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- BLUE JEANS -

UMA PEÇA
SÓRDIDA
Texto de Zeno Wilde e

Wanderley A. Bragança
ESPAÇO CÊNICO
Um apartamento decorado com bom gosto.

Cenas de Rua

Cenas de Memória

Unidade da Febem

OBSERVAÇÕES
*Os personagens, todos, têm o mesmo nome comum: Luiz
Carlos Soares.

*Cada personagem contracena sempre e unicamente,


com o Dono do Apartamento. Mesmo quando estão
ocupando o mesmo espaço físico, estão em tempos
diferentes, não contracenando entre si.

*A ação se passa numa grande metrópole, hoje.

MARCOS (Chegando da rua com o dono do


apartamento) - Tudo bem, eu topo! De
repente, o nosso astral bateu! Só que eu
acho que vai ser mais uma história pra tua
coleção. Igual a tantas outras que já te
contaram antes: nós não conseguimos nem,
ao menos, ser originais. Quando eu disse
"nós", estava querendo falar de nós dois: de
vocês, com essa curiosidade obscena sobre
cada detalhe de nossas vidas, e de... de nós...
os rapazes que cobram pra contar essas
histórias! Mas vamos em frente: eu vou lhe
contar tudo. Da maneira que aconteceu...
detalhe por detalhe. "Juro dizer apenas a
verdade e nada mais que a verdade!" De
agora em diante, todo cuidado é pouco! Nós
combinamos um preço, certo? Só que esse
preço era pra "outra" coisa, e não lhe dá a
garantia de ouvir uma história
verdadeira. (Já bem à vontade no
apartamento) Eu já posso estar mentindo...
aliás, eu posso ter mentido desde o começo...
Mas isso não vai mudar absolutamente
nada, vai? O que você realmente deseja,
além da "coisa óbvia", é ouvir uma história
sórdida e sacana, não é? Meu nome é Luiz
Carlos Soares... filho único, nascido em dois
de fevereiro de 1963, numa dessas duzentas
mil cidades de interior desse Brasil de
Deus. Solteiro, profissional liberal e
autônomo, sem doenças venéreas, esse é um
detalhe importante... grau médio de
escolaridade e sem predileção sexual
definida. Que merda de ficha técnica, não
é? Vamos fazer o seguinte: vamos pular,
numa máquina de tempo maluca, de 1963...
para 1978... eu acho que aí, a história vai
ficar mais estimulante para você. Tudo
mais que tenha me acontecido antes, não
vale a pena, não interessa, não tem a
menor importância... e eu nem me lembro
mais... (A luz cai em resistência, no
apartamento. Em transição, também em
resistência, para o "espaço" de Serginho, na
Febem).

SERGINHO (Serginho é um pequeno delinqüente, sendo


atirado numa sala para interrogatórios,
junto com outros meninos de sua idade. Ele
está nu) - Não... não fui eu... eu juro! Eu sou
inocente, não fui eu. Quando eu cheguei no
apartamento ele já estava morto. Por
favor, acreditem em mim. (Como se
respondesse perguntas) Não... eu nunca
tinha ido parar no Juizado antes... mas
também não tinha por que ir. Eu nunca
roubei ninguém, não fiz nada de mais...
Luiz Carlos Soares... Dezesseis anos... vou
fazer dezessete em setembro... Não... eu não
conheço nenhum desses meninos. O que foi
que eles fizeram? Também estão sendo
acusados como eu? Porra, eu não preciso da
ajuda de vocês. Não... eu não estou
cuspindo no prato que comi, não. Só que eu
já sei tomar conta da minha vida muito
bem. Ah, vocês queriam que eu ficasse a
vida inteira agradecendo a caridade de
vocês? Oh, obrigado! Se não fossem vocês, eu
nunca teria tido um teto, comida,
agasalhos... teria morrido numa lata de
lixo! Vocês não sabem o que é ser criado
numa Unidade de Governo... tudo o que a
gente tem, é uma tabuleta na testa: "à
espera de adoção"... e tudo o que se é, é
órfão! Não... eu não uso drogas. Nunca
usei... nem maconha... nem nada... Será que
eu vou ter que ficar o resto da minha vida
respondendo essas perguntas? Por que é que
vocês estão gravando tudo o que eu falo?
(Sendo levantado violentamente por dois
outros meninos) Tomar banho... agora?
(Blecaute. Volta luz geral, no
apartamento).

GRACINHA (Chegando, com o dono do apartamento. Ele


vem atrás, carregando a sacola dela) -
Nossa! Seu apartamento é um barato! Uma
gracinha... eu adoro lugares assim. Pelo
menos, já temos uma coisa em comum:
gostamos do que é bom! Está tudo pago?
Benza Deus! Ah, eu estou podre, hoje... a
boate estava uma loucura, não estava?
Desde que eu estou lá, que a gente nunca
teve uma casa assim tão cheia. Você nunca
foi lá, antes... foi? Eu não ia me esquecer de
uma cara como a sua, assim, tão
incomum... Eu estou fazendo aquele
número há pouco tempo... você gostou?
Aliás, eu estou nesta vida há pouco tempo,
dá pra notar? A boneca que fazia o show
antes de mim, teve uma briga feia com o
Marcelo, saíram no tapa e tudo... aí, ele me
colocou no lugar dela... pra tapar buraco...
Agora, você imagina como é que a minha
cabeça ficou... eu ainda era uma menina
que brincava de bonecas, poxa! Ah, mas eu
não deixei por menos! Me esforcei como o
diabo gosta... era a minha grande
oportunidade, não era? Aos poucos, eu fui
mudando tudo... criando um outro show...
falei com o carinha da luz, com o pessoal do
conjunto, com o moço do som... comprei este
vestido vermelho, meu amor! Mas ficou
lindo, não ficou? (O outro se mostra muito
pouco interessado. Ela procura novo
assunto) Você gostou do conjunto? Uma
merda, né? Eu sei. Também, com o
ordenado que o Marcelo paga, você queria
o quê? César Camargo Mariano? Mas tem
uma coisa, viu... eu acho que não é culpa
dele, coitado... Quando as coisas apertam,
ele fica louco, desesperado, ameaça fechar a
casa e despedir todo mundo... Deus me
livre! Vida de travesti já é uma merda, já
pensou então, travesti desempregado? É o
maior sufoco! Muita concorrência. Hoje em
dia, pra você vencer na vida, a gente tem
que trabalhar muito e ser muito boa... que é
pra não acabar na rua da amargura,
fazendo ponto na Rua Rego Freitas...
correndo uma porção de riscos, aturando
cada bofe escroto. Cara cheio de doença e
que ainda por cima, paga mal. Ah, e ainda
tem a polícia, meu amor, que quando
cisma, sai de baixo! Isso pra não falar no
Juizado de Menores que se me descobre...
Na boate, pelo menos, o Marcelo protege a
gente. Mas você não tem pinta de quem
curte o trabalho das meninas... o que foi...
pintou solidão? Eu estou realmente um lixo,
não estou? Ultimamente eu venho levando
uma vida muito agitada. Depois que eu
virei travesti, minha vida ficou uma
loucura! Eu estudo à tarde... Colégio
Imaculada Conceição, no Ipiranga... entro
ao meio-dia e saio às cinco. De noite, eu
trabalho como office-boy em um hotel na
Avenida Paulista. Quer dizer: é isso que eu
conto lá em casa... Olha, eu só estou falando
essas coisas, por que você me pareceu um
tipo compreensível, sei lá... é o meu jeito
mesmo! Eu acabo contando a minha vida
inteira, pra todo mundo que sai comigo...
coisa de mocinha! (Depois de uma longa
pausa) Olha... tem uma coisa meio delicada
que eu queria te perguntar... você não vai
levar a mal, vai? Estou meio sem jeito...
sabe o que é? A gente tem que estar
prevenida, né... esse negócio de doenças
venéreas... se a gente não tomar cuidado já
viu! Mas com você está tudo em ordem, não
está? Outra coisa... só que aí já é
curiosidade feminina... você é casado? Tens
uns que são, né? De dia, a escola, o bairro
pobre, a mãe, os irmãos... De noite, o show!
Depois, sempre pinta alguém... assim eu
vou acabar tendo essa tal de estafa.
Que nada... eu nunca vi veado com estafa!
Mas bem que a gente podia fazer uma
greve, não podia? Não está mesmo na
moda? Ia sair em todos os jornais... e uma
promoção é sempre uma força pra gente!
Mas que nada... a gente não tem Sindicato,
carteirinhas... essas coisas de Imposto de
Renda. Sabe o que eu queria fazer agora?
Tomar um banhinho. Um banho ia me
deixar em forma... você me espera? Eu não
demoro nadinha, nadinha... é só jogar uma
água no corpo. (Saindo em direção ao
banheiro) Um kiss... volto logo... (Blecaute.
Quando volta a luz geral no apartamento,
quem está na porta é Renguitem com as
chaves na mão, como se tivesse acabado de
chegar com o outro).

RENGUITEM - Aí, ó... a chave. Vai deixar a chave na


porta? Marcou bobeira, hein? Imagine só:
amanhã cedo você acorda, apalpa a cama
procurando o garotão pra tirar o último
sarrinho, e ó... cadê? O garotão caiu fora,
deu no pé! E de lembrança, levou o relógio,
a carteira, a televisão... levou tudo de
lembrança... Mas comigo, não. Eu quero
mais, é defender o "meu", na competência
profissional... mas é sempre bom tomar
cuidado... Sabe que foi uma boa, você ter
aparecido? Você viu aqueles dois que
estavam comigo, quando você encostou o
carro? Nós viemos ontem, os três, do Rio de
Janeiro... Sabe desde que horas a gente
estava na Avenida? Desde que escureceu,
seis, sete horas, por aí... batendo pernas sem
conseguir apanhar nem mosca tonta.
Porra, nove horas andando do Trianon ao
Largo do Arouche, do Largo do Arouche ao
Trianon... com fome, sem lugar pra dormir,
sem conhecer porra nenhuma da cidade...
Nossas malas estão no depósito da
rodoviária... guardar, onde? Fazer
Avenida com as malas nas costas, não dá
mesmo... E ainda por cima, esse tempo
escroto, porra! Essa merda de chuva só
serviu pra espantar todo mundo da rua...
Qual é a besta que vai sair zanzando com
um tempo assim? Só mesmo quem é
profissional... ou quem está muito a perigo.
Parece que a barra aqui em São Paulo, pra
quem vem de fora, sai de baixo! Mas o que
é que você queria? Que a gente voltasse pro
Rio? Sem um puto no bolso... E depois, o Rio
já deu tudo o que tinha que dar. Aquilo lá
está infestado de argentinos, bolivianos,
paraguaios, e o caralho a quatro. Puta
concorrência! Os gringos vão chegando de
trem, de ônibus, de carona, na
porralouquice. Tem neguinho que vai até a
pé. Todo mundo na pior. Pensando que é só
chegar em Copacabana, agitar um lance e
colocar o pau na praça. Qual é a deles?
Estão pensando que o Rio de Janeiro é o
paraíso dos viados? Os carinhas saem lá da
terra deles, falando um portunhol que nem
a mãe entende, pra vir foder a vida da
gente, dentro do país da gente? Não tem
sentido! Eu acho que viado brasileiro só
devia dar o rabo pra michê brasileiro...
devia ser de lei... e fim de papo! Ou vai me
dizer que não existem viados, na terra
desses putos? (Blecaute. Volta luz geral.
Seqüência natural da cena com "Marcos").

MARCOS - Minha história só conta daí em diante...


dezembro de 1978... (Revive os fatos, muito
emocionado) Nós o usamos, cara... como eu
vou usar você daqui a pouco, e como você,
se pagar um pouco mais, vai poder me usar
depois. Ele morava na minha rua... No
colégio, entre a turma, era público e
notório que ele era um garoto "diferente"...
resumindo: ele era um pouco delicado
demais, para os nossos padrões. Tímido...
sensível... não entrava em brigas, não
jogava futebol... essas coisas de "homem".
Para mim, ele tinha um certo mistério. Eu
o observava sempre... na sala de aulas, nos
corredores... dentro de mim, alguma coisa
me ligava a ele... numa identificação
secreta... como se fôssemos, nós dois,
marcados por um sinal de fogo. Éramos
cinco, no grupo... (Numa cena paralela, de
memória, é mostrado o grupo adolescente)
O André... o Fred... o Waldir... mais, eu e o
Eduardo... desgraça e glória de todas essas
lembranças. Nossas idades variavam entre
treze e dezesseis anos... inconseqüentes,
alegres, vagabundos... (Blecaute na cena de
memória) Para o grupo, comer o Eduardo
significava provar que éramos diferentes
dele... que éramos machos e que ficávamos
de pau duro... coisa meio de moleque, de
criança... Em dezembro, quando a família
do Waldir viajou, numa noite dessas nós
fomos para a casa dele, que era onde
iríamos executar o Eduardo... A gente
bebeu um pouco... procurando coragem
para enfrentar as nossas próprias feras...
Quando o Waldir veio com as revistas
pornográficas, eu tive toda a certeza de
que o jogo já havia começado... você sabe
como são essas revistas, não sabe? (O
apartamento agora é iluminado por um
foco de luz, sobre os dois) Nem foi preciso
esperar muito. Num minuto o ambiente já
estava preparado para o crime. Foi o
Waldir, quem inventou aquele maldito
concurso. Tudo bem... com aquela idade a
gente está sempre querendo provar,
competir, disputar... Cada um escolhia uma
revista e: (volta a cena paralela,
vivenciando a narrativa) um, dois, três...
começava todo mundo a bater punheta ao
mesmo tempo, na maior alucinação e no
maior sincronismo. Que loucura! O castigo,
para quem terminasse por último, era ser
enrabado pelo grupo inteiro... Cara, estava
todo mundo apavorado. Na maior
alucinação, suando pra caralho... com os
olhos pregados naquelas fotografias. O
André foi o primeiro... pronto, esse estava
livre! Depois, eu e o Waldir... sujamos o
tapete quase ao mesmo tempo. Puta alívio,
cara! Mas eu ainda tinha um medo muito
grande. Medo do que vinha pela frente. E
que eu sabia, plenamente o que era.
Sobraram o Eduardo e o Fred. Não me
parece muito difícil deduzir quem foi que
levou a pior nessa história... Ridículo,
envergonhado, sem saber onde meter a
cara, ele tentou escapar correndo, daquele
quarto. O André voou sobre ele... parecia
que tinha asas nos pés, o puto. Depois o
Waldir e o Fred, também entraram na
luta. Eu me lembro dos três, tirando as
roupas dele, quase rasgando. Ele se debatia
e levava porrada. Três contra um, né cara?
Eu não. Eu não sabia o que fazer. Eu queria
morrer! O André foi o primeiro, claro. O
seu direito de vencedor! O Fred e o Waldir
o mantinham de bruços, entre braços e
pernas. Depois foi o Waldir... eles babaram,
eles rasgaram, eles violaram aquele
menino... O Fred... os três, porra! Eu estava
aos pedaços, dilacerado dentro de mim.
Depois o pavor, a náusea, o pânico... Havia
chegado a minha vez. Já não era preciso
que ninguém o segurasse. Ele não tinha
forças para nenhuma reação. Os outros me
cobravam... eu deitei sobre ele e fechei os
olhos... cara, ele tremia inteiro... era um
choro interno, convulsionado... ele chorava
por dentro. Os outros foram saindo de
mansinho... é claro que ninguém queria
ficar por mais tempo naquele lugar. Estava
todo mundo se cagando de medo! Eu não sei
por quanto tempo nós ficamos sozinhos...
ele continuava imóvel... do vão de suas
pernas, escorria uma mistura pegajosa de
sangue e porra. Cara, eu tinha que fazer
alguma coisa. Ele estava chorando... "Por
que você não foi embora com eles?" Foi a
pior pergunta que eu ouvi em toda a minha
vida. Eu não sabia o que responder. Não
sei, cara... não sei... Mas eu não era igual a
eles... de alguma forma, eu era diferente...
Depois, ele me encarou e eu perdi o ar. O
peito queria arrebentar... Cara, alguma
coisa estava mudando em nós, ali, na
precariedade das nossas condições... era um
misto de carinho e desespero... Foi quando
ele procurou a minha boca e me beijou.
Cara, que loucura... agora o seu corpo era
quente e bom... agora eu estava feliz, agora
eu queria aquilo... Ele soltou a minha mão e
pediu que eu fosse embora... que eu fosse
embora para sempre... Quando eu saí
daquele quarto, ele já não estava chorando.
(A luz sai seca, no apartamento e vai
saindo lentamente, em resistência, na cena
de memória, sobre os dois corpos nus. Após
o blecaute, a luz acende, em resistência, no
espaço de Serginho).
SERGINHO - Eu sempre fiz os meus trabalhos o melhor
que pude, não fiz? Sempre consegui bons
resultados na Escola... fiz o meu
profissionalizante com a maior seriedade...
Sempre fui limpo... procurei adquirir bons
hábitos. Respeitava sempre as Assistentes.
Procurava escutar os psicólogos... mesmo
achando tudo aquilo uma grande besteira.
Trabalhei até na granja, aprendendo a
plantar de tudo... tem menino que quando
chega aqui, nunca viu antes, um pé de
alface, na vida. Como vocês sempre diziam,
eu sempre fui um perfeito "recuperável"! E
isso me serviu pra quê? É... vocês devem
estar decepcionados comigo... nem eu,
esperava voltar aqui tão cedo. Só que tem
uma coisa: não fui eu quem escolhi essa
arma. Ela foi colocada na minha mão... eu
só fiz, é puxar o gatilho! Mas eu não tenho
dezoito anos... ainda não pode aparecer,
sem tarja preta nos olhos, na primeira
página de qualquer jornal, a minha cara de
bandido! (Blecaute. Luz geral no
apartamento. Seqüência da cena de
Renguitem).

RENGUITEM - Você mora aqui sozinho? E sempre está


trazendo os garotões pra cá? Meio
arriscado, hein? Eu saco muito assaltantes
por aí, se passando por michês... Você nem
conhece o carinha, nunca viu o puto na
vida... aí, cruza com ele numa esquina e
traz pra cá, numa boa... com as melhores
das intenções. Porra, mal você tem tempo
de fechar a porta e ele já te encosta o "três
oitão" na cabeça... e aí... você tem a manha
de reagir? Toma cuidado, hein, malandro!
Uma coisa... não é por nada não, mas já
que a gente falou em cuidado... não me leve
a mal, mas eu acho bom a gente acertar
antes, o lance da grana... é conversando
que a gente se entende... Olha aí... eu estou
cobrando cinco barões! Tudo bem? Cinco
barões e está feito o jogo. Mas você pode
ficar tranqüilo, que depois eu não vou ficar
te enfernizando a vida, te procurando na
tua casa, no teu emprego... fazendo esses
lances de chantagem, pra descolar mais
grana... Cinco barões e jogo limpo! Se um
dia a gente se cruzar na rua... pode ficar
na tua... eu nunca te vi... nem te conheço...
Ah... tem uma outra coisa... Eu não dou,
hein! Eu só sou ativo. Mas se você quiser...
pode gozar na minha coxa, tudo bem... mas
dar, eu não dou, está limpo? Nem beijar na
boca! Eu tenho grilo... Tudo bem? Eu não
disse, cara? É conversando que a gente se
entende! (Blecaute. Sai o Renguitem e entra
a Gracinha. Continuação natural).

GRACINHA (Voltando do banheiro, enrolada numa


toalha) - Demorei muito, bicha? O chuveiro
estava uma delícia... eu me esqueço do
mundo quando estou debaixo d'água. (Ela
senta na cama e percebe que está molhada
ainda) Ai, desculpe... eu me enxugo e volto
logo... ainda estou um pouco molhada...
molhada? Molhado... cheia d'água, caralho
(a dúvida é em relação ao sexo. Retorna ao
banheiro. Lá de dentro). Senhoras e
senhores... vamos apresentar agora a
grande atração da noite... com vocês,
diretamente de Paris, a internacional, a
única, a sensacional Gracinha Tropical!
(Aparecendo novamente) Não é assim? Aí
eu entro com o meu vestido vermelho,
lindo, lindo! Desço aqueles três degraus e
rasgo a voz, pra todo mundo escutar! Ah, é
a melhor coisa do mundo. Saber que estão
me ouvindo, que estão gostando e que vão
aplaudir no final. Te juro, é a melhor hora
de minha vida. Sabe o que eu queria
mesmo? É que um dia ela fosse me assistir...
Será que ela vai? Eu acho que eu morro! Já
pensou, bicha, eu cantando, e ela, a maior
de todas as cantoras do mundo, sentadinha
de perninhas cruzadas, me ouvindo, me
escutando? Eu não queria mais nada da
vida. Juro por Deus! Eu corria para o
camarim e dava um tiro no ouvido.
Completamente realizada! Sabe que no
começo o Marcelo não gostava muito do
meu número? Pegava mal pra casa, que a
estrela do show fosse uma boneca
"despeitada"..., uma ninfeta, como ele
dizia... pra ele, boneca que se preza tem que
ter peitaça, essas coisas... pra chamar
atenção... ele queria até me aplicar silicone.
Eu, hein? Eu é que não vou fazer esses
tratamentos. Eu não preciso... eu quero
mesmo é cantar. Ficar sob aquele foco de
luz, nos meus saltos altos... Fale sério, você
acha que eu preciso? (Exibe a "plástica") Me
capar, Deus me livre! Eu sou católica e
respeito a natureza. E as pessoas vão é
para me ouvir cantar. Tem gente que nem
percebe que é dublagem, você acredita? (O
outro não está muito à vontade. Ela muda
de tática) Sabe... eu já topei com cada tipo
estranho... cada cara, cada gosto... eu vou
te contar... eu vou te contar... No começo,
quando eu ainda não tinha toda essa
experiência, eu saía com qualquer um que
me desse atenção... mas depois a gente
aprende... acaba entrando na vida pra
valer, fica "fina"... Uma vez, um dia... um
senhor assim, bem machão, alto, bigodudo,
tipo pai de família, que vivia me rondando
na saída da boate, me convidou para um
programa... eu topei, só por farra... bicha,
ele me levou para o apartamento dele de
Mercedes... um puta apartamento no
Morumbi... espelho no teto, colchão d'água,
aromatizantes, o caralho! Aí, eu fiquei lá,
deitadinha, esperando ele... com as
perninhas cruzadas, me sentindo a própria
Sônia Braga! De repente, não mais que de
repente, ele me entra quarto a dentro...
com uma puta garrafa de champanhe na
mão... Sabe pra quê, era a garrafa de
champanhe? Nem imagina? Pra enfiar no
rabo dele! Mas eu já tive uma pessoa... é...
um carinha... a gente ia até morar juntos...
eu ia fugir de casa e tudo. Essa coisa de
casal, de ficar em casa, de avental e
chamar de maridinho. Mas ele vivia
metido nesse negócio de tóxico e acabaram
matando ele. A gente nunca se entendeu
direito nessa, de tóxico. Eu não gosto de
tóxico. Tóxico não enche a barriga, enche?
Um dia, ele sumiu... não voltou mais pra
casa... aí, como eu sabia que ele tinha uma
tia que morava lá em Diadema, eu fui lá
falar com ela. (Nessa frase, tenta impor
virilidade) Disse que era amigo de trabalho
e tal, que estava querendo saber por que é
que ele estava faltando... essas coisas...
(Aqui, volta a falar como antes) Colou a
história? Porra nenhuma! A mulher sacou
a coisa toda... mas mesmo assim ela me
contou tudo... disse que ele havia sido
morto pela polícia... que havia sido até
torturado. Deus me livre! (Está bastante
emocionada) Aí, eu não agüentei, né? Eu
sou humana... e tive a maior crise histérica,
ali, na frente da mulher... Olha cara, nem
com essa vida tão fudida, que eu levo, eu
nunca tinha ouvido falar de tanto
desrespeito pelo ser humano. É, cara...
polícia é foda! (Tenta se recompor) Eu
gostava muito dele... gostava mesmo. Era
como se fosse meu pai. Mas morreu,
morreu... a gente tem mais é que continuar
na vida, mesmo sabendo que nunca vai
encontrar alguém como ele. A gente tem
que viver, a gente tem que viver! (Solta a
toalha, de maneira sensual e caminha para
a cama, bem provocante - ele está na cama
esperando. Entra a música Folhetim, de
Chico Buarque, cantada pela Gal Costa) Se
acaso me quiseres, sou dessas mulheres, que
só dizem sim... (A luz e a música saem, em
resistência. Após o blecaute, o dono do
apartamento continua na cama, mas a
cena agora é com Marcos).

MARCOS - ... era a minha única saída. Abandonar


aquela cidade, aqueles amigos... aquela
situação de merda... Eduardo, tudo... assim,
pelo menos, eu não teria de encará-lo
novamente. Só tinha uma coisa, que me
perturbava; eu não queria abandonar os
velhos, os meus pais... eu gostava muito
deles e a gente se entendia legal. Mas fazer
o quê? No dia seguinte eu estava sentado
na poltrona número onze do ônibus que me
levaria para o Rio de Janeiro. Onze é o
meu número de sorte... eu nem sabia direito
pra onde estava partindo. Só tinha certeza,
de que estava indo, ao encontro do meu
destino... Foi tudo muito simples: em menos
de quinze dias eu já havia torrado toda a
grana que havia trazido e me virava como
podia. Naquelas de ir dormir às seis da
manhã e acordar às cinco da tarde. Eu
começava a conhecer e freqüentar as zonas
mais barra-pesada da cidade, onde sempre
se encontra um boteco aberto, alguém que
ofereça um "fumo" e um quarto barato
para alugar. Já tinha amizade com
rapazes, que como eu, também viviam de
restos e de sobras. Para nós, era tudo uma
maravilha, tudo novidade... e para ganhar
dinheiro, nós descobrimos os nossos corpos e
a nossa juventude... Eu já não tinha mais
vergonha de abordar as pessoas solitárias,
nas calçadas de Copacabana, da
Cinelândia, dispostas a pagar por algumas
horas de companhia... e sabia reconhecer se
uma "mercadoria" era de boa ou de má
qualidade, quando me ofereciam cocaína
ou maconha. No começo, eu só transava
com mulheres. Coroas, cheias da grana... na
faixa dos quarenta, cinqüenta anos... todas
muito bem casadas e muito mal trepadas.
Cara, elas fazem de tudo... chupam, dão o
rabo, batem punheta... tudo o que você
imaginar em matéria de sacanagem, essas
neuróticas adoram... Mas quem é
profissional não escolhe sexo. O que cair na
rede, é peixe! Quer ver só? Se eu sair com
um senhor, às sete, oito horas, e transar
com ele numa só de passivo... se aparecer
outro cliente, lá pelas madrugada, eu posso
faturar com ele também... porque eu me
poupei da primeira vez, não me gastei...
Com mulher não dá... elas querem que a
gente goze sempre... e com mulher só dá
pra ser ativo. Aí, eu acabo tendo prejuízo.
Ah, tinha também o lance da Casa de
Massagem... sabe como é... quem estivesse a
fim de um garotão, era só ligar pra lá e a
gente ia atender. A grana, era cinqüenta
por cento pra nós e cinqüenta por cento pro
dono da Casa... De qualquer forma, hoje em
dia o mercado masculino é mais aberto, e
paga melhor... (A luz cai, em resistência,
enquanto ela vai em direção à cama,
tirando o cinto e abrindo o ziper da calça.
Após o blecaute, a luz volta no espaço de
Serginho).

SERGINHO (Sob um único foco de luz) - Eu estive sim,


naquele apartamento... vocês não me
encontraram lá? Não... aquela não foi a
primeira vez... eu já tinha ido lá, antes...
algumas vezes, não sei quantas... eu não
contava. Eu conhecia ele, sim... não tenho
pra que mentir. Eu o conheci quando
comecei a freqüentar aquela boate... Nos
dias de folga, quando podíamos sair, nós
íamos em grupo... era só tomar um trem
até a Estação da Luz, e de lá... um ônibus,
para qualquer lugar. Muitos de nós já
freqüentavam mulheres. Os mais velhos já
conheciam os pontos de transação. Eles iam
lá, uns porque gostavam mesmo, outros,
pra transar por grana... é como eles
dizem... No começo, eles me chamavam... eu
morria de curiosidade, mas não tinha jeito
pra ir. Tinha também medo de ser barrado
na porta, por ser menor de idade... Até que
um dia, eu criei coragem e fui com eles.
Não teve o menor problema. (Aqui,
explodem outros pontos de luz, mostrando
alguns garotos com roupas mínimas e
sensuais, que até então, eram escondidos
pela iluminação, transformando o espaço
de Serginho, no ambiente que ele descreve)
Eu nunca imaginei um lugar como aquele.
Com tanta gente bonita, sensual e
diferente... aquela música louca... Era lindo!
Depois, eu passei a ir lá todos os fins de
semana. Ele estava sempre lá... e me olhava
de uma maneira... como se quisesse alguma
coisa comigo... (Ao fundo, ainda meio nas
sombras, aparece o dono do apartamento)
Eu levava muitas cantadas sim. Muitas
carinhas me chamavam e me davam altos
toques. Até me ofereciam grana... (O outro
já se aproximou, e oferece cigarros) Um dia
ele me cantou... (Serginho aceita o cigarro
estabelecendo o código - o outro sai
lentamente) Eu fiquei sem saber o que
fazer... se os meus amigos não tivessem
dado a maior força, eu nem teria saído com
ele... (Cessa todo o movimento. Serginho fica
novamente apenas sob um foco de luz) Era
a primeira vez que eu ia ao apartamento
de alguém... naquela noite, a gente nem
transou... eu acho que ele percebeu que eu
estava morrendo de nervoso e não tentou
nada... me respeitou. Nós ficamos
conversando... batendo papo... ouvindo
música... mais nada... Quando eu ia
embora, ele me ofereceu dinheiro. Eu só
aceitei, porque fiquei com vergonha de não
aceitar... parecia que aquilo fazia parte...
era natural... não é engraçado? Depois, eu
voltei lá... várias vezes... Pra falar a
verdade, era muito mais por mim mesmo,
que por ele, que eu sempre voltava. O que
eu não sabia, era que tudo ia terminar em
tragédia... ele era um cara legal... não
merecia ter morrido daquela maneira
estúpida! (Blecaute. Volta a luz geral no
apartamento. Continuidade de cena).

RENGUITEM - Meu nome é Luiz Carlos Soares, e o seu?


(Silêncio) Tudo bem... não precisa
responder... era só pra quebrar o gelo. (Vê o
aparelho de som) E esse som aí? Vamos
curtir um barato? (Liga o aparelho em
altíssimo volume) É isso aí, maninho... o
maior barato, não é? (O outro desliga o
som) Eh... que é isso? Puta repressão! Cara,
alguma coisa vai ter que acontecer aqui,
entre nós dois, não vai? Pois é... eu só estou
procurando uma maneira de começar... de
quebrar o gelo, de partir pro crime... assim,
a seco, não vai dar não... Você está com
medo do quê? De acordar os vizinhos? Pau
na bunda deles! Mas tudo bem... é o senhor
quem manda, não é? É o senhor quem está
entrando com a grana... Então, vamos
curtir o silêncio... psiu.... psiu... (Vai tirando
a roupa, até ficar só de cuecas) Eu fico
aqui, no centro da sala, de braços cruzados,
peladão... só esperando as ordens do
patrão... quando o senhor resolver
começar... (O outro aproxima-se e é repelido
com violência física) Furado, malandro...
Furado! Comigo não. Comigo o senhor caiu
do cavalo... essa sua regra, pode servir
para os michezinhos de merda que transam
com você... pra mim, se servir eu uso... se
não servir, amasso e, ó... jogo no lixo! E tem
mais: aí, ó... seguinte... encheu, torrou! Essa
baboseira já deu no saco! Acabou a
brincadeira. Seguinte: pode ir tratando de
passar a grana que você tem na carteira...
toda a grana... (O outro tenta reagir e leva
um tranco) E não tente nenhuma besteira...
pode dar azar... Vamos nessa, meu irmão...
eu preciso dessa grana muito mais que
você... Se você quiser, eu posso abrir essa
janela, aprontar o maior berreiro, o maior
escândalo, um auê dos infernos, acordar os
vizinhos e o caralho... e sujar a tua barra,
pro resto da vida. Eu não tenho porra
nenhuma a perder. Será que o senhor pode
dizer o mesmo? Gente como o senhor, dá
pra conhecer no cheiro... gostam de fazer a
coisa, mas tem que ser na maior
enrustição, na maior moita... conheço o
tipo. Pra cima de mim, não vai. Eu estou
cansado de saber... se pintar escândalo na
jogada, o senhor está fodido! (Nesse
momento toca o telefone. É Serginho, quem
está ligando, e é mostrado em cena
paralela) Só mais uma coisinha, antes de
atender... eu sou "de menor", lembra?
Dezessete anos... e não escondi isso de
ninguém... no carro, quando você
perguntou a minha idade eu disse...
dezessete anos. Malandro, quando tem
menor na jogada, Deus me livre! Aquelas
coisas de processo, de corrupção... eu não
entendo nada não, mas estou sabendo que a
lei é foda... a coisa fede pra caralho! Agora,
por favor... quantos cruzeiros o senhor
tinha mesmo na carteira? (Balanço de luz
entre o apartamento e o espaço de
Serginho).

SERGINHO - Eu já falei tudo o que sabia. Quando eu


entrei no apartamento, ele já estava no
chão... já estava morto. Não... ele estava
sozinho... eu não vi ninguém saindo de lá,
juro! Eu não sei como é que eu vou fazer
pra provar isso para vocês... é a minha
palavra contra a palavra do mundo, não
é? Eu não tenho porra nenhuma a perder...
se eu soubesse de alguma coisa já teria
contado. Por que é que agora vocês me
olham desse jeito? Eu transava com ele...
transava sim, e daí? A senhora Assistente
está decepcionada? Ah... o senhor psicólogo
também? Olha, eu sinto muito... mas eu
também estou decepcionado... Só que eu não
tenho vergonha de ter recebido dinheiro
dele... ele sabia que a gente não transava
por grana... No fundo, ele ficou meu amigo
e queria me ajudar... o dinheiro que ele me
dava, não fazia falta pra ele... E agora? Eu
estou outra vez nas mãos de vocês... pra
falar a verdade, eu acho que sempre
estive... Mas um dia eu vou ter que sair
daqui... aí vocês vão ver... eu vou entregar
todo mundo... vou contar tudo lá fora, tudo
o que se passa aqui dentro desses muros.
Nem que isso seja a última coisa que eu
faço na vida... será como se eu tivesse
nascido só pra isso. Eu sou a prova de que
vocês nunca se importaram comigo... nem
comigo, nem com nenhum outro, desses
meninos... Mas agora eu conheço de perto o
método de vocês... para não usá-lo!
(Blecaute. Luz geral no apartamento.
Seqüência da cena de Gracinha).

GRACINHA (Pulando da cama, onde estava com o


outro, puta da vida) - Mas está pensando o
quê? Mas está pensando o quê? Querendo
dar uma de machão, pra cima de mim, é?
Eu sou travesti sim, bicha, e tenho muito
orgulho da minha profissão... mas está
pensando o quê? Eu sou uma artista, cara,
isso sim. Comigo o buraco é mais em cima...
qual é, cara? Eu não sou nenhum desses
viadinhos de luxo com quem você está
acostumado a trepar... comigo é no toma lá,
dá cá... um pra mim, um pra você... Se você
estava a fim de mulher, por que não
procurou uma mulher de verdade, com
racha e tudo? Estava assim, cheio de
putinhas loucas pra trepar, na porta da
boate. Vejam só... eu estava no maior
papo... na maior consideração... e você me
apronta uma dessa? O que é que você foi
fazer lá, hein? Procurar emoções fortes?
Pois é... encontrou! Ah... até que você deu
sorte... Ah, se fosse a Glorinha Camburão...
você estava fodido... ela te cortava esse
pinto com a navalha... Só porque a gente
gosta de um salto alto, de uma roupa
colorida, de um salário mínimo de
purpurina... de um Peruzinho de vez em
quando... mas quem não gosta? (Vai
perdendo a raiva) Cara, já é uma barra
pra mim, me assumir... segurar a minha
cabeça... Você, não... você está aqui no seu
apartamento, com esse conforto todo... até
pagando companhia... eu não... eu moro
mal e porcamente num quartinho furreca,
lá no cu do mundo... durmo com mais três
irmãos. Levo a minha vida na maior
contra-mão... até os meus documentos são
falsos pra eu poder trabalhar... E eu pensei
que você fosse um tipo legal. Você é muito
complicado para o meu gosto! Olha, quer
saber de uma coisa? Não vai ter show hoje
não... vou me arrumar e vou embora. Não
vai ter show... só deu merda hoje! (Ao
espelho ela se arruma. Coloca o vestido. É o
seu único momento de grande reflexão) Eu
fico horas, no espelho da boate, antes de
começar o show. Eu morro de medo de ficar
igual àquelas bichas velhas, que tomam
conta dos banheiros da boate, que se
defendem nas saunas vagabundas
implorando pelo amor de Deus, pra chupar
o pau de alguém... Viado bem que podia
não envelhecer... Mas que pretensão, não é?
Por que seria diferente comigo? Tá na
cara... o caminho é um só... Eu não tenho
nada de meu... só minhas roupas, minhas
bijuterias, essas besteiras... a gente não
pensa no futuro... Tinha ele, né? Mas deu
no que deu... (No auge da crise) Eu sou
bonito, não sou? Tenho o corpo bonito,
firme, duro... tenho os dentes bonitos... como
os dentes dela... Mas com a vida que a
gente leva... a gente não se cuida... dorme
pouco, come mal... não se cuida direito...
uma dia tem que acabar desmoronando
mesmo. É isso aí, cara! (Está maquilada e
vestida) Era assim que você me queria...
vestido de mulher? (Fica apenas um foco de
luz de efeito sobre ela, que vive o show que
executa na boate, imitando e dublando a
Gal Costa) "Meu nome é Gal / E desejo me
corresponder com um rapaz que seja o tal /
Meu nome é Gal / E não faz mal / Que ele
não seja branco / Não tenha cultura / De
qualquer altura / Eu amo igual / Meu
nome é Gal. (O show é interrompido
bruscamente. Volta a luz geral - é como se
ela acordasse de um sonho) Meu nome...
meu nome é Luiz Carlos Soares... Gosto da
vida, quero ser alegre... pernas bonitas,
curvas perfeitas... promessa de noites
eternas... quem vai querer? Meu corpo,
meus sonhos, meus dezesseis anos... alguém
vai levar? Alguém nesse mundo há de
querer ficar comigo? (Recompondo-se)
Vamos? Agora eu topo! (Volta a luz de
efeito e pelo próprio sincronismo da
gravação, os agudos da cantora podem ser
confundidos com gritos trágicos, enquanto
Gracinha se debate. Som e luz saem em
resistência. Após o blecaute, volta a luz
geral, no apartamento. Seqüência da cena
de Renguitem).

RENGUITEM - Aí... ó... nessas miudinhas eu não vou


nem tocar... de repente você não tem
dinheiro nem pra tomar o café amanhã
cedo... Confere aí... só apanhei a grana.
Documentos, essas merdas, não pus a mão
em mais porra nenhuma. (Devolve a
carteira) Desculpa, amigo... mas estou
sentindo que acabei de foder com a sua
noite! (Guarda o dinheiro numa das meias e
explica) Medida de segurança... não está
dando pra arriscar. A cidade está assim, de
assaltante... sair com essa grana toda a
essa hora, é a maior besteira... Mas você
deve estar puta da vida comigo! Mas fazer
o quê, porra! Eu só estou defendendo as
minhas partes. Porra, cara... eu mal sei ler
e rabiscar o meu nome... Você queria que
eu fosse procurar emprego num escritório?
Desculpa, vai... não fica aí, com essa cara...
eu entendo... O sujeito sai pra rua, o que já
é uma barra. Depois, escolhe, escolhe, cria
coragem, arrisca uma cantada... leva um
fora. Arrisca outra... lá no cu da
madrugada, quando está na maior euforia,
porque pintou um tremendo garotão...
pinta essa zebra no meio do caminho...
puta sacanagem! E eu até que estava indo
com a sua cara... Mas quem sai na chuva
tem mais é que se molhar. (As frases
seguintes podem ser divididas entre o
elenco de apoio, e ditas de diferentes pontos
do palco, que não o apartamento. Quero
dizer: apenas as frases grifadas - que
depois, na seqüência, seriam repetidas, no
apartamento, por Renguitem)Tô na
batalha, irmãozinho... olha pra minha cara
e veja se eu tenho jeito de quem gosta de
viado... Não é meu departamento! Eu gosto
muito é de mulher, e tenho bronca de quem
não gosta. Maricona, pra mim... serve só
para descolar uma grana, um baseado,
esses lances. Na hora do vamos ver, eu pulo
fora! Não dá pra ficar nessa de transar
com homem! E vai me dizer que você
estava esperando que eu sentisse por você a
mesma coisa, o mesmo tesão, que você
estava sentindo por mim? Não tem o
menor sentido... puta ingenuidade! Aí,
cara... eu não estou querendo abusar da
situação, mas eu me amarrei no seu
relógio... sem sacanagem... eu estava até
sem jeito para falar... (Abre um canivete
automático) E agora? Como é que a gente
vai fazer? Puta situação chata! (O outro
entrega o relógio) Valeu, cara! Valeu
mesmo... a regra é essa: não marcar! Lá na
rua, quando você encostou o carro, eu até
falei: puta máquina... se eu sair com essa
maricona, passo a mão nesse relógio...
viado não precisa de relóg... ih, cara,
desculpe.. eu não estava querendo ofender...
desculpe... eu não xingo mais... Aí, ó... não
sei se isso serve de consolo, mas eu prometo
ter todo carinho com ele... só vendo mesmo
se pintar uma grana legal... senão... vai
ficar de lembrança, pra uso pessoal, valeu?
(Blecaute. Balanço de luz entre o
apartamento e o espaço de Serginho - como
se houvesse sido massacrado, ele mal pode
parar em pé e fala com dificuldade).
SERGINHO - Eu nem ia visitá-lo naquela noite. Quando
pintou o feriado, no meio da semana... eu
resolvi lhe fazer uma surpresa. Liguei pra
ele... o telefone não atendeu... como eu tinha
a chave, eu fui pra lá... pensando que ele
ficaria contente em me ver. Ele me ajudou
muito, no tempo que eu estive com ele.
Quase todas as roupas que eu tenho, foi ele
quem comprou pra mim... Vocês não
acreditam, eu sei... mas ele fazia isso sem
nenhum interesse especial... ele podia muito
bem me pagar pra dormir com ele, e depois
me dar um pontapé na bunda e arrumar
outro morto de fome como eu. Qualquer
garoto aqui dentro daria graças a Deus, se
pintasse uma oportunidade assim... Eu não
sei o que eu vou fazer agora... vai ficar
tudo difícil, novamente... Se ele não tivesse
morrido... eu ia estudar, fazer supletivo...
Ele ia pagar o curso pra mim. E depois, me
arrumar um emprego decente... ele já tinha
até prometido. Lá fora, é muito difícil
sobreviver honestamente, e nós,
reintegrados, não temos a menor chance.
Eu não sei se ele recebia outros meninos
como eu... eu acho que não... Por favor... eu
não agüento mais... (Balanço de luz, para o
apartamento - Seqüência de Marcos - Estão
na cama, acabaram de transar).

MARCOS - Será que nunca ninguém se preocupou com


isso? Será que ninguém sabe? Somos uma
multidão de jovens, que transformamos
nossos corpos, nossos paus, nossas bundas,
em instrumentos de trabalho, dispostos a
executar qualquer tipo de coreografia
entre dois lençóis. Você, por exemplo... sai
com um menino, um michê... leva para um
hotel... trepa, goza, paga e vai embora.
Agora, o dia em que ele estiver numa pior,
como eu outro dia, que fiquei vomitando na
Cinelândia, ninguém olha pra ele... ele pode
até morrer ali que ninguém dá a menor
atenção. É por isso que eu penso no futuro.
Porque eu sei que a beleza do meu corpo
um dia vai pras picas e nesse dia eu não
quero estar numa de horror... seria como
perder a guerra. E não vamos falar em
dignidade, certo? Pra mim, falta de
dignidade é trabalhar oito horas por dia
em troca de salário mínimo e Fundo de
Garantia. Falta de dignidade é comer
marmita requentada. Se eu vou para um
hotelzinho mixuruca com uma maricona
pobre, que paga pouco, em menos de meia
hora a gente entra e sai, e eu já estou com
uma nota de mil no bolso... mas também
pinta muita gente da alta... todo mundo
imbuído do mais nobre sentimento de amor
e respeito à juventude, chamado
vulgarmente de pederastia! Sabe, eu não
vejo isso como uma coisa marginal. Não
estou dando desculpas pra me justificar... É
que não vejo mesmo. Eu não tenho porra
nenhuma a perder, cara... e se as pessoas
procuraram a gente e nos pagam, é porque
elas precisam da gente, não é? E se eles
precisam, a coisa tem que existir. Quanta
gente, às três da madrugada, não está em
casa na maior fossa, na maior solidão... aí
sai de carro, apanha um garotão numa
esquina, e durante algumas horas esquece
de tudo e é feliz? (O elenco de apoio
encaminha-se para a boca de cena,
parando em pose característica de
pegação) Eu acho que nós somos quase
como um serviço de utilidade pública. É
isso... como as ambulâncias, como um
banheiro público, como uma lata de lixo.
(Terminada a fala, Marcos une-se a eles, à
boca de cena. Coreografia e música.
Blecaute. Renguitem, que poderia estar na
coreografia, é o único que permanece em
cena, quando volta a luz geral no
apartamento).

RENGUITEM - Eu estava morrendo de medo de você


bancar o valente e partir pra reação. Só ia
dar merda! Eu não estava querendo cortar
você... eu fico mesmo muito puto se tenho
que cortar alguém... e ainda mais você... É
por isso que eu explico tudo direitinho... que
só estou a fim de grana, que não sou de
violência e que é bom não pagar pra ver...
Cara, eu estou por conta do diabo há muito
tempo. O que é que pode acontecer comigo?
Ir preso, dançar? Caguei! Ninguém pode
fazer nada comigo. Eu sou "de menor".
Quando muito, passo um tempo numa
Unidade qualquer, numa dessas pensões do
Governo e depois caio fora... parto pra
outra! O que mais? Levar um tiro na cara?
Quer saber de uma coisa? Eu ia achar
ótimo. Encerrava logo o assunto. Lá em
casa mesmo, todo mundo já cansou de dizer
que o meu fim vai ser triste. Só que eu estou
cagando pra eles... estou cansado de saber
que eu não presto... não presto, e daí? Você
vai querer me consertar? Estou vivendo do
jeito que eu gosto. Eu não nasci pra pegar
no duro. Pra lamber sapato de patrão... não
é comigo! O pai, achava que ia me
consertar na porrada... se porrada
consertasse alguém, eu era o sujeito mais
certinho do mundo. Mas agora eu quero
ver... o pai me porrava quando eu era
pequeno... eu cresci, né cara, e a coisa
muda de figura. Hoje, quando eu vou
visitar eles, e ainda levo uma grana, fica
todo mundo na maior euforia... o pai, a
mãe, todo mundo... Tudo bem... eu levo a
grana, mais pra mostrar que sou
independente e que estou me fazendo por
mim mesmo. Eu sei que no fundo, aqueles
dois estão é querendo me ver com a boca
cheia de formigas. Só que eu sou duro... esse
prazer aqueles putos não vão ter... praga
de mãe, não me pega! Depois, quem é que
teria coragem de me dar um tiro nos
cornos? A polícia? Qual é... polícia e
bandido, bandido e polícia, é tudo a mesma
coisa... O senhor? Brincou! Todo mundo é
cagão, malandro. Ninguém tem coragem
pra porra nenhuma... O senhor teria
coragem de me estourar a caveira, se
tivesse um revólver na mão? Teria? Se eu
te desse esta lâmina, cara... você teria
coragem de me cortar? Vamos ver? Pega
aí... pega aí, porra! (O outro pega o
canivete) Agora me corta... me corta,
porra... se defende! (Ele toma o canivete de
volta) Eu não disse? Um bostão como todo
mundo... como o pai, como a mãe... cheio de
medo... não tem coragem nem pra se
defender. Um bostão de merda! (Blecaute.
Volta luz geral. Gracinha vem saindo do
banheiro).

GRACINHA - Agora eu preciso ir mesmo embora. (O


outro está visivelmente envergonhado) Que
é isso, menino? Não fique assim não... você
não foi o primeiro, bobinho... muitos
senhores já me fizeram meter neles assim,
vestido de mulher... se a moda pega! É
sempre assim... a gente acaba sempre
comendo o cara que veio comer a gente. Eu
entendo um pouco dessas coisas... eu só não
sabia era que você estava tão numa pior.
Ah, eu vi que você tinha um gravador
ligado, o tempo inteiro... é alguma espécie
de tara ou é para o Globo Repórter? Você
deve ter uma porção de fitas como essa. Eu
não sei o que você pretende fazer com
elas... mas pode usar a minha... a nossa, da
maneira que bem entender... eu não estou
ligando nadinha. Eu estou indo, tá? Eu vou
assim mesmo... nessa hora não tem mais
ninguém na rua, e eu estou indo aqui
pertinho... mas tanto faz... eu acho que eu
já nasci para esta vida... está no sangue! (O
outro tenta fazer o pagamento. Ela rejeita,
muito falsamente) Que é isso... dinheiro?
Não... não precisa... eu não faço essas coisas
por dinheiro... por favor... não precisa
mesmo... (Quando ele desiste, ela avança no
dinheiro) Um dinheirinho sempre ajuda,
não é mesmo? Business is business! Deus lhe
pague! Me leva até a porta? Você sabe onde
eu trabalho, não sabe? Qualquer coisa, é só
pintar, a gente pode até sair novamente,
numa boa... se eu não estiver... bem... se eu
não estiver... pode ser que eu esteja
servindo o Exército... Eu hein, foda-se!
(Blecaute).

RENGUITEM - Uma vez eu tive que fazer um gringo...


num hotel na Frei Caneca... tive que cortar
o desgraçado inteirinho... e eu não tive
culpa... a besta não falava português... I
love, I love... sei lá que diabo de língua era
aquela... não deu diálogo. Eu querendo
argumentar e o gringo só no I love... I
love... Deixei o puto todo riscado, na
banheira... parecia um porcão, grunhindo e
se afogando no sangue... o puto queria
respirar, e cadê o ar? Só saindo sangue... Aí
eu me mandei pra Brasília... fiquei por lá
durante quase um ano. De vez em quando
eu dava uma olhada nos jornais... nada!
Parece que o pessoal do hotel não encontrou
o corpo até hoje. E já tem o quê? Quase dois
anos... abafaram tudo... não sei por que...
vai ver que o puto era importante. Sabe o
que me deixa puto da vida? Eu fiquei sem
saber o nome do porcão. (Toca a campainha
da porta. Sobressaltado) Quem é? (Toca
novamente) Cara, quem é esse puto que está
aí? Tem alguém sabendo que eu subi com
você? (Toca novamente, mais insistente
agora) Cara, se você me aprontou uma
armadilha, puta que o pariu! Vai lá... vai lá
ver quem é... vai... (O outro hesita um
pouco e acaba indo atender a porta,
quando o menino, apavorado, lança-se num
vôo, sobre ele, estrangulando-o com o cinto
que tinha nas mãos. Na seqüência,
Serginho abre a porta e quando vê o corpo
caído, corre para ele, desesperado.
Renguitem aproveita esse momento para
fugir sem ser percebido. Serginho tem o
corpo em seu colo. Sirenes de polícia. Luz
vermelha girando. Ele foi apanhado em
flagrante).
SERGINHO - Não fui eu... eu juro... eu sou inocente...
Quando eu cheguei aqui, ele já estava
morto! (Blecaute. O último bloco de Marcos.
A história já terminou. Ele está sozinho no
apartamento e é um pouco como porta-voz
de todos os garotos que passaram por ali,
que ele fala. Na ausência do dono do
apartamento, ele fala com o público e com
os outros garotos, que vão voltando ao
palco, um a um, em falas pré-
determinadas. Entrando por últimos,
Renguitem, Serginho e Gracinha).

MARCOS - Michês, é assim que vocês nos chamam, não


é? Eu só sei que agora não me falta uma
boa refeição, uma grana no bolso... e isso
me parece bem melhor que dormir num
banco de praça ou sair assaltando por aí, à
mão armada, como é a saída de muita
gente que eu conheço. Agora eu pergunto: o
que isso tudo mudou em mim? Eu continuo
sentado naquela cadeira número onze,
esperando que o meu ônibus parta da
rodoviária... o pedido de Eduardo, ainda
me bate nos ouvidos... e eu ainda estou
partindo, à procura do meu destino...
As pessoas que cruzaram comigo, e foram
tantas, não me acrescentaram
absolutamente nada. De verdade, nós
sempre estivemos sozinhos... Cada boca que
a gente beija, é sempre a boca da gente
mesmo... e sempre, quando eu fodia alguém
era a mim mesmo que eu estava fodendo!
Nunca, mas nunca mesmo, alguém trepou
a parte verdadeiramente trepável de nós. É
isso... a gente trepa esses homens, por
profissão! Mas outro dia eu volto aqui... aí,
vou inventar uma história do caralho, pra
te deixar bem fissurado. Uma história bem
sórdida e sacana, para compensar essa de
hoje, tá legal? Fica combinado assim!
Agora... vamos ao que interessa? Nisso, eu
garanto que sou bem melhor do que em
contar histórias... Vamos nessa? Desligue
esse gravador e guarde essa fita com
cuidado... amanhã, você pode mandá-la
para os jornais, para as rádios, para a
televisão... torná-la pública, para que todo
mundo saiba. Todas as mães, os pais, o filho
mais velho, os vizinhos, o padre, a polícia...
para que todos saibam... para que mais
tarde, ninguém alegue ignorância!

FIM

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