visível predominância de jovens, tanto homens quanto mulheres. Nem todos,
entretanto, eram praticantes de wicca. Havia praticantes de diversas correntes de magia:
thelemitas, satanistas, magistas do caos, bruxas sem denominação. Mas há algo em comum entre
eles: todos são praticantes de correntes mágicas ligadas a uma tradição esotérica ocidental.
Queremos com isso dizer que não havia praticantes de magia afro-brasileira, por exemplo,
embora um determinado casal dissesse praticar o vodu haitiano. Embora seja uma prática de
origem africana, ela não é uma prática brasileira. Este dado, a princípio pouco importante, se
mostrou revelador.
Freqüentar as reuniões das bruxas internautas não era suficiente para delinearmos um
perfil, nem nos ajudaria a compreender as discussões que aconteciam pela rede. Decidimos,
então, ingressar como membros em três diferentes listas de discussão da internet, e assim
pudemos acompanhar melhor o desenvolvimento do grupo por este veículo. Percebemos aos
134

poucos que toda forma de magia buscada pelas bruxas internautas, ou outros praticantes de
magia, foge, frequentemente, ao universo da magia praticada no Brasil, seja ela de origem
africana, européia ou indígena. Esta observação se tornou um fato incontestável quando
percebemos que este era um dos motivos de desavença entre as bruxas brasileiras. Para algumas,
há uma necessidade de um resgate de nossa cultura popular e folclórica, seja de que origem for.
Para outras, o recurso é sempre à cultura e ao folclore estrangeiro, seja ele de que país for.
A internet se transformou, desta maneira, em um complemento indissociável do grupo
concreto. Estas reuniões no Leme só existiam porque as bruxas haviam se conhecido na internet.
O encontro anual das bruxas wiccanas, promovido em Brasília desde 1999, só existe porque
algumas bruxas se conheceram pela internet. A disputa pela liderança entre as bruxas no país se
dá, prioritariamente, através da internet. É através da rede virtual que novas lideranças
apareceram e se firmaram como lideranças nacionais. Ao realizarmos um perfil das bruxas
internautas, verificamos que este estava de acordo com o observado entre as bruxas entrevistadas.
Deste modo, eles se completam.
Por outro lado, os perfis mostravam apenas experiências individuais em relação à bruxaria
wicca. Sentimos, então, a necessidade de acompanhar o perfil de um grupo de prática. Foi através
de Vanessa que chegamos a bruxos que haviam tido um coven, já então extinto. A estória da
formação e do fim deste coven será descrita posteriormente. Poderemos entender o que o grupo
de prática, o coven, significa para uma bruxa, e como ele trabalha. O coven não só é parte da
religião wiccana como é uma aspiração freqüente das bruxas. É comum observar em novatos o
interesse extremo que demonstram em ingressar em um coven. Percebemos, através da
reconstrução da estória de um determinado grupo, que o coven não é uma aspiração apenas dos
novatos, mas pode ser também um sonho de bruxas solitárias. Ao mesmo tempo, as concepções
de coven que as bruxas carregam são fundamentais para entendermos o por que desta aspiração.
Este capítulo conta uma estória de bruxas wiccanas brasileiras, e ao mesmo tempo
delimita o público da bruxaria no país. As acusações, tão caras ao estudo antropológico da
bruxaria, estão presentes em todos os três. Estas não se reportam, como é costume na tradição
antropológica, a acusações de malefício. Conquanto tomem várias formas em diversas situações
dadas, elas giram em torno da mesma questão: quem é a bruxa verdadeira? Há, não obstante, as
acusações externas ao grupo, essas sim tratando do malefício. Mas a acusações que as bruxas
135

trocam entre si não se baseiam neste ponto. Saber quem é a bruxa verdadeira, acusar a falsa
bruxa, nisto se resumem as acusações internas do grupo.
Estão presentes, igualmente, as disputas por liderança, comuns a qualquer realidade. Há,
por um lado, a disputa retratada no âmbito do coven estudado e, por outro, a disputa travada a
nível nacional entre diferentes correntes de pensamento, que encerram distintas concepções de
bruxaria. Estas concepções apresentam, para o observador atento, o pensamento das bruxas, e
ajudam a esclarecer o que efetivamente está em jogo. Muitas vezes, é no conflito que as
estruturas aparecem mais claramente. É interessante ressaltar que as estratégias para a disputa, em
ambos os casos, são análogas. O grupo é delimitado e quem está fora dele não tem direito a
buscar sua liderança: é desta forma que os conflitos foram solucionados por aqueles em disputa
no que tange aos casos estudados. Deste modo, este capítulo traz também a dinâmica das bruxas
como grupo: no coven, como grupo de prática; na internet, como comunidade.
Embora pareça que o trabalho de campo realizado se tornou amplo demais, optamos
conscientemente por não nos focarmos apenas em um dos processos acima, ou em apenas um
processo de pesquisa. Se as bruxas brasileiras formam algo que possa ser chamado de
comunidade, era imprescindível que a sua interação na rede virtual, a internet, fosse
acompanhada. Mas como espaço de interações mediadas, era necessário também sair da internet
e ver as bruxas face-a-face. Os perfis das bruxas internautas e das entrevistadas é muito
semelhante, e formam um perfil mais abrangente e completo dos praticantes de wicca no país.
Por outro lado, como grande parte desta prática se dá no coven, era necessário tomar um grupo de
prática para que compreendêssemos a totalidade destas interações. O coven estudado não
representa, está claro, o padrão de todos os covens de bruxas. Surpreendeu-nos, contudo, que os
processos vividos por seus membros sejam análogos aos processos que observamos na internet.
O leitor perceberá que, partindo de um sujeito tradicional como a bruxa, chegamos na
mais ampla modernidade: a internet. O caminho não era inevitável, mas foi nossa opção uma vez
que entendemos que a wicca, como a Nova Era, é uma reação à modernidade tardia com recurso
ao tradicional. São identidades que estão em jogo, e embora nos parecesse, à princípio, que
seriam apenas identidades de gênero, isto se apresentou de outra forma no campo. A bruxa não é
apenas uma categoria que determina uma identidade feminina específica, alinhada fora dos
padrões de “puta” ou “santa”. A categoria bruxa envolve questões marcadamente de gênero, mas
num espectro mais amplo de concepções de mundo. Ao mesmo tempo, ser bruxa, no universo
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pesquisado, se tornou não apenas uma categoria indicadora do uso ou não de magia, mas uma
opção religiosa, filosófica e muitas vezes uma profissão. Há, no perfil das bruxas estudadas, uma
estória de busca religiosa mas também um determinado status social em jogo. Quisemos entender
como a categoria bruxa se tornou tão abrangente para essas pessoas, delimitando até sua
ocupação profissional e formulando uma identidade total que não se restringe a concepções sobre
o masculino e o feminino.

PERFIS E ACUSAÇÕES: ENTREVISTAS COM BRUXAS CARIOCAS

Em janeiro de 1999, o Caderno Teen, um programa para adolescentes na TVE, realizou


uma entrevista com uma bruxa. Ela explicava o que era a bruxaria wicca, falava do Deus e da
Deusa, dos sabás e fez um convite aberto ao público em geral para que comparecesse a uma
reunião na Floresta da Tijuca, realizada no final daquele mês, na qual bruxas e bruxos do Rio de
Janeiro estariam reunidos. Por sorte ou acaso – ou magia, diriam os Azande -, conhecíamos há
muito a bruxa em questão (sem sabermos que era bruxa). Fomos à reunião de bruxas na data
marcada e reconhecemos lá uma outra bruxa que também conhecíamos. Estas pessoas, sem
dúvida alguma, foram de fundamental importância para nosso ingresso no campo. Estas duas
bruxas serviram como a porta de entrada num mundo mais vasto, um universo de mulheres e
homens praticantes de magia. Ana, que apareceu na televisão, apresentou-me a outras bruxas e
bruxos. Vanessa, a outra bruxa conhecida, se tornou nossa informante, e foi responsável, junto
com Ana, pela indicação de boa parte das bruxas entrevistadas por nós.
Com esta oportunidade em mãos, o universo descrito nos manuais de bruxas podia ser
confrontado com o universo das pessoas de carne e osso, dos seres humanos reais. As bruxas
descritas naqueles manuais - livros que em primeiro lugar chamaram a nossa atenção para a
bruxaria moderna européia chamada wicca - podiam ser contrapostas a bruxas reais. A maioria
destes manuais foi escrita por autores estrangeiros. Tínhamos nas mãos, além de tudo, a
oportunidade de não apenas encontrar bruxas reais, residentes no Brasil, mas de confrontar que
tipo de bruxaria elas praticavam aqui, quais influências sentiam-se mais fortemente em seus
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perfis religiosos, como tinham alcançado a bruxaria, como tornaram-se bruxas, porque tornaram-
se bruxas, entre outras questões.
Realizamos, a partir daí, oito entrevistas com bruxas do Rio de Janeiro: sete mulheres e
um homem. Através das entrevistas realizadas pudemos montar um pequeno perfil das bruxas, o
que nos permite levantar algumas hipóteses. Através das entrevistas pudemos compreender o
perfil individual de cada bruxa, o que marca suas motivações, aspirações e desejos na bruxaria.
Para um perfil geral das entrevistadas, temos que:

• a faixa etária se encontra entre 22 e 49 anos;


• quanto ao estado civil, encontramos cinco pessoas casadas (no civil e/ou religioso), duas
separadas (uma de casamento legalmente constituído, a outra de coabitação) e uma
solteira;
• o número de filhos oscila entre dois para aqueles que são ou já foram casados e nenhum
para os solteiros e alguns casados: quatro entrevistadas têm dois filhos e quatro não têm
nenhum;
• a renda familiar varia de R$800 a R$6500: predomina a renda de R$1500 a R$2000,
aproximadamente;
• os locais de moradia concentram-se em bairros de classe média e classe baixa, entre São
Gonçalo e a Zona Sul e Norte do Rio de Janeiro: Porto Novo (S. Gonçalo) (1), Lins (1),
Tijuca (3), Laranjeiras (1), Botafogo (1), Glória (1);
• os ramos profissionais distinguem-se bastante, mas há uma concentração em atividades
correlatas ao mercado esotérico: há uma funcionária pública, uma personal trainer, uma
psicóloga, uma professora de dança e mais quatro entrevistados - um homem e três
mulheres - que vivem diretamente da renda obtida com o mercado esotérico (uma como
comerciante; uma como astróloga, runóloga, numeróloga e taróloga; um como
radiestesista e tarólogo; uma como taróloga)1; a psicóloga eventualmente participa deste
_____________________________________________________
1 – Essas definições profissionais foram dadas pelos entrevistados. Tarólogo é aquele que joga tarot, método
divinatório com cartas de tarot. Runólogo é aquele que joga runas, método divinatório que consiste em símbolos
gravados em pequenas placas de madeira, osso, vidro, pedra ou cristal. Radiestesista é aquele que faz medições
energéticas com um pêndulo para harmonizar essas energias. Os numerólogos são aqueles que utilizam a
numerologia, saber oculto sobre as propriedades dos números.
138

mercado como palestrante em feiras esotéricas e astróloga; a professora de dança também


participa deste tipo de evento como palestrante;
• quanto à escolaridade, apenas o entrevistado mais novo nunca ingressou em curso
superior; do restante das entrevistadas, todas as mulheres passaram por algum curso
superior, ou mais de um, concluindo-os ou não; há uma preferência por carreiras
acadêmicas nas áreas de ciências humanas e letras, seguida pela área bio-médica;
• sete entrevistados (seis mulheres e um homem) já participaram de algum tipo de
movimento social, mais notadamente o movimento estudantil e o movimento ecológico;
• três entrevistadas foram efetivamente vinculadas a partidos políticos, a princípio todas no
PT mas ingressando posteriormente no PSTU (2) e PV (1); outros dois entrevistados (um
homem e uma mulher) se envolveram de alguma forma com o PV, mas apenas como
simpatizantes;
• quanto à religião da família, notamos que ela não é determinante na opção religiosa dos
entrevistados: cinco deles são oriundos de famílias católicas, duas de família umbandista
e uma de família pertence às Testemunhas de Jeová. É importante observar que: a) nem
sempre toda a família é de fato praticante de uma determinada religião, podendo apenas a
opção religiosa da mãe simbolizar para o entrevistado a opção da família nuclear; as
mães aparecem mais vinculadas à religião do que os pais e padrastos; b) bem como
ocorre entre os entrevistados, há casos em que a mãe e/ou o pai (ou padrasto) adotam
várias religiões diferentes em diferentes épocas de suas vidas, nesse caso, a religião
familiar é normalmente descrita pelo entrevistado, e aceita pela entrevistadora, como
aquela na qual o entrevistado foi socializado, ou seja, a do período de infância;
• todos os entrevistados foram batizados na Igreja Católica: sete quando crianças e uma
apenas para se casar; dos sete batizados quando criança, seis cursaram a catequese e
cinco fizeram a Primeira Comunhão;
• quando perguntamos aos entrevistados qual a sua religião anterior, cinco afirmaram que
não tinham religião - a despeito da vida religiosa da família e de terem (em alguns casos)
participado da Igreja Católica quando crianças e feito a Primeira Comunhão -, duas
afirmam que já frequentaram a umbanda, o kardecismo/espiritismo e o budismo, e uma
participava da Igreja Messiânica;
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• o primeiro contato com a bruxaria wicca pode ter se dado numa época em que o
entrevistado não deu atenção ao que encontrara, ou não se interessou, ou ainda não
compreendeu, e se esqueceu de que já tinha lido algo a respeito da wicca – isso
demonstra que a bruxaria como religiosidade é aceita (e buscada) num momento
determinado, isto é, momento de busca pela construção de uma identidade a despeito dos
entrevistados afirmarem que foram bruxos “desde sempre”; deste modo, consideramos o
primeiro contato como aquele que instigou de fato a busca do entrevistado pela bruxaria.
Essa busca pode ter sido desencadeada por diferentes fatores subjetivos, mas se dá
através da internet para dois entrevistados, através de livros para quatro deles e através
de amigos para os outros dois;
• é interessante notarmos, a partir da observação acima, que o encontro com a bruxaria se
dá através de uma busca que, a princípio, o entrevistado nem ao menos sabia ao que.
Pode ser configurada uma busca por algum tipo de religiosidade, mas dificilmente uma
em especial, algum tipo de filosofia de vida pode estar sendo buscada também bem como
alguma forma de explicação cosmológica do mundo e/ou de fenômenos “sobrenaturais”
ou “extra-sensoriais”;
• consideramos o aprendizado da wicca como uma categoria diferente do contato, pois
marca a entrada de fato para a religião: essa aprendizagem se deu através de livros para
quatro entrevistados, através de amigos para um e através de um coven para três deles;
• atualmente, três entrevistadas mantém covens ativos e cinco permanecem bruxos
solitários.

As bruxas entrevistadas

Foram realizadas, ao todo, entre novembro de 1999 e março de 2000, oito


entrevistas (sete mulheres e um homem), todas na cidade do Rio de Janeiro e cidade de São
Gonçalo (Grande Rio). Traçamos um breve perfil desses entrevistados, contando um pouco
de suas estórias pessoais. Os nomes usados são fictícios. As categorias para esse perfil são:
idade, estado civil, número de filhos, bairro em que mora, renda individual e familiar,
profissão, escolaridade, militância em movimentos sociais, religião, primeiros contatos com
a wicca e subseqüente entrada nesta religião. Interessante notar que não há uma conversão à
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bruxaria, há uma adesão: é o encontro de algo procurado há um longo tempo para alguns, e
o encontro com um corpo doutrinário religioso que dá forma a crenças pessoais para todos
os que praticam a wicca. É o encontro com aquilo no qual “sempre” se acreditou. O
conhecimento da religião vem de dentro do praticante e, portanto, a assimilação do
pensamento wicca é anterior à adesão. A noção de busca se torna importante na medida em
que estabelece quando foi o primeiro contato com a bruxaria, dissociando este contato da
adesão de fato. A adesão se dá num momento específico de vida, para cada um, regida por
experiências pessoais subjetivas. Essas experiências parecem ser determinantes na adesão.

1) Vanessa

Vanessa tem 25 anos, é solteira e sem filhos. Ela mora no Lins, Zona Norte do Rio, com a
mãe e o padrasto. Ela não tem irmãos. Seu padrasto é pintor e mestre de obras, ganhando bem
menos do que ela. A mãe é dona-de-casa. A renda familiar é de R$2000. O salário de Vanessa,
funcionária pública, é R$1300. Além de trabalhar, Vanessa cursa Direito na UERJ. Ela era aluna
do curso de Letras (Português-Inglês) na UFRJ, mas abandonou o curso preferindo Direito. A
partir dos 17 anos, passa a militar no movimento estudantil, a princípio com o PT mas
posteriormente com o PSTU.
Vanessa afirma que sua família é católica, apesar de saber que sua mãe faz “macumba”
esporadicamente. O pai é católico. O padrasto não tem religião. Ela foi educada pela família no
catolicismo: foi batizada, fez a catequese e a Primeira Comunhão. Apesar disso, afirma que
sempre foi wiccana, e que apenas não sabia como nomear essa idéia religiosa que tinha.
A partir dos sete anos de idade, Vanessa começou a jogar cartas intuitivamente, isto é,
sem ninguém lhe ensinar. Posteriormente, com dez ou onze anos de idade, ela leu o Livro de São
Cipriano, um livro de bruxaria facilmente encontrado em livrarias e bancas de jornais. Aos treze
anos passou a jogar tarot. Leu Mônica Bonfiglio já na faculdade, uma autora de livros sobre anjos
e almas gêmeas. Após fazer um feitiço para se livrar da inimizade de uma moça – feitiço este que
ela afirma ter funcionado -, passou a ler sobre magia em livros dos autores Eliphas Levy e Papus,
mas não se identificou com a magia descrita nesses livros. Passou a ler também sobre o tarot.
Nesta época, leu uma reportagem na revista Marie Claire sobre novas religiosidades e descobriu
a wicca, mas devido à forma como esta foi apresentada na revista, ficou com a impressão de que
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seus praticantes não eram pessoas sérias. Mais tarde, na faculdade, teve acesso à internet e
encontrou sites sobre a wicca. Apesar de seu primeiro contato com a wicca ter se dado através de
uma revista, é através da internet que Vanessa passou a estudar a wicca e compreender a
bruxaria. É nesse momento que ela se identifica com a wicca e descobre que é wiccana. Passa,
então, a ler livros sobre bruxaria. Posteriormente formou um coven que durou cinco meses. A
princípio, participavam oito pessoas deste coven, mas apenas quatro permaneceram de fato. Ela
conheceu estas pessoas “por acaso” na UERJ e também através da internet. Após o término do
coven, ela passou a praticar a wicca com uma amiga. Hoje diz que é uma bruxa solitária.

2) Ana

Ana tem 28 anos, é solteira e tem duas filhas, uma de cinco anos e a outra de dois. Cada
menina é fruto de um “casamento” diferente de Ana. Em ambos os casos, o “casamento” era
coabitação, não havendo nenhuma cerimônia civil ou religiosa. Atualmente Ana está separada de
seu segundo “marido” e mora com as filhas na casa de sua mãe, na Tijuca. Ao ser perguntada
sobre sua renda mensal e familiar, Ana não quis entrar em detalhes, limitando-se a responder que
não tinha conhecimento da renda familiar da casa nem tinha uma renda mensal fixa, pois trabalha
como taróloga e promove eventos esotéricos. Contudo, ela afirma que tem um padrão de vida de
classe média. Ana cursou um ano de Astronomia na UFRJ, mas abandonou o curso. Anos mais
tarde, já casada e mãe das duas meninas, ela ingressou na faculdade de Letras (Português-Inglês),
na Universidade Estácio de Sá. Ela cursou Letras por um ano, não completando o curso. Quando
ainda era estudante, participou do movimento estudantil, quando fazia parte do PT.
Posteriormente passou a militar pelo PSTU, pois fazia parte da Convergência Socialista, corrente
petista que dá origem a esse partido.
Ana afirma que sua família é católica, religião na qual foi educada. Ela foi batizada, fez
catequese e Primeira Comunhão. Apesar disso, diz que antes de encontrar a wicca não tinha uma
religião. Afirma que sempre foi wiccana, mas não sabia como nomear sua religião.
Ana começa a jogar cartas intuitivamente aos 12 anos. Inicia, então, seus estudos sobre
esoterismo. Esses estudos eram clandestinos, sem o conhecimento de sua família, o que levou
Ana, a partir dos 14 anos, a “matar aulas” da escola para freqüentar cursos esotéricos. Ela relata
que tinha premonições e vidência e procurava uma explicação para esses fenômenos. Primeiro,
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ela buscou no espiritismo, depois na magia cerimonial, quando leu autores como Eliphas Lévy e
Papus. Começa, então, a pesquisar sobre os ciganos, pois seu pai era filho de ciganos, embora
não tenha aprendido a cultura cigana e tenha sido criado para ser padre, entrando no Seminário
mas abandonando-o por fim. A busca de Ana por conhecimento se estendeu às filosofias orientais
e o I Ching. Ela afirma que nenhuma dessas filosofias/religiões era aquela com a qual se
identificava, pois via Deus como uma mulher e procurava um caminho religioso que acreditasse
nisso. Foi numa conversa com um amigo que ela descobriu a wicca e chegou à conclusão de que
esta era sua opção religiosa, aquela a qual ela vinha buscando. Ana passou, então, a ler uma
literatura estrangeira específica sobre o assunto. Nesta época, começou a freqüentar as livrarias
Laice e Pororoca, especializadas em livros esotéricos. Foi neste momento de sua vida que Ana
descobriu que a wicca e a bruxaria eram a mesma coisa. Recordou-se de já ter lido um livro sobre
bruxaria antes, escrito por Hans Holzer, na biblioteca do colégio, em 1984, com 12 anos de idade,
quando ainda estudava no Colégio Pedro II. Nessa época, afirma, não conseguiu aceitar bem o
que o livro apresentava, pois era muito nova e o conteúdo repleto de simbologias sexuais a
assustara. Ana só se tornou praticante de wicca quando conheceu uma outra bruxa, Inês, que
trabalhava como vendedora na mesma loja que ela, no shopping Rio Sul. Ana passou a estudar
com Inês e quando mais pessoas juntaram-se a elas, formou-se seu primeiro coven.

3) Cíntia

Cíntia tem 36 anos de idade, é casada e tem dois filhos: uma menina de três anos e um
menino de cinco. Ela mora com o marido e os filhos em Laranjeiras. A renda familiar da casa é
de R$3000. Cíntia não soube dizer quanto ganha por mês pois mantém três atividades paralelas,
todas como autônoma: ela é representante comercial de vestuário, personal trainer e afirma
também trabalhar na área de radiologia. Seu marido trabalha na área de informática. Ele é
programador, faz páginas de internet e digitação, trabalhando como autônomo. Tem 28 anos e
cursa a faculdade de Informática. Simone já passou por três cursos superiores, não completando
nenhum. Fez Educação Física, Direito e Comunicação Social. Na faculdade, participou do
movimento estudantil, mas não fazia parte de nenhum partido político.
Cíntia afirma que sua família era Testemunha de Jeová e portanto não lhe foi ministrado
nenhum sacramento da Igreja Católica. No entanto, como seu sonho era casar-se na Igreja, Cíntia
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foi batizada no catolicismo e casou-se numa cerimônia católica. Hoje diz que não sabe se a mãe é
espírita ou católica. Apesar de batizada na Igreja Católica, Cíntia diz que já freqüentou a
umbanda, o kardecismo e o budismo.
Quando criança e adolescente, tinha visões e sonhos premonitórios. Sentia-se diferente
das outras crianças quando nova, pois teve sérios problemas de saúde e só começou a andar aos
sete anos. Acabou dando muito valor ao esporte, numa tentativa de equilibrar o corpo deformado
pela doença. Hoje ela ostenta uma silhueta musculosa. Quando adolescente, as visões lhe
causavam incômodo e eram motivo de “deboche” por parte de outras pessoas.
Ela só veio a encontrar a wicca anos mais tarde, através de um bruxo com quem
conversava pela internet. Este homem afirmou que ela era bruxa e lhe deu o endereço de um site
de wicca. A partir daí ela afirma ter começado a estudar wicca, procurando livros sobre o assunto,
embora diga que já então suspeitasse que era bruxa. Cíntia nunca participou de nenhum coven,
mas mantém contato com outros bruxos através da internet, onde participa de listas de discussão.
Eventualmente, ela vai a São Paulo visitar amigos bruxos.

4) Adriana

Adriana tem 31 anos, é separada de seu primeiro marido há três anos e tem uma filha de
13 anos e um filho de 9. Ela mora com os filhos em Porto Novo, São Gonçalo (Grande Rio).
Funcionária da Sul América Seguros, onde era técnica de atendimento, Adriana resolveu montar
um negócio próprio em sociedade com uma de suas irmãs (são seis irmãs e um irmão). Ela
atualmente trabalha em sua própria loja, aberta no final de 1999, que fica do lado de sua casa, em
São Gonçalo. A loja vende produtos esotéricos como incensos, cristais, gnomos, anjos, entre
outros. Há uma sala separada da loja onde Adriana dá consultas de Baralho Cigano, jogo de
cartomancia. Ela não quis declarar a renda pessoal, mas afirma que sua renda familiar é de
R$2100. Ela cursou Turismo na faculdade Plínio Leite, de Niterói, mas nunca exerceu a
profissão. Quando estudava, participou do movimento estudantil. Nesta época, fazia parte do PT,
mas desligou-se recentemente para ingressar no PV, onde pretende ajudar na candidatura de uma
amiga.
Adriana afirma que sua mãe era umbandista, mas fez questão de que os filhos fossem
batizados na Igreja Católica, onde deveriam também fazer a catequese, ficando a cargo de cada
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um a opção de fazer ou não a Primeira Comunhão. Adriana diz que optou por não fazer a
Primeira Comunhão. Mais tarde, ela ingressou na Igreja Messiânica, onde se casou.
Afirma que sempre foi “muito bruxa”, possuindo uma “ligação muito forte com a lua”.
Descobriu que era bruxa quando fez um ritual de cura, intuitivamente, para o filho que tinha uma
grave doença. O menino era ainda bebê, e nenhum médico prometia cura. Esta foi alcançada
através deste seu ritual. A partir daí ela passou a buscar e estudar a bruxaria. Quando encontrou a
wicca, ela ainda participava da Igreja Messiânica. Uma de suas primeiras leituras foi Brida, de
Paulo Coelho, quando se identificou com a personagem título do romance que é uma mulher em
busca de uma pessoa que lhe ensine bruxaria. A partir daí começou a freqüentar livrarias e sebos
procurando livros a respeito de feitiçaria. Há seis anos, Adriana conheceu uma bruxa chamada
Monique e uma amiga desta, através de um anúncio na Revista Programa do Jornal do Brasil.
Monique ia ministrar um curso sobre bruxaria wicca, mas quando conheceu Adriana disse-lhe
que não precisava de aulas pois Adriana fazia tudo certo intuitivamente. Algum tempo depois,
Adriana começou a freqüentar uma grande livraria no centro do Rio onde conheceu alguns
bruxos. Durante algum tempo essa livraria foi local de encontro de praticantes de wicca.
Na entrevista, Adriana afirma ser uma bruxa solitária. No entanto, ela tem praticando a
bruxaria com algumas outras pessoas a quem ela ensina a wicca. Entre os participantes deste
novo coven, estaria sua filha. Adriana já havia ensinado bruxaria para uma pessoa antes, um
rapaz que ela conheceu numa livraria no centro do Rio. Na época em que a entrevista foi
realizada (novembro de 1999), uma adolescente tinha procurado Adriana também com o intuito
de que ela lhe ensinasse a wicca, mas Adriana ainda não havia aceito formalmente esse pedido.

5) Carla

Carla tem 32 anos de idade, é casada e não tem filhos. Seu marido tem 40 anos e é judeu.
O casamento deles foi realizado tanto na wicca quanto no judaísmo. Eles têm um apartamento na
Glória, onde moram e trabalham. Tanto Carla quanto o marido trabalham no “mercado
esotérico”. Foi num evento desses que eles se conheceram. Carla ministra aulas de wicca e dá
consultas como taróloga, runóloga e astróloga. Ela também receita Florais de Bach aos seus
consulentes. O marido dá aulas de hebraico e Cabala, e também faz consultas como astrólogo. A
renda pessoal mínima de Carla é de R$800, segundo ela, proveniente de seus alunos de wicca,
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que lhe pagam uma mensalidade. A renda familiar, devido às ocupações autônomas, pode variar
de R$800 a R$6000. Carla se formou em Biologia na Universidade Santa Úrsula, e seu marido é
psicólogo formado mas não trabalha nessa área. Carla já trabalhou como bióloga, mas ao perder
seu emprego passou a atuar no mercado esotérico e como vendedora de loja. Na faculdade, ela
participou, por um curto período, do movimento estudantil, contudo, não era vinculada a nenhum
partido político. Ela panfletava para o PV durante as eleições, mas não era filiada ao partido.
Carla diz que sua mãe foi criada por uma outra família, que não seus pais, que era muito
católica e tornou-se católica também. Ela conta que seus ancestrais são possivelmente pagãos, ou
seja, praticantes de bruxaria, embora ela não possa confirmar esta suposição. Foi criada pela mãe
no catolicismo, freqüentando colégios confessionais. No entanto, ela relata que desde pequena se
sentia diferente das outras crianças. Diz que era capaz de ver e se comunicar com espíritos, tinha
visões e sonhos premonitórios, desenhava quadrados mágicos. Começou a jogar cartas
intuitivamente com 12 anos de idade e mais tarde ganhou um baralho de tarot que passou a jogar.
Aos 19 anos, Carla entrou na faculdade Santa Úrsula e começou a freqüentar a biblioteca de
assuntos teológicos. Leu alguns livros e conheceu pessoas ligadas à bruxaria. Foi convidada,
então, a entrar num coven onde permaneceu de 1987 a 1994. A partir daí permaneceu como bruxa
solitária, mas agora já possui um novo coven organizado por ela e do qual fazem parte alguns de
seus alunos.

6) Edna

Edna tem 34 anos, é casada mas não tem filhos. Seu marido, Ronaldo, tem 22 anos e é
também nosso entrevistado. O casamento deles foi realizado numa cerimônia religiosa wicca.
Eles moram na Tijuca. Edna é professora de Dança do Ventre, e não tem uma renda mensal fixa.
Ela afirma que sua renda familiar é flutuante, sendo cerca de R$1500 mensais. Ela cursou
Publicidade na faculdade Hélio Alonso, mas não trabalha na área. Já fez parte do PV e de um
grupo ecológico ligado à Biblioteca Nacional quando ainda estava na faculdade.
Sua mãe é umbandista e seu pai é baha’i. Segundo Edna, a fé baha’i se baseia em não
fazer mal a ninguém. É uma fé sem dogmas. Apesar disto, ela foi batizada na Igreja Católica.
Edna afirma que nunca praticou nenhuma outra religião que não a wicca. A wicca é a única
religião que “tem a ver com minha linguagem”, principalmente por sua ênfase no feminino. Ela
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decidiu se tornar bruxa quando leu As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, aos 15
anos, e se identificou com a religião descrita no livro. Identificou-se com “a maneira mais
feminina de ter contato” com a religião e passou a enxergar a divindade como feminina. Só
ingressou na wicca de fato após ter-se mudado do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Sul, onde
conheceu uma taróloga que era bruxa. Ao vê-la buscando “a religião da Deusa”, esta amiga
revelou que era bruxa e convidou-a a entrar para o seu coven, há sete anos. Hoje ela participa de
vários covens quando é convidada para alguma festa, praticando a religião mais assiduamente
com Ronaldo. Já manteve, por dois anos, um coven próprio no Rio de Janeiro, mas este foi
extinto.

7) Vanda

Vanda tem 49 anos de idade, é a mais velha das entrevistadas e a única que não pratica a
wicca. Como ela se define como bruxa, tomamos seu depoimento. Ela é casada há doze anos com
seu segundo marido, com quem não teve filhos. Tem um casal de filhos com o primeiro marido:
uma moça de 24 anos e um rapaz de 19. A moça é engenheira e trabalha atualmente no Piauí. O
rapaz cursa informática na Universidade Estácio de Sá. Vanda mora com a marido e o filho em
Botafogo. Ela é formada em psicologia pela Universidade Santa Úrsula e trabalha como
psicóloga junguiana atendendo seus pacientes. Além disso, também dá consultas como astróloga
e mais raramente como taróloga. Sua renda mensal é de R$1500. A renda familiar é de R$6500.
Ela nunca participou de nenhum movimento social.
Vanda conta que sua família era católica. Sua busca religiosa, no entanto, começou
precocemente. Ela diz que com oito anos de idade teve vontade de ser freira. Aos 12, começa a
estudar o espiritismo. Aos 15, passa a freqüentar a Umbanda, de onde só se desliga com 21 anos.
A sua ligação com a umbanda permanece forte até hoje. Embora não freqüente mais, ela afirma
que é a religião “mais poderosa” que já conheceu. Quando questionada sobre rituais mágicos, ela
afirma que os faz, mas seguindo a tradição da umbanda. Ela também permanece devota de seus
Orixás. Após sair da umbanda, Vanda começou a buscar todo tipo de conhecimento Nova Era.
Leu sobre os chakras, Feng Shui, vidas passadas, tarot, astrologia e pratica meditação. Afirma
que começou uma busca espiritual pois não sentia a presença de Deus. Como psicóloga, ela
analisa esta sua busca como a busca por um pai, visto que foi criada por sua mãe e o padrasto.
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Sua busca só terminou dez anos atrás, durante uma meditação, quando encontrou o deus hindu
Shiva.
Vanda não é uma bruxa wicca, mas declara que é bruxa. Ela define sua religiosidade
como sendo “filha da Deusa”, e diz que está muito ligada a Vênus, Oxum e Yemanjá. Afirma que
a sua religiosidade está vinculada à natureza. Os rituais que faz são “o que vier na minha cabeça”,
mas de um modo geral seus feitiços e rituais ainda estão ligados à tradição da umbanda. Ela
busca agora “despertar a consciência”.

8) Ronaldo

O último de nossos entrevistados é o único homem, o único sem curso superior e o mais
novo também. Tem 22 anos. Ele é casado com Edna numa cerimônia wicca. Este é seu segundo
casamento. Ele já havia se “casado” (coabitação) antes, também com uma mulher mais velha do
que ele. Ronaldo não tem filhos. Ele mora na Tijuca, com Edna. Concluiu o segundo grau no
Colégio Pedro II mas só em 2000 pretende prestar vestibular para o curso de Música. Ronaldo é
profissional do mercado esotérico e músico nas horas vagas. Ele trabalha dando consultas de tarot
e radiestesia. Sua renda mensal é flutuante, mas a renda familiar declarada é de cerca de R$1500.
Quando ainda estava no colégio, Ronaldo fez parte do movimento estudantil. Ele frequentava o
PV e o Greenpeace, pois as questões ecológicas lhe chamavam atenção, contudo, não foi membro
de nenhuma dessas organizações.
Seu pai é católico mas já freqüentou o kardecismo e a umbanda. A mãe é católica, mas já
se interessou por espiritismo e hoje estuda esoterismo e ufologia. Ele foi criado dentro do
catolicismo, mas considera que a única religião que já praticou foi a wicca. Lê sobre ocultismo
desde os 13 anos. Começou a jogar tarot e buscar livros sobre magia prática e ritual. Encontrou
um livro sobre wicca chamado Feitiçaria: a tradição renovada, de Evan John Jones e Doreen
Valiente, seu primeiro contato com a bruxaria, e continuou a pesquisar sobre o assunto. Foi
quando conheceu uma amiga de sua mãe que era bruxa e decidiu instruí-lo. Passou a estudar
bruxaria com ela. Mais tarde, através de um anúncio na Revista Programa, do Jornal do Brasil,
conheceu Monique, e através dela outras bruxas, incluindo Edna e Ana.
148

Algumas categorias de acusação

A partir das entrevistas, muitas questões se esclareceram para nós, e outras vieram à tona.
Percebemos, por exemplo, que embora o termo “bruxa” não constitua acusação para os
entrevistados, sendo, pelo contrário, utilizado por eles para se auto-definirem, outras categorias
de acusação foram formuladas, desta vez para designar aqueles que se fazem passar por bruxos e
bruxas, mas que na realidade não o seriam. Estas são as acusações internas, de dentro do grupo
dos que praticam a bruxaria para aqueles que se inserem no grupo ou se fazem passar por parte
dele. Existem também as acusações formuladas por pessoas de fora do grupo (isto é, não bruxos),
normalmente vindas da própria família da bruxa, mas também de alguma pessoa do círculo de
convivência. As acusações, tanto as internas quanto as externas, em nenhum momento se dirigem
contra um grupo específico, mas sempre contra determinados indivíduos portadores de
determinadas características.
Das acusações internas, percebemos três categorias claramente distintas – visto que se
referem a comportamentos específicos - para classificar a “falsa bruxa”. A primeira delas foi
apresentada anteriormente no discurso de Ana: é a categoria pink wicca. Segundo Ana, esta
categoria foi forjada externamente ao grupo de bruxas por pessoas vinculadas a outras ordens
mágicas, mas pudemos presenciar no campo o uso corrente que as bruxas fazem desta categoria
de acusação, utilizada sempre para se referirem a praticantes de bruxaria. O pink wicca é aquele
que pratica a bruxaria wicca de maneira incompleta, quase leviana. Como categoria de acusação
usual, percebemos que pink wicca se refere prioritariamente àqueles com pouco
comprometimento com a religião e àqueles que visualizam a bruxaria como uma grande
congregação de ajuda mútua, o que ela não parece ser. O pink wicca pode ser aquele que pensa
que todos os wiccanos são seus “irmãos”, que todas as bruxas são boas, que não há pessoas com
interesses escusos praticando a wicca, que a natureza é naturalmente boa, que as divindades são
naturalmente boas. Ou seja, pode vir a ser aquele que mantém um otimismo inabalável em
relação ao mundo e à humanidade.
Uma segunda categoria interna de acusação surge a partir do referencial estético da bruxa.
A bruxa que usa maquiagem carregada, roupas espalhafatosas, pentagrama muito grande
pendurado no pescoço, excesso de bijuterias, que mantém os cabelos vermelhos ou uma risada
149

excêntrica pode ser vista como falsa bruxa. O ideal, neste caso, é manter a discrição, pois a bruxa
“verdadeira” não teria necessidade de chamar atenção sobre si e sobre sua condição de bruxa.

“Tudo que é natural é normal nessa religião, mas o que não é natural é você ver uma
pessoa toda de preto, vestido longo preto, unhas pintadas de preto, sombra pintada de
preto, cheia de anéis no dedo, pentagrama enorme no peito, tipo assim, cabelos
vermelhos pintados, escutando Lorena McKenit ou Enya, ‘eu sou bruxa’. Você tem a
sua religião. Quando passa disso pra exotismo cultural é outra coisa, você está
querendo se mostrar. Eu já vi uma certa cidadã com uma roupa preta e uma sombra
roxa e que ficava rindo assim. Ela simplesmente fez, botou um caldeirão no meio do
palco, ficou mexendo o caldeirão e invocando poderes mágicos, e isso não era local.
Necessita-se respeito à Grande Mãe.” (Carla)

Embora o visual espalhafatoso seja motivo de desconfiança, três entrevistadas


manifestaram sua predileção pelo preto e o vermelho: uma delas descreveu a bruxa como alguém
inclinada a roupas exóticas; a outra descreveu uma situação em que se apresentava vestida
exatamente como nos relatos acima. No momento da entrevista, três bruxas apresentavam-se
vestidas completamente em negro.

“A gente tem uma tendência a se vestir diferente. A gente tem hábitos de se vestir
diferente, a gente gosta muito de usar preto, de usar roupas em estilo medieval, de usar
roupas exóticas, de usar muitos anéis, de usar pendentes, pentagramas. Eu acho que é
proposital, porque a gente tem a necessidade de conhecer outros como nós.” (Ana)

A terceira acusação interna consiste na atitude de má fé em prol de vantagem material. A


bruxa que cobra por seus serviços mágicos, aquela que cobra para ensinar bruxaria ou aquela que
cobra preços muito altos para consultas de oráculo, radiestesia, numerologia, astrologia ou
qualquer outro conhecimento é vista como uma “falsa bruxa”, pois a bruxa verdadeira deve
cobrar o preço justo por seus serviços ou não cobrar nada. Neste sentido, os serviços passíveis de
cobrança são justamente aqueles oferecidos no mercado Nova Era, ou seja, aqueles já
institucionalizados como uma profissão. Como demonstramos anteriormente, três entrevistadas e
150

um entrevistado vivem diretamente deste mercado e definem-se profissionalmente em relação a


ele como astrólogos, runólogoas, tarólogos, numerólogos e/ou radiestesistas. Mesmo assim,
quando em campo, notamos que muitas bruxas não vêem com bons olhos essa prática. Para elas,
nem mesmo uma consulta de oráculo deveria ser cobrada. Frazão (1995) também condena essa
prática. Aquela que desejar manter-se financeiramente apenas com o conhecimento de bruxa que
possui será acusada pelo grupo como falsa bruxa. Uma de nossas entrevistadas adquire toda sua
renda de atividades ligadas à profissão de bruxa. Foi possível perceber, durante o campo, que ela
era constantemente acusada de má fé por diferentes pessoas, inclusive algumas que não a
conheciam pessoalmente, o que indica que há um ethos a ser seguido. Rompendo esse ethos, ela
se tornou alvo de acusações.
Cabe aqui explicarmos melhor o que consiste a acusação de ser “falsa bruxa”. Nem
sempre a acusação se relaciona à falsidade ideológica, ao fato de se afirmar possuir
conhecimentos que na verdade não se possui. As “falsas bruxas”, em sua maioria, possuem o
conhecimento que clamam ter. No entanto, elas o utilizam de maneira indevida, ou seja, quebram
o ethos estabelecido do grupo e tornam-se assim sujeitos de acusações. Quem estaria mais
próximo da falta de conhecimento é a bruxa pink wicca, contudo, ela não afirma possuir algo que
não possui, e por isto, das três acusações internas, esta é sem dúvida a mais leve. A acusação de
má fé é, das três, a mais forte.
Poderíamos dizer que as três acusações acima referidas denotam uma quebra do ideal
estabelecido para uma bruxa: comprometimento com a religião, desapego material, confiança e
amor para com os membros do coven, discrição, senso de realidade, boa fé, entre outros. A
bruxaria é vista como um ato de amor e caridade.

“Falta nessas pessoas um pouquinho de caridade. Eu acho que magia é caridade.


Você tem que usar o que você sabe pra ajudar alguém. A magia não é só para si, a
magia não é um hobby, a magia é alguma coisa muito mais profunda. É você poder
auxiliar outras pessoas. Eu acredito que a magia seja um compromisso com a
comunidade, as pessoas.” (Adriana)

Há uma pressão do grupo de modo a indicar um ethos a ser seguido bem como certas regras
de conduta desejáveis. A ruptura com esse ethos e essas regras dá lugar a um comportamento mal
151

visto e desviante do ponto de vista do grupo. Uma vez que os objetivos legítimos do grupo não
são seguidos por um indivíduo, constitui-se um comportamento desviante (VELHO, 1974).
Mais algumas categorias de acusação foram formuladas pelos entrevistados, no entanto,
elas não denotam um comportamento definido. São elas: “ser bruxa porque está na moda” e “ser
bruxa para afrontar a família”.

“Então eu falo assim: eu quero agredir você, eu quero agredir minha família, então,
pra agredir essas pessoas, eu sou bruxa. Pra ser do contra, eu sou bruxa, pra criar
polêmica, pra aparecer. Hoje em dia falar que é bruxa, tu acha até que é moda.”
(Adriana)

“Existe o modismo. Uma mulher que vai colocar o estigma de bruxa porque está na
moda, entre aspas. Isso tudo virou uma grande fantasia na cabeça das pessoas.”
(Ronaldo)

As bruxas que entrevistamos se declaram bruxas “desde sempre” ou desde que descobriram
a bruxaria. Este interesse inicial certamente entra em choque com a idéia de ser bruxa porque está
na moda ou para afrontar a família.
Também se enquadra nessa quebra de ethos a bruxa acusada de alardear que possui poderes
mágicos e muito conhecimento. Este tipo de comportamento suscita desconfianças sobre ser ou
não uma bruxa verdadeira. Ela pode estar relacionada com a aparência da bruxa.

“Eu tendo a ver com desconfiança as pessoas que se fantasiem de bruxa. Ou aquelas
que te cumprimentam e dizem: boa tarde, eu sou uma bruxa. Ela [a falsa bruxa] quer
enfeitar muito, saca? Ela quer botar que ela tem muitas coisas, ela tem muitos
poderes, e fez muitas coisas, entendeu? É verdade que nesse ponto de vista, às vezes
você esbarra com o deslumbrado. Tem muita gente que gosta de dizer que tem
poderes.” (Vanessa)

Aquele que também proclama possuir antepassados bruxos pode ser mal visto,
especialmente se este antepassado foi quem ensinou a bruxaria para a bruxa em questão.
152

Interessante observar que praticamente todos os entrevistados declaram que havia bruxas em suas
famílias, mas nenhum afirma ter aprendido a bruxaria com algum membro da família. O caso
mais explícito é o da própria Márcia Frazão, que na maior parte de seus livros conta estórias de
como sua iniciação no mundo da bruxaria se deu através de suas avós e tias.

“Ah, eu sou especial, eu sempre fui bruxa, não sei o que, eu tive uma vida de bruxaria
desde criança porque a minha mãe me ensinou a ser bruxa. Não, não é assim, sabe? A
cada mil, uma teve a mãe do lado pra poder ensinar, entendeu?” (Carla)

Quanto às acusações externas, elas são fruto, na maior parte das vezes, da própria família
da bruxa e confundem-se com situações de franca hostilidade, onde percebe-se o deboche, a
incredulidade, o preconceito, o medo, as ameaças, a acusação de loucura e a violência aberta. As
acusações externas oriundas da família e/ou amigos são a suspeita de satanismo e de que a bruxa
lide “com coisas pesadas” ou “feitiçaria braba”. O medo, o preconceito, o deboche e a
incredulidade também podem fazer parte da reação da família frente à descoberta de que um de
seus membros é adepto da bruxaria. Estas reações se mantêm ou não com o tempo.

“O meu padrasto sabe e morre de medo. Acha que eu lido com umas coisas
pesadíssimas.” (Vanessa)

“A minha mãe às vezes diz que eu cultuo o demônio. A minha própria família, tem uma
parte da minha família que... é... fala horrores de mim e pra mim. Tios. Tem a ala
crente da família.” (Ana)

“Segregação social, é a pior, na própria família. Você é tida como uma pessoa louca,
as crianças não podem chegar perto de você porque os adultos não confiam em você
porque você é bruxa e eles acham que você vai fazer algum mal.” (Edna)

“Alguns temem, né. Eu passo na rua e alguns aqui olham assim: ‘mexe com ela não;
faz feitiço’.” (Adriana)
153

As hostilidades sofridas por pessoas desconhecidas da bruxa tomam outras características


que aquelas da família e amigos. As bruxas mais expostas ao público, aquelas que aparecem em
programas de televisão ou apresentam-se publicamente como bruxas, são as mais suscetíveis a
ataques violentos ou ameaças.

“A Confraria do Garoto, na Rua da Carioca, queimou uma bruxa de palha com a


cabeça de abóbora: ‘vamos queimar as bruxas do mundo, vamos queimar todo o mal,
não sei o que’. [E existe o] Deboche, tipo assim: e aí, estacionou a vassoura? De uns
cinco anos pra cá, eu comecei a dar entrevistas em televisão sobre o [sabá de]
Samhain. Todo Samhain, que é Halloween nos Estados Unidos e aqui é [o sabá de]
Beltane, sempre pedem pra dar entrevista. Então, desde aí, começaram, porque lá tem
meu número de contato e as pessoas ligam, e geralmente liga um fanático, crente,
alguma coisa assim, esses loucos que tem por aí, né, ligam também. Só que isso tudo eu
sempre levei numa, tipo assim, é falta de cultura, né.” (Carla)

“Já cuspiram em mim. Eu estava andando na rua e uma pessoa de um ônibus que
passava cuspiu em mim. A pessoa gritou: ‘bruxa maldita!’ e cuspiu.” (Ana)

De um modo geral, as bruxas lidam com estas situações com mecanismos de defesa como
o contra-ataque e estratégias para impedir possíveis problemas. O contra-ataque consiste em
categorizar o acusador – seja ele da família ou não – como uma pessoa preconceituosa, ignorante,
analfabeta, fanática, louca, crente ou com “falta de cultura”.

“[Ela, a mãe, diz que cultua o diabo] porque ela é uma preconceituosa, e não entende
nada, uma pessoa analfabeta, né. Só existe a verdade dela e nenhuma outra mais.”
(Ana)

“Mas é um tipo de preconceito. Mas ela, por exemplo, coitada, é uma ignorante. É só
o que eu posso dizer pra ela. Fico com pena dela porque ela não sabe o que está
falando. Fala de uma coisa que não tem o menor conhecimento, né.” (Cíntia)
154

As estratégias de defesa são o silêncio quanto à condição de bruxa, a discrição na


vestimenta e a procura por empregos onde a prática da bruxaria não traga problemas.

“Eu, sinceramente, eu me reservo muito no dia-a-dia a sair às ruas. O máximo que eu


faço é levar esse pentagramazinho. Uma coisa discreta.” (Carla)

“No trabalho, se eu acho que não é conveniente falar, eu não falo, entendeu? Em geral,
eu opto sempre por trabalhar em lugares onde eu possa ter a minha liberdade
religiosa.” (Ana)

A bruxaria em família

Como vimos acima, afirmar que se possui antepassados bruxos pode tornar a bruxa alvo
de desconfianças. Contudo, a grande maioria de nossos entrevistados declara algum parente como
sendo bruxo. Na verdade, são sempre mulheres que são apontadas como bruxas. Podem ser tias,
tias-avós, avós, irmãs, a mãe ou mesmo antepassados mais longínquos. Excepcionalmente,
homens também podem ser apontados como bruxos, mas o são normalmente em ocasiões
especiais: quando há um pai cigano, por exemplo, ou um antepassado mítico. Carla, uma das
entrevistadas, reformulou sua árvore genealógica de modo a fazer-se descendente - segundo ela -
do primeiro rei da Espanha, uma figura mitológica ligada ao paganismo europeu pré-cristão. Ela
também vinculou sua família ao aparecimento da bruxaria no Brasil, por volta da década de 40.
Como bem sabemos, a bruxaria - pelo menos a bruxaria européia - existe no Brasil desde a
chegada dos primeiros degredados de Portugal por motivo de bruxaria, na época da Colônia
(SOUZA, 1989).
Outros entrevistados não demandam parentesco tão nobre, mas trabalham com a hipótese
de que determinados parentes sejam bruxos, não no sentido da bruxaria wicca, mas no sentido de
terem dons e/ou conhecimentos especiais que as definiriam como bruxas.

“Minha mãe sempre foi meio bruxa, mas ela sempre ficou quieta, na dela e tal. A
minha avó, a mãe da minha mãe, era bruxa, bruxa, bruxa, bruxona. Ela botava carta.”
(Carla)
155

“Bruxas, muitas. Sem saber, totalmente inconscientes. A minha avó é uma bruxona
[mas] ela não tem noção do poder dela. A Marta, a minha irmã [é bruxa]. Minha mãe.
Não adianta você mentir pra ela, ela sabe exatamente o que está passando na sua
cabeça. A mãe da minha avó é profundamente católica, mas era uma católica muito
bruxa. Achei na caixinha de carta dela vários feitiços com cabelo, com laço. A avó da
tia Dora, a mãe da tia Dora conversava com os espíritos o dia inteiro. Essa foi a bruxa
mais consciente mesmo. E era benzedeira.” (Edna)

A bruxaria em família, no entanto, não se limita aos antepassados. As entrevistadas que


têm filhos declaram, muitas vezes, que suas filhas são bruxas, exceção feita a Vanda, que declara
que, embora sua filha tenha dons, é o filho quem seria bruxo. O filho dela, entretanto, freqüenta
um centro de umbanda. No caso de Adriana, embora tenha apontado algumas irmãs como
possíveis bruxas, ela recusa a possibilidade de bruxaria aos filhos. Soubemos alguns meses após
realizada a entrevista, através de nossa informante, que Adriana montava um coven em Porto
Novo, onde reside, do qual fazia parte sua filha.

“Eu acho até que [minhas filhas] já são [bruxas]. Inclusive, né, a Daniela, que é a mais
velha, porque quando eu me iniciei, eu estava grávida dela, né, então ela já nasceu
bruxa. Ela já recebeu, é, a ordenação dentro do meu ventre, né.” ( Ana)

“Minha filha é uma bruxa. Ela vai ser uma bruxa. Ela nasceu bruxa, ela tem o dom de
bruxa, e se ela vai querer ser uma bruxa ou não, ela vai escolher sozinha.” (Cíntia)

Por que mulheres, em sua maior parte, são as indicadas como possíveis bruxas? Os únicos
casos que rompem a regra são o de Ana, Vanda e Carla. A primeira aponta o pai como sendo
bruxo, mas convém lembrarmos que ele tinha origem cigana, e talvez isso constitua um dado na
formação dessa identidade de bruxo tanto quanto seus possíveis dons, já que é parte do senso
comum a idéia de que os ciganos são praticantes de magias. No segundo caso, o filho homem é
apontado como bruxo porque foi, de livre vontade, freqüentar um centro de umbanda. No terceiro
caso, o antepassado mítico se torna bruxo por suas características especiais de herói mítico.
156

Somos levados a manter nossa hipótese de que a bruxaria é um espaço de construção de uma
identidade feminina. Ela não é um espaço restrito a mulheres, mas locus privilegiado de
construção de uma identidade feminina, e com isso leva a que as bruxas visualizem em sua
família uma estória de bruxaria, ligada prioritariamente ao feminino, que articula uma identidade
global e dá sentido à identidade de bruxa. Já vimos em Frazão e veremos nas bruxas internautas
como a existência de outras bruxas na família é um ponto importante do discurso das bruxas.
Uma outra questão surge. Como esses parentes são reconhecidos como bruxos? Como
reconhecer uma bruxa? Afinal, o que faz de uma pessoa uma bruxa? Seguindo o discurso dos
entrevistados, percebemos que seis deles acreditam que a bruxaria é um dom, constitui um poder
inerente à bruxa, dado desde sempre e que ela possui desde o seu nascimento. Uma entrevistada
acredita na herança familiar como um dado importante da obtenção desse dom. Dois
entrevistados afirmam que todas as pessoas são bruxas em potencial, bastando apenas
desenvolver os dons. Outras duas entrevistadas crêem que todas as mulheres são bruxas, pois a
bruxaria seria inerente a elas. Uma entrevistada acredita que a bruxaria é uma escolha entre
desenvolver ou não estes dons (é uma escolha mas também um dom). Uma entrevistada acha que
a bruxa ou o bruxo é simplesmente aquele que lida com magia, não apresentando
necessariamente nenhum dom naturalmente dado. Apenas esta entrevistada não acredita na
bruxaria como um dom, mas como fruto do esforço de aprendizagem da magia. Podemos
observar que a maioria dos entrevistados assume o ponto de vista de que a bruxaria é um dom
que não se adquire, mas de algumas pessoas específicas, com herança ou não. A bruxaria seria,
portanto, inerente, natural, e - por que não? – biológica. Tão biológica quanto a bruxaria Zande
mas, diferente desta, não é apontada como pertencente a um órgão específico do corpo, nem toma
uma forma material específica como a substância-bruxaria (EVANS-PRITCHARD, 1976).

“Quando eu falo bruxa, pra mim é aquela que tem o poder de modificar as coisas. A
minha avó já tinha, minha mãe, minha bisavó. [O poder] nasce com ela. Eu não
acredito que você adquire.” (Vanda)

“É, eu te falei que toda mulher já é. É bruxa por natureza e ela só precisa acender
aquilo, né. Se tem ventre, é bruxa.” (Ana)
157

“Todas as mulheres são bruxas em potencial.” (Carla)

“Na verdade, se você buscar dentro de você o poder interior, você vai descobrir um
dom seu. Uma bruxaria, um potencial dentro de você, que você dá o nome que você
quiser. Paranormalidade, é um potencial, um dom extra-sensorial. A diferença é que
uma tem consciência do que é e a outra não, mas a maioria das pessoas sabe. Eu acho
que as pessoas nascem [bruxas]. Elas só são esquecidas.” (Edna)

O questionamento acerca da natureza da bruxaria nos remete a outra discussão, também


presente no estudo clássico de Evans-Pritchard sobre os Azande: qual a diferença entre o bruxo
que nasce com o dom da bruxaria, e aquele que só é bruxo por praticar magia? Essa diferença é
apenas um choque de pontos de vista entre os entrevistados? A resposta nos parece ser negativa.
Existe uma diferenciação entre a bruxa, a feiticeira, o mago, o xamã, o wiccano. Embora
encontremos na literatura produzida pelos wiccanos um uso comum para os termos bruxa(o) e
feiticeira(o), bruxaria e feitiçaria, nossas entrevistadas formularam uma distinção entre eles. O
feiticeiro seria aquele que faz feitiços. A bruxa, além dos feitiços, buscaria um auto-
conhecimento, estaria lidando ainda com ervas e cura. O mago é um cientista da magia. O
wiccano é aqueles que possui uma ligação religiosa e opera magia, é uma bruxa no meio termo
entre o mago e o xamã. O xamã é um ser puro, passivo às forças do cosmos.
Notemos que as construções são todas feitas de maneira comparativa entre as diversas
categorias criadas pelas entrevistadas. O mago se difere da bruxa em determinados aspectos.
Quando posta em relação ao xamã, a bruxa toma características do mago. É possível notar uma
gradação entre esses três personagens na relação que mantém com o cosmo e os processos
mentais de perceber o mundo. O xamã é aquele mais “puro”, mais ligado à natureza. A bruxa, em
contraste com ele, se torna dotada de “senso crítico”, sujeito que trabalha níveis mentais,
intelectuais, ou seja, ela é menos pura que o xamã. A não-pureza parece se definir na avaliação
do mundo baseada nos processos mentais e intelectuais. O xamã é passivo, é passagem, é
natureza. A bruxa é intermediária entre a humanidade e a natureza, e portanto dotada das
capacidades intelectuais que diferem a humanidade da natureza. Essas capacidades de avaliação e
de “senso crítico” são mal vistas. A bruxa não é mais pura, ela agora é meio sacerdote, meio
mago. Este, por sua vez, ocupa o extremo oposto onde reina a razão, o processo experimental,
158

processo científico. Ele pode não ser ético. Ele não possui uma ética pré-estabelecida a ser
seguida. A bruxa é ética. Ela é um ser religioso, e a religião fornece a ela uma ética a ser seguida.
A idéia central que diferencia a bruxa dos demais praticantes de magia é o arcabouço
religioso. Neste ponto, ela pode ser associada ao xamã. O feiticeiro é que figura como
personagem em oposição. É aquele que se limita a praticar feitiços, sem nenhum conhecimento
que vá além disso. A bruxa procura auto-conhecimento. Em alguns momentos ela pode ser posta
em comparação com o wiccano. Nesta nova correlação, a bruxa passa a ser a operadora de magia,
próxima do feiticeiro. O wiccano é o personagem que assume a devoção religiosa, sacerdotal,
específica da wicca, embora não abra mão do uso da magia.

“A bruxa é uma operadora de magia. Ele quer lá fazer suas curas e mexer com as suas
ervas e fazer seus feitiços. A bruxaria em si é um termo meio genérico, entendeu?
Agora, a wicca especificamente como prática de bruxaria, pra mim, é sim uma religião.
E você pode dizer assim, existem bruxos de todas as religiões, agora, praticante de
wicca, ou seja, aquele que, né, realiza os sabás, que... que cultua o Deus e a Deusa
como imanente e transcendente. Feiticeiro, você compra ali na banca de jornal
‘Simpatias da Juju’, entendeu, e você vira um feiticeiro, saca? Mas bruxo eu acho que é
um processo de auto-descoberta, de auto-aprendizado, de auto-observação.” (Vanessa)

“Na verdade, você pode até ser bruxo sem ser wiccano, tá. O que diferencia o bruxo
wiccano dos outros bruxos é que a gente a gente não só pratica feitiço, né. O que
diferencia é o amor pelos deuses e pela natureza. É a parte devocional. Você pode ter a
ligação religiosa como os wiccanos, como os xamãs, que têm todo um, uma parte
religiosa, como você pode simplesmente ser o bruxo, assim, o feiticeiro, na verdade. E
aí na feitiçaria você não precisa, efetivamente, ter vínculo religioso.” (Ana)

Resumimos em um quadro os atributos dados a cada categoria pelas entrevistadas.


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MAGO BRUXA XAMÃ FEITICEIRO WICCANO


---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
mental mental não compreende
experimental intelectual não qualifica
cientista auto-conhecimento passivo
com ou sem ética ético
não-religioso religioso religioso não-religioso religioso
meio mago, puro
meio bruxo
avaliador não julga
senso crítico não hierarquiza
cura
opera magia feitiço feitiço
intermediário entre
a natureza e a humanidade
Quadro n. 2: Diferenças entre os operadores de magia.

Definidas as categorias, resta perguntar ainda quais são os saberes específicos da bruxa e
quais são os dons que elas possuem que fazem delas bruxas. No discurso das entrevistadas,
alguns dons se tornam comuns, tanto para se definirem como bruxas “desde sempre” quanto para
definir outras pessoas, os parentes incluídos, como bruxos ou ainda como maneira de reconhecer
uma bruxa. Entre os dons destacados encontram-se: vidência ou capacidade de profetizar o futuro
e/ou o passado; intuição; capacidade de ver e/ou se comunicar com seres como espíritos, vento,
fadas, árvores; conhecimento intuitivo, que consiste em saber procedimentos tidos como mágicos
ou típicos de bruxas, feiticeiros ou magos, sem que esses conhecimentos nunca tenham sido
ensinados à pessoa em questão; projeção astral; poder espiritual; campo áurico diferente; poder
de matar alguém com o olhar; poder de mudar o curso do destino; poder de modificar situações;
poder de interferir na matéria (desligar um carro, fazer alguém cair ou movimentar a cama apenas
com alterações de humor ou com a força exclusiva da vontade); potencial de cura; posição
160

intermediária entre as forças naturais e a humanidade; poder de evitar doenças, confrontos e


problemas; percepção energética; magia.
Como saberes específicos da bruxa, através das entrevistas e da literatura específica sobre
o assunto, podemos destacar: leitura de oráculos, conhecimento fitoterápico e mágico sobre ervas
e plantas em geral, conhecimento terapêutico e mágico sobre pedras e cristais, conhecimento
terapêutico e mágico sobre as cores, confecção de perfumes, poções e talismãs, realização de
feitiços e magia, leitura de oráculos, interpretação de sonhos, mitologia, ritualística da wicca.
Alguns outros conhecimentos esotéricos específicos podem também ser utilizados dentro do
manancial de conhecimento oculto das bruxas, mas os listados acima foram aqueles que
apareceram em entrevistas e livros mais claramente com alguma utilidade prática além de
representar conhecimento formal.

Feitiços

Como percebemos acima, bruxas fazem feitiços. Nossas entrevistadas não são exceção.
Poucas fazem feitiços para outras pessoas. Nenhuma delas, contudo, cobra qualquer importância
em dinheiro ou espécie como pagamento pelo feitiço. A maioria já fez feitiços para outras
pessoas, pelo menos uma vez, mas poucos assumem que essa seja uma prática comum. Para si
mesmos elas fazem feitiços também: para atrair dinheiro, para purificação e proteção, para atrair
amor, para o tempo, para equilíbrio interior. Para outras pessoas, ou em conjunto com elas, faz-se
feitiços para ganhos materiais, para amor/auto-estima, para fertilidade, para proteção e para cura.

“Eu fiz um feitiço pra ganhar na Raspadinha. Eu acabei ganhando na Raspadinha:


outra Raspadinha! Pô cara, a maioria esmagadora era de proteção. Eventualmente
rola um feitiço sim pra amor, rola um feitiço sim pra dinheiro.” (Vanessa)

“Ontem eu fui fazer uma poção do amor e fiz um doce pra ser distribuído em uma
empresa. Os feitiços que eu mais pratico é de cura e de amor. [Para mim] é só banho,
só limpeza. A não ser esse que eu fiz de amor. O Ronaldo é mais feitiço pra dinheiro.
Ele é bom nisso.” (Edna)
161

Os feitiços de amor, apesar de praticados, têm suas regras próprias e parecem ser
proibidos, ou pelo menos mal vistos. Nenhum entrevistado admite jamais fazer ou ter feito, para
si ou para outro, feitiços de amor para conquistar uma pessoa específica. Pedidos de amigos
interessados não faltam, mas a bruxa se exime. Em alguns casos, um perfume para levantar a
auto-estima parece ser o suficiente para que o solitário consiga um namorado.

“Não faço feitiço pra amor. Acho que feitiço de amor é uma coisa meio ingrata. Um
dia você pode acordar e dizer assim: puxa, eu enfeiticei esse cara, ele está comigo por
causa da magia e não por causa de mim. Eu costumo fazer um perfume. Eu falo pras
pessoas que é pra amor, mas na verdade é um perfume pra auto-estima. Não tem poção
mágica pra amor melhor do que perfume pra auto-estima.” (Adriana)

Embora incorrendo em tabu, os feitiços de amor são muito apreciados por algumas das
entrevistadas, como Adriana e Edna. Frazão lançou um livro sobre feitiços e rituais para amor
(Manual Mágico do Amor, 1995). Este é sempre o livro mais lembrado pelas entrevistadas
quando perguntadas se leram a obra de Frazão. É considerado um livro belíssimo, bem escrito,
quase um livro de poesia. Neste livro, o feitiço destinado a conquistar um homem ou mulher
específicos não é condenado, pelo contrário, é encorajado, mas desde que o que mova esta
conquista seja o amor e não a dependência financeira, a vingança, ou o malefício. O feitiço de
amor só deve ser usado em nome de algum amor e sempre com o cuidado de não machucar
ninguém.
Dois casos nos chamam atenção entre as entrevistadas. Duas bruxas afirmam que
realizaram um feitiço de amor buscando um companheiro ideal. Uma delas estava se separando
do primeiro marido, a outra procurava um relacionamento. Em ambos os casos, o feitiço não
tinha como alvo nenhum homem em particular, mas características específicas eram exigidas do
futuro par. Nos dois casos, ocorreu um relacionamento com homens com as qualidades descritas
no feitiço, relacionamentos estes que, em poucos meses, se transformaram em casamentos.

“E eu resolvi que ia fazer um feitiço de amor, de noite, pra trazer a pessoa ideal pra
mim. E eu comecei a pedir coisas assim imaginárias, de brincadeira, tipo: eu queria
162

um homem de cabelo comprido, um homem que tocasse violão, coisas assim que já não
eram mais o pedido central da coisa. E veio, né amor?” (Edna)

“Quando eu cheguei em casa, eu olhei pra ele [o ex-marido] e falei assim, com um
ódio. Eu olhei pra ele de frente pro meu espelho e falei pra ele: a partir de hoje eu vou
estar com um homem que seja do meu nível social, cultural e intelectual, que tenha dois
olhos azuis, que seja judeu e que goste muito de bruxa, que me entenda, que seja
compatível comigo, tenha quarenta anos, solteiro e sem filhos, de uma família rica. E
comecei a gritar na frente do espelho com um ódio, um ódio, e falei: daqui a dois meses
eu estou com ele. Isso foi dia doze de julho. O Marcelo [atual marido] é louro de olhos
azuis, tem quarenta anos, solteiro. Ele diz que no primeiro dia se apaixonou por mim.
Dia vinte e nove de agosto a gente ficou junto. Aí no dia trinta de agosto, ele me pediu
em casamento e eu aceitei.” (Carla)

Embora os feitiços façam parte da bruxaria e no senso-comum sejam mesmo tomados


como sua última finalidade, no discurso dos entrevistados é possível perceber uma diferenciação
entre a prática de feitiços e o objetivo da wicca. Como religião, a bruxaria não se destina
exclusivamente à preparação de feitiços, daí surgir a distinção com o feiticeiro, vista
anteriormente. Os feitiços, contudo, fazem parte dela sem dúvida alguma. O uso do feitiço como
meio de se atingir um objetivo é escolha única e exclusiva do bruxo(a) em questão. Chama a
atenção os feitiços de proteção: eles indicam que ataques mágicos são desferidos e precisam ser
rompidos. O feitiço de proteção é, como o nome diz, uma maneira de se proteger de ataques
mágicos de terceiros e uma maneira de quebrar os feitiços lançados contra si. Os banhos de ervas
podem ter também essa finalidade. Como no incenso, a finalidade do banho depende das
propriedades das ervas utilizadas. Podem ser preparados banhos para proteção, para atrair o amor
ou o dinheiro, para acalmar, para limpeza da aura, enfim, para uma infinidade de objetivos.

Concepções sobre masculino e feminino

Sobre as concepções de gênero, o discurso das entrevistadas apresenta, como a literatura


escrita a respeito da wicca, diferentes atributos para masculino e feminino. Na wicca, homens e
mulheres são pensados como tendo atributos inerentes a cada gênero, próprios a cada essência.
163

Esses atributos devem ser mantidos. A mulher que se masculiniza ao ingressar no mundo
competitivo do trabalho não é bem vista. Ela deveria manter suas características femininas. Por
outro lado, como masculino e feminino são complementares, um mundo visto como
essencialmente masculino ou o sonho de um mundo essencialmente feminino podem não ser bem
recebidos. É a integração entre esses opostos complementares que encerra a harmonia. A
sobreposição de qualquer um deles acarretaria um desequilíbrio. É sobre esse desequilíbrio atual,
com o pólo masculino mais em voga, que recaem as críticas das bruxas.

“O mundo ainda é muito masculino e as mulheres ainda são profundamente


masculinas. Elas não conseguem se manifestar num modelo que não seja masculino. A
minha briga com o feminino é exatamente que a mulher resgate o feminino original
dela, sem usar o modelo masculino.” (Edna)

Ao ser perguntada sobre qual é esse modelo masculino, Edna reforça a idéia do homem
como o guerreiro, o pólo de força, de agressividade, de razão, de destruição. Essa perspectiva fica
clara também quando a entrevistada diferencia o matriarcado do patriarcado e demonstra como os
esquemas usuais de oposição e complementaridade entre masculino e feminino estão presentes na
wicca, mas com o pólo feminino recebendo a valoração positiva.

“[O modelo masculino é a] Competitividade, racionalidade, supressão das emoções, [a


mulher masculina é] a mulher que é auto-suficiente o tempo todo, só trabalha, ela quer
ser única para ela mesma, ela é guerreira. Mulher para ser respeitada pelos homens,
ela bota logo no peito que é guerreira: eu sou macho. Então elas pensam que estão
lidando com o feminino delas, mas não estão. Elas estão lidando com o masculino
delas. E essa coisa das mães também, da mulher absorvendo o papel do macho e da
fêmea, elas são as mães, são as psicólogas, são provedoras, ela está sobrecarregada,
ela não consegue mais ser feminina. Ela tem até que ficar forte fisicamente para
agüentar o dia-a-dia dela. Acho que é por isso que a mulherada está entrando muito
para malhação, senão elas não agüentam. Não tem condição, elas são tudo, tudo,
então não dá para viver num sistema desse. Ou os dois vão dividindo todas as
manifestações, desde a maternidade e paternidade... Está invertendo os papéis, mas o
164

inverter os papéis também não é legal. O ideal seria a divisão das obrigações. A
mulher hoje em dia não sabe mais ser condescendente. São agressivas, são
profundamente críticas e são profundamente desagradáveis quando elas querem, no
sentido de destruir as outras pessoas. Elas usam a sabedoria feminina de perceber a
fraqueza do outro não mais para curar, mas para destruir.” (Edna)

Se o homem é o pólo de força e razão, como vimos, a mulher não deve, no entanto, estar
submetida a ele, até mesmo porque os atributos do feminino são vistos como positivos. É no
patriarcado, segundo Edna, que reside a fórmula da submissão feminina. Se a mulher não deve se
masculinizar, deve menos ainda tornar-se submissa ao homem. O mundo moderno constitui uma
armadilha para a mulher.

“O mundo é muito patriarcal. Eu sou muito patriarcal, eu me vejo sendo patriarcal


quando eu cuido do Ronaldo. Eu tento o tempo todo lutar contra isso, mas é uma coisa
que está tão arraigada em mim que, quando eu me vejo, eu estou fazendo a comida
dele na hora, eu estou fazendo o prato dele. Muito mais por uma questão de carinho
do que por obrigação, é verdade. Não por uma questão de que ele me exija isso, nada
disso. Por carinho, mas é um carinho típico de, uma coisa servil, né, de macho na
frente. Sem querer você faz. Eu sempre luto comigo mesma o tempo todo.” (Edna)

O patriarcado é visto como o sistema que oprime a mulher, oprime os mais fracos. Ele é a
“lei do mais forte”. Neste sentido, é individualista, pois não cuida dos “mais frágeis”. A mulher é
colocada neste pólo de fragilidade. A individualidade aparece como um valor negativo. O ideal é
a coletividade do matriarcado, é a vida em comunidade onde uma individualidade não pode
suplantar o coletivo. O tempo de hoje é o do patriarcado, o da individualidade. A modernidade é
individualista e, como veremos adiante, a wicca é fruto dessa modernidade individualista e uma
reação a ela.
O relato de Edna demonstra que, na wicca, os papéis de gênero estão bem marcados, tanto
de maneira complementar quanto valorativa. Embora pareça um retrocesso a padrões tradicionais,
indica que os papéis de gênero devem estar marcados com atributos valorativos específicos em
165

que os atributos femininos são os mais positivos. Contudo, eles não devem ser dominantes, uma
vez que os atributos masculinos lhes são complementares.

“Se não tem polaridades opostas, não tem movimento. Se não há dualidade, não há
movimento, há estagnação. Não adianta fazer um mundo feminino porque vai ficar um
mundo profundamente emocional. Você não pode ser profundamente energética,
dominadora e forte. Você não pode ser profundamente fraca, sensível, emocional,
instável, histérica. Os homens, ao invés de chorarem desesperadamente, botar tudo
que é neura para fora, eles brigam, ficam agressivos. Isso não é a maneira feminina. A
maneira feminina é chorar, sabe, enlouquecer um pouco, botar para fora, mostrar a
frustração.” (Edna)

As representações de masculino e feminino passam por uma oposição complementar. O


pólo masculino é o pólo da força, da agressividade, do domínio, da opressão, da energia, da
atividade. O pólo feminino é o da emoção, da loucura, da sensibilidade, da instabilidade, da
passividade. Passividade e atividade passam, então, a constituir um pólo de oposição. O homem
representa a força, o Deus que insemina a Deusa, o sol que traz vida á terra. A atividade passa a
ser uma qualidade inerente ao masculino e tudo que está numa posição ativa pode ser vista como
masculino em essência. Do mesmo modo, a passividade da terra que precisa ser plantada passa a
ser a passividade da mulher e da Deusa, relacionada à Lua, às águas, ao domínio emocional.
Tudo que está numa relação de passividade passa a ser visto como feminino. Aquele que doa, que
fornece, que age, é masculino. Aquele que recebe, que está numa atitude passiva, é feminino.

“Entrou num ritual, você tem que puxar a energia e emitir a energia, mesmo que
esteja trabalhando só com a energia feminina. O simples ato de lançar alguma coisa no
cara é masculino, então sempre vai ter.” (Ronaldo)

O discurso dos entrevistados deixa claro essa divisão de mundo entre aquilo que é
masculino, que é ativo, que é movimento, e aquilo que é feminino, passivo, contemplativo. As
posições femininas e masculinas podem ser ocupadas por homens e mulheres, é a atitude de
passividade ou atividade que vincula a idéia de uma posição feminina ou masculina.
166

O feminino é visto, ainda, como agente civilizador. Neste caso, enquanto o masculino
assume os atributos de destruição, e desta forma se torna próximo à idéia de natureza sem
controle, o feminino assume os atributos do pólo oposto, a cultura e a civilização. Mas a
civilização no sentido feminino não é a mesma civilização que o masculino constrói. Atuando
com valores distintos, estes dois pólos constroem “culturas” distintas. A civilização masculina é a
que vivemos hoje, a do patriarcado, do domínio da natureza pela técnica e a ciência. A civilização
feminina é a da arte, da beleza.

“O feminino civiliza. E aprimora. O feminino traz a sutileza, a arte, a beleza, o


refinamento das coisas. Sem o feminino não existe refinamento, uma ciência da
estética, e aí aquilo me incomodava.” (Edna)

Arte e técnica como pólos opostos e atributos respectivamente feminino e masculino não
entram em choque com os demais atributos acima apresentados. O feminino mantém sua posição
valorativa positiva enquanto o masculino mantém sua posição valorativa negativa. A sociedade
da arte traz os valores do feminino: a arte não domina a natureza, ela expressa a realidade sem
modifica-la como a técnica, ela traduz a beleza e depende da sensibilidade.

Quem são as bruxas entrevistadas?

O perfil das bruxas entrevistadas se afina com aquele apresentado por diversos autores
(MAGNANI, 1999; TERRIN, 1996) para o universo consumidor da Nova Era: os praticantes da
Nova Era são majoritariamente habitantes urbanos do Ocidente, com altos graus de educação
formal e acesso a informação. O entrevistados têm formação superior completa ou incompleta, ou
estão se encaminhando para a formação superior, como no caso de Ronaldo, que irá prestar
vestibular. São todos residentes em bairros de classe média do Rio de Janeiro, à exceção de
Adriana. Têm acesso a informação, pois vimos que revistas, livros, livrarias e a internet são os
meios preferenciais para conhecerem outras bruxas e ter contato com a wicca.
A Nova Era se apresenta também nas escolhas profissionais: embora metade dos
entrevistados mantenha profissões estreitamente vinculadas ao universo esotérico da Nova Era,
podemos agregar a esta conta mais duas entrevistadas. A Dança do Ventre que Edna leciona é
167

uma atividade também do mercado Nova Era, ensinada nos espaços esotéricos espalhados por
toda a cidade, tanto quanto em academias de dança. A psicologia de Vanda, do mesmo modo, que
se define como junguiana, está de acordo com a preferência dos new agers, visto que Jung é um
autor muito citado entre eles, como pudemos perceber. Desta forma, sobe para seis o número de
bruxas que mantém atividades relacionadas à Nova Era, por menos que gostem de ser
confundidas com este segmento.

Quanto ao discurso das bruxas, percebemos que o dom constitui indício legitimador da
condição de bruxa. O dom de jogar cartas, a mediunidade, a intuição, tudo isto é indício que leva
a caracterizar uma conduta desviante propícia à prática mágica (MAUSS, 1976). Ao mesmo
tempo, a influência espírita se faz presente em alguns perfis. Muitas vezes ela é o começo da
busca por um caminho mágico. Veremos adiante como a influência do espiritismo pode ser forte
entre as bruxas brasileiras. A própria concepção de que a religião não se mistura com dinheiro, de
que a bruxa não cobra pela confecção de um feitiço, de que age imbuída de amor ao próximo e
caridade, de que as bruxas verdadeiras não cobram para ensinar a bruxaria está ligada a uma
concepção fortemente influenciada pelo espiritismo e suas noções de dom, mediunidade,
caridade. O dinheiro, como elemento poluidor, desvirtua o dom, que é talento inato. Este dom,
ganho sem esforço, deve ser empregado para promover o bem ao próximo. Ele deve ser
desenvolvido, como na linguagem espírita, para atender ao próximo e a si mesmo. Contudo, nem
todas as bruxas se vêem em posição de atender ao próximo, embora tenhamos visto que algumas
já fizeram feitiços para ajudar amigos.
O ganhar a vida com a leitura de oráculos e demais conhecimentos ocultos não é visto
pejorativamente. Por um lado, constitui conhecimento, e não dom, embora possa ser
conhecimento desenvolvido intuitivamente. Por outro lado, não é prática de magia, pela qual não
se cobra em hipótese alguma. Estabelece-se assim uma brecha para a ocupação integral como
bruxa, para a construção da profissão de bruxa. O conhecimento pode ser passado, pois o dom é
inato, mesmo que haja uma ética sobre qual conhecimento está passível de cobrança material e
qual não está. O que tange ao dom não é cobrado. O que tange o conhecimento, pode ser. O
feitiço, medida da força mágica da bruxa – medida do dom -, não é cobrado, é dado àqueles que
se ama, uma forma de caridade e cuidado ao próximo. É neste sentido que a ética da bruxa
enquanto profissional se desenvolve.
168

Sobre as diferentes concepções que as bruxas entrevistadas guardam acerca do wiccano, o


feiticeiro, a bruxa e o xamã, cabe ainda uma observação. Como vimos, para Frazão o “primitivo”
está em oposição ao “civilizado”. Para as bruxas entrevistadas, especialmente Edna, o xamã é o
pólo primitivo, aquele que é todo passagem, anulação do ego, natureza. Ele apresenta as mesmas
qualidades que o feminino apresenta na wicca, qualidades pelas quais ele foi mais valorizado. O
mago é o cientista, e recebe a mesma valoração negativa que o civilizado cientificizado recebe no
discurso de Frazão. A natureza é a magia, enquanto a ciência é a civilização. A bruxa aparece
entre estes dois pólos extremos, como um intermediário. Reportando-nos ao quadro acima,
veremos que ela porta propriedades dos dois pólos. Ela toma, na verdade, o melhor de dois
mundos: tem a consciência que apenas a razão pode trazer, mas mantém o contato com a
natureza, a fonte da magia. Ela não é um ser mental e obtuso, nem um primitivo inocente, um
passivo sem vontade e sem discernimento. A bruxa é o ser que opera magia e discerne entre o que
é e o que não é ético. Responde-se, desta forma, porque ser uma bruxa e não um xamã, já que
aquele é mais próximo ao que o feminino parece encarnar na wicca. De fato, o xamã é
apresentado com uma forma tão passiva, que nele quase não há vontade, como no mago só há
vontade. A bruxa se torna o equilíbrio.
De qualquer forma, é interessante perceber como as concepções das entrevistadas, neste
sentido, se alinham com aquelas de Frazão. Apenas em Frazão o primitivo não é este ser
totalmente passivo, sem razão nem vontade. Os pólos não precisam de intermediário. A bruxa
descrita por Frazão tem as mesmas qualidades que a bruxa descrita pelas entrevistadas, apenas as
concepções do primitivo/xamã é que se tornam relativamente diferentes. Percebemos, portanto,
um alinhamento nestes diferentes discursos.

FORMAÇÃO E CONCEPÇÕES DE COVEN.

Como vimos anteriormente, o coven é o grupo de prática ritual wiccana.


Tradicionalmente, como apresentado nos livros de wicca (STARHAWK, 1989; FARRAR, 1999), é
formado por um grupo de 13 pessoas sob o comando de uma Alta Sacerdotisa e um Alto
Sacerdote. Arranjos mais modernos, contudo, viabilizaram diversas formas de liderança que não
169

se expressam exclusivamente através destas duas figuras. A liderança pode ser estabelecida em
sistema de rodízio, por tempo determinado, ou as tarefas podem ser delegadas a cada membro do
grupo conforme a ocasião, ou as decisões podem, ainda, ser tomadas em conjunto por todos os
membros do coven. Modernamente, existem tantas formas de se organizar as tarefas e a liderança
de um coven quanto a criatividade de seus membros permitir. As tradições da wicca podem vir a
preferir uma ou outra forma de organização.
O número de participantes de um coven também sofreu algumas modificações do que era
tradicionalmente a regra. Atualmente, um coven pode ser formado com um mínimo de três
pessoas e não há mais um número máximo de participantes (LAGÔAS, 1998). Tradicionalmente, o
número de homens e mulheres deveria ser o mesmo, de modo que se formassem duplas, mas hoje
isto não é mais uma regra (FARRAR, 1999). Como podemos perceber, muito do que é tido como
tradicional na bruxaria wicca foi adaptado a padrões mais flexíveis. O tradicional, neste caso,
remete normalmente às informações históricas sobre bruxas européias da época medieval, ao que
foi escrito por Gerald Gardner - para alguns, o fundador da wicca, para outros apenas
disseminador - e ao que foi aceito como ideal pelas diversas tradições wiccanas.
Em campo, pudemos observar que o desejo de participar de um coven é forte nos bruxos
iniciantes. O aprendizado feito normalmente através de fontes escritas, como livros e sites de
internet, desperta no iniciante a vontade de entrar em contato com outros bruxos, praticar em
companhia destes e aprender com eles o que não está acessível através destas fontes. Muitos são
os que acessam as listas de discussão da internet à procura de outras bruxas de sua região do país
e à procura de um coven que possa recebe-los e operar sua instrução formal na wicca, com os
devidos ritos iniciatórios. Ao mesmo tempo, a literatura produzida pelas bruxas dissemina a idéia
de que o coven não é apenas um espaço de culto ou um grupo de estudos religiosos. Ele é mais, é
uma família na qual se convive “em perfeito amor e perfeita confiança”. Este mote encerra todas
as atividades rituais de um coven (STARHAWK, 1989), e afirma a interação daqueles presentes em
bases mais íntimas do que se poderia supor.
Entrar em um coven não é tarefa fácil. Sendo um grupo que deve trabalhar em amor e
confiança perfeitos, o coven se torna, na maior parte das vezes, um grupo fechado que só
criteriosamente aceita novos membros. Estes, segundo as bruxas, devem procurar o coven e não o
contrário. Isto significa que um coven não costuma procurar por novos membros. Ele apenas
aceita ou não aqueles que o procuram. Mas como um grupo fechado, sua existência não é
170

alardeada, o que torna muito difícil a tarefa de encontrar um coven propício a aceitar novos
membros. Os covens acabam se formando, então, de duas formas diferentes: ou por um grupo
fechado de amigos ou por pessoas que desejam exclusivamente estar em um coven mas que não
tinham laços anteriores de amizade.
É importante salientarmos aqui que o coven é um grupo constante de prática ritual e
estudo. Um grupo reunido ao acaso para a celebração de um único ritual qualquer não é
considerado um coven. Além do coven, há uma outra organização wiccana, que difere deste,
chamada círculo. O círculo é um grupo de estudos que troca informações sobre qualquer assunto
relacionado à wicca, de oráculos e artes divinatórias às terapias alternativas, mitologia, magia
cerimonial ou teosofia, qualquer assunto que o grupo se disponha a estudar. O que diferencia o
círculo do coven é a ausência de prática ritual sistemática (STARHAWK, 1989).

A partir da literatura produzida pelas bruxas e de nossas observações de campo, notamos


que nem todas as bruxas participam de covens. Enquanto víamos algumas almejarem
ardentemente o ingresso em um deles, outras afirmavam que a prática em grupo não era seu ideal.
Na wicca, há a possibilidade de prática solitária, portanto o ingresso em um coven não é
inevitável. Porque, então, seria tão importante a experiência de pertencer a um coven? O que o
pertencimento a um grupo significa para estas pessoas e porque é tão buscado?
Como vimos, na wicca a estrutura organizacional tradicional de um coven é muito
representativa sobre as concepções de gênero que a bruxaria moderna guarda. A partir destas
observações, sentimos a necessidade de entender qual o processo maior de formação e
funcionamento de um coven. Não houve oportunidade, durante a realização desta dissertação, de
acompanharmos de perto as atividades de um coven, mas foi possível reconstruir o perfil de um
grupo a partir das narrativas dos três personagens mais importantes do drama. É a partir de seus
pontos de vista que o perfil de um coven será apresentado a seguir, desde o seu surgimento até a
sua desagregação e os acontecimentos posteriores entres os membros do grupo.

O grupo do coven

Segundo relato de três integrantes, o coven surgiu em outubro de 1998. O processo de


formação do grupo durou cerca de dois meses até o estabelecimento oficial do coven. A data dada
171

pelos membros como a data de início é, na verdade, o mês em que o grupo executou seu primeiro
sabá. Ao todo, três sabás foram celebrados. Durante este período, o grupo foi se desagregando
internamente até a declaração de que o coven estava desfeito. Este processo de desagregação foi
lento e dolorido para o grupo, o que se refletiu no fato de cada integrante entrevistado fornecer
uma data diferente para o fim do coven. As entrevistas foram realizadas separadamente com cada
um, em ocasiões diferentes.
Vejamos, primeiro, quem eram os participantes do coven, que posições ocupavam neste
drama e até onde acompanharam o grupo:

1) Vânia – na época com 23 anos, era uma das mais velhas. Morava no Lins com a mãe e o
padrasto. Trabalhava como funcionária pública e estudava Direito na UERJ.

2) Maurício – mais novo do grupo, tinha quinze anos. Completou 16 ainda dentro do coven.
Morava com a mãe, a tia e a avó no Lins. Era estudante.

3) Valter - com dezoito anos, morava em Olaria com a mãe, a tia, o irmão e o primo. Estava
estudando.

Estes três são os narradores. Para Vânia, o grupo se dissolveu em abril de 1999. Para
Maurício, foi entre fevereiro e março de 1999. Para Valter, a data é agosto de 1999. A dificuldade
em estabelecer a data exata do fim do grupo reflete, como confusão interna e subjetiva, a
confusão real e concreta que os membros experimentaram quando da desagregação do coven. A
data do começo do grupo é assinalada por um ritual, portanto não há dúvidas. A data do fim, por
outro lado, é o ápice de um processo lento, que se inicia assim que o grupo é formado, e só
termina depois que ele é desfeito formalmente, quando as relações entre os membros se tornam
mais difíceis e algumas são definitivamente rompidas.
Uma vez realizado o primeiro ritual do coven, Vânia, Valter e Maurício se firmaram como
figuras proeminentes, e se transformaram, segundo os três, em lideranças. Essa liderança foi
disputada palmo a palmo entre eles, de maneira cada vez mais acirrada, com o tempo. Eles eram,
além disso, os únicos que compareceram a todos os três sabás realizados pelo coven. Os demais
integrantes aparecem em seus relatos como figuras de um “eixo secundário”, nas palavras de
172

Valter: compareciam, com maior ou menor freqüência, aos rituais e reuniões do grupo e se
imiscuíam em maior ou menor grau nas acaloradas discussões teóricas que travavam na época.
Não exerciam, contudo, nenhum tipo de liderança, o que marcava seu papel secundário. São estes
sujeitos que, ao abandonarem paulatinamente o grupo, colocam em cheque suas bases e causam o
enfrentamento de nossos três narradores com a realidade: o coven estava se desagregando.
Vejamos estes personagens secundários antes de entendermos como se deu o processo.

1) Mara e Sílvio – ambos com 18 anos, eram um casal de namorados. Aparecem nos relatos antes
da formação oficial do coven. Mara trabalhava como secretária e Sílvio estava desempregado.

2) Joana - cada narrador lhe dá uma idade diferente: teria entre 15 e 17 anos. Morava em Icaraí,
Niterói, com a família.

3) Douglas – com 18 ou 19 anos, morava no Méier com a família. Era estudante.

4) Wagner - tinha 20 anos e morava na Ilha do Governador com a tia. Estudava Farmácia na
UFF.

5) Santos – o mais velho do grupo tinha entre 22 e 26 anos, segundo os narradores. Morava com
a mãe e o irmão em Bonsucesso ou Higienópolis. A princípio desempregado, ainda fazia parte do
coven quando passou a trabalhar no serviço de atendimento ao cliente de uma grande seguradora.
Estudava Letras na UERJ.

6) Lúcio – tinha 17 anos e morava com a família. Estudava e trabalhava num restaurante fast-
food. Morador do Méier, depois se mudou para a Penha.

7) Ricardo – com 17 anos, morava na Tijuca ou Grajaú com os pais. Era estudante.

Como é possível perceber, todos tinham menos de trinta anos. Há uma preeminência
maior de homens, que se torna mais forte posteriormente, quando resta apenas uma mulher no
coven. A maioria dos integrantes estudava e/ou trabalhava e era habitante da Zona Norte do Rio
173

de Janeiro, com exceção de Joana, que morava em Icaraí, Niterói. Aqueles que eram
universitários estudavam todos em faculdades públicas.
O tempo de permanência de cada um no coven e o grau de envolvimento são diferentes.
Antes mesmo do primeiro ritual, Mara, Sérgio e Joana já não estavam mais incluídos no coven.
Sua saída do grupo se deu ao mesmo tempo em que Lúcio e Ricardo ingressaram. O coven se
estabilizou com oito membros: sete homens e uma mulher. Estes foram os que participaram do
primeiro sabá do coven. Ao contrário do que foi observado em outros grupos no campo, este era
composto majoritariamente por homens. Não encontramos no campo nenhum outro grupo em
que a discrepância entre membros de cada sexo fosse tão grande, embora seja possível encontrar,
em grupos de cerca de cinco membros, um desvio para a predominância masculina. Há também
covens numerosos compostos quase ou exclusivamente por mulheres, mesmo quando o ingresso
de homens não é proibido.
Parte dos integrantes do coven já se conhecia antes de o grupo ser formado, e parte se
conheceu em encontros promovidos pelos integrantes de uma lista de discussões da internet.
Wagner, Valter e Lúcio se conheciam há muito tempo, e eram amigos. Vânia e Santos também já
eram amigos quando conheceram as demais pessoas do grupo. Não importa aqui a ordem
cronológica em que cada integrante se conheceu. Basta dizer que, à exceção deste dois núcleos,
todos os outros integrantes se conheceram através destes encontros promovidos por uma lista de
discussões. Através da interação face-a-face amizades foram sendo feitas e o grupo foi tomando
forma.
Houve um total de cinco encontros desta lista. A moderadora da lista, isto é, a pessoa que
tinha o papel de cicerone, era Joana. Vânia afirma que esta era uma das listas de wicca mais
renomadas da época, e contava com um grande número de participantes. Os encontros eram
promovidos por Joana com a ajuda de Valter. No terceiro encontro, realizado no Jardim Botânico,
aqueles que viriam a se tornar participantes do coven se conheceram, com exceção de Lúcio e
Ricardo. Estavam presentes todos os outros personagens do drama e outros membros da lista num
total de quinze pessoas. Este encontro foi realizado em outubro de 1999, segundo Vânia.
Realizou-se um “mini ritual” com treze pessoas: Joana e Valter fizeram as vezes de Sacerdote e
Sacerdotisa e abençoaram as comidas e bebidas levadas pelos participantes, segundo Valter.
Neste momento, Vânia e Maurício afirmam que já havia uma grande empatia em jogo entre os
futuros membros do coven.
174

Os personagens envolvidos no drama, com exceção de Lúcio e Ricardo, deixaram o


Jardim Botânico em direção ao Méier. Instalaram-se em um bar da região onde tomaram vinho e
conversaram. Joana teve, então, a idéia de iniciar o que Valter chamou de uma “brincadeira de
associação”. Sentados numa mesa, começaram a associar palavras livremente. Joana resolveu
mudar o tom da brincadeira, e propôs que cada um falasse “o que não gostava”. Os relatos dão a
entender que aquilo que incomodava no outro é que deveria ser exposto. Essa idéia não foi aceita
pelo grupo a princípio, mas frente à insistência de Joana alguns se manifestaram e expuseram
suas opiniões como ela havia sugerido. Os narradores são unânimes em apontar um “clima
pesado” decorrente desta segunda brincadeira. Tanto Vânia quanto Valter e Maurício se referem
a ela como a “brincadeira da catarse” ou o “mini ritual da catarse”.
A escolha da palavra catarse revela o teor da situação: houve um descontrole dos
participantes. Em muitos o descontrole foi emocional, o que levou alguns a saírem do grupo. Em
outros houve um descontrole físico, psicológico ou energético, como veremos. A referência ao
“clima pesado” nos remete ao desconforto experimentado na situação. Ao mesmo tempo, os
relatos indicam que foi a experiência da catarse, forte e extremamente subjetiva, que uniu o grupo
e deu a eles a certeza de que eram um grupo, levando à formação do coven. Embora tenha
proporcionado os laços que levaram à formação do coven, o ritual de catarse também o marca
como um empreendimento fadado a não ter bons resultados, pois o que começa mal não pode
terminar bem. Para Valter e Maurício, o episódio marca a inexperiência e a imaturidade que
permearam toda a vida do coven. Marca, ao mesmo tempo, a posição incômoda de Joana frente
ao grupo, que culmina posteriormente em sua saída. Moderadora da lista, organizadora dos
encontros, instigadora da catarse e candidata a Sacerdotisa do coven, sua posição de nítida
liderança interfere em sua relação com os outros membros do grupo e se torna indesejável. Ela
passa a sofrer acusações como a de atacar magicamente o coven estabelecido, fazer intrigas e
fofocas após sua saída do grupo e de ter deliberadamente manipulado o grupo no ritual de catarse,
quando seus membros estavam emocionalmente fragilizados. A acusação de “vampirizar”, feita
por Vânia, é uma acusação corrente na Nova Era, e refere-se ao sujeito que suga a energia alheia
em proveito próprio, como um vampiro suga o sangue de suas vítimas. Deste modo, Joana passa
a encarnar o mal superado na primeira fase do drama, o período em que o coven está sendo
estabelecido.
175

“Foi a Joana que teve essa idéia e o povo cheio de uca na idéia embarcou, de fazer
tipo um mini ritual lá de catarse, coisa assim. Os resultados, obviamente, foram
desastrosos. Um menino ficou puto, o outro quis bater com a cabeça (...) na parede.
Foi um terror! E depois rolaram uns papos posteriores a esse respeito: que a garota
vampirizou, que não vampirizou. Mesmo assim, com todo esse resultado desastroso,
aquele bando de pinks, eu incluída, a gente achou o seguinte: bom, se formou um laço,
então vamos praticar juntos, vamos fazer magia. E foi mais ou menos assim que
surgiu, quer dizer, já começou errado.” (Vânia)

O que começa errado está fadado ao fracasso. As acusações abundam no relato acima.
Joana poderia ter vampirizado os participantes da catarse. A catarse, por si própria, independente
da atuação de Joana, foi uma situação que produziu resultados desastrosos, levando os
participantes a desequilíbrios emocionais extremos, como o de bater com a cabeça na parede.
Frente a isso, o bom senso deveria ter levado o grupo a se dissolver. Mas, pelo contrário, a
catarse levou ao estabelecimento de um laço, um vínculo de vários níveis – psicológico,
emocional, experiencial - que manteve o grupo unido e levou-os a considerar a idéia de que
deveriam praticar magia juntos através de um coven wiccano. A incapacidade de refletir sobre os
acontecimentos e a postura tomada, a união do grupo quando este deveria ser dissolvido, levam
Vânia a formular uma nova acusação: os presentes eram todos pinks. Esta é uma acusação
comum no meio wiccano brasileiro, e se refere sempre à bruxa deslumbrada, àquela que gosta de
aparecer publicamente como bruxa quando não tem um conteúdo satisfatório a apresentar, àquela
que não segue as tradições corretamente, e aos ignorantes. É um termo sem dúvida pejorativo.
Esta acusação tem o mesmo teor das declarações de Valter e Maurício sobre a imaturidade e
inexperiência dos participantes da catarse.
Está claro que os resultados da catarse não foram bem assimilados pelo grupo. Segundo
Maurício, alguns participantes foram levados a crises de choro, ele incluído. Valter conta que
Douglas, Mara e Sílvio choraram enquanto Maurício estava muito nervoso. Wagner, que segundo
Valter tinha uma mediunidade desenvolvida – teria sido espírita por algum tempo – apresentou
uma dor-de-cabeça crônica que o levou a bater com a cabeça na parede do bar e posteriormente
fez com que ele se deitasse sobre o chão da rua, numa atitude que Valter minimiza e trata como
costumeira para ele e o amigo. A dor-de-cabeça teria advindo do “clima pesado” instalado pela
176

catarse, e acometeria Wagner toda vez que “acontece alguma coisa”. Segundo Valter, ainda,
Santos e Vânia estariam “razoavelmente inteiros” enquanto ele próprio havia passado por uma
situação que define como “estressante”. Afirma que saiu do local “mentalmente são”, mas
“fisicamente esgotado”.

“Eu instintivamente joguei minha energia ao redor do grupo, tentando prender e


proteger, mas eu saí dali arrasado fisicamente. Mentalmente eu saí são. Eu saí
fisicamente esgotado. Tinha umas amigas nossas por ali, e eu fui dar um abraço.
Nossa, eu me senti sugando [a energia da] a menina. Eu me assustei. Eu senti o fluxo
vindo e foi uma catarse bastante pesada, quer dizer, as pessoas botam para fora seus
traumas.” (Valter)

A necessidade que Valter experimentou de proteger o grupo reafirma a idéia de que


estavam numa situação vulnerável. O grupo não tinha defesas, precisava ser protegido. Segundo
Maurício, estavam todos bêbados. Os traumas postos para forma exibem a fragilidade emocional
dos participantes e expõe a pressão que o grupo experimentou, a ponto de ser chamada de catarse.
Tal foi o grau de pressão, que Valter se sentiu física e energeticamente esgotado, a ponto de
quase “vampirizar” suas amigas. A expressão deste episódio nos remete às acusações de Vânia:
estaria Joana tentando “vampirizar” o grupo? Quando Valter se encontra na mesma posição,
sugando as energias das amigas, ele se assusta. Se os atos de Joana foram intencionais, os dele
não foram. Ao contrário de Joana, ele tentava proteger o grupo e não expor suas entranhas.
A única pessoa que sai sem arranhões da experiência é a própria Joana. É ela quem
proclama que, após a catarse, laços teriam sido estabelecidos e o grupo teria se transformado em
um coven. Frente à declaração e após uma forte experiência caracterizada como emocional e
psicológica, os personagens deste drama sentem uma “necessidade de um compromisso”, e
voltam a se reunir com o intuito de formar o coven, organiza-lo, estabelecer metas e formas de
trabalhar ritualmente em conjunto.
É neste período que começa a se formular o claro antagonismo de alguns membros do
grupo contra Joana, estabelecendo as bases para sua saída do grupo. Na primeira reunião
agendada, Sílvio e Mara não compareceram, e posteriormente avisaram ao grupo que não era de
seu interesse participar do coven. A negativa do casal é relatada pelos narradores como uma
177

incompatibilidade ritual. Eles não seriam wiccanos, mas estariam estudando outros tipos de
religiosidade e direcionando-se claramente para elas. Ao mesmo tempo, sentiam-se inexperientes
e não desejavam trabalhar com um grupo. A reunião, marcada no mesmo lugar da catarse, já
definia o grupo com todos os seus membros. Ricardo já havia sido convidado a participar.
Segundo Valter, Ricardo já havia realizado rituais com ele e com Joana, o que o habilitava a ser
integrante do grupo. Lúcio foi igualmente convidado a entrar no coven por suas ligações com
Valter. Amigos de longa data, considerando-se irmãos, começaram a estudar wicca juntos e
apresentavam um perfil religioso bem próximo. Valter afirma que não faria nada na wicca que
não pudesse ter a participação de Lúcio.
Nesta primeira reunião, Ricardo não pode comparecer, mas todos os outros membros
estavam presentes: Valter, Vânia, Maurício, Joana, Santos, Lúcio, Douglas e Wagner. Após se
encontrarem no bar, o grupo foi para o Jardim do Méier, praça arborizada do bairro.

“A gente foi pro Jardim do Méier e aí já começou todo o estresse. Porque começava
da concepção que a gente tinha de coven. A Joana dizia ‘meu coven’ e isso
incomodava a gente um bocado. Ela se sentia, de alguma forma, que o coven era dela
porque ela [estava numa posição] de cicerone e intermediária, porque sendo a
moderadora da lista, foi a pessoa que causou o encontro de todos nós. Ela se sentia
como se o coven fosse dela e mais tarde ficou mais claro porque ela começou a dizer:
não, vocês não podem fazer isso no meu coven. É a sensação de que ela juntou todo
mundo e isso foi o único fator que impediu a gente de imediatamente causar um racha
com ela, porque de oito ela era a única com opinião diferente em relação a como
organizar, como fazer. De início seis falaram: vamos trabalhar com panteão celta. Um
falou: eu trabalho com qualquer panteão, desde que seja coerente. E ela falou: vamos
trabalhar com panteão helênico. E na época rolava a maior discussão, a questão do
celtismo e do helenismo tinha meio que uma birra. E seis ou sete queriam comemorar
pelo norte, e ela queria comemorar pelo sul”. (Valter)

Em todas as questões mais importantes dentro da prática wiccana, como o calendário a ser
seguido – pelo hemisfério norte ou sul – e o panteão de trabalho do grupo, Joana foi voto
vencido. O panteão a ser usado era uma questão especificamente importante para os membros
178

deste grupo. Valter e Maurício relatam que seu ingresso na wicca se deveu, em grande parte, ao
seu interesse pela mitologia celta e assuntos relacionados ao celtismo. Ainda assim, Valter narra a
tentativa do grupo de conciliar as posições divergentes. É compreensível, portanto, que a
conciliação viesse na forma da divisão dos cargos e na formulação de um calendário híbrido,
pontos que não colocavam em cheque a ligação do grupo com o panteão celta desejado.

“[Tentamos] fazer um calendário meio híbrido. Sabás maiores a gente comemora pelo
norte, solstícios e equinócios a gente faz pelo sul. A Joana fica a Sacerdotisa dos
equinócios e solstícios e a Vânia do norte, que era o voto da maioria das pessoas para
ser a Sacerdotisa do coven. Isto também era uma coisa que contrariava muito a Joana,
porque ela não queria estar num coven para não ser a Sacerdotisa. Ainda mais com o
sentimento de ser meu, etc. Então ficou assim: a Joana faria alguns, a Vânia outros e
eu fui eleito o Sacerdote, grande líder, Pendragon.” (Valter)

Desajustada dentro do grupo, Joana é forçada a sair. A posição desviante faz com que as
acusações de ataque mágico, manipulação, domínio e intrigas recaiam sobre ela. Ela se torna um
sujeito impuro e perigoso que deve ser excluído em prol do bom funcionamento daquela micro-
sociedade (DOUGLAS, 1976). Não esqueçamos de que esse relato é posterior aos acontecimentos,
e já engloba uma análise individual de cada narrador a partir dos encaminhamentos tomados pela
situação. Neste processo, o grupo firmou ainda mais a sua união e seus objetivos, alianças
tiveram que ser feitas e novas liderança despontaram.
Valter deixa muito claro que sua liderança não estava em cheque. Ele foi eleito “grande
líder” e Sacerdote do coven, embora este contasse com mais homens do que mulheres. O cargo de
Sacerdotisa, no entanto, pelo qual ele deixa claro que Joana lutava, podia ser dado a alguém mais:
Vânia, a única outra mulher do grupo. Não só o cargo poderia ser dado a ela, como ela era a
escolha da maior parte do grupo. A solução foi dividir o cargo segundo os rituais. A saída de
Joana do grupo marca sua recusa em participar do empreendimento nos moldes em que ele se
apresentava, ou seja, desprovido daquilo que ela almejava: o panteão helênico, o calendário do
sul, o cargo de Sacerdotisa.
Vânia, contudo, tinha requisitos para o cargo, como ela mesma afirma. Além disso, Valter
sugere que ela e Joana tinham desentendimentos pessoais, o que teria influenciado a escolha do
179

grupo de alguma maneira. Aberto à influência de Vânia, o grupo teria passado a hostilizar Joana.
Como vimos, a posição de Joana já havia sido marcada por outros fatores. O relato de nossos três
narradores apresenta Joana como pessoa que não se ajustava ao grupo, portanto desviante e
passível de ser excluída.

“Pra mim era muito claro uma coisa: eu era nova, muito nova em wicca, mas era bem
mais velha em wicca do que aqueles meninos, entendeu? E, independente disso, eu já
tinha estudado outras coisas de magia, alta magia, teosofia. Aí, então, qualquer
pessoa que tivesse esse atributo, que não fosse eu, eu iria contestar. (...) ‘Você não
sabe, porque isso aqui precisa ser estudado, o buraco é mais embaixo e tal’.” (Vânia).

“A Vânia, de certa forma, era quem pregava toda a parte teórica porque ela era quem
tinha mais experiência.” (Valter)

O domínio de um campo de saber era o diferencial de Vânia. Como Yvonne Maggie


(1977) apresenta a respeito da umbanda, o código do Santo deve ser dominado pelo pai-de-santo
ou mãe-de-santo de um terreiro. No caso de nosso grupo, era o código mais amplo da magia
européia, das artes e ciências ocultas, do esoterismo que estava em jogo. E mesmo não
dominando completamente este código, Vânia se via na posição de quem melhor o dominava.
Apesar de ser “nova em wicca”, ela estava na bruxaria há mais tempo que os outros integrantes.
Tinha entre um ano e um ano e meio de estudo da wicca enquanto Valter, o Sacerdote do grupo,
apenas começava a se organizar para uma prática solitária. Seus conhecimentos, ela conta, só
eram comparáveis aos de outro membro do grupo: Santos. Mas em compensação, ele não tinha a
experiência prática que ela tinha. Deste modo, ela desponta duplamente no código: possui
conhecimento teórico e prático. De fato, Vânia era a única auto-iniciada no grupo. Como
veremos, o primeiro sabá realizado pelo coven foi também o momento de auto-dedicação dos
demais membros.
O problema da liderança dentro do coven será exposto mais tarde. Vejamos primeiro
como Joana saiu do grupo em questão. Para Maurício, a saída se deu no primeiro encontro do
grupo a fim de discutir as bases organizacionais do coven. Para Vânia, foi após algumas reuniões.
Valter é mais preciso a respeito do processo. No dia em que o grupo experimentou o que chamam
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de catarse, Valter recorda que conversou longamente com Wagner. Os dois levaram Mara e
Sílvio em casa. Ao mesmo tempo, Santos e Vânia estariam conversando sobre os mesmos
assuntos. Teria havido uma enorme empatia e uma “afinidade de idéias” entre os quatro, o que
possibilitou a formação de um núcleo. Nas semanas após a primeira reunião do grupo no
encontro para a discussão sobre a organização do coven, os quatro teriam se visto com freqüência
e conversado sobre o coven apartados do resto do grupo.
Na segunda reunião do grupo, exclusivamente para discutir assuntos relacionados ao
coven, Joana já não estava mais disposta a pertencer ao coven. Segundo Valter, suas opiniões não
haviam mudado, e ela não queria ingressar num coven que não estivesse de acordo com o que
pensava. O grupo, no entanto, entendeu que ela não queria um coven que não fosse do seu jeito, e
enxergou nela um empecilho ao que almejavam como coven. Entre a primeira reunião e a saída
oficial de Joana do grupo, passaram-se cerca de dois meses, segundo Valter.

“Eu comecei a ver: é, não vai dar jeito. Ou a gente acabava botando ela para fora ou
a gente vai acabar fazendo a guerra fria, que foi o que aconteceu, e ela vai acabar
saindo.” (Valter)

A posição escolhida por alguns membros do grupo, então, foi a da “guerra fria”, ou da
“conspiração”, nas palavras de Maurício. Como as posturas e opiniões de Joana não mudavam,
pelo contrário, se acirravam, a escolha de alguns membros foi por uma articulação pessoal que
englobasse todos os outros de modo a torna-la marginal e, por fim, retira-la do grupo.
Em uma das reuniões para o coven, Joana teria levado consigo um amigo que desejava
inserir no grupo. As atitudes dele, no entanto, não foram bem vistas pelos demais: homossexual
declarado, fazia questão de falar de sua vida íntima, contando detalhes de sua sexualidade, o que
fez com que o grupo rechaçasse a possibilidade de que ele viesse a participar. Contando já com
dois homossexuais, Valter garante que não foi a sexualidade do amigo de Joana que chocou o
grupo, mas sua postura escandalosa para os parâmetros deles. A própria Joana teria considerado,
mais tarde, que ele era impróprio para pertencer ao coven. Interessante notar que cada nova ação
de Joana é marcada por uma repulsa e contra-ação do grupo. Quando ela reflete acerca de suas
posições sobre a organização de um coven, ela se torna um empecilho. Quando leva um amigo
para o grupo, ele não é aceito.
181

Numa reunião posterior feita pelo grupo na Quinta da Boa Vista, Joana marca sua saída.
Neste mesmo dia, Valter a leva até a Praça XV – ela morava em Niterói - e eles têm a
oportunidade de conversar, quando ela reafirma sua saída do grupo. O que parecia esclarecido, no
entanto, revelou-se posteriormente um problema. Aparentemente, Joana havia saído sem maiores
brigas ou complicações. Mas Valter afirma que essa paz foi ilusória, pois ela teria começado a
tecer intrigas sobre o grupo, afirmando que havia sido expulsa do coven. Notemos que Joana era
uma pessoa de destaque na wicca carioca, pois era a organizadora de encontros da lista de
discussões da qual era moderadora, umas das mais famosas da época. Seus comentários, portanto,
tinham algum peso.
Embora os comentários tenham sido mal recebidos pelo grupo, Valter afirma que, de certa
forma, Joana havia sido realmente expulsa do grupo. Para Maurício, ela nem chega a participar
efetivamente de alguma atividade considerada do coven. Este é mais um episódio que marca o
começo do coven como um empreendimento fadado ao fracasso.

“Foi uma guerra fria do pior tipo possível, quando as pessoas não têm coragem de
assumir suas posições, que foi o que aconteceu com a gente. Ninguém queria botar ela
para fora, mas todo mundo queria que ela saísse. (...) Depois da Joana, a gente
começou conturbado.” (Valter)

“Eu, Wagner e Vânia, eu e Wagner principalmente, quando a gente resolveu


apresentar todos esses problemas da Joana, a gente bancou o illuminatti mesmo. A
gente falou com o Maurício, saímos para conversar só com o Maurício e vimos que ele
estava achando a mesma coisa mas estava receoso de falar. A mesma coisa com o
Douglas. Ele já estava chateado com a Joana. E fomos arrendando politicamente
mesmo.” (Valter)

“No caso da Joana, que foi inclusive a pessoa que o pessoal conspirou contra,
realmente é uma estória estranha até hoje. E eu acho que uma conspiração da gente
contra ela. Ela acabou não sei por que dizendo que ia sair. Ela acabou não
participando de nada com a gente.” (Maurício)
182

A formação do coven

A saída de Joana do grupo define, por fim, quem ficaria no coven: Lúcio, Ricardo,
Douglas, Santos, Vânia, Maurício, Valter e Wagner. O primeiro ritual realizado pelo grupo
firmou o compromisso entre seus membros e oficializou o coven. Este ritual foi um sabá de
Samhain no final de outubro de 1998. Neste mesmo ritual, todos os homens do grupo realizaram
sua auto-dedicação na wicca. Vânia já havia se auto-iniciado. O ritual foi realizado na Floresta da
Tijuca. O coven costumava realizar seus rituais sempre em lugares abertos e em contato com a
natureza. Notemos que mesmo na fase de reuniões e encontros, estes são os locais preferidos pelo
grupo, que já havia se encontrado na Quinta da Boa Vista, no Jardim Botânico e no Jardim do
Méier. A praia era um local também utilizado pelo grupo, mas com menor freqüência.
O coven realizou três sabás ao todo: Samhain, Yule e Imbolc. O sabá seguinte, Ostara,
marcou sua dissolução. Ao primeiro sabá compareceram todos os membros do grupo. Nos rituais
subseqüentes, nem todos estavam presentes. Santos compareceu apenas ao primeiro, e não
comparecia às reuniões que o grupo organizava nos fins-de-semana, quando se encontravam para
beber e conversar. Vânia, Maurício e Valter compareceram a todos. Ricardo, Wagner e Douglas
faltaram a apenas um sabá cada um.
Houve, ainda, dois rituais realizados pelo grupo: um, quando foi constatado que havia
ataque mágico, e outro quando o primeiro membro do coven desligou-se oficialmente. Dos três
membros do coven entrevistados, apenas Vânia lembrou-se que estes rituais haviam sido
realizados. Maurício afirma que apenas os três sabás tinham sido realizados como rituais do
coven, e Valter acrescenta a auto-dedicação realizada na mesma data do primeiro sabá do grupo.
Em determinado momento, o coven teria se sentido sob ataque mágico, e um ritual foi
executado buscando o fim daquela situação. Segundo Vânia, o grupo apresentava sintomas de
ataque: uma sensação estranha de dormência nos pés, uma sensação emocional de opressão, e
alguns estariam tendo, ainda, muitos pesadelos. Após o ritual de banimento, a situação teria
melhorado. O outro ritual de banimento foi realizado quando Douglas abandonou o grupo. Vânia
sentiu que as circunstâncias da saída dele exigiam um ritual formal de afastamento de um
membro de coven. Este ritual tinha por objetivo fazer com que o karma de Douglas não
repercutisse mais sobre os membros do coven. Deste modo, as ligações mágicas entre ele e o
grupo estariam definitivamente cortadas. Consistiu num círculo formado pelos membros e uma
183

mentalização, realizados no apartamento de Vânia no mesmo dia em que Douglas comunicou sua
saída. Como veremos, ele o fez em casa de Vânia, durante sua festa de aniversário. Este foi um
procedimento de proteção do grupo quanto aos atos futuros de seu ex-membro, e caracterizava,
dali em diante, o seu não-pertencimento ao grupo. Interessante notarmos que nenhum outro
membro, após a dissolução do coven, sofreu qualquer tipo de ritual de afastamento. Mesmo
quando o coven foi declarado dissolvido, nenhum tipo de ritual foi executado por seus antigos
membros para este fim.
Além dos rituais, o grupo se via com regularidade nos fins-de-semana. Encontravam-se
normalmente no mesmo bar, no Méier, onde bebiam vinho e conversavam. Costumavam também
comer na cadeia de fast-food onde Lúcio trabalhava. Apesar de a maioria dos membros do coven
ter se conhecido através de uma lista de discussões, o grupo formado tornou-se muito unido.
Segundo os três narradores, eles eram muito amigos. Maurício afirma que queriam fazer tudo
juntos: saíam à noite, iam ao shopping, a festas, se encontravam para ler, conversar, beber e
comer. Para Valter, eram amigos antes de serem parceiros mágicos, o que, em sua opinião, foi um
dos motivos pelos quais o coven enfrentou os problemas que causaram sua dissolução. As noites
e fins-de-semana nos quais o grupo se encontrava era sempre ocasiões para se discutir assuntos
relativos ao coven, mesmo não sendo reuniões especificamente programas com essa intenção.
De fato, toda a prática dos membros era feita em conjunto. Maurício, que quando
ingressou no coven estudava wicca há apenas seis meses, afirma que não se sentia confortável em
realizar práticas mágicas e rituais sozinho. Achava que não podia faze-lo. Valter também não
realizava práticas solitárias, embora faça questão de frisar que tinha conhecimentos para isso.
Apenas preferia trabalhar em grupo, como faz até hoje. Vânia, por outro lado, diz que realizava
algumas práticas solitárias, especialmente esbás, que o coven não realizava. Eventualmente, ela
também fazia alguns feitiços de proteção e prosperidade para si. Vânia, em sua prática solitária,
estava na verdade buscando o que o coven deveria oferecer-lhe mas não oferecia: parte da prática
wiccana que não estava sendo realizada. Havia, além disso, uma preocupação mágica de sua
parte: única mulher num grupo de sete homens, temia que sua “energia” pudesse ser
“desequilibrada” de alguma forma pela influência masculina a que estava sujeita. Os esbás,
rituais de ligação com a lua, proveriam a ela energia feminina suficiente para manter seu
equilíbrio energético e mágico. O coven fazia feitiços também, destinados à cura, à solução de
problemas de não-membros e à prosperidade.
184

Após a saída de Joana, o grupo teve que discutir como organizar uma liderança dentro do
coven. Vânia recorda que Santos havia se manifestado a favor de uma autoridade formal, com o
argumento que sem isto a organização estaria comprometida. Ele, no entanto, não desejava
exercer essa autoridade. O restante do grupo não desejava que houvesse uma autoridade e, por
consenso, definiu-se que Vânia seria a Sacerdotisa do grupo – visto que era a única mulher - e
que Valter assumiria o posto de Sacerdote.

“Eu lembro que o Santos falou: não, eu quero um coven com alguém que mande
porque senão as coisas não funcionam. Num coven cheio de aquariano, se você falar
que alguém manda todo mundo pula, né? A única pessoa que se posicionou mais ou
menos a favor, até porque queria obviamente isso, foi a Joana.” (Vânia)

Segundo Vânia, a os cargos de Sacerdote e Sacerdotisa indicavam uma liderança apenas


nominal dentro do coven, e não factual. As decisões eram tomadas por todo o grupo, a partir de
discussões intelectualmente elaboradas que não raro não chegavam a consenso algum. Este foi
indicado pelos três narradores como um dos motivos do fracasso do coven em permanecer ativo.
As discussões sucediam-se e nelas as lideranças foram definidas: Vânia, Maurício e Valter, que
eram também os mais assíduos do grupo. Apesar dos rituais serem nominalmente organizados
pelo casal sacerdotal, o segundo sabá do grupo foi dirigido ritualmente por Maurício sozinho. Os
rituais eram escritos por estes três membros. As discussões intelectuais passaram a girar mais em
torno destes três personagens. Segundo Maurício, a liderança definida de Vânia e Valter foi
sendo modificada a partir de sua inserção mais direta nas questões do coven. Ele recorda que as
discussões eram muito freqüentes, mas que não constituíam brigas. Estas discussões, entretanto,
formularam um padrão que definiu uma política de acusações após o término do coven.
Para Maurício, seus desentendimentos freqüentes com Vânia eram, apesar de tudo, os
mais saudáveis, pois eram às vistas de todos. Ele faz uso de sua amizade contínua e duradoura
com ela até o presente momento como exemplo de que estes desentendimentos eram
exclusivamente intelectuais e não pessoais. Vânia é de mesma opinião, e usa o mesmo argumento
de Maurício para exemplificar seu ponto de vista. Valter, por outro lado, se torna sujeito acusado
de desentendimentos velados e disputas não claramente postas. É possível observarmos que a
partir daí o momento das acusações emerge para nossos três narradores. A liderança do grupo,
185

repartida por três, estava sendo disputada entre eles. A expressão do grupo para esta disputa é o
“conflito de ego”. Este consistiria na tentativa de cada um dos três de afirmarem suas próprias
opiniões como as melhores para o grupo. Esta disputa é o que chamam de “discussão intelectual”
e “conflito de ego”. Em algum momento, a discussão que parecia meramente teórica passa para o
plano pessoal da disputa por liderança e se transforma no “conflito de ego”. O conflito, contudo,
só foi observado por eles após a dissolução do coven, segundo Maurício. Já faz parte, portanto,
do âmbito acusatório.
Vejamos agora a saída de cada membro do coven até sua dissolução para então
observarmos os elementos indicados pelo grupo como responsáveis pelo seu fim.

A saída de Douglas

As primeiras faltas sentidas no grupo foram Santos e Lúcio. Em um primeiro momento


desempregados, passam a trabalhar quando já participavam do coven. No caso de Lúcio, o
trabalho em uma lanchonete de fast food tornava seu tempo disponível escasso para que se
engajasse nas atividades do coven. Mesmo assim, ele costumava freqüentar os encontros do
grupo nos fins-de-semana. Santos, por outro lado, era um membro ausente. Como Lúcio,
compareceu apenas ao primeiro sabá, mas dificilmente encontrava os membros do grupo pois
gostava muito de ficar em casa. Quando da visita ao Rio de uma bruxa de Brasília conhecida nas
listas de discussões da internet, Santos voltou a reencontrar o grupo. Sua motivação, entretanto,
era conhecer a bruxa brasiliense e não encontrar-se com seu coven. Para Valter, Santos nem
chegou a se firmar como um membro efetivo do grupo, tal era a sua ausência. Deste modo, o
único membro que possuía o mesmo grau de conhecimento que Vânia era ausente, e não poderia,
de fato, ter ingressado nas disputas pela liderança do coven. Embora tenham comparecido ao
primeiro ritual e a nenhum mais, estes dois membros foram considerados ausentes mas não foram
retirados do grupo. Em nenhum momento de seus relatos os narradores souberam precisar o
momento de saída destes dois membros. Eles foram tratados mais como membros ausentes ou
não-membros do que como ex-membros.
Após a recusa de Mara e Sílvio de ingressarem no coven, após a expulsão de Joana do
grupo e com a falta constante de dois membros – Santos e Lúcio -, o grupo enfrentou uma nova
perda, a primeira oficial do coven. Na festa de aniversário de Vânia, em fevereiro de 1999,
186

Douglas comunicou ao grupo que estava se afastando. A notícia se tornou um balde de água fria
para o grupo. A data, que era comemorativa, transformou-se em trágica. O fim do grupo estava se
anunciando naquela ocasião. Valter recorda que a saída de Douglas foi muito dolorida para ele na
época. Para o grupo, teria sido um choque.
Aparentemente, ele não forneceu os motivos para sua saída, o que fez com que Vânia a
considerasse misteriosa até hoje. Maurício afirma que Douglas estava desiludido, se perguntando
se a wicca era realmente o seu caminho, e se aquela era a hora de decidir. No meio de tantas
dúvidas, pensava que poderia causar um “atraso” no desenvolvimento do coven. Seus argumentos
foram rebatidos, mas ele não foi convencido a ficar. Valter afirma que Douglas pensava o seu
caminho de bruxo como algo solitário naquele momento.
A saída de Douglas aparece como um fator desagregador para o grupo. Ela desencadeia
uma sucessão de afastamentos que, conjugados com a disputa por liderança já em jogo,
precipitaram a desagregação do coven.

“Ele resolveu sair. Aquilo ali foi um choque para a gente. Era um dia que era para ser
uma comemoração e acabou que foi um dia brabíssimo. Foi o aniversário da Vânia.
Logo depois o Wagner avisou: estou fora, e dali não teve jeito. Não adianta recuperar
algo assim que não dá certo. Acabou.” (Maurício)

Segundo Maurício, após a saída de Douglas, Wagner decidiu também abandonar o grupo.
Valter se recorda que foi após a saída de Douglas que Santos também optou por deixar o coven.
Nenhum dos dois, aparentemente, apresentou motivos para sua saída do coven. Com menos três
membros e um ausente – Lúcio -, o grupo se encontrava numa situação instável. As três
lideranças disputavam espaço para apenas uma audiência: Ricardo.
O que marca realmente a dissolução do grupo é o seu quarto sabá, que não chega a ser
realizado. Segundo Vânia, Valter havia ficado responsável por escrever o ritual em questão. Ao
invés disso, o rapaz desapareceu deixando Vânia, Maurício e Ricardo sem saber qual seria o
futuro do coven. Quando Valter “some”, ele abandona o coven sem dar explicações e, por
conseguinte, leva consigo seus amigos Lúcio e Wagner. No relato de Vânia, o “desaparecimento”
de Valter é mais significativo para a desestruturação do coven do que a saída de Douglas, pois ele
desencadeia a ruptura dos membros restantes. Suas acusações, então, se voltam mais para a
187

conduta de Valter, a partir deste período, do que para os outros membros do grupo. A ruptura
retratada no relato de Vânia fica ainda mais patente quando ela afirma, e Valter confirma, que ele,
Lúcio e Wagner voltaram, posteriormente, a trabalhar ritualmente juntos num outro coven.

“Tudo começou nos preparativos do Ostara. As coisas já não estavam indo bem. A
gente não conseguia avançar no sentido, primeiro de aumentar os conhecimentos de
magia teórica, prática, mitologia (...). Eu estava ficando puta e estressada já. Aí depois
aconteceu do Valter sumir. E por tabela sumiu o Lúcio, o Wagner meio que sumiu mas,
enfim, sumiu um pouco menos. Mas o Valter tinha ficado, a gente tinha tirado que ele
ia escrever o ritual de Ostara. O Valter sumiu, virou pó.” (Vânia)

O afastamento momentâneo de Valter fez com que Vânia e Maurício decidissem escrever
o ritual e realiza-lo assim mesmo. Foi neste ínterim que Wagner comunicou a Vânia que estava se
afastando do coven. Alegou que estava cansado de pertencer ao grupo e que “as coisas não iam
para a frente”. Maurício, em seu relato, usa muito esta expressão com o sentido de que o grupo
não estava alcançando os objetivos a que tinha se proposto. Vânia conta que ainda tentou
argumentar com Wagner, e marcaram um encontro onde ele não compareceu. Vânia havia
avisado Maurício deste encontro, e ele acompanhou-a. Wagner disse que havia se esquecido do
encontro, e por isso não havia comparecido.
Com um futuro incerto, o grupo não celebrou o sabá de Ostara. Neste ponto, uma outra
personagem entra no drama: é Ana, bruxa wiccana que os membros do coven já conheciam. Ana
organizava encontros de bruxos na Floresta da Tijuca, e eventualmente convidava alguns para
celebrar os sabás com ela. Com a situação indefinida, Vânia entra em contato com Ana a fim de
participar de sua celebração. Para sua surpresa, Ana comunica que além de Maurício, Valter e
Wagner também iriam e que haviam comentado que não se sentiam mais obrigados às decisões
do coven pois haviam abandonado-o. O fim do coven, neste ponto, se torna claro e iminente. O
que ocorre a seguir no drama é uma sucessão de acusações que termina por abalar a amizade dos
membros do grupo.
Vânia entrou em contato com Valter, que desmentiu a estória alegando que era uma
“interpretação pessoal” de Ana. Ana, por sua vez, confirmou a Vânia o que Valter teria lhe dito.
Neste momento, Vânia diz que percebeu que o fim do coven havia chegado. Ela decidiu, então,
188

não continuar trabalhando apenas com Maurício, visto que na época eles mantinham divergentes
opiniões sobre a prática da bruxaria.
Neste ponto, Vânia decide celebrar o sabá com um outro amigo de fora do grupo. Foram
juntos para a Floresta da Tijuca e encontraram alguns amigos que os levaram para a celebração
de Ana, onde Vânia encontrou Maurício e Valter.

“Esse casal nos levou ao ritual deles e acabamos fazendo lá. É verdade que o Valter
não participou. O Maurício entrou no círculo e me disse que só entrou porque eu tinha
entrado também, enfim... mas o Valter não entrou não, não sei por quê.” (Vânia)

O círculo a que Vânia se refere é o espaço ritual da wicca, que funciona como templo. Ele
é desenhado no chão antes de qualquer ritual e apagado posteriormente. O fato de Valter não ter
entrado no círculo marca, simbolicamente, a sua recusa em pertencer àquele grupo. Já a entrada
de Maurício, influenciada pela entrada de Vânia, marca o alinhamento daquele com esta nas
questões posteriores ao final do coven. Após este acontecimento, uma troca de acusações e uma
série de desentendimentos ocorrem entre Vânia e Maurício, de um lado, e Valter do outro.
Simbolicamente, o círculo definiu os grupos em disputa.
Para Valter, o coven havia decidido que o ritual de Ostara não seria celebrado devido à
falta de tempo de seus membros. Paralelamente a isso, o coven teria se atido a uma discussão
sobre o calendário. Celebrando os sabás pelo calendário do hemisfério norte, estariam
vislumbrando a possibilidade de fazer as celebrações pelo sul. É neste sentido que ele não estaria
obrigado às decisões do coven no episódio acima relatado. Ana celebrava os sabás pelo
calendário do hemisfério sul, portanto Valter não poderia estar obrigado às celebrações do norte
para poder participar. Isto, contudo, não é uma proibição wiccana, mas uma questão interna a este
coven.
Neste ponto, o calendário causa uma confusão no relato de Valter. A data das festividades
de Ostara é diferente em cada hemisfério. Quando se celebra Ostara no hemisfério norte, o
calendário do sul marca o sabá de Mabon. Este foi, segundo Vânia, o sabá realizado por Ana
naquela ocasião. Pensando no Ostara do hemisfério sul, Valter transporta a celebração de março
para setembro, e passa a contabilizar quase um ano de coven, quando este se dissolveu, na
verdade, em março de 1999.
189

Este ritual organizado por Ana foi, nas palavras de Valter, um encontro de seu coven sob a
supervisão de uma pessoa que não fazia parte dele. Dos membros do coven, estavam presentes
apenas Vânia e Maurício. Valter afirma que não participou do ritual por não se sentir à vontade.
Deste modo, ele marca igualmente, de maneira simbólica, o seu não-pertencimento ao coven. Na
celebração, o seu coven estava reunido, mas como não fazia mais parte dele, ele não se sente à
vontade para participar. Para ele, aquele ritual foi o momento no qual tomou consciência de que o
grupo havia se dissolvido.
Mesmo após a desagregação do coven, seus membros continuaram amigos e
encontravam-se com certa freqüência. Neste período, houve a tentativa de formular um novo
coven, que fracassou. É a partir daí que as acusações trocadas se fazem mais fortes.

O segundo coven

Segundo Maurício, ele, Vânia, Valter e a namorada encontraram-se, certa vez, na Floresta
da Tijuca. Como no dia da catarse, mais uma vez houve uma sensação estranha que perpassou o
grupo. Quando a namorada de Valter foi embora, os três remanescentes se dirigiram à praia para
conversar. Nesta conversa, chegaram à conclusão de que deveriam voltar a trabalhar juntos em
um coven, mas apenas os três. Em muitas passagens das entrevistas, eles deixam claro que, apesar
das inúmeras discussões que tiveram dentro do coven, os três se entendiam muito bem e
gostavam de trabalhar ritualmente juntos. Esta empatia, palavra usada por eles para definir o
sentimento que os havia unido em seu primeiro encontro, perpassou especialmente nossos
narradores. Por isto afirmam que o término do coven, apesar de conturbado, era inevitável, e não
abalou a amizade que nutriam um pelo outro. Os relacionamentos foram abalados pela sucessão
de fatos posterior ao fim do coven, e que deu origem a uma série de acusações. A tentativa de
formar um novo coven, e os acontecimentos que se sucederam, foram o momento de abalo do
relacionamento entre nossos três narradores, momento de ruptura de um relacionamento que se
desgastava continuamente.
Haviam se passado três meses do término do primeiro coven e a idéia do novo coven fora
aceita pelos três, mas como um grupo fechado que não estaria disponível a novos membros.
Maurício recorda que foi Valter quem burlou a regra instituída, e insistiu em trazer de volta todos
os membros do antigo coven. Ao mesmo tempo, ele também passou a convidar novas pessoas
190

para que ingressassem neste novo grupo. Aos poucos, as opiniões de Valter foram se tornando
dominantes, mudaram os primeiros planos do trio e acarretaram a saída tanto de Maurício quanto
de Vânia. Frente à mudança do que havia sido combinado, Maurício recorda que Vânia decidiu
abandonar o projeto. Nos relatos de Vânia, esse segundo coven não é mencionado. Para Valter,
este era um empreendimento conjunto dele e de Maurício, e Vânia não é mencionada como parte
dele. Este coven, segundo Valter, teria sido organizado por ele e Maurício apenas, segundo uma
lista de quinze pessoas que seriam convidadas a fazer parte do novo grupo. Na lista estariam
algumas “meninas bonitas”, exigência de Maurício, que já estava farto de trabalhar num grupo
essencialmente masculino. Notemos que aqueles que são convidados para este segundo coven não
o são por quesitos como o domínio do código da wicca ou pela empatia e amizade nutrida, mas
por outros motivos. Na escolha dos novos integrantes, valores que não pertencem ao código
passam a ter maior peso. Como veremos, a amizade entre os membros de um coven está em
acordo com o código da wicca.
Toda semana este segundo grupo discutia em que bases o coven seria organizado. No
período destas reuniões, Valter fez uma viagem para Brasília, para encontrar-se com bruxas de lá.
Este é o momento de ruptura entre Valter e Maurício. Maurício afirma que Vítor aproveitou a
viagem para fazer intrigas a seu respeito. Ao voltar de viagem, não conseguiu encontra-lo e
percebeu que o amigo já havia tomado as decisões para o coven sozinho, sem consulta-lo. O
próximo passo de Valter foi tentar remover Maurício do coven. Nesta época, Maurício estava
envolvido com estudos de outras correntes de magia e esoterismo. Valter não via esse
envolvimento com bons olhos e instou o colega a escolher entre seus estudos de outros sistemas
mágicos e seu pertencimento ao coven.

“E ele falou: ou fica na magia ou fica no grupo. Ou seja, rolou uma sacanagem, rolou
um boicote. E hoje eu vejo assim, foi por lance de liderança, porque aí eu volto ao
passado. Na época ainda da Joana, (...) quem podia manter uma liderança? Valter e
Joana. A Joana saiu logo depois. E quem contou umas estórias da Joana, que rolou
realmente a conspiração, foi o Valter. (...) O coven acabou. Tentou montar outro.
Quem poderia, nesse coven, ter uma posição de liderança? Eu, Valter e Vânia. Logo a
Vânia pulou fora, aí rolou isso e quem caiu fora fui eu. Foi uma sacanagem. Falasse
na frente, sabe? Não precisava ter ido para Brasília, ter ido para aquela turma falar
191

mal de mim. Ele parece que se deslumbrou com o que viu lá. (...) Eles têm a opinião
formada deles e acham que o que eles fazem é que é o certo. Então voltou com essa
idéia na cabeça. E estão falando que eu, por estudar Magia do Caos, não posso fazer
wicca.” (Maurício)

Frente o comportamento de Valter, Maurício toma sua escolha e decide se retirar do


grupo. O ponto de discórdia é o interesse do rapaz por outro sistema mágico. Percebemos que,
mais uma vez, é o código da wicca que está em questão e que vai definir quem está apto a liderar
um coven e quem não está. Reunindo-se com bruxas de Brasília, cidade onde desde 1999 é
promovido o Encontro das Bruxas Brasileiras em Brasília, congresso wiccano que reúne bruxas
de todo país, Valter assume a postura de defensor do código, e exige que Maurício faça sua
escolha. Ao mesmo tempo, a ida para Brasília legitima seu papel de liderança através do domínio
do código, ditado agora pelas bruxas brasilienses. Sua familiaridade com elas é a marca de sua
familiaridade com o código. Ao voltar de Brasília, ele toma decisões sem consultar o amigo: ele
agora domina o código, e o amigo não; este deve escolher a qual código deseja pertencer. Se em
um primeiro momento o domínio de distintos códigos de magia fez com que Vânia fosse alçada à
categoria de mais experiente do grupo, agora Valter instituía o código da wicca como único
aceitável para quem exercesse liderança no grupo.
Valter recorda que fora a Brasília para participar de “vivências”, espécie de wokshops,
ministrados pelas bruxas da cidade.

“Eu fui a Brasília, participei de umas vivências que fizeram eu mudar completamente
a minha visão de coven. E quando eu voltei, eu falei: vamos mudar. Nesse muda, não
muda, o Maurício já estava engrenando na filosofia caoísta e ele queria ser caoísta e
usar a wicca e a gente começou a se sentir mal com aquilo.” (Valter)

Ao retornar, ele decide modificar o coven. O domínio do código é o que possibilitou esta
inserção direta sobre o grupo. Maurício, encaminhando-se para outro código, não era mais bem
vindo no grupo. Deste modo, Valter firmou-se como liderança deste segundo coven, que foi
reformulado diversas vezes até chegar à estrutura em que se encontrava quando da época da
entrevista.
192

A acusação de que Maurício não era um bruxo wiccano são parte de uma estratégia de
Valter de afastar do grupo aqueles que poderiam oferecer perigo à sua posição de liderança,
segundo o relato de Maurício. Deste modo, Valter minimiza a condição de bruxo wiccano de
Maurício, e transforma-o em praticante de outro sistema mágico-filosófico, sujeito desviante do
grupo, passível de ser alienado, exatamente como ocorrera com Joana.

“[o Maurício] Ele foi a pessoa que me falou: eu não quero mais ser wiccano porque eu
quero magia de verdade. Isso para mim doeu. Eu sempre fiz questão de ser wiccano.”
(Valter)

O teor das acusações de Valter a Maurício abalaram profundamente o relacionamento dos


dois. Mágoas e contestações surgiram dos dois lados, até que eles se entendessem novamente.
Nenhuma das partes nega, no entanto, que o envolvimento nos covens tenha, de alguma forma,
sido um problema para a amizade do grupo. Como veremos adiante, o coven é concebido como
uma família, e a sua desagregação é sentida de maneira muito profunda por seus membros. As
amizades que se colocam em jogo quando um coven termina são amizades que se formaram,
muitas vezes, fora do coven, e que sofrem abalos por causa deste.
Valter também teve sua amizade com Vânia abalada. A situação foi muito parecida com
aquela experimentada por Maurício. Após sua saída deste segundo empreendimento, Vânia
encontrou-se com Valter e Wagner para conversarem. Segundo Valter, ela teria falado sobre suas
práticas rituais como bruxa solitária e também de seu interesse por uma outra corrente mágico-
filosófica que não a wicca. Valter afirma que de um comentário seu a este respeito, formou-se
uma tempestade, que acabou por destruir a amizade entre os dois.

“Ela falou de Maat e Nema. Tudo bem, só que eu não gosto. E fiz um comentário com
o Wagner: puxa, acho que ela está impregnada de energia thelêmica. Pois é, e caí na
asneira de comentar isso com o Maurício e mais um ou dois. Comentei, sabe, mas não
foi uma coisa pejorativa, foi um comentário inocente. E deu nisso. Ela baixou o nível
comigo num encontro, numa mesa de bar.” (Valter)
193

Nema é a autora do livro “Magia de Maat”, pelo qual Vânia estava interessada na época.
É um livro sobre Thelema, corrente mágica criada por Aleister Crowley, conhecido mago do
esoterismo ocidental. O próprio Valter já havia estudado Thelema antes de ingressar na wicca,
portanto isto lhe dava aval para o comentário que fez. Novamente, estamos diante da disputa pelo
domínio de um código. Familiarizado com o código de Thelema, ele fora capaz de observar que a
ex-companheira de coven inclinava-se nesta direção. Ao mesmo tempo, caracterizando-a como
uma praticante de Thelema, ele afastava-a do código da wicca, como fizera com Maurício. O que
afastava, na verdade, eram os rivais para sua liderança no coven.
Quando o comentário de Valter chegou aos ouvidos de Vânia, ela rompeu definitivamente
com ele. Em público, numa mesa de bar repleta de conhecidos, ela afirmou que não era praticante
de Thelema, e que se fosse aquilo não dizia respeito a ninguém a não ser ela mesma, e saiu do bar
dando alguns tapinhas no ombro de Valter, indicando, deste modo, que ele estava envolvido nos
boatos. Valter recorda que não proferiu palavra frente à acusação, mas em seu relato ele se
defende. Afirma que o comentário não havia sido somente dele, mas partia também de Wagner.
Ao mesmo tempo, sentiu-se magoado com a atitude de Vânia, que o expunha publicamente como
acusador e fofoqueiro. Ela poderia ter se dirigido a ele em particular, diz, pois tinha liberdade de
esclarecer qualquer assunto com ele. A ruptura veio de ambos os lados: Valter faz questão de não
se encontrar mais com Vânia, pois não deseja passar pela situação novamente. Vânia também não
considera mais Valter como um amigo.
O que move as acusações de Valter, como vimos, é a luta pelo domínio de um código que
faria dele a liderança do coven. Exatamente como Maggie (1977) retrata, é o domínio de um
determinado código que fornece as bases para se legitimar a liderança em um grupo mágico-
religioso estabelecido. Na obra de Maggie, os códigos em disputa são o código do Santo e o
código burocrático. No nosso caso, os códigos não estão propriamente em disputa, mas há uma
disputa pelo domínio do código. Na primeira fase do primeiro coven, Vânia afirma que quem
melhor dominava o código era ela, e faz recurso a outros tipos de sistemas mágicos – como a alta
magia e a teosofia - para legitimar sua posição. Num segundo momento, quando a liderança do
segundo coven está francamente em disputa, é Valter quem usa do argumento para banir em
definitivo aqueles que não têm um domínio estrito do código da wicca. A familiaridade com os
códigos da Magia do Caos e de Thelema, exercidos por Maurício e Vânia, fazem com que eles
sejam acusados de não pertencerem à wicca, e de não dominarem seu código. Tornaram-se
194

excluídos do grupo. Valter se coloca numa posição purista: ele é o único que lida apenas com
wicca, e por isso o mais apto a liderar o grupo. Seu interesse por outros sistemas mágicos havia
ficado no passado, num tempo em que ainda não havia encontrado a wicca. Ao mesmo tempo, ele
se alinha com as conhecidas bruxas brasilienses num movimento em busca de legitimidade para
sua posição. É a partir de sua estadia com elas que ele reformula o coven e decide colocar em
cheque o pertencimento de Maurício a ele.
Ao mesmo tempo, a reação de Vânia e Maurício às posições de Valter são de uma contra-
acusação. Vânia tenta desmascarar Valter publicamente, levando para fora do grupo assuntos que
até então eram internos. Maurício, por outro lado, enxerga em Valter uma posição análoga à de
Joana. Para ele, ambos desejavam a liderança formal de um coven, e usaram de todos os artifícios
para alcançar suas metas, mesmo que para isso tivessem que romper com os amigos.
A briga de Maurício e Valter deixou seqüelas no relacionamento de ambos, mas foi
parcialmente superada, pois eles ainda se falam. Valter e Vânia, ao contrário, não se falam mais.
Como esta disputa se acirrasse, Valter guarda ainda, em relação a Vânia, o mesmo tom de
acusações que Maurício fez a ele. Dentro do coven, Valter indica que Vânia manipulava-o e
disputava com ele a liderança do grupo, mas ainda com base no código da wicca.

“Eu fiquei um pouco perdido e algumas pessoas sentiram e vieram reclamar comigo
que a Vânia estava sendo muito autoritária nas opiniões dela e eu estava indo na onda
dela. E realmente, depois eu parei para pensar e vi que ela estava sutilmente impondo
as opiniões dela e me usando, não por mal nem nada, mas me usando para validar as
opiniões dela. Então ela conversava primeiro comigo, me convencia porque os
argumentos dela sempre foram muito legais, e eu gostava, me identificava muito com o
jeito da Vânia trabalhar.” (Valter)

Embora a liderança fosse exercida por nossos três narradores, havia uma disputa interna
entre eles. As acusações trocadas a partir do fim do coven demonstram que, mesmo que
pudessem não perceber, estavam envolvidos em uma disputa. A passagem acima demonstra bem
o tom velado da disputa de que Maurício muito fala. Ele e Vânia fazem questão de frisar que só
conseguiram superar suas diferenças dentro do coven porque discutiam – ou disputavam –
abertamente. Na passagem acima, Valter demonstra que sua disputa com Vânia não era tão clara.
195

Na verdade, os dois, como casal sacerdotal do coven, disputavam a liderança com Maurício. Ele
é, a princípio, o principal oponente. Por isso Vânia recorda que ela discutia muito com ele e
Valter também, mas que Valter e ela raramente discutiam entre si. Suas divergências ocorriam
“por debaixo dos panos”, como diz. É a partir do “desaparecimento” de Valter, conforme o relato
de Vânia, que ela e Maurício vão tomando o mesmo lado em oposição a Valter, que se alinha
com seus amigos de longa data, Lúcio e Wagner, e com pessoas estranhas ao grupo, como Ana e
as bruxas brasilienses.
Vejamos agora que motivos os narradores apresentam como causas para o término do
coven.

Os motivos para o fim

Os motivos apresentados pelos narradores para o fim do grupo têm pontos em comum.
Fala-se muito nas discussões e desentendimentos intelectuais que o grupo teria experimentado.
Para Valter, estas discussões não se resumiam às três lideranças, mas se estendiam a todo o
grupo. Todos ali seriam capazes de sustentar suas opiniões, o que dificultava o consenso. Como
vimos, são estas discussões que dão origem ao que o grupo chama de “conflito de ego”,
desentendimentos baseados na disputa pela liderança através da imposição de opiniões próprias
no encaminhamento dos trabalhos mágicos e religiosos do coven. De uma certa forma, esta
disputa implicava também o domínio do código em questão. O “conflito de ego” é outro dos
motivos apresentados para o fim do coven.
Outros motivos comuns seriam a negligência de seus membros, irresponsabilidade,
indisciplina, falta de comparecimento, falta de organização. Esses motivos são apontados como
parte do processo de desagregação do grupo. Eles se reportam à dificuldade que seus membros
tinham em trabalhar em conjunto e de tratar o coven como uma obrigação ritual. Teria influência
aí também a falta de conhecimento do grupo e de alguns membros em especial (falta de domínio
do código), a falta de afinidade e as dificuldades de interação. Afinidade é outra palavra para
empatia, que Maurício usa muito ao se referir à formação inicial do grupo. Vânia, ao contrário,
achava que aquelas pessoas tinham se reunido exclusivamente para a prática wiccana, o que
dificultava sua interação, pois fora a religião elas não tinham outras afinidades.
196

Valter apresenta motivos análogos aos de Vânia para as dificuldades que o grupo
enfrentou em termos de organização interna, mas em sentido contrário. Para ele, a amizade entre
os membros dificultava o estabelecimento de uma disciplina para o grupo. Como vimos, Valter
era um dos centros do grupo, pois além de organizar os encontros da lista de discussões, era o
membro que há mais tempo conhecia Joana, Wagner e Lúcio, e foi quem convidou Ricardo a
entrar no coven. Ao contrário de Vânia, que ao ingressar no grupo conhecia apenas Santos, Valter
tinha amizades de longa data com vários membros do coven. Para ele, portanto, este pode parecer
um fator de maior peso do que para Vânia. Do ponto de vista dela, foi a situação que ela própria
vivia, ou seja, a falta de laços de amizade anteriores à formação do coven, que se tornou uma das
causas dos problemas enfrentados pelo grupo.
Valter foi capaz de apontar, em diferentes passagens, tanto o excesso de democracia
quanto o autoritarismo de Vânia e um excesso de burocracia como possíveis motivos para a
desagregação do coven. A princípio, nos parece que o excesso de democracia tem uma relação
direta com o “excesso de amizade” entre os membros. A necessidade de tomar decisões por
consenso pode ter atrapalhado o grupo. Neste sentido, Valter afirma que grupos pequenos não
conseguem trabalhar democraticamente. A falta de mando e de autoridade, embora não tenha sido
apontado por nossos narradores como um possível motivo, já havia sido apontado anteriormente,
quase num tom de profecia, por Santos, que afirmava que um coven em que ninguém manda não
consegue trabalhar. Esta é uma discussão que nos remete, novamente, às disputas de liderança
dentro do coven.
Um outro ponto é definido pelo grupo como causador de sua desagregação. Segundo
Vânia, além de coven, o grupo deveria se tornar um círculo de estudos onde o conhecimento do
grupo e de cada um pudesse ser desenvolvido. Isto, no entanto, não ocorreu. Maurício é de
mesma opinião, expressa na idéia de que “as coisas não andavam para frente”, e que o grupo “não
se desenvolvia”. Individualmente, ele diz, as pessoas poderiam estar ganhando conhecimentos,
mas o grupo não sentia que estivesse evoluindo nesse sentido. Este foi, inclusive, um dos motivos
alegados por Douglas para abandonar o coven. Ele dizia que não estava se desenvolvendo como
deveria e que poderia “atrasar” o coven. Embora o vocabulário usado – evolução,
desenvolvimento, atraso – no remeta às tradições espíritas, para este grupo ele indica a busca pelo
conhecimento e a prática efetiva de magia. É nesse ponto que o grupo se sentia insatisfeito, e
197

surgiu a sensação de que estavam estagnados. O conhecimento, o estudo de magia, mitologia e


assuntos afins, não avançava, e não só desagregava o grupo como prejudicava sua interação.
É possível perceber que os motivos apontados como os causadores da dissolução do grupo
orbitam, de uma forma ou de outra, sobre um mesmo eixo: a amizade entre seus participantes.
Este eixo é fundamental na compreensão da dinâmica de um coven e se reporta às concepções
que o grupo mantinha acerca do que um coven deveria ser. O excesso de zelo para com esta
amizade teria, segundo Valter, impedido posturas de disciplinarização mais firmes. Já para Vânia,
a amizade não era suficiente para tornar o grupo coeso. Ela expressa isto em termos de falta de
afinidade entre os membros. Valter formula, ainda, uma explicação cosmológica para a falta de
coesão e integração no coven. Para ele, havia um conflito de egrégoras pessoais, o que fazia com
que os objetivos de cada um fossem diferentes e que algumas pessoas não conseguissem trabalhar
em conjunto. O termo egrégora é muito usado pelas bruxas, e refere-se a uma concepção em que
cada grupo, tradição, panteão, coven, bruxa, ou qualquer outra instância de trabalho mágico, teria
um reflexo metafísico que consistiria de energia mágica, acessada nos feitiços, rituais,
meditações, e outras atividades correlatas. Se as egrégoras entram em choque, seus reflexos
concretos não conseguem cumprir seus objetivos. Na verdade, esta é uma explicação mística que
Valter dá para a mesma sensação que Vânia exprime: a de que a interação das pessoas no coven
estava, de algum modo, comprometida, e que esse era um dos motivos pelos quais o coven “não
andava para frente”.

Concepções de coven

O grande drama experimentado pelos narradores, que levou ao rompimento de alguns


laços de amizade, foi causado por eventos posteriores ao fim do primeiro coven. Durante sua
existência, os desentendimentos entre seus membros eram, de alguma forma, contornados. Com o
fim do coven, no entanto, nem todos mantiveram as amizades anteriormente construídas. Valter
recorda que apenas com Vânia e Maurício sua amizade foi abalada. Contudo, Vânia era a única
com quem ele tinha perdido contato. Santos, todavia, configura-se, também, em um dos ex-
membros de quem se ressente, pois era completamente ausente. Valter faz questão de frisar que
ainda é amigo de todos os outros membros do coven. Hoje, ele mantém um outro coven do qual
fazem parte Wagner, sua namorada, Lúcio e mais uma menina. Deste modo, podemos observar
198

que o núcleo formado por Wagner, Lúcio e Valter não se dissolveu, embora o último tenha
despontado como uma liderança no coven.
Maurício e Vânia, por outro lado, perderam contato com vários membros do coven. Vânia
afirma que Maurício e Santos, que já era seu amigo quando o coven foi formado, são os únicos
com quem mantém contato hoje. Maurício ainda é amigo de Valter, embora reconheça que tem
algumas mágoas. Encontrando-se raramente com este, Maurício acabou por manter um eventual
contato com Wagner e Lúcio. Com Vânia, ele diz que fala por telefone com alguma freqüência.
Dos membros do coven, ela é a mais próxima dele.
A situação vivenciada por estes três personagens, diante das situações apresentadas,
marcou definitivamente o tipo de relacionamento que mantinham entre si. Por que o coven teve
um efeito tão avassalador no relacionamento de seus membros, mesmo após o seu fim? Por que
houve a necessidade de formar-se um novo coven, fazendo com que a disputa por liderança fosse
ressuscitada? E por que disputas internas ao trabalho ritual de um grupo afetaram tão diretamente
o seu relacionamento fora do âmbito religioso?
As respostas a estas questões estão intimamente associadas ao que o coven representa para
uma bruxa e às concepções de coven que os bruxos em questão tinham. Na crença wiccana, todo
ritual deve ser realizado em “perfeito amor e perfeita confiança”. Um coven, por conseguinte,
deve ter este sentimento cultivado entre seus membros. Como vimos antes, autores de manuais
sobre wicca (STARHAWK, 1989) afirmam que o coven deve surgir a partir da prática freqüente e
conjunta de um grupo de amigos. Deste modo, o coven passa a significar uma família.

“Eu tinha uma visão muito idílica da coisa. Eu achava que ter um coven era aquela
coisa que todo mundo fala, mas que na prática é mais complicado porque você
constrói, que é aquela coisa da segunda família, e de você poder fazer magia junto e
descobrir muita coisa junto e, enfim, aquela coisa do perfeito amor e perfeita
confiança. (...) Mas eu tinha essa visão bem idílica, bem pink: a Deusa é amor, o
coven é amor total, quando no fundo as coisas não funcionam assim. E se talvez elas,
muito raramente, funcionarem assim, não é num coven que começou do jeito que o
meu começou.(...) Se é uma família, então não vai começar numa esquina maldita,
num ritual com todo mundo cheio de cachaça na idéia, em que rolaram coisas
terríveis.” (Vânia)
199

Na pesquisa de campo realizada, pudemos perceber que a noção do coven como uma
família não era exclusiva a esse grupo. O espaço de perfeito amor é comparável ao espaço
familiar. Os membros de coven passam a ser a segunda família, aqueles nos quais se confia
plenamente. Encarar o fato de que, nesse grupo familiar, nem todos são confiáveis é uma
experiência dolorosa. Para Vânia, após o término do coven, o perfeito amor e perfeita confiança
se tornaram ilusórios. Principalmente quando ela recorda que o grupo tinha se estabelecido em
função da saída de Joana. Ao mesmo tempo, ela afirma que o amor e a confiança que devem
existir entre os membros de um coven devem ser construídos nas relações mantidas entre eles.
É fácil entender agora porque a questão da empatia entre os integrantes do coven tomou
vulto nos relatos de Maurício. A empatia a que ele faz menção é o “perfeito amor e perfeita
confiança” dados a priori, sem a necessidade da construção desses sentimentos entre as pessoas.
Vânia rompe com essa idéia, e por isso ela é capaz de enxergar no grupo uma falta de afinidade
para o trabalho em conjunto. O grupo que se uniu em função da saída de Joana, não foi capaz de
encontrar outros motivos para permanecer coeso. O “amor total” não permeou o coven, e ele se
dissolveu. Ao mesmo tempo, ela reafirma a idéia de que aquilo que começa mal, não pode
terminar bem.
A experiência da desagregação do coven foi definida por Vânia como traumática. O
ingresso no coven é hoje definido como um erro. Suas idéias sobre este ser um lugar de perfeito
amor e confiança não mudaram, mas os critérios para encontrar parceiros sim. Os parceiros não
devem mais ser procurados entre os praticantes de bruxaria, mas entre os amigos que praticam ou
desejam praticar a bruxaria. Deste modo, ela reafirma o coven como segunda família, e expressa
que o destino de fracasso de seu coven deveu-se à falta de amizade entre os membros, que se
expressa como falta de amor e confiança.
No relato de Maurício, o coven aparece como um lugar de aprendizado e de troca de
experiência. Por isso sua insistência em dizer que o que levou o grupo à ruína foi a estagnação
desses objetivos, foi o “não andar para frente”. Era também o lugar de perfeito amor e confiança,
que viu ruir quando foi alvo das intrigas de Valter, como relata. Ele recorda que vivia muito
intensamente a idéia de estar em um coven, mais até do que outros membros. Dos trabalhos de
escola às músicas que ouvia, seu mundo girava em torno da bruxaria. Quando sentiu que o coven
estava se desmantelando, ainda tentou reergue-lo, mas seus esforços foram em vão. Maurício
200

ingressou em outro coven após todo o processo, e passou a praticar com a namorada e um grupo
de amigos dela.
Para Valter, o coven era a realização de um sonho. E quanto mais parecido com o ideal de
um coven como o descrito nos livros, melhor seria. Tanto que ele se refere a isto como uma
utopia, um grau de analogia próximo ao conceito de ilusório que Vânia usa para definir suas
próprias concepções de coven. Era a utopia de uma prática perfeita, como o amor e a confiança
que deviam perpassar seus membros.

“Coven para mim significava o máximo, né. Dentro do que eu sabia de wicca, aquilo
ali para mim era a realização de tudo que um wiccano podia querer: participar de um
coven. Se tivesse treze pessoas, melhor. Participar de um coven, fazer altos rituais.
Aquilo ali para mim era a utopia da perfeição da prática. Hoje eu entendo que não é
bem assim. Como toda utopia, com o tempo ela se desfaz. Mas para mim aquilo ali era
a minha vida. Eu vivia em função daquilo, matava aula, fazia o caramba para aquilo
dar certo. Para mim era tudo.” (Valter)

O comprometimento de Maurício e Valter com o coven era muito grande. Ambos refletem
sobre isto e afirmam que o coven era o principal objetivo de suas vidas naquele momento, e que
não se dispunham a mais nada, vivendo aquela experiência de maneira integral e intensa. Suas
identidades de sujeito estavam entrelaçadas com a idéia do coven, o que fazia deles bruxos vinte e
quatro horas por dia. Maurício se recorda, inclusive, que não tinha outro assunto, e havia se
tornado uma companhia chata e impertinente, pois queria falar sobre o coven em qualquer
momento e em qualquer lugar, tal o grau de comprometimento. Valter, por outro lado, mostrava
que sua lealdade era primeiro ao coven, pois até da escola ele se desincumbia em favor da prática
religiosa.
Nesta época, nenhum dos dois trabalhava. Outros membros do coven, no entanto,
trabalhavam, e por causa disso se comprometiam menos com o grupo, como Santos e Lúcio. A
saída de Douglas expressa, também, que seu grau de comprometimento com o grupo não era
grande, pois ele tinha dúvidas sobre se tornar ou não um bruxo wiccano praticante. Na verdade,
suas dúvidas eram mais acerca da bruxaria do que do grupo em questão. Ele não havia ainda
201

conseguido formular uma identidade de bruxo wiccano, como Maurício e Valter haviam
conseguido. Isto o levava a ter dúvidas sobre o que estava fazendo e sua influência sobre o grupo.
Embora Valter, na passagem acima, não fale no coven como uma família, quando
perguntado a respeito de suas concepções atuais do que deva ser um coven, ele evoca este tipo de
imagem. Seu coven atual estaria “evoluindo para uma concepção familiar”. Os rituais são feitos
na cozinha, a partir de uma ceia preparada por Lúcio. Dos cinco membros, dois se casaram num
ritual wiccano, e os outros são considerados como irmãos. A concepção de família se tornou tão
forte, que levou Valter a afirmar que não deseja mais um coven, mas um clã, um lugar para criar
os filhos de acordo com as crenças pagãs da bruxaria wicca.

“Só que agora eu não quero mais um coven. Eu quero mais um clã. Eu quero que
meus filhos sejam bruxos e que eu possa dizer que eles são fulano de tal do clã de tal.
Eu pretendo transformar o meu coven numa tradição familiar.” (Valter)

A idéia do coven como segunda família se tornou tão forte para Valter, que ele quer
transformá-lo em sua primeira família. Seu coven está vinculado a laços de parentesco: Luís,
Wagner e Marta são considerados seus irmãos, e Wagner casou-se em um handfasting com
Sônia. Logo, eles já estão trabalhando em família. A idéia agora é alcançar o modelo de um clã.

O coven como a família da bruxa

Não é só para Valter, Vânia e Maurício que o coven sugere a idéia de família. Como
vimos, esta é uma idéia arraigada no próprio discurso das bruxas e de sua religião. A idéia do
amor e confiança perfeitos é, nesse sentido, crucial. Edna, uma das bruxas cariocas que
entrevistamos, relata o fim de seu coven como uma falha nessa relação “perfeita”. Edna tem 34
anos e há sete é bruxa wiccana. Foi iniciada em um coven no Rio Grande do Sul e quando
retornou ao Rio de Janeiro, onde nasceu, organizou um coven próprio, que durou dois anos.

“Os covens, eles se formam por afinidade, não é uma coisa que se forme aberto a
qualquer pessoa. Você forma com amigas bruxas que chegaram no seu caminho, que
você tenha afinidade porque se não tiver afinidade acaba dando problema, pessoas
202

que se desentendem e acaba afetando o trabalho, porque o ser humano é muito


egocêntrico, muito infantil para trabalhar. Quando uma menina se ofende com a
outra, elas não conseguem desviar a raiva e a frustração e trabalhar o trabalho
mágico independente disso. Foi por isso que eu parei. Porque eu tinha começado um
covenzinho assim, mas não deu certo exatamente por causa disso. Administrar egos é
uma coisa muito desgastante.” (Edna)

No relato de Edna a afinidade é fator fundamental para o sucesso de um grupo como


coven. A amizade entre os membros, sua afinidade, pode vir a determinar as relações que os
membros manterão entre si. Lembremos que Vânia via a falta de afinidade entre os membros de
seu coven como um dos motivos que levaram aos problemas acima relatados e ao fim do grupo.
Para efeito comparativo, retomaremos o discurso de uma outra entrevistada, Carla. Carla é
uma bruxa carioca de 32 anos, cujo primeiro contato com a wicca se deu através de um grupo de
praticantes que propiciou seu ingresso a um coven. Carla passou treze anos como uma bruxa que
pertencia a covens. A princípio, no coven onde foi iniciada e instruída; posteriormente, em um
coven que ela mesma montou e do qual é a Alta Sacerdotisa.
Na entrevista que nos concedeu, a idéia de um coven como família é clara e reforçada
constantemente em seu discurso. A Alta Sacerdotisa é comparada a uma mãe, como a própria
divindade wiccana que ela representa, a Grande Mãe. O Alto Sacerdote, no entanto, jamais é
visto como um pai. A iniciação ritual é um dos meios de formular esta idéia do coven como uma
instância familiar e da Sacerdotisa como uma figura maternal. Mauss (1979) indica que a
iniciação é um mito ritual de morte e renascimento. De fato, a primeira iniciação das bruxas
marca a morte de seu velho ser e o nascimento de uma nova persona, comprometida com
obrigações rituais e a revelação de segredos mágicos e cósmicos. Ela deve, apropriadamente, ser
realizada na época do solstício de inverno, pois este é o período do sabá que marca o nascimento
do Deus.

“A primeira iniciação é no solstício de inverno, no Natal, o nascimento. Quando você


nasce, então você cria o vínculo, o cordão umbilical com a sua Grande Mãe, a sua
Sacerdotisa.” (Carla)
203

A bruxa iniciada é uma bruxa renascida do útero da Grande Mãe, mas a pessoa que a
representa na Terra é a Sacerdotisa. Deste modo, o vínculo criado é idêntico ao do nascimento
real de uma criança; há uma mãe, um bebê a ser nutrido e ensinado, e um cordão umbilical que os
une. O iniciado passa a ser um produto da Sacerdotisa exatamente como um bebê é produto de
sua mãe.
Explicações cosmológicas entram em ação, também, para definir esta posição materna da
Sacerdotisa. Para Carla, o hemisfério sul e sua posição astrológica são definitivos nesta
identificação da Sacerdotisa com o papel maternal, coisa que não aconteceria no hemisfério norte.
Duas concepções de mulher e de mãe entram em choque: no sul, teríamos uma mãe zelosa e
atenta, disposta a viver em função de seus filhos; no norte, as mães estariam mais em atividade e
disposta a viver sua própria vida ao invés de se dedicar totalmente aos filhos.

“As mães do hemisfério norte, elas trabalham. São aquelas mulheres que o filho
desmamou, já está em creche, elas já estão em atividade. Aqui não, as crianças
mamam até dois anos às vezes. A mulher pára de trabalhar por causa dos filhos,
engorda por causa dos filhos. Tem aquela dependência da mãe, muito mais daquelas
mães tipo mãe italiana, mãe judia, bem apegada. Então é bem diferente o contexto de
ser mãe aqui do que no hemisfério norte.” (Carla)

O trabalho e o cuidado pessoal aparecem como categorias determinantes do grau de


dedicação da mãe ao filho. O trabalho, como atividade individual, se contrapõe ao cuidado com
os filhos. Ao retornar ao trabalho, a mãe deixa de se dedicar à prole, e passa a se dedicar a si
mesma. Por isso o cuidado pessoal também está em jogo na medida dessa dedicação. Ao se
dedicar a si, a mulher não está se dedicando ao filho. A mãe que pára de trabalhar, que perde a
silhueta esbelta, engorda e dá o seio por até dois anos forma um modelo de mãe mais
comprometida com a criação da prole: é a mãe apegada, a mãe que, de tão dedicada, torna seus
filhos dependentes dela. Sua vida é ser mãe.
Se os aspectos astrológicos influenciam a maternidade e as mulheres, poderíamos esperar
que influenciassem também as bruxas. Como mulheres mais próximas ao ideal de mãe dedicada,
as bruxas do sul incorporam categorias que reafirmam esta posição. São dotadas de qualidades
próprias ao feminino, exatamente como a maternidade. Seriam mais intuitivas, mais mágicas,
204

xamânicas, emotivas, passionais. As bruxas do norte seriam, ao contrário, mais frias, racionais,
dedicadas ao estudo e ao trabalho. Elas incorporam adjetivos usualmente masculinos.

“As bruxas do hemisfério norte, elas estudam muito. (...) As bruxas aqui no hemisfério
sul são basicamente intuitivas. Elas têm um poder de intuição que equipara as do
hemisfério norte, porque elas [do norte] têm o princípio hermético, e elas aqui [do sul]
têm o princípio mágico incutido dentro delas. E a intuição, que é muito mais, é como
se fossem xamânicas até. Há uma diferença, porque a canalização das emoções para
as bruxas do hemisfério norte é muito mais difícil. Elas são muito frias. Aquela coisa
do ódio e do amor, do ser passional, é muito mais difícil.” (Carla)

O “princípio hermético” da magia refere-se a padrões de pensamento, enquanto a idéia de


xamanismo se refere à experiência de contato total com a natureza e supressão do ego. As bruxas
do sul se mantêm como emotivas, vinculadas à magia – em oposição à razão e ao estudo -,
intuitivas. Formula-se, no discurso de Carla, o mesmo tipo de oposição que observamos em
Frazão. De um lado, o pólo constituído pelo trabalho, indivíduo, ego, razão, obrigação, um pólo
masculino ou referente à civilização; de outro, o pólo formulado a partir das concepções de
irracionalidade: a magia, a emoção, a intuição, o xamanismo. Para a bruxa, como para a mãe, é o
lado mais emocional que dá a dimensão de seu poder. A mãe dedicada, que esquece de si e vive
para os filhos é o modelo ideal de maternidade positivamente valorado. A bruxa intuitiva,
xamânica, movida pelas emoções, é a única que consegue romper com a ordem racional da
civilização da qual ela não faz parte, pois está mais alinhada com a natureza – pelo menos em
discurso. Formula-se, a partir deste discurso, uma concepção tradicional de feminino, mas cuja
valoração é invertida e tomada agora como positiva.
Não podemos esquecer que a própria divisão geoeconômica do mundo atual indica, para o
senso comum, uma visão das categorias de racionalidade e trabalho como categorias do próprio
hemisfério norte – ocidental -, mais industrializado e rico que o sul, mais propício à razão em
suas invenções e descobertas, e mais afeito ao trabalho e aos princípios do individualismo.
Dumont (1992) classifica a estrutura social ocidental como individualista, enquanto a Índia, em
comparação, apresentaria uma estrutura holista. O Brasil, na visão de DaMatta (1991), estaria
entre esses dois padrões, tendendo para uma organização holista, de cunho relacional em alguns
205

momentos e para o individualismo em outros. O discurso de Carla se encontra claramente afinado


com estas concepções, ele apenas apresenta uma valoração própria da bruxaria no tocante a estes
temas. A sua “bruxa do norte” se apresenta como individualista enquanto a “bruxa do sul” tem
um comprometimento maior com a idéia de família e, em conseqüência, com o universo
relacional da casa que DaMatta aponta como um processo tipicamente brasileiro.
A partir de Birman (1995), encontramos um modelo de Dumont (1978) para a família
mediterrânea, onde a idéia de totalidade é central. É ela o elemento englobante que antecede e
define as relações entre as partes. Este tipo de modelo nos remete ao modelo hierárquico que
Dumont formula para o caso indiano. Entendemos que o modelo de maternidade formulado por
Carla para as mulheres do hemisfério sul está em acordo com este modelo mediterrâneo, embora
os papéis masculinos não estejam claramente dispostos em sua fala. Poderia-se pensar em um
modelo matrifocal, mas a recusa da mãe ao trabalho não possibilitaria isto se o trabalho é
entendido como fator de afastamento. De qualquer forma, não nos parece que a “mãe italiana”
tenha sido evocada em vão como um modelo desta mãe dedicada.

Esse apego entre mãe e filhos, no modelo de Carla para o sul, se reflete na própria relação
da Sacerdotisa com os membros do coven. Ela passa a simbolizar este modelo de mãe e o
rompimento com o grupo se torna doloroso e negativo. Carla trata esta relação em termos de
dependência.

“Aqui no hemisfério sul elas são completamente passionais e dependentes da


Sacerdotisa. Quando você tem uma bruxa em um coven, o dia do rompimento, de você
pegar e tomar um tapa na bunda, de você sair do coven, parece que tiram teu chão.
Você parece que não consegue andar. É um desespero. Aquela coisa da mãe, do
vínculo com a mãe, quando desmama o neném. Então elas ficam muito mais
emocionalmente dependentes da Grande Mãe, da Grande Sacerdotisa.” (Carla)

Na passagem acima, o coven é a própria mãe, simbolizada na figura da Sacerdotisa. A


saída do coven é a saída da mãe, o nascimento, o abandono do útero. Todas as metáforas usadas
por Carla para esta saída nos remetem à idéia do nascimento de um bebê: o “tapa na bunda”, o
desespero, a incapacidade de andar e, em outro nível, o desmame.
206

Em outro momento, Carla volta a tratar o coven como família, e não apenas como mãe. A
idéia de “perfeito amor e perfeita confiança” se mostram vitais para o ingresso e a manutenção de
um coven.

“Por isso é que se fala: em perfeito amor e perfeita confiança. Por que você tem que
amar quem está dentro [do coven], você tem que confiar, porque na hora que você está
entrando dentro do círculo você está confiando a sua vida.” (Carla)

Há uma idéia mágica em jogo de que o círculo, espaço referente ao templo wiccano, é o
lugar de trocas energéticas de tal intensidade que o elo formado entre seus membros não é
facilmente dissolvido. Caso haja problemas mágicos, a vida dos participantes é posta em risco.
Por isso a perfeita confiança é necessária. Esta idéia corrobora a noção do coven como uma
família cujos laços não se dissolvem e cuja vida depende uns dos outros. Desta última idéia,
surge a concepção de uma religião tribal, uma religião de apoio mútuo de grupos que bem
poderiam ser o clã que Valter almeja formar.

“É uma religião que é basicamente tribal. É a sobrevivência dos seus semelhantes. É a


sobrevivência, é o amor do coven, é o amor da sua família”. (Carla)

A concepção de família que vem à tona é o de uma unidade de produção fechada em si. O
grupo, a família extensa, produz para si e toma conta de seus membros, suprindo suas próprias
necessidades. Esta é a noção de sobrevivência. Dependendo da cooperação mútua, ela só pode ter
lugar num ambiente de amor e confiança, um ambiente de solidariedade. Este ambiente era
aquele almejado não apenas por Valter, mas por Vânia e Maurício. Este buscava a cooperação em
termos intelectuais, no âmbito do estudo e da prática ritual. Aquela buscava, além da cooperação
intelectual, o amor familiar irrestrito. E, neste sentido, o que estes três personagens buscavam em
um coven não foi alcançado.

A idéia de que o coven é uma família é próxima da idéia de que um terreiro de candomblé
e sua estrutura hierárquica em termos de parentesco formam uma concepção de família. Birmam
(1995) assume que a “família de santo” seria uma família de único genitor, no caso a mãe ou pai-
207

de-santo que chefia o terreiro. Esta é a visão de Carla quando aponta a Alta Sacerdotisa como
uma mãe, mas não aponta o Sacerdote como um pai. No caso da wicca, podemos dizer que o
coven é uma família de único genitor, a mãe. Em nenhum momento o discurso de Carla permite
que o papel desempenhado pela Sacerdotisa seja transpassado ao Sacerdote. A relação entre
membros de coven e sua chefia é uma relação de mãe e filho, jamais de pai e filho. A mãe, como
vimos, encarna preceitos de amor e dedicação que estão em oposição ao pólo masculino. Esta
família formada pelo coven, como a “família de santo”, é constituída a partir de relações de
cunho religioso e ritual.
A idéia de que os terreiros constituem “famílias de santo” está de acordo com a idéia
expressa por Maggie (1977) de que a segmentação contínua destas “famílias” dá origem a
linhagens. Um filho-de-santo que se afasta de seu pai ou mãe-de-santo para constituir seu próprio
terreiro está dando origem a uma segmentação em termos de linhagem, pois se torna um
“descendente” de seu terreiro original. Os covens funcionam da mesma forma. O rompimento
com o coven a que Carla se refere é a constituição de um novo coven pelo ex-membro, agora na
qualidade de liderança.

Reflexões sobre o grupo estudado

Embora o cerne dos desentendimentos entre os membros do coven de Valter, Vânia e


Maurício fosse as diferentes concepções de coven e as diferentes disponibilidades de se
efetivamente participar dele, existem outras questões na análise deste caso que devem ser
levantadas. Para isto, vamos partir da obra de Maggie (1977) para uma análise conclusiva sobre o
caso.
No grupo descrito pela autora, a formação de um novo terreiro se dá após o rompimento
com uma mãe-de-santo. O grupo formado por pessoas que já se conheciam, como era o caso da
maior parte dos membros de nosso coven, parte para formar um novo terreiro. Um das primeiras
dificuldades que enfrentam é o desvio de conduta de sua nova mãe-de-santo. Este desvio é visto
como fruto de uma condição de doença e loucura. Após afasta-la do cargo, o grupo busca um pai-
de-santo. A saída da mãe-de-santo, contudo, gera no grupo o medo da demanda. A demanda é o
ataque mágico, iniciado com uma acusação. No caso do coven em questão, Joana estaria
exatamente na posição da mãe-de-santo afastada do cargo. Incapaz de seguir a conduta esperada
208

pelo grupo, ela sofre acusações de ser sujeito de magia maléfica, a demanda, experimentada pelo
coven como vampirismo e ataque psíquico. Mesmo após a sua saída, o grupo ainda
experimentava a possibilidade de que ela viesse a demandar contra eles.
A demanda é uma peça chave na compreensão do caso estudado pela autora. Ela era a
expressão de uma crise. Definia as fronteiras internas tanto quanto as fronteiras externas do
grupo. Os acusados da demanda, no caso do coven em questão, eram sujeitos de fora do grupo,
mas que dele já havia participado. É uma acusação que marca a ruptura com o grupo, ao mesmo
tempo em que afirma quem são seus membros de fato. O ritual no qual Douglas é oficialmente
banido, é um ritual demarcatório de sua condição de não-membro. E como ex-membro, ele era
um sujeito preferencial para a acusação de ataque mágico. O ritual formula, portanto, não apenas
sua saída, mas a proteção que o grupo precisa contra seu eventual ataque.
Seguindo a narrativa de Maggie, o que sucede o ingresso do pai-de-santo como liderança
do novo grupo é uma disputa entre ele e o presidente do terreiro, disputa por liderança que se
dava em termos de distintos códigos. O pai-de-santo afirmava seu poder com base no código do
santo, já o presidente usava do código burocrático e dos valores da sociedade mais ampla para se
impor como liderança. Esta estrutura de disputa é aquela que Vânia, Maurício e Valter
experimentaram. Valter mantém-se fiel ao código da wicca, e passa a desmerecer seus
companheiros como detentores deste código. Deste modo, ele coloca-os como praticantes de
outros sistemas mágicos, e com isso os exclui da possibilidade de liderar o grupo. Suas acusações
servem para delimitar novamente o grupo, desta vez excluindo os únicos que ofereciam algum
perigo ao seu papel como liderança.
Embora Maggie observe que o terreiro pode ser visto como um sistema simbólico que
representa determinados aspectos da sociedade brasileira, estes aspectos não são os mesmos
levantados na análise deste coven. O grupo não era organizado de uma maneira tão hierárquica
quanto um terreiro. Ao contrário, a disputa pela liderança exercida de maneira descomprometida
demonstra que não havia uma hierarquia em cheque. Enquanto o coven funcionou, a amizade
entre Vânia, Valter e Maurício permaneceu intocada. Mesmo sabendo que disputavam, de alguma
forma, a liderança do grupo, isto não foi motivo para que rompessem. Este rompimento só vem
depois do fim do coven e na tentativa de formar um novo coven. São os processos posteriores ao
fim que indicam a ruptura entre os três, ou melhor, o rompimento de Valter com Vânia e
Maurício.
209

Por outro lado, a autora indica que o terreiro estudado apresentava uma hierarquização
que revelava, de uma forma invertida, a representação do grupo com referência à sociedade mais
ampla. Em termos hierárquicos formais, isto não pode ser dito sobre a bruxaria wicca, nem sobre
o coven estudado. Em termos de gênero, esta é a hipótese que desejamos alcançar. Se retomarmos
as concepções de família e de feminino apresentadas por Carla, esta comparação se torna
possível. Landes (1967) indica que os terreiros eram o lugar privilegiado para esta inversão, em
termos de gênero. O status negado a uma mulher na sociedade brasileira podia ser alcançado
através do cargo de mãe-de-santo. Da mesma forma, entendemos que aquilo que é negado em
termos de status à mulher ainda hoje no Brasil pode ser alcançado através da identidade de bruxa.
É esta identidade que permite que a mulher não apenas seja uma liderança religiosa – como a
mãe-de-santo – no cargo de Alta Sacerdotisa, como também permite que ela rompa com a
valoração imposta ao feminino pelas sociedades patriarcais. Não há um rompimento completo
com o esquema de pensamento patriarcal, pois a wicca é uma religião que se remete
constantemente à tradição, mas há uma inversão na valoração apresentada para a sociedade mais
ampla. Nessa inversão a menstruação, freqüentemente considerada suja, é reapropriada como um
poder feminino; a faceta emotiva e intuitiva da mulher passa a ser valorizada; a maternidade
passa a ser uma força da mulher, e não um estado de apreensão e vergonha; a sua vida sexual não
é mais regulada ou apresenta sentimentos como culpa e vergonha; o útero subjuga o falo em
importância; o cuidado do lar e da família é valorizado numa ordem em que o trabalho é o que
forma a personalidade e o gosto; a ludicidade do amor e da magia são expostos como um bem, e
não um produto irracional. Desta forma, aquilo que fazia da mulher ser inferior ao homem, passa
a fazer dela ser mais poderoso.

INTERNET NA FORMAÇÃO E DISPUTA DE UM GRUPO

A internet tem se apresentado como um dos meios de comunicação mais usados no


Ocidente. Pode-se encontrar qualquer tipo de informação através deste sistema. Sua estrutura em
rede permite que muitas pessoas se comuniquem ao mesmo tempo, participando de salas de bate-
papo, ou chats, e listas de discussão. Observamos que a internet se tornou um veículo
210

preferencial de comunicação também para as bruxas brasileiras. Em dez entrevistas realizadas


com diferentes bruxas e bruxos cariocas, percebemos que a internet havia tido uma importância
crucial para quatro deles. Em todos esses casos, a internet havia sido veículo para um primeiro
contato com a bruxaria wicca ou com outras bruxas praticantes de wicca. Em função disto, até
mesmo um coven foi formado com pessoas que se conheceram através da internet. Diante dos
fatos, acreditamos que seria interessante formularmos um perfil do âmbito virtual da wicca no
país. Ao ingressarmos neste momento do estudo de campo, descobrimos que parte do que ocorre
no meio da bruxaria wicca se desenvolve através da internet, e de lá se propagada no universo
concreto.
Podemos subdividir a informação encontrada sobre wicca na internet em dois grupos
diferentes: aquela que é veiculada através de páginas ou sites, e aquela que é veiculada através de
chats e listas de discussão. No primeiro caso, há uma única pessoa ou grupo que assina a página,
responsabilizando-se desta maneira pelo seu conteúdo. No caso dos chats, ou salas de bate-papo,
conversas paralelas são mantidas pelos presentes e cada um divulga a informação que lhe
convém. O chat se diferencia da lista de discussões pela fugacidade de sua existência. Ele é como
um bate-papo real. Os chats acessados pelas listas da qual participamos eram o Wicca e Bruxaria,
encontrados em um grande portal e provedor. A lista de discussões funciona com procedimentos
outros: um gerenciador de e-mails faz com que o assinante da lista receba todos os e-mails
postados a ela. Deste modo, a troca se faz através de correspondência escrita, o que permite com
que os participantes troquem fotos, gravuras ou outro tipo de imagens, arquivos com documentos
e livros inteiros, ou apenas compartilhem suas idéias e opiniões.
Para o corrente trabalho, acompanhamos três diferentes listas de discussão na internet.
Cada uma mantinha regras próprias de funcionamento e tinha diferentes moderadores. Tratá-la-
emos como listas A, B e C, cada uma com cerca de 200 a 300 membros inscritos. As listas A e B
destinadas à discussão e troca de informações sobre a wicca apenas, e mantinham a peculiaridade
de serem coordenadas por duas diferentes pessoas, de estreita amizade, que eram respectivamente
o presidente e a diretora de assuntos jurídicos da única associação brasileira de praticantes de
wicca, conhecida como ABRA-WICCA. Funcionavam, deste modo, como listas irmãs, ou
correlatas. Era possível perceber como, freqüentemente, assuntos de uma lista passavam, através
de membros comuns, para a outra lista. Participamos destas listas no período de fevereiro a
211

setembro de 1999. Interessante notar que os membros de uma lista são, freqüentemente, membros
de mais listas sobre o mesmo assunto.
A lista C foi mantida por diferentes moderadores no período em que dela participamos, de
junho a dezembro de 1999. Diferente das outras duas listas, não tinha nenhum tipo de vínculo
com alguma instância institucional nem se destinava exclusivamente a discussões sobre a
bruxaria wicca. Era possível trocar informações acerca de qualquer assunto mágico e religioso
nesta lista. Foi possível perceber que alguns de seus membros eram também membros das listas
A e B. Não coletamos dados desta lista, mas apenas acompanhamos suas dinâmicas e discussões,
visto que esta lista era freqüentada pela escritora Márcia Frazão. Ela se tornou importante para
acompanhar a disputa pela liderança no grupo da wicca no Brasil. Na medida em que Frazão e os
coordenadores da ABRA-WICCA passaram a exercer uma constante disputa por espaço como
figuras mais importantes da bruxaria no país, as listas se tornaram seu campo de batalha, pois era
onde se “encontravam” e debatiam suas opiniões. Neste processo, Frazão deixou a lista A e
apenas pudemos acompanhar seus movimento nesta disputa através de suas mensagens na lista C.
Uma vez membro destas listas, pudemos perceber como o grupo da wicca no Brasil está
em franca disputa por sua liderança. Nesta disputa, alinha-se a ABRA-WICCA, de um lado, e
Márcia Frazão, de outro. Como os coordenadores da ABRA-WICCA moram em Brasília e São
Paulo, enquanto Frazão reside em Nova Friburgo, interior do estado do Rio, a internet se
transformou em veículo chave para o domínio do grupo. Não só porque é na rede virtual que suas
opiniões podem entrar em debate, mas também porque esse debate se dá em público. A internet
se tornou, deste modo, um elemento chave nesta disputa, tanto mais quando observamos que é
através dela que muitos têm o seu primeiro contato com a wicca. Eles chegam a este contato,
portanto, num território sitiado, e são instados desde o primeiro momento a tomarem um lado
nesta disputa.
Antes de nos aprofundarmos nestas questões, vejamos primeiro o perfil dos membros das
listas A e B. A lista C não apresentou oportunidades para que o perfil de seus membros fosse
analisado.
212

Perfil das bruxas internautas

Para traçarmos o perfil das bruxas internautas fizemos uso de mensagens postadas
voluntariamente pelas mesmas às listas A e B. São informações não-requisitadas por nós, das
quais nos aproveitamos para este estudo. Muitas bruxas deixaram claro que a informação que
prestavam era fator de insegurança pessoal e que só davam tal tipo de informação sobre si
mesmas porque os moderadores da lista garantiam “que não haveria problemas”, por isso
omitimos seus nomes. O problema a que se referem é, possivelmente, a idéia de que suas
identidades de bruxa possam se tornar públicas e que isto venha a prejudicá-las de algum modo.
O preconceito contra as bruxas foi um tema de discussão na lista A e desencadeou alguns relatos
sobre experiências pessoais de preconceito religioso sofrido. Deste modo, não requisitamos as
informações que usaremos aqui, mas apenas nos apropriamos daquelas que foram veiculadas nas
listas. Por este motivo, os números para cada variável não completam o número total de
questionários obtidos: alguns questionários apresentam maior número de informações que outros.
Como as apresentações de novos membros eram comuns nas listas A e B, nos utilizamos delas
também para montar um perfil desses usuários. Algumas apresentações definem apenas sexo e
idade. De qualquer modo, um universo total de 77 questionários pode ser analisado, traçando o
perfil abaixo.

• Universo total: 77

• Sexo: para um total de 77.


Homens: 22.
Mulheres: 55.

• Idade: para um total de 69.


13 a 15 anos: 11.
16 a 20 anos: 24.
21 a 30 anos: 28.
31 a 41 anos: 6.
213

• Estado Civil: para um total de 46.


Solteiro: 35.
Casado ou co-habitação: 9.
Divorciado ou separado: 2.

• Cidade e Estado de residência: para um total de 64.


São Paulo (capital): 11.
São Paulo (interior): 8.
Rio de Janeiro (capital): 12.
Brasília: 6.
Belo Horizonte: 6.
Minas Gerais (interior): 4.
Cuiabá: 1.
Goiânia: 1.
Recife: 1.
Belém: 1.
João Pessoa: 1.
Vitória: 1.
Santa Maria (RS): 1.
Maranhão: 1.
Curitiba: 5.
Londrina (PR): 2.

Portugal (Lisboa e região): 2.

• Ocupação profissional: para um total de 53.


Estudante de primeiro e segundo graus ou curso técnico: 7.
Estudante universitário: 9.
Estudante (graduação indefinida): 9.

Advogado: 3.
214

Assistente de importação: 1.
Assistente social: 1.
Astróloga e taróloga: 1.
Comerciante: 1.
Escritor: 1.
Físico: 1.
Médico: 1.
Pedagogo: 3.
Professor: 5.
Psicólogo: 1.
Publicitário: 1.
Relações públicas: 1
Secretária: 1.
Técnico em informática: 1.
Técnico em química: 1.
Técnico em telecomunicações: 1.
Tradutor: 1.

Outros: 2.

A primeira observação a ser feita é a maior presença de mulheres do que de homens entre
as bruxas internautas. Seu número é duas vezes e meia superior ao de homens. As faixas etárias
representadas demonstram que a internet seduz o público mais jovem, visto que a partir dos 41
anos não há ninguém na amostragem. A bruxaria parece também exercer um fascínio maior sobre
os jovens. A maior parte dos membros das listas A e B está na faixa dos 13 aos 30 anos. Quanto
ao estado civil, com uma faixa tão jovem de população, é compreensível que o número de
solteiros supere o de casados em quase quatro vezes. Da mesma forma, é compreensível que o
número de divorciados seja pequeno. Não foi possível averiguar o número de filhos de cada
bruxa.
A grande parcela de jovens entre as bruxas internautas reflete-se na ocupação profissional.
Os estudantes (25) são quase metade do universo de ocupados (53). Apenas quatro bruxas
215

estudam e trabalham ao mesmo tempo. Entre aqueles que declararam a natureza de sua ocupação,
podemos verificar a predominância de profissões de nível superior ou técnico. A única astróloga
e taróloga declarada do grupo não constitui exceção, visto que é necessário determinado
conhecimento especializado, embora não educação formal, para o exercício de tal função. Em
entrevistas feitas anteriormente, pudemos constatar um número maior de bruxas que se
declaravam astrólogas ou tarólogas como profissão. Entendemos que esta discrepância ocorre,
sobretudo, devido às listas de discussão não acolherem apenas bruxas praticantes de wicca, mas
toda uma gama de esotéricos e ocultistas, ou indivíduos interessados nestes temas. Muitos
membros de listas estão, também, em busca de uma religião, não apresentando uma opção
declarada ou definida. Apesar disto, sabemos que as pessoas que criaram as listas A e B estão
inseridos no mercado esotérico como bruxos. São pessoas que aparecem nos meios de
comunicação como praticantes de bruxaria, são membros diretores da única associação brasileira
de praticantes de wicca (ABRA-WICCA), são palestrantes sobre o tema e professores de bruxaria
em cursos organizados por eles em suas cidades.
Os membros das listas estão concentrados na região centro-sul do país, com
predominância clara de grandes metrópoles, à exceção do interior paulista. Apesar desta
concentração, todas as regiões brasileiras estão representadas nesta amostragem: a região Norte
tem um representante; o Nordeste tem três; o Centro-Oeste tem oito, alavancado por Brasília; a
região Sul tem 8, a maioria no Paraná; o Sudeste tem 42. Estes números demonstram que os
praticantes de bruxaria e internautas são habitantes urbanos, especialmente do Sudeste, e pessoas
com altos graus de formação escolar. É interessante observar que os estados de Minas Gerais,
Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo são os únicos a apresentarem bruxas residentes fora de
suas respectivas capitais. Observamos, também, que o número absoluto de praticantes da wicca
no Rio de Janeiro (12) é superior ao de São Paulo capital (11) e São Paulo interior (8), perdendo
apenas para o estado de São Paulo como um todo (19). Constitui-se, assim, como o maior pólo de
bruxas wiccanas do país, se nos detivermos nos números absolutos por cidade.

A busca de uma religião é, muitas vezes, apresentado nas listas como o motivo pelo qual a
wicca foi descoberta. Ela é freqüentemente apontada como a religião escolhida após uma longa
busca ou a religião adotada “desde sempre”, ou desde o nascimento, pelas bruxas, o que está de
acordo com as entrevistas que realizamos. A busca é um conceito usado na narrativa dos
216

participantes da Nova Era (HEELAS, 1996), e denota a experiência com várias técnicas e filosofias
deste movimento até o encontro com aquele considerado ideal. O encontro da bruxaria após uma
busca traz sempre a noção de que aquilo que era uma expressão religiosa interna do sujeito
finalmente ganhou corpo doutrinário expresso através da bruxaria wicca.
Não foi possível, no universo estudado, realizarmos uma ampla pesquisa sobre os perfis
religiosos pessoais e familiares das bruxas internautas como pudemos fazer nas oito entrevistas
realizadas com bruxas cariocas. Para a internet, a análise sobre o perfil religioso foi realizada
num universo de 15 questionários. Nestas respostas, está sendo considerada tanto o perfil pessoal
quanto o familiar, incluindo aí o cônjuge. Algumas bruxas responderam sim a mais de uma
opção, formulando deste modo a mudança pessoal ou familiar.

• Perfil religioso pessoal e familiar: para um total de 15.


Espírita: 7.
Católica: 6.
Candomblé: 2.
Umbanda: 1.
Evangélico/Pentecostal: 2.
Budismo: 2.
Judaísmo: 1.
Hare-Krishna: 1.
Gnose: 1.
Teosofia: 1.
Ordem dos Cavaleiros do Templo: 1.

• Tempo de ingresso na wicca: para um total de 43.


1 ano ou menos: 21.
Mais de um ano: 22.

• Iniciação na wicca: para um total de 31.


Sim: 9.
Não: 22.
217

O espiritismo parece ser a religião que conta com mais ex-adeptos e familiares adeptos, o
que se reflete no próprio discurso das bruxas de uma maneira muito própria. Temas como
reencarnação, contato com espíritos, mediunidade e karma, tão presentes na doutrina espírita, são
freqüentemente levantados nas listas, especialmente por aqueles que se apresentam como novatos
na bruxaria. Para estes, o passado ligado ao espiritismo – ou presente, na forma dos familiares -
se torna espécie de parâmetro que influencia as opiniões pessoais e as dúvidas a serem tiradas.
Questões como a aceitação do aborto e da homossexualidade na wicca também são comumente
levantadas por aquelas com alguma ligação com o espiritismo. Veremos o teor desta influência
mais a fundo quando nos detivermos sobre os dons que as bruxas internautas dizem possuir.
A segunda religião mais influente entre os participantes de listas é o catolicismo. A
quebra com os padrões doutrinários desta religião se apresenta como uma das maiores
preocupações das bruxas internautas. No período em que fomos integrantes destas duas listas,
não era raro ler mensagens onde ser cristão era uma acusação de ser “falsa bruxa”. O uso de
símbolos cristãos e o recurso aos santos também foram objeto de discussões acerca da própria
natureza de uma verdadeira bruxa. Veremos isto adiante.
O candomblé aparece como uma religião pouco influente. Ataques ao candomblé, bem
como ao espiritismo, nunca foram formulados enquanto permanecemos nas listas A e B. Estes
ataques são dirigidos apenas ao cristianismo, tanto aos católicos quanto aos evangélicos. Estes
são o alvo preferido das bruxas, quando se trata de religiosidade, e foram transformados nos
inimigos número um da wicca no Brasil. Este é um processo complexo que será detalhado mais
tarde. Apesar de ter-se transformado numa religio non grata entre as bruxas, verificamos a
existência de dois ex-evangélicos entre os participantes das listas. O budismo apresenta também
dois ex-praticantes.
As demais categorias do quadro acima apresentam apenas uma resposta. No caso do
judaísmo, não fica claro se a bruxa era judia praticante antes de ingressar na wicca ou se esta era
a religião de sua família ou cônjuge. O Hare-Krishna, a Gnose, a Teosofia e a Ordem dos
Cavaleiros do Templo encontram-se ligados a uma religiosidade que pode ser definida como
Nova Era. Junto com o budismo, a religiosidade Nova Era engloba seis participantes, o que a faz
a terceira religiosidade mais influente entre as bruxas internautas. Havia, nestas listas, outros
participantes de ordens esotéricas secretas, algumas vezes a mais de uma, mas não deixam claro
quais são. Deste modo, podemos concluir que as listas de discussão abrangem um público que vai
218

além das bruxas wiccanas, mas que é composto também por integrantes da Nova Era. Estes,
muitas vezes, acabam por abandonar suas opções anteriores e ingressam na bruxaria wicca. Este
fenômeno foi visto também entre as bruxas que entrevistamos: de oito, uma tem o universo de
religiosidade familiar vinculado à Nova Era, três passaram por este universo numa busca pessoal
anterior à wicca, quatro mantinham profissões vinculadas diretamente a este mercado e duas
mantinham profissões correlacionadas.
Como foi dito, nem todos os participantes das duas listas são bruxas wiccanas. Entre
aquelas que são, há uma ligeira predominância de bruxas com mais de um ano de prática. Num
universo de 42 respostas, 21 afirmam possuir menos de um ano de prática. Podemos ver aí dois
pontos: como religião recentemente introduzida no país, sua expansão tem se dado neste
momento, por isso boa parte dos adeptos tem menos de um ano de prática; os adeptos mais
antigos não se interessam em trocar informações em veículos como listas de discussão. Há
também a possibilidade de ver na internet um recurso típico dos que estão começando a seguir o
caminho da bruxaria, e por isso necessitam – mais do outros, talvez – da troca de informações e
do sentimento de pertencimento a um grupo que esta propicia. De nosso ponto de vista, ambas as
afirmações estão corretas. Como fenômeno recente, apenas agora a wicca tem ganho maior
espaço nos meios de comunicação e no mercado literário, o que pode indicar o volume de
consumidores da bruxaria. Ao mesmo tempo, no período em que estivemos em campo, foi
possível perceber que pessoas com muitos anos de prática na wicca são dificilmente encontrados,
tornando-se espécie de mitos. As bruxas com maior tempo de prática que encontramos foram
duas de nossas entrevistadas, com doze e sete anos de prática. Elas não participam de nenhuma
lista de internet nem tampouco freqüentam encontros de internautas.
Embora os praticantes com mais de um ano sejam maioria, os praticantes iniciados não
são. A iniciação na wicca é feita, normalmente, após um ano de prática. Seria lógico que as
bruxas com mais de um ano fossem iniciadas. Essa recusa à iniciação nos parece uma recusa a
um compromisso mais efetivo com esta religião, pois a iniciação é um marco ritual que indica a
perda de velhos hábitos e a recepção de uma nova vida e religião ou tradição. Deste modo, o
sentido de busca permanece, pois há possibilidade de que os não-iniciados mudem seu
direcionamento religioso a longo prazo.
É necessário fazer uma ressalva quanto ao conceito de praticar bruxaria: como muitas
vezes as bruxas apresentam idéias como a de que nasceram bruxas e de que são bruxas desde
219

sempre, o conceito de prática e a medida temporal do começo desta prática ficam dificultados.
Assim, para a internet, o tempo de prática da wicca significa o ingresso na wicca e a auto-
definição como bruxa. O primeiro contato com a bruxaria e o estudo desta sem a preocupação de
conversão não participam da idéia de prática que as bruxas têm. O tempo de prática por nós
estipulado de menos ou mais de um ano segue o padrão tradicional da bruxaria que alega que a
bruxa só pode ser iniciada depois de um ano e um dia. Para as bruxas, prática significa o
comparecimento aos oito sabás anuais e treze esbás. Não estamos levando isto em consideração
quando usamos a noção de praticar bruxaria. Estamos apenas preocupados com a auto-definição
como bruxa. Isto nos permite entender porque apenas nove bruxas afirmam ser iniciadas na
wicca. Como todo processo iniciatório, o da bruxaria requer comprometimento. Para ser iniciada,
a bruxa precisa ter celebrado todos os rituais que compõem a Roda do Ano: oito sabás e treze
esbás. É comum, também, que o ritual de auto-dedicação seja feito um ano antes da iniciação.
Algumas bruxas deixam claro que a iniciação não é sua meta nem constitui uma preocupação, e
mantém suas práticas, solitárias ou não, mesmo sem este rito formal.

A idéia de dom

Há uma forte influência do espiritismo entre as bruxas participantes das listas A e B.


Pudemos verificar isto através de um debate que ocorreu acerca de dons, especialmente formas de
mediunidade. Muitas das concepções apresentadas nas mensagens postadas às listas não são de
origem wiccana. Idéias como espíritos guias, seres de luz ou mentores não fazem parte do
universo da bruxaria. A wicca não faz uso do contato com espíritos, como entendidos no
espiritismo, nem qualquer tipo de espírito ou divindade é esperado para possuir o médium. O
único ritual da bruxaria wicca que prevê contato com espíritos é o sabá Samhain, que marca o dia
dos mortos, e no qual espera-se que entes queridos já falecidos venham visitar os vivos. Mesmo
assim, o contato não se dá por meio de possessão.
Na noção de dom apresentada através deste debate, percebemos duas linhas distintas: o
contato com os espíritos e a explicação para esse contato, e o que foi chamado de
paranormalidade, ou a capacidade de realizar feitos fora do normal, entre eles: regressão,
telepatia, projeção astral, clarividência, clariaudiência, leitura de mentes, sugestionamento. Na
maior parte das mensagens, há uma experiência narrada com algum ou vários destes dons, e um
220

pedido de ajuda ou dúvida acerca do que eles significam. Algumas pessoas se colocaram como
temerosas frente aos seus dons, outras ostentavam-nos com orgulho. O que chama a atenção é
que estes dons não estão expostos em nenhuma literatura produzida pelas bruxas como sendo
necessários para se tornar bruxa, ou como sendo a marca de uma verdadeira bruxa. Porque, então,
este tema foi suscitado? Frazão, em sua obra, não fala de nenhum dom específico imprescindível
à bruxa. Algumas de nossas entrevistadas, contudo, pareciam ter a mesma preocupação que as
internautas em expressar seus dons. Há uma cisão entre a literatura e o campo no que tange esta
questão.

• Portador de dom: para um total de 17.


Dom individual: 11.
Dom individual e presente em familiar: 6.

Sobre nossas entrevistadas, seis afirmam que tinham algum tipo de dom anterior à
bruxaria e cinco afirmam que havia pessoas portadoras de dom na família. Dessas cinco, apenas
três afirmam possuírem dons e familiares que seriam igualmente portadores de dons. Para a
internet, verificamos que onze afirmam possuir dons enquanto seis afirmam que possuem dons e
pessoas na família portadoras de dons. Nenhuma resposta indica apenas o familiar como portador
de dons. Em ambos os casos, a existência na família de uma bruxa portadora de dons é suficiente
como mecanismo de legitimação da identidade de bruxa, no caso de não possuir algum dom
próprio.
Entre os dons encontrados, o mais comum é a clarividência: vultos, pessoas já mortas,
espíritos, animais, reflexos são vistos pelas bruxas. As respostas dadas a tais fenômenos estão
usualmente vinculadas às doutrinas espíritas: trataria-se de espíritos procurando um médium ou
em qualquer outra situação. A única resposta wiccana dada foi de que estas seriam manifestações
de outros mundos paralelos a este, o que, de fato, é muito próximo à noção do espiritismo. O
contato com os espíritos se dá através da visão, da audição, do tato, da capacidade de conversar
com estes e de lhes dar ordens.
No ramo da paranormalidade, algumas apresentam dons de ver o passado e o futuro, de
comunicarem-se por telepatia, de terem experimentado a projeção astral, a regressão, a leitura e o
sugestionamento de mentes. Nestes casos, a experiência pode ser comandada conscientemente
221

pela bruxa ou ter sido experimentada apenas uma vez, de forma inconsciente. Ao contrário do
contato com os espíritos, estes são dons que não causam temor àqueles que os possuem.

Porque lançar mão de tantos dons se a wicca é, claramente, uma religião acessível a todos
e que prescinde da aquisição de dons? Ao nosso ver, a necessidade de afirmar o dom é tanto um
mecanismo de legitimação da identidade de bruxa quanto uma influência do espiritismo. Há duas
questões aí: primeiro, a magia pode constituir dom ou conhecimento passado hereditariamente a
determinados indivíduos (MAUSS, 1979); segundo, Maggie (1992) aponta que o espiritismo e a
mediunidade foram acoplados à idéia de magia no Brasil. Vejamos cada ponto separadamente.
Quando o contato com espíritos é relatado com orgulho e a bruxa afirma ser médium,
então a influência espírita fez-se presente de alguma forma. Em outros casos, entendemos que a
identidade como bruxa constitui identidade de ser desviante (MAUSS, 1974; DOUGLAS, 1976),
portanto o dom se torna parte da construção dessa identidade desviante, pois promove uma
ruptura com o ser comum, aquele que não apresenta dons paranormais. Tanto as bruxas
internautas quanto as bruxas por nós entrevistadas apresentam a idéia de dom, tanto o dom
próprio, individual, quanto o dom de algum familiar. Entre eles estão: a leitura da sorte em
oráculos, a leitura de mentes, poder de modificar o curso dos acontecimentos, poder de mover
objetos com a força da mente (ou da vontade), poder de prever o futuro, contato com espíritos,
execução de feitiços, viagem astral, entre outros. Sete delas acreditam que a bruxaria é um dom
que não se adquire, mas é inerente a certos indivíduos, herdados ou não da família.
É freqüente que uma bruxa afirme que há outras bruxas em sua família. Este foi o caso de
nossas entrevistadas, de algumas bruxas internautas e de Frazão. Para Mauss (1979), os mágicos
formam, usualmente, castas ou corporações recrutadas hereditariamente. Pode se tratar de
conhecimentos transmitidos em família ou pode haver necessidade de certas condições favoráveis
para que o dom aflore. É comum, na wicca, que se veja o conhecimento mágico como uma
tradição familiar. Este é o caso de Frazão, que narra suas experiências mágicas com a avó bruxa.
Contudo, este não é o caso das bruxas entrevistadas nem das bruxas internautas. Há, de fato,
poucas bruxas internautas que afirmam terem parentes próximos que seriam, de fato, bruxas, e
não apenas portadores de dons. No entanto, elas não esclarecem se sua condição de bruxa se deve
aos ensinamentos obtidos em família ou se procedem de uma condição específica, talvez inata.
222

Gostaríamos de chamar a atenção para a freqüente confusão que as bruxas brasileiras


fazem entre estes dois conceitos: a bruxaria como conhecimento familiar e o inatismo do dom.
Nestes dois casos, há um fator que pode ser transmitido familiarmente, como uma herança. Na
verdade, pensamos que estas duas noções estão sobrepostas na bruxaria como é vista no Brasil.
Isto se deve, em parte, à própria noção de magia que o país experimenta. O dom, por outro lado,
está freqüentemente disposto em termos de mediunidade. Maggie (1977) aponta como, para o
grupo estudado em um terreiro carioca, existia sempre um elemento da família do médium que
freqüentava terreiros, ou o próprio médium já havia tido experiências mediúnicas antes de entrar
“no Santo”. Estas situações indicam um processo de socialização daqueles indivíduos com o
código religioso em questão. Do mesmo modo, as bruxas apresentam-se num universo de magia e
mediunidade familiar que propicia sua socialização no código mágico.
A influência do espiritismo e da magia, contudo, estão amplamente disseminadas pela
sociedade brasileira, pois constituem uma de suas crenças (MAGGIE, 1992). Assim, a magia e a
mediunidade não são postas em dúvida em nossa sociedade. Paira a dúvida, apenas, sobre quem é
o verdadeiro médium e quem é o charlatão. A idéia de falsidade é, ela própria, comum aos
terreiros. Esta é uma categoria análoga à acusação feita pelas bruxas wiccanas sobre quem é a
verdadeira bruxa e quem é a falsa bruxa. Neste caso, não é o dom e a mediunidade que estão em
questão, mas o conhecimento e a conduta da bruxa.
Maggie (1992) observa, ainda, que há uma diferenciação entre magia benéfica e maléfica.
A primeira estaria alinhada com as concepções das religiões mediúnicas. A segunda indicaria a
prática do mal por feiticeiros e criminosos, usualmente tidos como charlatães. É a partir do Brasil
republicano que esta diferenciação passa a se fazer mais fortemente. A partir dos anos 1930, o
que se considera feitiçaria é o candomblé e a macumba.
Vimos, a partir do perfil das bruxas internautas, que o candomblé e a umbanda contam
apenas três respostas, enquanto a noção mais ampla de espírita apresenta sete respostas em um
total de quinze questionários, ou seja, cerca de metade dos que responderam a esta questão já
praticaram o espiritismo ou tem familiares que o praticam, incluindo o cônjuge. Mais adiante
veremos a força do espiritismo entre as bruxas. É interessante já concluirmos de antemão, que as
idéias das bruxas sobre dons ligados à mediunidade e seu alinhamento com o espiritismo e não
com o candomblé, por exemplo – que pareceria estar mais próximo à bruxaria até mesmo em
termos de estrutura de gênero, como apontado por Landes (1967) -, indicam, na verdade, um
223

afinamento com a estrutura de crenças da sociedade mais ampla, que enxerga no candomblé a
magia maléfica e no espiritismo a magia benéfica. Veremos abaixo como a wicca e o espiritismo
apresentam pontos em comum que facilitam a superposição destas diferentes crenças na
sociedade brasileira.

Preconceito contra as bruxas

Um dos temas abordados enquanto estivemos participando das listas A e B foi o do


preconceito sofrido pelas bruxas. Algumas declaravam-se bruxas escondidas, afirmando que sua
opção religiosa era clandestina. Isto era motivado por dois pontos: ou a bruxa em questão era
menor de 18, e não tinha a intenção de entrar em choque com os pais, ou as experiências sofridas
com pessoas de outras orientações religiosas fizeram com que optassem pela clandestinidade. Um
rapaz descreveu, para uma das listas, a dificuldade que encontrava em fazer com que os pais
aceitassem sua opção pela bruxaria. Ao ler sobre a wicca no jornal Correio Braziliense, a mãe do
rapaz teria dito que

“Aceitam homossexualismo. Sumariamente uma religião de mulheres. Fazem rituais e


feitiços... nada disso me agrada. Como é que uma pessoa tão inteligente como você foi
entrar numa dessa?”

Tentando demover o filho das intenções de ser bruxo, os pais do rapaz formularam um
acordo: aulas em uma academia de ginástica e uma viagem serviram de incentivo para que
abandonasse seus estudos de bruxaria. O rapaz diz que não aceitou. Na passagem acima, fica
clara a acusação da mãe: ao ingressar no mundo da bruxaria, a inteligência do filho é
questionada. Antes considerado pessoa de bom senso, ele vê seu julgamento frente aos pais
mudar.
Mas é nas situações de preconceito religioso fora de casa que percebemos que os
evangélicos tornam-se sujeitos privilegiados das acusações das bruxas. Em um caso relatado, um
rapaz de 15 anos afirma que era ignorado pelos colegas na escola que estudava, de orientação
protestante. Transferido para outra escola, ele diz ter encontrado outros bruxos e se sentido mais
224

confortável em um ambiente que respeita as opções pessoais. O preconceito é apresentado por ele
como parte de um meio arcaico e ligado à orientação religiosa do colégio em questão.
A escola aparece, para os mais jovens, como o lugar que estipula as convenções da
sociedade mais ampla. No caso acima, a transferência para outro colégio coloca o rapaz em
contato com um grupo mais condizente com sua identidade de bruxo. Em um outro caso, uma
menina relata que foi na escola que encontrou outra pessoa com quem pode conversar sobre
bruxaria. Mesmo assim mantém-se clandestina, pois acha que seria tratada como louca se
descobrissem sua identidade de bruxa. Afirma que já a acham estranha, mesmo sem saberem que
é bruxa. Outra garota afirma que descobriu que uma das professoras de sua escola era bruxa. Ao
conversar com ela, foi ouvida por um outro aluno, que passou, então, a trata-la de maneira
diferente, no que ela julga ser medo. Esta mesma garota afirma que

“O preconceito contra as bruxas, infelizmente, não se limita ao medo de sermos


adoradores do diabo. Se assumimos nossa religião, saem por aí nos chamando de
loucos, de modistas, de ridículos. Fazem piadinhas de mal gosto.”

Duas observações diferentes devem ser feitas. Primeiro, está presente em dois relatos
acima a idéia de que a bruxaria é vista pelos não bruxos como sintoma de loucura, o que se
apresenta também nas obras de Frazão. O indivíduo “estranho”, desviante, louco, que perde a
razão e a inteligência é inserido novamente como sujeito da bruxaria. No caso do rapaz de 15
anos acima, sua situação em um colégio de orientação protestante lhe conferia o estigma de
desviante. Bruxo, ele não conseguia manter amizades e era ignorado pelos colegas. É em outro
colégio que consegue fazer amizades, mas com pessoas de sua estirpe: lá ele encontra outros
bruxos. A segunda observação a ser feita refere-se à idéia que o senso comum nutre sobre as
bruxas. No primeiro caso, as bruxas se apresentam como desviantes. Nesta segunda observação, o
senso comum acredita que são desviantes. As duas concepções se alinham, mas de pontos de
vista diferentes. Para as bruxas, a sua situação de desvio e marginalidade é valorizada, pois é o
ingresso legítimo no mundo da bruxaria. Mas quando este desvio é constatado por alguém de fora
deste universo, o tratamento diferenciado recebido pelas bruxas é visto como preconceituoso. No
relato grifado acima, o senso comum acredita que bruxas são satanistas, perversas, loucas,
ridículas e ávidas pela última moda. Desta maneira, o que serve para caracterizar um desvio que
225

permite o ingresso no mundo da bruxaria e legitima esse pertencimento, é visto como


preconceituoso por não ganhar a mesma valoração, mas valoração contrária no senso comum.
O preconceito também pode vir diretamente de evangélicos. Em uma mensagem, uma
mulher diz que a cidade de João Pessoa vive um clima de intolerância religiosa deflagrada pelos
evangélicos. Haveria até um livro distribuído por alguns pastores, no qual símbolos comuns à
Nova Era eram apresentados como anti-cristãos ou demoníacos. Esta mesma mulher afirma já ter
sido abordada duas vezes por pessoas que perguntavam acerca de um símbolo egípcio que usava
no cordão, dizendo-lhe que se tratava de símbolo do demônio. Diz, ainda, que havia ganhado
vários livros de wicca de uma mulher desconhecida, que desejava livrar-se deles em função da
pressão exercida pelo namorado evangélico. As folhas de rosto dos livros, onde supostamente
estaria escrito o nome da antiga dona, haviam sido arrancados.
Em outras duas mensagens, duas bruxas concordam que

“O problema para o neo-paganismo não é a Igreja Católica, mas sim as vertentes


radicais evangélicas.”

“Se há perigo de novos tempos de fogueira, a ameaça real são os evangélicos, não só
os católicos.”

As correntes evangélicas são apresentadas como aquelas que oferecem o real perigo de
perseguição às bruxas hoje, exatamente como a Igreja Católica medieval fizera no tempo da
Inquisição. Esta é uma referência sempre buscada pelas bruxas, e presente em muitos sites na
internet, onde uma campanha intitulada “Never again the burnning times” – em português,
“Nunca os tempos da fogueira novamente” - é vista em forma de logotipo.
Em certa ocasião, recebemos uma mensagem com um boato, supostamente alardeado nas
salas de bate-papo, no qual 14 bruxas em Patos de Minas teriam sido espancadas por um grupo de
mais de 30 evangélicos, enquanto realizavam um ritual em uma fazenda. Este tipo de boato dá a
dimensão que esta inimizade tomou. Em outra mensagem, um rapaz afirmava que a sala de bate-
papo criada para discutir bruxaria em um grande portal da rede estava sendo freqüentada e
atacada pelos evangélicos. Ninguém, em nenhuma lista, confirmou nenhuma das duas
informações. Este tipo de informação leva a crer que os evangélicos seriam um grupo organizado
226

e disposto a atacar qualquer manifestação da wicca no país. Todavia, nos meses em que
participamos das listas A, B e C, em nenhum momento um evangélico ingressou nas listas, que
eram abertas a não-bruxos. Na época em que o 2o. Encontro de Bruxas Brasileiras em Brasília
(julho de 2000) foi organizado naquela cidade, houve outra informação veiculada pelas listas de
que um grupo de evangélicos teria tentado impedir ou interromper as atividades do Encontro,
levando seus organizadores a recorrer à força policial.
Apresentados agora como os novos inquisidores, os evangélicos se tornaram um inimigo a
ser combatido. Este combate não se dá com atitudes, mas no discurso. É fácil encontrar
comentários pejorativos a respeito dos evangélicos. Eles são “muito chatos”, pedem que seus fiéis
se humilhem – o que causou a indignação de algumas bruxas -, só querem dinheiro, são
manipuladores, machistas. Quando uma reza de benzedeira – na qual havia claros símbolos
cristãos - foi enviada para uma das listas, a reação de algumas bruxas foi imediata: a reza foi
descrita como anti-bruxaria, coisa cristã, coisa de umbanda, pregação da Igreja Universal. Isto
nos remete à preocupação que observamos nas bruxas internautas em distanciarem-se de tudo que
possa ser definido como cristão. Algumas das acusações feitas aos evangélicos são estendidas a
todos os cristãos. É interessante notar que nenhuma igreja pentecostal é atacada diretamente, a
não ser por raras referências à IURD. Na visão das bruxas, os evangélicos parecem constituir um
bloco homogêneo com motivações bem definidas quanto ao que não consideram cristão.
Entre as bruxas entrevistadas, a categoria “crente”, que na sociedade mais ampla define os
evangélicos, é usada para acusar aqueles que nutrem preconceitos contra a bruxaria. Crente
aparece ao lado de acusações como ser analfabeta, fanática, louca ou apresentar “falta de
cultura”. Duas das oito entrevistadas apresentaram a categoria crente desta maneira. Aos poucos
percebemos que os pontos de vista e opiniões, bem como os perfis das bruxas por nós
entrevistadas não se opõem aos das bruxas internautas, permitindo construir um perfil único das
bruxas wiccanas brasileiras.
O catolicismo também é alvo de algumas bruxas. As acusações feitas genericamente
contra os cristãos acabam por respingar também nos católicos. Há, contudo, uma diferença. O
passado pagão europeu é visto como reformulado dentro do catolicismo, num movimento
também descrito por Frazão. Essas raízes pagãs permitiriam às bruxas freqüentar lugares de culto
católicos, como a gruta de Fátima, em busca de resquícios pagãos. O teor das acusações contra
os católicos se apresenta de maneira mais suave. Um dia inquisidores, eles agora são aqueles que
227

abraçaram o paganismo sem saber, portanto estão mais próximos que os evangélicos. Nada disso
impede que o catolicismo seja visto ainda com inimizade. Em uma mensagem, um rapaz afirma
que é uma “religião voltada para pessoas toscas”, embora pense que há estudos religiosos
profundos na Igreja. Em outra mensagem, uma moça afirma que os católicos vêem primeiro
Deus, para somente depois enxergarem o indivíduo. Também são chamados de machistas na sua
concepção de um Deus Pai Onipotente, de se acharem “os donos da verdade” e de mentirosos,
pois se guiariam por escrituras não verdadeiras e deturpadas, enquanto esconderiam as
“verdadeiras” escrituras porque estas poderiam destruir sua religião.
Por todos estes motivos, o afastamento do cristianismo é uma preocupação freqüente das
bruxas wiccanas. A reza cristã da benzedeira, personagem que Frazão considera a verdadeira
bruxa, é vista como repulsiva. Uma bruxa descreve Maria como uma Deusa “amputada,
deturpada, manietada e amordaçada que convém às religiões do patriarcado”. O recurso aos
santos católicos também é proibido, embora o recurso aos orixás não seja, pois são vistos como
um panteão pagão africano. Rezar para os santos ou freqüentar práticas religiosas cristãs
desqualifica a praticante como bruxa. Aquela que ainda acessa símbolos cristãos não é uma bruxa
verdadeira. Esta é pagã, rompe com o cristianismo, e deste modo rompe também com o legado
judaico-cristão, considerado patriarcal. Observamos a construção da categoria cristão como uma
categoria de acusação às falsas bruxas, uma vez que a verdadeira bruxa é pagã e deve se
comportar como tal, renunciando a todo tipo de imaginário e símbolo cristão.
O pensamento judaico-cristão é dominante em nossa sociedade, mas o verdadeiro pagão
deve romper com esta forma de pensamento para ser um wiccano de fato. Uma bruxa afirma que

“(...) Você não pode esquecer que o patriarcado judaico-cristão tentou suprimir a Deusa
do mundo. Nos últimos dois mil anos Ela foi a esquecida.”

Percebemos que este pensamento se tornou um alvo predileto das bruxas internautas,
apesar de sabermos que muitos povos pagãos foram e são patriarcais até hoje. Este não é um
predicado exclusivo de judeus e cristãos, mas eles se tornaram o alvo das acusações. A acusação
mais grave, contudo, não é a de serem patriarcais, mas de terem suprimido a Deusa. Formula-se,
deste modo, uma acusação de ataque ao sagrado. Blasfemos e hereges, eles se tornam inimigos
preferenciais.
228

A luta contra o patriarcado é intrínseco ao pensamento wiccano veiculado pelas listas. Em


uma mensagem, a moderadora da lista A afirma que existem dois caminhos de magia: o solar e o
lunar. Os solares seriam aqueles das religiões e sistemas mágicos retilíneos, no mesmo
significado que Frazão dá para o termo. Colocariam o homem no centro do universo,
comandando as forças da natureza. A wicca seria um caminho lunar, feminino, uma religião da
terra, que acredita na integração entre homem e natureza. A partir desta diferenciação,
observamos que o caminho solar, em oposição ao lunar, é um caminho masculino, de domínio da
natureza. Os caminhos lunares não dominam, mas se integram à natureza, que é vista na wicca
como feminina. Está reproduzido, assim, o mesmo esquema que Frazão descreve em seus livros,
onde a bruxaria é vista como um espaço de atuação da mulher, a partir de poderes intrínsecos ao
feminino e a papéis prioritariamente femininos.
Vejamos um quadro formulado a partir das adjetivações dadas a cada religião e quais
influências estão em jogo entre pagãos e judeu-cristãos.
O pólo mais valorizado é o pagão. Estes são conscientes de seus atos e escolhas, pois são
intelectualizados e refinados. São livres, pois não há dogmas, têm livre-arbítrio, e se guiam mais
pela individualidade do que por uma concepção de obrigação e temor a Deus. Defendem a
igualdade de gênero, não são preconceituosos nem manipuladores, e não estão interessados em
dinheiro ou proselitismo. Acessam o divino, pois se comunicam com ele através do sentimento e
da experiência vivida, e não de palavras. Os cristãos, ao contrário, são vistos como gananciosos e
interessados em dinheiro, em ganhar novos adeptos, em afirmar sua verdade como única válida.
Por isto são chatos, manipuladores e mentirosos. São também machistas e preconceituosos. Sua
primeira obrigação é para com Deus, e depois para com os outros. Não acessam o divino porque
estão presos à palavra, muitas vezes falsa e deturpada. São superficiais, inconscientes,
dogmáticos e, em função disto, se tornaram maioria entre os pobres, toscos e rudes.
Notemos que há, na divisão apresentada abaixo, uma lógica que indica que a bruxaria
wicca não é uma religião para pobres de espírito. A liberdade de escolhas, representada pelo
livre-arbítrio e pela falta de dogmas, deve ser responsável, consciente. Esta responsabilidade
encontra-se entre os intelectualizados, aqueles que não são rudes, toscos ou miseráveis. O poder
do capital econômico e cultural parece ser determinante nestas escolhas. Isto está bem de acordo
com o perfil sócio-cultural dos praticantes de wicca: indivíduos urbanos de classe média com alto
grau de escolaridade formal.
229

Judaico-cristão Pagão
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
Evangélico Católico Wiccano
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

preconceituoso não preconceituoso


machista machista igualdade de gênero
arcaico
chato
palavra escrita palavra escrita sentimento / experiência
não acessa o divino acessa o divino
manipulador não manipulador
proselitista não proselitista
interessado em dinheiro não interessado em dinheiro
Deus Deus indivíduo
temor a Deus temor a Deus livre-arbítrio
religião de pobres, toscos e rudes religião de intelectualizados
dogmático não dogmático
inconsciente consciente
superficial refinado
Quadro n. 3: Concepções sobre evangélicos, católicos e pagãos.

Falamos sobre a visão que a wicca tem do cristianismo, mas ainda não tratamos de todo o
escopo da influência espírita entre as bruxas internautas. Vimos como o espiritismo é uma
influência forte no escopo das visões e contato com espíritos. Ela é uma influência marcada,
também, na insistência de que a wicca é um sistema mágico-religioso completo, e que não deve
“misturar-se” com formas que não lhe são próprias. Esta premissa não vale apenas para o
universo judaico-cristão, mas estende-se para qualquer manifestação possível de sincretismo. A
influência espírita, desta forma, se faz muito mais na estrutura do pensamento, na forma de
230

pensar, do que num possível sincretismo. Neste aspecto, uma bruxa afirma que o que é chamado
na doutrina kardecista de Pureza Doutrinária deveria também servir de padrão para a wicca.

“Se a Federação Espírita está usando esse método (e eles são cristãos e têm mais
tempo de Brasil que a wicca), porque a wicca e as religiões ditas neo-pagãs não
podem? Sou a favor PLENAMENTE da Pureza Doutrinária em wicca (...).”1

O que é pagão e faz parte da wicca e o que não é pagão e, portanto, não faz parte da wicca
se tornaram, entre as bruxas internautas, uma das mais fortes categorias de acusação. Uma bruxa
não é acusada se não possui dons, se não possui experiência suficiente, se tem poucos anos de
estudo ou não é iniciada. Ela é acusada, como vimos, se ainda não tiver efetuado o completo
rompimento com o que é considerado cristão. Mas qualquer outra associação da bruxaria wicca
com outro sistema mágico ou religioso é mal vista, e indica que a bruxa em questão não é
wiccana. Este foi o caso de Maurício e Vânia, conforme foi visto no estudo sobre seu coven.
Acusados de praticar sistemas mágicos que não a wicca, eles foram afastados do grupo por
Valter.
A idéia expressa acima como Pureza Doutrinária é, na verdade, uma forma de acusação
construída na rede. O que é a Pureza Doutrinária em wicca, contudo, não está claro. Ela
desempenharia o papel de indicar quem é e quem não é bruxa verdadeira, isto é, verdadeiro
praticante de wicca. No espaço mais amplo da wicca na internet, esta acusação tem servido para
que haja uma disputa entre duas lideranças: de um lado, Márcia Frazão e, de outro, os diretores
da ABRA-WICCA. Antes de ingressarmos neste assunto, vejamos ainda uma influência exercida
pelo espiritismo entre as bruxas internautas.
Como já foi dito, na wicca é vetado qualquer tipo de sacrifico animal. Embora isto não
seja um dogma, é uma interpretação da lei wiccana que diz: “faça o que quiser, desde que não
machuque ninguém”. Como o sacrifício implica na morte do animal, ele não se enquadra na lei, e
é condenado. No espiritismo kardecista também não há sacrifício, que é mais comum no
Candomblé. Deste modo, as concepções espíritas sobre sacrifício foram sobrepostas, por algumas
bruxas, às concepções wiccanas. Um rapaz afirma que não pode concordar com a morte de
_______________________________________
1- O grifo está presente na fonte escrita (e-mail).
231

nenhum ser, e completa dizendo que acha o sacrifício animal um ato primitivo. Está claro que
“primitivo”, para ele, não tem o mesmo peso que tem no discurso de Frazão. Para esta autora,
primitivo remete às sociedades tribais, que mantém contato com a natureza e preservam o
paganismo como religiosidade. Para o bruxo acima, primitivo significa involuído, bárbaro,
desprovido de civilização. Alinha-se com a vertente da magia maléfica. Deste modo, forma-se
um elo entre a wicca e o espiritismo, ambas religiões evoluídas que não recorrem ao sacrifício
animal, enquanto se exclui as tradições afro-brasileiras que utilizam tal recurso.
Esta pode ser uma pista sobre porque a necessidade de acesso à magia por parte das
bruxas wiccanas não passa pelos terreiros de candomblé. O candomblé ainda é visto como
religião primitiva e involuída, e não se destina às intelectualizadas e conscientes bruxas da
internet. Enquanto sistema matriarcal ou matrifocal, o candomblé estaria apto a suprir as
requisições de gênero apresentadas pela wicca. Segundo Landes (1967), esta é uma religião onde
as mulheres podem reverter seu status social inferior frente ao status masculino. Por que então o
candomblé não é uma das religiões de passagem na busca religiosa narrada pelas bruxas? E por
que ele não é escolhido, e sim a wicca, se ambos são locus privilegiados para o feminino e lidam
igualmente com sistemas mágico-religiosos?
Uma das respostas possíveis para este problema reside em dois fatores: 1) há uma busca
de identidade que não se limita ao gênero, mas estende-se para uma busca de status social, 2) a
classe média de onde as bruxas provem é mais receptiva à magia através da Nova Era do que de
sistemas tradicionais vinculados às classes populares e à idéia de malefício. Os perfis levantados,
tanto através de entrevistas quanto pela internet, mostram que as bruxas brasileiras estão
inseridas no movimento Nova Era – profissionalmente ou em termos de perfil religioso -, são
habitantes urbanos com altos graus de escolaridade, e fazem parte da classe média. O perfil
religioso que apresentam demonstra, também, o rompimento com religiões tradicionais, como as
pentecostais, a católica, a umbanda e a espírita, em direção a formas religiosas típicas da Nova
Era, como o budismo, as ordens esotéricas e a própria bruxaria. Seria uma quebra no
direcionamento deste perfil o retorno a formas tradicionais e populares, como é o caso do
candomblé, mesmo que estas formas ofereçam definições de gênero compatíveis com aquelas da
wicca. Estas definições, no entanto, teriam que passar pela crença arraigada na sociedade
brasileira de que as práticas de baixo espiritismo são práticas de magia maléfica ou
232

charlatanismo, típicas das classes populares, poluídas e perigosas (MAGGIE, 1992). Convém
lembrar que, entre as bruxas cariocas entrevistadas, a primeira acusação sofrida – advinda da
própria família – seria a de que estariam lidando, de algum modo, com o malefício. Reafirma-se,
assim, a idéia de que a magia – “baixo espiritismo” -, que faz parte tanto do candomblé quanto da
bruxaria, é uma forma de malefício, enquanto as expressões mágicas do “alto espiritismo” são
formas de magia benéfica.

A disputa de liderança entre as bruxas brasileiras

Como foi indicado anteriormente, a internet é um dos locus onde a bruxaria no Brasil se
desenvolve. Este locus vive uma constante disputa entre duas correntes antagônicas formadas por
membros diretores da ABRA-WICCA e pela escritora Márcia Frazão. A ABRA-WICCA é a
Associação Brasileira da Arte e Fiolosofia da Religião Wicca. É a única do gênero existente no
país, embora haja um braço brasileiro da Federação Pagã Internacional. Ao contrário da FPI, a
ABRA-WICCA destina-se exclusivamente aos praticantes de wicca. Não conseguimos obter

informações sobre o local e data de sua fundação, nem sobre a composição completa de sua
diretoria. Sabemos que reuniões mensais são realizadas por seus membros em São Paulo e Rio de
Janeiro. No Rio, foi apenas em 2000 que a instituição conseguiu manter uma constância das
reuniões, formando, inclusive, uma coordenação regional. É possível que outras capitais
apresentem grupos de reunião. Seus membros contribuem mensalmente com dez reais, dinheiro
que é usado para a circulação de informação escrita nas reuniões. Foi-nos dito que seu serviço
jurídico se presta a atender casos de preconceito ou qualquer forma de violência contra os
praticantes de bruxaria wicca no país.
Os principais personagens que se opõem a Frazão na internet são a diretora jurídica da
2
ABRA-WICCA, Rosa , e seu presidente e fundador, o escritor Claudiney Prieto. Rosa é advogada e

reside em Brasília, onde também ministra cursos sobre wicca. Prieto é bruxo e escritor, tendo
lançado duas obras sobre bruxaria: A Religião da Deusa (2000) e Wicca: Ritos e Mistérios da
Bruxaria Moderna (1998). A biografia do autor, apresentada neste último, indica que ele se
interessa por temas ligados ao mundo mágico e esotérico desde criança, tendo encontrado a
______________________________
2 – Nome fictício.
233

bruxaria apenas em 1993. Foi iniciado por um bruxo inglês em 1994. Reside em São Paulo.
Freqüenta programas de TV e rádio, e ministra cursos desde 1997, divulgando a wicca.
No Rio de Janeiro, foi apenas em 2000 que a ABRA-WICCA passou a manter reuniões
mensais, quando um cadastro de membros foi efetuado. Comparecemos a três reuniões desta
instituição: a primeira ocorreu na Floresta da Tijuca e as duas últimas numa residência particular
no bairro do Andaraí. A primeira reunião contou com a participação tanto de Rosa quanto de
Prieto, que vieram expor os objetivos tanto da Associação quanto das reuniões que ela se
dispunha a organizar. Foi dito que as mensalidades de dez reais, futuramente cobradas dos sócios,
serviriam para custear o material necessário às discussões travadas nas reuniões. Estas seriam um
espaço disponível para troca de idéias, opiniões e informações sobre a wicca. Foi deixado claro
que as reuniões se destinavam a bruxas wiccanas, embora praticantes de outras correntes mágicas
estivessem presentes nesta e nas outras reuniões. No segundo encontro, onde apenas Rosa
representava a diretoria da ABRA-WICCA, conceitos e práticas da bruxaria foram discutidos. Na
terceira reunião, nenhum dos dois estava presente, e o debate foi comandado por membros
cariocas da Associação. Estes membros ficaram responsáveis pela coordenação da ABRA-WICCA
no Rio de Janeiro.
Os desentendimentos entre Frazão, Rosa e Prieto são comuns na rede. Trocas de acusação
e pontos de vista divergentes sobre o que a bruxaria é e o que deveria ser parecem constituir o
cerne da questão. De nosso ponto de vista, o que ocorre é uma disputa pela liderança e domínio
do grupo da bruxaria no país, que é travado em todos os limites que este grupo alcança – na
grande imprensa, internet, encontros e eventos, mercado literário -, com diferentes estratégias de
cada um dos lados.
Frazão é contra instituições ou associações de praticantes de bruxaria, tanto quanto é
contra os cursos de bruxaria. Nestes pontos, é visível o embate. Estas opiniões levam Frazão a
uma posição clara de antagonista frente aos outros dois. Em uma mensagem enviada à lista A, ela
afirma que

“Um frenesi de ‘quero ser bruxa’, ‘quero aprender a ser bruxa’, se espalhou dando
origem a uma infinidade de ‘métodos práticos de feitiçaria’, ‘seja bruxa em um ano e
um dia’, ‘curso de bruxas por correspondência’. O frenesi chegou a tal ponto que,
234

hoje, no cenário global da feitiçaria, são poucos aqueles que conseguiram resistir às
tentações do poder e do dinheiro fácil.” (Márcia Frazão)

Acusações de querer “dinheiro fácil”, poder, banalização da bruxaria, vulgarização do


paganismo, entre outras, estão normalmente presentes. Nem sempre estas acusações se dirigem
diretamente a membros da ABRA-WICCA. Pelo contrário, normalmente são críticas lançadas sem
sujeito certo. O teor das acusações é o que permite a associação com determinados indivíduos. É
apenas em raras ocasiões que as duas correntes entram em choque direto e trocam acusações
diretamente. No mais, estas se fazem de maneira velada e sutil.
Na passagem acima, Frazão se coloca contra os cursos de bruxaria. Como vimos, Rosa e
Prieto ministram tais cursos em suas cidades. Ao mesmo tempo, a autora indica que aqueles que
elaboram tais cursos são pessoas corrompidas pelo poder e pelo “dinheiro fácil”. Esta expressão
indica que o dinheiro ganho com tais atividades não é honesto, mas fruto de uma atividade
considerada irregular. A demanda do mercado por tais cursos teria induzido alguns a cair neste
erro. A necessidade de consumo de uma imagem e de uma identidade de bruxa, que pode ser
feita através dos cursos, é criticada. O que Frazão critica, portanto, não é apenas o curso em si,
mas a venda de uma identidade que não pode ser alcançada através dele. Esta é a falta que
enxerga em tais cursos.
Em outra mensagem, deixa clara sua crítica à ABRA-WICCA como uma associação de
bruxas.

“Sempre fui contra a criação de uma entidade ‘institucional’ (...). Me parece que a
instituição que foi formada com a intenção de proteger a wicca não se preocupa muito
com a utilização que a mídia irá fazer dela.” (Márcia Frazão)

No relato acima, a autora indica que discorda do uso que a imprensa faz do tema bruxaria.
Este é um ponto forte nas discussões entre bruxas na internet. A imprensa é um elemento sempre
presente, tanto a imprensa escrita quanto a mídia televisiva. Cada programa levado ao ar, com a
participação de uma das duas correntes, é ansiosamente aguardado e posteriormente comentado.
Não haveria espaço, aqui, para analisarmos todas as aparições de Rosa, Prieto e Frazão na
imprensa. Basta dizer que as acusações quanto a este tema giram em torno do que chamam de
235

banalização ou vulgarização da bruxaria. Aparições de Frazão montada em uma vassoura ou


programas que mostram bruxas ao lado do personagem Zé do Caixão, por exemplo, são mal
vistas. Elas estariam reforçando o estigma das bruxas. O ponto de discordância não é a aparição
midiática, mas o teor e a motivação para tal.
Quando Frazão estava lançando seu livro A Panela de Afrodite, com receitas da culinária
grega, ela foi convidada a cozinhar no programa Mais Você, da rede Globo, que tem blocos
inteiros dedicados à culinária. As receitas eram feitiços, e duas diferentes foram ensinadas. Ao
final do programa, Frazão e Ana Maria Braga, apresentadora, apareceram montadas em vassouras
sobre um fundo que mostrava o desenho de uma cidade. A montagem dava a idéia de que
estavam voando sobre a cidade, montadas em vassouras de bruxa. Este episódio não foi bem
recebido pelas bruxas internautas. Falou-se que Frazão reafirmava os estereótipos sobre as
bruxas e a montagem foi chamada de ridícula. Frazão se defendeu, inclusive na entrevista que nos
concedeu, afirmando o caráter lúdico da situação. Disse que não se arrependia, apesar das
críticas.
Também em 2000, o SBT Repórter dedicou um programa ao tema da bruxaria. Entre
feiticeiros e o personagem Zé do Caixão, Rosa e Prieto fizeram suas aparições televisivas.
Sofreram críticas e elogios das bruxas de suas listas. Os críticos condenavam a aparição
espalhafatosa de Prieto, que quase colocara fogo à própria roupa num acidente com uma garrafa
de álcool. Questionavam, ainda, a intenção de tais bruxos ao aparecerem em um programa
juntamente com Zé do Caixão, que não é bruxo. Falou-se em vulgarização da Arte e banalização
da bruxaria. Tanto Prieto quanto Rosa se defenderam, reafirmando seu compromisso com a wicca
e sua intenção de divulga-la de modo a retirar qualquer associação entre bruxaria, malefício e
satanismo. Os que os elogiavam reafirmavam que suas posições eram de coragem e pioneirismo,
pois abriam a possibilidade de que novas pessoas encontrassem seu caminho religioso na
bruxaria, ao mesmo tempo em que a desmistificavam. Quanto a isto, foram duramente criticados
em réplica, e chamados de proselitistas. Argumentaram, ainda, que em toda aparição midiática
não havia como prever o teor da edição final, e que este era um risco a se correr em nome da
bruxaria. Frazão aproveitou a ocasião para assegurar que jamais aparecia em qualquer programa
em que deixasse a bruxaria exposta ao ridículo, e que avaliava muito bem tanto o conteúdo que
desejava passar quanto os programas dos quais participava. Este é outro exemplo de como a
televisão é um recurso usado pelas bruxas para marcar uma liderança: quando se espera que
236

novas candidatas a bruxa apareçam por intermédio de um programa de TV, o que se está
querendo, de fato, é arrebanhar seguidores sobre sua própria liderança.
Rituais à luz de tochas, bruxas usando mantos e capuzes, encontros público de bruxas são
outros pontos que Frazão critica. Ela vê isto como banalização e se defende de possíveis
acusações neste sentido afirmando que nunca fez rituais em frente a câmeras, e apenas dá receitas
de feitiços populares e folclóricos. A imprensa não aparece em seu discurso como um meio de
divulgar a bruxaria, nem ela parece interessada em faze-lo, embora apareça com freqüência em
diversos meios de comunicação. Ela tece críticas também ao uso constante de tradições
estrangeiras, chamando a atenção para um estado de “colonização” cultural. Estas críticas
atingem tanto Rosa quanto Prieto. Eles argumentam que a wicca é uma religião estrangeira, vinda
da Inglaterra e contra-atacam com acusações diretas a Frazão. Deste modo, Rosa enxerga em
Frazão um

“(...) Nacionalismo exacerbado, aquela pieguice babaca da contracultura dos anos 70.
Essa postura infantil de quem não come Big Mac por que não é ‘aculturado’. Quando
falamos de wicca, falamos de uma religião nascida na Inglaterra.” (Rosa)

“Por que você quer nos fazer engolir suas teorias de que dá para aprender wicca com
rezadeiras cristãs? Essa mistureca é uma mixórdia sim, na MINHA opinião.” (Rosa)3

Frazão é atacada em um dos cernes de seu pensamento, o de que a bruxaria deve estar
ligada à terra onde ela é exercida. As opiniões de Rosa sobre Frazão descrevem uma pessoa que
está presa a concepções ultrapassadas. Estas se expressam tanto no apego à contracultura quanto
no apego a tradições consideradas cristãs, como a das rezadeiras e benzedeiras. De fato, Rosa
não aceita que estas duas personagens sejam consideradas bruxas, o que Frazão insiste em fazer.
Como vimos, as bruxas da internet mantém uma constante preocupação em romper com todo
legado cristão que possa vir a influenciá-las. Não se permitindo romper com este legado, Frazão
é vista como pessoa que se prende ao passado. Sua preocupação com o que chama de
colonização e a tentativa de resgatar traços do folclore e cultura brasileiros para dentro da
_______________________________
3 – O grifo é de Rosa.
237

bruxaria não são argumentos convincentes para a corrente antagônica. Sua preocupação com o
resgate de tradições familiares e da cultura africana, por exemplo, rende mais críticas de Rosa.

“Para mim, os deuses africanos são tão estrangeiros quanto os celtas, gregos,
chineses ou hindus. (...) Religião nada tem a ver com genética e ramos familiares. (...)
É uma mentalidade profundamente cristã: ‘vou lutar contra o paganismo que não é o
4
MEU paganismo’. Isso me cheira a evangelização.” (Rosa)

Ao combater o argumento de Frazão, Rosa ataca duas frentes: a preocupação de Frazão


com a cultura brasileira de raiz africana não se justificaria, pois os africanos são estrangeiros; e a
idéia de um resgate familiar da bruxaria indicaria uma posição biologizante, mas não só,
indicaria também uma posição elitista, pois só aqueles com antepassados pagãos poderiam
exercer a bruxaria. A acusação usada, neste caso, é aquela que tira Frazão do grupo da bruxaria:
a de ser cristã, devidamente em associação com a postura dos evangélicos, que não são bem
recebidos pelas bruxas.
A acusação de ser cristão implica a acusação de ser falsa bruxa, de não ter abraçado
devidamente o paganismo. Embora Frazão não receba acusações de ser cristã, recebe acusações
de tornar a bruxaria cristianizada com o intuito de vender livros. Desta forma, a acusação de
“dinheiro fácil” se inverte, e agora é Frazão a acusada de flertar com as tentações financeiras. Ela
também é acusada de estar numa disputa pela liderança do grupo de bruxas. Como dissemos, esta
é uma disputa, mas Rosa e Prieto não se enxergam fazendo parte dela. Em seu discurso, eles
indicam que é Frazão quem ataca, deixando-os na posição de defesa.

“Bom, Márcia, não é de hoje que você vem me criticando. Desde minha primeira
aparição pública sei que você vem me difamando de maneira enfática, dizendo aos
quatro cantos que eu não sou ‘um verdadeiro bruxo’, que eu sou um aproveitador da
bruxaria (...). Conforme o trabalho de Rosa crescia, você passou também a criticá-la,
chamando-a de bruxa colonizada. Você foi a primeira a se colocar contra mim
publicamente.” (Prieto)
______________________________
4 – O grifo é de Rosa.
238

“Acho que você se ressentiu quando o Lugh [Prieto] mais, e eu menos, começamos a
sobressair no cenário da wicca.” (Rosa)

Acusado de ser um bruxo falso, um aproveitador, pessoa desonesta, Prieto se defende. Ao


acusa-la de ter sido a primeira a ataca-lo, ele esvazia suas críticas e transforma-as em rixas
pessoais e disputa pela liderança, quando insere a idéia de que Rosa só foi atacada quando passou
a ser também uma liderança no grupo da wicca. Desta forma, as lideranças constituídas de Rosa e
Prieto estariam ameaçando a de Frazão, cujo pioneirismo não é negado. Prieto defende, ainda, a
idoneidade da instituição que dirige e aponta seus cursos como não menos instrutivos que os
livros publicados por Frazão, pois teriam o mesmo tipo de conteúdo.

“Não nego o valor da Márcia como pioneira, só acho que isso não lhe dá o direito de
pisar em ninguém.” (Rosa)

Aceitar o pioneirismo de Frazão, como Rosa faz em quase todas as mensagens onde a
critica, é uma maneira de reafirmar que o grupo dominado por Frazão está agora sendo dividido
e disputado. No ponto de vista de Rosa e Prieto, esta disputa se dá apenas em função dos ataques
de Frazão, que quer o domínio completo do grupo.
As estratégias de Rosa e Prieto para vencer a disputa se dispõem em duas frentes
distintas: por um lado, tentam desmerecer Frazão como pessoa e como bruxa, por outro, tentam
fazer com que ela não se insira mais no grupo da wicca. Vejamos cada uma mais
detalhadamente. No primeiro caso, Rosa e Prieto agem de modo a desmerecer os argumentos de
Frazão. Ela é acusada de mesclar bruxaria e cristianismo em prol de uma maior vendagem de
livros, de ser cristã, ultrapassada, elitista e de disputar o domínio do grupo. É também acusada de
ser mentirosa, vaidosa e autoritária.

“Eu NÃO ACREDITO NA HISTÓRIA DA VOVOZINHA que você conta, que para mim isso
é tudo uma grande fantasia criada pela sua cabeça, (...) chegando ao ponto ridículo de
dizer que só podem ser bruxas aquelas pessoas que têm hereditariedade pagã. (...)
Você e mais meia dúzia, ao invés de tentar restabelecer seu contato com a natureza,
239

estão mais preocupados com a sua própria vaidade pessoal. Você sempre se coloca
contra aqueles que têm idéias diferentes das suas.” (Prieto)5

Ao preocupar-se mais com a vaidade e a liderança, Frazão é acusada de deixar para trás o
mais importante para uma bruxa: sua ligação com o sagrado, com o divino. Esta ligação é o cerne
da bruxaria. Interessante observar que as acusações contra Frazão trazem a idéia de que não é
uma bruxa senão de maneira periférica. Tratando de tradições cristãs e de sua própria vaidade
pessoal, ela assinala um certo descompromisso com o sagrado.
Prieto segue com as acusações que insinuam a precária condição de bruxa de Frazão,
desta vez indicando um ponto chave da bruxaria e do próprio pensamento de Frazão: a luta contra
o patriarcado.

“Vi certo e-mail onde você dizia: ‘A feitiçaria implica em rigor, compromisso, crítica,
luta, etc.’ Não acha estes termos muito patriarcais?” (Prieto)

A indumentária de bruxa de Frazão também é criticada, da mesma forma que ela critica a
indumentária usada nas aparições públicas dos membros da ABRA-WICCA. Brincos de pata de
sapo e afins são vistos por Prieto como um apelo ao marketing e uma tentativa de construção de
uma personagem vendável. Deste modo, ele devolve à autora o mesmo teor de crítica que ela lhe
destinava.6
Em todas estas acusações, Rosa e Prieto não apenas devolvem as mesmas críticas feitas a
eles por Frazão, como acrescentam mais uma estratégia, distinta daquela da autora. Se Frazão
afirma que nenhum dos dois é um verdadeiro bruxo, o mesmo não é dito sobre ela. O movimento
da dupla é fazer com que Frazão não pertença mais ao grupo da wicca especificamente, mas ao
grupo da bruxaria e da magia em geral. Deste modo, eles delimitam o grupo e é apenas através da
ABRA-WICCA que se define o que constitui parte integrante da wicca e o que não. Através desta

______________________________
5 – O grifo é de Prieto.
6 - Em suas aparições públicas como bruxa, Frazão costumava vestir saias compridas escuras com meias listradas de
preto e branco, casacos compridos e um chapéu de veludo preto desabado. Em algumas ocasiões, colocava um brinco
com uma pata de sapo e um broche de morcego empalhado no chapéu. A autora afirma, em seus livros, que nunca
conseguiu combinar bem as roupas. Na verdade, não faz questão de andar na moda.
240

instituição e através das listas de discussão, formulou-se a noção de que se tudo é possível, nem
tudo é wicca. As regras formuladas servem para regulamentar a wicca no país de maneira direta.
Qualquer bruxa que se desvie dos padrões estabelecidos na rede será vista como não-bruxa, ou
não-wiccana pela corrente ligada à ABRA-WICCA. Vimos a respeito do coven estudado como este
foi um dos artifícios usados por Valter para afastar seus rivais na liderança do grupo em questão.
Esta é a mesma estratégia formulada por Rosa e Prieto para afastar Frazão. Delimitando o grupo,
eles a excluem, e assim a disputa termina.
Em um exemplo, Prieto afirma que Frazão não detém o domínio do grupo, desmerecendo
tanto sua crítica quanto sua aprovação. Deste modo, Prieto exclui Frazão do papel de liderança
que até então tinha mantido, até mesmo em função de sua atuação como pioneira. A atuação do
bruxo é descrita como “em prol da Arte”, ou seja, favorável à bruxaria, enquanto a de Frazão é
exposta como de interesse pessoal, movida pela vaidade e pela intenção de vender livros.

“VOCÊ NÃO É A GRANDE BRUXA BRASILEIRA e nem a PAPISA DA ARTE e por isso a
sua reprovação em relação à minha atuação em prol da bruxaria para mim é
inválida.” (Prieto)7

Seguindo esta lógica, pergunta a Frazão se é ou não wiccana, pergunta a qual ela se nega
responder. Nesta negativa, Frazão perde a oportunidade de continuar disputando espaço, e torna-
se uma bruxa de fora da wicca.

“Olhe Lugh [Prieto], se eu sou ou não sou wicca, isso não me interessa.” (Frazão)

Praticante de wicca ou não, não é este o argumento que usa para se definir como bruxa, e
é aí que reside a questão: a bruxaria de Frazão se remete a influências que não constituem aquelas
consideradas como parte da wicca por Rosa e Prieto. Deste modo, ela é retirada do grupo da
wicca. As tradições cristãs das rezadeiras, o folclore brasileiro, a herança cultural familiar, todas
estas são chaves de importância para Frazão, não para a wicca. Seu apego a estes conteúdos fez
com que eles pudessem ser definidos, nas listas de discussão, como conteúdos de interesse, mas
não intrínsecos a wicca.
____________________________
7 – O grifo é de Prieto.
241

A bruxaria na rede virtual

O acesso à wicca no Brasil e a seus grupos de prática passa freqüentemente pela internet.
Como a liderança do grupo mais amplo pode ser disputada através da internet? E porque esta
disputa passa também pelos meios de comunicação? Se a identidade de bruxa não é uma que se
defina através dos processos tecnológicos, é necessário verificarmos o por que disto.
Segundo Lévy, a internet e o ciberespaço, definido por ele como o “espaço aberto pela
interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (1999: 92), foram
capazes de gerar comunidades virtuais. Este é o conceito chave para compreendermos como as
bruxas disputam o domínio de seu grupo pela rede. É a partir da noção de que as listas de
discussão formam comunidades que podemos perceber que as idéias veiculadas através delas têm
um impacto real. As listas e as salas de bate-papo transformaram-se não apenas em instrumentos
de disputa de um grupo como se tornaram parte da própria comunidade. A comunidade virtual,
no caso das bruxas, é uma comunidade real, que promove encontros face-a-face e interações de
diversos níveis. Ela é uma extensão do mundo concreto vivido por seus atores que, espalhados
geograficamente por uma enorme extensão territorial, não seriam, de outro modo, capazes de
manter contato. A questão territorial é importante na questão das bruxas: como vimos através dos
questionários, mais da metade das bruxas residem na região sudeste, espalhadas por seus quatro
estados. Os principais núcleos de bruxaria no país (SP, RJ, MG, DF e PR) estão distantes demais
para que se formasse uma comunidade local. A internet tornou-se o único instrumento capaz de
aglomerar bruxas de todo país num relacionamento e comunicação contínuos.
As comunidades virtuais estão apoiadas no sistema de rede em que a internet opera, bem
como na noção de interconexão, que é a idéia de que qualquer possibilidade de comunicação é
sempre preferível ao isolamento. Isto significa que as comunidades são formadas com a idéia de
que a comunicação entre pessoas afins é preferível ao não-contato. Neste sentido, Lévy conceitua
tais comunidades como “construídas sobre afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre
projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independente das
proximidades geográficas e das filiações institucionais” (1999: 127). De fato, as listas servem
para a troca contínua de informações e opiniões, independente das filiações, pois vimos que há
alguns não-bruxos em listas sobre bruxaria. A afinidade de interesse pelo tema, a vontade de
242

trocar conhecimento e cooperar é o que faz com que as listas tomem a forma de comunidades
virtuais. Como comunidades formadas em um meio de comunicação que funciona em termos de
interação mediada pode vir a se tornar fundamental na disputa pela liderança e na sensação de
pertencimento a um grupo?
Para Lévy, “uma comunidade virtual não é irreal, (...) trata-se simplesmente de um
coletivo mais ou menos permanente que se organiza por meio do novo correio eletrônico
mundial” (1999: 130). A internet, e as listas de discussão – que funcionam por meio do correio
eletrônico -, são meios de comunicação em que os sujeitos interagem de maneira mediada. Para
Thompson, “as interações mediadas implicam o uso de um meio técnico (papel, fios elétricos,
ondas eletromagnéticas, etc.) que possibilita a transmissão de informação e conteúdo simbólico
para indivíduos situados remotamente no espaço, no tempo ou em ambos” (1998: 78). Surge, a
partir daqui, a idéia de que a internet é um veículo de interação dos sujeitos. Esta interação não se
limita ao ciberespaço. Para Lévy, “é raro que a comunicação por meio de redes de computadores
substitua pura e simplesmente os encontros físicos. Na maior parte do tempo, é um complemento
ou um adicional” (1999: 128). Compreendemos agora porque as listas de discussão
freqüentemente engendram reuniões e encontros, nos quais seus membros vêm efetivamente a se
conhecer. A internet torna-se um instrumento da interação, mas não seu único palco. Ela funciona
efetivamente para aglomerar as bruxas e fazer com que se conheçam e, mais importante,
conheçam outras como elas. É um espaço de sociabilidade que permite a formação de um grupo –
uma comunidade – baseado em noções de pertencimento e alteridade. Isto está indicado nas
acusações de não-pertencimento ao grupo que vimos acima. A ABRA-WICCA vem, neste sentido,
servir como um outro locus de sociabilidade baseada nestas mesmas noções, pois dela apenas
fazem parte bruxas wiccanas.
A idéia de disputa de liderança na internet pode ficar mais explícita se compreendermos
que as comunidades virtuais atuam, também, em uma base forte de moral social e freqüentemente
apresentam um conjunto de leis não-escritas que regem suas relações (LÉVY, 1999). Uma espécie
de “etiqueta” é formulada onde a moral máxima é a da reciprocidade: o que é aprendido nas
trocas e contatos através do ciberespaço deve ser repassado. O que decorre deste procedimento é
a construção de uma reputação de competência. Vemos, então, que a participação em uma lista de
discussão pode ser importante para a construção de tal reputação entre as bruxas, especialmente
quando sua comunidade se encontra mais virtualmente do que concretamente. Na “etiqueta” da
243

rede consta, ainda, a idéia de que ataques pessoais e argumentações pejorativas não são bem-
vindos. Os ataques desferidos entre Frazão e Rosa e Prieto se tornam, a partir deste ponto de
vista, uma exceção às regras da rede. Isto implica em dizer que não há simplesmente um
desentendimento pessoal ou uma rixa teórico-prática entre os três bruxos, mas uma disputa.
Esta disputa está freqüentemente inserida em meios de comunicação que não apenas a
internet, mas também a televisão, o rádio, jornais, revistas e livros, como vimos acima. Se
partirmos da idéia de que “os meios de comunicação têm uma dimensão simbólica irredutível:
eles se relacionam com a produção, o armazenamento e a circulação de materiais que são
significativos para os indivíduos que os produzem e os recebem” (THOMPSON, 1998: 19), então
entenderemos que eles se tornam recursos que podem aumentar o poder de determinados
indivíduos, uma vez acumulados. Isto quer dizer que o acesso e a freqüência deste acesso à
imprensa de um modo geral é significativo de uma determinada posição no escopo de liderança,
no grupo da bruxaria no Brasil. O maior ou menor acesso a grandes redes de TV e seus principais
programas, bem como às principais revistas e jornais, são recursos que a bruxa que disputa a
liderança deste grupo tem em mãos para definir a sua posição. Quanto maior o seu acesso a estes
recursos, maior o seu poder de competição. É por isto que muitas das acusações que Prieto e Rosa
formulam contra Frazão dizem respeito a aparições públicas e midiáticas. Elas são a medida dos
recursos disponíveis para se disputar a liderança de um grupo em expansão.

Internet e bruxaria: entre o tradicional e o moderno?

Bruxa é uma categoria que remete a um sujeito tradicional, um operador de magia, sujeito
regional e místico – até mesmo religioso. Como este sujeito tradicional vem aportar nas parias
modernas dos computadores e formula, na rede, uma comunidade de sujeitos iguais a ele? A
bruxa de hoje é uma pessoa que está constituindo uma identidade: ser bruxa. Esta identidade não
apenas se remete aos atributos tradicionais de mágico, curandeiro, adivinho, mas também a um
determinado perfil religioso que indica um processo de afastamento da cultura popular, a uma
determinada identidade de gênero – feminino ou masculino -, em alguns casos a uma sexualidade
e a uma determinada opção religiosa. A bruxa de hoje não é um sujeito fora do mundo, ela
mantém contato com a realidade vivida, a modernidade. Como sujeito de classe média, com alto
grau de escolaridade e amplo acesso à informação, ela lida com o cotidiano da modernidade. Não
244

está auto-exilada em um gueto. A pergunta então se transforma: como a modernidade e a tradição


se encontram na bruxaria wicca?
Vimos que a wicca faz parte da Nova Era, que é um movimento com faceta religiosa que
faz recurso ao tradicional, mas estabelece-se de acordo com padrões modernos. Neste sentido,
tradição e modernidade se encontram. Na modernidade, os meios de comunicação têm um papel
fundamental. A televisão e a imprensa, no caso das bruxas, servem como veículos que alcançam
o público além das bruxas, levando a bruxaria para outros sujeitos. Esperam, com isso, ajudar
àqueles que não encontram informações sobre a wicca tanto quanto desmistificar a figura da
bruxa da prática do malefício. Além disto, a televisão e a imprensa se tornam espaços do próprio
grupo da wicca no país. Aquele que tem acesso a estes meios vê sua identidade de bruxa
legitimada e reforçada, especialmente perante a massa de leigos. Pode, também, aumentar seu
escopo de influência sobre o grupo: ganha novos alunos para os cursos, novos leitores para os
livros, novos interessados; em uma palavra, ganha novos seguidores. Como a liderança da wicca
tem sido disputada no Brasil, a mídia se tornou mais uma ferramenta. A bruxa que não é pública
é uma bruxa que não existe.
A internet se tornou outro veículo de disputa desta liderança quando se apresentou como
um meio capaz de formar uma comunidade. Ela permite uma interação mais imediata que a TV
ou a imprensa, com uma resposta clara e um resultado que pode ser quantificado mais
rapidamente. Também se apresenta como um meio mais contínuo de influência sobre o grupo,
por parte das lideranças. Na internet, as bruxas formaram uma comunidade, e é só através dela
que uma comunidade em termos nacionais pode ser pensada. Sem a internet, o coven estudado
anteriormente nesta pesquisa não existiria. As bruxas não estariam se conhecendo e trocando
informações com a rapidez que isto ocorre, contribuindo para uma certa homogeneização das
práticas e opiniões. Os encontros anuais de bruxas em Brasília são um reflexo disto.
Devemos enxergar a internet como um espaço da wicca no país. Ela ajudou a formar uma
comunidade que vai além do coven, mas que atinge todas as bruxas que queiram nela se inserir.
Ajuda, desta forma, a definir o próprio grupo.
245

PENSANDO O PERFIL DAS BRUXAS ESTUDADAS

Vamos agora rever alguns pontos de modo a efetuarmos um perfil total tanto das bruxas
internautas quanto daquelas entrevistadas. A seguir, veremos quais pontos as narrativas destes
dois grupos apresentam em comum. Veremos, ainda, como as idéias de hereditariedade e as
concepções de gênero apresentadas pelas bruxas se alinham com a idéia do coven como uma
família. Em seguida, observaremos as diferentes categorias de acusação em jogo.

Para pensarmos o perfil das bruxas estudadas, tomamos cinco diferentes variáveis:
escolaridade, sexo, idade, perfil religioso pessoal e familiar. Infelizmente, o material apresentado
para as bruxas internautas não nos permite estabelecer comparações quanto à renda. Dadas as
ocupações profissionais, há uma tendência de que esta não difira da apresentada pelas bruxas
entrevistadas, onde há uma predominância da renda entre R$1500 a R$2000. Para as bruxas
internautas, verificamos que, em um total de 53 respostas, há pelo menos 18 profissionais de
nível superior e 5 de nível técnico. O restante das ocupações não indica o grau de escolaridade,
exceção feita aos estudantes.
Para a leitura do quadro abaixo, há que se fazer algumas observações. Em primeiro lugar,
o total de material analisado é de 8 entrevistas e 77 questionários, contabilizando um total geral
de 85 bruxas pesquisadas. Nem todos os questionários apresentam o mesmo número de variáveis,
por isto o total de cada item do quadro é diferente do total geral. De 77 questionários, apenas 69
apresentam informações sobre idade, 53 sobre escolaridade e 15 sobre religião. Os números entre
parênteses se referem a estes totais. Quando dois números se apresentam separados por uma
barra, dentro de parênteses, o primeiro indicará o número de pessoas respondendo para o total
averiguado. Desta forma, a junção (2/8) na variável perfil religioso indica que estamos analisando
duas respostas de um total de oito. O tópico que indica Total nada mais é que a soma do material
disponível para cada variável: um número constante de oito entrevistas e um número variável de
questionários.
Lembremos apenas que os questionários foram colhidos de forma aleatória, em listas de
discussão sobre bruxaria wicca, e apresentam informações voluntárias das bruxas em questão. As
entrevistas, por outro lado, apresentam conscientemente um número maior de mulheres. O sexo,
246

nas entrevistas, não foi escolhido aleatoriamente. Todas as entrevistadas residem no Rio de
Janeiro ou Grande Rio, enquanto as internautas residem em todas as regiões brasileiras, com
predominância do Rio de Janeiro e São Paulo.

Bruxas Brasileiras
______________________________________________________________________________
Entrevistadas (8) Internautas (77) Total
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
sexo (8) (77) (85)

feminino 7 55
masculino 1 22
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
idade 22 a 49 anos (8) 13 a 41 anos (69) (77)
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
escolaridade (8) (53) (61)
(nível superior 7 27
completo ou não)
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
religião familiar (8) (15) (23)

catolicismo 5 6
espiritismo - 7
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------
perfil religioso (2/8) (6/15) (23)

espiritismo 2 -
umbanda 2 -
Nova Era 2 6
Quadro n. 4: Pensando o perfil das bruxas estudadas.
247

Para as variáveis de religião, é necessário um esclarecimento. A religião familiar indica


religião de algum membro da família ou de cônjuge, no caso das internautas. Para as
entrevistadas, indica a religião da família, de modo geral expressa na religião da mãe no período
de infância da bruxa. é, portanto, a religião na qual ela foi socializada quando criança. Já o perfil
religioso diz respeito à própria bruxa. Neste caso, tomamos os perfis que julgamos serem mais
interessantes para a corrente análise. Quanto às internautas, há muitos perfis que começam no
catolicismo ou espiritismo, mas há também bruxas que já foram umbandistas ou evangélicas. Do
mesmo modo, as bruxas entrevistas apresentam sete perfis que começam no catolicismo, embora
apenas cinco destas sete tenham vindo a contrair a Primeira Comunhão. De todos os
entrevistados, cinco exprimiram a idéia de que não tinham religião anterior à bruxaria,
independente da busca e perfil formulados.
Quanto ao sexo, observamos, entre as internautas, um número duas vezes e meio superior
ao de homens. A idade destas bruxas não difere muito daquela das entrevistadas, apresentando
apenas um desvio em direção aos mais jovens de cerca de dez anos. Nesse caso, a internet pode
estar atraindo um público mais jovem. O grau de escolaridade reflete, em certo sentido, a idade.
Para as entrevistadas, o único homem e o mais jovem era quem não tinha tido acesso à educação
superior, mas apresenta intenções nesse sentido. Para as internautas, cerca da metade exercem
profissões que requerem curso superior ou são estudantes universitários (27 em 53).
A religião da família da bruxa é, na maioria absoluta dos casos, cristã. Embora a bruxaria
seja pagã, e seja relativamente comum que a bruxa afirme que há alguma outra bruxa em sua
família, nenhuma das respostas indica alguma família pagã. Veremos mais adiante esta questão
da bruxaria como herança familiar. O catolicismo e o espiritismo aparecem como as religiões
mais comuns entre os familiares das bruxas.
Para o perfil religioso, escolhemos 8 casos correlatos em um universo de 23. No nosso
entender, estes casos apresentam percursos mais bem formulados, em termos de narrativa, pelas
bruxas, bem como se apresentam como casos paradigmáticos. Entre as entrevistadas, duas
realizaram o mesmo percurso: foram da umbanda para o espiritismo e deste em direção à
religiosidade Nova Era, especificamente do budismo. Há casos, não tão bem estruturados nas
narrativas em questão de bruxas que fizeram caminhos semelhantes, passando também pelo
espiritismo ou umbanda até ingressar na Nova Era e a partir dela na bruxaria wicca. As bruxas
248

internautas apresentam um padrão correlato: muitas vezes ex-católicos ou ex-espíritas, entre


outras possibilidades, estas pessoas direcionam sua busca religiosa para horizontes de Nova Era,
onde entram diferentes ordens esotéricas, o budismo e as religiões indianas. Isto nos permite
pensar em termos de um perfil comum, em que a bruxa deixa a religião de origem da família e se
engaja no que chamam de uma busca. Esta busca encerra a idéia de que há uma religião adequada
ao eu subjetivo, interior, que deve ser procurada. Rompe-se - em maior ou menor grau, como
vimos – com o cristianismo em direção a religiosidades mais difusas e pertencentes ao âmbito da
Nova Era. Esse perfil nos permite supor que a religiosidade expressa na wicca faz parte de um
processo de afastamento das religiões populares e tradicionais em busca de formas mais
modernas de lidar com este tradicional, apresentado aqui na forma da Nova Era.

Dom, hereditariedade e família

Tanto entre as bruxas entrevistadas quanto entre as internautas, há sempre a idéia de que
há outra bruxa na família, definida mais em termos de dom do que do paganismo. Em Frazão, a
bruxa da família – sua avó Vitalina – era benzedeira pagã. No caso destas outras bruxas, o
familiar é portador de dom, não de conhecimento mágico específico ou opção religiosa
determinada. O dom é entendido em termo de contato com espíritos – o que nos remete à
influência espírita sobre as bruxas e as concepções de magia no Brasil – ou de pranormalidade.
Entre eles, podemos destacar: regressão, telepatia, projeção astral, clarividência, clariaudiência,
leitura de mentes, sugestionamento, a leitura da sorte em oráculos, poder de modificar o curso
dos acontecimentos, poder de mover objetos com a força da mente (ou da vontade), poder de
prever o futuro, contato com espíritos, execução de feitiços, viagem astral, entre outros.
Estes dons podem ser atribuídos a pessoas da família, normalmente mulheres, ou à própria
bruxa. No caso das entrevistadas, o dom mais comum é a capacidade de ler oráculos ainda
criança, presente em três bruxas. Este dom indica uma intuição aguçada, capacidade fundamental
à bruxa. É a intuição que permite às entrevistadas formularem feitiços e rituais sem conhecimento
prévio da bruxaria ou a capacidade de prever acontecimentos futuros. No caso das internautas, o
dom mais comum é o contato com espíritos, a mediunidade. Notamos aí duas correntes distintas
de dom: de um lado, a influência espírita sentida sobre as bruxas internautas faz com que o dom
249

de uma bruxa seja compreendido prioritariamente em termos de mediunidade, enquanto para as


entrevistadas ele é basicamente a intuição.
O dom, assim como a idéia de que há bruxas na família, são formas de legitimação da
identidade de bruxa. Quanto à família, a bruxa aparece prioritariamente como uma mulher que
pode saber ou não que é ou foi bruxa. Não diz respeito, portanto, a uma condição assumida pelo
familiar em questão, como era assumida a condição de feiticeira pela avó de Frazão. Há, portanto,
uma história familiar que é recontada de modo a permitir a idéia de uma bruxa na família. No que
tange aos dons, percebemos que as entrevistadas tendem a assumir esta mesma posição:
experiências de vida são recontadas de modo a permitir uma interpretação de que a entrevistada
em questão já nasceu bruxa ou que é bruxa desde sempre. É esse posicionamento que permite a
elas afirmarem que não tinham religião alguma anterior à wicca.
Como a identidade de bruxa está intimamente ligada com uma determinada identidade
feminina, e como a identidade feminina na sociedade brasileira é dada prioritariamente nas
relações em família (GOLDENBERG, 1992), é normal que a identidade de bruxa tenha tornado a
família um referencial para sua legitimação. Além da idéia exposta por Mauss (1974) de que há,
em diversas sociedades, família de mágicos, vemos na wicca um recurso à família também como
ferramenta à legitimação de um determinado padrão de gênero. Se apenas a família fosse
necessária para legitimar a condição de bruxa, porque prioritariamente as mulheres da família são
encaradas como bruxas? Os homens poderiam fornecer a legitimação necessária. Não fornecem
porque ser bruxa para estas mulheres é mais do que operar magia. Ser bruxa diz respeito a um
determinado padrão de comportamento feminino que transgride o padrão da sociedade brasileira,
e, portanto, outras mulheres são acessadas como meio de legitimação.
A família também aparece como uma idéia freqüente no imaginário wiccano. Conforme
vimos, a Alta Sacerdotisa é freqüentemente comparada a uma mãe enquanto o coven é visto
como uma família e até mesmo um clã. A divindade também aparece sob a forma de mãe.
Concepções de laços de parentesco se formam, reforçando a idéia de que a magia é para ser
praticada em família, dentro de uma tradição herdada de ancestrais. Ao mesmo tempo, o modelo
hierárquico de família se alinha com o modelo de complementaridade entre os gêneros que a
wicca apresenta. Apenas o topo da hierarquia, nela, é ocupado por uma mulher, como o topo de
comando de um coven é ocupado pela Alta Sacerdotisa, como a parte forte da família de Frazão
era as mulheres. Os homens, na família da autora, eram fracos, como é fraco o papel que o Alto
250

Sacerdote representa no coven, pois ele não é mais que um atendente da Sacerdotisa, poucas
vezes desempenhando liderança na esfera tradicional destas posições. Por ser este um papel fraco,
Valter – que o desempenhava no coven que vimos - é acusado de querer mais poder dentro de seu
grupo. Ele estaria buscando algo que o cargo que ocupava não permitia. É paradigmático, neste
caso, observarmos que são suas Sacerdotisas as primeiras pessoas que ele afasta. No primeiro
coven, ele ajuda a afastar Joana e depois Vânia. No segundo coven, ele divide a liderança apenas
com os homens.

As disputas entre bruxas: algumas categorias de acusação

A disputa que Valter encaminha com Vânia e Maurício na liderança do coven estudado
toma uma forma análoga à disputa que observamos pela liderança do grupo da bruxaria wicca no
país. Em ambos os casos, o recurso para dominar o grupo é a retirada do oponente da condição de
disputar esta liderança. Essa retirada é efetuada ao se estabelecer que o oponente não pertence ao
grupo. Nos dois casos vistos, o mecanismo é de se desacreditar o oponente como bruxo ou como
wiccano. Não sendo uma coisa ou outra, ele não está apto a disputar a liderança do grupo, pois
não faz parte dele. É uma estratégia de segmentação. É em torno desta estratégia que gira o
embate entre Frazão e seus oponentes. Enquanto a autora desacredita-os como bruxos, eles
tendem a desacredita-la como praticante de wicca. Conforme vimos, Frazão elaborou uma
adaptação da wicca para terras nacionais. Essa adaptação é usada contra ela por seus opositores
como forma de retira-la do grupo da wicca.
As acusações que vem à tona, então, dizem sempre respeito à condição ou não de bruxa.
Mesmo entre as bruxas internautas e as entrevistadas, as acusações trocadas entre as bruxas
indicam que a condição de bruxa pode ser posta em dúvida. As acusações de malefício foram
vistas apenas entre os integrantes do coven estudado, com respeito a uma única bruxa. Não há
acusações de não ser portador de dom. Há apenas acusações quanto à conduta da bruxa, que
podem vir a desacredita-la como praticante respeitável da bruxaria. Entre estas acusações,
destacam-se: a busca pelo poder, interesse econômico, não ter comprometimento com a bruxaria
(ser pink wicca), determinados sensos estéticos – maquiagem exagerada, roupas exóticas -, buscar
a bruxaria para estar na moda ou ser de vanguarda, buscar a bruxaria para afrontar a família, ser
cristão, não ser wiccano.
251

O interesse econômico se traduz no retorno financeiro que a atividade de bruxa traz. A


bruxa que dá cursos de bruxaria é mal vista entre as entrevistadas, mas não entre todas as
internautas. Na internet, a idéia de que a bruxaria pode ser aprendida em um curso pago,
workshops ou outras atividades remuneradas é relativamente bem aceita. Mesmo assim, algumas
bruxas ainda apresentam resistência a estas práticas. O poder é uma categoria análoga à de
interesse econômico, pois suscita a idéia de que a bruxa não exerce sua posição de pessoa
religiosa, mas tenta tirar vantagens materiais concretas ou status ou ainda prestígio do fato de ser
bruxa. O ethos quebrado, em ambas as situações, é o da religião como espaço da caridade, da
confiança, do amor ao próximo e do desinteresse.
As acusações referentes à moda, ao senso estético, a ser pink wicca, ou à família se
referem à falta de comprometimento da bruxa, à sua necessidade de ser bruxa para os outros, e
não para si. Em todos estes casos, a bruxa busca não a religião, mas uma identidade que serve
para um grupo externo ao das bruxas. Os signos estéticos indicam, para quem não é bruxa, que
quem os porta é. A idéia de afrontar a família ou estar na vanguarda igualmente remetem à ser
bruxa para u grupo alheio, e não por uma necessidade do eu subjetivo. O pink wicca é o sujeito
que, embora não seja bruxa para os outros, não assimilou da mesma forma o que a bruxaria
realmente é e como desenvolve-la.
Ser cristão e não ser wiccano são acusações que se inserem na noção de segmentação e
exclusão. Ser cristão, no entanto, é uma acusação que indica que a pessoa em questão não é
bruxa. Uma bruxa de verdade rompe com os padrões do cristianismo, especialmente. Como
vimos, a grande maioria das bruxas estudadas provém de famílias cristãs. Há, dessa forma, uma
ruptura simbólica com a família de sangue para um ingresso na família religiosa, composta pela
comunidade das bruxas. Por outro lado, ser cristão é uma acusação que remete a determinadas
qualidades atribuídas aos cristãos, negativas na maior pare das vezes.

Mais categorias de acusação

As acusações acima se dirigem de bruxas para bruxas. Há uma outra série de acusações
que se dirige das bruxas a determinados grupos da sociedade, e da sociedade para elas,
especialmente a própria família.
252

Entre as acusações que as bruxas recebem de sua própria família, especificamente as


bruxas entrevistadas, estão a de ser satanista, de “lidar com coisas pesadas”, fazer “feitiçaria
braba”, ser louca. Neste sentido, algumas se queixam de as acusações podem vir a ser diretas,
causando uma espécie de “segregação”. A bruxa, associada ao malefício, é vista como pessoa
poluída, com quem não se deve manter contato. Ela passa a inspirar medo. Quando as acusações
da família tomam o tom do deboche e da incredulidade, a categoria loucura entra em ação.
Percebemos, assim, que a bruxa ou é vista como louca ou é vista como maléfica. No primeiro
caso, ela é desacreditada; no segundo, ela é levada a sério, mas como um agente incômodo. Em
ambos os casos, estas acusações reafirmam sua posição de desvio. Todavia, são vistas pelas
bruxas como uma espécie de preconceito, pois marcam a marginalidade de sua posição.
Nos relatos colhidos, a hostilidade posse se evidenciar com algum grau de violência,
especialmente no que tange a estranhos. Uma das bruxas entrevistadas afirma que um
desconhecido cuspiu-lhe, de dentro de um ônibus, chamando-a de “bruxa maldita”. Outra relata
as ameaças que sofreu por telefone, de sujeitos anônimos, que afirmavam que ela não acredita em
Jesus Cristo e por isto “arderia no fogo do inferno”. Nestes dois casos, as bruxas em questão
estavam mais expostas que as demais, pois assumiam publicamente sua condição, inclusive
freqüentando programas de televisão onde falavam sobre bruxaria.
Na internet, pudemos observar que os evangélicos são vistos como os grandes vilões no
que tange o preconceito contra as bruxas. Boatos sobre violência física de evangélicos contra
bruxas circulam com alguma regularidade, e as próprias bruxas afirmam que eles constituem um
perigo real ao seu bem-estar físico. Há, então, uma série de acusações elaboradas para os
evangélicos, em especial, e para os cristãos de um modo geral. Cristãos são vistos como
machistas, presos à razão na forma da palavra escrita - enquanto as bruxas procuram formas de
não-razão, como a sensação e a emoção -, vivem sob a idéia de temor a Deus e orientados apenas
pelo divino, sem comprometimento com o indivíduo. Os evangélicos, especificamente, ainda são
vistos como interessados em dinheiro – que, como vimos, é uma acusação que pesa entre as
próprias bruxas -, proselitistas, manipuladores, arcaicos, chatos, preconceituosos e incapazes de
acessar o divino. Forma-se, deste modo, categorias que atacam religiões que as bruxas vêem
como perigosas à sua própria sobrevivência como indivíduos e como comunidade. Os atributos
dados a cristãos, especialmente católicos, e evangélicos são aqueles rechaçados ao
253

comportamento da bruxa, e são inversos àqueles atributos definidos como específicos das bruxas
wiccanas.
Entre as categorias que as bruxas usam como contra-ataque, num movimento de defesa
contra aqueles de quem elas sofrem algum nível de preconceito, está a categoria “crente”. O
crente, ou evangélico, não é apenas um ator a ser atacado. É uma categoria que simboliza tudo o
que uma bruxa não deve ser: ela não deve orientar suas práticas religiosas em função do ganho
material, ela não deve ser proselitista, não deve ser machista e preconceituosa, não deve ser
manipuladora, deve respeitar o livre-arbítrio, o indivíduo e acessar o divino não apenas pela
mente, mas também pela emoção e pelas experiências sensoriais.
Os católicos não sofrem tantas restrições como os evangélicos porque são sujeitos vistos
como mais próximos ao paganismo. Seriam herdeiros da tradição pagã européia, superposta por
uma roupagem religiosa cristã e o pensamento judaico-cristão. Desta forma, datas e locais santos
do catolicismo são freqüentemente associados a datas festivas e locais de culto pagãos. Como
vimos, há entre as bruxas um percurso que freqüentemente começa no catolicismo, ou no
espiritismo. Há pouquíssimas bruxas provenientes do pentecostalismo. Desta forma, podemos
sugerir que os evangélicos se tornaram sujeitos preferenciais das acusações das bruxas não
apenas pelo seu comportamento para com relação a elas – de acordo com os discurso das próprias
bruxas -, mas também por não constituírem um núcleo religioso com quem elas tenham mantido
contato em algum momento de suas vivências religiosas individuais.
De qualquer forma, o rompimento com o cristianismo é um ponto sempre apresentado
pelas bruxas internautas. Como pagãs, elas mantêm uma preocupação constante com o legado
judaico-cristão e sua influência sobre as práticas da bruxaria. A forma encontrada para romper foi
dupla: não apenas elas se tornam pagãs, isto é, deixam de ser cristãs e abandonam as práticas
cristãs, como aproximam o catolicismo do paganismo, como se a prévia experiência como
católica não invalidasse a identidade de bruxa, pois o católico está mais próximo do paganismo
do que o evangélico, por exemplo. Algumas oposições poderiam ser apresentadas a este
raciocínio. Primeiro, devemos esclarecer que o paganismo a que a grande maioria das bruxas se
refere é sempre de origem européia, anterior à conversão cristã. Deste modo, o paganismo da
Igreja Católica não se reporta a outras culturas. Estas outras culturas podem ser acessadas na
prática da wicca. Isto depende apenas da bruxa, mas notamos uma inclinação maior a mitologias,
panteões e tradições européias do que africanas ou indígenas, por exemplo.
254

Em segundo lugar, devemos colocar que o movimento duplo de ruptura comporta uma
conversão e uma afirmação desta conversão. Quando a bruxa declara que é pagã, ela não é mais
cristã, e isto constitui uma conversão. Ela deve, portanto, romper com seus velhos hábitos,
hábitos de cristã, abandonando estas práticas. Por outro lado, a bruxa que abandona o catolicismo
se converte a uma religiosidade que é vista como anterior àquela. Ela passa a ver no catolicismo
práticas do paganismo. Assim, ela une novamente o que havia separado, preservando uma
continuidade em seu percurso religioso.
No caso das bruxas espíritas, o rompimento não é tão brusco. Muitas das concepções
espíritas se mantêm entre as bruxas da internet, especialmente. A idéia de dom vinculada à de
mediunidade, a noção de “pureza doutrinária”, a preocupação com reencarnação e o karma são
exemplos disto. É no conteúdo cristão que a bruxa espírita efetua o rompimento, não no
conteúdo. Exatamente como a bruxa católica efetuou o rompimento no conteúdo cristão,
mantendo o pagão já existente.

Quanto às demais categorias de acusação que as bruxas usam para aqueles que lhes
atacam, além da categoria crente, estão: preconceituosa, ignorante, analfabeta, fanática, louca ou
sem cultura. A bruxa que se sente acusada por uma pessoa que não é bruxa, reage a esta acusação
com uma contra-acusação. Neste caso, ser preconceituoso, não ter cultura, ser analfabeto ou
ignorante formam uma linha única de acusações, que remetem à idéia de que aquele que acusa a
bruxa - de malefício ou loucura - não tem noção do que a bruxaria é na verdade. Falando sobre o
que não conhece, ele comete erros. Por outro lado, o fanático, o crente e o louco são acusações
análogas. O crente é visto como um fanático, e o fanático é visto como louco, pessoa que não tem
razão no que diz, que age sem conhecimento e que é direcionado por uma pensamento único e
obsessivo que não aceita nenhuma outra forma de expressão que não seja a própria.

* * *

Há um perfil, que poderíamos chamar de mais comum, para as bruxas estudadas: há


poucas diferenças entre os perfis das bruxas entrevistas e das bruxas internautas. As categorias de
acusação, a noção de dom, as experiências religiosas, o grau de escolaridade, são muitas as
255

semelhanças entre ambos os grupos que nos permitem pensar os dois grupos de uma forma mais
ampla, como bruxas brasileiras.
A bruxaria wicca é definida em função de práticas que se remetem mais freqüentemente a
tradições européias e estrangeiras do que às tradições nacionais. Estas são abandonadas ou mal
vistas. De certa forma, o resgate e a defesa destas tradições pode vir a não se alinhar com as
práticas da wicca, segundo o discurso das bruxas demonstrou. Formula mais a categoria de bruxa
o ser pagã, alinhada à tradição da wicca, do que o operar magia e o cuidado com as formas
mágicas nacionais. Não obstante, essas formas mágicas fazem-se sentir no discurso das bruxas,
especialmente quanto à influência espírita.
Sobre as bruxas de hoje, percebemos que esta categoria engloba uma identidade que não
se limita ao gênero ou à opção religiosa, mas vem de encontro a um determinado perfil que
envolve a ocupação profissional e o grau de escolaridade, apresentando conotações de classe.
Afastando-se progressivamente do que é religião popular em direção a formas importadas de
religiosidade, a bruxa se apresenta num movimento de ascensão social. É uma ascensão vista não
do ponto de vista financeiro, mas de outros indícios: a religião estrangeira possivelmente
acompanha um processo de afastamento do popular em todos os níveis, especialmente quanto à
cultura de classe; desta forma, a religião é apenas um dos níveis deste afastamento, e
possivelmente uma conseqüência de um movimento individual mais ampla. Os perfis analisados
demonstram que o nível superior (universitário) é freqüentemente alcançado, embora nem sempre
completo. Residem as bruxas em cidades, especialmente grandes metrópoles como as capitais dos
estados, ou ainda cidades menores com algum grau de urbanização. No caso das bruxas cariocas
entrevistadas, habitam bairros de classe média ou subúrbio. Têm, quase sempre, acesso ao
computador e outros meios de comunicação. Atuam profissionalmente em atividades de nível
superior ou técnico, ou no próprio mercado esotérico.
Quanto à questão de gênero, a identidade de bruxa se apresenta com uma valoração
inversa àquela que consta na sociedade brasileira. A bruxa do malefício desaparece e dá lugar a
um operador de magia ligado aos processos da modernidade, um sujeito desse processo. As
noções de gênero se remetem à identidade feminina constituída no âmbito da família, como no
Brasil, mas de forma a tornar a mulher o ponto forte da relação complementar exercida entre
marido, esposa e filhos. Essa identidade também remete a novas expressões de sexualidade que
não a dominante: alguns homens aparecem, a partir da pesquisa de campo, como homossexuais.
256

Enquanto esperávamos que o mesmo se desse com as mulheres, tal não foi visto. Não foi possível
perceber, em campo, se a sexualidade da bruxa brasileira se alinha, de fato, com o padrão da
“puta”, como a análise da obra de Frazão sugere. O que percebemos é que a wicca se torna um
lugar privilegiado para os homossexuais masculinos, pois sua hierarquia de gêneros valoriza o
que é feminino, pólo onde o homossexual se insere.
O feminino é visto em relação com o masculino em termos hierárquicos, embora as
bruxas pretendam alcançar a igualdade de gêneros. Nesta hierarquia, os atributos do feminino são
mais valorizados. Formulam-se, assim, duas lógicas atuantes: embora as bruxas queiram alcançar
a igualdade expressa em termos de individualismo e afirmem que homens e mulheres são iguais,
elas formulam padrões valorativos hierárquicos de complementaridade para feminino e
masculino.
257

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após dois anos de pesquisa o presente estudo finalmente toma forma no papel. Foram
horas de fitas gravadas, de conversas com bruxas de várias cidades do país, de convivência com
jovens, homens e mulheres que vêem na sua religião a expressão de um sentimento interior
essencial e um novo modo de vida. A bruxa deixa para trás velhos padrões, procede a uma
ruptura com a religião familiar, constrói uma nova família na bruxaria e busca sua felicidade: no
encontro da crença que buscava, na procura por um lugar no mercado de trabalho, na nova
identidade que assume.
Na análise do trabalho de campo, maior parte deste estudo, tentamos esclarecer o leitor
quanto à dinâmica da relação entre as bruxas, o seu perfil, a apropriação da wicca pelo sujeito
brasileiro, as trocas que provieram disto, a nova categoria formulada para a bruxa, a nova
realidade da mulher bruxa e da mulher de hoje, os contornos tradicionais e modernos desse
grupo. A wicca foi retratada in loco, como ainda não havia sido, por um olhar acadêmico,
antropológico. Mais um dos ramos que formam a Nova Era teve seu retrato pintado. E a crença
na magia que permeia a sociedade brasileira se mostrou tão forte quanto antes do advento da
Nova Era e seu reencantamento do mundo.

Identidade bruxa

Começamos este trabalho com uma pergunta em mente: estaria a bruxaria wicca servindo
de local de construção de uma nova identidade feminina? Ao longo da pesquisa, percebemos que
não apenas a bruxa moderna constitui uma identidade feminina como ela é uma identidade que
vai além do plano de gênero, direcionando a vida da bruxa em outras direções como a inserção
profissional no mercado de trabalho. Não deixa, contudo, de se apresentar como espaço para uma
determinada identidade feminina. Nesse sentido, a bruxa aparece como uma mulher forte,
independente, ligada à natureza, sábia, portadora de um conhecimento específico – muitas vezes
visto como feminino -, mulher livre, de sexualidade livre, marginal, revolucionária.
Para chegarmos a esta conclusão, partimos da análise da posição social da mulher na
sociedade de dominação masculina, da análise do discurso das bruxas e do trabalho de campo
258

realizado. Num primeiro momento, a análise do discurso presente na literatura produzida pelas
bruxas indicava a wicca como parte de um universo feminino: não apenas ciclos biológicos do
corpo da mulher, mas a esfera doméstica, a esfera da cura, dos amores, da natureza. Nos
perguntamos, então, que universo seria esse, em que idéias de feminino ele se assentava.
Procurando na filosofia, na antropologia, na sociologia e na História, chegamos à conclusão de
que o universo feminino retratado na wicca fazia recurso a formas tradicionais, pré-modernas de
ver a mulher. A mulher bruxa, intimamente ligada à magia e à natureza, por isso mulher perigosa
e temida, vista também como de sexualidade livre, fora da ordem social, fora do escopo de
dominação dos homens era a mulher apresentada pelos manuais de bruxaria. Ou pelo menos, é o
ideal de feminino que a bruxaria wicca apresenta.
A bruxa apresentada segundo a wicca é uma mulher forte, sexualmente livre,
revolucionária, em comunhão com a natureza, sábia e por isso marginal. É mulher forte porque o
espaço da mulher não é o de submissão ao homem, pólo forte de uma relação complementar que
direciona as relações de gênero no patriarcado. É sexualmente livre porque a sua liberdade sexual
é uma maneira de fugir à dominação masculina, de romper com esta ordem. É revolucionária
porque suas posturas são uma crítica à ordem vigente, tanto nas questões concernentes ao gênero
quanto na atitude frente à natureza e à ordem social mais ampla. A bruxa é mulher em comunhão
com a natureza, vista como sagrada e feminina. Alinhada duplamente com o que a ordem
masculina considera caótico e impuro, a bruxa reafirma sua crítica ao mundo moderno. A
natureza vista pela modernidade como o caos irracional que deve ser dominado pela razão
civilizadora é um movimento que define, na verdade, a dominação da mulher pelo homem. O que
as bruxas fazem, então, em sua crítica, é formular a supervalorização da natureza, que deve agora
direcionar os passos e movimentos do homem, pois adquire um caráter sagrado. A natureza
sagrada, divinizada, está acima da civilização. Simbolicamente, isto indica que o feminino está
acima do masculino, as formas femininas de existência estão numa hierarquia acima das formas
masculinas. Daí decorre o movimento de desvalorização do que é considerado masculino: a
razão, a civilização, a ciência, o mundo moderno.
Observamos esta crítica da seguinte forma: a wicca toma as atribuições para feminino e
masculino do próprio modelo patriarcal, invertendo sua valoração e formulando, assim, uma
crítica e uma solução ao modelo vigente. Não há uma ruptura total nem tampouco uma
construção de um modelo totalmente novo. O que há é a reapropriação do modelo vigente de
259

modo a garantir ao feminino uma supervalorização. Espécie de ação afirmativa, a wicca não
propõe modelos novos. Ela toma o modelo corrente e re-atribui valores segundo suas prioridades,
ao mesmo tempo em que afirma que suas fontes são tradicionais. Entendemos, portanto, que uma
das prioridades da wicca é estabelecer novos valores a velhas atribuições de gênero. É neste
movimento que a mulher e o feminino se apresentam como centrais à compreensão desta forma
de bruxaria moderna, e foi a partir deste raciocínio que levantamos a hipótese de que este seria
um locus privilegiado para a construção de uma nova identidade feminina, que até então não
sabíamos qual seria, e que se definiu ao longo da pesquisa.
Não estamos discutindo qual a ordem dos fatores: não estamos discutindo se a
preocupação da wicca é uma determinada mudança social, se é uma determinada crítica à
modernidade, se é a mudança dos valores para o gênero, se é uma luta feminista ou ambientalista
que tenham levado à construção de novos valores para feminino e masculino. Estamos afirmando
que, da maneira como ela é vista em livros que foram escritos pelas próprias bruxas, e por isso
definem bem o seu discurso próprio, a wicca demonstra que a questão de gênero é central para a
compreensão desse discurso. Toda a crítica social formulada, a crítica à modernidade, à maneira
como ela tem lidado com a natureza, à maneira como o masculino tem se relacionado com o
feminino, à maneira como a ciência vê a magia, o desencantamento do mundo, isto tudo tem um
cerne, que é a visão de gênero que a wicca guarda. Tomando as atribuições de gênero e sua
valoração como pólos de uma oposição por vezes complementar, a wicca formula uma teoria
explicativa do mundo moderno que é, ao mesmo tempo, uma crítica a ele. O cerne dessa crítica é
a desvalorização do que é considerado feminino: a magia, a arte, o sonho, a intuição, a natureza, a
calma, a ludicidade, a beleza. Tomando tudo isto como feminino, a wicca afirma que este é o
caminho ideal para a humanidade, este o caminho de ruptura com a ordem vigente que é vista
negativamente.
A centralidade das concepções de gênero permeia todo o sistema wiccano, da organização
hierárquica da prática ritual à mitologia. A mulher é sempre apresentada como mais próxima à
magia e à natureza já sacralizada. Próxima à fonte do sagrado, ela se torna o próprio sagrado.
Assim, no par divino a preponderância é feminina. O processo da magia é visto como um
processo feminino (o processo masculino de transformação do mundo seria a ciência).
Considerando este caminho um caminho feminino, a wicca supervaloriza este pólo. O que
decorre é a constante preocupação com o equilíbrio. Embora apresentados como opostos, estes
260

pólos são complementares. Desta forma, a idéia é de que um pólo recorra ao outro para que haja
um estado de equilíbrio. Por outro lado, há uma aparente contradição. Se o feminino é
supervalorizado, o masculino parece desprezado. A solução para o equilíbrio é a formulação de
um novo masculino. É neste momento que percebemos duas lógicas, dois códigos em ação: o
masculino criticado é aquele da força bruta, da dominação, do caos destrutivo; o masculino a ser
criado é o da força interior, da força construtiva, do caos que possibilita a mudança para melhor,
da destruição do velho. No primeiro caso, ele é civilização; no segundo, é natureza
(positivamente vista). No primeiro caso, ele se assemelha às concepções que o patriarcado forjou
para a natureza; no segundo, ele se aproxima das concepções de natureza da wicca.
Este masculino recriado pela wicca não tem ainda um lugar claro em seu sistema. Foi
possível observar no campo que há uma confusão a este respeito: algumas bruxas falam em um
masculino mais feminino, no sentido de ser menos destrutivo, especialmente no que tange a
mulher e a natureza; outras falam em masculino nos termos patriarcais, com as mesmas
atribuições. Concluimos que se o feminino ganhou centralidade entre as bruxas wiccanas, o
masculino ainda não alcançou um lugar definido. A questão da homossexualidade entre as bruxas
deixa isto claro. As homossexuais femininas ocupam as mesmas posições de feminino que suas
colegas heterossexuais, sem distinção. Apenas pelo fato de serem mulheres, as lésbicas estão
enquadradas no pólo feminino. Os homossexuais masculinos, por outro lado, ocupam um lugar
ambíguo. Alinhados no pólo feminino, eles não se identificam com nenhum dos dois modelos de
masculinidade em questão, mas com o modelo de feminino, pois este é um modelo novo que
permite à mulher a independência e a liberdade sexuais que antes só os homens gozavam. Essa
mulher forte que a bruxa representa é um modelo para homossexuais de ambos os sexos, e para
as mulheres bruxas de um modo geral. Não há, contudo, um modelo claro para o bruxo
heterossexual. O que decorre disto é o número acentuado de mulheres na wicca, e a constatação
das próprias bruxas de que a maioria dos homens praticantes de bruxaria é homossexual. De fato,
se o modelo de força e virilidade do Deus fosse seguido pelos praticantes, não seria possível
pensarmos em Altos Sacerdotes homossexuais, mas eles existem. Isto porque não estão alinhados
com o papel do masculino, e sim com o feminino. Ao mesmo tempo, devemos entender que,
neste ponto, a wicca entra no choque que consideramos o mais agudo com a sociedade mais
ampla. Homens cujo ideal de masculinidade não aceita o ideal feminino expresso na identidade
de bruxa não conseguem praticar wicca. Por isso a quantidade de homens é limitada, e se reduz
261

aos homossexuais e aos homens jovens, em média com menos de 30 anos. Os mais jovens estão
já inseridos em um contexto onde o ideal de masculinidade consegue conviver com a idéia que a
bruxa traz de ser uma mulher independente, forte, sexualmente livre e mais valorizada do que ele.
Essa identidade feminina da bruxa também sofre de uma lógica ou código duplo. Como
feminino e masculino são complementares, se ele apresenta dois códigos, ela também. Em um
sentido, quando formula a crítica à modernidade, o feminino é visto como passividade, intuição,
magia, natureza, beleza, arte, emoção entre outros. Quando construída a identidade da bruxa, no
entanto, ela não é mais uma mulher passiva. Ela é ativa e forte, ela é independente e livre. O
recurso ao tradicional, nesse sentido, é a um feminino marginal, um feminino que quebra a ordem
estabelecida. Pois o tradicional a que as bruxas recorrem não é apenas o que gerou as concepções
modernas, é o tradicional quase mítico do matriarcado, da pré-história que deixou poucos
vestígios, de um tempo em que o feminino era dominante, mas com os mesmos atributos que o
feminino tem hoje. A identidade da bruxa wiccana está mais próxima da identidade da mulher
moderna do que da mulher do mundo tradicional ocidental, à exceção, efetivamente, da bruxa no
seu sentido folclórico de mulher sozinha, alcoviteira, diabólica. E mesmo assim, a bruxa moderna
não aceita a acusação de malefício, nem é ela uma mulher sem laços sociais, escondida nos
limites entre a cidade e a natureza. A bruxa moderna é mulher urbana, profissional que trabalha
fora de casa, mãe, esposa, amante.
O que temos, então, é uma identidade que recorre àquilo que foi considerado marginal
para o feminino tradicional, mas que parece estar se tornando um novo modelo para a mulher
contemporânea. No meio do caminho entre as concepções tradicionais de masculino e feminino, a
bruxa é independente, livre e ativa, mas o feminino ainda é considerado como passividade. No
âmbito da magia, ela é o meio do caminho entre a passividade completa do xamã e a dominação
absoluta do mago. O que as bruxas entrevistadas formulam para a posição mágica da bruxa num
quadro mais amplo dos operadores de magia serve também para compreendermos a posição da
bruxa na estrutura complementar de masculino e feminino, complementaridade que em si
remonta também a concepções pré-modernas. O feminino passivo é contraposto ao masculino
ativo. A mulher forte é acompanhada de homens fracos, cuja noção de virilidade não agride a
complementaridade da relação: homens jovens e homossexuais. Desta forma, o masculino que
lida com esse novo padrão de feminino vai se tornando também complementar.
262

Para além da identidade feminina

A identidade de bruxa, se direcionada pela centralidade do feminino na própria wicca, não


se restringe a uma identidade feminina nem à categoria da operadora de magia. Ser bruxa não é
apenas ser uma mulher livre das amarras da dominação masculina, não é apenas ser uma
sacerdotisa, ser uma operadora de magia. Ser bruxa é uma profissão tanto quanto o ápice de um
perfil definido também em termos de classe e status social. Os perfis apresentados para as bruxas
mostram um direcionamento a formas religiosas de Nova Era, um movimento no qual há um
afastamento da cultura popular em direção a formas importadas de religiosidade. No caso das
bruxas estudadas, a Europa é a principal fonte, embora outras culturas possam ser também
acessadas.
Como profissão, a bruxaria está inserida no mercado esotérico, dentro do âmbito da Nova
Era. Faz parte da profissão da bruxa prestar consulta com qualquer oráculo ou método
advinhatório de sua preferência (baralho cigano, tarot, runas, astrologia, entre outros). Além
disso, ela pode se dedicar a outros tipos de serviço, como a mudança das energias de uma casa,
através da radiestesia, a consulta do mapa astral e outros serviços astrológicos, ou terapias como
Florais de Bach e psicoterapia junguiana. Pode, ainda, dar aulas e cursos: curso de oráculos,
astrologia, numerologia, dança do ventre, mitologia, bruxaria wicca, entre outros. Como
profissional desse mercado, a bruxa também organiza feiras e eventos ou atua como proprietária
de espaços destinados à venda de produtos esotéricos.
O recurso à bruxaria como profissão demonstra duas questões: 1) o mercado esotérico é
um mercado que movimenta quantias consideráveis de dinheiro, pois tem servido de fonte de
renda única ou principal para seis dos oito entrevistados; 2) com curso superior completo ou não,
não era inevitável o ingresso dessas pessoas neste mercado, portanto, este ingresso é fruto de uma
escolha pessoal que alinha um determinado conhecimento especializado, a necessidade de fazer
parte do mercado de trabalho, e a opção religiosa da wicca, já aqui vista como identidade de
bruxa. Não nos atemos, durante a pesquisa, ao mercado da bruxaria, à bruxaria como profissão ou
ao mercado esotérico. Foi com surpresa que percebemos que a identidade de bruxa podia
englobar uma profissão. Há, sem dúvida, muitos indivíduos atuando neste mercado que não são
wiccanos. É possível, inclusive, que a bruxaria vista como profissão passe a ser um chamariz a
novos adeptos, pois há retorno financeiro para quem investe nesta área. Atualmente, o que
263

pudemos averiguar é que a profissão de bruxa não é de todo bem vista por todas elas. Mesmo
aquelas que fazem parte do mercado esotérico fazem questão de afirmar que não cobram para
ensinarem a religião a alguém interessado. Esta é a linha divisória para o ethos formulado entre as
bruxas. Como religião, a wicca não pode ser fonte de renda, malgrado haja inúmeras bruxas
ministrando cursos de bruxaria. Nenhuma, porém, afirma fazer feitiços para terceiros em termos
de consulta, especialmente em troca de dinheiro. O que não tange a religião, como a leitura de
oráculos, os diversos serviços prestados e o comércio não são mal visto, pelo contrário, às vezes
são até almejados como fonte de renda para quem está fora do mercado.

Para entendermos como as bruxas se tornam bruxas, não do ponto de vista subjetivo mas
do percurso e aprendizado, tentamos proceder à elaboração de perfis religiosos que nos
permitissem vislumbrar o caminho da busca que as entrevistadas afirmavam ter concluído. Os
perfis que analisamos demonstraram que a wicca é alcançada após um caminho que começa com
o afastamento da religião familiar e o ingresso em diversas religiosidades até que se alcance o
âmbito de influência da Nova Era. Nesta busca, o espiritismo e a umbanda são freqüentemente
pontos de passagem até se chegar à Nova Era. O candomblé e as religiões pentecostais são
raramente citados. Os pentecostais, sob a forma das categorias evangélico ou crente, foram
transformados em inimigos.
A idéia de que os evangélicos são inimigos expressa, na verdade, a ruptura que a bruxa
wiccana procura estabelecer com o cristianismo. A wicca é uma religião pagã e há uma
preocupação constante das bruxas em manter clara a linha divisória entre paganismo e
cristianismo. O paganismo é visto como uma religiosidade anterior ao cristianismo, que teria
retirado daquele muito de suas crenças atuais. Nesse sentido, o catolicismo é visto como bem
próximo ao paganismo europeu e do Oriente próximo, pois teria engendrado um processo de
estabelecimento e institucionalização que absorveu práticas e crenças pagãs. Outras formas de
cristianismo, como o pentecostalismo, não são vistas de maneira tão benevolente. Uma indicação
do porquê disto nos encaminha para os perfis das bruxas: apenas uma bruxa entrevistada e duas
bruxas internautas afirmavam ter alguma passagem pelo pentecostalismo, seja individualmente
ou no âmbito familiar, para um total respectivamente de 8 entrevistas e 77 questionários. No
campo, embora tenhamos tido contato com inúmeras bruxas, o número se mantém: até onde foi
possível averiguar, apenas duas demonstraram ter evangélicos na família. Não participando desta
264

religiosidade nem mantendo contato com ela, se torna mais acessível às bruxas uma crítica aos
evangélicos, suas crenças e atitudes, do que a católicos. Boa parte das bruxas provém de famílias
católicas. O rompimento, portanto, é mais fácil com o cristianismo como se apresenta no
pentecostalismo.
Quanto ao candomblé, alguns indícios nos faziam questionar o porquê desse afastamento.
Em princípio, a estrutura organizacional de gênero no candomblé parecia muito próxima à wicca.
Após a análise do material de campo, chegamos à conclusão de que esse afastamento é causado
mais por uma definição da própria busca do que por uma recusa expressa, como é o caso do
cristianismo. O panteão africano do candomblé poderia ser utilizado na wicca, mas dificilmente
isto ocorre. É mais comum observar-se os wiccanos adotando panteões africanos através de
tradições afro-americanas ou afro-caribenhas, como o vodu ou a santería. Isto nos indica uma
determinada estratégia de afastamento daquilo que é eminentemente brasileiro em direção ao que
vem de fora do país, seja de que lugar do globo for.
Observamos, então, que de várias formas diferentes as bruxas wiccanas traçam estratégias
de afastamento da cultura popular e folclórica brasileira, daquilo que é nativo, que é mais
brasileiro, em direção a formas estrangeiras. No caso da cultura africana, o candomblé é trocado
pelo vodu. No caso da cultura indígena, a tradição das populações brasileiras perde espaço para o
xamanismo sob a forma nativa norte-americana. No caso do folclore nacional, a bruxa do
malefício ou a benzedeira que cura esse malefício aparecem sob a forma da bruxa européia, a
curandeira, a bruxa perseguida pela Inquisição. Qualquer que seja o referencial, ele é sempre
estrangeiro.
Compreendemos que o consumo de cultura estrangeira, venha ela de onde vier, está
inserida tanto numa dinâmica de globalização do planeta quanto na própria dinâmica da Nova
Era. Não nos ativemos a este ponto pois não havia tempo nem espaço, e nem era esse nosso
interesse principal. Poderíamos ter nos perguntado a lógica de consumo de cada elemento em
questão, por que uns são mais procurados do que outros, mas deixamos isso para futuros
pesquisadores. Há, apesar de tudo, um claro direcionamento às formas tradicionais pagãs
européias, sobretudo ao folclore inglês de origem celta. Acreditamos que haja uma dinâmica
própria que possibilita esse interesse, mas não nos detivemos sobre esse ponto.
O que nos chamou mais a atenção em todo esse movimento foi o progressivo afastamento
das formas mágicas nacionais em detrimento de formas estrangeiras. Por um lado, pensamos que
265

essa é uma forma de atualização da crença na magia para sujeitos de classe média com alto grau
de escolarização e habitantes de grandes centros urbanos com amplo acesso à informação. Este
perfil é o mesmo para bruxas wiccanas e new agers, e neste sentido seu movimento também se
alinha. Por outro lado, este fenômeno parece indicar um determinado caminho de afastamento da
cultura popular e absorção de uma cultura mais global, ou globalizada, difundida igualmente por
todo o mundo moderno, e que transforma seu sujeito não em cidadão local mas em cidadão do
mundo.
Está claro que, apesar deste esforço, a bruxa brasileira é um sujeito de uma determinada
conjuntura histórica e social. Neste âmbito, a ruptura com as formas mágicas nacionais não pode
ser completa. A crença na magia que atua na sociedade brasileira é, em primeiro lugar, aquilo que
possibilita a sua atualização pela Nova Era para a classe média urbana. Em segundo lugar, essa
crença forjada com base no espiritismo e nas religiões afro-brasileiras não consegue passar
desapercebida no discurso das bruxas estudadas. A influência de concepções mágicas como a
mediunidade, o dom, o psiquismo e a paranormalidade entre as bruxas provém dessa influência
na sociedade brasileira. Aqui, é mais bruxa a pessoa que vê e comanda espíritos do que aquela
que cura com rezas e ervas, pois a mediunidade e a possessão, amparadas em tradições africanas,
têm dado o sentido da crença nacional na magia. Para as bruxas brasileiras que praticam a wicca,
o mesmo tem se dado. O dom e a mediunidade têm sido usados como recursos legitimadores da
condição de bruxa, enquanto dons como a cura com reza e ervas nunca são acessados como
legitimadores. Uma bruxa é definida ainda mais em termos de dom no país do que em termos de
conhecimento. Não é qualquer dom: é o dom de fazer feitiços, de mudar a realidade, de algum
nível de paranormalidade e mediunidade. Deste modo, a figura já folclórica da benzedeira perde
o contexto de bruxaria e se torna uma crendice popular, uma crendice de católicos das classes
mais baixas, e normalmente da zona rural. Esta bruxa rural, que se parece mais com a bruxa
européia a quem os wiccanos se remetem do que eles próprios, toma outra forma sob os olhos das
bruxas modernas. A benzedeira é cristã, e como cristã não pode ser bruxa. Se detalhes como esse
agora fazem a diferença, alguns traços tradicionais se mantêm.
A bruxa é agora definida no paganismo e na mediunidade e poderes correlatos. Mas
continua sendo, prioritariamente mulher. O dom passa a ser também definido em termos do corpo
da mulher: reside no útero. Desta forma, é impossível que lhe seja alienado. É um dom feminino,
um poder que não lhe pode ser tirado, ao contrário dos direitos e deveres que a ordem social dita.
266

Fazendo parte de uma cultura feminina, como algumas bruxas querem fazer crer, esse dom se
mescla à idéia de ancestralidade. Não é um dom passado dentro da família, mas um
conhecimento passado dentro da família, e é nesse sentido que a existência de outras bruxas entre
os parentes serve como legitimação da nova identidade. Ser bruxa significa estar dentro de uma
tradição de dom e conhecimento, uma cultura que é passada. Embora apenas uma bruxa, a
escritora Márcia Frazão, afirme com todas as letras que aprendeu bruxaria em família, a descrição
que fornece para a bruxa permite que muitas vejam em suas famílias mulheres bruxas, apesar de
cristãs, apesar de benzedeiras, ou nenhuma dessas coisas. A bruxa da família tem uma definição
mais fluida do que a bruxa moderna inserida no padrão da wicca. Pode ser um parente médium,
um ancestral cigano, uma curandeira, parteira, rezadeira, uma mulher cujas “simpatias” surtiam
efeito.
Mais do que a própria definição mágica do dom da bruxa, o recurso à família demonstra
que ela não é o ser sem laços de solidariedade que se convencionou descreve-la. Se a bruxaria é
um conhecimento que pode ser aprendido em família, se algumas bruxas usam isto como forma
de legitimação de sua identidade, então sua situação de marginalidade não advém daí. E a família
é uma experiência tão forte para as bruxas wiccanas, que possuem duas: a primeira, a família
extensa; a segunda, o coven. Formam, deste modo, dois laços que perpassam a sociedade: um em
termos de grupo social familiar, e outro em termos de grupo social religioso. No grupo religioso,
a Alta Sacerdotisa é vista como uma mãe, as divindades são pai e mãe, o coven é uma família que
se relaciona em amor e confiança.
A esfera da família é uma esfera feminina, do trato doméstico, dos filhos, do cônjuge, do
parentesco, do cuidado com o outro. Posto desta forma, o coven passa a ser uma outra unidade
doméstica, onde a mulher também domina, pois quem lidera o coven costuma ser a Alta
Sacerdotisa. Mantém-se desta forma, e não apenas pela liderança feminina, o âmbito doméstico
da bruxaria, universo feminino onde ela se desenvolve, esfera privada.

Entre o tradicional e o moderno

Retomando a discussão anterior, o que observamos foi uma reapropriação de modelos


tradicionais para um contexto contemporâneo, onde esses modelos sofrem uma mudança. No
caso das concepções de gênero, a mudança é valorativa. As atribuições permanecem as mesmas,
267

o sentido hierárquico e de complementaridade também, mas a valoração positiva recai sobre o


feminino enquanto a negativa recai sobre o masculino. Para os modelos reais de identidade
feminina e masculina, temos um processo semelhante. Seguindo o padrão da sociedade mais
ampla, a wicca não conseguiu formular um padrão definitivo de masculino que rompa com o
tradicional, embora tenha acessado um determinado feminino marginal como modelo para o
feminino atual. Esse modelo masculino parece estar ainda em construção, ou ainda em aberto,
enquanto o modelo feminino indica um perfil mais próximo ao da mulher contemporânea do que
ao feminino dominante no período pré-moderno.
A categoria bruxa é também uma reapropriação de uma identidade tradicional, agora
envolvida com um sentido atualizado. A bruxa não é um agente do malefício. Ela agora foi
atualizada como uma mulher sábia, com conhecimentos ocultos – que no contexto da Nova Era
são bastante valorizados -, capaz de dirigir sua própria vida e até mesmo a dos outros. Ela é
sujeito da sua própria existência de uma forma que apenas contemporaneamente a mulher tem
conseguido ser: não apenas em termos de direitos e oportunidades, mas num sentido mais amplo
da escolha pessoal. A prática da magia, o feitiço, pode nesse sentido ser vista como um emblema
dessa posição adquirida: no feitiço a bruxa molda a situação segundo o seu desejo, ela modifica o
destino. A mulher tem modificado seu destino traçado no jugo da dominação masculina, e nessa
mudança ela vem ganhando espaço e uma subjetividade que até então não lhe estava disponível.
A bruxa aparece, assim, atualizada: é a mulher que faz feitiços, que molda o destino, agora não
contra forças naturais em ritos de fertilidade mas contra forças sociais e em seu benefício. A
condição marginal da bruxa é, na verdade, temporária: o que ela expressa é a lenta transformação
de uma ordem que excluía a mulher como sujeito. Se a bruxaria não parece ainda direcionada
para uma sociedade igualitária, segundo os moldes modernos, é porque ela faz recurso ao
tradicional como uma forma de crítica a este igualitarismo que apenas recentemente tem se
proposto a incluir a mulher como sujeito. No tradicional, a inversão da valoração é uma crítica e
uma solução ao igualitarismo que só se propôs a incluir a parcela masculina da população, e
mesmo assim não de uma só vez, excluindo a mulher pelo único argumento de que era mulher. Se
na ordem igualitária ela não era uma igual, formulou uma ordem própria onde mais que igual ela
ocupa papel central e até mesmo superior.
A magia surge, assim, das páginas da tradição como uma forma de crítica ao mundo que
foi constituído sem a inclusão do que a wicca considera feminino e sagrado. O feitiço, argumento
268

de quem não tem força nem voz, se transforma num meio delicado e sutil de trazer a mudança.
Sutil porque age em silêncio e delicado porque não visa o mal. É assim que a bruxa tem se
proposto a mudar o mundo: começando por si mesma. Ao invés das grandes lutas políticas, a
mudança interior, no trato com as pessoas do dia-a-dia e consigo mesma. Não apenas a luta
político-econômica, da qual algumas bruxas fizeram e fazem parte, mas a luta pelo cotidiano
essencial do ser humano: a relação entre gênero e a relação com a natureza emergem como
formas capazes de mudar a sociedade atual.
Na verdade, observamos essa transformação a que as bruxas se remetem como um
movimento duplo: seu ponto de vista não seria possível se a sociedade contemporânea não
abrisse espaço a isto; este espaço é aproveitado como local de crítica dessa mesma sociedade,
reformulada através daquilo que ela nunca considerou central. As bruxas wiccanas conseguiram
forjar um ponto de vista que é único, embora se assemelhe em muitos pontos ao pensamento mais
vastamente composto na Nova Era. Esta forma de religiosidade, neste sentido, foi por nós
acessada porque explica a conjuntura que vem possibilitando a expansão da wicca e a conversão
à bruxaria de determinados sujeitos. A Nova Era trouxe a abertura necessária para a expansão – e
criação, poderíamos dizer - da wicca. Ela define uma conjuntura dada em que o pensamento das
bruxas, conforme foi exposto no presente trabalho, pode se desenvolver. Este pensamento não é
um retorno a formas tradicionais, mas uma busca, nestas formas, de um mecanismo de reencaixe,
ao mesmo tempo em que formula uma crítica ao mundo moderno com aquilo que foi por ele
alienado. Se a natureza e a mulher foram dominadas, alijadas da civilização, associadas ao
perigo, então são elas retomadas como o locus privilegiado de onde parte a crítica. Se a
modernidade erigiu o trabalho e a esfera econômica como centrais, não é deste âmbito que surge
a crítica, mas daquilo que ficou de fora, daquilo que se tornou marginal.

Últimas considerações

Apesar deste trabalho ter-se proposto, em princípio, a tratar de uma determinada


identidade feminina, identidade aparentemente tradicional, ele foi se ramificando de tal forma
que nos vimos em meio às questões mais importantes de nosso tempo: a emergência do sujeito
moderno, a preponderância do pensamento racional científico, o status social da mulher, as trocas
culturais na sociedade brasileira. Embora fossem temas de relevância, diretamente relacionados
269

com esta pesquisa, não era possível esgotá-los. Tentamos, na medida do possível, nos atermos à
descrição do grupo praticante da wicca, de modo a servir de pano de fundo e contextualização
para nossa primeira questão, que concernia à identidade da bruxa, da mulher que pratica a
bruxaria moderna hoje no Brasil como religião. A wicca é uma religiosidade nova no país, e não
havia bibliografia que dela tratasse de forma acadêmica. Tivemos que desbravar o campo,
formulando um retrato que serve, igualmente, a todo pesquisador da Nova Era e àqueles
debruçados sobre a religiosidade e a magia no país. Ficaram, é certo, pontos interessantes pelo
caminho, sobre os quais os pesquisadores futuros poderão se debruçar. O Brasil é um país rico
em formas religiosas, e o advento da Nova Era só tem acrescentado mais um grupo para o estudo
antropológico da realidade nacional.
Acreditamos que, além de montar o panorama da realidade de um determinado grupo,
contribuímos para o mapeamento das correntes formadoras da Nova Era e do perfil de seus
consumidores. O presente estudo pode auxiliar a compreensão da forma como a crença na magia
tem se propagado pela sociedade brasileira a partir da Nova Era. A atualização da categoria bruxa
e a ligação composta entre feminino, magia e natureza podem ter um desenrolar futuro
imprevisível. Não há como saber de que modo o embate entre tradicional e moderno, presente na
Nova Era, acabará. Resta saber se as bruxas conseguirão promover a mudança que propõem. Para
a cultura religiosa nacional de cunho popular, em parte desvalorizada pelo new ager, resta saber
de que forma sobreviverá ao acirramento da modernidade.
270

APÊNDICE 1

RESENHA DA OBRA DE MÁRCIA FRAZÃO

Realizaremos, a seguir, descrições sucintas das obras de Frazão. A idéia é expor de forma
mais clara o cerne do pensamento da autora e o conteúdo de seus livros. A discrepância quanto ao
tamanho dedicado a cada obra segue a própria dimensão das obras publicadas: aquelas com
conteúdo mais vasto requereram um espaço maior de apresentação.

A Cozinha da Bruxa, ed. Bertrand Brasil, 1996 (9a. edição)

A princípio, este seria um livro de receitas culinárias. Nas mãos de uma bruxa, no entanto,
as receitas se transformaram em feitiços, e sua preparação em um ritual. A autora esclarece que
cozinhar magicamente é um ritual que leva aos deuses. Os deuses, inclusive, dão nome a muitos
dos pratos, como o pão de nozes de Diana, a sopa de Pã ou o arroz de Afrodite. Para Frazão,
cozinhar ritualisticamente é o feitiço mais eficaz. Para ela, a cozinha é o espaço da transmutação
da matéria, espaço onde habitam todas as forças da natureza, por isso espaço ideal à confecção de
feitiços.
A cozinha da bruxa deve ter utensílios próprios à preparação de feitiços. Não é possível
usar panelas ou talheres de alumínio em sua preparação. É necessário usar-se panelas de ferro ou
cerâmica, colheres de pau e recipientes de cerâmica ou de madeira. As ervas usadas para magia
devem ser separadas daquelas usadas como tempero no dia-a-dia, mesmo que sejam as mesmas
ervas, seguindo o princípio que torna o sagrado contagioso e, portanto, determinando que deve
ser separado do que é de uso profano (DOUGLAS, 1976; DURKHEIM, 1968). Uma vez separadas
em seu potes próprios, os rótulos devem ser trocados para impedir que qualquer pessoa faça uso
das ervas da bruxa, resguardando assim seus “segredos”. Sugestivamente, a contracapa do livro
traz a foto da cozinha da autora. Nela vemos dez molhos de ervas secas penduradas próximo às
janelas, uma infinidade de potes com temperos e ervas, outra infinidade de utensílios de cerâmica
e muitas colheres de pau.
Para Frazão, a cozinha deve deixar de ser um lugar “humilhante” para se transformar num
laboratório. A cozinha, para ela, “é a primeira porta da bruxaria”. A mulher que quer se tornar
271

bruxa deve então deixar de ver a cozinha como o espaço de opressão do sexo feminino para vê-la,
a partir de então, como o espaço de possibilidades mágicas. A cozinha perde, portanto, o ranço
sexista, e se transforma em aliada da mulher. É, inclusive, um espaço que a mulher pode
organizar segundo as suas necessidades de bruxa, espaço que ela torna inviolável pelo simples ato
de trocar os rótulos dos potes de ervas. Ao mesmo tempo, a cozinha liga a bruxa à mulher
diretamente, como duas categorias correlatas, uma vez que a autora escreve para mulheres, e uma
vez que a cozinha ainda é um espaço feminino por excelência.
As receitas são descritas no livro como feitiços. Ao nome do prato segue-se uma lista de
ingredientes e o “modo de fazer o feitiço”. Antes de começar a cozinhar, deve-se tomar certos
procedimentos. Toda preparação de receita é precedida pela preparação da cozinheira e da
cozinha. Segundo a intenção do feitiço, essas preparações vão se alterando. De um modo geral,
existem cores de roupa e perfumes específicos (óleo/essência) a serem usados pela cozinheira.
Esta deve, também, tomar banhos de determinadas ervas, segundo o feitiço a ser feito, antes ou
depois da preparação do prato. A cozinha deve ser ornamentada com flores, conchas, sementes,
sal, velas, incenso, perfumes ou o que for requerido. Ervas são penduradas atrás das portas de
entrada da casa. Antes da feitura do feitiço, a cozinheira deve fazer uma meditação e uma
visualização, que consiste em imaginar cenas que a autora descreve. Estas cenas são, de um modo
geral, carregadas de simbolismo, muitas vezes com a presença dos deuses requeridos ao feitiço. A
visualização já faz parte do procedimento mágico. Após tê-la feito, a cozinheira já pode preparar
o prato, segundo as instruções da autora. Existem receitas de risotos, biscoitos, doces, legumes,
bolos, tortas, saladas, sopas, pães, massas e frutas. O servir a comida à mesa também faz parte do
feitiço. São requeridas toalhas de determinadas cores, segundo a intenção do feitiço, enfeitadas
com flores, pedras, corais, conchas, sal, pérolas, velas coloridas, incenso e perfumes.
Os feitiços se destinam aos mais diversos objetivos, mas pudemos agrupá-los em quatro
categorias pois, em alguns casos, existe mais de um feitiço para resolver o mesmo problema. No
caso de feitiços de amor, existem receitas para casamento, sedução, desrepressão sexual,
fertilidade e amor. Há também feitiços para o bem estar emocional, como as receitas para ter
esperança, alegria, afastar o tédio, obter tranqüilidade, coragem, afastar o desânimo, contra
depressão, tristeza, melancolia, pesadelos em crianças, sofrimentos, angústia, para obter maior
criatividade, para conciliação. Receitas para bem estar emocional são as de maior número. Há
ainda receitas para ganhos materiais, como as para se obter êxito, riqueza, sorte, realizar desejos,
272

realizar projetos e contra problemas. Há uma quarta categoria de feitiços, aqueles que lidam com
a parte espiritual, mais intrinsecamente ligados à bruxaria, como os para iniciação, limpeza astral,
celebração da vida, despertar a sensibilidade, energizar.
Cada ingrediente da receita está relacionado a um astro (sol, lua ou planeta). A
combinação dos ingredientes é, na verdade, a combinação do poder de influência destes astros na
vida do ser humano. Conforme o astro que prepondere na receita, é o seu âmbito de influência
que estará sendo exercido naquele a quem o feitiço se destina (a própria cozinheira ou outra
pessoa qualquer). Esta lógica segue os princípios da astrologia. A hora e o dia para se executar o
feitiço também seguem a mesma lógica. Cada dia da semana está ligado à influência de um astro:
segunda-feira é o dia da lua, terça-feira de Marte, quarta-feira de Mercúrio, quinta-feira de
Júpiter, sexta-feira de Vênus, sábado de Saturno e domingo é o dia do sol. As horas de cada um
desses dias são também relacionadas à influência de um desses astros, e constam em uma tabela.
As plantas, bem como todos os ingredientes das receitas, seja produto animal, mineral ou vegetal,
estão relacionadas a estes astros e são, portanto, portadores de seu escopo de influência. Há
também, no livro, uma tabela para essas correlações.
É interessante notar que a influência não vem propriamente dos astros. Os astros são
vistos pela autora como deuses. Seus nomes ligados à mitologia romana são levados ao pé-da-
letra, e a influência passa não a ser exercida por um astro, mas por um deus. Compreendemos
então que a autora está tratando de plantas ligadas a deuses, e descrevendo receitas para dias e
horários relacionados a deuses. A influência de cada deus é a mesma do astro, se ainda
pensarmos nos planetas. O feitiço passa a ser, portanto, uma maneira de se dirigir à divindade,
requerendo o que se deseja: amor, sorte, riqueza, esperança. A visualização passa a fazer parte do
feitiço, pois funciona quase como uma oração, em que aquele que visualiza imagina o contato
com a divindade num universo simbólico que se relaciona igualmente ao objetivo do feitiço.

Revelações de uma Bruxa, ed. Bertrand Brasil, 1994 (5a. edição)

O livro trata da bruxaria wicca, revelando alguns de seus “segredos” e um pouco da


história da própria autora. O livro se propõe a ser parte do caminho de iniciação de uma nova
bruxa. Para isto, ele responde a questões sobre magia e esclarece o leitor quanto ao teor e história
da bruxaria. Vários rituais nos são apresentados como importantes nesta busca pelo transformar-
273

se em bruxa. Há uma descrição da Roda do Ano na wicca, bem como de cada sabá, dos
instrumentos mágicos usados pelas bruxas e de suas divindades. Ao final, um guia de ervas e seus
usos mágicos e medicinais e uma coleção de feitiços garantem algum repertório à bruxa iniciante.
Em seu segundo livro sobre bruxaria, a autora se apresenta como uma bruxa vinda de uma
família de bruxas. Ao longo do livro, ela vai nos apresentando estórias de sua vida e de sua
família, principalmente sobre as bruxas de sua família. Conta-nos, logo de início, que após
escrever seu primeiro livro percebeu que havia outras bruxas no país, e sentiu então que “não
estava mais sozinha”. Decidiu sentar-se em sua cozinha e mais uma vez escrever sobre o
“vivenciar feiticeiro”. A autora entende que a bruxaria é um verdadeiro modo de vida e a cozinha
parece central neste modo de vida, como metáfora da transformação. Nesta obra, a cozinha se
apresenta como área de repensar a vida, de escrever o livro, de fazer os trabalhos domésticos, de
cozinhar, de perceber sua própria identidade e de entrar em contato com a natureza e a divindade.
Como num livro de auto-ajuda, ela nos diz que devemos mudar nossa relação com a
natureza, com o cotidiano, com os familiares e com nós mesmas, mas não diz como. O como é o
caminho da bruxaria, a ser descoberto por cada um. O que dá são pistas de como encontrar este
caminho, que se revelam em rituais, em feitiços, em um modo de vida mais saudável, em uma
lista de alimentos a serem evitados, no conselho de seguir a homeopatia e a medicina natural,
enfim, uma mudança de estilo de vida.
Segundo conta, desde criança se surpreende com sua capacidade de realizar seus desejos.
A força para realizá-los, nos diz, vem de seu centro. Este centro relaciona-se com o umbigo. Para
alcançá-lo, ela fornece uma lista de rituais a serem feitos pela candidata a bruxa no intuito de
“encontrar seu centro”. Este centro é o poder principal da bruxa, e parece residir no ventre/
umbigo, lugar de criação do corpo feminino.
A divindade a que a autora sempre se reporta é a Grande Mãe e seu consorte, o Cornífero.
A Grande Mãe se traduz na natureza, na terra e na lua. A lua simboliza tanto a mulher quanto a
Deusa. Para Frazão, é possível medir a postura de uma sociedade frente à mulher pela sua postura
frente à lua. A lua é o reino da intuição, da emoção, do psíquico, do inconsciente, ou seja, do
feminino. Opõe-se ao sol, reino da razão masculina.
Para a autora, a bruxa deve estar em equilíbrio com a Grande Mãe, ou seja, com a
natureza. Ela introduz um conceito ecológico e uma postura ecológica frente ao mundo, de não
aceitar ataques à natureza de nenhuma espécie e nem tampouco ao ser humano. Essa visão
274

ecológica típica dos nossos tempos é transferida pela autora para qualquer tempo, seja para as
bruxas da Inquisição, a quem o livro é dedicado, que teriam vivido em comunidade e perfeita
harmonia com o masculino e com a natureza, seja para a população neolítica, de onde afirma
provir a bruxaria, seja para “os ditos primitivos”, isto é, as sociedades tribais que vivem em
contato direto com a natureza. Para ela, as bruxas podem ser vistas como “primitivas”. Os
“primitivos”, como ela coloca - com as aspas -, possuem a “sabedoria da natureza” que é tão
importante para as bruxas, e por isso são povos felizes. É, portanto, necessário entrar em
equilíbrio com a natureza, tratando os seres animais, vegetais e minerais da mesma forma que os
humanos, e estabelecendo com eles um elo. Para ela, é a partir daí que os medos e angústias
causados pela nossa ordem social podem desaparecer.
A autora elabora ainda uma explicação para a caça às bruxas. Foi a inversão de valores
causada pelo patriarcado que transformou o feminino e seus atributos em algo inferior e ligado ao
mal, gerando a crença de que as bruxas eram más. Notamos que a autora torna certos atributos
inerentes à mulher e outros inerentes ao homem, propondo uma inversão de valores, onde o
masculino hoje predominante deve ceder lugar ao feminino, promessa de uma ordem social mais
harmoniosa e justa. É emblemático quando afirma que “a bruxa deve ter a voz doce”.
A bruxaria não se confronta com qualquer outra religião, diz Frazão, mas é apresentada
por ela como um sistema de crenças. Para a autora, a bruxaria é a Antiga Religião, isto é, a
religião sobrevivente da sociedade matriarcal existida em tempos pré-históricos. A dificuldade do
homem moderno em aceitar a figura de uma divindade feminina, segundo ela, provém do fato de
terem sido impelidas ao masculino por esta sociedade, onde o “poder feminino” ficou de lado.
Nesta sociedade – patriarcal -, a história da mulher foi esmagada. A bruxaria se propõe
justamente a reconstruir esta história.
Ao descrever o caminho da bruxaria, a autora não disfarça os inconvenientes que este
caminho pode trazer. Tem consciência de que bruxa ainda é uma categoria de acusação que traz o
estigma da marginalidade, que afasta as pessoas do praticante de bruxaria, agora visto como
desequilibrado, excêntrico ou louco. Formam-se novas categorias de acusação e novas formas de
se lidar com a bruxa. Apesar disso, a autora afirma que, para aqueles interessados em ocultismo,
a bruxaria é moda, é a vanguarda. Formam-se, a partir daí, duas categorias distintas: por um lado
o praticante de bruxaria é visto como um excêntrico marginalizado, mas dentro do mundo do
ocultismo ele é alçado a um patamar alto, sendo visto como vanguarda, lançando moda.
275

Completam o livro uma série de rituais onde as divindades femininas são evocadas.
Trabalham-se os elementos fogo, água, terra e ar nos pontos cardeais que lhes correspondem. A
lua também é trabalhada nestes rituais. Ervas, incensos e óleos de ervas são materiais requeridos
para todos eles. A maioria constitui um exercício de visualização, onde o praticante deve
imaginar a cena descrita pela autora. Os sabás, seus significados e datas são apresentados
também, mas não a maneira como devem ser festejados. Segue-se um receituário de ervas e
feitiços e a lista dos objetos mágicos necessários a uma bruxa, como são e onde obtê-los. Esses
objetos são a vassoura, a varinha, o incensário, o caldeirão, o athame, a bola de cristal, a taça, o
pentáculo e o sino.

Manual Mágico do Amor, ed. Francisco Alves, 1995 (1a. edição)

A autora vê no tema amoroso uma das grandes áreas de atuação das bruxas. Com seus
filtros amorosos e poções encantadas, elas seduzem tanto quanto fazem seduzir, ajudando os
apaixonados a obterem sucesso em suas conquistas amorosas. O amor se torna a porta de entrada
no mundo mágico. A demanda por feitiços amorosos é superior a qualquer outra. Mas, se por um
lado, há um utilitarismo nessa busca pela magia, por outro o amor pode ser o início de um
processo de transformação interior.
A partir das cartas recebidas em que leitores apaixonados falavam de seus sofrimentos,
sentimentos de desvalor e culpa, Frazão resolveu escrever este livro, como uma forma de ajudar
os enamorados. O amor do qual fala é um sentimento sem lógica, caótico, sem regras e que
requer uma entrega profunda. Não é um sentimento que possa ser contido sob regras sociais ou
pressões particulares, mas que deve ser vivido sem cobranças sociais, de compromissos e formas
estáveis de relacionamento. Para ela, o amor prescinde de compromissos, e pode durar um único
dia. O que faz sofrer é essa maneira, a seu ver errada, de tratar o amor, quando não há entrega,
quando há cobranças que são sociais e não inerentes a esse sentimento. Algumas cartas
exprimiam dúvidas sobre vivenciar ou não um caso amoroso, e falavam da pressão social sofrida
e a pressão dos amigos, outras relatavam amores não correspondidos, subitamente interrompidos
ou amores já comprometidos. Para ela, a posição destas pessoas está errada, pois faz com que o
amor traga sofrimento quando este é um sentimento que não faz sofrer.
276

O amor é a porção mágica do ser humano: ele consegue romper com a razão, levando-nos
a cometer tolices. O amor leva ao sonho, faz com que esqueçamos todo o resto e só nos
interessemos pelo ser amado. Ao mesmo tempo, o amor abre uma gama de possibilidades, e nos
leva ao inesperado e ao incerto. O amor é, para a autora, um estado de simplicidade, um estado
mágico. Ele só se torna confuso quando não o vivenciamos como deve ser. Neste caso, a magia
vira pesadelo. Para viver o amor, diz, devemos abandonar práticas que não condizem com ele, ou
seja, devemos viver o simples, dando maior valor ao mundo.
A autora conta que quando começou a praticar a bruxaria ficou interessada “pela estranha
forma que as bruxas têm de amar”. Para ela, as bruxas compreendem o amor melhor do que
ninguém. São pessoas que não se culpam por amar, não se envergonham de seu prazer e não
sufocam seus desejos. As bruxas desejam com intensidade e nunca sofrem por amor. O que faz
com que a autora chegue a esta afirmação, à primeira vista repleta de romantismo nessa
construção da figura da bruxa, é a sua insistência em que as bruxas são pessoas que vivem no
mundo de maneira diferente do usual, com uma rede de interesses e valores distintos. Para ela,
uma bruxa não sofre por amor porque sabe que o amor é um sentimento que não tem
necessariamente que durar anos nem vir a dar em casamento. O amor se torna algo mais livre e
fluido. Para ela, as bruxas não temem a falta de limites do amor e do prazer. Para as bruxas, “o
amor tem sempre de ser absoluto”.
Essa maneira distinta de encarar o amor, diz Frazão, foi determinante na perseguição às
bruxas. Não só a maneira de viver o amor, mas a maneira das bruxas de estar no mundo. Segundo
ela, o amor se tornou um “tumor da humanidade”, e as bruxas se tornaram alvo da ira dos que
estavam contra o amor, isto é, contra o amor como ele é descrito por Frazão, como um
sentimento caótico e sem regras. Os que estão “contra o amor” são aqueles que impõem regras de
conduta a esse sentimento e confinam-no em instituições sociais. Para a autora, o amor deve ser
livre. Sua função é causar a desordem. As bruxas se transformam então em ajudantes de Eros,
pois unem os apaixonados com seus feitiços. O amor se torna a possibilidade do homem tornar-se
divino. Os amantes são seres oníricos do mesmo modo que os feitiços são oníricos. Estão ambos
atuando no lado onírico do indivíduo.
Esses que não entendem o amor nem se permitem serem levados por ele são acusados
pela autora de serem os repressores do prazer feminino. Foram os mesmos que, segundo ela,
colocaram regras sociais no amor, trazendo com isso culpa e desespero. Todo pensamento que
277

gere esse tipo de repressão está sendo atacado pela autora. Ela categoriza-os como “pensamento
castrador de prazeres”, ou seja, um tipo de pensamento que transforma o prazer em mal e
obscenidade. A autora conta que a bruxaria seduziu-a por não pensar desta maneira. Na bruxaria,
diz, não há pensamento maniqueísta. A bruxaria é desprovida de regras que impeçam o prazer.
Nela, luz e trevas não são opostos nem significam bem e mal, mas se complementam. O único
dogma da bruxaria é: “Faça tudo que quiser, desde que não moleste ninguém”.
Por essa maneira diferente de estar no mundo, a autora pensa que a bruxa constitui um
tipo que incomoda aos “certinhos”. Segundo Frazão, a bruxa leva um caminho à margem,
convivendo com o que se classificou como maldito: ela venera deuses que o patriarcado
transformou em demônios, trata a nudez sem culpa ou vergonha, é uma mulher liberta e feliz.
Para se reconhecer como bruxa, então, é preciso perder preconceitos, principalmente no amor.
Interessante notar como a autora fala diretamente a uma leitora mulher. O tabu da nudez
em nossa sociedade recai muito mais sobre a mulher do que sobre o homem. Da mesma forma, a
autora toca no ponto da repressão ao prazer feminino. Não é todo prazer que é reprimido em
nossa sociedade, mas o prazer da mulher. A liberdade sexual feminina é ainda tolhida, enquanto a
do homem é fomentada. Do mesmo modo, é a mulher, mais que o homem, que sonha com o
casamento, a formação de família e filhos. É sobre ela que recai uma maior cobrança social nesse
sentido, ao mesmo tempo em que ela se cobra mais. O grande amor que acaba no altar, com
vestido branco, véu e grinalda, tem sido ainda um sonho feminino e uma cobrança sobre a
mulher. A autora tenta, então, incentivar as mulheres a romper com esse padrão de dominação
masculina, incentivando-as a serem sexualmente livres, a não mais permitirem o julgamento
depreciativo de sua nudez e de seu prazer, a não permitirem mais a pressão social sobre seus
relacionamentos amorosos, a cobrança de um compromisso. É neste ponto que a autora insiste
quando repete por todo o livro que o amor deve ser livre e que só traz sofrimento o amor que é
vivido em função dessas pressões, ao invés de ser vivido em função do prazer.
A autora, ao dialogar explicitamente com o público feminino, constrói também a figura da
bruxa como feminina. Os atributos que julga inerentes à mulher são os atributos da bruxa. Ela
incentiva as mulheres a trazerem de novo Afrodite, deusa grega do amor e da beleza, ao mundo
para torná-lo mais gentil. Quando essa volta se der, diz, os homens não temerão mais as
mulheres, pois terão em si a delicadeza desta deusa. Os homens respeitarão as mulheres e juntos
eles construirão um mundo melhor.
278

Com a explicitação de um projeto para um novo mundo onde o feminino ganha


preponderância fica a indagação do lugar ocupado pelo masculino. Não é por acaso que a autora
vê nas mulheres o agente do reingresso de Afrodite no mundo. Sua volta marca o retorno da
gentileza e da delicadeza, atributos, a seu ver, inerentemente femininos. Se o mundo patriarcal
retirou Afrodite de seu convívio, serão as mulheres, os agentes da queda desse mundo patriarcal,
que devem trazê-la de volta. O papel do homem na bruxaria não fica claro, mas neste novo
projeto de mundo os homens são agentes passivos da mudança, e só entram em cena na
construção de uma nova ordem, mas já, então, estarão eles modificados, não serão os mesmos
homens, pois saberão respeitar as mulheres e não terão mais o medo do feminino.
Segundo Frazão, a bruxaria e o amor têm a mesma raiz lúdica, que é o que faz com que as
poções de amor funcionem. Os feitiços são “a manifestação absoluta do sonho”, não privam
ninguém de liberdade nem se confundem com a magia negra. Só funcionam realmente para quem
está apaixonado, e não para aqueles preocupados com regras sociais. Na bruxaria nada é
obrigação, e não existem regras de certo ou errado. Tudo é uma grande brincadeira, no sentido de
que é um exercício de prazer e descobertas. O único compromisso da bruxa é com o “estado de
prazer”. Para ilustrar tal afirmação, ela conta que seus feitiços funcionam melhor quando feitos
“num clima de brincadeira” do que quando está muito séria. A arte é posta no mesmo patamar de
ludicidade, o que leva a autora a considerar toda arte como um ato mágico, pois a arte encanta,
enfeitiça, retira-nos de nosso estado “normal” levando-nos a vivenciar outros estados emocionais.

Por todo o livro, a autora dá inúmeras receitas mágicas vinculadas ao tema do amor e
algumas outras para proteção, riqueza e sorte. Há uma lista de divindades, seus significados e
áreas de atuação, bem como rituais que devem ser feitos pela candidata a bruxa ou por aqueles
que sentem alguma dificuldade em questões amorosas. Nestes rituais os elementos fogo, ar, terra
e água são os focos principais. Ela ensina que o fogo é um elemento simbólico da sexualidade, de
coragem, de iniciativa. O ar simboliza o equilíbrio, o movimento e a percepção. A terra simboliza
a força, a persistência e o crescimento. A comum associação da mulher com a terra, segundo a
autora, é fruto do pensamento patriarcal, que vê na terra a falta de impulso gerador, isto é, um
elemento que deve ser fertilizado, cujo impulso gerador não é intrínseco mas vem de fora. Para
ela, “a terra é o corpo da Grande Mãe”, a divindade adorada pelas bruxas. Pã também é uma
divindade ligada à terra, e segundo a autora, foi um modelo importante do Deus Cornífero, a
279

divindade das bruxas, durante a Idade Média, até ser transformado em diabo cristão. Como
elemento simbólico desse par divino, a terra está imbuída da noção de fertilidade e prazer, e por
isso não deve ser vista em posição de passividade. Para quebrar definitivamente com esta idéia, a
autora relembra os cortejos de Pã, onde mulheres nuas e apaixonadas gritavam os nomes de seus
amantes. Essa referência ao cortejo de Pã traz a idéia de mulheres livres, que se relacionam com
seus corpos nus sem culpa e sem vergonha. Ao gritarem os nomes de seus amantes, elas indicam
que são mulheres que desejam e conhecem a paixão e o amor. Ao mesmo tempo, há que se
lembrar que Pã era um deus associado à sexualidade, ao silvestre e aos animais selvagens, àquilo
que está fora do controle do homem. Poderíamos mesmo dizer que ele está associado à natureza
em oposição à cultura - o animal domesticado, o sexo contido no casamento. Logo, as mulheres
de seu cortejo são sujeitos que vivenciam o amor sob uma ótica livre de pressões sociais.
Embora a terra seja associada à mulher, é o elemento água que a autora vincula mais
fortemente ao feminino. Para Frazão, essa ligação é tão forte que o temor à água exprime também
o temor à mulher e à mãe. Esse medo seria típico do patriarcado. As mulheres, segundo ela, são
governadas pela lua e pelo coração. Sua ligação com o elemento água ocorre através de seus
fluidos corporais e de sua intuição. Da mesma forma que interfere nas marés, a lua interfere na
menstruação e no humor femininos, na intuição e na emoção, tornando as mulheres mais
perceptivas às “questões do coração”. A mulher se torna, sob sua ótica, naturalmente vinculada à
lua por questões biológicas inerentes aos processos do seu corpo. A intuição se torna também
inerente ao feminino, visto que foi colocada junto à água e à lua. Também por esta mesma
ligação a mulher se torna mais íntima dos processos emocionais, vinculada mais à emoção do que
à razão, e isto é novamente inerente à sua condição de mulher. Em nenhum momento a autora
cogita que este ponto de vista não seja de natureza biológica, mas social. O âmbito de influência
do social é ignorado e todas essas virtudes femininas se tornam biológicas. O que Frazão faz é
uma inversão valorativa dos atributos femininos: se no patriarcado eles inferiorizam a mulher, na
bruxaria eles a tornam superior. A raiz da disputa, no entanto, é a mesma: as categorias em
questão não sofrem discussão e permanecem as mesmas. É a valoração dessas categorias que
muda.
Há também neste livro a indicação de três diferentes oráculos: o significado dos arcanos
maiores do tarot, a leitura nas manchas de café e a interpretação de sonhos. Os sonhos são um
veículo de interpretação do futuro e do passado muito citado pela autora. Ela relata várias
280

experiências oníricas ao longo do livro, afirmando que é seu oráculo predileto, pois trata-se do
mais simples e mais claro de todos. Segundo ela, as bruxas têm o poder de se projetarem nos
sonhos dos outros. Há ainda um guia de ervas com mais alguns feitiços para o repertório da bruxa
iniciante. A última parte do livro é dedicada a uma espécie de horóscopo dos índios norte-
americanos chamada de “A Roda da Cura”. Nele, os signos que conhecemos são trocados por
animais típicos da fauna norte-americana, mas seus significados se assemelham aos dos signos do
nosso horóscopo. A autora incluiu no livro uma figura explicativa em que “A Roda da Cura” está
superposta à roda do horóscopo.
Para a autora, os povos “primitivos”, como os nativos norte-americanos, estão em
oposição total, quanto ao seu modo de vida, aos povos “civilizados”. Embora não goste das
categorias primitivo e civilizado a autora se limita apenas a questioná-las, sem propor categorias
novas. Seguiremos, portanto, utilizando tais categorias. A sabedoria dos índios é sempre exaltada,
bem como sua relação pacífica com a natureza, relação de contato íntimo e respeito. Essa relação
indica, nesses povos, uma maior sensibilidade, em detrimento da razão que é típica dos
“civilizados”. Esses perderam o contato com a natureza, perderam a sensibilidade e passaram a
agir apenas com base na razão. Deste modo promoveram um mundo auto-destrutivo e caótico. Há
também uma diferente visão do tempo. O “primitivo” enxerga o tempo, e o mundo como um
todo, de forma circular. É assim que monta suas tendas, que organiza a aldeia, pois é assim que a
natureza funciona: circularmente. “A Roda da Cura” é um exemplo desse pensamento que a
autora chama de curvilíneo. O homem “civilizado”, por outro lado, é movido pela intenção de
progresso, de chegar a algum lugar através da razão. Seu movimento é retilíneo.

Márcia Frazão diz que assumiu publicamente sua condição de bruxa por ver que “a
realidade mágica” estava distorcida nos livros, estava longe da “presença do mágico”. Quando é
inserida no que chama de “conversas esotéricas”, ela reage negativamente. Para ela, a bruxaria
não possui vínculos com o esoterismo. A bruxaria está ligada à arte e à natureza. O esotérico
exclui o homem comum, aquele que não tem os segredos da seita, ordem ou grupo. A bruxaria,
ao contrário, não tem conhecimentos ocultos ou teorias complicadas. Para Frazão, ela está no
mundo. As bruxas não usam seus conhecimentos para propagar qualquer forma de poder. O meio
esotérico, para ela, está desprovido do sentimento de amor e confinado na rede de consumo. São
281

várias as “modas” do gênero: duendes, fadas, Chama Violeta, anjos. Os rituais esotéricos também
são atacados pela autora, que os define como “burocráticos” e mecânicos.
Quando é procurada por pessoas interessadas em tornarem-se bruxas, diz a elas que não
pode transformá-las. Segundo Frazão, a escola da magia é o amor. Essa resposta é decepcionante
para muitos que querem fazer um curso de bruxaria. O sentido da bruxaria é o simples e isso
decepciona a quem quer pompa. Para estes, o simples não é digno de crença. Ela reafirma que se
tornou bruxa publicamente por ver que “o caminho da Grande Mãe estava esquecido por uma
grande massa esotérica”. Seu interesse não é criar mais um grupo de ocultismo. Não quer criar
mais um modismo. Ela dá os feitiços nos quais realmente acredita. Afirma-se enquanto
“campesina” e pagã, pois acha que o contato com a natureza é imprescindível. Segundo ela,
devemos crescer e retornar ao “caminho da simplicidade” e das “palavras amorosas”. Por sua
relação com o simples e o belo, a bruxaria mantém também uma ligação com o camponês, o índio
e os artistas.

Embora proveniente de uma família de bruxas, a autora conta que lutou contra essa idéia,
até render-se de vez à bruxaria. Quando resolveu abraçar a bruxaria em sua vida, tinha ainda
algumas emoções que impediam seu pleno desenvolvimento. Embora a história da família
ajudasse a lidar com a magia, fora “contaminada pelos germes da cultura”, era reprimida. Foi
através de rituais e do convívio com a natureza que conseguiu superar isto. Ficou mais leve e
mais aberta a si e aos outros. Deixou de “ser complicada” e “corroída por dúvidas e incertezas”.
Sentiu-se mais feliz e poderosa. Esta passagem mostra mais uma vez a escala valorativa da
autora: a sociedade moderna ou “civilizada”, como ela coloca, é relacionada ao “ser complicada”,
ao estado subjetivo de angústia e incerteza. A bruxaria, no pólo oposto, fez com que ela rompesse
com esses estados subjetivos rompendo com a própria “civilização”, uma vez que a bruxaria
despreza a razão instrumental fundadora da sociedade moderna, valorizando o contato com a
natureza, a ludicidade, o encantamento do mundo, ou a “simplicidade”, nas palavras da autora.
Sua avó era bruxa e lhe ensinava algumas coisas da bruxaria. Com ela aprendeu feitiços
para a paixão, para aliviar as expectativas e para unir os casais. Quando a avó fazia feitiços de
amor sempre lhe contava os resultados. Quando observava a avó recitar um encantamento, ficava
espantada. Ela, às vezes, nem mesmo precisava realizar o feitiço, bastando pronunciar o que
queria. A avó e a bisavó Luiza sabiam que era bruxa.
282

Quando dá entrevistas, conta, sempre é questionada sobre feitiços de amor. Ensinou


alguns e as luas nas quais deveriam ser realizados. Tem notícias de bons resultados. Quando isto
não ocorre, e poucas pessoas se queixam de que o feitiço não deu certo, isso não significa,
segundo ela, a ineficácia do feitiço, mas a “falta de intimidade com a lua”, que consente ou não
na realização do feitiço. Sem essa identificação com a lua, os ingredientes de nada servem. Para
que um feitiço dê certo é necessário conhecer a lua. Cada fase da lua tem uma série de deusas
correlatas, que devem ser conhecidas para que a bruxa seja “inundada por seu poder”. Quando
recebe cartas de pessoas dizendo que um determinado feitiço não funcionou, constata que ele foi
realizado “de maneira fútil”, com uma preocupação apenas pelo resultado, sem que se dê conta
do “instante mágico’.
A bruxaria é uma “religião xamânica orientada para a natureza”. Sem integração com a
natureza os feitiços não dão certo. Compreendemos que, para que um feitiço funcione, deve haver
uma forte ligação com a lua, uma integração com a natureza, um clima de brincadeira, e - caso
seja um feitiço de amor - um amor verdadeiro. A realização de feitiços, no entanto, não faz a
bruxa. O feitiço só funciona quando a vida está em equilíbrio e integridade. Um feitiço não pode
ser pensado utilitariamente. Esta posição é oposta à posição da bruxa, que não é imediatista como
o homem moderno, pois vive de acordo com os ciclos da natureza. Os feitiços levam algum
tempo para funcionarem, e sua eficácia varia de pessoa para pessoa.
Para alcançar este equilíbrio, a autora entra em contato com a natureza. Quando não está
bem, vai até a sua horta e senta-se lá, pois as plantas de sua horta lhe dão força. O significado da
bruxaria parece residir mais na relação que se estabelece com a natureza do que o conhecimento
de feitiços. Segundo Frazão, a bruxaria procura preservar a integridade da natureza e do homem.
Os hábitos de consumo que destroem o planeta devem ser revistos e questionados.

O Gozo das Feiticeiras, ed. Bertrand Brasil, 1996 (1a. edição)

Seguindo a linha de raciocínio de seu livro anterior (Manual Mágico do Amor), a autora
expressa sua idéia de que o amor é uma das melhores formas de transformação interior, de
conseguirmos o equilíbrio de nossas vidas e de nos religarmos com a natureza. A autora ensina
alguns rituais e receitas de feitiços, com uma ênfase nos de amor, receitas de talismãs, uso
mágico de ervas. Há, ainda, um calendário com a entrada da lua nos signos, mês a mês, de 1996 a
283

2000. Uma lista de instrumentos mágicos, segundo a autora, oriundos da magia grega e
consagrados a determinados deuses, completa o arsenal da bruxa nesta obra.
Os deuses evocados neste livro são Afrodite, Eros e Dioniso, deuses ligados ao amor. Para
ela, Dioniso é o “supremo deus das feiticeiras”, uma das representações do Deus Cornífero. As
bruxas são comparadas às Bacantes, mulheres que seguiam o cortejo do deus em estado de
frenesi e que desenvolviam sua sexualidade livremente, sem as amarras da sociedade patriarcal
grega. Por isto, eram vistas como perigosas. A avó entra novamente em sua obra como
personagem de peso, pois foi ela quem primeiro lhe falou do Deus Cornífero, que a autora se
apressa em assegurar que não é o diabo cristão, embora tenha sido transformado/confundido com
este. A autora afirma que é questionada, algumas vezes de forma agressiva, sobre a devoção das
bruxas ao Deus Cornífero, ainda confundido com Satã. Algumas pessoas, ao cruzarem com ela na
rua, fazem o sinal da cruz e se afastam. Outras fazem perguntas que a autora considera
disparatadas, como por exemplo se o deus faz troca de almas e se recompensa materialmente seus
fiéis. Para Frazão, o deus é anterior ao cristianismo e não pode ser associado a nenhum de seus
elementos, como o diabo.
Algumas pessoas a abordam perguntando qual a melhor maneira de entrar em contato
com os deuses. Para a autora, ler sobre eles apenas não é o suficiente. Deve-se sentí-los. A autora
também relata que é questionada sobre o envolvimento das bruxas com a lua, o porque de certas
luas para certos feitiços. Essa curiosidade é típica do homem moderno, pois ele vê a lua como um
satélite, sem poder. Agora que o homem moderno percebe que seu mundo não é bom ele volta a
procurar a lua.
Aos que começam a caminhar pela terra da bruxaria, a autora aconselha a não se
decepcionarem se acharem que fazer magia parecer um tanto tolo. Para ela, a bruxaria tem um
caráter lúdico que deve ser mantido e respeitado. Ela, por exemplo, recebeu suas primeiras lições
sobre ervas mágicas ao tomar banho de mangueira no jardim de sua avó. Seus primeiros
encantamentos eram versos que a avó inventava. E foi nessa atmosfera de descompromisso e
prazer que a avó ensinou-a a “trazer a lua” para dentro de si.
Para a autora, a bruxaria é, como todas as religiões antigas, uma religião de caráter
orgiástico e que não divide o mundo entre Bem e Mal. Essa dicotomia está dentro da divindade.
Para ela, a bruxaria é uma religião que dignifica o homem e a mulher, colocando-os lado a lado
sem diferenças, sem constituírem pólos de oposição mas de complementariedade. Ela é uma
284

religião voltada para a natureza, cujas divindades apresentam-se com atributos específicos. O
contato com a natureza se dá de diversas formas: em passeios ao ar livre, no contato direto com
as plantas através de uma horta, ou na observação da natureza.
Devido a essa proximidade com a natureza, algumas das preocupações da bruxaria são
jamais ferir a terra, explorar o semelhante ou permitir a fome. Por este seu caráter solidário, a
autora afirma que a bruxaria foi vista como um forte empecilho ao crescimento das riquezas mal
distribuídas. A autora apresenta, na verdade, uma religião revolucionária que não só foi
impecilho à desigualdade econômica como à desigualdade entre os gêneros. A autora mantem
este caráter revolucionário ao exortar seus leitores a manterem este tipo de comportamento e
pensamento.
A autora apresenta alguns instrumentos mágicos neste livro. São eles: o jarro de Dioniso,
a cornucópia, o arco e flecha de Apolo e Ártemis, lança de Palas Athena, rede de Hefesto, zona (o
cinturão de Afrodite), flauta de Athena e de Pã, cavalo branco, tirso de Baco. Como podemos
verificar pelo nome de alguns deles, cada um é dedicado a uma divindade e tem seu uso limitado
ao escopo de atuação dessa divindade. A música, segundo ela, também pode ser um eficiente
instrumento mágico No convívio com outras bruxas também hippies, percebeu o poder mágico da
música. Cantar traz a proteção dos deuses, e cada deus tem a sua canção. A música é um
instrumento mágico a ser usado em feitiços e rituais. No entanto, os instrumentos de poder mais
poderosos são aqueles que pertenceram a entes queridos.

Dioniso é, para ela, um deus marginal, pois prefere a companhia dos mortais ao Olimpo.
Como Dioniso, as bruxas também recebem o estigma da marginalidade, pois vivem num mundo à
parte da ideologia dominante. Hécate, a divindade feminina principal das feiticeiras, segundo
Frazão, também preferia a companhia dos mortais ao Olimpo. Para ela, o Olimpo que
conhecemos está impregnado pelo pensamento patriarcal, não é o Olimpo original, em que
algumas de suas facetas desagradavam o patriarcado. Como podemos perceber, a autora constrói
uma identidade da bruxa, escolhendo os seus deuses principais e remontando a idéia de Olimpo
para torná-lo um lugar menos machista e arraigado ao pensamento grego, e mais próximo à
liberdade de gêneros que ela afirma ser fundamental na bruxaria. Há, portanto, uma reconstrução
ou releitura de um mito de modo a encaixá-lo nas necessidades presentes da bruxaria, sendo o
principal a revisão dos papéis de gênero.
285

Dioniso, para a autora, é uma divindade ligada à sexualidade. Como vimos anteriormente,
seu culto envolvia ritos de fertilidade, de sexualidade explícita, representados pela figura das
Bacantes. A autora afirma que a candidata a bruxa, para entrar em contato com Dioniso, deve
perder seus preconceitos sobre sexualidade e prazer, e deve tentar ver o mundo com outros olhos,
se comprometendo com o planeta. É necessário, ainda, “tirar a máscara”, isto é, apresentar-se
perante a divindade de forma sincera, mostrando exatamente quem é. A melhor maneira de
contactar Dioniso é colocando determinadas ervas no altar, alguns óleos de ervas e estar despida.
É preciso entender que a sexualidade gera energia sexual, que é uma fonte de magia.
O sentido da transformação é bem explícito: a mulher deve tomar posse de sua
sexualidade, perdendo as possíveis repressões que tenha, desfazendo-se de preconceitos quanto à
sua sexualidade, para desta forma vivenciar o prazer sexual de uma nova maneira e o prazer em
geral. Deste modo, a transformação necessária à mudança em sua sexualidade será também uma
mudança em sua maneira de ver o mundo e relacionar-se com ele. Essa mudança na sexualidade
indica uma preocupação de cunho feminista da autora, sempre falando diretamente a um público
feminino, envolvida em questões da vida da mulher.
Dioniso, enquanto deus da sexualidade, leva, segundo a autora, a duas outras divindades
que lhe são correlacionadas por seus atributos: Afrodite, deusa da beleza e do amor, e Eros,
também deus do amor. Esses três deuses se encontram justamente no amor e no prazer. O âmbito
de atuação de Dioniso é o do que está fora de controle: o delírio, o êxtase, o sexo. O encontro
com a divindade é, portanto, um encontro sem possibilidade de fuga, visto que ele é retratado
como além da razão, fora de controle, caótico, irracional.
Afrodite é considerada pela autora também uma divindade das mulheres. Para que nos
conectemos a Afrodite, diz, devemos nos livrar dos preconceitos da “cultura retilínea”. As
bruxas, segundo ela, foram perseguidas pela cultura patriarcal porque exaltam Afrodite e seus
encantos. Esta deusa não é inimiga dos homens, como a muitos pareceu. Ela é a doçura, graça e
beleza do Eterno Feminino. Mas beleza, alerta a autora, não tem fórmula. A mulher não deve se
transformar num objeto de beleza. Ela não deve procurar satisfazer padrões masculinos mas sim
satisfazer a si mesma.
Eros, o deus do amor, o Cupido, nos transporta, por sua vez, também à dimensão do amor,
um lugar onde a lógica cotidiana não faz sentido, onde nos tornamos seres mágicos e cheios de
poder, segundo a autora. Pensa que Eros escolheu as bruxas para “mimá-lo”, para colocá-lo no
286

colo de outras mulheres. Eros, segundo ela, é também um deus das mulheres, visto que, enquanto
criança, gosta da companhia maternal das mulheres, que são quem o abriga e acolhe. A autora
vincula claramente o papel de mãe à natureza feminina, naturalizando esse papel e naturalizando
também a proximidade das mulheres com o amor. Esse tipo de proximidade pode gerar a
compreensão de que as mulheres são mais passionais do que os homens, mais sensíveis, menos
racionais. Somos inclinados a pensar que esta é de fato a opinião da autora, conforme pode ser
visto ao longo de suas obras. No entanto, a valoração se apresenta invertida: para ela, estes
atributos estão no topo da escala valorativa, e é com orgulho que ela os apresenta como parte da
“essência feminina”. Parece haver, inclusive, na intenção de naturalização e inerência, uma
maneira de fazer com que os atributos classificados como femininos não possam ser, de modo
algum, retirados das mulheres. São esses atributos, portanto, que garantem sua supremacia
mágica em detrimento dos homens, hoje com a supremacia racional, que para a autora só trouxe
desgraça e destruição.

Frazão diz que desde que assumiu publicamente sua condição de bruxa, tem sido
requisitada a formar novas bruxas, o que ela recusa terminantemente. Acha muito estranha a idéia
de dar aulas de bruxaria porque julga que este é um conhecimento mais ligado à sensibilidade do
que à razão. É, portanto, um ensinamento mais sutil. Não poderia ensinar bruxaria do modo
linear, do modo como aprendemos, do modo como a nossa sociedade ensina, essa sociedade de
pensamento retilíneo. Neste modo linear, o conhecimento é apresentado à pessoa, e muitas vezes
é um conhecimento sem utilidade prática.
Algumas pessoas a procuram querendo uma iniciação na bruxaria. Quando percebe que a
pessoa “tem o dom”, diz, indica que estude a história de sua própria família, procurando possíveis
bruxas entre as antepassadas. Para Frazão, o estudo das origens é necessário para o retorno ao
caminho da bruxaria. O conhecimento mágico, diz, pode estar num parente próximo. Ela relata o
caso de seus leitores adolescentes que lhe escrevem para falar sobre o reencontro que tiveram
com seus avós, aprendendo com eles.
A autora conta que há ainda uma outra categoria de pessoas que a procuram: aquelas que
se dizem bruxas e que, em sua maioria, são esotéricos que leram romances como As Brumas de
Avalon e que confundem ficção e realidade. No caso descrito acima, a autora faz uso da mesma
categoria tão usada para desmerecer a bruxaria e negar a magia, e a usa neste mesmo sentido
287

contra os esotéricos: a categoria de loucura. A autora faz questão, mais uma vez, de tirar a
bruxaria do rótulo de produto esotérico. Os esotéricos são constantemente atacados pela autora,
tanto por sua maneira de transmitir conhecimento: através de cursos, aulas, ordens secretas, com
estrutura hierárquica rígida; quanto pelo seu distanciamento da história e da natureza. Para ela, os
gurus esotéricos estão em busca de dinheiro e os pagantes em busca de alívio imediato para seus
problemas, tanto materiais quanto existenciais. Os esotéricos, diz, são distintos das bruxas. A
autora acha que o esoterismo e a bruxaria são incompatíveis. Os esotéricos na bruxaria são, para
ela, meros curiosos. Em seus sonhos, percebeu que apenas deve mostrar o caminho das estórias,
do sonho e do desejo. Cada qual segue o que lhe aprouver.
Algumas vezes, conta, lhe questionam sobre o verdadeiro sentido da bruxaria. Ser bruxa,
diz, é mais do que fazer rituais. A bruxaria não se encontra em livros, ela é o transformar-se,
mudar a visão de mundo e a maneira de sentir. Ela demonstra, no entanto, que nem todos
compreendem a bruxaria dessa forma. Para ela, isso se deve ao fato de estar a bruxaria “na
moda”. Ela relata um episódio em que foi dar uma palestra num evento místico, e se deparou com
pessoas estranhas, cheias de pose, caras e bocas, todas com roupas pretas, quase fantasiados. O
interessante é que Frazão, quando aparecia em público alguns anos atrás, costumava adotar
postura análoga, usando roupas que fazem uma caricatura da bruxa. Tivemos a oportunidade de
vê-la três vezes com esse tipo de roupa: chapéu de veludo desabado escuro, saia preta longa e
rodada, meia-calça listrada de branco e preto e um broche de morcego, pé de sapo pendurado no
brinco. Outras duas vezes ela vestia trajes simples, sem essa indumentária toda.
Neste lugar, diz, foi abordada por uma mulher que se propunha resolver todos os seus
problemas mediante algum pagamento, e se dizia bruxa. Frazão não gostou da atitude dos
freqüentadores do local e resolveu romper através do figurino, como uma forma de protesto e
diferenciação: colocou seu vestido mais florido para dar a palestra e absteve-se de usar seu
pentagrama. Disse aos ouvintes que o evento era um engodo pois não retratava a verdadeira
bruxaria, e falou da avós bruxas em sua palestra. A autora se pergunta se, por intermédio de seus
livros, não contribuiu também para o aparecimento das falsas bruxas, essas só interessadas em
pose e dinheiro. Na contramão dessa tendência, a autora afirma que recebe telefones quase
diários de mulheres se descobrindo bruxas, assustadas com o poder que têm. O medo é tamanho
que pensam mesmo em abandonar o que começaram, mas a autora assegura que este é um
288

caminho que não conseguem largar porque é sem volta. Essas mulheres, diz, ficam dividas entre
o “mundo normal” e o mágico.

O Feitiço da Lua: memórias de uma bruxa malcomportada, ed. Bertrand Brasil, 1997 (1a. edição)

O livro se propõe a ser um relato das memórias da autora, os personagens de sua família
que maior influência exerceram sobre ela e as amizades de adolescência. O período abordado na
maior parte da narrativa é o ano de 1964. Frazão tinha treze anos de idade: mostra-se como uma
adolescente dividida entre a infância e o mundo adulto. O recorte de tempo não é aleatório: é
neste período que ela resolve iniciar seu caminho na bruxaria praticada em família. Para tanto,
conta com a ajuda das bruxas de seu clã, como gosta de dizer. As mentoras, por assim dizer,
desse caminho de iniciação são as avós e algumas tias. A mãe, embora também fosse bruxa, não
exerce muita influência sobre a menina. Era uma jovem senhora nos seus trinta anos, mais
interessada, segundo Frazão, em cosméticos, moda e artistas do que em feitiçaria. Parece mesmo
haver um certo rancor na descrição dessa mãe tão ligada à beleza, enquanto a autora se auto-
descreve como uma menina feia e sem atrativos - e que tem plena consciência disso. A futilidade
da mãe contrasta com o tom de pessoa marginal que a autora emprega para se descrever.
As avós de Frazão são personagens recorrentes em seus livros. Foram elas, de certa
forma, que socializaram-na no mundo das práticas mágicas. Desde criança, conta, convive com
mulheres que acreditam serem bruxas e que ela acredita serem bruxas, embora muitas vezes ela
própria e o restante da família oscile entre taxá-las de bruxas e de loucas. É possível perceber, no
entanto, que as práticas mágicas - ou as loucuras - não são as mesmas. Cada bruxa da família tem
um dom diferente: há uma tia que transforma tudo em risos e comédia, há a bisavó que governa
os sonhos, há a avó que faz feitiços de panos, há uma outra avó que é rezadeira. Além dessas
mulheres, circulam outras personagens que também se tornaram significativas na construção de
Márcia, a bruxa: algumas amizades de adolescência, meninas que a autora chama de bruxas mas
que não se vêem como tal, ou meninas que não acreditam que ela seja bruxa; há os vizinhos do
edifício onde morava, na rua Paissandu, no Flamengo, inclusive uma vizinha bruxa que todos
juravam ser louca; há também as empregadas da casa: dona Marina, a que conversa com mortos,
Conceição - que depois de ter ouvido suas histórias sobre ser uma bruxa, passa a fazer o sinal-da-
cruz toda vez que a vê - e Vera, a filha-de-santo.
289

Apesar de ser um livro de memórias, ele guarda ensinamentos mágicos. As peripécias da


autora no que chama de sua iniciação e os ensinamentos das avós são o lugar do aprendizado
mágico. Embora este livro não traga receitas de feitiços ou rituais, estes estão sutilmente
colocados na obra, de modo que o leitor atento pode deles fazer uso. O livro é, ainda, uma
espécie de manual mágico da lua. O ano é dividido em treze luas, onde cada mês/lua é um
período de descobertas e trabalho mágico de situações específicas, como cura ou amor. Ao final
de cada capítulo/mês, um calendário registra os dias e suas divindades específicas. Há divindades
de todas as partes do globo.
O subtítulo Memórias de uma Bruxa Malcomportada é um alusão ao livro de Simone de
Beauvoir, Memórias de uma Moça Bem-Comportada. Beauvoir foi, segundo Frazão, uma de suas
heroínas de adolescência. Lia seus livros e comungava de suas idéias sobre o papel da mulher na
sociedade. Há de se compreender, a partir daí, o que sugerimos ser uma preocupação um tanto
precoce da autora (aos treze anos) com o feminino e os papéis da mulher na sociedade.

A autora diz que sonhava em escrever este livro mas acabava sempre por adiar seus
planos. Enquanto esperava por um bom momento para escrevê-lo, Frazão conta que manteve sua
rotina. Acordava às cinco da manhã, como sempre faz, e passava o dia fazendo trabalhos
domésticos. Frazão diz que é uma dona-de-casa e que gosta muito disso. Neste período, sonhou
com a avó lhe dizendo para seguir seu caminho de bruxa sozinha, pois era capaz disso e não
precisava mais do apoio de suas ancestrais - apoio que tivera até então. Teve mais um sonho com
suas antepassadas. Nele, elas levavam-na até a lua, que se transformava então na Deusa Tríplice,
e que lhe disse que ela já conhecia Seu corpo e Seu rosto. Quando acordou, sentiu-se
verdadeiramente iniciada, mas estava ainda com medo de escrever sobre a lua. Lembrou-se,
então, do que suas ancestrais lhe ensinaram: existe um momento na bruxaria em que a bruxa se
torna sacerdotisa e filha da lua, isto é, ela torna-se lua ela mesma. Seu poder duplica. Estabelece-
se então um compromisso que não pode ser rompido, sob risco de perda do poder mágico. Deu-se
conta de que entrava nesse compromisso, e que por isso não precisava mais da ajuda afetuosa de
suas antepassadas. Sentiu-se pronta a iniciar seus descendentes. Era hora de escrever sobre a lua.
O livro trata, na visão da autora, de sua relação com a lua, ou da própria lua. Visto que o
caminho de iniciação na bruxaria é o caminho de iniciação na religião da Deusa , que é também a
lua, este livro pode ser também compreendido como um livro sobre a lua. Desde o título do livro
290

até os dos capítulos, a autora nos dá a indicação de que a lua é tema central da obra. Na leitura do
livro, contudo, as memórias da autora superam qualquer intenção de descrever uma lua mística,
mesmo se tratando de memórias sobre a sua iniciação no caminho da lua. O próprio caminho se
torna o principal, e os personagens que acompanham esse caminho são peças fundamentais na
compreensão dele.
O recurso da autora aos seus sonhos para esclarecer uma determinada situação é muito
freqüente. Ela afirma que acredita na dimensão do sonho, mas sente que algumas pessoas apenas
fingem que acreditam em suas histórias. Isso, diz, se deve ao fato de que estas pessoas não
conseguem deixar para trás o que aprenderam para encarar uma outra realidade. Parece que o
sonho é visto, portanto, como uma realidade diferente da realidade vivenciada no estado desperto.
Mas enquanto realidade, ela fala de algo real, e não ilusório, e que pode ser levado em
consideração, levado a sério. O sonho deixa de ser visto como um desvario, e passa a ser visto
como um momento de comunicar-se com os deuses, com os mortos ou com os vivos, mas uma
comunicação que se faz em outro plano, ou outra dimensão, nem por isso menos verdadeira que a
dimensão da mente desperta.

A primeira lua descrita é a dos antepassados. A lua de janeiro é o momento de conversar


com os mortos. Vitalina, mãe de seu pai, foi a primeira pessoa que Frazão procurou para anunciar
que criara a “lua dos antepassados”. Aceitando de bom grado a invenção, a avó questionou sobre
quais seriam as luas seguintes. Frazão não havia pensado nelas. Decidiram então, ela e a avó, a
não mais usarem o calendário e sim as suas próprias denominações. Elas passaram a chamar os
meses de luas, e cada mês receberia a denominação de uma lua. A contagem do tempo, no
entanto, não foi alterada, a não ser para dezembro, que conta com duas luas.
A lua dos antepassados seria o mês em que todos os mortos seriam lembrados. Para tanto,
criaram verdadeiros rituais em homenagem aos falecidos. Nesta lua, realizava-se também o
feitiço dos panos - a lavagem da roupa que todo janeiro sua avó Virgínia, mãe de sua mãe.
Seguindo o espírito de janeiro, fevereiro guardou mais um contato com os mortos para a autora.
Frazão perdeu a amiga Nuri, de dezoito anos, que morreu dormindo. A autora conta que encarou
esta morte precoce como uma iniciação nos ritos da morte. Foi uma situação que lhe revelou que
o conhecimento não vem só dos livros, mas das recordações. Vemos novamente as lembranças
com um lugar de destaque.
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Após as experiências vivenciadas nesses dois meses, passou a discutir com os meninos o
porque das mulheres não serem mais fracas e inferiores aos homens. Começou a compartilhar
brincadeiras que antes eram só deles. Constatou que, como feiticeira, não podia se ausentar do
mundo dos homens. Percebeu que os conhecimentos mágicos deviam ser mesclados com a razão.
Assídua consumidora de livros, apesar de seus treze anos, Frazão lia também obras de
filosofia. Descobriu espantada que na filosofia também habitavam os deuses. Percebeu que o
conhecimento havia sido vedado às mulheres porque através dele elas reconheceriam os
encantamentos e os fariam todos. Desse modo, completa, forjou-se a idéia de que as mulheres
sábias são feias e solteironas, e que ser bonita e fútil é o melhor que uma garota pode alcançar.
Dedicou o mês inteiro à filosofia, como uma resposta a esses estereótipos. Seriam belas e cultas,
e não se calariam perante os homens. Colocariam a história em seu cotidiano, realizariam os
encantamentos dos filósofos, todos os dias honrariam as mulheres que não tiveram acesso ao
conhecimento, levariam o que aprendessem a outras mulheres e não mais permitiriam que o papel
da mulher fosse roubado. Declarariam-se feiticeiras sem se envergonhar.
A autora recorda que na década de 1960, várias bruxas modernas iniciaram a mesma
“caminhada” que ela. A idéia de caminho e caminhada é muito comum no contexto de Nova Era
e também nos livros de Frazão. Na Nova Era, contudo, o caminho pode tomar uma forma literal,
como o caminho de Santiago. A autora tenta desfazer essa possível confusão logo de início. Para
ela, um lugar específico, como o caminho de Santiago, não é o meio ideal para devolver às
bruxas o seu papel no mundo. A magia das bruxas estava intacta sendo transmitida através das
gerações. O que devia ser conquistado era aquilo que fora perdido, não o poder, mas o
conhecimento intelectual do mundo. “O conhecimento”, diz ela, “é o ato de se envolver com o
mundo”, ao invés de observá-lo friamente. Esse conhecimento mágico só vem através de um
caminho solitário, pois o aprendizado é individual.
A lua de abril mostrou-lhe que era necessário estar atenta às vozes do mundo e nelas
reconhecer os sinais que o tempo envia às bruxas. Procurava sinais ocultos. Desde então, nunca
foi surpreendida por nada, tomou consciência do mundo, reconhecendo suas dores e sorrisos.
Nesta lua, aprendeu o real significado de ser feiticeira.
Procurar sinais ocultos e ser feiticeira são coisas que não se confundem, na concepção da
autora, com a cartomancia e a previsão do futuro. A avó, diz, desprezava as videntes
profissionais, as cartomantes. Irritava-se quando eram chamadas de bruxas. Frazão concorda com
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a avó. Pensa que elas alienam a mulher de seu poder e da natureza. Segundo diz, elas são um
joguete nas mãos do poder masculino. Para a autora, recitar mantras e acender incenso não faz a
bruxa. É necessário interferir para transformar o mundo. Notamos aqui uma clara alusão à ação
militante, à saída da espiritualidade voltada apenas para o interior e a externalização dessa
espiritualidade numa ação concreta no mundo, que o transforme e melhore.
Nas luas anteriores, teve seu “dom de rasgar o tempo” fortalecido. Ao olhar para as
pessoas podia ver momentos de seu passado e futuro, bem como seus maiores desejos. Nessa lua,
resolveu passar algum tempo na casa de sua avó Vitalina, pois se sentia mais protegida lá. Neste
momento, procurava a avó como uma igual, e não mais como uma aprendiz. Sentia-se iniciada. A
avó, por sua vez, passou a tratá-la como a uma igual.
O trabalho do mês seria estudar sua história familiar. Durante este período, sua bisavó
acabou passando algum tempo em sua casa, no que ela via ser uma ótima oportunidade para
desencavar algumas histórias de família. Ela chamava-se Luísa, e tinha o hábito de conversar
com os mortos. Luísa possuía o dom “sempre exposto nas bruxas” de carregar seu cotidiano nas
costas: tornava o ambiente a réplica de sua casa. Para Frazão, este dom torna fácil o
reconhecimento de uma bruxa. Luísa lhe aconselhava a guardar bem suas lembranças,
costurando-as como a uma colcha. Para a autora, este é outro dom das feiticeiras: elas trançam
lembranças e tecem histórias. Todos têm este dom, diz, mas só as bruxas sabem aproveitá-lo bem.
Com Luísa aprendeu a contar histórias, e sentiu que ia transformando-se, ia pegando o jeito de
seus mortos. O resultado disto foi a mudança de alguns de seus hábitos: até hoje não consegue
mais usar gola.

A bruxaria, como vimos, é uma religião que celebra os mistérios do feminino. Para
Vitalina, o umbigo era o local sagrado desses mistérios, o local do princípio feminino, onde
nascem as intuições e se revelam as paixões. As mulheres possuem a capacidade mágica de
sempre estarem entre a realidade e a fantasia. Só as mulheres rompem a lógica da ordem,
desorganizando e promovendo caóticas transformações.
A lua dos labirintos, mês de julho, seria a época de trançar-se com outras pessoas, de
perder-se nos corredores que se lhe apresentassem. Frazão afirma que no outro amplia-se o poder
da bruxa, mas a magia só pode ser exercida na austeridade. Foi aí que entendeu porque as avós
tinham tantas amizades: faz parte de ser bruxa.
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Uma das novas amizades que fez naquela época foi Thirla. Via as duas, lado a lado, como
duas feiticeiras em contraposição ao que chama de “meninas de cor-de-rosa”, as meninas bem-
comportadas e doces, as boazinhas. É recorrente neste livro a oposição que a autora forma entre
ela (as bruxas) e as meninas de cor-de-rosa. Essas meninas são descritas com sarcasmo,
insinuando-se que eram bonitas mas burras, submissas à ordem masculina, perfeitamente
encaixadas no papel feminino daquela época. Frazão, ao contrário, gosta de definir-se e às bruxas
como mulheres um tanto marginais nessa ordem dominante, outsiders, “gente torta”, “que destoa
do bloco”. As bruxas são muitas vezes retratas - de maneira sutil - como mulheres independentes,
fortes e incompreendidas. Por isso a avó Vitalina era vista como excêntrica e egoísta. Seria, na
verdade, uma mulher independente e de hábitos pouco comuns, visto que era uma bruxa.
Na lua de julho, percebeu a marginalidade do feminino, a exclusão das decisões
masculinas. Fora convidada para sua primeira festa noturna, e lá percebeu os comportamentos
opostos de meninos e meninas. Notou que quase todas as garotas usavam rosa, que para ela
tornou-se um simulacro da feminilidade, até que viu entrar uma garota de jeans e camiseta,
sustentando um “olhar de Ártemis”. Reconheceu nela o brilho das feiticeiras. Sua dança era mais
livre que a coreografia das meninas de rosa.
Aquele tempo, recorda a autora, era propício ao desabrochar das mulheres e de seu poder,
chance que suas antepassadas não tiveram. Entendeu, então, o seu papel em seu clã: deveria
completar a obra inacabada de suas ancestrais. Hoje é a última mulher de seu clã, que antes tinha
tantas mulheres. Portanto, é sua última feiticeira.
No mês de agosto, descobriu que a mãe de sua amiga Glorinha estava grávida. Ouviu
comentários maldosos e preconceituosos contra ela porque já beirava os cinqüenta anos de idade.
Deu-se conta, então, de que havia um tabu do sexo em nossa sociedade. Associou o tabu do sexo
ao tabu da menstruação: toda mulher tem, mas deve escondê-la. As feiticeiras, ao contrário das
outras mulheres, não escondem seu sexo. Nesta mesma lua, recebeu a notícia de que sua tia
solteirona, então com trinta e poucos anos, se casaria.
Em nossa sociedade, o medo da velhice persegue as mulheres, diz ela. A sociedade exige
beleza eterna. Quando a velhice chega, estabelece-se uma morte simbólica da mulher, afirma. As
mulheres têm, então, duas (falta de) opções: ou morrem simbolicamente enquanto mulheres ou
tentam permanecer sempre jovens. Para a autora, só as feiticeiras não se viram para nenhuma das
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duas opções. Ao contrário, elas se tornam mais bonitas com a maturidade. Uma mulher é sempre
mulher, não importa a idade que tenha.
Setembro é a lua do atrito dos corpos e do coito dos deuses. Nesta lua, a avó resolveu que
já era tempo de iniciá-la nos segredos da deusa do amor e da beleza. Falou-lhe de tempos antigos
e lhe contou histórias de mulheres sexualmente livres. Aprendeu alguns tratamentos de beleza.
Passou a se sentir mais sedutora e feminina. Interessou-se pelas histórias de amor das mulheres
de seu clã. Sentiu sua sexualidade livre, fora das amarras das funções sexuais. A avó lhe disse,
então, que deveria sempre recolher seu sangue menstrual sobre um pires branco e deixá-lo secar
sob o luar para depois ser guardado num frasco sob forma de pó. Frazão afirma que faz isto até
hoje. O pó serve para reativar suas forças, curar doenças femininas, manter os seios rígidos livrá-
la de sortilégios, e pode também ser usado em feitiços.
Nesta lua, viu que seu poder residia na menstruação, um “remédio sagrado das mulheres,
elixir da beleza eterna e cura das doenças”. Aprendeu a “domar” seu fluxo sangüíneo, dirigindo-o
para a lua adequada aos planos momentâneos: cheia para completude, crescente para novos
projetos.
Para Frazão, não são os homens que iniciam as mulheres no sexo, mas as mulheres que
iniciam os homens. Para ela, o significado ancestral de virgem ainda é levado pelas mulheres:
livre e dona de seu corpo, tão livre que chega a ser disponível. Para ela, a mulher vive um eterno
mudar de pele. A lua ensinou-lhe o caminho da sensualidade das mulheres e sua perversão, a
submissão à moral sexual dos homens -bons costumes, expiação e culpa - para a manutenção do
Estado, a ciência, a economia.
Outubro é a lua de Perséfone. Nesta lua compreendeu que ela, Frazão, junto a outras
tantas bruxas, inundariam o cotidiano de cura. A cura, para ela é um estado de gravidez
permanente. A idéia da gravidez evoca tanto o processo de criatividade e transformação quanto a
idéia de esperança e futuro.
Em novembro, passou a ter as mais distintas visões, tanto boas quanto más. Com a ajuda
da bisavó Luísa, compreendeu que sua lógica circular era a mesma dos sonhos, e era isso que
fazia com que rasgasse o véu do presente e visse além das pessoas: seus planos, sonhos, passado
e futuro. Na dimensão dos sonhos, diz, podemos mudar nossa realidade e a dos outros.
Luísa aprendera sobre os sonhos com sua irmã Maximiana. Ela ensinou a Luísa como
virar um pássaro noturno e encontrar o que quisesse assim. Frazão afirma que este é o verdadeiro
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vôo noturno das bruxas. Luísa chamava-o de rastrear sonhos. Para aprender isto, Luísa fez com
que andasse pela casa com vendas nos olhos. Depois aprendeu a abrir “o olho incluso das
feiticeiras”, rasgar a realidade. Em seguida, durante uma semana andou pelas ruas de olhos
fechados, reconhecendo os contornos do que passasse por ela.
Dezembro é o mês de contar bênçãos. Foi neste mês que Vitalina levou-a para colher
lágrimas-de-nossa-senhora na Floresta da Tijuca. Nessa aventura, a menina vislumbrou a
“Senhora dos Rios”, e colheu suas contas para fazer um colar a ser usado na noite do Ano Novo.
Esta é a última lua do calendário, o que Frazão chama de “mais um dia”.
A festa daquele trinta e um de dezembro foi realizada em sua casa, com todos os membros
da família e alguns outros convidados. Suas tias e avós reunidas para a festa haviam levado uma
receita diferente ou um presente a ser distribuído, cada um com uma propriedade mágica.
Naquela noite, diz Frazão, não foi mais tratada como uma aprendiz de bruxa, mas como uma
feiticeira do clã.
Perto da meia-noite, desceram todos até a praia, levando consigo os presentes a serem
dados à Yemanjá, dispostos numa bacia de ágate branco. Frazão conta que levava flores brancas e
um espelho de prata. A bacia, diz, era parte do espólio da família não se sabia desde quando.
Mais tarde compreendeu que representava o útero da Grande Mãe. Naquela época, recorda, as
religiões afro-brasileiras eram vistas como de classe social inferior. Sua família, porém, não
desprezava de todo estas crenças.

O Oráculo dos Astros, ed. Bertrand Brasil, 1998 (1a. edição)

O livro se propõe a apresentar um oráculo desenvolvido pela autora, semelhante a um


antigo oráculo usado por bruxas medievais. Ele se baseia no conhecimento astrológico para
predizer o futuro. Na verdade, trata-se de um instrumento que se destina tanto a consultas de
auto-ajuda quanto a consultas oraculares para o futuro. Acompanha o livro um tabuleiro de papel,
que a autora chama de mandala, onde o oráculo deve ser disposto. Esta mandala é uma roda onde
estão dispostas as doze casas do zodíaco. Cada casa possui atributos específicos, segundo o
conhecimento astrológico.
O jogo consiste em fazer uma pergunta e lançar as peças do oráculo sobre a mandala.
Estas peças representam os planetas e três luas diferentes. Cada planeta recebe atributos segundo
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a astrologia, e cada lua (nova, minguante e cheia) recebe atributos específicos segundo a crença
da wicca. Somando-se treze peças, a autora afirma que tem-se, então, o “número mágico das
bruxas, o número do antigo calendário lunar”(1998: 18). As peças referentes aos planetas e luas,
no entanto, não estão incluídas no livro. A preocupação da autora para não inserir as pedras ao
“pacote” era fazer com que a mandala fosse simplesmente um molde, e as peças procuradas pelo
consulente. “É um presente de hippie”, diz ela, “por isso é artesanal” (1998 :173).
A autora explica quais são os atributos de cada casa, de cada planeta e lua e de cada signo.
Esse conhecimento é necessário ao uso do oráculo. Quando uma determinada peça cai sobre
determinada casa, uma resposta vinculada a essa combinação é dada pelo jogo. Todas as
combinações possíveis recebem a interpretação da autora que, não obstante, sugere um estudo
mais profundo da astrologia para um melhor aproveitamento das possibilidades de seu oráculo.

A Panela de Afrodite, ed. Bertrand Brasil, 2000 (3a. edição)

Mesmo antes de seu lançamento formal pela autora, o livro já estava na sua terceira
edição. A apresentação do livro foi escrita por Ronaldo Periassu, companheiro de Frazão. Na
folha de rosto, a dedicação às “filhas de Afrodite”, mulheres e cozinheiras, o que não nega a
predileção da autora pelo público feminino, especialmente aquele ligado aos afazeres domésticos.
Recheado de poesia, o livro é um convite ao prazer sensual da mesa.
Flores, frutas e ervas sagradas à deusa Afrodite têm seus mistérios revelados em pequenas
sugestões para feitiços de amor. Como em seus livros anteriores, a autora chama atenção para
uma lista detalhada de instrumentos necessários às receitas e feitiços: porcelanas e cristais,
toalhas e guardanapos, talheres de prata e madeira, A Panelas de barro. Afinal, as receitas são
feitiços, se incluem no mundo do sagrado, e não podem ser preparados e servidos em recipientes
quaisquer. O barro e a madeira chamam a força da terra. A prata liga-se à lua. Porcelanas e
cristais são o toque que tira o comensal da refeição cotidiana, e leva-o a ingressar numa ocasião
especial, a ocasião de um ritual e um feitiço.
Cinco tipos de receitas são apresentadas, todas elas provenientes da culinária grega: as
“receitas para conquistar um amor”, “receitas para reconquistar um amor”, “receitas para renovar
a paixão”, “receitas para a fidelidade no amor” e “receitas para esquecer um amor”. A autora
consegue, nesta obra, retomar o fio de seus dois principais temas: o amor e a culinária. Na
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bruxaria, o amor se torna arma fundamental de auto-transformação e palco de inúmeros feitiços.


A culinária, por sua vez, é o espaço dos feitiços, sejam eles de que natureza forem. A comida é o
próprio feitiço, preparada na cozinha, o local privilegiado para a prática da bruxaria.
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