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Para

meu pai,
pelo seu aniversário especial.
E para minha mãe,
que me ensinou a ler.
Prólogo
O ZODÍACO PODE ESPERAR

Tem dias que você sente na pele. Você acorda e tem certeza de que nada vai dar certo, de que seria
melhor ficar na cama, virar a cara para a parede e puxar o edredom até cobrir a cabeça.
Se fosse um filme, ao fundo se ouviria minha voz dizendo que não quero me levantar e que
prefiro pegar debaixo da cama a caixa em que escrevi: KIT DE SOBREVIVÊNCIA .
No meu kit de sobrevivência, além de uma foto do abdômen do Hugh Jackman, jujubas e um
saquinho de milho pronto para virar pipoca, estão aqueles filmes, ainda rigorosamente em VHS, que
não deveriam existir na videoteca da apaixonada por cinema que digo ser... Na estante da sala,
mostro minhas coleções do triplo K, que não corresponde a Ku Klux Klan, mas a Kubrick,
Kiarostami e Kusturica, porém embaixo da cama escondo filmes românticos como Um lugar
chamado Notting Hill, Dirty Dancing — Ritmo quente, Uma linda mulher e Ghost — Do outro lado da
vida.
É verdade. Quando tudo dá errado, eu me proporciono uma overdose de filmes melosos. Por que
justamente esses filmes? E logo comédias românticas dos anos 1980 e 1990? Porque sou uma eterna
garotinha, e essas histórias, para mim, evocam o passado, assim como as madeleines de Proust.
Desde as primeiras cenas, me sinto acolhida no mundo tranquilo e seguro da minha infância. Eu
penso que a vida faz sentido e que, mesmo quando tudo parece andar mal, um final feliz está para
chegar, na próxima esquina, no último minuto, pouco antes dos créditos finais.
Hoje é um desses dias. Sei disso assim que abro os olhos ao toque do despertador. Estou tentada.
Muito tentada. Mas, obviamente, os dias de kit de sobrevivência tendem a acontecer às segundas-
feiras, quando você tem uma reunião no trabalho cuja importância só se compara à de uma
conferência de cúpula da ONU.
E olha que eu sabia desde ontem à noite que injetar na veia Brilho eterno de uma mente sem
lembranças era má ideia. Ainda mais quando decidi regar o filme e as minhas dores com a garrafa
de champanhe Louis Roederer comprada para comemorar o aniversário de namoro que, no fim das
contas, nunca aconteceu.
Na vida, também existem momentos em que você se prejudica conscientemente.
Por isso, quando afasto o edredom, só posso lamentar a noite que terminei em grande estilo:
abraçada ao vaso sanitário, chorando como uma idiota entre uma ânsia de vômito e outra.
Eu me arrasto até a cozinha, esperando que uma dose dupla de cafeína faça em mim um efeito
milagroso, me despertando da catatonia. Depois, por força do hábito, ligo o rádio para escutar as
notícias e ver se me sinto melhor com o fato de ter gente em uma situação pior do que eu.
Por fim, crio coragem e vou para o banheiro. Aimeudeus. No espelho vejo o retrato de Dorian
Gray, versão feminina de pijama. As olheiras me fazem parecer um panda de peruca.
Carlo, eu te odeio, penso, recolhendo os cacos de mim mesma e os restos da orgia de comida e lixo
espalhados pela casa.
Carlo é meu ex-noivo histórico. Cinco anos juntos. Sete meses, doze dias e quatro horas (mais
alguns poucos minutos) morando juntos, que acabaram já faz quase dois anos. Claro que em dois
anos uma mulher deve refazer a vida, e eu refiz. Ou pelo menos tentei, considerando a fileira de
homens errados que arrumei depois dele (o último, Giorgio, me deixou de lembrança justamente
aquele maldito champanhe). O problema é que, enquanto os outros iam e vinham, Carlo
permaneceu, embora a gente não esteja mais junto. Sempre pensei que nosso vínculo, no fundo,
fosse algo mais forte do que o amor comum, mais complexo, que transcendia a atração física. Como
em Harry e Sally — Feitos um para o outro.
Foi para o sofá de Carlo que eu corri sempre que algum desses homens errados partiu meu
coração nos últimos dois anos. E, do outro lado, era para mim que ele falava sobre suas conquistas
passageiras. E eu sempre soube que seriam mesmo isso: passageiras.
Só que Carlo vai se casar.
Daqui a sete meses.
E, ainda por cima, descobri pelo Facebook. Nem foi pelo Facebook dele, mas daquela cabeça-oca
da Cristina, que anunciou para todo mundo: Estou grávida, Carlo e eu vamos nos casar em setembro,
no dia do meu aniversário!
Fantástico. Parabéns. Muitas felicidades. E um belo foda-se do tamanho da catedral de Milão,
pode ser? E pensar que, no início, achei que éramos amigas.
Não que eu quisesse estar no lugar dela, mas eu é que deveria me casar primeiro, não o Carlo.
Não se diz sempre que “primeiro as damas”?
Então chegamos ao meu outro problema mais urgente: a idade. Não sou exatamente jovem, já
passei um pouco dos trinta. Queria muito conhecer alguém, me apaixonar de verdade (e ser
correspondida, quem sabe?), formar uma família. Em vez disso, sou tão azarada em romances que
corro o risco de ficar para titia.
... Os vários sindicatos envolvidos confirmaram a greve geral dos meios de transporte urbano, marcada para hoje. Lembramos que a
paralisação se dará das oito e quarenta e cinco desta manhã até as quinze horas e, depois, das dezoito horas até o final do
expediente...

Estou sentada no vaso, com a cabeça apoiada nos joelhos, quando escuto distraidamente a notícia
no rádio.
— Ai, caralho!
Isto, sim, me dá um súbito banho de adrenalina. A reunião começa às nove e meia e meu carro
vai ficar na oficina até quarta-feira.
Acorda, Alice! Como você pôde esquecer? Já são oito e quatro, se o relógio do banheiro estiver
certo. E, considerando que para ir daqui até o metrô eu levo cerca de dez minutos, não me restam
nem vinte para me transformar de Carrie — A estranha em uma versão low budget de Alice Bassi.
Adeus, banho. Adeus, chapinha. Adeus, esmalte. Ou melhor, o esmalte eu vou jogar na bolsa;
talvez tenha tempo de dar uma ajeitada nas unhas assim que chegar ao trabalho.
Aumento a velocidade e pesco no armário uma roupa básica, para não precisar me preocupar
muito com estilo.
Por fim, consigo fazer um tempo melhor que o do velocista Carl Lewis e em exatos dez minutos
estou fora de casa, xingando minha síndrome de desordem crônica, que me fez desistir de procurar
pelo guarda-chuva.
Sob um dilúvio, corro até o metrô, me misturando aos outros infelizes que esperam de cara fechada
a chegada do trem.
São oito e dezesseis, e alguém vocifera que não vai dar tempo de chegar o último trem antes da
greve. Recomeço a fazer mentalmente os cálculos. Daqui até a conexão que preciso fazer são quinze
minutos a pé... E já estou atravessando a rua em passo acelerado, tentando não ligar para a chuva
que molha meus cabelos e meu casaco.
— Mas que dia de merda! Que dia de merda! — resmungo ininterruptamente entredentes, como
um mantra.
Em resposta, parada em um sinal, recebo a reprovação de uma senhora octogenária armada com
um carrinho de supermercado:
— A senhorita não sabe que uma mulher não deve falar palavrões? Não quer arrumar um
marido?
Eu me concentro na cor do sinal, com uma resposta grosseira na ponta da língua. Mas a luz
verde acende logo e me poupo o fôlego, correndo dali.
Enquanto minhas meias de listras coloridas ficam encharcadas até o joelho, sinto falta do meu kit
de sobrevivência, especialmente de Ghost. Porque pelo menos nessa história o cara é um fantasma,
e não dá para pensar que, depois que o filme acabar, ele vai mudar de ideia, abandonar a Demi
Moore e engravidar outra mulher.
— Lamento, senhores, o último já passou — diz o homenzinho que está fechando a grade da
estação.
Não é possível. É um pesadelo. Para merecer um dia como este, devo ter sido uma pessoa
horrível em outra vida, como o cara que fritava criancinhas na Oktoberfest dos ogros, ou alguém
que destruía obras de arte em série, ou pelo menos o produtor daquela porcaria de Highlander II —
A ressurreição.
Eu me agarro à última esperança: a companhia de táxis na minha lista de contatos. E, depois de
mais quinze minutos embaixo d’água, chega meu anjo salvador: Wapiti 2847.
— Bom dia — digo ao motorista, não muito convencida.
O sujeito, que tem um rosto encovado e bronzeado ao estilo Crocodilo Dundee, me encara por um
instante e depois me aponta um jornal no banco de trás.
— Pode sentar em cima dele, senhora? Senão, vai molhar o banco todo.
Certo. Perfeito. Odeio quando me chamam de “senhora”. E agora tenho que embrulhar a bunda
em jornal, como se fosse um robalo comprado no mercado.
— Claro — respondo, amável. Só me falta agora começar a brigar com o Crocodilo Dundee,
correndo o risco de ser largada na rua, a quilômetros do escritório.
— Muito inconveniente essa greve, hein? — diz ele, dando a partida.
— Pois é.
— Ainda bem que existe o wapiti.
Percebo que ele me observa pelo retrovisor. Tem olhos azuis que, com o rosto anguloso e o colete
de couro sintético brilhante, realmente o deixam parecido com um old cowboy. No espelho está
pendurada uma espécie de apanhador de sonhos, com um monte de penas.
— O que é wapiti? — pergunto, então.
— Obrigado por perguntar. O wapiti é um alce canadense. Na medicina xamânica, é considerado
um animal sagrado. Simboliza o equilíbrio. As pessoas que têm o wapiti como espírito-guia podem
até não ser as primeiras a alcançar um objetivo, mas vão continuar tentando, sem se desgastar
totalmente com isso.
Bem, espero que este wapiti alcance meu objetivo, e antes das nove e quinze.
— A senhora parece estar precisando recuperar as energias, desculpe dizer, sabe? Na sua idade,
seria bom começar a se cuidar. Já experimentou a cristaloterapia?
Na minha idade? Na minha idade? Deus do céu, tire-me deste maldito alce canadense disfarçado
de Citroën! Quantos anos ele acha que eu tenho? Claro, não me maquiei, ainda estou com olheiras
de panda; meu cabelo, a esta altura, deve estar pior que o do Johnny Depp em Edward mãos de
tesoura... mas, caramba, não estou com um pé na cova!
Não estava, mas enfiar o pé em uma cova é o que faço minutos depois, quando Wapiti para em
frente à entrada da Rede Mi-A-Mi, a pequena emissora de tevê na qual ralo todo dia há dez anos.
Abro a porta do carro e meto o pé em uma cratera cheia d’água quase no mesmo movimento.
Perfeito.
— Quanto deu? — pergunto, contendo uma careta de raiva e nojo.
— São vinte e dois e sessenta e cinco. Fica por vinte e dois e cinquenta.
Entendeu o xamã?
Abro a carteira. E percebo que só tenho dez euros em espécie. Merda. E agora, quem vai dizer isso
a Wapiti-Crocodilo Dundee? Já o vejo me lapidando na cristaloterapia.
— Espera só um minutinho...
Quando ergo a cabeça, vejo Raffaella, minha colega, envolta em um impecável impermeável
Gucci, guarda-chuva e botas da mesma cor cinza-malva. Não tem um fio de cabelo fora do lugar.
Dela, as gotas se desviam com deferência.
— Andando de táxi? — comenta ela, piscando para mim. — Que mordomia...
— Espera, Raffa! Me empresta treze euros? Na hora do almoço eu devolvo, vou ao caixa
eletrônico.
— Claro, querida. Tem certeza de que só precisa disso? — diz ela, me estendendo uma nota de
vinte. — Tome, assim você pode pegar um chá quente na maquininha. Está com uma cara abatida.
Aceno para Dundee e entro com ela; nunca me senti tão feliz por marcar o cartão de ponto.
Consegui. São nove e dezessete. Tenho praticamente quinze minutos para tentar assumir um
aspecto humano.
— Ai, meu Deus, Alice, o que aconteceu com a sua saia? — Atrás de mim, Raffa está apontando o
dedo para o meu lado B.
E, levantando um pouco o blazer, vejo o motivo: tenho um artigo de jornal impresso na bunda.
Culpa de Wapiti-Dundee e sua ideia genial de me fazer me sentar, molhada, em um jornal.
Eu me despeço dela às pressas e desço desabalada pela escada que leva aos estúdios de gravação.
Ali fica o banheiro, mas, principalmente, os camarins onde guardamos algumas roupas de cena.
Espero encontrar algo do meu tamanho.
— Bom dia.
Tem um homem diante da maquininha de café, ao lado da direção. Ele se vira para mim e me
esquadrinha da cabeça aos pés.
— É nova aqui? Está perdida?
Nova aqui, eu? Ele, sim, parece ser novato. A julgar pela altura, pelos jeans, pelo olhar
magnético e pelos cabelos grisalhos, deve ser um candidato a ator em Dor de amor, a novela que
estamos gravando no estúdio Alpha. Talvez estejam fazendo testes esta manhã. Ele lembra um
pouco Richard Gere, só que mais alto, e acho que tem boas chances.
— Na verdade, faz tempo que não sou nova — respondo ao Richard Gere mais alto. — Mas ainda
estou em boas condições e com o seguro em dia — acrescento, brincando, porque quando estou
nervosa sempre falo alguma besteira. E, considerando o estado da minha cara, a mancha no meu
traseiro e o olhar penetrante dele, estou nervosa com certeza.
Depois, corro para os camarins, onde encontro duas saias. Uma é saia-lápis, mas de uma
inviável cor amarelo-canário; a outra é uma espécie de minissaia, escura e de pregas, que até me
cairia bem, se não fosse salpicada de paetês. Então posso escolher entre ficar parecida com o Piu-
Piu ou com a Britney Spears. Escolho Britney, já que os paetês escuros ainda chamam menos
atenção.
— Parabéns, a saia ficou ótima. Que programa você apresenta? — pergunta Richard Gere mais
alto, que termina o café e joga o copinho de plástico na lixeira.
— Ah, eu... eu não apresento nenhum... — respondo, abrindo um sorriso. Bom, se ele acha que
eu poderia aparecer na tevê, talvez não esteja tão horrorosa assim.
— Ah, sim, não achei mesmo que apresentasse, mas como pegou essa saia no guarda-roupa...
Enquanto ele fala, eu me afasto, acenando em despedida. Ainda preciso ir à reunião, que começa
daqui a menos de dez minutos.

Só tenho tempo de arrumar o cabelo, secando-o um pouco com papel, e de fazer uma maquiagem
minimamente aceitável. Agora me pareço um pouco menos com um panda e um pouco mais com
um porco-espinho. Viva a revolução dos bichos!
— Ah, Alice, você chegou, finalmente! — exclama Enrico, meu chefe. — Ligue para o bar e peça
uma garrafa térmica de café. Pegue também uns copinhos. E guardanapos.
Sem dúvida evoluí muito desde o emprego temporário como garçonete na pizzaria embaixo do
meu prédio.
Quando entro na sala, todos estão um pouco atrasados. Tenho tempo de arrumar os blocos de
anotação, as canetas e as jarras de água, bem como conferir se há canetas hidrográficas suficientes
para o quadro branco. Em seguida, como ainda estou sozinha, penso que talvez tenha um
minutinho para ajeitar aquela unha com esmalte descascado. Não vai levar muito tempo.
Estou justamente dando as últimas pinceladas quando Carlo entra e me olha, dando um sorriso
culpado. Meu Deus, ele não conseguiria disfarçar nem o roubo de um bombom. Finjo não perceber,
obviamente: o código de comportamento de uma mulher adulta, forte e independente diz que devo
parecer não me importar. Continuo passando o esmalte inclusive nas outras unhas, fitando as mãos
como se fosse Leonardo olhando a Mona Lisa.
Pelo canto do olho, vejo Carlo se sentar bem longe de mim. Bom. Sopro as unhas e balanço os
dedos suavemente. Só eu importo, o resto do mundo não existe.
Então escuto alguém pigarreando.
Levanto os olhos.
Todos chegaram. Raffa balança a cabeça e se aproxima de Enrico para dizer alguma coisa em seu
ouvido. Cristina toca o braço de Carlo, que está com a testa franzida e uma expressão meio triste. E,
em pé diante do quadro, encontram-se Nosso Senhor Presidentíssimo da rede e Richard Gere mais
alto, que pigarreia de novo.
— Bem, se a senhorita tiver acabado de fazer as unhas, eu diria que podemos começar,
presidente.
Fecho os olhos. Penso na fita de Dirty Dancing embaixo da minha cama. Ninguém coloca Baby no
canto. Então Baby se levanta, confiante, e mostra a todos quem é de verdade, embora seja feinha e
tenha um narigão. É a revanche das quase solteironas.
Eu, porém, fico petrificada, porque não há nenhum Patrick Swayze para me conduzir, me
estendendo a mão. Que, aliás, eu não poderia segurar, ou estragaria o esmalte.
No lugar do Patrick há aquele cara, que pensei ser um ator bonitinho, do tipo que se precisar
decorar mais de três frases já se sente o Robert De Niro em Taxi Driver. E ele não está mais sorrindo
do jeito fofo como me cumprimentou lá perto da maquininha de café. Seus olhos estão sérios e
estreitados enquanto me encara.
— Bem — diz o Presidentíssimo, atraindo a atenção de todos. — Como os senhores sabem, nossa
emissora é pequena. Uma pequena grande família com muita vontade de crescer. E agora chegou o
momento de fazer isso, de tentar dar o salto para nos tornarmos importantes. Isso significará um
esforço por parte de todos, porque não será fácil, dada a crise. Mas a mudança é necessária para
não sucumbirmos. Por isso, levando em conta a reformulação que queremos fazer na emissora, o sr.
David Nardi veio nos ajudar. Nos próximos meses, ele observará e avaliará o trabalho desenvolvido
na empresa, para depois nos dizer como e onde intervir. Onde mudar, ampliar... ou cortar...
Olho para Nardi como se o visse pela primeira vez. Ou melhor, tenho uma visão dele com capuz
negro e foice. Porque é isto que ele é: um cortador de cabeças, contratado pelo Presidentíssimo para
podar os funcionários.
E eu, entre a saia e as unhas, acabo de lhe dar a pior das minhas versões.
No fim da reunião, Raffa bate no meu ombro com ar de pena e cara de quem está dando a
extrema-unção a um moribundo.
— Não tem pressa para o dinheiro do táxi, eu tinha acabado de fazer um saque. Você me
conhece, sempre penso em tudo — diz ela, olhando para Nardi. Até pisca para ele.
Sinto vontade de vomitar. Sigo para a porta enquanto escuto Nardi dizer:
— Obviamente, as ideias dos senhores para o desenvolvimento da rede serão bem-aceitas. Quem
tiver em mente um programa ou algum novo formato interessante, mencione e avaliaremos.
Talvez um programa sobre como procurar um novo emprego: Contratado ou demitido? Dez anos
de experiência, um diploma em comunicação e outro em cinema jogados no lixo!

— Cuidado, isso aí tem germes.


Levanto a cabeça das mãos. Estou sentada no chão de um dos reservados do banheiro, o cotovelo
apoiado na tampa do vaso. Pareceu que esse era o melhor lugar para refletir sobre o futuro.
Um rapaz alto, loiro e com um brinco chamativo na orelha esquerda está diante de mim.
— O quê?
Ele sorri, se agachando ao meu lado e balançando a cabeça.
— Desculpe falar, meu bem, mas sua cara não está nada boa.
— Hoje não é meu dia. — Suspiro. — É um momento complicado. Nada dá certo! Nada!
Ele segura minha mão. Usa um anel com símbolos estranhos em seu dedo médio.
— Eu sei — responde, assentindo.
Eu o encaro, e é como se ele realmente soubesse. Tenho a impressão de que esse rapaz tem todas
as respostas. Como a fada-madrinha da Cinderela, só que é um homem com cabelo oxigenado
usando delineador e brinquinho.
Ele também me encara de modo gentil, e diz:
— Você é de Libra, não é?
ÁRIES

Sabe aqueles homens inflexíveis, aqueles peões grosseiros que nunca pedem sua opinião,
principalmente por serem incapazes de articular frases gramaticalmente complexas? Esse é o
homem de Áries. Um tipo tosco, que se impressiona com eventos como a descoberta do fogo e a
invenção da roda, mas geneticamente incapaz de coisas, como higiene básica ou gentileza, que
considera atos inconvenientes e pouco másculos.
Resumindo, Tarzan com certeza era ariano. E, se não quiserem ter que ir buscar seu homem no
alto de uma árvore, ou levá-lo para fazer as necessidades três vezes por dia, é melhor partir para o
próximo.
1. AFOGADOS NO MAR DE LIBRA





Foi assim que tudo começou. É o que se diz dos principais momentos da vida. Espera-se que
aconteçam quando estamos mais animadas. Depilada e usando desodorante, pelo menos. Mas
comigo sempre tem que ser diferente, e meu momento de virada acontece quando estou sentada no
reservado de um banheiro da empresa, com os cabelos ainda molhados e o rímel escorrendo pela
cara.
— Libra?
— É um signo do Zodíaco — explica ele.
— Eu sei o que é Libra — respondo, mas estou realmente surpresa porque ele acertou. Sou
mesmo libriana.
Ele se ergue sem tirar os olhos de mim e me estende a mão. Eu aceito, e seu toque é quente e
firme quando ele me puxa para voltar a ficar de pé, como uma mulher sapiens sapiens.
— Pois é, mas eu não acredito nisso, desculpe. Astrologia é para idiotas. Não estamos mais na
Idade Média.
Ele dá de ombros, depois me estende novamente a mão.
— Oi, meu nome é Tito.
— Que tipo de nome é Tito? — pergunto, apertando a mão dele. — O meu é Alice.
— É um nome artístico. Abreviação de Tiziano. Sou ator. E não se preocupe, a maioria das
pessoas não acredita em horóscopo, mas todo mundo lê.
Vou até a pia, pensando que ele tem razão. Eu mesma já fiz isso várias vezes.
Lavo o rosto e tento me olhar no espelho o mínimo possível, porque sei que pareço pronta para
atuar em um filme de terror.
— Sabe o que me deixa mais puta? — digo, tentando exibir pelo menos o esboço de um sorriso.
— Quando leio no meu horóscopo que estou passando por uma ótima fase: que tenho pelo menos
três estrelinhas no amor, nos negócios e na saúde, e em vez disso me sinto um lixo, acabei de levar
um pé na bunda e corro o risco de perder o emprego. Aí me dá vontade de pegar o telefone e ligar
para o sujeito que escreveu aquilo, xingar e dizer que vou meter um processo nele. Ou seja, quando
leio um ótimo horóscopo, mas minha vida está uma merda, me sinto excluída. Acho que todo
mundo do meu signo pegou o ônibus da sorte, e eu fiquei de fora.
Tito me encara, perplexo, depois sorri.
— Bom, mas agora você pegou o ônibus, meu bem. Ou melhor, um belo avião, classe executiva.
— Ele pisca e me oferece o braço. — Senhores passageiros, queiram afivelar o cinto. Quem lhes
fala é o comandante Tito. Decolaremos em poucos instantes.
Caminhamos até a porta.
— E sabe qual é seu primeiro golpe de sorte? Estou te convidando para o almoço. Preciso
comemorar: fui contratado para um papel em Dor de amor.
Sorrio para ele porque ainda sou capaz de me sentir feliz pelo sucesso dos outros apesar do
tsunami que arrasou minha vida.
— Aceito, assim você aproveita para me explicar o que fazia no banheiro feminino.
— Ahn, na verdade, este aqui é o masculino.
E, quando abro a porta, dou de cara com Carlo, que leva um susto ao me ver.
Ai, merda...
— A... Alice! — Ele coça a cabeça, seu sorriso virando uma careta. — Escute, eu... eu queria falar
com você.
Claro, ainda posso ficar feliz com o sucesso dos outros, mas não vamos exagerar. Sentir de perto
a felicidade de Carlo em ser pai é a última coisa de que preciso.
Olho para Tito esperando que ele jogue uma corda para me puxar daquela areia movediça na
qual me sinto atolada.
E o milagre acontece. Tito se comporta como uma fada-madrinha perfeita.
— Desculpe, mas estávamos indo almoçar... Uma reunião de trabalho — explica ele, com ar tão
profissional que quase acredito, e nem estranho muito que essa mentira cole apesar de estarmos
saindo do banheiro. Tito não é nada mal como ator.

— Você é magro de ruim, só pode.


A não ser que ele tenha ficado três dias preso em uma jaula, sem comida, a vontade com que
devorou todo o almoço bateu recorde de selvageria. Eu ainda estou enrolando com meu macarrão.
— Tenho um bom metabolismo e uma estrutura mercurial, como muitos geminianos. Sou magro
e agitado.
— Astrologia, de novo? Tudo bem, agora me explique como adivinhou que sou libriana.
Tito endireita a coluna e dá um soquinho no peito enquanto suprime um arroto.
— No momento, o céu não está em uma posição fácil para os librianos. Saturno vai ficar
retrógrado o mês inteiro. O sol entrou em Áries faz alguns dias. E na constelação de Libra há um
acúmulo de situações complicadas e estressantes, tanto do ponto de vista emocional, por causa de
Vênus em Quadratura Negativa com Júpiter, quanto do ponto de vista profissional, com a Oposição
de Plutão e o Trânsito Negativo de Urano.
Pisco, perplexa. Por um lado, não entendi nada, mas, por outro, filtrei tudo que ele disse,
resumindo em: tenho a síndrome do azar interplanetário.
— Ou seja, não posso fazer nada. Não é minha culpa... Não depende de mim. Não tenho saída.
Tito começa a rir, dando um tapinha em minha mão, com intimidade.
— Não, imagina. Além do mais, é só um período, os Trânsitos vão mudar logo, pode apostar.
Saber o que está acontecendo no plano astrológico pode te ajudar a prevenir alguns problemas. Por
exemplo, se você sabe que vai chover, o que faz? Leva um guarda-chuva.
Suspiro. Ele tem razão.
— Não quero parecer reclamona, mas as coisas não estavam muito melhores antes deste mês.
Claro que tive momentos felizes nos últimos dois anos, mas foi como estar em uma montanha-
russa: a vista é ótima quando não estou em uma queda em parafuso ou em looping.
Tito suspira também.
— A vida dos librianos não tem sido fácil. Culpa do Trânsito de Saturno pelo signo. Levou cerca
de dois anos. O que se pode fazer? É o planeta da dificuldade, da disciplina e das provações da vida.
Mas a boa notícia é que agora ele passou para Escorpião e, como é um planeta lento, não vai voltar
a orbitar Libra pelos próximos trinta anos.
— Azar deles, sorte minha.
— Alice...
Levanto a cabeça, olhando por cima do ombro de Tito, e vejo Carlo a poucos metros do bar do
restaurante. Ele ainda parece nervoso. Bom.
— O que foi? Não vê que estou conversando?
— Alice, por favor, eu sei que...
— Se sabe, então por que está me enchendo o saco? Não vê que estou ocupada? Por acaso eu
interrompo suas reuniões?
Tito também se vira por um instante, depois me encara de novo e ergue os olhos para o teto.
— É uma pena que ele não seja Escorpião — comento entredentes. Fazendo um cálculo
aproximado, o azar de Saturno vai levar pelo menos doze anos para chegar nele. Tempo demais
para o meu gosto. Preciso me informar se existe outro planeta mais rápido que possa atrapalhar a
vida dele, enquanto isso.
No entanto, já fico satisfeita em perceber que Carlo ficou roxo de vergonha.
Vejo-o se afastar e escuto o comentário de Tito sobre mim.
— Deve ser Marte Negativo no Meio do Céu. Deixa as pessoas muito agressivas e pouco
diplomáticas.
Faço um gesto com a mão, tentando minimizar a coisa.
— Ah, é só que ele é meu ex... Ou melhor, ele é o meu ex histórico. — Na verdade, contando todas
as péssimas relações que tive depois de Carlo, eu deveria dizer que ele é meu ex-ex-ex-ex-ex... Se é
que não me esqueci de ninguém. — Temos uma relação... bem complicada.
— Qual é o signo dele?
— Aquário.
Tito olha distraidamente o relógio. Ele disse que depois do almoço precisa procurar o pessoal do
ateliê para ver seu figurino.
— Aquário é o signo da liberdade e da experimentação. É difícil fazer alguém assim criar raízes.
Aquário ama o risco e a imprevisibilidade.
Bom, agora ele matou dois coelhos com uma cajadada só: o risco, evidentemente, ele correu, e as
raízes vai precisar criar à força, com um belo teste positivo de gravidez. Apesar de tudo, porém, me
sinto meio culpada pela maneira como o tratei. Ergo a cabeça, procurando-o perto do bar, mas ele
já deve ter saído. Posso realmente culpar Marte por ter sido grosseira daquele jeito?
— Entre Aquário e Libra existe de fato certa harmonia — continua Tito. — Mas, se o
entendimento não se fortalece no plano erótico, o aquariano tende a divagar. A boa notícia, porém,
é que pode haver uma relação de amizade leal e sincera.
Isso não é nenhuma novidade, na verdade. E sou invadida por uma forte sensação de melancolia.
Não é culpa de nenhum dos dois, nem de Carlo nem minha, que nossa relação tenha acabado. A
convivência deixou claro que não éramos feitos um para o outro. Estávamos sempre irritados,
embora a gente se gostasse. Em geral, tínhamos as mesmas paixões e objetivos, mas o modo como
queríamos alcançá-los era completamente diferente. Por exemplo: eu sou totalmente desorganizada,
e ele sempre foi um maníaco por etiquetas e queria arrumar tudo em ordem alfabética, dos DVDs ao
conteúdo dos armários da cozinha. Por isso, eu tinha que me lembrar de procurar os biscoitos perto
do bicarbonato, e não onde guardávamos as torradas ou o sal.
— Viu? Agora você já sabe que com os aquarianos as coisas provavelmente não terminarão bem.
Os librianos sofrem com signos que não sabem lidar com eles ou que são rígidos demais, como
Capricórnio, Virgem ou Touro. Para você, seria bom um Leão, um macho alfa, dominante, mas
capaz de prestar atenção de verdade à companheira. Ou um Sagitário aventureiro. Com Escorpião,
deixa eu pensar...
— Ah, não! Escorpião eu não quero — digo, me levantando. — Já tive problemas suficientes,
agora Saturno que se divirta por lá. No máximo, penso de novo a respeito daqui a dois anos, quando
ele passar o problema adiante!
Quando deixo Tito no ateliê de costura, trocamos números de telefone, e ele promete que vai
entrar em contato logo. Ao nos despedirmos, ele me dá dois beijinhos e sussurra que foi o Trígono
de sorte de Vênus que fez com que a gente se encontrasse.
Por um instante fico tentada a acrescentá-lo ao grupo “Completamente Malucos” (bastante lotado
no meu telefone), mas resolvo lhe dar uma chance e ver o que acontece.
2. O RECOMEÇO DE ÁRIES





Por mais cética que eu seja a respeito da teoria astrológica de Tito, não posso negar que a considero
fascinante. No fundo, no fundo, gosto dessas coisas. A ideia de que exista alguma predestinação,
algum esquema superior, faz com que eu me sinta menos perdida. Tempos atrás, por exemplo,
pensei em aderir ao Feng Shui. Mas não de leve, com uma almofada cor-de-rosa aqui, uma
cortininha verde ali. Cismei de reorganizar a casa toda.
Foi logo depois do casamento de Paola, minha melhor amiga.
Não morei sozinha o tempo todo, nos últimos anos. Sou sociável, e Paola foi a terceira e última
das minhas roomates. E, como as duas que vieram antes, Sara e Marta, ela se apaixonou e fez as
malas em menos de quatro meses.
Depois que ela se mudou, comecei a pensar que o meu apartamento era o agente catalisador de
forças metafísicas que estimulavam romances. Uma espécie de agência de casamento natural:
venha morar comigo e com certeza você logo vai se arranjar.
Claro que quero que as minhas amigas sejam felizes, mas seria ótimo que a coisa também
funcionasse para mim. E considerando que Sara, a primeira, saiu daqui para ir morar com um
cara; Marta, a segunda, se casou; e Paola, a terceira, teve até um filho, me pareceu que o poder
miraculoso do apartamento estava crescendo.
Daí o Feng Shui. Experimentei reorganizar a disposição dos móveis a fim de canalizar a energia
para mim. Até mudei de quarto, ocupando o que havia sido delas.
Nada; em mim a poção não fez efeito. Na verdade, piorei as coisas: ao me ver tão empolgada com
a ideia de casar, o homem que eu namorava na época mudou de ideia de repente sobre nossa
relação e terminou comigo.
Impulsivamente, arrumei tudo como era antes e usei o manual de Feng Shui para limpar as
vidraças. Pelo menos, posso dizer que me ajudou a deixar as coisas mais claras.
Não me entendam mal com tudo isso. Estou realmente feliz pelas minhas amigas, principalmente
por Paola. O fato de ela ter encontrado um homem como Giacomo e de os dois se amarem
loucamente me dá certo alívio. Me faz pensar que ainda existe neste mundo alguma esperança de
encontrar o amor verdadeiro.
E estou feliz porque vou me encontrar com ela hoje: com o bebê recém-nascido, temos menos
oportunidades para isso. Mas esta noite Giacomo se ofereceu para cuidar dele, e poderemos tomar
uns drinques e colocar em dia os assuntos desde a última vez em que nos vimos. Em quinze anos de
amizade, Paola e eu ficamos muito competentes em analisar as emoções uma da outra. Se existisse
uma Faculdade de Biópsia Emocional, seríamos as professoras honoris causa.
O primeiro drinque é todo dedicado ao parto (assunto do qual já falamos pra caramba, mas que,
espremendo, ainda rende alguma reflexão), às caretinhas de Sandro (com muitas demonstrações
ilustrativas) e à épica transformação de uma mulher em mãe, o que Paola entende como ter uma
extensão dela mesma em outra pessoa. Mas a filosofia não aguenta até a segunda rodada de álcool,
então passamos a assuntos mais prosaicos como sexo (coisa que nenhuma de nós anda fazendo, por
razões variadas), homens (os da minha vida, em teoria, mas não tenho nenhum), e por fim nossos
signos (o que é a soma dos três assuntos: astrologia aplicada ao sexo e, consequentemente, à
procura pelo homem certo).
— Bem, li em algum lugar que escorpianos são bem safados.
— O Tito disse que o que importa não é se o signo tem inclinação para romance, mas se é
compatível com o nosso. Pensando bem, acho que ele tem razão. É como dizer que o que conta é a
personalidade — explico, levantando o copo meio vazio (sou uma daquelas pessoas que sempre
veem o copo meio vazio). — Carlo, por exemplo. Ele é de Aquário. Com Libra, que seria eu, tem
alguma compatibilidade, mas só até certo ponto. Depois o aquariano se dispersa. E, realmente,
Carlo é um pouco distraído.
— Como assim? Você reclamava que ele era meticuloso demais.
— Sim, e é mesmo. Mas é disperso nas relações. Depois de mim, quantas teve? Ele perde o
interesse rápido. Também perdeu o interesse por mim. Não é um cara para passar a vida inteira.
Paola limpa a garganta.
— Mas Cristina está grávida... E eles vão se casar.
O copo meio vazio fica totalmente vazio depois de um longo gole.
— Pois é. Mas ele é disperso de qualquer jeito — afirmo, resoluta. Porque, afinal, não posso
pensar que Carlo tenha sido assim apenas comigo. Que eu seja a mulher com quem ele não queria
se casar, a mulher errada.
Paola não se aborrece e encerra o assunto dando de ombros.
— Bom, ele foi um pouco disperso com o próprio sêmen. Porque Carlo não parece ser do tipo que
quer virar pai assim, de uma hora para outra.
Caímos as duas na risada.
— Agora, falando sério, como você vai encarar esse novo problema no trabalho?
O novo problema no trabalho tem nome e sobrenome: David Nardi.
Suspiro e levanto a mão para chamar a garçonete. Preciso de um terceiro drinque para entrar
nesse assunto.
— Não sei. Minha ideia é voar baixo. Sabe aqueles documentários em que animaizinhos de olhos
arregalados tentam fugir do predador se disfarçando entre as folhas ou pedras? Estou pensando em
tentar me camuflar com o piso ou com a escrivaninha, para ele esquecer que eu existo.
Paola se inclina e segura minha mão bem na hora em que vou atacar o novo copo (dessa vez,
bem cheio).
— Por que, em vez disso, você não encara como uma grande oportunidade? Faz anos que te
escuto reclamar que nunca é valorizada. Faz anos que você voa baixo! Agora você cresceu, não é
mais um pintinho, está pronta para o grande salto.
Prefiro não comentar que um pintinho crescido é uma galinha que mais cedo ou mais tarde vai
acabar em alguma panela.
— Seria bom, mas...
— Seu problema é de autoestima! — Paola me encara com ar de analista. — Se você não acredita
em si mesma, para começo de conversa, como quer que outra pessoa acredite? A questão dos
homens, por exemplo: que tipo de companheiro você quer encontrar, se tudo que tem a oferecer é
carência? Você não quer um homem, quer uma muleta.
O problema com Paola é que ela tem uma mira infalível.
— Voltando a Nardi, o que você acha que eu devo fazer, então?
— Bom, com certeza não deve se esconder. Em vez disso, seja proativa e eficiente. Mostre a ele
quem você é. Você é muito mais inteligente do que a maioria das pessoas que trabalham lá.
Proativa e inteligente.
Quase escuto ao fundo a música-tema de Uma secretária de futuro: “Let the river run / let all the
dreamers wake the nation...” Eu me sinto como Melanie Griffith, disposta a lutar para manter o
emprego e ganhar um escritório com um janelão. E, enquanto isso, quem sabe, fisgar meu Harrison
Ford. Mas quem seria...? Nardi?
Aimeudeus.
— Com licença um instantinho. Preciso fazer xixi. — Eu me levanto para ir ao banheiro.
Os efeitos colaterais de três drinques são bexiga cheia e pensamentos decididamente distorcidos.
Lavo as mãos com água fria, e minhas ideias também parecem clarear um pouco. Que absurdo
pensar em Nardi (por um instante, um só, um mínimo instante!) como um possível candidato ao
papel de príncipe consorte! Será que estou sofrendo da síndrome de Estocolmo?
Quando volto para perto de Paola, por um instante imagino que estou vendo em dobro. Então me
dou conta de que tem alguém à mesa com ela.
— Oi, eu sou Luca.
Analisando: sexo masculino, branco. Idade: entre trinta e cinco e quarenta. Cabelos: castanho-
claros. Olhos: castanhos. Ombros: nada mal... E principalmente: mão esquerda sem anel.
— Prazer, Alice. — Olho para Paola. A mensagem é: então basta eu me afastar um instantinho e
já chega um homem em você?
— Luca é um colega do jornal — explica ela.
— Sim. Um colega bem surpreso de ver a mamãe aqui fazendo serão em um bar.
Dou uma risadinha e me sento entre eles.
— Fui eu que trouxe Paola para o mau caminho.
— Muito bem! — Dessa vez é ele quem me escaneia com o olhar. O resultado é um sorriso de
aprovação. — Nunca é bom perder a vida social. Não sejam como eu. Fiz de tudo pela minha
namorada: passeios românticos, viagens, jantares à luz de velas...
Namorada? Espere aí. Comprometido! Perigo. Sinal vermelho.
Minha expressão muda, e o olhar sedutor dá lugar ao olhar complacente de Vovó Donalda.
— E no final... BUM! Anna me deixou porque precisava de espaço.
— Ah... — falamos Paola e eu, em coro.
— Eu não sabia, lamento — diz Paola, me olhando de esguelha.
— Agora estou recuperando as amizades. Tentando curtir a vida.
Coitadinho, coitadinho! Deve ter sofrido muito, pensa a enfermeira Alice.
— Mas está muito bom assim. Eu só estava esperando alguns amigos para irmos dançar. — Luca
se levanta. — Espero te ver de novo, Alice. Vamos marcar alguma coisa com a Paola, se quiser.
Nós duas o observamos se afastar para ir ao encontro de três ou quatro caras perto do bar.
— Que pena, coitadinho — diz Paola. — Ele é muito simpático. E também trabalha pra caramba.
Finjo não ligar muito e termino meu drinque.
— E... você sabe qual é o signo dele?
Paola estreita os olhos e abre um meio sorriso.
— Áries, acho.
3. O DIA DE CÃO DE UMA LIBRIANA





Uma mulher ao volante é uma mulher no controle da própria vida. Embora os amassados na lataria
do meu carro não demonstrem isso. Mas, como sempre explico a quem me critica por não mandar
consertá-los, meu carro é um pouco a metáfora da minha alma: existem arranhões que não podem
ser apagados.
E, levando em conta que também nunca apliquei Botox, diria que estamos empatados.
Depois de uma semana, hoje o carro e eu nos reencontramos, e estou particularmente animada
ao ir para o trabalho.
O sol brilha alto no céu. A noite varreu todas as nuvens, fazendo Milão ficar com um ar de
primavera que me dá vontade de cantar.
Já estou perto da emissora, mas acho que dá tempo de uma canção, por isso começo a procurar o
rádio no porta-luvas. Há uma confusão de papéis, documentos do veículo, tíquetes de
estacionamento que nunca jogo fora... Onde foi parar a frente do rádio? Eu me abaixo e passo a
mão sob o assento.
O carro faz um zigue-zague pela pista.
Alguém buzina atrás de mim.
— Ei, calma, calma! — Levanto a mão para o condutor da moto que me ultrapassa e, em seguida,
para no sinal vermelho. — Pronto, viu? Essa pressa toda, e também teve que parar — murmuro,
alcançando-o.
Enquanto isso, finalmente encontro a frente do rádio, e, assim que a encaixo, começa a tocar
“Dancing Queen”, do ABBA . Justamente o que eu precisava, já que também quero me sentir uma
rainha do baile. Começo a cantar junto, batucando no volante e dançando sentada.
Quando me viro, o motociclista está olhando para mim. Na verdade, não vejo seu rosto, porque o
capacete está fechado, mas ele está virado para mim.
Meu vidro está abaixado, então imagino que ele me escutou cantando junto com o ABBA . Ops...
Mas hoje não pretendo me deixar abater facilmente. O que Paola disse? Confiança. Preciso ser
confiante e não me abalar com qualquer coisinha. Por isso, encaro-o com displicência, continuo a
cantar para ele e, assim que o sinal fica verde, pisco e arranco.
Começo a rir como uma louca e, nos últimos quilômetros, eu e a moto entramos numa espécie de
competição entre um sinal vermelho e outro.
No último semáforo, escuto o toque do celular, que anuncia a chegada de uma mensagem pelo
WhatsApp. Estou estacionando, a moto me ultrapassa definitivamente e eu lhe dou tchauzinho antes
de pegar o smartphone.
Ignoro as chamadas perdidas de Carlo, apagando os avisos sem prestar atenção.
Acima delas, porém, há outra mensagem. E dessa vez eu sorrio.
É de Tito.
A mensagem dele começa com “Bom dia, libriana!”.
Hoje vai ser um dia de altos e baixos. Você está agitada e confiante, graças ao Trígono de Vênus em Trânsito Positivo com Júpiter, mas
sua proatividade será posta à prova por Saturno e Mercúrio, que podem trazer revelações inesperadas capazes de diminuir um
pouco seu entusiasmo. Ou então surgirão trabalhos imprevistos, que vão exigir toda a sua paciência. Talvez embates com pessoas
que têm ideias opostas às suas. Nas questões do coração, a Quadratura de Vênus em Trânsito Negativo com Plutão pede prudência e
aponta possibilidades de um amor intenso e tempestuoso.

Após um emoticon sorridente, ele conclui: Tito chega à uma da tarde para maquiagem e cabelo.
Adora sanduíche de atum.
Quando tranco o carro, ainda estou sorrindo. Apenas quando me volto para o portão de entrada
percebo que a moto estacionou ali perto. O sujeito está desmontando.
Analiso a ideia de me esconder no bar ao lado até que ele vá embora. Mas, novamente, não quero
me esconder. Atravesso a rua, despreocupada, enquanto ele tira o capacete.
Onde estão os furacões como o de O mágico de Oz quando se precisa deles?
David Nardi tira as luvas de motociclista, vira-se para mim e me encara, sério.
— É perigoso se distrair do volante para procurar o rádio.
Imagine ficar cantando fazendo caretas para o homem que pode me demitir?
— Ahn... bom dia... — balbucio.
Com o cabelo arrepiado pelo capacete e o rosto um pouco afogueado, ele se parece ainda mais
com Richard Gere em uma das cenas quentes de Gigolô americano. E, apesar da minha recente
candidatura ao Oscar pelas cenas mais constrangedoras, minha pulsação sofre um tilt, como um
fliperama quando a bolinha atinge o máximo da pontuação. Quente. Frio. Frio. Quente.
Confiro todas as minhas funções básicas. O.k., não confio em mim mesma para dizer nada, mas
as pernas ainda funcionam. Portanto, adiante, Alice, vire-se e entre por aquela maldita porta!
— Mas você tem uma bela voz — completa David Nardi, atrás de mim.
Pisco e, quando me viro, ele abre um sorriso.
Suspiro e resolvo marcar o cartão de ponto.
Não tenho muito tempo para ficar remoendo minha performance. E menos ainda para dissecar o
efeito que Nardi (Nardi, o Cortador de Cabeças; Nardi, o Inimigo Público Número Um) exerceu
sobre mim com aquela jaqueta de couro e o ar desgrenhado de bad boy.
Assim que ponho os pés na redação, penso que Enrico, o responsável pelas produções e meu
superior direto, está fazendo um teste para participar de um filme sobre a caça aos ferozes ursos
grizzly. E que é provável que ele consiga o papel. Do urso.
— Como assim o estúdio não está pronto? — grita ele, e então faz um monólogo recheado de
xingamentos que poderia ser a abertura do enésimo episódio de O exorcista. — Vocês não tinham as
convocações? Onde é que está a Alice?
— Estou aqui!
Diante dele estão o diretor de fotografia e o diretor-geral de várias das nossas transmissões, bem
pequenininhos sob a gritaria de Urso Enrico.
Quando me veem, parecem aliviados, mas não me iludo: não sou a madre Teresa dos operadores
de tevê, sou apenas carne fresca. Enrico vai me dilacerar, e eles sairão correndo para os estúdios
para preparar o set, como Oompa-Loompas.
— Onde é que você estava? Tem ou não tem um horário de trabalho a cumprir?
É inútil dizer que são nove horas, e que às terças-feiras sempre começamos nesse horário. Em vez
disso, pergunto:
— O que houve? — Corajosa. Enérgica. Proativa.
— Luciano disse que os rapazes não prepararam o estúdio. Ninguém sabia que as convocações
precisavam ser feitas antes, e que esta semana temos que gravar uma edição a mais, porque, na
próxima, Marlin vai estar em Roma.
Fico surpresa. Sou eu que faço as convocações, mas com base nas informações que me passam. E
ninguém me falou dessa edição a mais.
— Enrico, você não me mandou nenhum e-mail a esse respeito.
Quando digo isso, ele fica roxo e, por um instante, tenho medo de que crie dentes afiados como os
de Drácula.
— Como assim, não mandei? Eu... Nós falamos sobre isso!
— Não! Você não me disse nada! Que droga!
Mas não tenho tempo de discutir com ele. Vou até minha escrivaninha e pego a pasta com todas
as páginas de produção de Bom dia, Milão, o programa que devemos gravar, e então corro para o
estúdio.
Do meio do corredor, os berros de Enrico parecem sirenes de ambulâncias, que se misturam aos
dos rapazes da direção, abafados pela voz de Marlin, vinda da sala de maquiagem.
— Duas edições e vocês ainda não estão prontos! Santa incompetência! — reclama ela, sob o
pincel da maquiadora.
Sequer entro para cumprimentá-la e rumo direto para o estúdio, onde o diretor de fotografia está
pendurado na escada, arrumando a instalação.
— Enche ela de luz e vai ficar ótimo — grito para ele. Marlin gosta de ser iluminada como Nossa
Senhora de Lourdes, diz que isso disfarça suas rugas.
Depois procuro o diretor do programa, Luciano. Juntos damos uma olhada na escaleta enquanto,
na salinha ao lado, os primeiros convidados já começam a se reunir.
— Vamos fazer as duas edições tranquilamente, Lu, sem escândalos, o.k.?
Luciano assente e me olha nos olhos.
— Logo hoje, Alice! — critica ele, baixinho, olhando por cima do meu ombro.
Eu me viro um instante e, no fim do corredor, vislumbro o Presidentíssimo recostado à porta da
sala de maquiagem, flertando com Marlin. David Nardi está um pouco atrás dele, colocando
moedinhas na máquina de bebidas.
— Eu sei, Luciano... Desculpa. Eu não sabia dessa edição extra. Enrico não me disse nada.
— Os rapazes estão bem nervosos com toda a história da renovação da rede e dos possíveis
cortes. Ainda por cima, esse papo de que os chefes querem ideias novas. Novos programas. Gente
nova. E nos pegam despreparados logo de cara! — reclama ele. Apenas balanço a cabeça.
Ideias novas! Sinto um calafrio só de pensar no que eles podem inventar.
— Dá para sair um café? — grita alguém da sala de espera, e eu volto a correr.
— Claro! — exclamo. Exibo um sorriso de propaganda de pasta de dente e vou até os convidados.
— Café, chá...
David Nardi se volta para mim e não posso evitar de pensar em uma fala de Uma secretária de
futuro, que oferece: “Café, chá... eu...”. Acrescento a terceira palavra só em pensamento quando o
olhar dele cruza com o meu.
Ele me encara por alguns instantes e depois sorri.
— Café, não, obrigado, mas eu gostaria de uma garrafa de água. A máquina engoliu meu
dinheiro.
Ação e reação, Alice. É bem simples.
Eu, porém, permaneço ali, abobalhada, enquanto os convidados fazem uma chuva de pedidos.
— Claro.
Após alguns segundos, me viro mecanicamente para a máquina. Não é a primeira vez que esta
porcaria enguiça. Mas já elaboramos um método quase infalível.
Chamo um colega que está passando por ali.
— Sergio, preciso da sacudida, por favor.
Sergio assente, enquanto Nardi vem ao nosso encontro.
— Posso ajudar?
— Segure a máquina pelo outro lado — responde Sergio, antes que eu possa intervir.
Os dois a inclinam para trás e eu permaneço imóvel, observando Nardi bancar o X-Man com a
máquina de bebidas.
— Alice! — Sergio me chama de volta à realidade, porque agora é a minha vez e, como fui eu que
solicitei a sacudida, não posso recuar.
Suspiro. E, sob o olhar do Cortador de Cabeças, balanço os quadris, golpeando a máquina com
força.
Imediatamente ela solta duas garrafinhas, que eu pego e repasso a Nardi.
— Pronto. Tome. — Sinto o pescoço queimar de vergonha, então me afasto às pressas, com a
desculpa dos cafés.
— Obrigado... pela sacudida... Alice. — Escuto Nardi dizer.
Ai, Senhor.
— E então? Ainda não estão prontos? — grita Enrico, que veio nos encontrar na direção. —
Alice, se não estivermos prontos em cinco minutos...
O que foi que deu nele?
Felizmente, tenho a habilidade de me transformar em uma mulher biônica, e no minuto número
três já estamos na vinheta musical. Em geral, a gente alivia o clima com brincadeiras e piadinhas
sobre Marlin, mas, com a presença de Nardi e do Presidentíssimo, hoje nada se fala na cabine de
direção. Não sou a única morrendo de medo de perder o emprego.
Provavelmente é por isso que Enrico também está tão nervoso.
— Hoje temos conosco no estúdio o sr. Paolo Claretti, dono de uma das maiores coleções de
discos do mundo. Os velhos LPs, lembram-se deles? Funcionavam em trinta e três rotações... Hoje
em dia, porém, existem os CDs, que tocam em quarenta e cinco rotações...
— COOORTA ! — Enrico bate a mão na parede com tanta força que ela treme.
No estúdio, alguns convidados soltam risadinhas, enquanto Marlin olha ao redor, atordoada.
— Por que paramos? — pergunta ela, levando o microfone pregado no decote até a boca,
fazendo-o chiar.
— Porque você é uma ignorante! — berra Enrico. — Foi por isso que paramos, droga! Já temos
pouco tempo, e Sua Senilidade nem sabe que os CDs não tocam à base de rotações! Pois agora eu vou
entrar e...
Corro até Enrico e o arrasto para fora da cabine. É verdade que os técnicos apelidaram Marlin de
“Sua Senilidade”... Bom, foi logo depois que ela fez a plástica nos seios, ano passado, mas em geral
ele evita usar esse apelido, e com certeza não deveria fazer isso na frente do Presidentíssimo, que
parece ser o mecenas dela.
— Quer se acalmar, por favor? — sibilo.
— Se você tivesse feito seu trabalho, eu estaria calmo! Estamos atrasados!
Respiro fundo e conto até três. Se ele tivesse me dito alguma coisa, eu teria feito o trabalho. Mas
não sou nenhuma adivinha, não é?
Melhor contar até cinco.
— Pode deixar, eu cuido disso — respondo, deixando o assunto de lado. — Mas não arrume
problemas, por favor.
Vou até o estúdio, onde digo a Marlin que devemos recomeçar a partir da apresentação do sr.
Claretti, e lhe explico em linhas gerais a diferença entre um LP e um CD.
Levamos mais cinco minutos para reativar as máquinas e conseguir dar continuidade à gravação
de Marlin de maneira crível.
Quando saio do estúdio, me apoio um instante na porta de ferro, fecho os olhos e suspiro. E não
estou nem na metade do dia.
Quando reabro os olhos, há duas pessoas me fitando. David Nardi, da porta, e Carlo, do fundo do
corredor. Carlo ergue a mão, me chamando, mas eu balanço a cabeça e vou para a cabine, quase
esbarrando em Nardi no caminho.
4. UM GEMINIANO PARA TODA OBRA





Quase não acredito que conseguimos gravar as duas edições.
Quando ouço a vinheta de encerramento, falta pouco para eu desmaiar na cadeira de tanto
alívio.
Eu queria dar uma esnobada vingativa em Enrico, mas, quando me viro, vejo-o atrás da porta de
vidro da central telefônica, falando animadamente ao celular.
Dou o sinal de “estúdio livre” e, após uma paradinha na cantina, vou até a sala de maquiagem de
Dor de amor levando dois grandes sanduíches de atum. Mas o sorriso estampado na minha cara
vacila quando vejo Tito com uma tonelada de bronzeador no rosto e pequenos óculos redondos.
— Que personagem é você? — pergunto, enquanto ele dá a primeira mordida no sanduíche,
tentando não arruinar a maquiagem.
— Xou Marchus Alvars... — balbucia ele, mastigando. — Marcus Alvarez de la Rosa. Primo de
Ferdinando Prandi. E ex da noiva dele. Namoramos na adolescência, quando ela passou férias em
Tenerife.
Balanço a cabeça. Criativos esses roteiristas, não? E a caracterização de Tito? Parece um
cruzamento entre Eduardo Palomo e Harry Potter. Tem até aplique no cabelo.
— E por que essa cicatriz na testa?
— Depois do namoro com Matilda, me perdi na vida e, uma noite, fui sequestrado. Todos
pensaram que eu tinha morrido. Os sujeitos me deram uma surra, bati com a cabeça e perdi a
memória. E agora... Tchan-tchan-tchan-tchan! Cá estou.
Resolvo nem perguntar como o primo do tal Ferdinando Prandi pode se chamar Marcus Alvarez
de la Rosa. Já tenho problemas suficientes com Bom dia, Milão e todo o resto.
— Você recebeu minha mensagem, então? — pergunta Tito, quando o pessoal termina de
cachear seu cabelo de um jeito que deixaria Shirley Temple com inveja.
— Sim... — respondo, meio distraída.
— E?
— Eu li... Mas hoje é um dia caótico e... — Viro-me para ele e arregalo os olhos.
Tito sorri e, com toda aquela maquiagem, o cabelo comprido e a cicatriz, seu ar de sabe-tudo é
meio inquietante.
Pego o celular no bolso para reler a mensagem de hoje de manhã.
O dia havia começado bem e, após a noite com Paola, eu queria muito mostrar do que era capaz.
E Tito me escrevera que, sim, eu estaria agitada e confiante, mas que depois Saturno e Mercúrio... A
mensagem falava de trabalhos imprevistos.
— Como você fez isso? — pergunto, fitando o visor.
— Eu já disse, é o seu horóscopo. A posição dos planetas no seu signo está clara.
Ainda não sei o que eu poderia ter feito para melhorar a situação. Mas espera...
— E o amor intenso e tempestuoso? — Estreito os olhos e me meto na frente dele, interrompendo
seu caminho. — Agora eu quero! Intenso e tempestuoso, como diz aqui. Vale o que está escrito! Algo
bem passional e tudo o mais. — Se ele só tiver acertado as coisas negativas, acho que vou começar
a gritar.
— Ah, não sei, tenha paciência, não sou uma agência de casamentos. Isso daí é o que diz o
Trânsito dos planetas.

Estamos passeando pelos corredores, fazendo hora até a primeira cena dele, quando avisto Carlo.
Agradeço mentalmente o caracterizador de Marcus Alvarez, principalmente pela juba leonina de
Tito, que permite que eu me esconda atrás dele como em uma moita.
— Você não vai poder evitá-lo para sempre, sabia?
Para sempre, não, claro... Mas ao menos até depois do casamento? Não, porque Cristina, em
nome de nossa antiga amizade, poderia pensar em me convidar para dama de honra e me garantir
um lugar na primeira fila para assistir ao seu triunfo.
Solto um muxoxo e enfio o celular no bolso.
E logo levo um susto, sentindo-o vibrar na minha coxa.
Retomo o aparelho e, além da mensagem de Tito, há outra, vinda de um número que não tenho
na lista.
Oi, aqui é Luca, colega de Paola. Nós nos conhecemos ontem à noite. Queria saber se você toparia tomar uns drinques uma noite
dessas.

Olho para Tito, incrédula como Luke Skywalker quando o Yoda faz objetos levitarem só com a força
do pensamento. Quando ele me dá um tapinha no ombro, quase espero que diga: “Que a Força
esteja com você.” Em vez disso, Tito dá um pulinho e grita como uma líder de torcida.
— Não me diga que é um HOMEM!
Quando eu faço que sim, ele começa a improvisar uma espécie de dancinha no meio do corredor.
— Sou ou não sou bom?
— Você é... fenomenal — respondo distraidamente.
Na minha cabeça, fogos de artifício estão explodindo, ou é a Terceira Guerra Mundial. Quero
dizer, estou meio confusa. Luca é bonitinho. E, a seu favor, tenho:
1) a palavra de Paola, que o definiu como trabalhador e simpático;
2) a mensagem, escrita toda corretamente, o que hoje em dia, com os K e os subjuntivos que todo
mundo usa, é algo a se considerar;
3) ... bem, ele pediu meu número de telefone e me convidou para sair! É ou não é um indicativo
de bom gosto?
Tito ainda está rebolando na minha frente quando digo:
— Acho que ele é de Áries.
Ele para de repente.
— O que foi? — Agora Tito está me encarando como se eu tivesse acabado de corrigir o número
ganhador da loteria.
— Não, nada, mas... Áries... enfim. Olha, depende de muitas coisas, né? — Ele puxa o telefone e
começa a digitar, a testa franzida.
Eu o observo, mas já estou pensando no que vou vestir para a noite com o colega de Paola. Faz
três meses que não saio com ninguém e estou nervosa como uma adolescente.
Amor intenso e tempestuoso: estou a caminho!
— É só que Áries é um signo tão impulsivo... Pode inclusive ser egoísta, às vezes. Inquieto, eu
diria. E você, como libriana, já teve muitas reviravoltas ultimamente...
— Mas é isso mesmo, não é? Intenso e tempestuoso. — É como deveria ser.
Tito assente.
— Realmente... — Ele suspira e segura meu rosto. — Estou me sentindo uma tia velha que fica
dando conselhos e, quando chega a hora de deixar você andar com as próprias pernas, tem medo de
que se machuque. Mas vou te acompanhar passo a passo, está bem?
Quase começo a chorar. A gente mal se conhece e ele já se preocupa comigo. Dou um abraço
apertado em Tito.
— Você é mesmo incrível, sabia? Todas as mulheres deveriam ter um Tito para guiá-las e dar
conselhos.
Só de ter um amigo como ele eu já me sinto mais segura. Protegida. E quando estou tão feliz, fico
muito generosa, então queria mesmo poder compartilhar as qualidades dele com o mundo inteiro.
— Você deveria ser clonado. Se todas as mulheres tivessem um amigo assim, tenho certeza de que
muito menos gente no mundo sofreria por amor.
Ele gargalha.
— Uma espécie de guru, hein? Bom, eu ficaria ótimo de turbante...
— Mais do que um guru, um guia... Um guia astrológico... para corações partidos.
TOURO

Se você sofreu um acidente terrível e não é mais capaz de se mexer ou de pensar, de falar ou
mesmo de decidir se é melhor respirar pela boca ou pelo nariz, tudo bem, neste caso — e só neste
caso — o Touro é o homem ideal. O taurino fala, decide, faz, sem ligar nem um pouco para o fato de
você estar ali, exigindo o direito de cuidar da própria vida. Aliás, adivinhe de que signo era Hitler.
5. LIBRIANA À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS





É oficial: não tenho nada para usar.
Metade do conteúdo do armário está embolada na cama, a outra metade espalhada pelo quarto,
dividida em montinhos. Nesse momento, minha casa parece um bazar para mendigos.
E não tenho a menor ideia do que vestir essa noite.
Seguindo o conselho de Tito, deixei passarem dez dias desde a primeira mensagem de Luca.
“Você não vai querer se render de cara, né, Alice? Não esqueça que o ariano é um caçador. Se não
sentir cheiro de desafio, não se diverte e perde o interesse. E você não quer que ele perca o
interesse, quer?”
Não, não quero que Luca perca o interesse. Portanto, embora minha agenda social tenha estado
vazia há várias noites, inventei quatro drinques, dois aniversários, um cinema, um jantar com meus
pais (o único compromisso de verdade, que tristeza) e até uma despedida de solteira (caso Cristina
realmente me convidasse, acho que teria preferido o Tratamento Ludovico de Laranja mecânica).
Mas Paola percebeu o que eu estava fazendo alguns dias atrás.
— Alô, Alice? Que história é essa de que hoje você vai ao aniversário da minha irmã? O que está
aprontando? Achei que você quisesse sair com Luca... Ele disse que você tem sempre algum
compromisso. Desde quando anda tão ocupada assim?
Tive que explicar a ela a história do ariano e o fato de eu não querer que Luca pense que estou
louca para sair com ele.
— O.k., mas agora chega — disse Paola, a certa altura do meu blá-blá-blá astrológico. — Além
do mais, com todo o respeito pelo seu amigo vidente, mas eu conheço o Luca. E ele não é assim. Ele
é fofo e até forte, sim, mas gentil. Ou seja, por que você não tenta ser mais espontânea?
Expliquei que Tito é astrólogo, e não o mago Merlin, e que sempre me ferrei sendo “espontânea”,
como ela chama.
Mas, por fim, cedi. Afinal, mais um ou dois dias não fariam muita diferença.
O tempo de espera, porém, não foi desperdiçado. Nesses dez dias entrei em uma rotina que faria
Demi Moore, em Até o limite da honra, parecer estar de férias nas Bahamas, em comparação.
Acordo às seis da manhã para fazer flexões acompanhando um velho vídeo de ginástica de Jane
Fonda. Minha mãe me devolveu essa fita há mais de um mês porque eles vão pintar a casa e estão
se livrando de tudo.
Tentando arduamente ficar com músculos firmes, fiz também a dieta depurativa dos monges
tibetanos. Isso significa que, nos últimos dez dias, tenho me alimentado de ervas, como uma cabra.
Mas emagreci um pouco, sim, e me sinto em paz comigo mesma.
Resumindo, estou malhada. Estou definida. Estou pronta.
Mas estou em crise porque não sei o que usar.
Provocante/elegante, ou casual/chique? Mulher sofisticada ou garota comum?
Sento na cama e escrevo um pedido de socorro a Tito.
Menos de um minuto depois, meu telefone toca e me agarro a ele como ao último colete salva-
vidas do Titanic.
— Alô!
— Oi, lindinha, e então, como andam os preparativos?
É Paola, que deve ter sentido as vibrações do meu desespero.
— Não podia estar pior. O que eu visto?
— Por que essa preocupação? Se arruma bonitinha, mas não exagera. Escolha alguma coisa que
te deixe confortável.
Isso. Apertando o telefone no ouvido, caminho entre as roupas espalhadas e pesco meu jeans
justinho. Com uma camiseta coladinha, fico razoavelmente bem. Nada de incrível, mas posso
aperfeiçoar a produção com acessórios.
O toque de uma mensagem chegando me dá um susto, e o smartphone escorrega da minha
orelha. Dessa vez é Tito.
Conquiste o cara com seu sex appeal. Salto alto e minissaia. O ariano é um carnívoro, e é bom ele ficar agitadinho diante do
banquete, mas demonstrando que você não está ansiosa em deixar que ele tenha um pedaço.

É verdade que usar jeans e camiseta sem decote não é grande coisa em matéria de sedução. Devolvo
essas roupas aos respectivos montinhos e vou garimpar ao redor.
— Ah, Paola, e se eu usasse aquele corpete mais sexy, tipo Moulin Rouge?
Na mesma hora envio a foto a Tito, que um nanossegundo depois me responde com o emoticon de
um polegar para cima e muitos pontos de exclamação.
— Está maluca? Isso é roupa para boate... Aliás, nem isso! Confesso que sempre achei meio
vulgar. De jeito nenhum! E você vai correr o risco de ter que ficar imóvel na cadeira, com medo de
um peito pular para fora com qualquer movimento.
Certo. Já vou ter muita coisa em que prestar atenção durante a noite. Descarto também o Moulin
Rouge.
Escrevo a Tito um lacônico: Não, não fica bem, dá trabalho demais...
E recomeço a procurar.
— Escute, Alice, Luca é um cara simples, tranquilo. Use uma minissaia, se quiser, mas você não
acha que deveria ressaltar sua personalidade, em vez dos seus peitos ou das suas pernas? Afinal,
quando ele te conheceu, você estava vestida normalmente, e ele se interessou do mesmo jeito.
Nervosa, me jogo na cama e encaro o teto, cogitando a ideia de mandar tudo para o espaço.
Enquanto Paola continua o sermão sobre a espontaneidade, leio outra mensagem de Tito.
O importante é fazê-lo suspirar. Áries é o signo dos instintos primitivos. Ele pode parecer um cara simples, mas na verdade é um
vulcão ativo. A mulher ideal para ele é a falsa inocente. Ele gosta de disputar o osso, como um cão, mas não é muito criativo, e é
você quem tem que sugerir como conseguir esse osso.

Eu me levanto de novo e começo a procurar como uma alucinada entre minhas coisas. Tentando
levar em conta as sugestões dos dois, quando examino meu reflexo no espelho estou usando: saia no
joelho com abertura lateral, camiseta sem decote, mas justíssima, e sapatos não muito altos. Não
dá: pareço a versão moderna de Mary Poppins. Tiro tudo e recomeço. Bota alta, minissaia, top.
Prontinha para o Puta Tour. Nada disso. Camiseta regata, calça bagging e sapatilha. O.k., quando
eu resolver ir a um bar lésbico, o visual é este.
Desabo na beira da cama, e o único pensamento vagamente positivo é que, com todo esse troca-
troca, estou queimando mais calorias do que nos exercícios que Jane Fonda me manda fazer todas
as manhãs.
A enésima mensagem de Tito tem gosto de golpe de misericórdia.
Já ia esquecendo: como animal primitivo que é, Áries ama cores fortes. Tipo vermelho, ou amarelo. E, se tratando de um signo de
fogo, são bem as cores dele mesmo. Espero ter ajudado.

Claro...
— Alice? Você está aí?
— Sim, Paola... — Quer dizer, sim, Paola, estou em alto-mar, mas obrigada, Paola.
— Quer que eu vá aí te ajudar?
— Não, imagina, agora vou escolher direito. — Aliás, só para achar um caminho entre as coisas
espalhadas, alcançar a porta e abrir para ela, eu precisaria de uns quinze minutos.
— O.k., então, vou deixar você em paz. Tchau, amiga. Divirta-se.
Coloco o telefone na cama e retomo a busca, decidida a não me deixar distrair mais. Só que, três
segundos depois, ele começa a tocar de novo.
É minha mãe.
Atendo, porque para minha mãe eu ainda sou uma adolescente e ela se preocupa quando perco
suas chamadas.
— Oi, mãe...
— Oi, querida, e aí?
Pronto, é o típico cumprimento de quando ela me liga só porque está entediada.
— Então, mãe, desculpa, mas estou de saída.
— Você nunca tem tempo quando eu ligo.
— Não é isso, desculpa... É que tenho um compromisso e ainda preciso me arrumar.
Por que falei isso? Do outro lado do aparelho, faz silêncio por diversos segundos.
— Com um homem? — pergunta ela, por fim.
Suspiro.
— Não... quero dizer, sim... mas é um amigo...
Ela também suspira.
— Guido, Alice vai sair com um homem esta noite!
— Mãe!
— Tudo bem, e o que você vai vestir? — pergunta ela em seguida. Tal mãe, tal filha.
— Ainda não sei, mãe. Estava justamente decidindo.
— Por que não dá uma passada aqui? Você sabe que estamos arrumando tudo em caixas para
esvaziar a casa, e encontrei aquela saia linda no seu armário, aquela de bolinhas, e a blusa com
gola de renda e botãozinho em forma de camélia. Lembra?
Deus, dai-me forças.
— Mãe, eu usava essa roupa quando tinha doze anos. — E já devia ter vergonha disso naquela
época. Provavelmente era por causa dessa saia de bolinhas e da blusa com gola de renda que eu era
socialmente excluída. Quem ia querer ser visto andando com alguém que parecia um bolo enfeitado
e com sarampo? — Desculpe, preciso mesmo desligar.
— Venha buscar suas coisas um dia destes, Alice! — grita minha mãe quando meu dedo está
praticamente em cima do telefone para desligar. — Na garagem não cabe mais nada, e preciso que
você leve sua tralha.
— Tudo bem, mãe. Tchau.
Quando o telefone toca de novo e leio no visor NÚMERO PRIVADO, penso que nunca vou conseguir
sair desta casa.
— Alô?
— Alice, é Carlo. Desculpa ocultar o número, mas preciso falar com você. Por favor.
Aconteceram muitas coisas ao mesmo tempo e eu não estou entendendo mais nada — diz ele de
uma vez, me soterrando em palavras. — Sei que você está chateada por causa de Cristina, do bebê...
Entendo que você esteja com ciúme... e nervosa... Nossa, você sempre foi insuportavelmente
nervosinha...
— Com ciúmes? NERVOSINHA ?!
— Está vendo só?
— Então, se eu sou tão insuportavelmente NERVOSINHA , o que você quer comigo? — grito,
praticamente estrangulando o celular.
— Que você entenda! E não me trate como se eu fosse um pário.
— Pária, o certo é pária, seu ignorante.
— Caramba, como você é chata quando banca a sabe-tudo. Por que ainda estou perdendo tempo
com você? Por acaso já se perguntou por que todo cara pula fora? Ou será que a culpa continua
sendo do acaso? Coitadinha, sempre conhecendo os caras errados. Talvez você é quem seja a pessoa
errada.
Ah, não.
— Agora chega! Não preciso dos sermões de um imbecil sem um pingo de sensibilidade. Não
temos mais nada para conversar. Até porque as coisas importantes você me informa pela internet,
não é? Vou esperar o anúncio da data do casamento no Facebook para escrever uma mensagem de
felicidades na sua página. Quanto ao resto, fique na sua e, principalmente, longe de mim.
Jogo o telefone nos travesseiros e o quarto inteiro começa a girar. Olho as pilhas de roupas
espalhadas e não consigo mais pensar: casual, elegante, cores fortes, sobriedade, simplicidade,
sensualidade, fascínio... Carlo e Cristina, Tito, o trabalho, Paola, os homens errados, eu errada... E
não consigo respirar. Meu coração está disparado na garganta. Será um ataque de pânico?
Graças aos céus, tenho calmantes no criado-mudo. Engulo um e me dou cinco minutos para ficar
deitada na cama. Respire, Alice. Respire.
Mas, um instante depois, o pesadelo recomeça.
— Que saco! — exclamo, pegando de novo o telefone.
Não, não se passou só “um instante”... foi quase uma hora.
— Ahn, oi, Alice. É o Luca. Queria avisar que estou aqui embaixo.
6. A LIBRIANA, O ARIANO, SUA MULHER E O AMANTE





Estou descendo pelo elevador e sinto o piso vibrar sob meus pés. Penso, apavorada, na possibilidade
de ficar presa ali dentro. Seria a cereja do bolo, considerando que é noite de sábado e sei lá quanto
tempo o socorro levaria para chegar. Mas consigo chegar incólume ao térreo e percebo que as
vibrações não vinham do elevador, mas das batidas de uma música cada vez mais próxima. Na
frente do meu prédio há um carro esportivo vermelho-fogo, e é dele que vem o som agora
ensurdecedor.
— Oi! — grito, abrindo a porta do veículo e praticamente tendo que me agachar no chão para
entrar.
— Ah, Alisss, boa noite, bem-vinda — diz Luca, pronunciando meu nome do jeito americano:
Alisssss.
Respondo com um “Oi, Luke” e começo a rir.
— Tudo bem? Eu já estava achando que você tinha mudado de ideia...
— Não, imagina, desculpa. Recebi uns telefonemas que me atrasaram.
— O quê? — grita ele. Com certeza, se ele baixasse um pouquinho o volume, a gente ia
conseguir se entender sem precisar usar a linguagem dos sinais.
— Lindo carro!
— Gostou? É o meu xodó. Comprei não faz nem um mês.
Enquanto dá marcha à ré, ele faz questão de me informar sobre as cilindradas, a velocidade que
alcança e até o som estéreo digno de uma boate, que ele, infelizmente, decidiu instalar no carro.
Escuto só metade das explicações, mas, como não entendo nada de carros, não faz muita diferença.
— Aonde vamos? — pergunto a certa altura.
— Ah, então. Um lugar muito louco. Na área de Porta Romana, claro. Fazem um Sbagliato que é
o máximo.
— É mesmo? Não gosto muito desse drinque, mas... A comida também é boa?
Em Milão, não se pode falar em bebidas se você não vai comer muito também.
Ele não responde, provavelmente ensurdecido pelo estrondo do carro e do rádio. Acima de todo o
ruído, Luca grita elogios para a programação que escolheu para nós.
De fato, ele me leva em um local refinado para se beber em Milão, com frequentadores
bronzeados mesmo nessa época do ano que usam as golas das camisas polo viradas para cima, ao
estilo da capa do Drácula. Luzes baixas, paredes de pedra aparente e fogueiras de quase dois metros
de altura, felizmente engaioladas por estruturas de metal. Muito coreográfico.
— Luca! Hey, brother! — Assim que entramos, um barman nos cumprimenta, apertando a mão
de Luca como um rapper. — Faz tempo que você não aparece. Como vai Anna?
Dou um passo à frente, esperando que Luca me apresente. Mas ele murmura alguma coisa que
não compreendo. Aliás, entre o carro e esse lugar, não há um decibel de diferença.
— O que vocês vão querer?
Estendo a mão para o cardápio enquanto Luca diz:
— Dois Sbagliati. Como só você sabe fazer, brother!
Ele provavelmente não me ouviu dizer que não gosto desse drinque, mas agora seria indelicado
repetir. Sorrio e me volto para o bufê.
— Então você e Paola se conheceram no jornal — digo, quando ficamos sozinhos. Ele, eu e a
batida da caixa de som acima de nossas cabeças.
Luca sorri e começa a falar do trabalho. Dos colegas e de Paola.
— Tenho muita admiração por ela. Paola é competente demais para ser mulher. — Eu gostaria
de pedir um esclarecimento sobre essa última observação, mas ele já entrou no discurso sobre
sonhos para o futuro. — Porque, olha, quando fui trabalhar lá, vender espaços publicitários não era
o que eu queria. Sou um jornalista, e digo mais, um repórter investigativo. Quero percorrer o
mundo e viver ao máximo.
O drinque me deixa enjoada, mas a história dele sobre a escalada que fez na Malásia não é tão
ruim. E também a experiência de mergulho nas Filipinas. E a trilha no Quênia. O rafting no
Colorado. O caiaque no Equador. E a asa-delta no Zimbábue...
— Podíamos pedir alguma coisa para comer, o que acha? — pergunto, os ouvidos zumbindo, não
sei se pelo som de fundo ou por todas aquelas informações sobre esportes radicais praticados nos
lugares mais exóticos do planeta.
Ao me aproximar do bufê, sinto o celular vibrar. Mensagem de Tito.
E então? Como está indo? Ele consegue tirar os olhos do seu decote, ou já caiu de quatro?

Acabei tentando fazer um mix, para agradar a gregos e troianos. Estou usando um vestidinho de
veludo vermelho (cor forte que lembra o fogo de Áries, como disse Tito), soltinho nos quadris para
poder me mover com naturalidade (como sugeriu Paola). Mas, horrorizada, percebo que a pressa
me fez errar bem feio nos sapatos. Não é que não combinem com o vestido... combinam, sim: cada
um por conta própria.
Calcei dois pés diferentes.
Um é preto, e o outro, listrado de vermelho. Como pude ser tão distraída?
Tento esconder o pé vermelho atrás da outra perna e encho o prato sem sequer olhar com o quê,
para depois voltar à mesa, mancando como um perna-de-pau.
Respondo à mensagem informando Tito sobre meu erro idiota, mas ele rebate:
Relaxe, Luca é ariano, não consegue prestar atenção ao que acontece ao redor. Apenas preste atenção em tudo que ele disser e finja
extrema gratidão só pelo fato de ele falar com você.

Solto um muxoxo, de volta ao meu lugar. Sei que Tito não está muito satisfeito com esse encontro.
Ele nunca gostou de arianos. E não suporta que suas previsões sobre o homem ideal para mim
possam estar erradas, mesmo que só em parte.
— Tem muita coisa boa aqui... — comento, me sentando de novo. — Este lugar é realmente
legal...
Luca recomeça, partindo da ilha de Páscoa, depois indo para a Nova Guiné, onde passou as
últimas férias com amigos, fazendo bungee-jumping.
—... porque é um flash sentir no corpo a força da natureza. É um... bam! Entende? Você tem
consciência de tudo. Bang! Você respira tudo...
Eu faço que sim, tentando demonstrar que estou prestando atenção a cada som onomatopeico que
ele emite.
— Essas coisas me dão certo medo, sabe? Eu nasci na cidade...
— Entendo, mulheres normalmente têm medo dessas coisas. São esportes para homens de
verdade. Mas você poderia ir me ver um dia desses. E posso te fazer experimentar algo simples,
como bungee-jumping. Hoje em dia dá para praticar em qualquer lugar e você não precisa fazer
muita coisa, só fica amarrada.
Eu, bungee-jumping? Saltando como Tarzan, pendurada em um elástico? Vou pensar... Não. Isso
nunca fez parte das minhas ambições.
— Olha, é interessante... Mas eu nunca gostei de esportes radicais, na verdade. — O que é bom,
porque, com a minha falta de jeito congênita, já estaria morta se tivesse resolvido dar uma de
Indiana Jones.
Então percebo um espaço se abrir na conversa. Acho que é minha vez de contar um pouco sobre
mim, então falo de cinema, do meu trabalho na tevê, do meu interesse por cultura e...
As hipóteses são duas: ou Luca foi atingido por um estranho ataque de estrabismo, ou está
olhando para alguma coisa atrás de mim.
— Hummm... deve ser... é... bom... legal, trabalhar em uma livraria... — comenta ele, por fim,
distraído.
Nesse momento, o barman, sr. Sbagliato-Como-Só-Você-Sabe-Fazer, se aproxima, sorri e se
inclina para cochichar algo no ouvido dele.
— Obrigado, brother — diz Luca, dando-lhe um tapinha no ombro. — Dá licença um
instantinho, Alisss?
Quando o sigo com o olhar, vejo que se dirige a uma louraça de dois metros de altura usando
uma microssaia que mal cobre a calcinha fio-dental e uma camisetinha esportiva bem pequena. O
conjunto é inexplicavelmente elegante e sexy, mas, por outro lado, aquela mulher com a cara da
Claudia Schiffer ficaria bem até em roupas de segunda mão.
Luca a beija no rosto, depois cumprimenta seu acompanhante, apertando a mão do homem por
pelo menos oito segundos e mantendo o maxilar travado como o do Incrível Hulk durante a
transformação.
Quando retorna, está com a testa suada e os olhos ligeiramente vagos.
— Quer comer mais alguma coisa? Vamos lá, então. — Ele puxa minha cadeira como um
cavalheiro e me acompanha ao bufê, pousando a mão na minha cintura e falando ao meu ouvido,
com intimidade: — Eu já disse que você está linda?
Não, realmente ele ainda não tinha feito nenhum elogio. E eu continuo esperando que não
perceba o sapato listrado.
Agora Luca está sendo mesmo um fofo. Pergunta o que eu gosto de comer e me serve, me
acompanhando de perto por todo o percurso. Até coloca uma azeitona em minha boca, depois
lambe os dedos, me olhando nos olhos. Se a azeitona não estivesse terrivelmente recheada com
pimentão picante, eu me sentiria no trailer de Nove semanas e meia de amor.
Pois é, Tito, penso, tossindo e cuspindo o restante em um guardanapo, este ariano não é o
grosseirão que você descreveu. É fofo e educado, exatamente como Paola disse. Começo a relaxar e me
deixo guiar de volta à nossa mesa, reconfortada por sua mão quente pousada na base das minhas
costas.
— Ah, com licença, meu bem. — Luca para no meio do caminho e se volta para outra mesinha. É
nessa que estão sentados a modelo e seu acompanhante. — Pessoal, esta é Alissss.
A loira sorri para mim.
— Anna.
Anna... Tipo: Anna, a ex-namorada dele?
— Muito prazer, Alisss — diz Anna.
— Na verdade, é Alice.
Ela me encara, me esquadrinhando da cabeça aos pés, e ri. Afinal, é uma mulher e, portanto,
geneticamente programada para notar os detalhes. Sobretudo meu sapato errado.
Mas ela logo ergue os olhos e, em vez de fazer algum comentário, vira de frente para Luca e cruza
as pernas ao estilo Instinto selvagem.
— Oi — cumprimenta o acompanhante, que, conforme descubro, atende pelo improvável nome
de Lobo. — Sentem aí com a gente.
Já que Luca não faz o menor movimento, contorno a mesa e puxo a cadeira ao lado de Lobo.
Enquanto nos servem mais dois Sbagliati¸ que eu, novamente, não consigo recusar, descubro que
aquele é o lugar especial de Luca e Anna. Ou seja, quando estavam juntos eles iam sempre ali. Que
gracinha...
— Espero que você não fique chateada, meu anjo, de eu ter vindo com Alisss — diz ele,
estendendo a mão pela mesa para tocar a minha.
— Claro que não, fofinho — responde Anna. — Afinal, eu vim com Lobo, não vim? — Ela
acaricia o queixo do atual acompanhante com a ponta do indicador.
— Então vamos fazer um brinde — comenta Lobo, chamando um garçom e pedindo algumas
doses.
Apesar do jeito sexy, Anna bebe como uma viking e vira duas doses de grappa uma atrás da outra
sem que um fio de cabelo saia do lugar. Depois da segunda dose, ela olha para Luca e pisca.
— Sente saudade de beber comigo? Lembra quando fomos ao México? Porra, passamos a viagem
toda à base de tequila.
Enquanto começam a contar uma história sobre mexicanos bêbados, peço licença e me levanto
para ir ao toalete.
Começa a fazer muito calor. E me sinto um pouco estranha, como se me visse de fora, e tudo
estivesse a pelo menos um metro do meu alcance.
Do toalete, mando uma mensagem para Tito.
Tduo idno bem. Lca é gentl e em deixu à vontdae. Mas a Xe dle etsá aqi e setnamos na mase dela. O que eu foça?

A resposta dele chega em menos de trinta segundos.


Você está bêbada? Que mensagem maluca. A EX? Talvez ele esteja testando você. Ele quer ser conquistado. Mas não caia nessa. Seja
provocante, porém mantenha alguma distância. Converse com os outros. Faça Luca perceber que ele não é a única presa. E pare de
beber.

Realmente, estou um pouquinho tonta, mas continuo raciocinando direito.


Quando volto, vejo que os outros foram para fora. Lobo enrolou um baseado e Anna está
entornando a dose número... sei lá, perdi a conta das minhas, imagine das dela.
— Um tapinha?
— Ahn... não, obrigada... não fumo.
Os três caem na risada.
— Caralho, talvez você seja a única pessoa na Terra que não fuma, sabia?
— Não, é que... — Acabo dando dois tapinhas só para fazê-los pararem de rir.
Então me vejo com um copinho de tequila na mão e sequer lembro quando o pedi. Mas estou me
divertindo. Afinal, Anna é simpática e Lobo também. E ele é mesmo forte. Estamos falando... bom,
não sei do que estamos falando, mas me faz rir à beça. É muito engraçado.
— Quer mais uma vodca? Vou pedir outra rodada — diz ele, tocando meu quadril.
A essa altura, já não tenho tanta certeza de que Lobo e Anna estão juntos. Aliás, onde ela e Luca
foram parar? Devem ter entrado para pedir mais alguma coisa no bar. O local agora está tão cheio
que as pessoas ficam de pé e não consigo vê-los em lugar algum.
Enquanto isso, Lobo se aproxima de mim. Meu Deus, não consigo respirar e minha cabeça está
girando.
— Quer se sentar no carro comigo um minuto? Vamos ouvir um pouco de música.
— Não, preciso de ar fresco. Respirar fundo.
— Então vamos dar uma caminhada, eu te acompanho. Logo aqui atrás tem um parquinho. — A
mão dele desliza de leve pela minha bunda.
— Alice?
Quando me viro, fico desnorteada, como se estivesse tendo uma visão.
— Raffaella?
— Eu não sabia que você frequentava o Cave — comenta ela.
— Estou com uns amigos, não costumo vir sempre... e você?
— Ah, eu moro aqui perto.
Então outra pessoa se aproxima e entrega uma margarita a Raffaella.
Eu sabia. Sabia que devia ter escutado Tito. Bebi demais e agora estou tendo alucinações
horríveis.
— Está cheio pra caramba — diz o homem. Aí ele se vira para mim e me reconhece. — Alice...
Boa noite.
Então David Nardi está mesmo aqui, diante de mim.
— Bo... boa noite.
Finalmente Lobo tira a mão da minha bunda e a estende para eles.
— Eu sou Lobo.
David arqueia uma sobrancelha. Olha para Lobo e em seguida para mim.
— Então, ela é a Chapeuzinho Vermelho? — questiona, observando a cor rubra do meu vestido e
esboçando um sorriso.
Caio na risada. Eu não tinha pensado nisso. Mas ele é muito engraçado! Um palhaço! Não
consigo parar de rir.
— Alice, você está bem? — pergunta Raffaella.
— Lobo... Chapeuzinho Vermelho... e o parquinho... a mão na minha... ou melhor... — Deus do
céu, do que é que estou falando? Mordo a bochecha por dentro, com força, esperando que o acesso
de riso histérico-alcoólico passe. — Na verdade, eu estava aqui com outra pessoa. — A propósito,
onde foi parar meu ariano?
— Ah, é mesmo? — diz David, esticando o pescoço, como se pudesse localizar Luca sem jamais
tê-lo visto.
— Sapatos estranhos, esses — comenta Raffaella. Maldita! Agora, tanto Lobo quanto David estão
olhando meus pés.
— É... um modelo especial. Você sabe como é a moda, eles não param de inventar coisas.
— Quer que eu pegue mais alguma bebida para você? — pergunta Lobo, retornando à versão
polvo e se enroscando no meu quadril.
Instintivamente, dou um passo para me afastar, mas acabo trombando na parede.
— Alguma coisa sem álcool — sugere David, levantando seu coquetel.
Começo a rir de novo. Com a jaqueta preta de couro e segurando um copo com moranguinhos e
um monte de sombrinhas decorativas, ele está no mínimo bizarro.
Os dois homens desaparecem no bar, enquanto Raffa e eu continuamos na calçada, rodeadas
pelos outros clientes que saíram para fumar ou para respirar ar fresco.
— Está se sentindo bem, Alice? Você não parece muito... estável.
Levanto o polegar para dizer que está tudo o.k.
— Falta muito para eu cair, acredite. E você? O que faz aqui com Nardi?
— Ah, nada... Vim só para ser gentil. Fui com ele ver um apartamento. Ele não é de Milão e
precisa se instalar para os meses em que vai ficar trabalhando com a gente.
Ou seja, durante o tempo que levará para fazer pontaria e nos derrubar um a um. Mas que gentil
ela ajudá-lo a encontrar um apartamento. Talvez depois forneça à empresa umas camisetas com um
alvo desenhado, para ajudá-lo a acertar a mira.
— Nada disso, imagina. Não fale assim. E, no fim das contas, ele está trabalhando pelo bem da
emissora.
Como foi que ela ouviu meus pensamentos? Cubro a boca com a mão. Caramba, eu falei em voz
alta. Constrangida, tomo a última gota de cerveja do copo apoiado no parapeito ao meu lado.
— Ei! — Um sujeito me encara, furioso. — Era o meu copo!
Nesse momento David retorna com uma garrafinha de água mineral.
— Está difícil os caras nos entenderem lá dentro. Tentaram quase me obrigar a comprar
aguardente. Tome. — Ele desatarraxa a tampa, sem tirá-la de todo, e me passa a garrafa.
— Depois você tem que experimentar isto aqui — diz Lobo, que veio ao nosso encontro e segura
um coquetel colorido. — É incrível.
— Melhor não — replica David.
— Ei, estou vendo uns amigos meus — anuncia Raffaella. — Venha, David, vou apresentar você.
Assim, se alugar aquele apartamento, já vai conhecer alguém que... — Ela o segura pelo braço e o
arrasta, as últimas palavras da frase se perdendo no burburinho da multidão.
Lobo me estende o copo. A essa altura, seria falta de educação me recusar a experimentar o
drinque, já que ele foi buscá-lo especialmente para mim. É gostosinho. Geladinho. E também não é
nada ruim ver como o mundo se transforma quando você tem um pouco de álcool no sangue. As
pessoas à minha frente são formas multicoloridas, dançantes.
Também vejo vaga-lumes. Muitos vaga-lumes amarelos flutuando diante dos meus olhos. E sinto
as pernas bambas.
E depois nada.
7. O SOL NÃO É PARA ÁRIES





Não, eu não desmaiei. Estou consciente de tudo. E escuto cada coisa perfeitamente. Até demais, pois
parece que os ruídos se amplificaram. Por exemplo, o copo que se espatifa e esguicha o líquido nos
meus malditos sapatos é um trovão nos meus tímpanos. O problema é que não vejo mais nada.
— Acho que preciso me sentar um pouco... — digo, forçando os músculos dos olhos,
arregalando-os, mas ainda sem enxergar nada.
— Venha, meu carro está aqui perto. — Lobo me aperta contra seu corpo para me erguer e me
conduz até não sei onde. Ele me apoia em um carro, enquanto escuto o ruído da porta sendo aberta.
— Pronto, senta.
Caramba, e se minha visão não voltar? Merda... Nunca mais vou ver um homem na vida!
Literalmente!
Escuto a risadinha dele.
— Claro que não, imagine, daqui a pouco ela volta. E, também, por que você está pensando em
homens? Eu estou aqui.
Puta merda! Pensei de novo em voz alta.
São os lábios dele que sinto na minha boca?
— Não, espere...
— Ah, vai, só um beijo.
— Não estou me sentindo muito bem...
Ele, porém, me beija de novo, e pousa a mão na minha coxa.
Reúno as forças e me levanto. Claro que bato a cabeça na porta do carro e dou só uns dois passos
antes de cair de joelhos e ter um encontro imediato com o asfalto.
Mãos me seguram delicadamente por baixo dos braços.
— O que houve com ela?
É a voz de David Nardi, e ele soa furioso.
— Não... não estou vendo nada...
— Mas que merda você deu para ela beber, idiota?
— Desculpa, eu não tinha percebido que ela estava assim.
Alguém me levanta do chão. Meu rosto encosta em um tecido liso e vagamente perfumado.
Couro. É a jaqueta de David Nardi.
— Bom, agora você já pode ir embora — resmunga ele para o outro.
— Espere! — grito, me virando para Lobo. — Qual é o seu signo?
Não escuto a resposta, e logo David me leva embora.
Caramba, Debra Winger com certeza não estava cega quando Richard Gere a carregou nos braços
para fora da fábrica em A força do destino. Parece que estou no cinema, quando o babaca sentado na
sua frente levanta e faz você perder a cena mais bonita. Só que, neste caso, a babaca sou eu, porque
a culpa é só minha por ter enchido a cara a ponto de perder esse salvamento em grande estilo. Bem
que Tito me disse para parar de beber!
— Quem é Tito?
— O quê?
Sinto que David está me ajudando a sentar em um banco, e ele se acomoda ao meu lado. Não
consigo manter a cabeça erguida, então a recosto no ombro dele.
— Você mencionou um cara chamado Tito. Nome esquisito.
— Por que eu não paro de pensar em voz alta?
— O quê?
— Não, quero dizer... Tito é um amigo meu. Disse para eu não beber demais.
Escuto David bufar.
— Se é por isso, eu também disse. Mas acho que você não dá ouvidos a ninguém. Faz sempre o
que dá na cabeça, não é?
— E acabo com ela quebrada.
— Bom, no asfalto faltou pouco.
Algo úmido e fresco pressiona minha testa e recuo ligeiramente.
— É só um lenço molhado — explica ele. — Você provavelmente teve uma queda de pressão.
Com certeza não posso contar que também fumei maconha. Sinto a cabeça vibrar.
— Por acaso você está rindo?
— Quem, eu? Não, juro... — Mas percebo a risada na voz dele.
— Eu aqui à beira da morte, Hannibal Lecter poderia fazer um excelente patê com o meu
fígado... E você ri? Bom, claro, o que mais eu poderia esperar de alguém como você?
Sinto David ficar tenso.
— Como assim, alguém como eu?
Não, Alice, pare. Afinal, o que havia naquele coquetel?
— Quero dizer que seu trabalho te obriga a ver tudo com distanciamento.
— Entendo. Como está se sentindo? E a vista?
Ainda não enxergo nada. Em compensação, meu estômago está incubando uma espécie de
alienígena.
— Acho... — murmuro, levantando a cabeça. — Acho que preciso vomitar.
Eu me levanto, trôpega, e ele segura meu braço, afastando meu cabelo do rosto um segundo antes
de eu começar a pôr tudo para fora.
— Desculpe. — Sou a rainha dos vexames. — Desculpe. — Mas talvez acorde e perceba que é
tudo um pesadelo, como a morte de Bobby em Dallas. É realmente um péssimo roteiro. E onde Luca
foi parar? No fim das contas, parece que o ariano é do tipo que não está nem aí. Pode até ser forte e
determinado, mas, neste caso, acho que ele estava determinado apenas a desaparecer.
Assim que acabo de vomitar, a névoa em meus olhos se dissipa. Ainda não estou firme sobre
meus pés, mas pelo menos enxergo.
Eu me viro e fico cara a cara com David, a menos de um palmo de mim. Ai, meu Deus, posso
voltar à escuridão, por favor? Ele está segurando meu cabelo na nuca, para evitar que se suje, e sua
expressão é tensa.
Pisco. E ele percebe que agora o enxergo.
— Oi. — David abre um sorriso torto. Por que ele tem que ser tão sexy, quando minha boca ainda
está com gosto de suco gástrico?
Devo sofrer com alguma maldição, para me meter sempre em situações tão paradoxais. Ainda
por cima com ele. E nem acho justo que ele possa ser tão fascinante. Será possível que baste vê-lo,
ou até não ver, dadas as últimas circunstâncias, para que meus neurônios percam completamente
as sinapses? Não, não é justo. Com quem posso fazer uma reclamação formal contra o destino?
David sorri e morde o lábio.
— Você é maluca — comenta ele. Então me ergue como se eu fosse uma boneca, procura algo no
bolso e limpa minha boca com um lenço. — Está melhor?
Faço que sim, e meus olhos ficam marejados. Sou um desastre. No trabalho, com Carlo e com
todos os outros homens. Estou sozinha e sem perspectivas. Ai, não, só faltava ficar deprê!
— Por que você queria saber o signo daquele cara? — pergunta David, me ajudando a sentar de
novo.
O que faço, conto a ele sobre a teoria de Tito? Bom, afinal ainda acredito que os signos do
Zodíaco podem ajudar. Quero dizer, como filtro. Seria bom para todo mundo se Tito estivesse à
disposição, porque não devo ser a única com problemas, certo? Pelo menos espero que não.
Alguém como Tito poderia ajudar a esclarecer tudo. Em um período de crise como este, isso é
realmente necessário. A televisão deveria falar disso. E oferecer um serviço útil ao cidadão,
explicando as relações entre as pessoas através do alinhamento dos planetas. Eu, por exemplo,
estou testando pessoalmente e funciona. Eu me sinto a Marie Curie dos signos do Zodíaco, fazendo
experimentos em campo, sem proteção. Aqui se faz ciência. Ou quase...
Escuto David rindo.
— Um guia astrológico, hein? — Ele se agacha diante de mim e levanta um dos meus pés. Então
me dou conta de que estou descalça. Meus sapatos desparelhados estão no bolso da jaqueta dele.
David coloca o sapato em um pé meu de cada vez, e por um instante quase acredito que sou “aquela
sortuda da Cinderela”, como diz a amiga de Julia Roberts em Uma linda mulher. — Consegue andar?
8. UMA SEGUNDA-FEIRA DE LIBRA





Estou tentando manter minha amizade com Jane Fonda e, após passar o domingo na cama para me
recuperar da bebedeira, hoje acordei cedo para fazer ginástica. Assim, quando chego ao trabalho,
estou até adiantada e posso me permitir um segundo café na maquininha, com toda calma. Me sinto
livre de apreensões inúteis e em paz comigo mesma.
Meu celular, porém, deve estar com problemas de conexão, porque ainda não recebi uma só
mensagem de Luca.
— Ah, está tudo funcionando? Então, posso receber mensagens normalmente... Entendi... —
comento com o sujeito do call center, para onde liguei a fim de pedir conserto para a linha
telefônica.
Portanto, deve ser Luca que não consegue me enviar mensagens.
Ainda não sei o que pode ter acontecido, embora, durante o domingo de ressaca, eu tenha
pensado bastante a respeito e recolhido opiniões dos meus dois melhores amigos.
Paola acha que eu me comportei como deveria, mas que talvez pudesse ter procurado entender a
situação de Luca, ter me perguntado sobre o que havia acontecido com ele e, talvez, ter ido ver se
ele precisava de ajuda. Ela tem certeza de que eu teria sido mais compreensiva com os problemas
dele se tivesse tido a chance, e que isso nos aproximaria ainda mais. Resumindo, Paola acha que há
uma razão para o desaparecimento de Luca. Que ele recebeu um telefonema avisando sobre um
acidente com os pais ou pelo menos com um avô. Que eu não devo tirar conclusões precipitadas, e
sim pensar se gostei de passar um tempo com ele, até que Luca entre em contato de novo. Porque
ele vai.
Já Tito acha que o ariano feriu meus sentimentos de libriana romântica, agindo de acordo com
sua natureza rude e tentando, dissimuladamente, inverter os papéis e ser conquistado. Ele me
abandonou, e isso não tem desculpa, nem como homem nem como ariano. Seria melhor que não me
telefonasse nunca mais. Meu comportamento indiferente foi bom. No fim das contas, mostrei a Luca
como as coisas são, que ele não é o único homem na face da Terra. Meu comportamento, segundo
Tito, fez todo o sentido para Libra, que é um signo etéreo e um pouco incoerente. Ainda que Luca
soubesse do beijo e da volta para casa, isso seria bom, primeiro porque ele me veria como uma
presa disputada e segundo porque ficaria menos assustado se não pensasse que estou interessada
em uma relação estável e duradoura.
Sinto o sol entrar pela janela e aquecer meu rosto, e por um observo, meio encantada, David
estacionar a moto e tirar o capacete, para depois passar a mão pelos cabelos despenteados.
Acompanho-o com o olhar até sentir meu nariz encostar na vidraça. Então lembro que não tenho
como chegar à minha sala sem passar pelo corredor e pelo hall, o mesmo caminho que David tem
que fazer para chegar à sala dele, no primeiro andar. Vamos nos cruzar. A não ser que eu consiga
me confundir com os vasos de plantas ornamentais.
E agora, o que falo para ele?
Não posso encará-lo ainda. Não estou pronta. Nunca estarei, é verdade, mas não posso encará-lo
às nove da manhã.
Vou me esgueirando pelo corredor, colada à parede como um ninja, e tento me enfiar na primeira
sala que vejo, mas a porta ainda está fechada. Então tenho uma ideia. Estou salva! No fim do
corredor, ficam os banheiros. Posso me trancar lá e esperar uns dez minutos, até ter certeza de que
ele já passou.
Pena que o corredor seja enorme, tanto que daria para rodar nele o remake de O iluminado, se a
gente quisesse. Ficaria perfeito. E com os saltos altos que fazem parte do meu programa de “injeção
de confiança”, correr significa desafiar a morte. Eu posso, no máximo, me permitir andar rapidinho.
— Alice!
Fui flagrada já com a mão na maçaneta.
— Ahn... Bom dia. — E como devo chamá-lo agora? Senhor Nardi? David? Darth Vader?
Ele se aproxima com uma expressão perplexa, a testa franzida.
— Tudo o.k.? Quero dizer, você está bem?
Aperto os braços em torno do corpo.
— Sim, claro. Obrigada.
— Desculpe não ter telefonado ontem.
Agora sou eu que o encaro, assustada e constrangida, porque leio algo em seus olhos. E não sei o
que é, não lembro o que é.
— Sem problema — murmuro, fitando a ponta dos meus sapatos.
Ele suspira.
— Pois é, mas eu queria ter falado com você. Teria sido o certo, depois daquela noite... Antes de
nos vermos aqui no trabalho.
Em um instante, sinto meu rosto ficar quente. Como assim, “depois daquela noite”?
Quer dizer, sim, passei a maior vergonha na frente dele, bêbada de cair e vomitando em pleno
centro de Milão. Mas essa frase, dita assim, e com esse olhar ardente, parece significar outra coisa...
A verdade é que não me lembro de nada depois da cena de Descalços no parque com ele. E se
tivesse acontecido algo entre nós, algo mais sério, eu não teria esquecido. Não é? Arregalo os olhos,
tentando arrancar algum indício de sua expressão.
Gostaria de ter um controle remoto para poder dar pausa e pensar no que dizer.
— Não se preocupe. Não fiquei chateada...
Calma, Alice. Calma.
Mas logo estou tremendo.
Não, não, não!
Por que essa imagem me veio à mente? Com certeza foi um sonho. Ou melhor, estou me
confundindo com alguma cena de uma comédia romântica que vi no cinema.
Primeiro, é como se eu visse a lembrança de fora. Tenho a imagem de David me carregando nos
ombros, e não é possível. Segundo, se eu estivesse desmaiada, não poderia me lembrar de David me
levando para casa e me carregando por três andares, certo? Terceiro, por que David me carregaria,
se meu prédio tem elevador?
Meu Deus, talvez a gente tenha passado uma noite de paixão e ele agora se sinta culpado por
achar que se aproveitou de mim.
David abre um meio sorriso.
— De qualquer jeito, desculpa não ter ligado para ver se você estava bem, mas é que eu não tinha
seu número.
Eu o encaro de novo da cabeça aos pés, e me escapa um suspiro de pesar por não me lembrar de
absolutamente nada.
— Bem, isso a gente pode resolver — digo, devolvendo o sorriso e acrescentando, por que não?,
uma piscadela.
Ele franze a testa.
— Claro, mas não precisa. Você pode passar na minha sala, daqui a uma hora?
Essa mudança súbita de assunto me pega de surpresa. Paola não aprovaria isso nem um pouco, e
eu mesma deveria pensar melhor, dada a posição dele na empresa. Estou brincando com fogo.
Dormindo com o inimigo! Deveria aproveitar a oportunidade para explicar que foi tudo um erro,
que eu estava muito bêbada etc.
A caminho da minha sala, paro e me viro para ele de novo. David já está ultrapassando a porta.
— David?
— Sim?
— Qual é o seu signo?
Ele sorri e pisca para mim.
— Ótimo! Já entrou no clima.

Na hora seguinte, não consigo fazer nada além de olhar o relógio, tipo a cada três minutos, e de
tentar recordar algum detalhe do que eu e David fizemos na cama. Nada. Depois da imagem dele
subindo a escada — agora acho que isso deve ter acontecido mesmo —, na minha cabeça há um
buraco negro tão grande quanto o asteroide de Armageddon.
Raffaella entra no escritório mais linda do que nunca. Ou no prédio dela tem um cabeleireiro
disposto a cachear seu cabelo às sete da manhã de segunda-feira, ou Deus foi muito injusto ao
distribuir o cabelo entre as pessoas.
— Oi, querida. Conseguiu se recuperar? — diz ela, e a cabeça de duas colegas se levanta das
respectivas escrivaninhas para me olhar.
— O que houve? — pergunta uma delas.
— Ah, nada... não passei muito bem.
— Alice é muito festeira — explica Raffaella, me dando uma cotovelada. — Vocês tinham que
ver quanto ela bebe.
Bem-vindos a uma reunião de alcoólatras não muito anônimos.
— Imagina, só umas duas doses... — murmuro, querendo reduzir a coisa.
Raffa, no entanto, não parece me dar ouvidos. Ela suspira, olhando ao redor, e por um instante
exibe o ar melancólico de uma atriz em uma cena de despedida.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto.
— Nada. — Mas ela sorri como se guardasse um segredo e balança os cachos loiros. — Na
verdade, aconteceu uma coisa ótima... mas não posso contar. — Então ela vai embora, leve como
uma borboleta.
Quando olho o relógio, me dou conta de que faltam dez minutos para o encontro com Nardi.
David...
Corro ao banheiro, meu coração parece dançar a Macarena. Vou me arrumar um pouco e tentar
me acalmar.
Encontro Raffaella na frente do espelho, retocando o batom. Ela sorri de novo para mim, depois
se inclina e ajeita os cachos, antes de se endireitar, de um jeito sexy, e se afastar.
Eu faço a mesma coisa, mas só parece que deixei meu cabelo desgrenhado de propósito, então
acabo decidindo prendê-lo em um rabo de cavalo.
Quando estou para sair, chega o horóscopo de Tito.
Hoje o dia nasce com a Lua no seu signo, mas isso não garante serenidade. Existe muita tensão, tanto do ponto de vista profissional
quanto do sentimental. Novidades vêm aí, mas o vento que as traz não corresponde totalmente às suas expectativas. Está chegando
um mês interessante no trabalho, mas hoje, especificamente, você se sente pressionada por suas emoções.

Querido Tito... Com certeza você nem imagina o que está para acontecer.
Sigo para a sala dele, tentando manter os ombros retos. Meu coração ecoa nos ouvidos.
Alcanço a porta de David e pouso a mão na maçaneta, tentando criar coragem.
— Com licença.
Ele está de pé diante da janela. E, quando se vira, o sol lhe ilumina os cabelos com reflexos
dourados.
Em seguida, também Raffaella e o Presidentíssimo se voltam para me olhar.
— Ah, desculpe, eu não queria interromper.
David dá um passo à frente.
— Por favor, srta. Bassi, sente-se.
Engulo em seco e encaro Raffaella. Nem ela parece saber muito bem o que está acontecendo.
Então um pensamento me atinge. Eles vão me demitir!
Amor coisa nenhuma. Nada de Uma linda mulher, Cinderela e tudo mais. A verdade é que passei
vergonha, mostrei a pior versão de mim, irresponsável e desleixada. Disfarcei tudo o que me
aconteceu com clichês de comédias românticas, pensando que um homem como David Nardi (o
Inimigo Público Número Um) pudesse se interessar por mim. Mas ele foi contratado para cortar
funcionários da empresa. Programado para matar. E eu me ofereci em uma bandeja de prata.
Eu me sento e espero a sentença.
— David me falou muito a seu respeito, srta. Bassi — começa o Presidentíssimo.
É mesmo? Deixa eu adivinhar: já que não tinha meu número de telefone, no domingo Nardi ligou
para o chefe e contou minhas proezas. Que bonzinho...
— Sim, mas eu posso explicar. Não é algo que acontece sempre.
— Imagino. E uma explicação mais detalhada era exatamente o que esperávamos. Como sabe,
não se pode investir dinheiro nas pessoas sem uma garantia.
Claro que ele está falando do salário que está prestes a tirar de mim. Meu Deus, o que é que eu
faço?
— Presidente — intervém Raffaella —, isso me parece um tanto precipitado. Quero dizer, só com
base em algumas conversas... — Que bom, ainda existe alguém disposto a confiar em mim. Sorrio
com gratidão para minha colega, mas ela aperta os lábios em uma expressão de desdém antes de se
voltar para David. — Afinal, o que eu fiz também é...
Caramba, nunca pensei que Raffaella gostasse tanto de mim.
— Raffaella, não estou dizendo que seu projeto não é válido, mas é muito dispendioso. E no
momento não podemos nos permitir algo assim — responde David.
Pronto, agora é que não estou entendendo mais nada. Por favor, do que estamos falando?
— De fato — continua o Presidentíssimo, pousando a mão no meu ombro —, a ideia de Alice
combina mais com nossas intenções. E também é algo jovem, é novidade. Nenhuma outra emissora
já fez isso. É experimental, corresponde totalmente à nova imagem que queremos criar para
conquistar um público mais amplo.
Eu e David nos entreolhamos, e me parece que os lábios dele se curvam muito, muito pouco, no
esboço de um sorriso.
— Se a senhorita estiver disposta a trabalhar nisso nos próximos dias — conclui o
Presidentíssimo —, no final do mês já poderemos estar prontos para gravar o piloto do Guia
astrológico para corações partidos.
GÊMEOS

Um, nenhum e cem mil, Gêmeos é um daqueles signos que fazem a fortuna dos analistas. Ele não
sofre de uma simples dupla personalidade: não, nele as personalidades são tantas que, para brigar,
fazem uma reunião de condomínio. E, justamente porque vive o tempo todo nessa espécie de caos, o
geminiano não consegue ter só uma ideia, ou só uma opinião, e muito menos só uma mulher. O que
ele diz hoje não influencia em nada no que fará amanhã. Por isso, se por acaso ele se lembrar de
levar você ao cinema dois dias depois de tê-la convidado, sinta-se autorizada a ouvir os sinos da
igreja, porque sem dúvida ele considera estar em uma relação séria.
9. UMA LIBRIANA DE FUTURO





Na última semana, devo ter dormido no máximo quatro horas por noite. Passei o restante do tempo
aqui, no estúdio Delta, sem janelas, quase sem saber se lá fora era noite ou dia, se fazia sol, se
chovia ou se a Terra havia sido invadida por alienígenas.
De dez dias para cá, na redação, no estúdio e até no refeitório, só se fala de astrologia e da nova
aposta da emissora.
É como se eu tivesse ido parar em um episódio de Além da imaginação, e de repente saber o signo
de alguém fosse mais importante do que saber seu tipo sanguíneo depois de um acidente de carro.
“Precisamos de doze mililitros de Capricórnio, enfermeira, ou vamos perdê-lo!”
O ar está carregado de eletricidade, de adrenalina... e de suor. Porque, vamos admitir, de uma
hora para outra tivemos que inventar o programa, os cenários e todo o resto, e o tempo dedicado a
hobbies, o que para algumas pessoas inclui a higiene, reduziu-se ao mínimo dos mínimos.
Eu mesma estou exibindo hoje uma bela trança, que, além de me fazer sentir um pouco Lara
Croft, disfarça o fato de que com certeza eu não venceria um concurso da L’Oréal.
Mas, fora o cabelo, eu me arrumei para a primeira gravação de um programa que inclui meu
nome nos créditos: estou usando um belo tailleur cinza e meus novíssimos Christian Louboutin, que
sozinhos me custaram quase toda a gratificação embolsada pela ideia do programa. Uma pena que
meus pés já tenham inchado de modo inversamente proporcional à minha carteira.
— Alguém viu Tito? — pergunto, depois de meter a cabeça na salinha de maquiagem e não
encontrá-lo.
— Alice! Alice, espere! — grita Marlin, afastando a maquiadora como se fosse uma mosca
incômoda.
— Diga, Marlin.
— Veja só. — Com displicência, ela levanta uma perna e a pousa sobre a bancada, para depois
arrancar do tornozelo um curativo do tamanho de um punho.
Sob ele está a tatuagem de uma mulher nua com o rosto da própria Marlin, sorridente e olhando
o próprio seio. Ao lado do desenho há uma inscrição: ÁRIES.
— Fiz ontem à tarde — diz ela, toda orgulhosa.
— Mas por que mandou escrever Áries? — pergunto, desconcertada. — Esse aí parece o símbolo
de Virgem, é o que devia estar escrito.
Ela me encara e torce o nariz.
— Nah, vulgar demais. — Dou de ombros e me viro para sair, enquanto ela acrescenta: — E,
também, na verdade eu sou Peixes.
Fazer qualquer outro comentário seria inútil, assim como imaginar como e por que uma pessoa
que escolheu como nome artístico um peixe-espada pode acabar estragando até meu Guia
astrológico.
— Alice, os convidados já chegaram! — grita Luciano, da cabine de direção.
— Na salinha de espera?
— Como é que vão caber? Não dá para amontoar todos eles como vacas.
Isso porque a emissora resolveu acrescentar ao programa a genialidade dos reality shows. Além
dos convidados canônicos, especialistas no setor astrológico ou não, haverá doze concorrentes, um
por signo, que acompanharemos de semana em semana. Quando se trata de ideias novas e
modernas, de fato sabemos como nos diferenciar.
Bem, meus convidados podem não ser vacas, mas estão se comportando como um rebanho
enlouquecido. Por sorte, reconheço-os só de olhar, porque mandamos fazer camisetas, cada uma
com o signo correspondente. Levo os dedos à boca e assovio como um pastor às suas cabras.
— Ei, você, Touro, dá para descer daí? — digo ao que banca o Homem-Aranha na escadinha que
leva à gambiarra dos refletores.
Ele me encara por alguns segundos com seu olhar bovino, e torço para não ter que puxá-lo pelos
cabelos, até porque com esses sapatos (lindos, lindos sapatos) eu me arriscaria a quebrar o
pescoço.
Restabeleço a ordem distribuindo sanduíches e anoto que para as próximas vezes devo
providenciar um estoque de calmantes naturais.
Estou voltando para o corredor quando de novo gritam atrás de mim:
— Alice! Cacete, está faltando o visor da steadycam! Entendo que você agora banque “a autora”,
mas precisamos de alguém aqui que confira tudo!
— Ferruccio, por favor, não complique você também.
— Eu teria muito prazer em não complicar nada. A esta hora, já estaria em casa assistindo a um
filme. Em vez disso, estamos todos aqui para fazer o seu programa. Pelo menos colabore.
Invoco a calma zen que o curso de ioga do ano passado deveria ter me ensinado e me pergunto se
as aulas principais foram justamente as que eu perdi. Inspire, expire, repito para me acalmar. Daqui
a meia hora estaremos gravando. Então, retruco:
— Fale com Enrico.
Afinal, é ele o diretor de produção, certo?
Ferruccio ri na minha cara.
— Essa é boa! Se eu conseguisse encontrá-lo em algum lugar!
Eu me afasto dizendo que vou procurá-lo.
— E não se esqueça de imprimir as escaletas! — grita Luciano, pondo a cabeça para fora da
cabine.
— Mas quem devia fazer isso era Raffaella! — exclamo, me sentindo desanimar.
— Ela disse que pediu a você.
O.k. O.k. Com todos os parafusos de mulher biônica, saio correndo, ignorando a dor causada
pelas bolhas que se formam nos meus pés. Louboutin não se contenta com minha conta bancária,
quer também meu sangue.
Subo a escada e estou quase chegando à sala de Enrico quando o avisto, à direita, no cantinho das
máquinas distribuidoras. Apanhado em flagrante enquanto enche as mãos de lanchinhos, pronto
para desobedecer:
A) à dieta perene à qual seu médico o submeteu, após a ameaça de infarto de seis meses atrás;
B) à minha ordem do dia, mais importante ainda, de que o queria ao meu lado, atento e ágil como
uma fuinha.
Quando o chamo, ele leva um susto, deixando cair no chão a prova do crime: quatro sucos de
fruta, três barrinhas de chocolate, duas bolachas e uma embalagem de biscoitos com geleia diet (só
para não se sentir culpado). Em seguida, range os dentes:
— VOCÊ?! O que está fazendo aqui? Deveria estar no estúdio! Ainda não sabe disso, depois de dez
anos trabalhando na emissora?
Não, o mestre Miyagi com certeza não ficaria contente comigo quando me estico para ficar o
mais alta possível (ajudada pelos dez centímetros de salto) e grito que talvez seja ele a ignorar seus
deveres na emissora. Não aguento mais ouvir que é tudo culpa minha. Inspire, expire é o cacete.
Enrico joga o fruto do delito em cima da bancada e me aponta o dedo gorducho, que está
enfaixado por um curativo improvisado, feito de lenço de papel e fita adesiva.
— E não fique reclamando como sempre, viu? Ainda mais depois de ter arrumado toda essa
confusão com o programa, depois de nos fazer ralar dia e noite, a ponto de eu nem saber mais como
é a minha casa. Mas você não se importa, não é? Não está nem aí para a vida dos outros. O
importante é que a senhorita fique bem com os chefes; afinal Enrico se encarrega de organizar tudo!
Como se eu já não tivesse passado noites o bastante aqui dentro. Como se eu já não tivesse dado
meu sangue a esta empresa!
Agora ele está praticamente azul como um Smurf, e eu não quero ter que improvisar uma
massagem cardíaca ou, Deus me livre, uma respiração boca a boca.
— Enrico, calma. Você vai ver, vai dar tudo certo, mas preciso que me dê uma mãozinha.
Lamento, estamos todos cansados. Eu entendo...
— Não, não entende. Não entende nada do que você me fez. — Ele ruma para sua sala. — Vou
descer agora. Vá na frente — diz, puxando do bolso a chave e metendo-a na fechadura.
Corro atrás dele.
— Espere, preciso imprimir as escaletas. Vou fazer isso na sua sala.
Ele me bloqueia.
— Minha tinta acabou!

Cinco minutos depois, estou de novo na cabine e lanço escaletas como se fossem frisbees. Eu e meus
pés imploramos ao Senhor que Tito esteja na maquiagem, a essa altura. Mas da salinha só saem os
signos do zodíaco.
A Virgem trouxe a maquiagem de casa e não quer outra coisa, porque tem a pele sensível. O
Touro bufa porque não é nenhum gay e não quer ser nem tocado por um pincel, seja de que tipo for.
O Libra, ao contrário, aceita bem a maquiagem, mas fica nisso um tempão, indeciso quanto ao tom
adequado da base.
A maquiadora me lança um olhar desesperado, depois estreita os olhos e faz uma careta.
— Raffaella me disse que este programa é ideia sua...
Sim, sim. Verdade. Sou eu. Fui descoberta. Sou mais cruel que Keyser Söze do filme Os suspeitos e
tramei tudo isso contra vocês, só porque os odeio.
Antes de sair em disparada mais uma vez, avisto Enrico se aproximando da cabine de direção e
me apresso a informá-lo sobre a objetiva que falta. Quando ele se vira, percebo que tem um olho
inchado e injetado de sangue.
— E estava esperando o quê para me dizer? — grita ele, para depois correr ao encontro de
Ferruccio.
Dessa vez nem respondo. Meu único objetivo é encontrar Tito. Se não, adeus programa. E adeus à
minha vida, porque com certeza minha cabeça será exigida por alguém (ou alguéns) em uma das
bandejas do caríssimo catering.
Mas sei onde ele pode estar.
Dor de amor.
Porque, embora eu tenha lhe pedido muito para renunciar ao trabalho em cena, Tito reclamou
que é e continua sendo ator. E quer atuar. Bom, como se fazer isso em Dor de amor possa ser
considerado atuar... De qualquer modo, infelizmente hoje é dia de gravação também para eles, e
Tito está ocupado no set.
Quando chego ao estúdio Alpha, entro na ponta dos pés, até porque já não sei se me sobrou
muito mais que as pontas, dentro dos caríssimos sapatos. Há poucas luzes difusas sobre o cenário
de um quarto, e Tito, em uma cama, se agita como se tivesse um pesadelo.
Eu me aproximo e, me segurando como uma verdadeira profissional, espero que terminem de
gravar. Em seguida chego mais perto do diretor e digo:
— Com licença, sou a autora do Guia astrológico.
Porque, com algumas pessoas, é sempre melhor ressaltar os próprios títulos. E também porque,
sim, gosto muito de dizer isso!
— Já terminamos — responde ele.
Feliz por ter feito valer minha autoridade, vou ajudar Tito a recolher as roupas que seu
personagem espalhou pelo chão.
— No es buena para mí, Salva.
Estou segurando uma meia que peguei do chão quando a voz, quente e lenta, pronuncia os S de
forma mais macia que veludo sobre pele nua.
O timbre latino me faz erguer a cabeça abruptamente, e bato na quina de madeira, xingando o sr.
Ikea e sua família por sete gerações. Quando me viro, ainda na nobre posição de quatro, me vejo
diante de um par de pernas cobertas por uma calça de couro acamurçado.
— Tenemos que filmarla otra vez. Para mí, la luz no era perfecta.
Uma mão morena se estende para mim. Seguro-a instintivamente e noto o antebraço retesado
que deixa em evidência a veia mais sexy do planeta.
Então minha visão ultrapassa a cintura do desconhecido. Alguém lá em cima gosta de mim, penso
ao vislumbrar o abdômen definido que mereceria aplausos. Os pelos escuros que sobem até o
umbigo me deixam de queixo caído, como nos desenhos animados. E também o tanquinho... o
tanquinho! Então abdômens definidos não são pura enganação das propagandas da Dolce &
Gabbana. A barriga tanquinho existe! Deus existe!
Acho que presenciei um milagre. Termino minha panorâmica em um rosto de maxilar duro,
olhos escuros, sobrancelhas espessas e cabelos mais fartos do que os de Daniel Day Lewis em O
último dos moicanos.
Deixo escapar um suspiro extasiado que faz Tito pigarrear.
— Temos que sair daqui, senão Enrico vai surtar.
Pisco, confusa.
— Quem é Enrico?
— Claro, Alejandro, deixe eles irem. Déjalos. Quem sabe a gente refaz a cena amanhã? — diz o
diretor, baixando o tom de voz e dirigindo-se à secretária de edição: — Que cara chato! Para mim, a
última estava boa. Já regravamos dez vezes.
— Vocês ainda estão aqui! — exclama outra voz atrás de mim. — Alice, achei você! Estou te
procurando há meia hora!
Quando me viro, vejo Raffaella desfilando (porque ela não anda, desfila) em direção a nós,
brandindo o cartaz com o logo do Guia astrológico.
— Faltam quinze minutos para começarmos. Mandei preparar os convidados. Dei a ordem de
entrada aos signos do Zodíaco. Conferi os gráficos e os vídeos... Só falta Tito. Se você pelo menos
pudesse me dar uma ajuda, por favor...
Então acontece o irreparável: o belo Alejandro se afasta de mim para olhá-la com um sorriso que
derreteria uma geleira.
— Hola...
Raffaella nos alcança e fala com ele em um espanhol fluente e perfeito.
Ele ri, passa a mão pelo cabelo e depois me olha de esguelha. O que será que ela disse?
Tito me puxa pela manga.
— Estou indo — digo, sem me afastar, ainda encarando Alejandro e Raffaella com um olhar
digno.
Então Raffa parece perceber que há uma intrusa entre ela e o Banderas da emissora e se volta
para mim, franzindo o nariz.
— Desculpe, Alice. Sei que não estou sendo simpática, mas, como amiga, preciso dizer: se puder,
vá fazer uma higienezinha. Você não está cheirando bem.
Não estou... Dou imediatamente um passo para trás, como se cinquenta centímetros de distância
fossem suficientes para garantir a quarentena. Porque não se trata só de dar vexame com o homem-
tanquinho, não: o problema é que ainda tenho pela frente quase três horas de gravação, durante as
quais vou ter que coordenar mais de vinte pessoas. Não quero feder como um carneiro selvagem da
Eurásia inferior.
Da porta, ainda lanço uma olhada para as costas de Alejandro e suspiro. Seus músculos brilham
sob a luz dos refletores. Mas ele pode, ou melhor, deve. Suado, os homens ficam sexys e viris; já as
mulheres deveriam ser geneticamente desprovidas de glândulas sudoríparas.
Mas talvez eu tenha uma solução: no meu último aniversário, os colegas me deram um perfume
que deixei, ainda fechado, na gaveta da escrivaninha. Vejo luz no fim do túnel!
10. A MALDIÇÃO DO ESCORPIÃO





Quando me flagra circulando pelo andar de cima, Enrico grita:
— Alice, o que você ainda está fazendo aqui?
Desacelero, mas mantenho distância, porque me sinto uma leprosa.
— Eu... eu me esqueci de uma coisa.
Ele fecha a porta da sala e se recosta no lado externo dela, exatamente como eu, que me esgueiro
ao longo da parede do outro lado. Seu olho ainda está vermelho e inchado, e uma das bochechas
exibe um risco de caneta esferográfica. Ouve-se alguma coisa cair lá dentro. Enrico leva um susto.
— Ca... Caramba, devo ter deixado a janela aberta. Vá logo. Rápido!
E eu saio quase voando, esperando não deixar para trás um rastro químico.
Abro a gaveta da minha escrivaninha e solto um grito de júbilo, como se tivesse encontrado o
Santo Graal. Arranco às pressas a embalagem de plástico e me submeto a uma chuva
descontaminante.
Respiro fundo.
Fundo demais.
E tusso.
O cheiro é de desodorizante para carros temperado com chicletes, e, misturado ao suor,
praticamente garante um licenciamento como arma de destruição em massa.
Desesperada, volto à cabine de direção, esperando que a corrida diminua o cheiro pelo menos um
pouco, mas ainda fico constrangida quando Tito se aproxima e recua um passo, fazendo sinal de
que vai falar comigo mais tarde.
— Um minuto para a vinheta — grasna a voz do operador pelo intercomunicador.
Enrico se afasta dizendo que vai à sua sala imprimir uns formulários de autorização para
transmissão de entrevista, e eu fico ali, cada vez mais sem graça quando me sento e as duas pessoas
ao meu lado se esquivam alguns centímetros.
Na abertura do programa, Tito é maravilhoso, discorrendo sobre horóscopo com tanta confiança
que nem a famosa astrofísica Margherita Hack ousaria contradizê-lo. O único deslize durante o
primeiro bloco é cometido por Marlin, que apresenta o “Convidado Cético”, um membro do Cicap,
Comitê Italiano para o Controle das Afirmações sobre as Pseudociências. Após dar uma espiada na
ficha dele, chama-o de “doutor” e lhe pergunta se, durante os “controles” que ele faz, descobriu se
algum dos signos é mais propenso a doenças.
Em uma tentativa desastrada de consertar a situação, Tito inverte a escaleta e, em vez de
apresentar o concorrente de Áries, apresenta o de Escorpião, seguindo uma lógica só dele. Os
escorpianos, segundo Tito, é que estariam precisando de um bom controle médico, no momento.
— De fato, no céu deste ano Saturno vai predominar, e ele entrou em Escorpião há poucos meses.
Esse planeta faz as fraquezas do signo aflorarem, todos os comportamentos equivocados. E,
principalmente, pode acentuar um traço típico dos escorpianos: o pessimismo. Ou então fazer com
que tentem coisas novas, caminhos novos, resolvam se testar, em suma. Para os que estão em
relacionamentos problemáticos há algum tempo, isso pode significar o fim da relação. A
introversão do Escorpião não ajuda. É um signo que deveria aprender a se comunicar mais, a pedir
ajuda quando precisa.
Suspiro e me espreguiço, mas logo baixo os braços de novo, com medo de que o efeito gás neural
provoque um genocídio instantâneo dentro da cabine. Quando observo furtivamente que ninguém
perdeu os sentidos, espio no fim do corredor o cara de Dor de amor, Alejandro. Agora ele está
usando uma camiseta verde-oliva, mas tão justa que os músculos parecem ter sido desenhados no
tecido.
Seu olhar penetrante encontra o meu e ele sorri, dando alguns passos à frente. Não acredito que
quando finalmente pareço ter alguma chance com um cara supergato eu esteja cheirando a Cheval
No 5. Então fico aliviada, ao menos em parte, quando Raffaella o detém no meio do caminho.
Aproveito para escapar em busca do banheiro mais próximo, querendo descontaminar minhas
axilas.
Quando saio do banheiro, estou mais tranquila e pronta para surpreender Alejandro com os
efeitos especiais do sabonete líquido.
Ao passar ao lado da salinha das luzes, escuto um ruído e, imaginando que seja ele guardando
algum equipamento, me inclino para dentro, apoiada na moldura da porta, em uma pose lânguida e
sexy:
— Oi...
Mas quem se levanta do chão com um salto, após fechar o zíper de uma bolsa, é Sergio, meu
colega.
— Ah... Oi, Alice. Precisa de alguma coisa? Enrico me mandou buscar umas baterias.
— Ah, é... hum... — Desanimo na hora, pensando que nunca me saio como nos filmes.
Quando volto à cabine de direção, estamos no intervalo comercial, e Tito saiu do estúdio para
tomar ar fresco. Quando me vê, me puxa para um canto e sorri.
— E então?
— Muito bom. Você foi ótimo. — Fico na ponta dos pés para dar um beijo em seu rosto, e ele me
abraça com força.
— Obrigado. E você vai ver, vai ficar cada vez melhor, agora que eu e Sua Senilidade já
aquecemos...
Dou uma risadinha e faço sinal para ele baixar a voz.
— De qualquer jeito, o que eu quis foi perguntar do seu amigo, o escorpiano. Você não entendeu?
— Você mudou a escaleta para me falar de... Alejandro? — Mordo o lábio para não sorrir como
uma débil mental, mas Tito franze a testa.
— Não. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Alejandro, não. Enrico.
— O quê?
Ele me segura por um braço e me arrasta dali.
— Escute, posso até ser um especialista em signos do Zodíaco, mas você não enxerga um palmo
diante do nariz. Típico de Libra, aliás. Aquele lá está aprontando alguma coisa. E não está indo
bem, estou dizendo. Eu só precisei olhar para você para saber seu signo. Acha que não percebi que
ele é Escorpião, depois de um mês? Escute. — Tito começa a listar, contando nos dedos: — É
reclamão por natureza, porque o planeta que domina o signo é Marte. Mas também pode ser fofo e
carinhoso, e realmente Enrico é meio paternal com todos vocês. Isso porque o Escorpião é o signo
dos opostos, e nunca dá para confiar nele totalmente. Tende a esconder o que sente porque não
gosta de demonstrar fragilidade, então prefere atacar primeiro. Você pode não ter notado, mas
ultimamente seu chefe anda transtornado, nervoso, explode por qualquer besteira. Resumindo, ele é
Escorpião, e Saturno está fazendo o homem passar por poucas e boas. Agora precisamos descobrir
quais são essas poucas e boas.
Ao ouvir a contagem regressiva para o retorno ao estúdio, devolvo Tito a seu lugar, mas quando
volto à direção não consigo evitar de procurar Enrico, olhando ao redor. Ele ainda não retornou.
Tinha dito que ia imprimir alguma coisa em sua sala. Mas... não estava sem tinta? E não me deixou
entrar. Quando me levanto para procurá-lo, sinto-me um pouco como uma espiã de saltos.

— Alice...
Basta ouvir essa voz e meus joelhos amolecem. A porta do escritório de David está entreaberta e
ele me olha de sua escrivaninha. É tão tarde que não pensei que ainda houvesse alguém aqui em
cima. Mas o diabo nunca dorme, certo?
— Oi, ahn...
— Como estão indo?
— Bem. Sim. Bem. Tito é muito habilidoso. E Marlin é... Marlin é linda.
Ele faz um muxoxo.
— O presidente exigiu que ela participasse. Mas e você, como se sente? Parece cansada.
Instintivamente, levo a mão ao rosto. Por que esse comentário me magoa? Com certeza ele não
quis ofender. E claro que não sou daquelas que mesmo menstruadas não têm um fio de cabelo fora
do lugar e saltam de paraquedas, sorrindo o tempo todo. Não: eu, ao primeiro sinal de cansaço, fico
com bolsas enormes sob os olhos, grandes como as bolsas do mercado em dia de compra do mês.
— Precisei correr um pouco hoje. Sabe como é começar um programa novo...
Ele suspira e esfrega o rosto. Se eu pareço cansada, ele parece carregar nas costas o peso do
mundo. Meio como o presidente Obama. Ou o Homem de Ferro.
— Não, não sei mesmo como são as coisas em uma emissora de televisão. É a primeira vez que
trabalho com isso.
Ele olha pela janela e eu passo alguns segundos encantada com seu perfil.
— Como assim? Você nunca trabalhou para uma emissora de televisão?
Ele balança a cabeça.
— Sou um corretor. Um observador. Meu trabalho é avaliar o panorama de uma empresa.
Compreender o funcionamento e ver as falhas... Com distanciamento. — Ele mexe em uns papéis na
escrivaninha e se levanta, alongando a coluna. — Mas às vezes parece que nada muda... só os
lugares. Roma, Paris, Barcelona... — David dá de ombros.
— É meio como estar em um liquidificador — comento, pensando em todas as pessoas que ele
deve ter conhecido. Em todas as Alice Bassi que passaram por ele. Em todas aquelas que ainda iam
passar. Esse pensamento me inquieta e me faz apertar com força a maçaneta. Eu o encaro e me
sinto afundando.
David, porém, ri.
— É, um liquidificador passa bem a ideia. Sou praticamente um sem-teto.
— E o apartamento? O que você foi ver com Raffaella?
David me olha, depois balança a cabeça.
— Não servia. Não posso levar o cachorro.
— Você tem um cachorro?!
— Alguém para me fazer companhia.
Então o telefone toca. Ele observa o visor e fecha os olhos um instante, antes de atender.
— Alô? — David levanta o indicador para mim, como se me pedisse para esperar, e sai da sala
dizendo: — No trabalho. Sim, ainda.
Suspiro. O que estou fazendo aqui? O que estou fazendo aqui com ele? No entanto, os sapatos
vermelhos que estão me massacrando os dedos não se decidem a andar. Chegam até a porta, mas em
seguida voltam, embora saibam, como eu também, que preciso encontrar Enrico e que lá embaixo
as pessoas estão me esperando.
Ainda ouço a voz dele, vinda do corredor:
— Eu disse que é um trabalho demorado. Não sei. Não. Não neste fim de semana.
Sorrio, porque sua escrivaninha é um caos de papéis, copinhos de café, canetas, lápis e outras
tralhas, e esta anarquia de objetos o faz parecer um pouco mais humano e um pouco menos
exterminador.
De repente algo familiar me chama a atenção. O meu nome. Embaixo de uma caneta, e ao lado
do currículo de Sergio, está meu próprio currículo, completo com uma foto horrível em que meu
cabelo parece um capacete entre Doris Day e Playmobil. Eu me lembro desse penteado, fui ao salão
especialmente para fazê-lo. Meu Deus, que vergonha David ter visto. Ainda que ficar constrangida
por uma foto de dez anos atrás não tenha muito sentido agora, sobretudo depois que ele se arriscou
a ganhar uma hérnia me carregando para casa como um saco de batatas, e segurou meu cabelo
enquanto eu entregava a alma a Deus.
Resumindo, será que David na verdade não é tão mau, só tem a fama? Por mais que ele tenha
escolhido um trabalho que disputa o prêmio do homem mais odiado do ano, consigo ver a pessoa
que ele é por trás de tudo. Um homem solitário, que não cria raízes e fica fugindo de si mesmo.
Mas esse é mesmo David? Olho para o corredor, porém ele está longe e eu nem o escuto mais.
Quando ele se vira, de repente, sustento seu olhar apenas por alguns segundos, depois meus
ouvidos zumbem e então me afasto às pressas, acenando para ele. Preciso voltar ao trabalho.
Procurar Enrico. Retornar à cabine de direção. Ficar ali, perambulando entre o escritório dele e o
corredor, não faz o menor sentido. Nenhum mesmo.

A porta da sala de Enrico está fechada.


— Enrico? — Levanto o punho para bater, mas dou um pulo para trás ao ouvir um berro digno
de Tarzan. Sem pensar duas vezes, entro. E vejo o que parece a cena do crime de um filme de terror.
Um daqueles com um serial killer que gosta de escrever sobre sua crise existencial nas paredes,
com o sangue das vítimas. — Meu Deus, Enrico, o que...
Então meus olhos captam o movimento de algo que se solta velozmente de sua perna e foge.
— O que é isso?
— Eu tinha dito para você ficar lá na direção! — reclama Enrico.
Olho nervosa para a parede, apavorada pela ideia de ler “muito trabalho e pouca diversão faz de
Jack um cara bobão” escrito ali repetidamente, como em O iluminado. Mas a maioria dos desenhos
ali não faz nenhum sentido, ou no máximo parecem... casinhas e carrinhos.
Franzo a testa e olho novamente para Enrico, que levanta a calça e massageia a perna. Sua
panturrilha está roxa, e a canela tem a marca de uma mordida. Depois ele suspira e se vira de
costas para mim, dizendo:
— Ricardinho, por favor, sai daí. Seja bonzinho, venha com o papai.
— Ricardinho? Você trouxe seu filho para o trabalho? Mas é proibido!
Enrico me olha de novo, furioso.
— Como tem coragem de dizer isso? Logo você! É culpa sua e desse maldito programa eu estar
nesta confusão! — Ele está quase espumando pela boca. — Foi você quem me meteu nesta situação.
Se tivéssemos ficado quietos, sem ideias geniais... mas não! Você tinha que inventar esta merda! O
Guia astrológico do cacete!
— Enrico! — grito, procurando o menino com o olhar. Ele não deveria escutar certas palavras.
Enrico morde o lábio e se vira.
— Ricardinho, nunca repita o que eu disse. Faça esse favor ao papai.
— Quelo mamãe.
A vozinha vem de trás do fichário.
— Oi, menininho. Aí está você! — Ricardinho levanta a cabeça de cachinhos dourados e me
observa com olhos mais azuis que os do pai. — Mas que lindo!
Alguém bate à porta, e instintivamente faço o menino se esconder de novo atrás do móvel
enquanto Enrico vai abrir.
— David... precisa de alguma coisa?
— Sim, desculpe, Enrico. Preciso falar com você. Ou melhor, precisamos descer para os estúdios.
É uma questão meio grave.
O fichário cai pesadamente, batendo em meu joelho.
— Aiii!
Enrico me fulmina com o olhar, e ouço David perguntar:
— Tem mais alguém aí?
— Hein? Não, só Alice...
— Ah, bom, ela também pode vir.
— Não! — Enrico me olha com raiva. — Alice não pode ir agora. Tem que ficar aqui e ajeitar
umas coisas. — Abro a boca para retrucar, mas ele não me dá tempo: — Porque Alice me deve isso.
Ele já está fechando a porta quando faço uma pergunta:
— Enrico, qual é o seu signo?
Ele volta um pouco e me olha, irritado.
— Vai se foder. Sou Escorpião.

Então Tito estava certo mais uma vez: como bravo Escorpião, Enrico está enfrentando o
mefistofélico Saturno. E agora eu com ele, que droga.
O que eu faço agora? Bom, a primeira coisa é levantar o fichário e liberar o menino antes que ele
tenha a ideia de me denunciar ao Juizado de Menores. Depois olho ao redor, em busca de alguma
coisa para distraí-lo.
— Olha, Ricardinho, que carrinho legal. Vamos brincar de carrinho?
Ele arranca o brinquedo das minhas mãos e começa a batê-lo contra o piso.
— Quelo quebar o cainho!
— Não, não faça isso. — Tento tirá-lo de sua mão porque está fazendo um barulhão e, além do
Juizado de Menores, desse jeito vão chamar até os bombeiros. — Me dá este carrinho, caramba... Me
dá!
Mas ele não perde a oportunidade de martelar minha mão com o brinquedo, e com toda sua força
de criança.
— Merda! — Levo a mão à boca, e a dor faz meus olhos lacrimejarem.
Ricardinho, porém, fica quieto.
— Merda é igual cocô? — pergunta.
— Ahn... não. Quer dizer... Eu não disse merda, tecnicamente... Não disse essa palavra.
— Merda!
— Não!
— Merdacocô, merdacocô, merdacocô!
— Chega! — Tenho uma ideia genial. — Vamos ver um pouco de televisão, quer?
Nas infinitas discussões com Paola, estabelecemos que televisão é altamente deseducativa e
sempre criticamos os pais incapazes de fazer outra coisa além de sedar as mentes dos filhos,
plantando-os diante de programas insossos. Então, eu deveria me sentir culpada enquanto procuro
ansiosa pelo controle remoto? De jeito nenhum, afinal ele não é meu filho, é? Se eu tivesse uma
zarabatana com agulhas mergulhadas em camomila e passiflora, juro que usaria.
Infelizmente, porém, enquanto procuro algum canal, percebo que o aparelho no escritório de
Enrico não é uma tevê de verdade, mas apenas o monitor de controle, ligado às transmissões. Na
prática, só se vê o estúdio Delta. E, especificamente, a vinheta de intervalo do Guia astrológico,
porque devem ter entrado com o comercial.
— Aquele cala tá pelado! — exclama Ricardinho, apontando.
Eu me sento à escrivaninha e, quando olho para o monitor, vejo Alejandro passando diante das
câmeras, de novo sem camiseta. Um instante depois, Raffaella também aparece, apoiando a mão na
barriga dele e o empurrando.
— Ah, vai se f... — Paro bem a tempo e me volto para o menino, com ar culpado.
Ricardinho me encara e diz, sem hesitar:
— Merda.
Eu suspiro. A tela fica preta e, depois do intervalo comercial, o programa recomeça.
— Para encantar alguém de Escorpião — diz Tito —, banquem os misteriosos. Mas, mesmo nas
melhores relações, preparem-se para uma tempestade a cada esquina. Para manter o escorpiano
interessado, fujam sempre dele. Esse também é um dos signos mais perigosos do Zodíaco e, se você
acha que foi sacaneado por um Escorpião, talvez tenha que persegui-lo até o fim do mundo para
fazê-lo pagar.
Ah, vai todo mundo para o inferno! Enrico, Tito que me mandou vir atrás dele, os escorpianos e
todo o resto.
— Tô cum sede! — diz Ricardinho.
Sobre a escrivaninha de Enrico há vários sucos de fruta terminados, mas um ainda está fechado.
— Quer este? — pergunto, enfiando o canudinho na caixinha.
Ele então sobe no meu colo e começa a beber com gosto. Ele é muito fofo quando está tranquilo.
Parece um anjinho.
Passei a reprimir meu instinto maternal desde que Carlo e eu nos separamos. Mas ter o menino
nos braços me dá uma sensação diferente. Ele pousa a cabecinha cacheada no meu peito e suspira,
relaxando. Faço o mesmo, me reclinando no encosto da cadeira e curtindo o calor que seu corpinho
emana. Um calor que se espalha por todo o meu corpo.
Não, espere aí. Não exatamente por todo o meu corpo.
Levanto Ricardinho e olho para o teto, xingando a maldição de Saturno. E também o xixi do
menino na saia do meu tailleur.
— Por que você não está de fralda, hidrantezinho de Satanás?
Como resposta, Ricardinho começa a chorar. E a única solução é irmos nos lavar e nos trocar. Por
sorte, encontro uma bolsa com outras roupas do menino. Já eu tenho que recorrer novamente ao
setor de figurinos, rezando para conseguir pelo menos um saiote havaiano.
Mas, dessa vez, dá tudo errado: está tão tarde que a oficina de costura está trancada. Só me resta
lavar a saia e tentar secá-la sob o jato de ar quente.
Perto dos estúdios há um banheiro equipado para a diretoria, com um monte de chuveiros e
secadores de cabelo. É para lá que eu vou, arrastando Ricardinho comigo. Para ele é uma
brincadeira, e muito mais divertida do que ficar trancado no escritório do papai.
— Vamos fingir que a gente é barquinho? — pede ele, abrindo a torneira da pia e esguichando
água em mim.
— Vamos fingir que você é um peixe, eu enfio sua cabeça embaixo d’água e vejo se você respira?
— respondo, enquanto começo a me despir.
A essa altura sei que nem minha blusa vai escapar, já que continuo vestida com ela enquanto dou
banho no menino, e, já que tem um chuveiro, é melhor aproveitar para me livrar, pela ordem: do
suor, do perfume e do xixi.
Depois de enxaguar minhas roupas, entrego o secador de cabelos a Ricardinho com uma tarefa:
— Agora você é um caubói e aponta esta pistola para as roupas, que são bandidos perigosos,
entendeu? — Assim, pelo menos ele me vai ajudar a secá-las enquanto eu tomo um banho rápido.
Enquanto me ensaboo, porém, continuo vigiando-o. Pela cortina opaca vejo a sombra dele se
agitar, e rezo para que o menino não resolva encenar Psicose e, quem sabe, jogar o secador ligado
em cima de mim, só de brincadeira.
Quando termino, me embrulho na toalha da diretoria. Mas, assim que fecho a torneira, percebo
que o banheiro está muito silencioso, silencioso demais.
E, de fato, ao puxar a cortina quase tenho um troço. Ninguém. A porta está escancarada e
Ricardinho sumiu. Mas o pior é que minhas roupas também desapareceram. Todas. Exceto por um
pé de sapato, como na história de Cinderela, não tenho nem meia abóbora para me vestir.
— Ricardinho!
Nada. Mesmo quando espio o corredor, não vejo o pestinha em lugar algum. Tenho a impressão,
porém, de ver alguma coisa caída no chão. E, como é inútil ficar ali parada, embora saiba que é
praticamente uma missão suicida, corro para recuperar o sutiã descartado pelo Pequeno Polegar.
Estou de quatro, com a bunda para cima, quando escuto vozes, e só tenho tempo de pegar o sutiã
e me meter em um quartinho, bem na hora em que David e Enrico passam por ali.
— Honestidade acima de tudo, David. Roubar material é inadmissível e, se ele errou, deve
assumir as responsabilidades.
Se pelo menos David não estivesse ali, talvez eu pudesse chamar Enrico e pedir ajuda. Mas o que
eu diria? “Papai, perdi seu filho?”
Meu Deus, se ele soubesse que Ricardinho está correndo sozinho pelos corredores dos estúdios,
sair por aí como Lady Godiva seria o último dos meus problemas.
Mas a certa altura escuto a risada do garoto. Que peste, está se divertindo, aquele Átila em
formato Teletubbies!
A porta da cabine de direção que usamos para o telejornal está aberta.
— Ricardinho? Você está aqui dentro? Escute, o jogo é bom quando dura pouco. Saia daí.
Estendo a mão para o interruptor, mas logo me lembro de que, para iluminar o ambiente,
primeiro é preciso ligar o painel geral, que fica em outro lugar.
Então continuo no escuro, mas paro ao ver uma sombra correndo de um lado para outro.
— Ricardinho! — exclamo, e depois, quando me recupero do susto: — Olha só, não vou brigar
com você. — No entanto, estou a ponto de perder as estribeiras se ele continuar assim.
Então tenho um vislumbre dele no escuro, mas o menino me atropela e me derruba, antes de
fugir pela porta.
Quando me levanto, tateando, descubro que, na fuga, Baby Killer perdeu mais um de seus troféus.
Graças a Deus, é minha saia. Ainda úmida, verdade, mas pelo menos não me arriscarei mais a
mostrar o lado B (ou o A, o que seria muito pior!).
Um instante depois, quero morrer quando David e Enrico atravessam o corredor. David para ao
lado da pilastra atrás da qual me escondi, e torço para que ele não seja dotado de visão raio X.
— David...? — chama Enrico, que se afastou alguns metros.
— Não foi nada — diz David. — Tive a impressão de ouvir a voz de um menino.
— Um menino? — Enrico dá uma risadinha histérica. — Aqui? Um menino? Ah, que absurdo!
— Pois é... — David se vira para o corredor que dá para os vários estúdios. — Lá no fundo.
Espero que Enrico o leve embora, depois sigo a pista que David me deu. Ele tinha razão. Agora
que estou mais perto, também escuto.
— Ricardinho?
Encontro o garoto. Ele está imóvel, de costas, como a menina de O chamado. É assustador. E
quando se vira, me diz:
— Quelo fazer dodói em você! — Em seguida ele ataca minha panturrilha, como um rottweiler.
Depois do que parece uma eternidade, me pego ofegando, mancando como um cavalo, mas com a
blusa bem firme nas mãos. Ricardinho Drácula 0 × Alice Lutadora 1.
Enquanto me arrasto pulando com o pé esquerdo, descalça, fecho os botões da blusa e penso em
todos os modos de me vingar.
Quando dobro o corredor, porém, dou de cara com uma parede de concreto armado que, tenho
certeza, não existia ali. Uma parede que me agarra e me segura firme. Apoiando as mãos na minha
bunda. Uma parede com músculos vibrantes e um cheiro bom de couro, másculo, viril.
Alejandro.
Não parece que ele tem intenção de soltar minha bunda.
— Lo siento mucho — diz ele, me encarando.
— Eu também sinto mucho — respondo, com um fio de voz, enquanto um bote salva-vidas parece
se inflar entre nós.
— Alice!
O trovão é a voz de Enrico, que tem dois efeitos: as mãos de Alejandro me soltam e eu cambaleio
para trás.
— O que você...? Onde está...? — Enrico fica pálido e então morde o lábio. Porque claro que não
pode me perguntar sobre seu doce pimpolho na frente de David.
Pois é. David. Agora eles andam em dupla, como policiais de patrulha. Nardi também está aqui,
óbvio. Primeiro olha fixamente para Alejandro e depois para mim, sem dizer nada.
— Hum... está tudo... sob controle — digo, enquanto ajeito a blusa para ganhar certa
compostura, e percebo que coloquei os botões em casas desencontradas. — Alejandro e eu
estávamos falando do programa... e eu perguntei... ahn... qual é o signo dele.
— Sagitário.
— Ah, bem... que interessante.

Volto ao estúdio — depois de conseguir falar para Enrico que, se fosse ele, eu recorreria à
Supernanny ou, melhor ainda, a um exorcista — e estou mais do que decidida a não me deixar
distrair de novo.
— Descobrir o signo de alguém, e depois o horóscopo, é um modo eficaz de começar a
compreender uma pessoa — diz Tito. — Aqui no programa daremos dicas sobre o que vocês devem
fazer. Querem conquistar um Escorpião? Este é um signo inclinado a extremos, então vocês podem
tentar comida picante ou uma torta de creme muito doce...
Bom, acho que, para Enrico, no momento, seria mais útil um colar de alho.
— Principalmente, se preparem para viver um dia de cada vez, com dramas frequentes.
Nesse momento, Luciano faz uma panorâmica do estúdio. E eu tenho um vislumbre.
Apoiado no telão, atrás das poltronas dos convidados, jaz solitário o pé que falta do meu sapato.
— Vamos para os comerciais!
— Não posso, faltam pelo menos dez minutos. O que deu em você? — pergunta Luciano.
Se meu Christian Louboutin está ali dentro, Ricardinho também deve estar!
Ignoro os berros de Luciano e, tentando fazer o mínimo possível de ruído, me enfio no estúdio,
olhando ao redor. Ali estão os câmeras, o assistente de estúdio, os convidados, Tito e Marlin... Mas e
Ricardinho? Embora seja pequeno, com certeza seria notado ao se enfiar entre os pés de alguém. A
não ser que...
Quando o vejo, quase tenho um troço. Ele subiu na passarela que contorna a gambiarra, a quase
quatro metros do chão.
Se ele cair, talvez o mundo seja poupado de uma terrível praga, mas eu não vou viver para me
beneficiar.
Ricardinho também me vê, e em resposta aos meus gestos desesperados levanta a última peça de
roupa que lhe restou e a balança no ar. Minha calcinha.
Quando começo a subir pela escadinha, não sei se tenho mais medo de que ele caia, de que a
calcinha vá parar na cabeça de um convidado, ou de que alguém olhe para cima e perceba que
estou circulando sem nada por baixo da saia.
O menino, porém, está supertranquilo, fingindo ser um fantasma da ópera em miniatura, e
desaparece descendo a escada pelo lado oposto do estúdio.
Já eu, que sou tão boa em esportes radicais quanto uma pessoa obesa é boa em dieta de pontos,
vejo meu pé escorregar e acabo contando os degraus, do primeiro ao último, com a bunda. Abafo
algumas exclamações pouco educadas e enveredo pela portinha de serviço a fim de recuperar a
calcinha que Ricardinho deixou para trás.
— Alice?
Podia ser um pesadelo. Eu podia acordar agora, assustada, e descobrir que ainda tenho que ir
para o trabalho e que nada disso aconteceu de verdade. Só que permaneço ali, com a calcinha na
mão, olhando David.
— Posso saber o que está acontecendo esta noite?
Ele não está brincando. Seus olhos não estão mais daquele jeito melancólico e sonhador que me
encantou em sua sala, agora há pouco.
E o que eu posso responder, além de “Não é o que parece. Eu posso explicar”?
Se acrescentasse “Meu Deus, meu marido chegou!”, usaria todos os clichês.
Ele estreita os olhos.
— Não vai vestir de novo? — diz, se referindo à calcinha.
Mordo o lábio enquanto ele suspira e se vira de costas, me concedendo, que bonzinho, um pouco
de privacidade.
— E então? Não podia esperar?
Eu pisco, confusa.
— Bem, não. Enrico...
— Enrico? — David se vira, e seu pescoço fica todo vermelho. — Primeiro, aquela espécie de
King Kong, e agora Enrico?
— Está falando de Alejandro? — Agora parecemos dois tomates maduros em uma horta. — Não,
é que...
Então explico tudo desde o início, esperando que depois Enrico não resolva beber meu sangue. E
que David não esteja mesmo do lado sombrio da Força, e não castigue nós dois por termos
escondido um menor em um local de trabalho cheio de ciladas. Quando termino, ele me encara
como se eu tivesse acabado de contar que o Presidentíssimo gosta de se vestir de freira e de levar
umas palmadas na bunda quando está em casa.
— Roubou suas roupas?
— Sim, depois de fazer xixi em mim.
David esfrega o rosto e faz uma careta. Então percebo que os nós de seus dedos estão esfolados.
— Você se machucou?
— Não é nada, só um arranhão.
Com certeza alguém escutando poderia pensar que é um diálogo de Dor de amor.
Eu o encaro por mais alguns instantes, enquanto ele se afasta alguns passos, depois se volta para
me olhar.
— Você vem?
— Aonde?
— Procurar o menino.

— Por que você decidiu trabalhar em televisão?


Estamos caminhando entre os cenários de Dor de amor e passamos dos escritórios dos poderosos
magnatas da novela para o corredor do pronto-socorro.
David tem linhas sutis no canto dos olhos que deixam sua expressão mais intensa.
— Bom... na verdade, eu queria fazer cinema.
— E de que filmes você gosta?
Desvio o olhar.
— Ah, bem, claro que os dos grandes diretores. Sabe? Forman, Kubrick, Kiarostami... — Mordo o
lábio, tentando me lembrar de mais algum.
David se inclina um instante e olha embaixo de uma bancada, para o caso de Ricardinho ter se
escondido ali, mas logo se ergue e me encara.
— Que tal dizer a verdade?
— Como assim?
— Não é desses filmes que você gosta. Eu sei quando você está mentindo, Alice.
Ele agora é o quê? Um agente da CIA ?
— Tudo bem, acertou. Adoro filmes românticos, aqueles cheios de trapalhadas, mas com final
feliz, que faz a gente se sentir em paz com o universo. Eles me acalmam.
— Tipo?
— Bom, Ghost, por exemplo. É uma história de amor linda.
— Hmmm, claro. Ele morre. Não tinha como ser mais incrível.
— Uma linda mulher.
— Super-romântico. Ela é uma prost...
— Alguém como você!
— Como eu?
— Não, quero dizer... é o título de outro filme. E também Harry e Sally... Um lugar chamado
Notting Hill... Dirty Dancing...
— São todos meio antigos. Não tem nada passando agora no cinema que você queira ver, por
exemplo?
Dou de ombros.
— Quando revejo esses filmes, me sinto adolescente de novo. Fazer o quê? Sempre tive a cabeça
meio nas nuvens. Culpa do meu pai.
— Por quê?
Procurando Ricardinho, abro um armário, mas a porta devia estar só encostada, porque se solta
de repente.
— Cuidado! — Atrás de mim, David apara a porta, evitando que caia na minha cabeça. E me vejo
presa entre seus braços e o armário. Tento não pensar no calor de seu corpo e nas batidas de seu
coração contra minhas costas.
— Porque foi ele quem escolheu meu nome, Alice. Ele me chama de Alice no País das
Maravilhas. Eu digo que Alice no País dos Vexames seria mais adequado.
Escuto David gargalhar enquanto recoloca cuidadosamente a porta no lugar, mas permanece
atrás de mim por mais alguns momentos.
— Acho que você só é um pouco atrapalhada. E talvez também seja muito insegura sobre suas
habilidades. Ainda bem que no trabalho você esquece isso.
Eu me viro e vejo que ele está sorrindo.
— Então, pelo visto, sou tão atrapalhada que às vezes até me esqueço de que sou atrapalhada. E
você?
Estamos atravessando o que parece o corredor de um supermercado, com prateleiras cheias de
produtos coloridos.
— Bom, nada de Davi e Golias. Simplesmente me deram o nome do meu avô.
— Não era disso que eu estava falando! — Dou uma risada e me viro de repente, acertando um
pote de picles no movimento.
David o agarra em pleno ar e o repõe no lugar.
— Dá para você esquecer agora também? De ser atrapalhada, quero dizer.
Cruzo os braços e ando bem no meio do corredor, lançando olhares furtivos às prateleiras que me
atraem para perto.
— Eu estava perguntando sobre como você resolveu trabalhar nisso...
David observa o set seguinte, sério.
— Vamos verificar ali. — Em vez de me responder, ele entra em outro cenário e o examina como
se fosse a cena de um crime, evitando cuidadosamente olhar para mim.
— Acho que ele não está aqui. Tudo bem que é pequeno, mas não dá para se enfiar entre as
frestas do piso — comento, recebendo em troca um olhar e um suspiro.
— Você é sempre assim?
— Assim, como?
— Irônica.
Dou de ombros.
— Não consigo ser diferente.
— Não! É bom, quero dizer, eu gosto, mas... — Ele atravessa outra porta, deixando aquele “mas”
em suspenso. Mas o quê?
Eu o encaro de um jeito questionador e ele suspira de novo.
— Não é fácil te acompanhar.
Ai, ai. Um ponto a menos para Alice.
— Também não é fácil acompanhar você — respondo tranquilamente, sorrindo. — Um homem
dedicado à carreira, com uma posição alta. Pode deixar qualquer garota meio sem graça. — Rio,
depois acrescento: — Mas você também é humano, não um Homem de Ferro. Quero dizer, bom,
você tem sua vida... Por exemplo, provavelmente brincava com outras crianças, assim como eu, e
sua mãe te dava bronca por não comer verduras. Esse tipo de coisa, coisas de seres humanos.
Mas David trinca o maxilar.
— Hum... Não.
Ele me vira as costas sem dizer mais nada. Depois de termos percorrido praticamente todos os
cenários sem encontrar rastros do menino, David segura a porta aberta para eu sair, e tenho a
sensação de que algo termina, algum encantamento se desfaz. Logo somos alcançados por Enrico,
que me lança um olhar sombrio e morde o lábio, fitando David.
— Por que você não está na direção? — pergunta ele.
Não sei o que dizer. Enrico não sabe que David sabe. Eu sei que David sabe, mas sei também que
não deveria saber. Mas David sabe que não deveria saber o que sabe? Estou tonta.
— Fui eu que a chamei — responde David, e eu suspiro de alívio. — Mas agora é toda sua, se
precisar dela.
Esse “toda sua” me dá um aperto no estômago, por mais que não signifique nada.
— Encontrou Ricardinho? — pergunto assim que ficamos sozinhos.
— Claro que não! Caramba, Alice, como você conseguiu perder meu filho? Se acontecer alguma
coisa com ele, Emília me mata. E eu mato você, que isto fique claro.
— Sua mulher não podia ficar com ele em casa?
Enrico puxa os quatro fios de cabelo corajosamente remanescentes em sua cabeça.
— Ela disse que eu preciso passar mais tempo com meu filho. E que ela precisa descansar.
Embora eu não duvide de que a mãe do pequeno Estripador precise de uma trégua, balanço a
cabeça.
— Mas você tem que trabalhar, Enrico. Ela precisa entender. Você não pode trazer um menino
para cá, com todos os perigos do nosso ambiente. Que tal uma babá?
— Emília se mandou, Alice. Hoje à tarde. Pegou o carro e foi embora. Está na praia com as
amigas. E eu levei um “não” de três babás.
É claro que entendo que passar a noite com uma versão de Hitler de cinco anos não é exatamente
a prioridade de uma adolescente.
— Não me diga! Ninguém mais curte ser amarrado e torturado? Que mundo!
— Pare com isso. Ricardinho é um menino muito ativo, mas não é mau.
Eu observo seu olho ainda inchado, o risco de esferográfica que lhe atravessa o rosto ao estilo
Scarface, o dedo enfaixado e a perna à qual o incompreendido Ricardinho se atracou, em uma
perfeita imitação de uma piranha. Mas como dizer a um pai que seu filho precisa de um exorcista?
— Bem, vamos continuar procurando.
De novo nos separamos, para cobrir uma área maior, e quando me aproximo da cabine de
direção, Luciano se debruça no mixer de vídeo e me detém.
— Aí está você, Alice. — Por um instante, acho que vou levar outra bronca, mas ele indica o
telefone. — Nardi ligou. Quer você na sala dele. Pediu para eu te dizer que ele “encontrou”. Não sei
o quê, mas ele encontrou.
Subo os degraus de dois em dois. Ah, mas agora aquele pestinha vai ver. Assim que eu terminar
meu assunto com esse menino, ele vai realmente estar parecido com Macaulay Culkin, mas depois
do tratamento de reabilitação.
Quando abro a porta, porém, fico pasma. David me olha sem se levantar da poltrona, para não
acordar Ricardinho, que está dormindo em seus braços como um anjinho.
— Encontrei o menino perto da máquina de salgadinhos. Dormiu com uma mão enfiada na
portinhola. Acho que estava com fome, mas o cansaço deve ter levado a melhor.
Todas as palavras soam como um zumbido para mim, porque só consigo pensar que não há nada
mais lindo do que um homem com um garotinho adormecido nos braços.
Ele se levanta.
— Preciso de sua ajuda...
Quando David se aproxima, percebo que uma de suas mãos está na boca do menino, bem presa
entre os dentinhos.
— Ai meu Deus...
— Ele não larga. E não parece que vai acordar. Nem sei como fez isso, dormindo.
Dou de ombros.
— Deve ser um reflexo instintivo, como o dos tubarões.
Seguro o narizinho do garoto com dois dedos e, menos de três segundos depois, Ricardinho abre a
boca, soltando a presa.
— Uma mulher de mil talentos — diz David, me entregando o garotinho e massageando a mão.
— Cuidado...
— Ele que tente comigo — digo, piscando para Nardi. — Estou começando a achar que a bruxa
de João e Maria tinha lá seus motivos.
Tento me livrar de uma mecha de cabelo que deslizou para o rosto e me dá coceira no nariz, mas,
com Ricardinho nos braços, não é fácil, e fico soprando e soprando os fios.
David tenta me ajudar, tocando meu rosto.
Instintivamente, dou um passo para trás, em direção à saída. Já cometi tantas gafes com ele,
tantas, que quero evitar a enésima. E, como já estou sentindo meu rosto ficar vermelho, me viro e
saio para o corredor.
— Obrigada por ter encontrado o garoto. E por ter chamado a mim, e não Enrico. Resumindo,
por...
— Por eu não ser o monstro que deveria ser? Apesar do meu trabalho?
— Não...
— Sim, é isso. Foi a primeira coisa que você me perguntou. Como alguém pode fazer um trabalho
como o meu. Alice, eu tento salvar as empresas, não destruí-las. Queria que você compreendesse
isso. Realmente, seria muito importante para mim.
De novo, ele me olha daquele jeito que parece querer enxergar o fundo da minha mente. Então só
consigo balbuciar um “Claro. Claro que compreendo”. E me afasto às pressas, porque a verdade é
que não compreendo nada.

A primeira coisa que faço, depois de pousar Ricardinho no sofá, é chamar Enrico e dizer que
encontrei o menino e que ele está bem. Assim que chega, Enrico me abraça com força, mas logo me
afasta de um jeito grosseiro, resmungando que não sou nada confiável e que é melhor eu sumir
imediatamente de sua vista.
Já na porta, vejo-o fazer carinho no filho e murmuro:
— Típico de Escorpião.
Ele então sorri e pisca, para não me deixar ver uma lágrima.
— Desapareça daqui.
Sinto o coração mais leve. E penso que posso ter sido um pouco egocêntrica achando que sou a
única com problemas, ignorando Enrico, a um passo de mim, com seu casamento em crise. E David.
Penso em David, que sempre me deixa tonta. Ele disse ter um cachorro para lhe fazer companhia.
Não deve ser fácil viver se mudando, sabendo que não se pode criar vínculos duradouros.
Só por isso, inclusive, eu deveria ficar bem longe dele.
Nada de continuar fantasiando sobre o Homem de Ferro, o Batman ou qualquer super-herói
solitário que não tem tempo nem vontade de ter um encontro mais longo com uma mulher do que o
necessário para saber se cuecas térmicas podem ser postas na máquina junto com tecidos delicados,
ou se é melhor mandá-las para a lavanderia.
Mesmo assim, continuo pensando nele.
Quando chego à direção, o programa acabou e quase todos já foram embora. Mas Raffaella ainda
está ali e sorri para mim.
— Enrico me disse que você teve uns problemas. Não se preocupe, cuidei de tudo aqui. — Ela já
está na porta quando se vira para me olhar. — Você ficou sabendo?
— De quê?
— Sergio foi demitido. Acho que a matança começou. Quem sabe quem vai ser o próximo...
Raffaella vai embora e eu me sinto perdida. Ouço a voz de David me pedindo para compreendê-
lo, porque, quando demite alguém, não é pessoal. E uma imagem, uma lembrança, me vem à mente.
Hoje, quando David atendeu ao telefone e eu fiquei sozinha em sua sala. Eu estava pensando no
homem, e não na figura profissional que ele representa, não em seu papel na empresa. Distraída
com minhas fantasias, cheguei perto da escrivaninha e vi o currículo de Sergio. Ao lado do meu.
Quem sabe quem será o próximo...
Lá fora, chove intensamente. Eu nem tinha percebido. Corro para o carro, porque só quero dirigir
para casa com o rádio a todo o volume, me afundar na música e não pensar no que está
acontecendo. Em Sergio, desempregado. Em David, que o demitiu. Em mim, que, como sempre, não
entendi porcaria nenhuma.
Mas, quando chego ao carro, me dou conta de que, pela enésima vez, fui uma idiota, porque
esqueci a bolsa na cabine de direção, com as chaves e todo o resto.
Volto, batendo a porta com violência. Estou furiosa.
Sinto raiva de David, que mentiu para mim, que não é a pessoa que parece ser. E de mim mesma,
que continuo a interpretar tudo sempre do mesmo jeito, como se usasse óculos de lentes cor-de-
rosa. Estou tão indignada que sinto falta de ar. E minha roupa está molhada, o tecido colado à pele
de maneira tão irritante que preciso arrancar tudo.
Já tirei a blusa quando percebo que não estou sozinha.
Na porta da cabine de direção, Alejandro não diz uma palavra, mas me encara com seus olhos
latinos, escuros e lânguidos. Eu também não digo nada, só me aproximo, sem desviar o olhar do
dele.
Com um gesto fluido, experiente, ele despe a camiseta, exibindo mais uma vez o abdômen
atlético. Preciso disso. Preciso me perder.
Seus lábios têm o gosto salgado da minha decepção.
CÂNCER

Vamos tirar logo esta pedrinha do sapato: você nunca vai cozinhar, costurar, limpar a casa, nem
fazer qualquer outra coisa no mundo, melhor do que a amada mamãe dele. Em comparação com o
menino de Câncer... ai, desculpa!, com o homem, com o homem de Câncer, Édipo era um carinha
equilibrado, nem um pouco agarrado à saia da mãe. De qualquer jeito, com certeza você vai
conhecer sua rival rapidinho, assim que o canceriano te convidar para ir à casa dele.
11. O PERFUME DO SAGITARIANO SELVAGEM





— Não acredito que você fez isso!
— Paola, foi só um beijo, não um filminho erótico em cima da bancada da cabine de direção.
Mas fico feliz em relembrar, porque foi só um beijo, sim, mas tórrido como o deserto de Gobi.
Eu me senti em um daqueles filmes americanos em que as mulheres são lindas e desinibidas. Tão
lindas e tão desinibidas que, quando entram em algum lugar, não precisam nem abrir a boca. Basta
um olhar, lindo e desinibido, e elas conseguem pelo menos um drinque (de graça), um homem para
a noite (que, em qualquer filme decente, será seu amor verdadeiro), um vestido de noiva, um
palacete com piscina, um jogo de panelas de aço inox, e talvez até um colchão ortopédico.
— Você não está exagerando? — pergunta Paola, que, na condição de amiga, funciona como
torre de controle e orienta as manobras de aterrissagem. — Olha só, Alice, estou feliz por você ter
tido essa experiência tão... tão passional, mas não fica se iludindo sobre esse cara. Para começar,
um homem que fica andando sem roupa, como um macaco, para mostrar a barriga tanquinho... E
que pula em você, sem trocar nem cem palavras, já querendo botar a sucuri pra fora... Eu não acho
que ele está em busca da alma gêmea.
— Falando desse jeito, parece que foi uma excursão por um safári, em vez de um beijo —
respondo, bufando. — E eu também não iria tão longe.
— Graças a Deus, Alice. Ainda bem que você teve algum juízo e não fez nenhuma besteira.
A “besteira” teria sido, no máximo, um pouco de diversão para as minhas partes baixas, que já
estão entrando em aposentadoria precoce e não recusariam uma voltinha de carrossel ou, para
continuar na metáfora de Tarzan, um passeio de cipó.
— Mas eu quero fazer, vovó. Só que, antes, preciso me preparar. Amanhã mesmo vou marcar
depilação. Aí, se ele ficar ao meu alcance de novo, salve-se quem puder — digo, querendo implicar.
Sei que Paola não aprova: é adepta da regra dos cinco encontros, no mínimo, talvez mais. Mas ela
começa a rir, e ao fundo também escuto a risadinha de seu filho, Sandrinho. E, como sei que Paola
sempre liga o viva-voz para ficar com as mãos livres para cuidar do menino, agradeço aos céus que
ele seja muito pequeno para entender.
— Vai com calma, Alice, espera um pouco para fazer a depilação. — Por um momento, sua voz
fica mais distante: — Sim, é Alice, minha amiga. Você me passa aquele potinho?
— Você n... não está sozinha? — balbucio.
— Não, minha mãe está aqui, veio me ajudar a preparar as papinhas para congelar.
— Oi, Alice! — escuto claramente, ao fundo. — Mande um abraço para sua mãe.
— Claro, mando, sim. Ahn, bom dia para a senhora.
No telefone com Paola, é fácil bancar a irresistível, fingir ser uma mulher fatal que faz os
homens caírem a seus pés com um estalar de dedos.
Na verdade, nunca aprendi a estalar os dedos, e talvez seja por isso que precisei inventar mil
outras estratégias para arranjar um mísero namorado.
Considerando os resultados, porém, talvez eu devesse praticar o estalo.
Na segunda-feira de manhã, quando bato o cartão de ponto, ainda estou esfregando o polegar e o
dedo médio, na tentativa de produzir um estalo decente. Faço isso mais para descarregar a tensão
do que por qualquer outro motivo, embora a mensagem de Tito devesse ter me deixado de bom
humor.
Bom dia, librianinha.
Você está exalando energia e alegria de viver, e isso atrai as pessoas ao seu redor. O mérito é da Lua Cheia em Libra, mas
também da conjunção entre Vênus e Urano, que favorece as relações e as novas amizades.
Mas fique de olho na Lua Quadrada, em Trânsito Negativo com Netuno, que pode fazer você se iludir e trocar a realidade pela
fantasia. Urano em conjunção com Vênus pode fazer você brigar com a pessoa amada, ou deixá-la mais impulsiva na hora de tirar
certas conclusões, ou tomar decisões românticas. No entanto, o Sextil de Mercúrio com Plutão e o Trígono de Marte com a Lua te
garantem escolhas confiantes, e vai ser difícil mudar de ideia. Seja como for, parece um bom momento para demonstrar sua
personalidade e afirmar sua força, principalmente no trabalho, com Saturno te apoiando, favorecendo a concentração e te deixando
enfrentar com tranquilidade até as tarefas mais estressantes.

Fecho os olhos e inspiro profundamente, esperando encher os pulmões de força e determinação.
Infelizmente, quando solto o ar, expiro também todas as coisas boas que Tito quis me passar. Por
mais que eu queira trocar a realidade pela fantasia de ser uma supermulher, não posso ignorar a
demissão que deve acontecer em breve. Assim como não posso evitar de encontrar Alejandro e lidar
com o constrangimento posterior ao nosso momento mágico da última noite. E David.
Terei que enfrentar David.
Não sei quando. E não sei como. Mas vai acontecer, já que trabalhamos juntos, como um daqueles
casais das séries de TV. Como em Casal 20, mas não somos bilionários, não somos casados e eu não
escrevo best-sellers. Como em Arquivo X... Embora a única coisa fora da Terra, nessa situação, seja
meu senso prático. Bom, preciso encarar a realidade. David e eu não combinamos, é como juntar o
Super-Homem e uma babá tipo a Supernanny.
E, por falar em babás, meto a cabeça no escritório de Enrico, porque quero saber como ele está,
se sua mulher voltou, se ele conseguiu comprar o xarope de Ricardinho. Mas a sala está vazia, o
que é bem estranho, considerando que é uma manhã de segunda-feira.
Os cubículos do salão também estão desertos. Só encontro Conchita, esvaziando as lixeiras,
tirando o pó das escrivaninhas e molhando as plantas. Já pensei outras vezes que ela é a única aqui
dentro que realmente trabalha, mas agora tenho certeza.
— Oi, Concy, sabe onde estão os outros?
Ela dá de ombros, depois faz o gesto de levar uma xicarazinha invisível aos lábios, com o
mindinho rigorosamente levantado.
— Birindi — responde. E, quando balanço a cabeça dizendo que não entendi, ela acrescenta mais
simplesmente: — Bar.
Enquanto percorro o corredor rumo ao refeitório, ouço um burburinho crescente. Empurro as
portas basculantes e vejo todos reunidos ali. Estão brindando com café e sucos. O birindi de
Conchita.
— Parabéns! — exclama Enrico, batendo no ombro de Carlo, fazendo-o balançar.
— Parabéns, Cristina! — acrescenta Raffaella, entregando-lhe um enorme pacote.
Por que tenho a sensação de que caí em uma festa dos horrores, no estilo Além da imaginação?
Aquelas coisas meio anos 1950, onde todas as mulheres usam coques altos e saias godê, mas depois,
com um grande sorriso, te servem uma torta feita de ossos humanos cheios de vermes.
Cristina está se exibindo como uma pavoa, tocando a barriguinha quase imperceptível. Não, não
é um simples brinde por algum sucesso profissional. Não, eu vim parar bem no meio do chá de bebê
da futura prole de Carlo!
— Obrigada, amigos, vocês são uns fofos — diz minha ex-amiga, de um jeito tão doce que
poderia causar uma overdose de açúcar.
Enquanto ela abre o envelope que acompanha o pacote, Raffa me vê e leva as mãos à boca de um
jeito encenado.
— Alice!
Todos se voltam para mim. Carlo dá um passo à frente, mas logo desiste, fulminado pelo olhar de
sua quase esposa e quase mãe do seu filho.
— Ahn, Alice, vem cá — chama Cristina. — E obrigada — acrescenta, apontando o pacote cheio
de frufrus.
Mas é Raffa quem se aproxima.
— Na verdade, Alice não participou do presente — explica Raffaella, depois se vira para mim
com uma expressão condescendente. — Achei mais delicado não te contar.
Pronto, agora tenho a confirmação: não me convidaram para essa simpática festinha de
propósito.
O pior é que todos pararam de sorrir, como se a Bruxa Má do Oeste tivesse chegado para encher
o saco de Dorothy e seus companheiros.
E tudo o que consigo dizer é “Me desculpem”, mesmo preferindo fingir que sou um holograma ou
apenas fruto de uma alucinação coletiva resultante de café batizado com álcool.
Dou um passo para trás, tentando desesperadamente alcançar a porta, mas alguém me segura
pelo ombro.
— Para falar a verdade, Alice sabia. Eu contei quando fui pedir ajuda para comprar o presente.
— David me puxa para a frente. — E acabamos decidindo dividir um. Aqui está. — Ele apoia um
pacotinho menor sobre o pacotão, mas está embrulhado com um papel legal e tem um cartãozinho
cor de creme. — Este é o meu. E de Alice.
Não sei como a mão dele deslizou pelo meu braço, mas agora seus dedos roçam os meus. Eu o
encaro enquanto uma vozinha de mosca chata sibila:
— Ah, obrigada, que gracinha. Não é, Carlo, eles não foram uma gracinha? Eles dois. David e
Alice.
Por uma fração de segundo, olho para nossas mãos. Então David afasta a dele, metendo-a no
bolso.
— Imagine, Cristina. Parabéns — responde ele.
Evito o beijo de Judas que Carlo vem me dar, me inclinando para cumprimentar Cristina e
torcendo para sair viva dessa sala.
— Obrigado, David. E Alice — diz meu ex-noivo, mesmo assim. — Obrigado pela... miniguitarra
acústica.
— Hum, acho que Carlinho Jr. vai adorar... daqui a alguns anos — comenta Cristina.
Vejo David corar. David Nardi, o demitidor mais veloz do Oeste, que talvez tenha acabado de
escrever meu nome no alto de sua longa lista. Aliás, os olhares dos outros não são menos duros
porque ele me ajudou. Se você nasce Ceifador Sinistro, não pode virar Lancelot de repente e brincar
de ser o cavaleiro mais gentil do reino. Luciano e Ferruccio estão mesmo me lançando olhares
mortíferos.
— Não sei se você já tomou, mas eu preciso de café — peço a David, para livrá-lo de Carlo e
Cristina. Me parece justo, para retribuir sua gentileza.
— Vou buscar, com todo prazer — responde ele, abrindo caminho para nós rumo ao balcão do
bar.
Ficamos em silêncio enquanto o garçom prepara nosso café. Ele executa uma série de
movimentos mecânicos, e nós o observamos como se fosse a apresentação de um equilibrista. Não é
exatamente uma ótima cena, considerando que, no verão ou no inverno, esse garçom sempre tem
marcas de suor do tamanho de bifes sob as axilas, mas digamos que um ponto em movimento nos
fornece uma desculpa para não olharmos um para o outro.
— Como é que foi...
— Você soube de...
Falamos ao mesmo tempo, junto com o ruído das xícaras sendo pousadas nos pires.
— Desculpe — digo.
— Fale você. — Ele balança a cabeça, ainda evitando me olhar.
— Eu só queria perguntar se você sabe como foi a primeira apresentação do Guia astrológico.
— Ah, sim. Bem... acho que bem. Mas vamos conferir o share mais tarde, com o presidente.
Suspiro e bebo o café, esperando que tenha mesmo ido bem, porque, do jeito que estão as coisas,
eles podem decidir equilibrar tudo praticando tiro ao alvo com os funcionários para cada ponto de
share perdido. Talvez tenha sido isso que Tito quis dizer no horóscopo que me mandou: atrai as
pessoas ao seu redor. Só que ele não especificou que meus colegas se aproximariam para me
massacrar.
Quando vejo David franzir a testa e fitar algo por cima do meu ombro, me viro instintivamente e
encaro Conchita, com seu esfregão em uma das mãos e uma rosa amarela na outra.
É uma visão desconcertante.
— Não, obrigada — digo, impulsivamente, porque, sempre que vejo uma rosa, há um vendedor
atrás dela.
— Não. Prati — retruca Conchita. — Trahida ahora. Prati.
— Acho que ela quer dizer que trouxeram agora para você, Alice — explica David. — Obrigado,
Conchita.
A vantagem de ter um trabalho nômade: você fica familiarizado com línguas estrangeiras.
David me estende a flor depois de recebê-la das mãos da faxineira, mas eu permaneço imóvel,
olhando para ele. E fico assim por um motivo.
Nesse momento, um braço envolve minha cintura, e lábios macios, quentes e... latinos pousam
em meu pescoço, enquanto uma voz, às minhas costas, sussurra:
— Querida...
Se não fossem as circunstâncias, talvez eu começasse a rir pensando em Gómez, da família
Addams, e, em resposta ao beliscão que sinto na bunda, diria: “Obrigada, Mão!”.
Mas não tem nada de engraçado. Pelo menos não quando vejo David segurando a flor por mais
um instante antes de encarar Alejandro — que se move contra mim como se quisesse dançar
lambada às nove da manhã — e depois largar a rosa no balcão.
— Bom, preciso ir — diz ele, entredentes. — Bom dia, Alice.
12. LIBRIANAS SÃO FÁCEIS





Bom, em tempos remotos, fui muito fã de Agatha Christie, mas nunca pensei que, em um dia
longínquo, teria meu próprio mistério para resolver.
Mas aconteceu. Estou às voltas com o Caso da Rosa Amarela.
Não é um título muito original, mas a sinopse é a seguinte: não faço ideia de quem me enviou
aquela rosa.
Admito que, de cara, e por causa do timing dos eventos, achei que tivesse sido o homem do
abdômen de aço, já que o belo Alejandro apareceu praticamente na mesma hora que a flor.
Mas ele negou essa hipótese, dizendo que, se fosse fazer isso, me enviaria uma rosa roja como a
pasión. E aposto que ele me entregaria pessoalmente, segurando-a entre os dentes.
— Alô, mãe? — digo, quando escuto a voz dela do outro lado do telefone.
— Oi, querida, o que foi?
— Você ou papai por acaso me mandaram flores aqui na empresa?
— Espere, que seu pai está na escada. Está todo agitado hoje. Já engraxou todos os sapatos e
agora está brincando de Homem-Aranha na despensa. Guido! Desça da prateleira, isso daí vai
quebrar!
— Não quebra, eu estou só apoiado, Ada. Tenha um pouco de confiança. Posso ter me
aposentado, mas ainda não fiquei gagá.
— Sim, sim, claro. Com essa história de aposentadoria, você não sabe mais como demonstrar sua
masculinidade. Cuidado para não cair. Depois quebra um fêmur, e quem é que vai empurrar a
cadeira de rodas?
Meu pai resmunga ao fundo: — Aqui, ó, vou te mostrar o fêmur...
— Então não foram vocês que me mandaram as flores.
— Guido, Alice está dizendo que recebeu umas flores e não sabe de quem! — grita mamãe.
— Deve ter sido engano! — exclama meu pai, muito simpaticamente, do outro lado da casa.
— Por que engano? Eu não posso receber flores? — reclamo, magoada.
— Bom, seria uma novidade, meu anjinho. Hoje em dia, você sabe muito bem os homens que
andam por aí.
Ainda escuto meu pai recitar, ao fundo:
— Se alguém rouba uma flor para você, é porque não sabe o que mais fazer, mas decerto quer te
comer.
Suspiro.
— O.k., preciso ir. Agradeça ao papai pela poesia.
Quando desligo, sinto um estranho calafrio me descer pela coluna. E se foi algum stalker? Afinal,
ser autora de um programa traz certa fama, e meu nome até apareceu em uma notinha do jornal.
Mas acho que é o cúmulo eu estar aqui sem nem mesmo um namorado e alguém que goste de
mim resolver ficar me perseguindo com flores. Quero dizer, se esse homem tivesse um pouco de
coragem e se revelasse, eu poderia levá-lo em consideração.
— Qual será o signo dele?

No almoço, tento distrair a cabeça da ameaça iminente comendo com Tito.


— Ah, fala sério, você ganhou uma flor, não uma orelha humana! — diz ele, fazendo pouco-caso.
— Pois é, mas eu queria saber de quem.
— Porque é curiosa como um macaquinho. — Ele olha ao redor do refeitório, mordendo outro
pedaço do sanduíche e saboreando. — Nardi? Ele tem cara de admirador secreto. Banca o durão,
mas no fundo é bem tímido.
David. Percorro o refeitório com os olhos. Ele está à mesa com o Presidentíssimo e com o diretor
do RH, Franco Minora, conhecido como Minority Report, por causa das cartas de advertência que
partem de sua sala.
— Acho que não. Ele pareceu surpreso com a chegada de Conchita.
— Com a chegada de Conchita ou do Homem Tanquinho?
Bom, eu e David não nos esbarramos mais essa manhã. Eu deveria ficar feliz com os gestos do
Homem Tanquinho — quero dizer, de Alejandro —, mas relembrar aquele momento me deixa um
pouquinho incomodada.
— Fala do diabo e aparecem os bíceps.
As palavras de Tito fazem eu me virar para as portas, por onde entra Alejandro, olhando ao redor
como um pistoleiro em um saloon.
Na mesa ao lado, a assistente de Dor de amor, Mara, acena para ele, e Alejandro se aproxima com
aquele jeito felino, fluido, indolente e muito sexy.
Só que ele não se senta no lugar que ela liberou, afastando a bolsa. Não, a um passo da cadeira,
Alejandro se desvia em minha direção, encarando Tito como um garanhão agitado.
— Dulce Aliz, aí está você. — Ele pega minha mão, tira delicadamente o garfo cheio de salada
dos meus dedos e os beija. — Te procurei mucho, senti sua falta.
Suspiro, fitando aqueles olhos negros como a noite.
— Mas vocês não se viram na hora do café? — intervém Tito, jogando farelos do sanduíche para
cima de nós.
Estreito os olhos até que pareçam fendas, e ele dá de ombros.
Em vez de soltar minha mão, porém, Alejandro me puxa, dando um passo atrás para que eu me
levante.
— Ela ainda não terminou a salada — observa Tito, erguendo os olhos displicentemente.
— No es este el alimento de que Aliz precisa — rebate Alejandro. — Venga conmigo, querida.
Sob efeito de seu sotaque espanhol, acho que também caminho com a fluidez de um felino até a
saída.

— Vamos fazer uma votação — digo, sentada à minha mesa, e levanto a mão. Tito está na minha
frente e encara, perplexo, o celular em viva-voz entre nós.
— Para mim é NÃO, Alice. Absolutamente NÃO — diz Paola, do outro lado da linha.
— Então você acha que eu devia sair hoje com Alejandro assim... sem me depilar?!
— Você me perguntou e eu respondi. Se você não se depilar, nem vai passar pela sua cabeça a
ideia de dar para ele no primeiro encontro. É uma tática, Alice. Homens desse tipo abrem um
sorriso e te deixam sem calcinha. Seja esperta!
Resmungo e lanço a Tito um olhar de cãozinho abandonado.
— NÃO! — diz ele, cruzando os braços. E, quando eu faço beicinho, na última tentativa de
amolecê-lo, ele se reclina no espaldar da cadeira, aumentando a distância entre nós. — Vocês já se
beijaram. Ele agora te chamou para sair. E você já cometeu o erro de aceitar de cara. É melhor
equilibrar as coisas de algum jeito. Alejandro é sagitariano, caramba, é o homo mais eroticus de
todo o Zodíaco. Sagitário só quer saber de sexo: se não está transando com alguém, está pensando
em transar, ou então está brincando sozinho. Claro que todo mundo que acaba na cama com um
sagitariano descobre que ele é maravilhoso, superdotado, o sonho erótico de toda mulher, a melhor
experiência que...
— TITO! — Ouvimos Paola gritar pelo telefone.
— Foi mal, Paola. Só estava comentando. Mas, enfim, os sagitarianos não são muito de
compromisso. Então é melhor tentar aumentar o interesse deles antes de entregar o que eles
querem.
— O.k., então não, Alice. Ganhamos por dois a um: nada de depilação. Proibido. niet. Entendeu
bem? Ao menos por... bom, em vez de cinco encontros, faço um abatimento de dois. Nada de
depilação nos três primeiros.
— TRÊS? Você é louca. Não, pior, é sádica!
Entre outras coisas, isso significa que vou ter que arrumar alguma roupa que seja sexy, sim, mas
que cubra bastante as áreas restritas.
Assim, quando Alejandro passa para me buscar, estou com um par de botas de salto agulha e
cano alto, sobre uma meia-calça grossa, bem recatada, e uma minissaia.
Mesmo sabendo da minha estratégia, estou me sentindo bonita, interessante e sofisticada quando
me aproximo do carro dele. Ou seja, a mulher ideal para um homem cujo sobrenome poderia ser
SexAppeal.
Alejandro, no entanto, desmente todas as previsões daqueles dois conspiradores que ainda chamo
de amigos. Para começar, não pula em cima de mim como Paola disse que provavelmente faria. Não
tenta nem mesmo me apalpar enquanto nos cumprimentamos, como Tito disse que ele
provavelmente faria. Pelo contrário, é gentil o bastante para abrir a porta do carro para mim, coisa
que nem Carlo, em cinco anos de relacionamento, jamais se dignou a fazer.
Ele parece até um pouco tímido enquanto zapeia pelas estações de rádio, perguntando que tipo de
música gosto de ouvir, se estou com frio ou se prefiro baixar um pouco o vidro para sentir no rosto
o ar noturno.
No trajeto, Alejandro fala muito; me conta sobre sua vida, sobre Sevilha, sobre a Espanha, e
pergunta se já estive lá, o que achei do país, o que me agradou. Estou cada vez mais inclinada a
acreditar que aqueles dois não sabem nada sobre ele, e me questiono se eu também não julguei
rápido demais. Sempre reclamei que os homens julgam só pela aparência, que se deixam levar pelo
aspecto físico, sem ir além. Mas o que eu fiz? Vi esse homem lindo e pensei exatamente que ele não
passava de um petisco suculento, com bíceps bronzeados, coxas de aço e abdômen de... Ah, não
posso pensar no abdômen dele, senão vou acabar babando.
Onde eu parei mesmo? Ah, sim: estava ouvindo Alejandro.
— Porque, sabe, quando te vi na direção, naquela noite, e você... Preciso me escusar contigo,
porque no es mi manera de hacer. Só que você me atrai, Aliz. E acabei me aprovechando de ti. Sinto
mucho. E esta noite lo que quería, o que quiero hacer, é desculparme.

Seu modo de desculparse inclui um local que, segundo ele, vai agradar muito a uma moça “simples
e espontânea” como eu. Na verdade, com as botas de couro e o salto agulha, não me sinto
exatamente simples e espontânea, muito menos estável para caminhar sobre a grama alta,
enquanto seguimos na direção de algumas luzes ao longe.
Evito o segundo tropeço parando para contemplar as lanternas coloridas que ondulam na brisa.
— Que lindas! — digo, para recuperar o fôlego.
— Eu devia ter contado aonde vamos esta noche — diz ele, sorrindo para mim. — Não quero que
você se machuque. Espere um poquito... — Ele se agacha um pouco e, sem nenhum esforço (faço
questão de repetir: sem nenhum esforço!), me pega no colo e atravessa o gramado, me carregando
pelos cem metros que faltam.
Bem, se eu começasse a descrever as palpitações do coração dele e do meu, o perfume do cabelo
que ondula ao vento e faz cócegas no meu rosto, o calor que seu corpo de macho alfa emana e como
tudo isso me deixa tonta, correria o risco de parecer uma daquelas heroínas chatinhas de romances
bobos ao estilo Jane Austen. Basta saber que aproveito cada passo da caminhada ao luar e, quando
ele me coloca de pé nas tábuas rústicas de uma espécie de pista de dança ao ar livre, pareço
continuar sonhando.
Embora o local não esteja lotado, há vários dançarinos ao redor, usando roupas coloridas. E se
movem em sincronia, como em um filme de Baz Luhrmann.
— O que é isso? — pergunto, feliz de ainda me apoiar nos braços dele.
— Aquí bailamos... Flamenco, tango... Bailes de mi tierra.
Agora acho que não estou mais em Milão, mas em um dos piores bares de Caracas.
Só que não sei dar um passo, e não é só por causa dos saltos que com certeza vão ficar presos
entre as tábuas do piso assim que eu tentar me mexer. Não, é que eu sempre fui dura como um
poste. Sou uma péssima dançarina e queria ter algum pretexto, como um nervo ciático inflamado,
ou alguma promessa que fiz quando criança, mas Alejandro me estende a mão.
— Desde quando te vi, quiero haberte nos braços... Quiero bailar contigo, Alice.
E como alguém recusa um convite desses?
Digo a mim mesma que, se Jennifer Grey, a atriz de Dirty Dancing, conseguiu, eu também
consigo. Faço mentalmente o sinal da cruz e vamos lá.
Nem preciso dizer que Alejandro dança como um deus.
Eu, obviamente, não. Tropeço, mas ele não liga, me puxa de volta e me corrige gentilmente,
sussurrando no meu ouvido o que devo fazer. E eu faço. Estou dançando sem nem mesmo fazer
muito esforço.
Por fim, estamos suados, eu contra o peito ofegante de Alejandro. Nossos corações batem
enlouquecidos e nos encaramos de um jeito íntimo, como se já tivéssemos feito amor. Porque foi essa
a sensação que tive ao dançar com ele, tocá-lo, sentir seu abraço seguro. Fizemos amor no sentido
mais sublime e platônico do termo.
— Alejandro? Posso tirar você para dançar?
Quem é essa fulana se metendo entre nós na maior cara de pau? Meu olhar incinerador não faz
efeito, a perua não está nem aí, e Alejandro ainda sorri e segura a mão dela.
— Assim você descansa un poquito — diz ele para mim, embora eu já estivesse pronta para o
segundo round e mais ainda!
Vou para a lateral da pista, tentando bancar a superior e não olhar para os dois, mas não posso
evitar me roer de raiva pelo modo como a garota se move contra o corpo do meu Sagitário. Espero
que ele dê um jeito de se afastar, mas acho que essa esfregação toda é típica da dança e Alejandro;
mesmo que quisesse sinceramente se afastar, não pode fazer nada.
Continuo fingindo que não ligo e presto atenção, nesta ordem: nas luzes coloridas, nos
dançarinos, na música, nos instrumentistas, no bar (onde tenho tempo de tomar uns dois drinques)
e no campo ao redor, enquanto os ritmos se sucedem e Alejandro parece ter esquecido que me
trouxe aqui. Nenhum outro me tira para dançar.
Mas de repente tudo muda.
— Y ahora você descansou bastante — diz ele, me puxando de novo para si.
Então não me esqueceu! Só estava me dando um tempo para descansar os pés.
E dançamos de novo, dessa vez uma música lenta e sensual. E mais toques, os lábios grudados ao
meu ouvido, sua respiração quente me acariciando o pescoço.
Então ele me beija.
Faz isso parando de repente, no meio da pista e no meio da dança. Reduz a distância entre nós e,
por alguns segundos, mantém a cabeça inclinada. Apesar da música, escuto seu suspiro quando ele
me olha nos olhos de um jeito que devia ser proibido para menores de dezoito anos. Depois ele
segura meu rosto com as duas mãos.
E, talvez pelo ritmo animado, pelos drinques, ou simplesmente porque ele é Sagitário até o
âmago, perco a noção de tempo e espaço.
Não, ele não me drogou com um daqueles pozinhos que alguns caras colocam nos copos das
mulheres, mas, antes que eu me dê conta, já não estamos na pista, e sim ao lado de seu carro.
Continuamos nos beijando, nos acariciando, sussurrando palavras que na verdade não têm nenhum
sentido e que são mais suspiros articulados.
— No sei quanto tiempo faz desde a última vez que me senti así.
Roço a bochecha na palma de sua mão. Posso dizer que nunca me senti tão feliz quanto agora? Já
existiu um momento mais sublime?
Mudo de ideia um instante depois, quando ele diz:
— Aliz, minha vida tem sido um caminho muito imperfecto, eu corri, corri sempre, desde un
Estado al otro, desde un continente al otro. Como si fuera un hombre buscando alguma coisa
desesperadamente, un náufrago que se muere de sed... e sempre bebe água salgada. Mas ahora
pienso que encontrei mi fuente de água pura. Y eres tú, Aliz. Eres tú, mi querida. Faça amor
comigo... por favor... Ajude un hombre moribundo.
Como é que não vou ajudar um moribundo? Caramba, eu já queria dar para ele antes...
Mas não posso! Por culpa de Tito, de Paola e de um monte de pelos.
Sorrio suavemente, beijando-o na ponta do nariz.
— Dá licença só um segundo, mi querido?
— Claro, muñequita.
Eu me afasto, remexo discretamente a bolsa, teclo o número de Tito e, como ele não atende, ligo
para Paola enquanto entro na fila do bar.
— Alô, Alice? Já está em casa? Como foi?
— Paola, que droga! Droga! Droga!
— Meu bem, assim você me deixa preocupada. O que ele fez?
— O que ele fez? O que ele NÃO fez! O que não vai poder fazer... E, principalmente, o que eu vou
fazer com você amanhã! Alejandro é... É simplesmente incrível... estamos apaixonados... e eu não
posso transar com ele porque você me proibiu de me depilar. — Sorrio para o dançarino na minha
frente na fila, que se virou para mim com uma sobrancelha arqueada. — Pode passar, acho que é a
sua vez — digo a ele, estreitando os olhos.
— Alice, isso é exatamente o que você precisa evitar. Coragem, fique firme. Vão ter outras
oportunidades. Afinal... se ele te ama de verdade, vai saber esperar.
— Você não entendeu: sou eu que não posso esperar! Estou dizendo: ou consigo um barbeador, ou
arranco esses pelos com os dentes, um a um, e você vai ficar com esse peso na consciência.
— Não, Alice! Eu te proíbo. Não se depile.
— Depilo, sim. Agora mesmo. — E nunca mais na minha vida vou dar ouvidos àqueles dois.
Finalmente chega a minha vez no bar, e afasto o celular do ouvido, embora não encerre a
conversa.
— Escute, moço, então, sei que é um pedido meio estranho... mas o senhor teria um barbeador?
Tipo aqueles descartáveis?
13. LIBRIANA EM APUROS





Vou passar a noite em claro. E, infelizmente, não por causa de alguém com um metro e oitenta e
cinco de altura e abdômen de atleta.
Mas porque ganhei outra rosa amarela.
Acabei descobrindo que os piores bares de Caracas não oferecem produtos de cortesia como os
hotéis, e, como eu demoraria demais para arrancar cada pelo com uma sombrinha de coquetel,
acabei deixando para lá.
Claro que eu podia convidar Alejandro para subir e procurar um barbeador no banheiro. Mas,
como meu apartamento está mais bagunçado que o set de um filme pós-apocalíptico porque fiquei
dando ouvidos a Paola e a Tito, acabei me conformando que a única coisa quente da minha noite
seria uma xícara de chá de camomila para me acalmar.
Saí do elevador quase flutuando depois de um beijo do tipo que faz a gente perder a direção.
Então vi a rosa.
Houston, temos um problema!
No tapete diante da minha porta há uma rosa idêntica àquela que recebi na emissora.
O.k., nada de pânico. Poderia ser uma mensagem publicitária das testemunhas de Jeová? Excluo
essa hipótese, e também a de que um vendedor ambulante possa ter passado casualmente pelo meu
andar e a deixado cair. Essa também é amarela, como a outra. Não dá para ser tanta coincidência
assim.
Eu me abaixo para pegá-la e, assim que a levanto, um arrepio me percorre a coluna. Dessa vez
há um bilhete. Apenas uma palavra escrita: Lembra?
O.k., pânico. Do que eu devo me lembrar?
Acabei de pagar o condomínio, portanto não é uma cobrança criativa do síndico.
Entro em casa o mais depressa possível e tranco a porta.
Tudo bem, Alice, poder ser mesmo um admirador secreto. Afinal, eu não sou do tipo que acredita
até nas situações mais improváveis dos filmes românticos? Quer dizer, para mim, uma garota
nariguda pode vencer um concurso de dança sem nunca antes ter dado um passo, um livreiro
tímido e desajeitado pode esbarrar com uma estrela do cinema que se apaixona por ele, duas
pessoas que nunca se viram e que moram em estados diferentes podem se sentir atraídas uma pela
outra, e uma prostituta pode se casar com um bilionário… Então por que uma coisa dessas não pode
acontecer comigo?
O problema é que eu sempre pensei na minha vida como uma comédia romântica. Mas e se for
um thriller? Acho que sou a Julia Roberts, mas talvez seja apenas uma das coadjuvantes que
morrem nos primeiros dez minutos de filme e com quem ninguém se importa.
Em resumo: entre o ardor por Alejandro e a perspectiva de morrer tão rápido quanto uma
animadora de torcida em um filme de terror, acabo demorando muito para dormir, tanto que nem
meu velho e precioso kit de sobrevivência consegue me consolar.

Por isso decido que no dia seguinte, minha folga, preciso ser mimada, e também de uma depilação
que me permita tirar a roupa sem que alguém possa pensar que encontrou o elo que faltava entre o
homem e o macaco.
Depois de uma boa dose de cera, fico me sentindo linda, lisa e pronta para as loucas noites com o
dr. Testosterona, então resolvo relaxar um pouco mais com uma massagem corporal à base de
bétula.
Bétula. Soa bem doce e provocante! Sinto-me uma ninfa dos bosques só de me preparar para
entrar no cômodo onde vou receber a massagem.
Não percebo que estou entrando em um túnel do terror.
A massagista, Marika, que tem braços da grossura de troncos de árvores, nem pensa em me untar
com óleos perfumados, com efeitos afrodisíacos incríveis. Não. Ela me explica que a massagem é
feita com a bétula em si, ou seja, com os ramos. E, por quarenta minutos, Marika chicoteia com eles
a minha pele já esfolada.
Eu me pergunto se quem patenteou essa coisa foi o marquês de Sade.
Depois do centro estético, à tarde atravesso o parque Sempione a fim de tomar o bonde para casa.
Não estou com pressa, porque Alejandro e eu só nos encontraremos mais tarde, e aproveito o
passeio entre as alamedas sombreadas, imersa em sonhos e no calor da primavera.
Fico perplexa por um segundo ao pensar que não estou mais solteira. É verdade que minha
história com Alejandro só está começando, mas tem todas as chances de crescer e se tornar algo
maravilhoso. No verão, poderíamos ir passar férias na Espanha, por exemplo. Poderíamos até
decidir nos casar lá. Um casamento com muitas castanholas e danças, e eu usaria um daqueles
vestidos cheios de babados e rendas, embora odeie babados e rendas.
Quem diria que eu me casaria com um espanhol? Incrível! Estou parecendo a Melanie Griffith,
embora não seja loira.
Quando meu celular toca, suspiro. É Alejandro. Desde hoje de manhã temos trocado
mensagenzinhas fofas. É normal, já que estamos apaixonados, não?
Ele escreve: O que faço para não pensarte?
Eu respondo: Se renda. E pense em mim.
Breve e direta. Muito bem, Alice. É assim que se faz: dê só um pouco de atenção, sem enrolar
muito para ele não pensar que está interessada demais.
Alejandro: Trabajar sin tí es un suplicio. Donde está la luz de mi vida?
Suspiro, e respondo: Se preparando para você. Tomei um banho quente com pétalas de rosas…
Certo, não é verdade, mas não posso contar que uma idiota me deu uma surra com ramos de
bétula! Vamos considerar isso uma licença poética.
Outro toque. Olho o visor, agitada.
Dessa vez é Tito. Aff.
Não pense que não sei o que você está fazendo! Sua Lua está em conjunção com Netuno, e isso não te deixa ver as coisas de forma
realista, você fica mais propensa a acreditar em sonhos e ilusões. Além disso, tem o Sextil de Mercúrio, que só aumenta sua atração
por mistérios… E, desde hoje de manhã, você não me responde. Então não se engane: eu sei que está aprontando alguma coisa!
Lembre-se de que Sagitário é tão bom em seduzir quanto em dar no pé. Não estou dizendo que é mentira quando ele diz que te ama,
mas amanhã ele pode dizer a mesma coisa para outra garota. E também já expliquei que precisa saber o Ascendente para ter
certeza. Descubra qual é e a gente conversa.

Que se dane Tito e seu terceiro olho astrológico. Agora que ele conheceu Paola, tenho certeza de
que vai fofocar tudo para ela. Além disso, acho que ele não está compreendendo Alejandro direito.
Tito disse que me ajudaria com os homens, mas nunca acha nada bom. Por exemplo, pensei que
Sagitário fosse um signo compatível com o meu. Ele falou isso mais de uma vez, só que, quando fui
comemorar por ter encontrado alguém que combinava comigo, Tito veio com essa história de que
também precisa saber o Ascendente. Caramba! Ele muda o jogo depois que todas as cartas já estão
na mesa. E sei lá qual é o Ascendente de Alejandro! Até perguntei, mas ele me respondeu com três
pontos de interrogação. Ou seja, nunca deve ter ouvido falar disso.
Resolvo cortar caminho por um canteiro, e já nem me irrito mais de ver os casais deitados na
grama, se pegando no fim de tarde. Não me sinto mais excluída. Qualquer dia, pode ser eu nesse
gramado.
Mas logo que começo a imaginar uma cena digna de filme dos anos 1980, comigo e Alejandro nos
beijando diante de um sol vermelho-fogo, acontecem duas coisas:
Primeiro sou atingida na nuca por um meteorito que me faz tropeçar.
Depois, sou atropelada por um enorme caminhão de carne, patas e baba que me derruba e faz
voar o smartphone com a última mensagenzinha de Alejandro: Tu eres así elegante y hermosa.
Por isso me vejo, elegante e hermosa, com a cara no chão.
A parte boa, se é que ela existe, é que dessa vez a culpa não é da minha falta de jeito.
Assim que tento me levantar, uma língua comprida e quente me lambe a bochecha, me fazendo
recuar.
— Pare! — exclama uma voz atrás de mim. — Chega, Flash. Deita.
Tenho um calafrio, como quando recebo um beijo no pescoço, principalmente se é inesperado.
Dura um microssegundo, e não sei se o reconheço e me viro para olhar, ou se me viro para olhar
porque o reconheço. Só sei que David está diante de mim.
Do lado do cachorro, que é enorme feito um cavalo, ele parece ter encolhido como um Smurf.
David corre ao meu encontro.
— Alice, você está bem? Se machucou? Deixa eu ver.
Seja pela pancada, pelo estresse do dia ou por causa desse cão saído de Jurassic Park, o fato é que
não entendo nada. Fico só olhando para ele, o coração na boca, quando David levanta meu braço.
— Não… Estou bem, imagina.
— Desculpe, Flash fica maluco quando jogamos bola.
Meu celular toca de novo, o que significa que não se quebrou com a queda. Ainda bem! Estava
com medo de não poder falar com Alejandro. Foi por pouco.
— Venha, vamos dar uma lavadinha nisto.
Deixo que ele me arraste, mas confiro a mensagem com a outra mão.
Hermosa, não vejo a hora de saborear tus besos…
Suspiro e, quando olho para a frente, encontro o focinho da fera praticamente encostado em
mim, a boca aberta, a língua para fora e o bafo rançoso de quando a gente volta das férias, descobre
que faltou luz e tudo na geladeira estragou.
— Não desmaie. É só um pouco de sangue — tranquiliza David.
Sangue?
SANGUE!
Olho meu braço. Há um corte que vai do pulso até quase o cotovelo. E estou sangrando.
Eu me agarro a David, apelando para todas as minhas forças, porque não quero acabar sendo
carregada no dorso daquela espécie de cavalo, como um alforje.
Sem falar que esse bicho enorme poderia confundir meu braço com um bife.
— Quieto, Diabo… Fique quieto.
— O nome dele é Flash. Não tenha medo. Ele é bonzinho, um bobão.
Eu não esperaria que David gostasse daqueles cães que as socialites carregam em bolsinhas, mas
me pergunto como um homem que está sempre de mudança por causa de trabalho resolve ter um
cão que é quase uma arma.
Do smartphone ecoa um triiim que anuncia uma nova mensagem. Dou uma olhada rápida.
O que está fazendo? Por que não me responde?
Meu Deus, é verdade, não respondi. Será que Alejandro está preocupado? E se achar que não
estou pensando nele?
— É um alão — explica David, enquanto coloca meu braço sob a água da fonte. — Precisa
correr, e de vez em quando venho jogar bola com ele.
Mais precisamente, a enorme bola de couro, dura como cimento, que me golpeou na nuca.
Com a água avermelhada ainda pingando do braço (felizmente, porém, o corte não é profundo),
digito velozmente: Eu estava decidindo o que vestir para você…
Volto a David, que me encara com uma sobrancelha levantada.
— Não quebrou, né? — pergunta, apontando o telefone.
Deus do céu, por que estou corando?
— Eu estava conferindo. Não, não quebrou, ainda bem.
— Que bom. Desculpe pela queda — diz ele, desviando o olhar para o cão. — Venha, Flash e eu
queremos te oferecer um aperitivo, como pedido de desculpas.
Pedimos uma tábua de frios e duas taças de vinho branco. David insiste em pagar, franzindo a
testa quando tento pegar a carteira.
— Nem pense nisso.
Baixo os olhos, lisonjeada. E me sinto vagamente culpada quando o celular toca de novo.
Te imagino mientras você se arruma por mí, mientras veste a calcinha…
Fico rubra e levo o copo aos lábios.
— Com todas essas coincidências, você deve pensar que estou te perseguindo.
As bolhinhas me sobem ao nariz e começo a tossir, cobrindo a boca com a mão.
Penso na rosa amarela. E se Tito tivesse razão ao dizer que dava para imaginar David bancando
o Cyrano de Bergerac? Ele sabe onde moro, já que uma vez me levou para casa.
— Hum…? — pergunto, engasgada.
Flash, também conhecido como O Abominável Alão das Neves, late bem alto.
— Não exagere. Eu não disse que estou te perseguindo, só que você poderia pensar isso. Acabei
alugando um apartamento aqui perto.
— Ah… — Seria bom realmente dizer alguma coisa, em vez de pontuar o monólogo dele com
interjeições, mas a verdade é que estou confusa. Por que David sempre exerce esse efeito
alucinatório sobre mim? Embora nesse momento o efeito possa estar sendo agravado pela pancada
na cabeça, pela euforia das mensagens de Alejandro e pelo mau hálito do cachorro, que, mesmo
sentado, consegue praticamente me fitar nos olhos sem precisar levantar a cabeça. — Que bom.
Fico contente, inclusive por Flash — digo, lançando mais um olhar para o telefone, que tocou de
novo.
— Pois é. Eu não podia mais ficar onde estava — comenta ele, desviando o olhar de mim para o
smartphone. — Durante o dia, deixo o terraço aberto para ele.
Enquanto isso, Alejandro está cada vez mais ardente: De que color es sua roupa de baixo,
querida? Me faça sonhar hacia esta noche.
Que droga! Por um instante, fico com o olhar perdido e imagino Alejandro despindo a camiseta.
Só que, assim que a puxa pela cabeça, já não é ele. É…
David está bem na minha frente.
— Você está bem?
Tomo outro gole de vinho. E me obrigo a responder, enquanto digito alguma coisa para
Alejandro.
— Claro… sim… mas e então, o que você estava fazendo aqui?
Ele continua me encarando e franze a testa.
— Acabei de dizer. Alice, tem certeza de que não quer ir ao pronto-socorro? Você está meio
estranha…
— Não, não. Estou bem. Nada de hospital. — Melhor ele nem pensar em me deixar em
observação durante a noite.
David dá de ombros e saboreia seu vinho.
— Na verdade, o que eu ia dizer era que gostei de te encontrar. Porque eu queria explicar umas
coisas, Alice.
O triiim do telefone me distrai de novo. Toca duas, três vezes. Alejandro está excitado pela minha
descrição da roupa íntima. Quando levanto os olhos, vejo David suspirar e cruzar os braços.
— Desculpe. Pode falar. Já vou desligar aqui.
— Em parte, tem a ver com o trabalho. Aliás, não, na verdade, não. Não exatamente… Claro, sim,
o trabalho tem a ver, mas é que eu preciso esclarecer uma coisa com você. Uma coisa que está
acontecendo, e eu queria perguntar…
A essa altura, as mensagens do meu garanhão latino estão bem delirantes. Ele até menciona
algumas torturas específicas que pretende fazer com a língua. Caramba. O que eu respondo agora?
— Sei. Está falando do programa? — Suspiro, depois de enviar uns emoticons, como uma pré-
adolescente.
Mas David está se levantando.
— Nada — retruca ele, seco. — Desculpe tomar seu tempo. É óbvio que você está ocupada. A
gente fala sobre isso no escritório.
14. O PEQUENO SAGITARIANO





Não sei por que David saiu correndo.
E não sei por que ainda estou pensando nisso, aqui na casa de Alejandro. Não faz sentido eu ficar
me atormentando sobre o que um cara disse ou não quando estou com o meu N-A-M-O-R-A-D-O.
Na verdade, com David tenho a impressão de que sempre há algo que não entendo.
Mas não posso pensar nisso agora. Pensarei amanhã. Agora preciso me concentrar. Em
Alejandro.
Ele hoje trabalhou até tarde, por isso, apesar de Paola e Tito serem contra, vim encontrá-lo em
casa, no apartamentinho que ele alugou perto dos estúdios da emissora.
Já jantei, como ele me disse para fazer, já que chegaria tarde. Assim, não perdemos tempo.
Enquanto Alejandro toma banho, dou uma rápida conferida em mim mesma. Pernas: depiladas.
Passo um pouco de hidratante. Axilas: depiladas, mas um pouco mais de desodorante não faz mal.
Dentes: hummm… eu trouxe fio dental, nunca se sabe. Cabelos: ajeito com um toquezinho de
fixador. Unhas: e se eu passasse mais uma mãozinha de esmalte? Lábios: claro, o batom não vai
durar muito, mas imagine o efeito quando ele sair do banho e eu sorrir timidamente, exibindo os
dentes (limpos, porque acabo de passar o fio) sob lábios Rouge Passion?
Ainda bem que eu trouxe a maleta de rodinhas, porque nem tudo caberia na bolsa.
— Mi amor.
Pronto, sinto um arrepio percorrer a espinha. E a boca molhada de Alejandro na nuca.
Eu me estico para deixar o fio dental na prateleira e poder dar atenção a ele, aos seus braços, à
sua boca, aos seus bíceps, aos seus beijos.
Arrepios. Sinto arrepios pelo corpo todo. Estou tão excitada que me sinto como a protagonista de
um daqueles romances soft porn que estão sempre em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Só
que não quero tons de cinza, de branco ou de preto, quero viver cada instante em tecnicolor.
Então me concentro naquele abdômen de propaganda, acariciando-o como se fosse formado
pelas teclas de um piano.
Dó ré mi fá sol lá SIM! dó.
Entre o “lá” e o “dó” já estou na cama, pronta para viver nove semanas e meia de amor em
poucos momentos.
As mãos de Alejandro percorrem meu corpo, tiram minha roupa, me acariciam, seguidas por sua
língua quente, pelas gotas frias que escorrem de seus cabelos ainda molhados e caem nos meus
olhos.
Mas tudo bem, não preciso enxergar o que estamos fazendo.
Inspiro profundamente, querendo me inebriar com o cheiro dele, com o perfume de couro sempre
presente nas descrições de livros românticos quando um cara tira a roupa. Aquele cheiro de
homem. Mas só sinto cheiro de sabonete, que nem é de pinho silvestre, mas de frutos do bosque.
Não importa, pois estou prestes a viver uma experiência sexual mística, estratosférica,
multiplamente satisfatória e única em minha vida. Mesmo que ele cheirasse a pão de gengibre,
seria ótimo.
No concurso de Mister Zodíaco, o Sagitário chegou em primeiro lugar, ganhando dos outros
signos por muitos centímetros. Foi o que disse Tito. Os astros prenunciam que vou ter tantos
orgasmos quanto a Ursa Maior tem estrelas. Uhu!
Ele abre minhas pernas, depois se ergue e só então arranca a toalha enrolada na cintura.
Olha para mim. Eu olho para ele.
Pisco de um jeito inocente, meu olhar descendo por seu pescoço forte, o peito viril, a barriga
tanquinho, capaz de provocar desmaios coletivos… E aí…
Que droga, podia até ser uma ilusão de óptica depois de passar os olhos por tantos músculos
enormes, mas tenho a mesma sensação de quando você quer tanto espirrar que o nariz pinica e
parece que você vai explodir, mas aí o espirro acaba morrendo na garganta com um pigarrinho.
Franzo a testa, mas só por um instante. Sempre disseram que não pega bem ficar encarando,
então volto a olhá-lo nos olhos. E sorrio.
Talvez Alejandro seja como Sting nos tempos dourados, capaz de transar por mais de cinco horas,
e de fazer uma mulher gozar só com os olhos. Esperemos, digo a mim mesma, continuando a fitá-lo
enquanto ele se aproxima.
Vamos lá, Alice. Ele não é nenhum ator pornô, mas vai ser uma experiência fantástica de
qualquer jeito. Vocês se amam!
Vou contar para os nossos filhos a história do Pequeno Polegar… E, como em toda fábula que se
preze, o final será “e viveram felizes para sempre”.
LEÃO

Não, escutem bem… LEÃO!


Ainda não ficou claro? Eu disse: L-E-Ã-O!
Por acaso você quer que eu desenhe? Ou é uma pessoa superficial e sem qualquer senso estético,
crítico ou pelo menos realístico, para não compreender de cara que, depois que alguém fala LEÃO,
não precisa dizer mais nada?
15. O SAGITÁRIO ESTÁ SERVIDO





Só para constar: se isto fosse um conto de fadas, minha história estaria concluída, e o portão do
meu castelo dourado se fecharia às minhas costas, como em Cinderela.
Faz quase duas semanas que estou no paraíso. Quando encaro os olhos negros de Alejandro, fico
perdida. Ele pode falar qualquer coisa, e eu escuto com toda a atenção, sem dizer nada.
Também fazemos amor, embora essa não seja a parte mais importante da nossa relação.
Trocamos olhares, conversamos, temos um encontro de almas. Coisas que valem muito mais do que
algumas horas de ginástica na cama.
Conviver com ele me enriquece. Estou tão feliz que decidi visitar meus pais esta noite. Quando
falei com eles mais cedo, pelo telefone, para avisar que ia jantar, adiantei que tenho grandes
novidades.
Minha desculpa para ir lá é pegar as tais caixas com as minhas coisas, que mamãe e papai
embalaram para reformar a casa. Embora eu tenha dito que um amigo vai junto, para me ajudar a
carregar as tralhas, eles vão perceber que é mais do que isso, pelo jeito que a gente se olha e sorri, e
por como nossas mãos se tocam.
E Tito finalmente vai mudar de ideia sobre meu Sagitário, já que praticamente se convidou para
jantar esta noite e vai estar por lá também. Na verdade, ele foi muito fofo: pegou emprestado o
carro esportivo de um amigo para podermos carregar tudo sem dificuldade.
Só isso já conquistou meu pai, que adora pessoas organizadas.
Assim que entramos em casa, Tito recebe um tour completo, com muitas explicações ilustradas
sobre a reforma.
Meu guia astrológico segue papai parecendo muito interessado nas técnicas de pintura de
paredes, fazendo perguntas dignas de um especialista em arte diante da iminente restauração da
Capela Sistina.
— Tenho certeza de que será uma ótima reforma. O senhor é Capricórnio, e os capricornianos
nasceram para os trabalhos práticos.
Meu pai sorri, feliz com os elogios. É o jeito de Tito, consegue a simpatia de todo mundo em um
instante. Ele lê as pessoas com essa história de astrologia. Tanto, que dá a impressão de que vocês
se conhecem há muito tempo. Ou melhor, parece que ele conhece você há muito tempo, porque, na
verdade, Tito quase não fala da própria vida.
Talvez seja culpa minha também. Andei muito envolvida com meus problemas. Prometo a mim
mesma ser uma boa amiga de agora em diante. Talvez a partir desta noite. Talvez eu possa inclusive
retribuir o favor e ajudá-lo a arrumar uma namorada.
Tito se volta para mim um instante. Papai está tirando das caixas toda a coleção de
quinquilharias, deve achar que Tito não pode continuar vivendo sem vê-las. Sorrio para o meu
amigo, e ele pisca. Vou até a cozinha para buscar pratos e toalha a fim de arrumar a mesa.
Dou uma olhada no relógio e pego um prato a mais. Alejandro deve chegar daqui a pouco. Que
nervosismo! Depois de Giorgio, prometi que só apresentaria outro namorado aos meus pais se fosse
o homem certo.
Mas Alejandro é o homem certo. Uma noite dessas, propus vermos um dos meus filmes
preferidos, Antes do amanhecer. Depois de meia hora, ele implorou para ser poupado da tortura, e
estava mesmo um pouco tarde. Mas ele foi muito fofo, prometeu que faria qualquer outra coisa por
mim. Por isso vai vir esta noite.
— Seu amigo é muito simpático — diz minha mãe, às voltas com o fogão. — E também muito
bonito — completa, indicando a sala.
É estranho que minha mãe elogie algum homem que não seja o meu pai. Mas sempre esqueço
que, além de apresentar meu programa, Tito é um astro das telenovelas, e mamãe já o chamou de
Marcus três vezes, que é o nome do personagem que ele interpreta.
Instintivamente, olho de novo pela porta aberta. Bem, sim, mesmo sem toda a maquiagem que o
transforma em Marcus Alvarez, Tito merece o elogio: tem pernas compridas e ombros largos. O tipo
físico que a gente sempre vê naquelas revistas escandalosas que meu pai folheia durante seus
retiros espirituais no banheiro. O tipo de homem que troca de mulher como troca de roupa. Um
George Clooney. Mas Tito não é assim. Na verdade, nem parece interessado em romance.
Ele flagra meu olhar e franze a testa antes de me soprar um beijo.
Por um instante me pergunto se seria ele o remetente das rosas amarelas. Mas não faria sentido,
já que nos falamos todos os dias e ele não fez mais do que me ajudar a encontrar o homem da minha
vida.
Falando das rosas, não contei a Alejandro sobre a última, que chegou ontem de manhã. Afinal,
ele é latino, o ciúme faz parte de seu DNA tanto quanto os olhos negros, a pele morena, o peito largo
e… bom, não se pode ter tudo. Claro, se eu pudesse escolher, preferiria que aquele fosse seu traço
dominante, mas esse detalhe deve ter ficado entre os genes recessivos. Uma pena.
Não tem problema; afinal, a perfeição é opressora, não é mesmo? Prefiro que tenha (ou melhor,
que não tenha) alguma coisa que o humanize. É melhor assim.
E, como eu disse, sexo não é tudo na vida de um casal. Alejandro e eu temos muitos outros
interesses. Eu até transaria com mais frequência, tudo bem, provavelmente porque passei um
tempão sem fazer. Mas eu é que sou exagerada no que desejo: mais carícias, mais olhares, mais
beijos. Você assiste romances demais, Alice!
Afinal, todo mundo sabe que os homens são diferentes das mulheres nessas coisas, são mais
grosseirões. E os espanhóis provavelmente ainda mais. Mas isso não quer dizer que não se
apaixonem.

Como já está ficando um pouco tarde e papai serviu os aperitivos, decido ligar para Alejandro, me
escondendo no fim do corredor. O telefone toca quatro ou cinco vezes antes de ele me atender.
— Hola, amor, onde você está? Aqui abajo? — pergunto, esperançosa.
Pelo menos três segundos de silêncio.
— Ahn… não, por verdad… estou na estrada.
Franzo a testa.
— Na estrada? Como assim?
— Alice, siento mucho, mas no puedo ir esta noite. Fui chamado para um… trabajo fora, estou
indo a Vigevano.
— Vigevano? Por quê?
— Lo siento, Alice. Otra vez. Perdoname, preciso desligar, preciso pegar o dinheiro do pedágio.
Besitos. Besitos.
Alejandro desliga sem dizer mais nada. Besitos. Besitos é o caralho. Ele estragou minha surpresa.
Até posso contar aos meus pais que estou saindo com alguém, mas não é a mesma coisa. O
momento perfeito seria quando Alejandro chegasse. E agora?
— Viu como você é libriana? — comenta Tito quando o puxo para o lado e conto meu problema.
— Perfeccionista. Quando cria uma cena na cabeça, não aguenta ter que rever e mudar algo.
— Pensei que fosse um pouco autista. Mas não, o que tenho é librianite. Aguda.
— Ei, a culpa não é minha. E eu estou aqui. Não sirvo para nada? — Tito passa um braço por
meus ombros, para me consolar, e me dá um beijo na têmpora.
— Jovens, o aperitivo! — chama meu pai, mostrando os drinques sem álcool.
O problema maior nem é que Alejandro não venha esta noite. É só que minha cabeça sempre
funciona de um jeito estranho quando as coisas não saem como o planejado. E já estou imaginando
coisas ruins. Por exemplo, que na outra noite não fui muito legal com ele.
Tinha sido um dia difícil. Encontrei David, que agora me trata de um jeito superfrio. O terceiro
episódio do Guia registrou uma queda na audiência. Talvez seja por isso que ele anda tão nervoso;
afinal, apoiou meu programa diante do Presidentíssimo. Eu bem poderia entrar na lista negra da
emissora.
Resumindo, eu queria ser mimada, queria que Alejandro me abraçasse mais com carinho do que
com tesão. O.k., talvez eu não mereça um prêmio pelos papéis que desempenho na cama, mas é que
às vezes me sinto um fantoche nas mãos dele; puxada, virada e revirada como um bife à milanesa.
Digo isso porque estou com raiva por ele ter faltado o jantar, ou não seria tão cruel.
— Já está melhor? — pergunta Tito, depois de comer uns tira-gostos e conversar mais umas
bobagens com meus pais. Os dois estão agora na cozinha, e Tito aproveita para segurar meu braço
e me levar para perto da janela.
Dou de ombros.
— Estou. Talvez seja até bom não fazer o anúncio esta noite.
— O anúncio?! Já?
— Modo de falar.
Tito me lança um olhar de soslaio.
— Alice, você está bem mesmo? Não estou falando de hoje, de Alejandro não vir jantar, mas de
modo geral. Tem certeza de que está bem com ele?
— Claro — respondo, assentindo vigorosamente. — Não foi você quem disse que Libra e
Sagitário são compatíveis? Muito compatíveis?
Ele suspira, enfia as mãos nos bolsos e se balança para a frente e para trás. Indeciso.
— Sagitário é sem dúvida um signo compatível, e também acho que seja um bom signo… mas às
vezes é meio individualista, e até egocêntrico. E, principalmente, é um espírito livre, que gosta de
conquistar novidades e não se compromete facilmente. Alejandro, ainda por cima, é muito bonito e
é espanhol.
— Não achei que você fosse preconceituoso, Tito. Só porque ele é estrangeiro, tem que ser má
pessoa?
— Não foi o que eu quis dizer. — Tito suspira. — Obviamente você está encantada pelas grandes
qualidades do signo. Eles são bons em fazer as pessoas perderem a cabeça. Principalmente
mulheres. — Ele pisca para atenuar o drama da afirmação, como se soubesse muito, muito mesmo,
sobre o assunto.
Ah, não. Espera aí. As qualidades nem são tão grandes assim! Mordo o lábio, sem querer entrar
em um assunto tão íntimo. Afinal Tito é homem, e mamãe e papai estão por perto. Mas é que tem
aquele detalhe… aquele pequeno detalhe que Tito mencionou a respeito dos sagitarianos… Pequeno
é pequeno, certo. Mas, em uma relação, tem sua relevância, eu acho.
— Acho que você confia demais em julgar as pessoas pelo signo do Zodíaco. Nem tudo
corresponde, posso garantir.
Ele desvia o olhar para os prédios do outro lado da rua.
— Claro — comenta, mordendo o lábio. — Então vocês estão mesmo em uma relação séria?
Quero dizer, talvez seja meio cedo para contar… Para apresentar Alejandro aos seus pais, não acha?
Eu queria muito que ele e Paola compreendessem. Afinal, são meus melhores amigos.
— Estou feliz, Tito. Nem sempre a gente percebe quando está em um bom momento. Tento
reparar. Quando Alejandro me abraça, quando me beija, quando… Estou feliz. Apesar do pequeno…
— Pigarreio. — tempo de namoro, quero dizer.
Por que fico pensando no sexo? Isso não faz sentido, Alice. Encontrei um homem lindo e
carinhoso, não deveria ligar para o resto. O sexo tem só uma pequena importância. Com o tempo, o
que conta são os sentimentos, não? Os homens é que ligam para coisas como o tamanho dos seios
ou se a transa é boa. Só que, bom, para encurtar a história, eu continuo pensando nisso.
E com Tito comentando sobre as grandes qualidades do Sagitário, fico com vontade de perguntar
se essa exceção à regra pode ser culpa, sei lá… do Ascendente?
— Bem, sim, o Ascendente é importante — afirma Tito, quando por fim faço a pergunta, depois
de enrolar um pouco. — É como a máscara com que a pessoa se apresenta ao mundo, que
determina bastante como os outros nos veem, a primeira impressão. Antes do século XX , o
Ascendente era até considerado mais importante do que o Signo Solar, por causa do influxo.
Penso no modo como Alejandro e eu fazemos amor, porque, assim que a gente atravessa a porta
do quarto, ele parece virar outra pessoa, e o sexo, em vez de nos aproximar, nos afasta. É um vazio
que nossos corpos não preenchem. Que maldito Ascendente é esse, que dificulta tanto as coisas?
— Bom, acho que ninguém precisa transar o tempo todo — comento. — Em uma relação, o que
importa é o que as pessoas sentem. Claro que o lado físico tem peso, mas não é tudo. Na verdade,
acho que tem um peso bem, bem pequeno.
— Ah, para! — exclama ele, batendo o ombro no meu. — Seu nariz está crescendo. Não acredito
em você. Sexo é superimportante na vida de um casal. Se for bom, existe uma boa chance de futuro.
Se não for…
Se não for…?
— O quê? Acha que uma relação não funciona bem sem sexo?
Já estou me sentindo culpada por falar essas coisas, por pensar, mesmo hipoteticamente, que
Alejandro seja menos do que perfeito (e não devia mesmo, estando apaixonada por ele). Agora Tito
vem dizer que, como eu não acho tudo isso transar com meu N-A-M-O-R-A-D-O, nossa relação está
fadada ao fracasso. Realmente não dou sorte!
— Isso é bem coisa de homem mesmo! Então um cara com pau pequeno que não dá prazer à
namorada não pode ter uma relação séria e feliz? Para sua informação, eu estou muito, muito feliz.
Muito. E você? Cadê suas namoradas? O que está escondendo?
Tito fica muito sério. Ele trava o maxilar e estreita os olhos, que ficam de um azul soturno, quase
de aço, como o mar em tempestade.
Por sorte, minha mãe nos interrompe, surgindo na porta da cozinha, sorridente como uma dona
de casa de comercial de margarina, com a sopeira nas mãos.
Todos nos sentamos, e eu lanço a Tito um olhar irritado, embora saiba que sou a única culpada
por estar nessa situação.
— Sei que normalmente eu só faço no Natal — anuncia mamãe, orgulhosa —, mas esta noite
temos um convidado e, se entendi direito, precisamos comemorar, certo? Por isso fiz um prato típico
da minha família, descendente dos Lidos de Comacchio: enguia. — Ela sorri, piscando para meu
pai. — Guido arrumou uma bem grande.
Fecho os olhos, me perguntando se é uma conspiração. Claro que isso nem me passaria pela
cabeça se eu já não estivesse pensando fixamente naquele pequeno grande dilema. E teria evitado a
discussão com Tito. Afinal, não sei nada de sua vida amorosa.
A verdade é que estou me sentindo corroída pela culpa. Porque, com Alejandro… Bem, não chega
a ser horrível, mas só porque eu sempre acabo desistindo… e penso em algum outro homem.
Na primeira vez, aconteceu por acaso. Sem querer. Totalmente sem querer.
Eu tinha encontrado David naquela tarde e, em determinado momento, enquanto estava na cama
com Alejandro, lembrei de ter fantasiado com ele tirando a camisa. Não sei o que deu em mim, mas
foi só pensar nisso para eu começar a ver estrelas.
Pronto, falei. Mea culpa.
Marquei minha primeira vez com Alejandro pensando em outro.
Na segunda vez, foi por frustração. Tentei, tentei muito me concentrar em Alejandro. Quando já
tinha desistido, minha cabeça começou a vagar e pensei naquilo que David queria me dizer no
parque. Bastou um segundo de distração. Droga.
— Gostou, Alice? Você adora enguia — comenta mamãe quando lhe passo o prato.
— Pois é, adoro…
— E o seu namorado? — Eu me viro abruptamente para o meu pai ao escutar a pergunta. —
Come enguia?
Um momento de constrangimento glacial acontece enquanto eu e Tito nos entreolhamos. Então
compreendo.
Para eles, Tito é o amigo que eu ia levar para jantar, não Alejandro, de quem eles nem sabem.
— Guido, você é um desmancha-prazeres! Devia ter esperado eles contarem!
— Ah, eu gosto de enguia. Muito — responde Tito, entredentes. — O que, na verdade, é até bem
irônico — acrescenta, me lançando um olhar furioso. — Mas vocês se enganaram sobre a parte do
“namorado”, porque Alice não me considera mais do que um bom amigo. Ela é uma libriana, afinal,
e todas as librianas sonham com um romance perfeito e avassalador.
— Ah, Alice sempre foi perfeccionista — comenta mamãe, balançando a cabeça. — Deveria
aprender que a felicidade está nas pequenas coisas.
Tito arqueia uma sobrancelha, com o ar astuto e cruel de quem já entendeu tudo, mas não está
disposto a perdoar.
— Pois é. É o que o namorado dela sempre diz.
16. A CULPA É DO HORÓSCOPO





Há dias não recebo meu horóscopo. E isso podia mesmo me ajudar a compreender a minha
situação, pois, por causa do Alejandro, eu e Tito não conseguimos mais nos encontrar. Fico
conferindo até a pasta dos spams no smartphone, mas não é por erro do sistema que não estou
recebendo nada. É por erro humano. Tito está com raiva de mim. Não, eu é que estou com raiva
dele. Paola diz que somos dois idiotas por ficarmos nos ignorando.
Mas hoje um de nós vai ter que ceder, porque temos a transmissão do programa, e precisamos
agir como os profissionais que somos, esquecendo o lado pessoal.
— Alice, temos um problema — avisa um colega, entrando na cabine de direção enquanto eu
controlo as gravações em vídeo.
— O que foi?
— Marlin não gostou da escaleta.
— Como assim, não gostou? Queria que estivesse impressa em papel perfumado?
— Engraçadinha. Ela quer entrevistar o convidado cético, o geólogo.
Eu sabia que isso ia acontecer. Alguma coisa me obrigaria a ir ao camarim e dar de cara com
Tito. Nem que fosse pelo reflexo do espelho.
Tenho certeza de que ele me viu e que por isso se escondeu atrás do exemplar de uma revista de
astrologia, fingindo estar mergulhado na leitura. Na outra poltrona, Marlin toma o gesto como uma
afronta pessoal, e por sua vez levanta o frasco de demaquilante, estreitando os olhos para ler o
texto em japonês na parte de trás.
— O que houve? — pergunto, olhando de um para outro, sem resposta.
A única que se vira para mim é Erika, a maquiadora, que balança a cabeça e dá de ombros.
Coitadinha, não a invejo, tendo que ficar entre esses dois.
Tito continua folheando a revista, olhando o anúncio de uma funerária que atende on-line, e, a
não ser que esteja pensando em me matar, não acho que lê realmente a página. Marlin aproveita a
oportunidade e bate o frasco na mesa, como um juiz da Corte Suprema.
— Eu apresentei Bom dia, Milão, Férias em família, O salão de quinta-feira… E agora? Só chamo os
convidados, depois tenho que ficar sentada em um banquinho o tempo todo. Sou o quê? Uma
recepcionista! Acham que sou uma incapaz? Ah, se é o que você pensa, Alice, está muitíssimo
enganada! Eu sei muito bem como entrevistar a porcaria de um teólogo.
— Geólogo.
— Tanto faz.
Obviamente, não posso deixar André Magni, um geólogo famoso, nas garras esmaltadas de
Marlin depois do trabalhão que tive para convencê-lo a vir ao programa.
Tito se dirige a Erika, sem abaixar a revista.
— Querida, você poderia informar à nossa autora que ela não pode permitir que um geólogo
famoso seja entrevistado por alguém que pensa que placas tectônicas são uma doença?
Marlin abre e fecha a boca, indignada, depois começa a tamborilar com as unhas afiadas na tela
do smartphone.
— Tetona quem tem é sua mãe. Você vai ver só, espertinho — murmura ela, enquanto tecla o
número do Presidentíssimo e desaparece pelo corredor, resmungando.
Erika se volta para mim com o olhar perdido.
— Alice, Tito pediu para eu dizer…
Ah, não. Espere um pouco. Levanto a mão.
— Desculpe, Erika, você poderia dizer a Tito que ele deveria ser mais educado com os colegas?
Erika me encara, perplexa, e se volta para Tito, que vira violentamente a página da revista.
— Erika, me perdoe — diz ele, de modo afetado. — Por favor, fale para nossa incrível autora
exatamente isto… — Ele me olha pelo reflexo do espelho e rosna: — Olha só quem fala! — E,
quando eu estreito os olhos, pensando que não devo me rebaixar ao nível dele, Tito acrescenta: — E
diga também que fazendo careta desse jeito ela vai criar rugas.
Ah, não, rugas também não! Onde estamos, no jardim de infância?
— Erika — digo, ignorando o olhar desesperado da coitadinha. — Poderia recordar ao sr. Tiziano
Falcetti que, se ele não tivesse julgado primeiro a intimidade dos outros, nada teria acontecido?
Ele bate a revista na bancada diante do espelho. Odeia que eu use seu nome verdadeiro.
— Então, querida Erika — replica Tito, fazendo uma pausa de efeito, como se esticasse a corda de
um arco para ajustar a pontaria —, pode responder que, se ela não tivesse me procurado para
reclamar da porcaria de vida sexual que tem com o namorado, eu nunca opinaria a respeito. Se não
gosta dos meus conselhos, que pare de me estressar e repita diante de um espelho o que quer ouvir.
Erika guarda velozmente todos os produtos de maquiagem espalhados na bancada.
— Terminei aqui — diz ela, dirigindo-se à porta.
— Erika!
Minha voz sai tão estridente que não a reconheço. Não me viro, mas vejo Erika refletida no
espelho. Então, enquanto encaro Tito nos olhos, solto:
— Por favor, diga a Marlin para vir falar comigo. Precisamos conversar sobre o que ela vai
perguntar a André Magni na entrevista.

A sorte está lançada, penso, sabendo que dei um tiro no pé. Mas eu não podia deixar Tito sair
impune. Quem ele pensa que é? Não tem nenhum direito de ficar comentando por aí sobre a minha
vida. Ainda mais agora que estou feliz. Não preciso de nada nem de ninguém.
Azar o dele, porque nunca vai saber o Ascendente de Alejandro, e tenho certeza de que está
curioso. Só para constar, é Capricórnio. Eu sei porque perguntei a hora que ele nasceu à minha
sogra, por telefone. Ou seja, à mãe dele. Bom, na verdade era Alejandro quem estava falando com
ela. Mas eu queria ter falado.
Pois é, descobri o Ascendente. Não é tão difícil assim; sabe quantos sites de astrologia têm na
internet? Milhares, para não dizer milhões.
Tito não é indispensável. Fala sério. Ninguém neste mundo é.
Portanto, de agora em diante, decidi me virar sozinha e baixei um aplicativo ótimo. Custa menos
de seis euros por semana (cinco e noventa e nove, mais exatamente), e recebo informações em
tempo real, atualizações sobre o Mapa Astral, Quadros Astrológicos, Décadas, Casas, Signos
Lunares, Sinastrias, Efemérides… e nem sei o que é tudo isso. Bom, não deve ser muito difícil, se um
cara cujo trabalho é usar mega hair entende. Vou dar uma olhada. Assim que abro o aplicativo, um
arpejo metálico new age ecoa e, poucos segundos depois que inseri os dados, aparece no visor a
mensagem do meu novo serviço astrológico de confiança: Características caracteriais do Sagitário
com Ascendente em Capricórnio.
Certo, o título é meio atrapalhado, mas o que importa é o conteúdo. O texto é longo e parece bem
detalhado. Começo a ler.
Sujeitos alegres, honesto, cheios de energia, atléticos e amante de viagens e da liberdade.

Apesar da concordância capenga (não posso cobrar que um banco de dados escreva como um autor
profissional), a definição me parece correta. Ótimo. Por que Tito não me falou nada disso?
Boa saúde hereditária. Os pais podem ter uma influência benéfica em sua situação financeira. Terrenos ou legados de herança.

Também acho isso muito bom. Não quero saber se ele é rico, mas seria fantástico ter uma casa na
Espanha.
Dotado de uma emotividade oscilante, são muitas vezes instáveis, misterioso, preguiçoso e podem criar uma vida dupla.
Nos casos piores, dependência de álcool e droga.

Não entendo. Como, em poucas linhas, ele se transformou do médico no monstro? E também…
dependência de drogas? Ai, meu Deus!
Pessoa serena e tranquilizante.

Claro, estou mesmo muito tranquilizada agora.


Poucas probabilidades de ser herdeiro.

Então nada de casa na Espanha, ao que parece. Deus dá e tira quando quer. Suspiro, levantando a
cabeça, e escuto um pigarro atrás de mim. Quando me viro, dou de cara com um homem e tenho a
impressão de que há algo de desconcertante nele. De paletó marrom com cotoveleiras mais claras,
óculos dourados e um colete abotoado que destoa bastante da cabine de direção, que é cheia de
alavancas e teclas luminosas como a ponte de comando de Jornada nas estrelas.
— Permita que eu me apresente. André Magni — diz ele, me estendendo a mão. — Senhorita
Bassi, suponho?
Tenho que me controlar para não fazer uma mesura, como se estivesse em um livro de Jane
Austen.
— Prazer, Alice Bassi. Bem, só Alice. — Como se fala com um cara que publicou mais de dez
livros sobre a geologia dos planetas e ganhou diversos prêmios?
— Meus sinceros agradecimentos pelo convite para o programa — continua ele, inclinando a
cabeça e abrindo por um instante um sorrisinho muito britânico.
— Ah. Claro. Não há de quê. Na verdade, nós é que agradecemos… hum… profundamente, por ter
aceitado vir. Fique à vontade. — Aponto uma cadeira para que ele possa preencher a autorização.
André puxa para mim a cadeira de onde acabei de me levantar e espera que eu me acomode
também.
Observo enquanto ele preenche o formulário, meio surpresa de não ver uma letra toda floreada,
ao estilo século XIX , e ainda mais quando ele escreve a data de nascimento, porque somos do mesmo
ano. Eu e esse homem que parece saído de um baú do sótão fomos crianças no mesmo período,
talvez até assistíssemos aos mesmos desenhos animados e nos empolgássemos com os mesmos
brindes-surpresa dos lanchinhos. Observo André, mais confusa do que se estivéssemos conversando
sobre fissão nuclear.
— Então o programa discute astrologia — comenta ele, pousando a caneta.
Faço que sim, sentindo um arrepio me percorrer a coluna. Sei que falar de astrologia com um
cientista é como balançar um pano vermelho diante de um touro, e pode ser que esse gentleman na
minha frente seja meio cabeça quente. Afinal, pela data de nascimento, já sei que ele é mesmo de
Touro.
E acabei de permitir que seja Marlin a entrevistá-lo. Meu Deus, isso pode acabar em tragédia.
— Sim, o senhor sabe como é. Nosso programa é voltado para uma grande faixa de público, não
especialista em questões científicas. — Tento me justificar. — É um programa de entretenimento,
mas achamos importante ter convidados que gerem debates. Eu gostaria que na entrevista o senhor
falasse sobre suas especialidades, doutor Magni. O senhor pode explicar seu trabalho, as pesquisas
que está desenvolvendo…
Espero acalmá-lo um pouco, porque Touro também está sob domínio de Vênus, não é verdade?
Então ele deve ser um pouco narcisista, assim como Libra. Fiz o dever de casa.
— Claro. Em geral a tevê não se preocupa em transmitir questões científicas às massas. Se
transmitisse, teríamos mentes mais aguçadas e conscientes. Em vez disso, vemos cada dia mais
programas que são verdadeiro lixo.
— Bem, nós também queremos informar. Falar de horóscopo de maneira mais séria do que de
costume.
— Seriedade e horóscopo não têm nenhuma conexão, senhorita. Sob uma perspectiva puramente
lúdica, não vejo nenhum mal em consultá-lo, assim como considero perfeitamente lícito ler uma
obra de ficção, por exemplo. Como forma de passatempo. Obviamente, a senhorita e eu bem
sabemos que tudo isso é tolice e só serve para seduzir mentes miseráveis.
Claro… bem sabemos. Guardo discretamente o celular no bolso, pensando em Alejandro e em seu
temperamento alegre e oscilante.
— Por isso mesmo, não lhe peço mais do que um comentário sobre sua aversão à astrologia, mas
vamos falar principalmente de ciência, que o senhor disse com toda razão que é muito pouco
mencionada — concluo, prendendo a respiração.
Discutimos muito na redação sobre convidar ou não esse especialista, mas eu sei que a presença
dele vai nos fazer atingir um pico de audiência, porque, além de ser um cientista famoso, também é
bem jovem e nada feio.
— Muito obrigado. Ficarei encantado de poder deixar ao público a ideia de que há coisas mais
importantes do que a enganação dos horóscopos. Com certeza as pessoas se interessariam pelas
emissões de dióxido de carbono feitas pelo cometa Ison, ou ficariam empolgadas com as
Superterras descobertas no sistema de Tau Ceti, a somente doze anos-luz de nós. Geologia
astronômica é uma ciência “maneira”, como diriam os jovens de hoje.
Ele dá uma risadinha, satisfeito com a tirada, enquanto se ergue. Também rio e me levanto para
acompanhá-lo à sala de maquiagem. Só que, quando nos viramos…
— Olá — diz o geólogo, educadamente, estendendo a mão. — André Magni. O senhor é…?
— Professor Tiziano Falcetti — responde Tito, entre os dentes cerrados. — O charlatão que
apresenta esta baboseira.
Magni, graças aos céus (quase literalmente), encara a gafe com toda pompa britânica, enquanto
Tito estreita os olhos, e provavelmente já afia as garras para o programa com ele e para a conversa
comigo depois.
— Professor? — murmuro ao passar por ele, mas Tito nem olha para mim.
— Doutor Mangi! — Marlin surge da porta de seu camarim usando um macacão de látex que não
deixa muita brecha para a imaginação.
— Por Júpiter! — exclama o geólogo, que talvez também tenha, por baixo da crosta terrestre, um
núcleo palpitante de paixões físicas, além das astrofísicas.
— Boa noite, dr. Mangi. Meu nome é Marlin e vou cuidar do senhor… na entrevista. — Ela o
segura pelo braço, e o homem nem se preocupa em corrigir o sobrenome. — Venha comigo.
Enquanto eles aprontam tudo, a gente conversa sobre as chapas. Placas? Aquelas dos continentes.
Que se movem. O senhor sabia? Ah, bem que eu desconfiava. Eu sempre uso minhas tectônicas.
Mas é preciso usar direito.
Não é preciso ser um mago para prever o desastre.

Consciente da iminente derrota, só me resta tentar a última saída com a única pessoa que pode me
salvar. Estou pronta para pagar multa, fazer promessas, jurar de pés juntos que nunca mais vou
discutir com ele pelo resto dos meus dias.
— Tito… — Lanço-lhe um olhar de animalzinho em perigo.
Mas Tito apenas levanta a mão, me calando, balança a cabeça e se afasta.
Me sinto sozinha de verdade pela primeira vez em meses.
— Bom, agora eu estou puto! — explode Ferruccio, o iluminador, enxugando a testa. — Posso
saber onde se meteu o bonitão do seu espanhol?
— Ele não é meu espanhol! — respondo, indignada, mas não engano ninguém. Em um ambiente
como este, é impossível manter um caso em segredo. Mas Ferruccio tem razão: Alejandro foi
escalado para ajudá-lo essa noite.
Estou feliz porque pelo menos vamos nos encontrar. E, apesar de não termos combinado nada,
pretendo ir para a casa dele depois daqui, por isso não vim de carro para o trabalho hoje. Assim
poderemos conversar sobre nós, sobre nosso futuro.
Nervosa com o trabalho e com meu namoro, me escondo atrás de uma pilastra do corredor para
ler no celular os dados do aplicativo de astrologia.
Dificuldades familiares, ou então pai severo e educação espartana. Mãe psicologicamente enferma.

Caramba, será que é por isso que ele anda tão distante? Alejandro realmente pareceu triste depois
de falar com a mãe. Talvez tenha sido por isso que não me deixou falar com ela. Tem medo de que
eu pense mal dele por causa da família. Uma infância difícil muitas vezes é a causa da dependência
química.
Tendem a ter um conceito muito pessoal de honestidade. Possíveis problema nos pés e dificuldades com a justiça.

Franzo a testa. Dançando daquele jeito, claro que ele tem dor nos pés. Mas dificuldades com a
justiça? Será que tem a ver com as drogas mencionadas antes?
Muito respeitosos pela ética e pela moral.

Arqueio uma sobrancelha e ergo os olhos do celular para espiar o estúdio de Dor de amor,
procurando por ele. Preciso de respostas, porque esse horóscopo, em vez de resolver minhas
dúvidas, está criando outras.
O indivíduo precisa de estabilidade afetiva.

Ah, que ótimo. Bem, de repente, depois de ter tido problemas com a justiça e dor nos pés por dançar
tango demais, ele veio para a Itália a fim de esquecer a infância difícil, e tem comigo a chance de
uma relação duradoura. Continuo, e levo um susto ao ler: Inclinados a se apaixonar por uma pessoa
estrangeira. Pronto, aí está. PRETO NO BRANCO! Quase mando uma mensagem para Tito. Não, melhor
não.
— Com licença! — chamo, atraindo a atenção da assistente de direção de Dor de amor.
Ela se vira para mim e aperta os lábios em uma careta que deveria ser um sorriso.
— Mara, não é? — digo, tentando ser simpática. — Sabe onde posso encontrar Alejandro, o das
luzes?
— Ah! — explode ela, estreitando os olhos enquanto o sorriso se abre um pouco demais. — Bem-
vinda ao clube.
— Como assim? — Sei que ela não simpatiza comigo, porque, sempre que nos encontramos,
muda de rumo como se eu estivesse fedendo.
— É o que todos nós queremos saber: onde foi parar Alejandro?
Ela disse “todos nós” ou “todas nós”? Porque são coisas bem diferentes. Mas acho que ela está
com ciúmes. Já reparei em como olhava para Alejandro. É melhor ela se conformar, penso, dando
de ombros. Alejandro precisa de estabilidade afetiva, de uma relação séria que lhe dê segurança,
depois de todos os problemas que teve no passado. E agora ele tem. Comigo.
Eu me viro só por um segundo antes de sair e vejo Mara me olhando. Ela abre a boca, mas depois
morde o lábio e volta ao cenário em que estava trabalhando.
Aproveito para ir ao banheiro e, enquanto faço xixi, continuo a leitura.
Existência marcada por doenças crônicas. Operações, internações em clínicas. Morte por causa de doença intestinal.

— Ah, não!
— Ei, tudo bem aí? — Escuto da cabine ao lado. — Se quiser, eu tenho absorventes.
É uma das recepcionistas, e respondo depressa que não preciso de nada.
Ela fica em silêncio por um instante, depois dá descarga.
— Nem sempre eles são confiáveis, sabe? Os testes de gravidez, quero dizer. Tente fazer de novo.
— E, sem dizer mais nada, sai do banheiro.
Ainda estou olhando a tela do celular, me perguntando como posso ter gostado do filme Ghost. Eu
nunca ia querer estar na pele da Demi Moore. Mas seria uma idiota de sequer pensar em deixar
Alejandro por medo de seus problemas de saúde.
Lavo rapidamente as mãos e saio, porém acabo dando de cara com ele, meu esquivo espanhol.
Alejandro recua um passo, puxando a porta do banheiro masculino até garantir que está bem
fechada.
— Tudo bem? — pergunto.
— Claro. Eu só estava no banheiro.
Olho por um instante para a porta fechada, depois para ele. Alejandro está pálido, diferente do
habitual. Será que está escondendo alguma coisa? Vai ver é assim que começa. Os problemas no
intestino, quero dizer.
— Precisa de alguma coisa? Posso ajudar? — Sempre guardo uns remédios na gaveta da
escrivaninha. Talvez tenha até alguns para dor de barriga.
— Não, Alice. No necesito de nada. No te preocupes.
Tento caminhar ao lado dele enquanto seguimos para o estúdio, mas Alejandro tem pernas mais
compridas e anda mais depressa. Por fim, tento segurá-lo pelo braço.
— Perdona, mas tengo muchisimo trabajo com Feruchio. Não posso falar com você agora — diz
ele, se desvencilhando do meu toque e me deixando sozinha no corredor, observando-o se afastar.
Não estou imaginando coisas. Tem algo estranho acontecendo, e preciso descobrir o que é.
A lembrança da infância tranquila suscita neles certa melancolia.

Então Alejandro está com saudades de casa, penso ao ler mais um parágrafo de Sagitário com
Ascendente em Capricórnio. Talvez seja mesmo apegado à família, embora apanhasse do pai e a
mãe estivesse internada em um manicômio.
Ótimas capacidades organizativas e decisionais. Situação financeira confusa; pouca sagacidade e pouco espírito organizativo com
dinheiro.

Agora estou confusa, porque antes estava dizendo que ele era habilidoso nos negócios. Não que eu
esteja preocupada com isso por ganância. Quero dizer, dinheiro não traz felicidade, mas poderia
servir para as consultas com especialistas e as cirurgias no intestino, nos pés ou no estômago. Mas
não sei, não consigo entender, coitadinho. Queria muito poder ajudá-lo.
Parece quase um pelotão de execução.
Na primeira fileira está Tito, que decidiu ficar na cabine de direção para assistir, em vez de no
estúdio, e agora está me agourando pelas costas, encostado ao umbral. Depois, o Presidentíssimo.
Veio por causa de Marlin, claro, mas vai ser o primeiro a me engolir viva se sua protegida fizer uma
besteira muito grande e prejudicar sua imagem, a do programa e a de toda a rede.
E depois há David, recostado à parede, mãos às costas, lábios apertados.
Acho que tem algo errado, alguma coisa o incomoda, embora ele esteja calmo como sempre. Não
tem a ver com a distância que se abriu entre nós nesse último mês, pelo menos não esta noite. Ele
me olha sem me ver. Não está concentrado, não está aqui, agora.
Eu me dou conta de que mal o conheço. Tirando o fato de que ele tem um cachorro, o que sei de
sua vida? Nada.
Então procuro Alejandro, buscando encontrar nele algum apoio para a provação que está por vir.
Ele está aqui na cabine, mas me dá as costas e fala em voz baixa com Raffaella. Ela joga o cabelo,
passa a mão pelo próprio pescoço.
No intercomunicador, o operador grasna que faltam trinta segundos para voltarmos ao ar. Seguro
o microfone, aperto o botão que me permite falar com o estúdio e peço a todos que ocupem seus
lugares.
Os grandes olhos verdes de nossa estrela perfuram a tela. Sorrindo sedutora para a câmera, ela
caminha devagar, rebolando, até o assento.
Pelo menos a apresentação é impecável: por um milagre, Marlin pronuncia corretamente o nome
do convidado e até a profissão. Talvez estar com o livro do astrogeólogo nas mãos tenha ajudado.
Os problemas, porém, começam logo após a primeira pergunta.
— Por que estudar a composição dos planetas?
Uma perguntinha bem fácil, para ser respondida de modo simples. Mas Magni quer passar seus
conhecimentos, e Marlin se encolhe diante de palavrões como geomorfologia, petrografia,
magnetosfera, hidrocarbonetos, campos magnéticos, parâmetros orbitais…
Por um instante, acho que a coitadinha vai desmaiar. Eu talvez desmaiasse, no lugar dela. Mas
então ela parece se recuperar ao ouvir a palavra “universo”, que consta até em seu escasso
vocabulário (embora normalmente apareça junto com a palavra “Miss”), e arregala os olhos,
comentando com o entrevistado que fica sempre maravilhada pela imensidão do firmamento, que
considera muito romântico justamente porque é infinito e insondável.
Sim, ela diz insondável. Fico chocada, mas Magni não se deixa impressionar pelas proezas
léxicas de Marlin; ele se reacomoda no assento, estufa o peito e sorri, lançando-se na enésima
explicação:
—… então, minha cara, a variável de Hubble, que é v = H x d, nos diz a velocidade de
deslocamento de uma galáxia em relação às outras; v é a velocidade de distanciamento da galáxia
na direção da nossa linha de visão, d exprime a distância da galáxia em relação à Terra, e H é uma
constante de proporcionalidade cujo valor, infelizmente, ainda é bastante incerto, mas deve girar
em torno de sessenta e cinco quilômetros por segundo para cada megaparsec de distância. A esta
altura, acho que ficou claro para todos que a constante nos dá o índice de expansão do universo,
que, portanto, de certo modo, é perfeitamente mensurável.
— Ah, por favor, alguém dá um tiro nesse cara! — exclama Luciano no mixer de vídeo,
destacando uma panorâmica que sobe do tornozelo de Marlin até o decote. Uma tentativa
desesperada de despertar a audiência.
O Presidentíssimo lhe dá um tapinha nas costas, em agradecimento.
— Desse jeito, só podemos torcer para as pessoas pegarem no sono diante da tevê antes de
mudarem de canal.
— Tadinha da Marlin — comenta Raffaella. — Foi dada de comer ao lobo. Por que fizemos isso
com ela? — Raffa balança a cabeça com uma expressão maternal e preocupada, depois olha de
esguelha para o Presidentíssimo. — Eu jamais permitiria isso — comenta, os olhos pousando em
mim por um nanossegundo.
Volto a fitar o monitor de controle, onde tanto Magni quanto Marlin estão enquadrados por
inteiro.
—… uma vez que a física da matéria degenerada impõe às Anãs Brancas uma massa-limite, dita
Limite de Chandrasekhar. No tipo mais comum, aquelas de carbono-oxigênio, a superação de tal
limite, em geral por transferência de massa em um sistema binário, pode provocar a explosão delas
em uma Nova ou Supernova.
Marlin joga o cabelo para trás, descobrindo o decote.
— Coitadinha! Além de anã, é obesa!
Cubro os olhos, esperando as consequências.
— Entrem com a publicidade. — Escuto atrás de mim. — Alguma coisa longa. É possível? —
David se aproximou e, de pé ao lado da minha cadeira, folheia a escaleta com a testa franzida. —
Vamos antecipar o telejornal — diz em seguida, batendo no papel com o indicador.
— Mas ainda faltam dois blocos. Em torno de meia hora — murmuro, me inclinando para ler e
depois erguendo os olhos para os dele.
— Precisamos de tempo para nos organizar — responde David, me encarando com aqueles olhos
escuros como chocolate, que então se estreitam, desenhando rugas sutis nos cantos, quando ele
sorri. — A gente consegue, Alice. Nós dois juntos.
Pisco algumas vezes e tenho a impressão de que o sangue dispara pelo meu corpo, como em
queda livre.
— E Tito — acrescenta David, virando-se para o outro homem, ainda encostado à porta, de
braços cruzados. — Venha.
E, enquanto falo pelo intercomunicador com a assistente de estúdio, pedindo para que entre com
a publicidade, os dois desaparecem na salinha de redação adjacente. Pela parede de vidro, vejo
David se sentar ao computador e Tito lhe dizer algo ao ocupar uma cadeira ao seu lado.
Não faço ideia do que ele pretende fazer, mas não tenho tempo para pensar a respeito porque sou
atacada pelas reclamações de Marlin, que roda pela cabine com os saltos estalando a cada passo.
— Posso saber o que está acontecendo? O countdown ainda marcava sete minutos! Por que vocês
entraram com a publicidade?
— Verdade — concorda Magni, ajeitando a gravata verde que se destaca sob o colete vermelho.
— Por gentileza, os senhores poderiam nos fornecer uma explicação?
— Bem, é que… — O que eu digo? Que a entrevista estava chatíssima e ninguém entendia
porcaria nenhuma? Que Marlin estava fazendo papel de idiota? Eu gostaria de poder apelar para a
Quinta Emenda e ressaltar meu direito de ficar calada, como fazem nos filmes americanos.
— Querida, estava tudo maravilhoso. E preciso dizer que esta noite você está linda — intervém o
Presidentíssimo. — Mas o telejornal nos pediu urgência para entrar antes. Doutor Magni, aceite
minhas desculpas. Recomeçaremos o mais depressa possível.
— Mas que droga, o que pode ter acontecido? — reclama o astrofísico.
O Presidentíssimo faz um gesto qualquer.
— Ah, nada de grave. Venha, eu lhe ofereço um café.
— Agradecido — responde Magni, puxando o celular do bolso. — Com licença, só um instante,
tenho alguns amigos assistindo e minha mãe está gravando o programa. Vou explicar a mudança de
horário urbi et orbi, depois serei todo seu.
Observo-os se afastarem e, enquanto procuro Alejandro com o olhar, escuto o comentário de
Marlin:
— Que nome estranho, Urbi… A mãe dele é alemã?

Faltam menos de cinco minutos para o fim do telejornal, e estou rezando para que o público, em
casa, tenha tido a paciência de nos esperar.
Alejandro passa depressa por mim, puxando um cabo.
— O que está fazendo?
— Ferruccio me pediu para poner otra luz sobre Marlin — diz ele, se afastando sem erguer os
olhos.
— Quer ajuda? — ofereço, e me inclino para pegar o cabo, mas Alejandro se vira.
— Me está ya ajudando Raffaella.
E logo ela se aproxima, segurando parte do cabo com dois dedos, para não sujar demais a
preciosa mãozinha.
Olho para os dois, perplexa. Raffaella passa por Alejandro, e ele pousa a mão em suas costas.
Então escuto uma voz atrás de mim.
— Alice…
David. Tão perto que preciso erguer a cabeça para fitá-lo nos olhos.
Ele abre um meio sorriso, aquele capaz de derreter as calotas polares. Já que Alejandro acabou
de me dispensar com uma frase, é normal eu ficar confusa com outro cara me olhando desse jeito. E
ele está muito perto. Não percebeu que está invadindo meu espaço pessoal? Mas não posso dizer
que isso me chateia. David tem um cheiro bom, e o calor que emana de seu peito me acalma.
— O que foi? — murmuro.
Ele não responde. Me olha de novo, com aquele sorriso magnético, pega os headphones sobre o
painel da cabine e os coloca em mim.
De repente, uma música começa a tocar em minha cabeça. “Reality”. Do filme La boum — No
tempo dos namorados.
No meio do caos dessa noite, não acredito que estou me sentindo uma pré-adolescente em uma
festinha. Encaro David, esperando que ele me segure pela cintura para dançarmos.
Mas ele não faz isso. Apenas dá um passo atrás e leva um transmissor aos lábios.
— Está me ouvindo? Testando. Aaa… aaaa…, um, dois… Alice, está me escutando bem?
Escuto perfeitamente.
Não há música nenhuma, exceto na minha fantasia, e o motivo pelo qual David colocou esses
headphones na minha cabeça não é nada romântico.
Faço que sim, mas ele mal presta atenção antes de voltar à saleta da redação e acenar para mim
através do vidro.
— Ainda está escutando, querida?
Eu me aproximo alguns passos. Então percebo que o headphone tem também um microfone com
dois botões. Aperto um e David dá um pulo, tirando o aparelho da cabeça. Quando pressionei o
botão, causei um assovio que deve ter sido mais forte para ele do que para mim.
— Desculpe. Você me ouve?
— Sim, Alice. Agora, preste atenção. A ideia é a seguinte: vamos fazer uma ponte. Marlin vai
usar um auricular sem fio, escondido no ouvido, na frequência do seu intercomunicador. Assim, ela
pode repetir o que você disser, na entrevista com Magni, sem cometer gafes.
Ou seja, ela vai repetir o que eu falar?
— Eu não sou astrofísica! Se você acha que ela não vai dar mancada com o que eu disser, está
muito enganado.
Ele levanta a mão para me calar.
— Você vai repassar o que eu te disser.
— Então por que você não fala direto com ela? — reclamo, considerando essa história de ponte
meio complicada. Se for como em telefone sem fio, imagine os mal-entendidos que podem acontecer.
— Preciso de tempo para fazer alguma pesquisa na internet. Eu também não sou especialista em
astrofísica, Alice. Você vai ter que ficar atenta, para o caso de o assunto mudar de repente e eu estar
muito envolvido na leitura de um site para perceber. Duas mentes funcionam melhor do que uma.
Não tenho muita certeza disso, se uma das mentes for a minha. Mas David é quem manda.
— Todo mundo a postos! — exclama Ferruccio, puxando a cadeira para o painel de comando. —
Falta um minuto! Pessoal, no estúdio! Todos em seus lugares! Alice!
Com dificuldade, desvio o olhar de David para assentir a Ferruccio.
— Estou pronta.
— Está mesmo? — A voz de David soa densa e quente em meu ouvido.
Eu me viro de novo para encará-lo.
— Você tem que ser minha mulher… por trás da mulher. Está pronta, Alice? — Ele apoia a mão
no vidro, como se quisesse me tocar.
Não sinto um arrepio, nem borboletas no estômago, nem um calor no ventre. Olhar para David é
um terremoto na quietude perfeita. Não consigo dizer nem uma palavra. Fico ali, imóvel feito uma
estátua, enquanto na minha cabeça começa de novo a tocar “Reality”, na voz de Richard Sanderson.
Mas logo recupero o uso da mão, estendendo-a até o vidro. Enquanto me aproximo, só consigo
pensar no quanto esse segundo é mágico, embora eu saiba muitíssimo bem que não significa nada.
Pelo menos, não o que eu gostaria que significasse.
— Dez segundos, Alice!
Mal toquei o vidro quando David tira a mão e se senta em frente ao computador.
— Bem-vindos de volta ao estúdio! — exclama Marlin, radiante, assim que se acende a luzinha
vermelha da câmera apontada para ela.
Aperto o botão do headphone que me conecta com ela. “Pedimos desculpas pelos inconvenientes
técnicos.”
— Pedimos desculpas pelos inconvenientes técnicos — repete ela, acrescentando por conta
própria um sorriso cativante, para depois prosseguir segundo minhas instruções: — Mas, para os
que continuaram a nos acompanhar, agora retomaremos a interessante entrevista com o dr. André
Magni.
“O famoso astrofísico”, murmuro ao headphone.
—… que, para falar a verdade, deveria ser famoso também pelo físico, e não só por ser um
astrofísico — comenta Marlin, e só então faz a pergunta que sugeri.
No meu fone de ouvido escuto um bip, seguido pela voz de David: “Foi você quem sugeriu que ela
dissesse isso? Você gosta desse cara?”.
— Claro que não! — exclamo.
— Claro que não! — repete Marlin, sorrindo para Magni.
Fecho depressa a comunicação com ela enquanto Magni arqueia uma sobrancelha.
— Trapalhona — sussurra David, com um sorriso na voz.
— É você quem me distrai! — comento, de cara fechada, dessa vez apertando o botão certo, por
sorte. Eu me viro, e ali está ele, de pé atrás do vidro, me observando enquanto bebe café de um
copinho de plástico. Então volta ao computador.
Quando Magni questiona cientificamente a eficácia da astrologia, Tito, que magnanimamente
concordou em retornar ao estúdio, é instruído por Marlin (ou seja, por David, depois por mim e
finalmente por Marlin) a rebater expondo seu ponto de vista.
— Graças a Deus — digo a David pelo intercomunicador. — Entre mortos e feridos, salvaram-se
todos.
— Resta saber quem são os mortos e os feridos… — responde ele.
Isso é hora de fazer gracinha? Ele parece animado, como se esse jogo o divertisse, e deixou
totalmente de ser frio.
— Senhor Nardi, não minta para mim — brinco. — Fale a verdade, o senhor está se divertindo
com O show de Truman.
Escuto-o rir. Percebo que ele não faz isso com muita frequência, porque me parece um som novo,
estranho vindo dele.
— Ah, Alice, é você que me diverte, não O show de Truman.
Eu me pergunto se ele me acha divertida porque sou desastrada demais, ou divertida como a Meg
Ryan, de um jeito meio neurótico, mas fofo e sexy.
Enquanto isso, Magni afirma que a astrologia precedeu, sim, a astronomia, mas só porque nos
tempos em que ela nasceu a ciência ainda era bem pouco desenvolvida.
— Vênus é um planeta deserto, envolto por um monte de nuvens e quente como um forno. Essa é
a verdade, embora eu compreenda que seja muito mais romântico pensar que esse planeta pode nos
dar informações sobre nosso futuro sentimental. — Ele esboça um sorriso condescendente e encara
Marlin.
Estamos entrando em terreno perigoso. Pela tela do monitor, vejo Tito se contorcer e tomo a
iniciativa de devolver a conversa ao rumo certo, propondo a Marlin uma pergunta sobre o trabalho
de Magni que não me foi sugerida por David.
— Ótimo — comenta ele pelo intercomunicador. — Parabéns. Viu como formamos um belo
time?
Fico vermelha. Por sorte estou de costas e ele não pode ver meu rosto.
— Elogios deixam você constrangida, né?
Reativo a comunicação com ele.
— Como é que você sabe?
Essa é uma das coisas que mais me fascinam e me apavoram em David: ele parece saber sempre
tudo a meu respeito, mesmo que eu não conte. É como se tivesse aqueles óculos de infravermelho
que os caras nos vendem prometendo que passaremos a enxergar através das roupas.
— Você tem sempre uma resposta pronta, mas quando é pega de surpresa não sabe o que dizer. É
normal. Agora, a verdadeira pergunta é: por que você não consegue aceitar um elogio?
Não sei se David está me olhando, mas meus ombros ficam tensos no esforço de não me virar
para ele, e tento me concentrar no que está acontecendo no estúdio. Apesar do formigamento que
sinto na nuca.
— Sempre me perguntei por que, para determinar o signo zodiacal, e, portanto, o temperamento
da pessoa, os astrólogos levam em conta o momento em que ela vem à luz, e não o da concepção.
Afinal, é essa a origem da vida. Será que os astros não têm nenhuma influência sobre o feto? São
blindados pelo invólucro materno? — diz Magni, de um jeito implicante.
Enquanto Tito responde que é a separação da mãe que cria a individualidade, escuto de novo o
bip no headphone e me preparo para anotar mentalmente o que David vai me mandar dizer a
Marlin.
— Ou é porque determinar o momento exato da concepção seria muito difícil? Os astrólogos são
espertos — comenta David, meio hesitante, como se estivesse experimentando o terreno, já que o
deixei sem resposta agora há pouco.
Aperto o botão para falar com ele e rebater:
— De que lado você está? Falo mesmo para Marlin comentar isso?
— Claro que não! Eu estava dizendo para você. É tudo um monte de bobagem, isso de horóscopo,
não é?
Bufo e encerro a comunicação, depois mudo de ideia e clico de novo para responder:
— Bobagem ou não, vejo certa correspondência entre as características do signo e o
temperamento das pessoas. E é claro que todos temos diferentes experiências. Você, por exemplo,
qual é o seu signo? Vamos ver!
Só que errei de novo o botão e Marlin repete a mesma coisa.
Ai meu Deus…
— Ahn, eu sou de Touro — responde André Magni, no estúdio.
— Errou de novo, não foi? — David ri no meu fone de ouvido. — Apertou o botão errado. Ah,
Alice, isso é bem sua cara. Você é a melhor coisa deste lugar. É única.
Eu pisco, querendo muito me virar para o vidro. Sinto o olhar dele perfurando minhas costas.
Outro bip e depois de novo sua voz:
— Mas não diga isso a Marlin.

Quando tiro os headphones após a vinheta de encerramento, meus ouvidos zumbem e meu cérebro
parece um chiclete mastigado. Na cabine de direção explodem gritos de alegria pelo término de
mais um episódio e pelo resultado positivo de uma noite que poderia ter sido um desastre total.
— Parabéns, parabéns a todos — diz o Presidentíssimo, indo ao encontro de David, que também
parece cansado, mas não recua quando o presidente segura seu ombro e o leva para conversar a um
canto.
Parece coisa do destino que a gente nunca consiga esclarecer as coisas entre nós, digo a mim
mesma.
Por outro lado, já decidi que não vale a pena me torturar por isso. David é off limits para mim, e
não só por sua posição na empresa. Ele já deu várias provas de que não se abre com ninguém.
Sempre se esquiva quando lhe fazem uma pergunta pessoal, foge de conversas sobre o passado, ou
mesmo sobre a vida fora da empresa. E eu queria perguntar muitas coisas, mas nunca consigo.
Como posso ficar com um homem desses?
E também tem Alejandro. Quero dizer, temos alguns problemas, mas somos um belo casal.
Enquanto Luciano desliga o maquinário da cabine, vou até o estúdio, onde o calor das lâmpadas
deixou o ar quente. Os técnicos escancararam as portas de ferro do galpão para deixar entrar a
brisa noturna.
Tito está fumando com André Magni, e escuto os dois rindo distraidamente. Que dupla estranha!
Ferruccio luta com as lâmpadas e os cabos. Alejandro tirou a camiseta e seu peito brilha de suor.
Erika, Raffaella e Marlin estão sentadas nos banquinhos e o observam, impressionadas. Por um
instante, não sinto ciúme, mas um misto de inveja e de pena por elas estarem ali sonhando de olhos
abertos.
Os poucos metros que me separam de Alejandro parecem se alongar como naqueles pesadelos
em que a gente nunca consegue alcançar o objetivo. Mesmo quando estou perto, é como se visse a
cena por uma luneta, de um planeta bem longe, a milhões de anos-luz de distância.
— Vamos para casa juntos? — pergunto.
Ele deixa os ombros caírem e demora alguns segundos para responder.
— No puedo, Alice. Lo siento. Otra vez, eh? — Alejandro nem para o que está fazendo. Continua
enrolando o cabo infinito no braço. Não me olha.
— Você tem algum outro compromisso?
— Si… no… é que estou muy fatigado… Cansado.
— Está acontecendo alguma coisa? Não nos vemos mais! Você sempre está cansado, ou tem
alguma outra coisa para fazer.
Odeio meu tom reclamão, agudo, como o de uma menina teimosa. Como uma mosca se debatendo
contra a vidraça, querendo sair.
Quando me encara, a expressão de Alejandro é ilegível.
— Nada, Alice. Eu te ligo depois.
No banheiro, lavo o rosto com água fria e, quando vejo meu reflexo no espelho, tenho uma sensação
de déjà-vu. Há algo de familiar nos meus olhos tristes, na minha boca rígida, na minha pele pálida.
Então eu me lembro. Mara, a assistente de Dor de amor, seus olhos, sua expressão dura e vazia.
Decepcionada.
É o que todos nós queremos saber: onde foi parar Alejandro?
Meu smartphone está em cima da pia, o visor ainda iluminado dá vislumbres da última frase que
li sobre o perfil do signo dele.
Sexualidade forte. Bloqueios psicológicos na esfera sexual. Múltiplos flertes e falta de um apego sincero. Pouco interesse sexual.

— Uma moeda pelos seus pensamentos.


Essas palavras me resgatam do torpor que havia me engolido. Estou encarando a máquina de
bebidas há não sei quanto tempo. Nem saberia dizer como ou quando vim parar aqui.
David enfia uma moeda na máquina.
— Você se deu bem, não tenho trocado.
Me obrigo a sorrir.
— Obrigada — digo, escolhendo uma garrafinha de água.
Só então me dou conta de que minha garganta está seca. Seguro a garrafinha com força,
querendo me reidratar de uma só vez, como uma planta que alguém se esqueceu de regar.
— Você estava com sede — comenta David, a testa franzida, depois de me ver engolir meio litro
de água em praticamente um só gole. — Melhorou?
— Melhorou — repito de um jeito idiota, como se falasse comigo mesma.
— Não se preocupe com o programa, foi tudo ótimo. O presidente estava muito satisfeito. E até
as gafes de Marlin… bem, tudo dá audiência.
O programa, o share, Marlin, Tito que foi embora sem se despedir, Alejandro que não tem mais
por que se despedir antes de ir embora. Eu me sinto vazia.
— Quer conversar? — pergunta David, hesitante. Eu o encaro e ele abre um sorriso tímido.
— Você sempre pergunta sobre os outros, mas nunca fala de si — respondo, e soa quase como
uma acusação.
Ele leva um susto e estreita os olhos.
— Sou chato. Não tem nada de especial na minha vida, só um cachorrão, alguns apartamentos
alugados e muitas mudanças.
— Por que você tem um cachorro tão grande?
David pensa um pouco, como se não conseguisse decidir o que me dizer.
— Aconteceu… durante um trabalho.
— Só isso?
— O quê?
— É só isso que você pode me dizer? Aconteceu. Me conta como foi.
Ele levanta o braço para olhar o relógio.
— Já passa da meia-noite, Alice. Talvez em outra ocasião, certo? Eu te acompanho até o carro.
Se ele não fala nem do cachorro, imagina do resto!
— Não se preocupe. Não vim de carro hoje, vou chamar um táxi.
— Por que não veio de carro?
— Já passa da meia-noite, David. Talvez eu te explique em outra ocasião — rebato, jogando a
garrafinha vazia no lixo.
— Então eu te levo em casa.
— Por quê? — questiono, com os olhos marejando. Não sei se estou com mais raiva de David e da
parede que ele cria diante de mim, ou de Alejandro, que acabou de me fechar uma porta. Seja como
for, odeio essas barreiras arquitetônicas.
Mas David não para de me observar.
— Porque nunca se deve deixar uma mulher em dificuldade — responde ele, por fim.
— Eu estou em dificuldade? Não acho. — Puxo a carteira e lhe mostro que tenho bem uns setenta
euros em espécie. — Posso pagar um táxi, ida e volta, daqui até minha casa umas três ou quatro
vezes.
Ele ergue as mãos.
— Eu quero te levar em casa, Alice. Quero fazer isso para agradecer por esta noite.
Eu não respondo, e ele continua:
— Quero conversar com você.

Quando ele para o carro na frente da minha casa, já descobri que Flash era o cachorro de um de
seus últimos empregadores, e que quando o homem morreu a esposa não quis mais o animal.
— Iriam sacrificá-lo, então preferi ficar com ele. Fazer o quê? Já tinha me apegado ao bicho —
explica David, desligando o motor.
— Que pessoa horrível. Como ela pensou em matar um cão perfeitamente saudável?
— Não, ela não é má, só tinha medo do Flash. Além do mais, com os filhos e todo o resto, não
tinha tempo de cuidar dele. Acho que é justo ter essa escolha, não?
Não acho justo ter a escolha de matar um animal desse jeito, mas fico calada, feliz por Flash ter
encontrado um novo dono.
— Que bom que foi uma história com final feliz.
— É disso que você gosta, não é? De histórias com final feliz, quero dizer. Dos filmes românticos.
Dou de ombros.
— Mas a vida é diferente. Nunca tem um final feliz garantido.
David segura minha mão e a aperta. Eu me viro para ele na luz azulada do interior do carro e
vejo que está me olhando.
— Verdade. O final feliz nunca é garantido.
— O amor é sempre muito mais complicado do que nos filmes. Nas histórias, em geral a gente
sabe logo onde e com quem a protagonista vai ficar, não tem dúvidas, só alguns mal-entendidos.
— E não existem traições. — David suspira, fitando o volante. — Você já traiu alguém, Alice?
A pergunta é direta como uma flecha. Não sei se é por Alejandro, de quem não falei, ou se ele
mesmo já passou por isso. Eu me pergunto se ele está avaliando meu caráter.
— Não. Nunca aconteceu — respondo, mas então faço uma piadinha para atenuar a situação: —
Já é complicado cuidar de um homem por vez, imagine dois ao mesmo tempo.
Ele assente, sem responder, e por alguns segundos ficamos apenas nos olhando, a luz do poste
mal desenhando os contornos de nossos rostos.
Há um abismo de perguntas, de palavras invisíveis, tornando o espaço entre nós tão denso que
não se pode atravessá-lo. O corpo dele se move lentamente na minha direção, como o de um
astronauta no espaço, até que seu rosto fica tão próximo que nem parece irreal.
— Boa noite, Alice — sussurra, antes de pousar os lábios na minha bochecha.
VIRGEM

Se você se apaixonou por um homem de Virgem, deve ter sérios problemas psicológicos. Ah,
não? Já viu o filme Psicose? Ou leu um daqueles romances em que se descobre que o assassino é
um cara metódico, aparentemente calmo e equilibrado, obcecado por detalhes, e que tem o maior
prazer em repetir o mesmo trabalho tedioso dia após dias, hora após hora? Ah, aposto que se
lembrou de alguém!
17. AS REGRAS DE UMA CANCERIANA





Que pena que não é inverno.
O inverno é a estação dos corações partidos, porque a gente pode se enfiar debaixo das cobertas e
fingir que não existe mais nada, nem ninguém. Nem você mesma.
Mas é primavera, e está fazendo calor demais para usar edredom. Tenho que sair da cama, me
expor à tortura da luz e dos objetos, que me dizem que ainda estou inteira, por mais estranho que
pareça. Eu me arrasto pela casa, olhos inchados, esfregando o nariz com lencinhos.
Nós víamos televisão juntos nesse sofá. Ele sempre se sentava naquela cadeira da cozinha. A
escova de dentes que comprei para ele ainda está no banheiro. A ausência faz todos os objetos
rotineiros machucarem.
Estou sozinha.
Não há astrologia que funcione, nunca vou encontrar alguém que queira construir comigo algo
além de um castelo de cartas. E o pior de tudo foi que acreditei e caí de novo.
Só nos filmes as pessoas dizem coisas como “Gosto de você profundamente, Bridget. Do jeito que
você é”.
Eu me sento no chão e me recosto no sofá. Estou doente e faz três dias que não saio de casa, não
arrumo a cama, como a primeira coisa que vejo na geladeira (ontem foi um potinho de pepinos em
conserva), não atendo ao telefone e fico olhando o aparelho, com cara de idiota, enquanto no visor
um nome aparece repetidamente: Paola.
Quero morrer. Me deixem morrer. Estou muito mal. Não posso continuar assim, não aguento
mais. Será que eu deveria avisar alguém? Quero dizer, está começando a fazer calor… Se eu
realmente morresse e achassem meu corpo vários dias depois, eu estaria em péssimas condições.
Por pouco o toque do interfone não me faz ter um troço, dando um fim a todo o meu desespero.
Atendo sem dizer nada.
— Abre a porta, sua retardada.
É isso que acontece quando ignoro Paola.
Mais rápida que um avião, mais letal que um míssil, mais veloz que o Super-Homem, Paola
aparece na porta da minha casa trinta segundos depois, atravessando o corredor a galope enquanto
empurra o carrinho de bebê.
Não perde tempo me cumprimentando, entra logo na cozinha, reclamando da pilha de pratos
sujos, potinhos vazios, garrafas e guardanapos espalhados.
— Eu te conheço bem — comenta, puxando produtos de limpeza de uma bolsa de lona e se
transformando na Mulher Faxina.
Preso ao carrinho, Sandrinho observa a mãe, para depois começar displicentemente a fazer
bolhas com a boca. Ele é de Aquário. Os aquarianos são superiores e imperturbáveis.
— Eu sabia muito bem — prossegue Paola. — Sei como você fica quando leva um pé na bunda:
não cuida de mais nada. Fica igual uma idiota na frente da tevê, comendo porcaria e deixando a
casa bagunçada.
Fico parada na porta, olhando para ela, incapaz de me mover para ajudá-la, detê-la ou até de
responder.
— Quando uma pessoa está deprimida, come muito mais do que precisa por dia. Vi isso naquele
programa. Sabe como os americanos são gordos, né? É porque a maioria é deprimida. É isso que
você quer? — Ela abre a geladeira, solta um gritinho e começa a esvaziá-la, resmungando: — Não
tem uma verdura! — Paola arruma a cozinha em menos de três minutos, enchendo um dos enormes
sacos de lixo que trouxe. — Sabe que germes podem ser perigosos? Sabe quantas espécies diferentes
se aninham nas frestas, nos tapetes, nos cantinhos? Você pode contrair doenças graves.
Para os cancerianos, o mundo é um perigo, e Paola é uma canceriana típica, principalmente
quando tem um desses ataques maternais. Também é típico seu enorme talento para fazer as
pessoas se sentirem amadas e compreendidas, e como ela é leal até o último dos cabelos louro-
platinados.
Mas além de todas essas características do signo, ela também tem uma sensibilidade
inacreditável e a memória fotográfica de uma mulher biônica. Por isso é inútil mentir para ela.
Paola simplesmente sabe a verdade.
Enquanto ela circula pelo quarto, reclamando de tudo (“Você dorme em uma caminha de
cachorro? Meu Deus, estes lençóis estão pretos de sujeira! Quanto tempo faz que você não abre a
janela para arejar? Tem que cuidar mais das suas coisas…”), caio no sofá com o controle remoto na
mão e a tevê desligada. Sandrinho me encara, ainda em sua atividade favorita. Fazer bolhas. Ele
que é feliz.
O interfone toca de novo.
— Está esperando alguém? — pergunta Paola, aparecendo na sala.
Só a morte, quero responder.
Mas apenas dou de ombros.
Poucos minutos depois, escuto a porta se abrindo. Paola fala baixinho. Apática, nem sequer viro
a cabeça.
Um instante depois, Tito se materializa diante de mim, carregando um monte de sacolas de
supermercado.
— E então, espertinha? Já se acalmou? — pergunta ele, agachando-se e me dando um abraço.
Quero pedir desculpas, mas não consigo. Minha garganta está bloqueada.
— Já passou… É típico dos librianos. Se acham os donos da verdade. — Ele remexe em uma das
sacolas e pega uma barra de chocolate. — Pronto. Aposto que você não faz uma refeição decente há
pelo menos três dias. E chocolate deixa a pessoa de bom humor. Coma. — Tito se levanta e olha ao
redor, balançando a cabeça.
Em cima da mesa, Paola empilhou umas camisetas masculinas que encontrou no meu quarto,
junto com as fotos de Alejandro e as rosas amarelas secas.
— Você sabe que isso é coisa de serial killer, né? Fazer esse museu-santuário.
Dou de ombros.
Tito joga tudo no chão de uma vez, rasga uma foto e me entrega outra, me incitando a rasgar
também.
— Librianos, quando estão deprimidos, querem pôr ordem em tudo, de qualquer jeito. Em vez
disso, você devia ficar puta, quebrar tudo, brincar de aviãozinho com a foto dele. Vamos, faça isso! É
libertador. — Ele joga os pedacinhos no chão e dá uns pulos em cima. Depois se afasta para ir ao
banheiro.
Fico olhando a fotografia de Alejandro, sem me decidir.
— O que é isso? — pergunta Paola, da porta, apontando a barra de chocolate. — Caramba,
Alice, está querendo ficar do tamanho de Moby Dick? — Ela pega o doce e joga no lixo. — E o que
você está fazendo? — Paola olha para o chão, onde foram parar as camisetas de Alejandro e os
pedacinhos da foto. — Eu limpo e você volta a jogar coisas no chão? Rasgar as fotos dele não
adianta nada. Você não tem mais dezesseis anos, sabia?
Por que eles não me deixam em paz? Por que não ficam sentados aqui comigo e me deixam
chorar? Caramba.
Tito sai do banheiro. Ele e Paola me observam e depois trocam um olhar preocupado e cúmplice,
balançando a cabeça, antes de ela desaparecer de novo para ir desinfetar algum cantinho da minha
casa.
— Por que não assiste a um filme, meu bem? — sugere Tito, tirando o controle remoto da minha
mão. — Vou colocar alguma coisa alegre para você. — Ele pega o primeiro da pilha e coloca O
morro dos ventos uivantes no DVD. — Pronto. Agora, vou te fazer um chá com biscoitinhos, tá bom?
Chá e biscoitinhos amanteigados consertam qualquer coisa. — Ele pisca para mim enquanto eu
assisto Ralph Fiennes, que arrancaria o próprio coração por Juliette Binoche.
— O que eu faço com você? — reclama Paola, tomando o controle remoto da minha mão e
pausando o filme. — Quantas vezes já viu isso? Porque eu te conheço. Fica se alimentando desses
DVDs, depois cria um monte de filmes absurdos na cabeça. Aqui é a vida real, Alice!
— Ela é uma teimosa — reforça Tito, voltando com uma xícara de chá fumegante nas mãos. —
Quantas vezes você acha que eu disse para Alice não confiar? O.k., Alejandro era Sagitário, mas
precisávamos avaliar o Ascendente. E aposto que o Mapa Astral dele devia ser horroroso. — Ele me
encara, o dedo em riste. — É hora de termos uma bela conversinha, senhorita.
Fecho os olhos enquanto eles continuam a me rodear como os pais de uma adolescente em crise.
Mas Catherine Earnshaw não tinha que aturar esses chatos enquanto chorava por Heathcliff!
— Talvez a gente devesse chamar um médico — comenta Paola, tocando minha testa. — Ela não
disse uma palavra desde que cheguei.
Ah, então eles perceberam. Palavras são inúteis. Superestimadas. Por exemplo, olha tudo o que
Alejandro me disse. Querida, amor… Blá-blá-blá. Besteiras. Como protesto, nunca mais vou falar
nada.
Mas talvez fosse melhor avisá-los, para não ficarem preocupados.
— Alice? Está me ouvindo? Estamos bem aqui, pode prestar atenção, por favor? — resmunga
Paola.
— Alice, querida — chama Tito.
Como não me entendem? Nunca mais será a mesma coisa. Chega. Acabou. Encerrei. Estou
derrotada.
Debaixo de mim, o celular começa a vibrar insistentemente, e depois a tocar a musiquinha que
programei para os números do trabalho. Só me faltava essa. Vou ter que escrever em letras
garrafais que quero ficar em paz?
Faço o esforço de enfiar a mão embaixo de mim para pegar o aparelho e tenho toda a intenção de
espatifá-lo contra a parede. Aí Paola vai poder reclamar que precisa limpar os pedaços e Tito vai
repetir mil vezes que librianos estão sujeitos a grandes momentos de desequilíbrio.
— Alô? — Fico de pé em um pulo, passando a mão livre pelo cabelo. — Estou em casa. Sim,
doente… nada… — Pigarreio. — Nada sério, só um resfriado.
Tito e Paola me encaram de braços cruzados, com expressões céticas idênticas no rosto.
— Não, não está incomodando. Pode falar, David.
18. ONDE OS LIBRIANOS NÃO TÊM VEZ





Claro, levar um pé na bunda não é o fim do mundo. Já passei por isso, não é a primeira vez.
Pensando bem, meu namoro com Alejandro foi tão insignificante que nem mereceria ser levado em
consideração.
É muito comum a pessoa que leva um chute começar a se esconder, a baixar a cabeça, como se
não merecesse palavras gentis. Mas quem disse que não tenho minha maldita dignidade? A
vergonha devia ser desses caras que magoam todo mundo, os turistas do amor, profissionais da
liquidação sentimental.
Pois eu escolhi ser uma fênix e renascer das cinzas. Vão ver só.
Quando entro pelo portão da Rede Mi-A-Mi, me equilibrando em saltos altíssimos, tento chamar
o máximo de atenção possível, cumprimentando e beijando todo mundo que encontro, com um
sorrisão no rosto.
— Oi, Vale! — cumprimento, muito carinhosa, contornando o balcão para beijar e abraçar a
recepcionista com o entusiasmo de quem está voltando de um tour de dois meses em Burkina Faso.
— Como vai, querida? — responde ela, me apertando calorosamente. — Já se recuperou?
Mas será que esses fofoqueiros não têm vida própria? Devem ter dissecado minha relação com
Alejandro melhor do que o CSI quando eu estava ausente.
— Ah, imagina, não foi nada! Aliás, se não tivesse acontecido daquele jeito, eu é que teria tomado
a decisão. Foi só uma questão de timing.
— É mesmo? Eu não sabia que dava para decidir ter sarampo. E por que você ia querer isso?
Ah, merda. Claro, ela está falando de eu ter estado doente.
— Quer saber? — respondo, gesticulando casualmente. — Dizem que as toxinas que a gente
libera são incrivelmente purificantes. Para a pele, são melhores que um lifting.
Eu me afasto pensando que talvez tenha exagerado nas vitaminas que tomei, mas não queria
parecer uma moribunda voltando ao trabalho. Quando paro diante da minha escrivaninha, porém,
acho que fico mesmo branca como um cadáver. Dessa vez, não há uma rosa amarela. Há um buquê
inteiro e exuberante.
— Quem trouxe isso? — grito, agarrando o cartãozinho. De novo, uma só frase.
Sinto sua falta.

Sem assinatura.
Em um momento como este, dar de cara com algo assim faz parecer que alguém está me zoando:
“Querida srta. Pé na Bunda, como prêmio de consolação você vai receber um buquê de rosas
amarelas e o jogo de tabuleiro do nosso programa”.
Ah, não, dessa vez não quero saber desse maluco das rosas. Não vou mais ser enrolada por gestos
idiotas. Pego o buquê inteiro e o jogo na lixeira.
Sinto-me ótima! Sou uma nova mulher. Livre e descontraída.
— Ah — diz Enrico, se aproximando. — Oi, Alice. David passou aqui agora há pouco, estava te
procurando.
Nem me lembro dos espinhos enquanto meto a mão no lixo para pegar as rosas e arrumá-las
cuidadosamente na escrivaninha, olhando para elas de um jeito perplexo.
Tudo bem, já sei que é inútil negar. Eu gosto dele. Muito.
Paro em frente à sala de David e respiro fundo. É verdade que, profissionalmente falando, o
trabalho devia ser uma área proibida para relacionamentos, mas a história está cheia de exemplos
assim. Tipo… tipo Três mulheres, três amores, ou Mensagem para você… ou Cinderela.
— Oi, David. Enrico disse que você queria falar comigo.
Ele se levanta da escrivaninha.
— Alice — diz, com os olhos estreitados pelo sorriso. — Você voltou… Parece bem.
— Ah… — Aliso o vestido, esperando que ele não o julgue ousado demais para o trabalho. —
Obrigada. E obrigada… por tudo. Por ter me telefonado, por ter me levado para casa naquele dia.
Ou seja, por ter sido atencioso… E por ter me contado… Bom, espero que Flash esteja bem. — Meu
Deus, preciso parar de tagarelar desse jeito. Pare, Alice. Pare. Eu paro.
— Sim. — É a única resposta dele.
Ele podia fazer melhor que isso, né? Quero dizer, eu estou constrangida, mas ele também não
facilita.
Preciso arrumar coragem para quebrar o gelo, porque David parece muito indeciso, até inquieto.
— Tem a ver com a audiência do programa? — pergunto, preocupada.
— Sim… Quero dizer, não. A audiência tem sido muito boa. Magni conseguiu um pico, ainda mais
quando estava discutindo com Tito. Acho que nosso experimento funcionou muito bem.
— É mesmo?
Nosso experimento… Trocamos um olhar e vejo a expressão de David mudar lentamente. O
sorriso se desfaz e os olhos ficam distantes, me deixando com vontade de dar uns passos à frente.
Mas é como se nós dois estivéssemos congelados.
— Era só isso? — pergunto, a mão na maçaneta.
Fale alguma coisa, David. Qualquer coisa. Por favor, não me deixe sair.
Sempre que nos vemos, sempre que nos falamos, minha sensação é de que o ar fica cheio de
eletricidade, as cores ficam mais brilhantes, os sons mais claros, as formas mais definidas. O que
isso significa?
— Qual… qual é o seu signo? — murmuro, mas minha voz sai tão baixa que acho que ele não
ouviu.
David me olha, franzindo a testa ainda mais.
— Alice, espere. — Ele suspira e morde o lábio, contornando a escrivaninha e se aproximando.
— Eu queria falar de outra coisa. — Ele segura minha mão; a dele está fria, e o pulso acelerado.
Minha pulsação iguala o ritmo.
— Sim? — sussurro. Poderia me perder nos olhos dele.
— Alice… eu tenho que pedir desculpas.
Os violinos param de tocar e os passarinhos deixam de trançar meu cabelo. Não estou mais em
um conto de fadas e não sei o que está acontecendo. Não sei por que ele tem que me pedir
desculpas.
— Tem a ver com o trabalho? — pergunto, morrendo de medo que ele diga que ganhei férias por
tempo indeterminado. Eu sabia, sabia que não devia acreditar tanto!
Mas David balança a cabeça. Recuo devagarinho até me encostar na porta, a mão na dele e o
coração ameaçando sair pelos ouvidos.
— Eu queria… Preciso me desculpar pelo meu comportamento. — Parece ser difícil para ele
dizer cada palavra. — Tenho que falar uma coisa. Quero dizer, acho que não fui muito legal com
você… Você é uma mulher linda, simpática, inteligente. Quem não se sentiria atraído por você?
Do que você está falando, David?, penso, mas na realidade não consigo fazer nada além de piscar.
— Naquela noite, quando eu te levei em casa, houve um momento… Quase perdi o controle. E
não seria correto. Não é o que você quer, você estava triste. Eu, enfim… queria me desculpar, caso
tenha dado uma impressão… ruim. Porque nós trabalhamos juntos. E também por outras coisas…
Enfim, me desculpe.
Quando fecho a porta atrás de mim, ela faz só um clic baixinho, mas para mim soa como um
prédio de oito andares desabando.
Enquanto me dirijo à escada, penso em um raio caindo em um corpo moribundo.
Cristina está saindo de uma das salas e por pouco não damos um encontrão. A barriga dela está
cada vez mais evidente.
— Desculpe — diz, tocando o abdômen. — Estou ficando enorme.
Ela abre um sorriso tímido, cansado. Devem ser os hormônios. Dizem que na gravidez o humor
fica muito instável. Pode ser… Acho que não tem nada a ver comigo.
— Tem falado com Carlo ultimamente…? — pergunta ela quando me afasto, fazendo com que eu
me vire de novo.
— Não. — Tenho tanta vontade de conversar com ela quanto de dar marteladas em um dedo.
— Ah… Eu pensei que vocês contassem tudo um para o outro.
É verdade. Era verdade. Nós contávamos, mas Cristina e, principalmente, o bebê mudaram tudo.
Enquanto desço a escada, me pergunto por quê. No fundo, não é culpa de Carlo se ele refez a vida
antes de mim. Meu problema é só inveja, porque ele tem algo que eu não tenho.
E volto a pensar em Alejandro, em David… Será que é possível ter duas decepções tão seguidas?
Claro, com David nunca aconteceu nada. Preciso aceitar, mas estou furiosa.
Desço cada degrau pisando com raiva, cada passo me deixando mais irritada.
Quando volto à minha escrivaninha, as rosas amarelas ainda estão ali, só que os botões estão um
pouco mais murchos do que antes, exatamente como eu me sinto.
Estou prestes a jogá-los no lixo quando Ferruccio e Alejandro entram no loft. Alejandro não
parece diferente do habitual: com uma camiseta bem justa e um sorriso lindo, embora dessa vez não
seja para uma mulher. E eu, em vez de jogar as rosas na lixeira embaixo da escrivaninha, solto uma
exclamação de felicidade e as levo ao nariz, fingindo estar muito contente.
— Quem sabe? — murmuro, me sentindo idiota, mas escondendo isso muito bem com meu
supertalento de atriz.
Tenho que admitir que Alejandro é um ator ainda melhor do que eu, porque não move um
músculo para demonstrar interesse nem que tenha me escutado.
Assim que os dois desaparecem de vista, o buquê de rosas vai parar novamente no lixo.
— Aff!
— Você está ficando muito popular, está reclamando de quê?
— Pois é. A Cosmopolitan quer me entrevistar para uma matéria sobre as dez mulheres que mais
levam pé na bunda no planeta — digo a Tito, me esforçando para sorrir.
— Se está se referindo ao idiota, a sorte foi sua. Ele não era o homem ideal para você. Quando é
que vai me escutar?
— E onde está o homem ideal para mim, Tito? Onde está escrito que ele existe? Sabe quantas
vezes me disseram que quando Deus fecha uma porta, abre uma janela? Pode até abrir, mas eu
nunca consigo entrar. Nem a astrologia me ajudou. Sou um caso perdido. Minha alma gêmea já
deve ter sido encontrada por outra.
Eu me sento e bato a cabeça algumas vezes no tampo da mesa, antes de me largar em cima dela
com um suspiro. Não quero falar sobre David. É muito complicado de explicar e não quero ouvir de
novo que errei de pessoa, que ele não é o homem para mim.
— Escute — diz Tito, batendo no meu ombro. — É verdade, você é um pouco sem sorte no amor,
mas…
— Um pouco? — pergunto com um gemido, levantando a cabeça alguns centímetros antes de
deitá-la de novo na mesa. — Um pouco é como dizer que a bomba atômica fez algumas vítimas.
Tito, eu sou tão boa em relacionamentos quanto alguém manco é em corrida de obstáculos.
Tito, porém, não se deixa desanimar pelas minhas reclamações.
— Mas ainda não acabou. — Quando balanço a cabeça, pedindo para que me deixe morrer em
paz, ele prossegue: — Acho que até agora a gente tratou o problema sem muita atenção. Mas o que
acontece quando o jogo fica difícil?
— Deixa eu adivinhar… a gente escolhe um mais fácil?
— Não! Os melhores começam a jogar.
19. TAURINOS TAMBÉM TÊM CORAÇÃO





Diante da minha escrivaninha, Tito continua a me encarar com uma expressão astuta. Então pega
sua bolsa a tiracolo, tira um rolo de papel de dentro e o desdobra na minha frente. Fico com a
impressão de que estamos definindo uma estratégia de guerra.
— O que é isso? — pergunto, olhando os desenhos emaranhados, as linhas e os símbolos em
diversas cores.
— Isso, meu bem — responde ele, com toda a ênfase de um ator que interpreta o mago Merlin —,
é o seu Mapa Astral.
— O meu…?
— Seu Mapa Astral! — Só falta tocar uma trombeta. Mas eu continuo sem saber do que ele está
falando. — Lembra quando você me disse sua data de nascimento, com o horário e tudo o mais?
Pois é, com isso pude elaborar seu Quadro Astrológico. — Como eu bato os cílios, perplexa, ele
suspira: — Caramba. Quer dizer que é a reprodução do céu do seu nascimento. Como as estrelas
estavam no dia e no horário exato da sua primeira respiração nesta vida.
Agora olho impressionada para o papel estendido entre nós.
— Uau! — murmuro, percorrendo as linhas com as pontas dos dedos, como se elas pudessem
emanar energia ou me dizer alguma coisa apenas pelo tato. — Dito assim, soa bem impressionante.
Parece sério.
Ele cruza os braços.
— E a senhorita acha que estamos brincando?
Faço que não no mesmo instante.
— Ah, bom. Porque um Mapa Astral não é para ser encarado superficialmente e não é simples de
ler. Você percebeu com aquele aplicativo idiota que baixou para saber de Alejandro, não é? Cada
Mapa é cheio de detalhes com significados diversos, e interpretar tudo é uma arte. — Ele estica
melhor o papel que colocou diante de mim. — Os três elementos-chave para compreender um
Mapa Astral são Casas, signos e planetas. Está vendo estes raios que dividem o círculo? São as doze
Casas da Astrologia, e cada uma representa uma área da vida: dinheiro, amor, comunicação,
criatividade, saúde, morte, amigos… Preste atenção e não faça cara feia.
— Que complicado… — comento, coçando a cabeça.
— A vida é complicada.
Resmungo e volto a fitar o Mapa.
— Aqui a gente vê em quais Casas estão posicionados os planetas no momento do nascimento —
recomeça Tito. — Quando uma Casa contém mais de um planeta, por exemplo, ela é enfatizada. E
se o planeta estiver no signo que ele preside, então a influência é mais forte ainda.
— Hum, deixa eu ver… — digo, fazendo um esforço. — Qual é a Casa do amor?
— O amor está na Casa VII. É a Casa do matrimônio e da colaboração — responde ele, apontando
o papel.
Olho para o desenho. Depois para Tito. De novo para o papel. E para Tito.
— Você está me zoando?
— Por quê?
— Está vazia — respondo, cruzando os braços. — O que houve com os planetas? Por que não tem
nenhum aí dentro?
Tito dá de ombros.
— Bem, pode acontecer. Não é grave… — Ele abre um meio sorriso. — Não muito.
— Ah, claro, não é muito grave. Minha Casa do amor está vazia como um buraco negro no
espaço profundo, mas tudo bem. Sem problemas! — Ergo as mãos, exasperada.
— Calma. Realmente não é tão ruim. Não ter planetas na Casa do matrimônio… não significa que
você não vai encontrar um amor… Só que o casamento pode demorar, ou que as uniões podem ser
duvidosas.
— Bem, a esta altura, não estou surpresa — respondo, magoada, cruzando de novo os braços. —
Onde foram parar os planetas? Onde é que está Vênus, por exemplo? — Noto vários deles em uma
fatia no alto, à esquerda do círculo.
— Você tem muitos na Casa da carreira. E tem Vênus junto do Ascendente. Significa que você é
interessante e diplomática, com tendência a trabalhos artísticos… Também pode significar um
pouco de confusão e algumas decepções no plano amoroso, mas vamos ser otimistas.
Faço uma careta. Eu sabia que tinha algum problema primordial. E agora descubro que meus
planetas são confusos, que meu Mapa Astral parece um quadro de Picasso.
— Viu como eu tenho razão? Tenho azar astroplanetário. O que a gente faz nesses casos? Acho
que nem um milagre funciona em situações cósmicas como esta.
Tito passa o braço em torno dos meus ombros para me consolar.
— Não desanime. A astrologia é só uma dica de como as coisas são, mas nós é que temos que
saber como aproveitar, já disse. Você é uma mulher bonita, simpática, inteligente. Claro que vai
encontrar alguém. Só que você sempre escolhe os caras errados, também já falei isso. Eles podem
até ser interessantes, misteriosos. É bem típico, vendo seu Quadro Astrológico. Comece a considerar
outro tipo de homem, de repente o oposto disso. A gente dá uma olhada no Quadro Astrológico dele
e você pode se surpreender.
Suspiro e afundo em seu abraço. Por que não consigo encontrar alguém que me acalme desse
jeito? Seria ótimo ter um homem que me tratasse como Tito, com sabedoria e ternura.
Ele me dá um beijo na testa, murmurando ao meu ouvido:
— Você é mesmo uma teimosa, quando é que vai entender?
— Sinto muito interromper — diz uma voz atrás dele.
Quando Tito se afasta, apressado, vejo André Magni diante da minha mesa.
— Bom dia — digo, consciente de que soa como uma pergunta. O que ele está fazendo aqui?
— Salve, André — cumprimenta Tito, sério, então passa a mão no rosto, constrangido. Bom, é
fácil de entender: no estúdio, os dois se estranharam bastante.
— Tiziano. — Magni sorri para ele, com sua tranquilidade habitual.
— Precisa de alguma coisa, sr. Magni? Em que posso ajudá-lo? — pergunto.
— Ah, eu só estava passando. Gostaria apenas de cumprimentá-los e renovar meus
agradecimentos pela cordialidade com que me trataram.
— Quer um café? — pergunta Tito, bancando o bonzinho e oferecendo a outra face. Ainda bem.
Ele não se alterou nem quando Magni o chamou pelo nome inteiro, o que geralmente deixa Tito
irritado.
— Claro, como recusar?
— Venha, sr. Magni — digo, encaminhando-me para a porta.
— Podemos nos tratar pelo nome. Alice, não? Suponho termos mais ou menos a mesma idade.
— Exatamente a mesma — respondo sem pensar, lembrando que vi seu ano de nascimento
quando ele preencheu a autorização.
— Faça o favor — diz ele, segurando a porta para me deixar passar. — Primeiro as damas.
Ele é mesmo um cavalheiro, um homem das antigas, que trata as mulheres como se fossem de
porcelana.
E é educado até com Tito, embora discordem em tanta coisa. Magni insiste em nos oferecer o café
e faz algumas perguntas sobre o programa.
— Revi a gravação — comenta André. — Nosso debate foi afogueado, mas não caiu em
vulgaridades. Inclusive, Tiziano, seu ponto de vista estava bem argumentado, apesar de tudo.
Ai ai ai… esse “apesar de tudo” não soa nada bem. Olho para Tito, esperando que rebata, mas ele
diz apenas:
— Muito obrigado, você é muito gentil. — Ele se apoia na máquina de café e sorri para Magni. —
Você é muito fotogênico, sabia? — Tito pigarreia de leve e me olha. — Não é verdade, Alice? Não
estávamos dizendo isso hoje cedo? Que André ficou muito bem no vídeo… E acho que a audiência
também foi excelente. Será que a gente não devia convidá-lo de novo?
Deus do céu, a gente não falou nada sobre isso, mas não me custa nada acobertá-lo.
— Sem dúvida.
— Sua proposta é muito lisonjeira, Tiziano, assim como seu elogio.
— Bem, poderíamos pensar em algum sketch interessante, como trocarmos os papéis. Hum… e
analisar seu signo e seu Quadro Astrológico. Você é Touro, certo? — pergunta Tito, olhando para
mim de novo, como se buscasse confirmação, e prossegue: — O taurino tem uma visão bastante
tranquila da vida. É altruísta, aberto, entre outras qualidades, e inclinado à observação da natureza.
Coisa que, de fato, você faz. Você comprova minhas teorias, meu caro. — Tito ri e me olha,
piscando. — É altruísta, calmo e geralmente é muito… fiel.
— Ah! — Desvio o olhar de Tito para Magni e depois de Magni para Tito. E entendo tudo. Ele
está sugerindo que eu considere alguém como André; um cara tranquilo, metódico, pouco inclinado
a mudanças de humor. Suspiro e olho para o astrofísico. Bom, ele é bem bonito.
Com certeza ele não é sexy como Alejandro, e não me deixa sem chão, como acontece com David,
mas por que não tentar?
— Acho uma ótima ideia, valeria a pena conversarmos a respeito. — Consulto o relógio. — Mas
agora tenho que cuidar de outras coisas. — Suspiro profundamente. Não sou muito de fazer esse
tipo de coisa, mas acabo dizendo: — Podemos falar do assunto em um jantar.
Tito se vira bruscamente para mim.
— Em… um jantar?
Não presto atenção nele e olho para André. Parece um pouco pálido. Talvez tenha se assustado
porque tomei a iniciativa, mas se você for esperar que um cara desses dê o primeiro passo, vai
esperar até estar senil. E, afinal, seria uma espécie de reunião de trabalho.
— Ah, bom, certo, seria ótimo… Você também vai, Tiziano?
Tito abre a boca, mas eu o interrompo.
— Ah, pois é… — Estalo os dedos. — Infelizmente, Tito tem um compromisso esta noite, mas,
como se trata da edição de quarta-feira, é meio urgente nos encontrarmos para falar a respeito —
digo, mordendo o lábio.
André passa a mão pelo cavanhaque e olha para Tito.
— Bem, neste caso… parece-me oportuno…
— Alice, seria bom avaliar melhor… — murmura Tito, me encarando com olhos arregalados.
O que ele quer agora? Foi ele quem me disse para levar em consideração pessoas diferentes dos
meus padrões. Posso tentar, não?

— Escute, Alice, não é melhor eu ir também? — Deve ser o sétimo telefonema que recebo de Tito
em menos de duas horas. — Eu posso dizer que meu compromisso foi adiado, não é grave.
— Não vejo nenhum motivo para você ir — respondo, conferindo a tela do telefone. Não, não é o
sétimo. É o décimo primeiro. — Você está com medo de que eu me decepcione de novo, sei, mas não
vai acontecer nenhum problema. A gente só vai se conhecer melhor — garanto, batendo a porta do
carro e colocando o fone de ouvido para dirigir até onde marquei de me encontrar com André. —
Foi você quem sugeriu. Disse que eu sempre escolho uns caras horríveis e complicados. André
parece totalmente o oposto. Não é nem um pouco o tipo de homem que poderia me interessar.
— Exatamente! Esqueça! — grita ele, direto no meu tímpano.
— Mas você viu o Quadro Astrológico dele? Claro que viu, você o descreveu hoje à tarde. — E eu
praticamente o decorei. Acho que já estou até entendendo alguma coisa de astrologia. — Preciso te
lembrar de… como era mesmo? O Trópico Lua-Urano?
— O Trígono.
— O Trígono Lua-Urano, que diz que a gente pode se entender superbem no aspecto físico. E
também tem o Sextil de Marte-Júpiter, que eu vi. Nós não temos os mesmos interesses, mas nos
completamos e nos compreendemos muito bem.
Escuto Tito bufar e amassar alguma coisa na outra ponta da linha, provavelmente uns papéis.
— Sim, mas não é só isso. Tem… tem… tem também a Oposição entre as Luas de nascimento!
Vocês vão ter problemas emocionais a vida toda.
— Grande novidade! Você foi procurar qualquer coisinha para discordar. Que maldade!
— Alice, me escute. Existem outros fatores a ser levados em conta, além da astrologia.
Agora estou ficando com raiva mesmo.
— Não entendo. Há meses você reclama que eu devia prestar atenção na astrologia, e agora que
existe um homem potencialmente perfeito para mim, segundo nossos Mapas, você diz que tenho que
levar outras coisas em conta? — reclamo um pouco antes de ver André ao lado da porta de entrada,
todo sério. Abro um sorriso tranquilizador enquanto encerro a conversa com Tito dizendo: —
Manteremos o senhor informado sobre os desdobramentos, não se preocupe. Tenha uma boa noite.
Olho o relógio: são nove e dois. Praticamente a hora exata que marcamos, mas mesmo assim
peço desculpas por fazê-lo esperar.
— Chegou há muito tempo?
— Analiticamente, só os dois minutos do seu atraso, mas isso me levou a refletir sobre a tese pela
qual Einstein explicava ironicamente a teoria da relatividade. Ou seja, que uma hora passada com
uma bela jovem pode parecer um minuto, ao passo que um minuto sentado sobre um aquecedor
parecerá mais longo do que qualquer hora.
Aceito o braço que ele me estende antes de entrar, prestando atenção nas palavras “aquecedor” e
“bela jovem”. Será que foi um elogio? Bom, apesar da oposição das nossas Luas, acho que sim.
— Também estou feliz de te ver — digo, escolhendo uma resposta diplomática.
Enquanto subimos de elevador até o local, arrisco um torcicolo ao virar o pescoço para olhá-lo
melhor. Caramba, ele não é nada feio mesmo. Gosto de homens de cabelo crespo. Ai meu Deus,
aquilo no lóbulo da orelha é um pelo?
André elogia de novo o programa, dizendo que se divertiu e que simpatizou muito com Tito.
Pergunta se o conheço há muito tempo. Conto que nos aproximamos faz poucos meses.
— Ah, vocês são próximos… — diz ele.
— Não, só quis dizer que a gente se conheceu melhor, ficamos amigos há poucos meses. Nós não
somos próximos em outro sentido.
Que direto o astro playboy, hein? Com certeza é coisa do Trópico do Touro… Não, é aquele
Trígono Lua-Urano, que nos atrai.
Vai ver ele pode depilar o lóbulo da orelha.
O local está bem cheio, mas, alto do jeito que é, André avista uma mesinha livre no terraço. Que
romântico!
— A temperatura está em torno dos vinte e um graus esta noite, por isso você não deverá sofrer
uma variação térmica a ponto de notar sintomas de frio — explica ele, puxando a cadeira para
mim.
— Pena que a cidade é iluminada demais e não dá para ver as estrelas — suspiro, me
acomodando.
Encaro André e tento imaginar como seria nossa vida juntos. Ele poderia se declarar para mim
sob um céu estrelado! O céu que nos dá tanta sorte, com Marte e Urano favorecendo uma união
duradoura. E também, em nosso primeiro aniversário, sua Vênus em Gêmeos pode deixá-lo disposto
a me fazer uma surpresa: André ilumina nosso quarto com um pequeno planetário artesanal e
ficamos admirando o brilho dos astros, abraçados sob as cobertas, e ele diz…
— Tecnicamente, o motivo pelo qual não podemos enxergar as estrelas durante o dia não é a
presença de fontes luminosas, mas a atmosfera terrestre. — O André diante de mim, bem diferente
do meu marido imaginário, abre os braços. São bem compridos e impressionantes. — A atmosfera
não é de todo transparente à luz em virtude das partículas sólidas, de vapor aquoso e de ar, que
funcionam como microprismas e refletem a luz em todas as direções.
Digo adeus à minha fantasia e fico concordando até que o cientista à minha frente conclua sua
romântica explicação sobre o firmamento. Depois suspiro e me escondo atrás do cardápio. Acho
que preciso tentar um pouco mais, já que ele tem Mercúrio em Touro, o que o torna meio lerdinho.
— O bufê aqui é ótimo, sabia? Eles têm de tudo, praticamente da entrada à sobremesa.
— Que bom, embora eu não entenda por que na Itália o costume de ir a bares para tomar um
drink acompanhado de uma refeição ficou conhecido como aperitivo, visto que costuma ocorrer em
horário mais consoante com um jantar e prevê empanturrar-se como em um banquete de núpcias.
Rio da piadinha, segurando a mão dele. Ah, vai, foi engraçadinho.
Ele retira a mão para pegar o cardápio.
— Você disse que eu poderia retornar ao programa para debater de novo com Tito. O que tinha
em mente? — pergunta André, depois de se recostar na cadeira.
Fazemos os pedidos. Eu peço o drinque de sempre, e André pede um suco de laranja.
Ele tem Quíron em Touro, ou seja, cuida bastante do físico, da alimentação, o que é ótimo. Mas,
fala sério, como um homem de quase quarenta anos bebe suco de canudinho? Um drinque talvez
ajudasse a conversa, penso, depois de passar quinze minutos tentando acompanhar o que ele diz.
Mas, ou porque não conheço o assunto, ou porque estou ficando um pouquinho bêbada, meus olhos
começam a se fechar e acabo bocejando.
— Não acha que o público ia gostar? Entendeu minha ideia? — pergunta ele a certa altura.
— Como assim?
— Foi uma piada de cientista. Seria divertido mostrar que nós também temos senso de humor.
Vou repetir: o que é um urso-polar?
Talvez eu tenha me perdido entre os vários planetas e algo me escapou nos últimos minutos da
conversa, porque, ao que parece, estamos trocando piadinhas.
— É… um animal?
— Ah! Para um matemático, um urso-polar é um urso retangular após a transformação das
coordenadas. — Ele começa a rir sozinho, batendo a mão no joelho.
Finjo rir também, mas minha garganta só produz um som estranho.
Ai meu Deus. Não é possível. Deve ter alguma coisa errada nos cálculos de Tito. Este homem e eu
não podemos ser o casal perfeito. Quase perfeito. Não tinha uma coisa…? A Oposição entre as Luas,
será que foi isso que estragou tudo? Mas por que parece que todo mundo acha tão simples sair com
alguém, e eu fico nessa sequência de personagens de desenho animado?
— Pode me dar licença um instante? — Eu me levanto e vou ao toalete. — Alô? Tito, caramba!
— Calma, o que houve? — responde ele, apático, do outro lado da linha.
— Me diz que é brincadeira! Não posso estar destinada a um cara… a um cara que tem o senso de
humor de uma máquina. Quero alguém mais caloroso, apaixonado, com trocas de olhares… Não
quero saber que Einstein se sentava no aquecedor ou que os ursos são bipolares!
— Calma, vou cuidar disso.
— Como? Vai refazer os cálculos? Bem, vou tentar terminar a noite sem pegar no sono e sem
enfiar o canudinho no nariz por engano.
— Deixe comigo. E…
Não, eu não vou aguentar.
— Por favor, não diga “eu avisei”, não suporto quando você faz isso.
— E eu não suporto ter avisado, meu bem.
— Hmmm. Adoro você.
— Eu também te adoro.
Depois de desligar, molho o pescoço e os pulsos com um pouco de água fria, só para dar uma
acordada. O.k., chega de álcool esta noite, preciso de todas as minhas energias para não cair com a
cara no prato.
Na porta do banheiro, belisco minhas bochechas, endireito os ombros e respiro fundo. O.k., sr.
Espertinho, vamos lá.
Retorno ao salão e me dirijo ao terraço, mas, quando chego à porta, paro e arregalo os olhos.
André continua ali, à mesa, rindo e conversando animadamente com alguém. Então Tito se vira
para mim, acenando.
20. A LIBRIANA DE ROSA-SHOCKING





Tem dias em que você se sente acabada, derrotada, só o pó. Deseja que estivesse na moda usar um
saco na cabeça e pensa com saudade na época em que as famílias arranjavam os casamentos e
pronto. No máximo, você iria para um convento, se realmente desse azar.
Mas depois vieram os dias como hoje.
Hoje é meu dia preferido do mês. Paola e eu o chamamos de Dia Sagrado.
É sagrado porque nem guerras, inundações, mísseis, rompantes da sogra, invasões marcianas ou
qualquer evento de alcance cataclísmico pode nos privar dele. Já tentaram, mas não funcionou.
Minha dor de dente já tentou, e um cano estourado no porão de Paola também, até uma invasão de
formigas aladas tentou. Quando a natureza se revolta, você se questiona, mas a resposta é sempre a
mesma: Dia Sagrado. E por enquanto nada conseguiu nos deter.
Parafraseando Mel Gibson: “Podem nos tirar a vida, mas nunca tirarão nosso Dia Sagrado!”
Hoje vamos fazer as unhas com Karin.
Coisa de mulherzinha, diria alguém. E esse alguém com certeza seria do tipo que acredita que nós
mulheres dedicamos ao homem cada respiração. Que, se acordamos cedo, é só para ele; se nos
penteamos, se nos maquiamos… Homens! Uma espécie das mais mesquinhas, que não pode ouvir
“autossatisfação” sem pensar automaticamente em certos sites da internet proibidos para menores,
que não compreende a poesia existente na escolha de um esmalte, e, principalmente, o infinito
poder terapêutico do tempo dedicado a cuidados pessoais.
O Dia Sagrado é um dia das mulheres, entre e para mulheres, dedicado à beleza, a relaxar, a
fazer compras e fofocas… É um parêntese sem homens nos nossos calcanhares, para falar dos
nossos problemas e interesses.
— E então? — pergunta Karin, dando um último retoque na unha do meu mindinho.
— Então, ele era tão chato que eu estava quase dormindo — digo, enfiando a mão na cabine de
luz para secar o esmalte. — Ainda bem que Tito chegou, se sacrificou pela causa e ficou
conversando sobre o programa com André pelo resto da noite. Ele é um fofo.
— Agora chega, né Alice? — diz Karin, com ar de reprovação. — Você só atrai caras estranhos.
O que é isso, um ímã? Lembro de você falando daquele babaca…
— Alejandro?
— Não, o outro.
— Luca?
— Luca? Esse eu nem conheço.
— Não chegou a acontecer, passemos adiante. Carlo?
— Não, esse aí é pré-história! Estou falando daquele que você namorou o ano passado.
— Ah, Giorgio!
— Pelo amor de Deus! — exclama Paola, do outro lado do sofá.
— Sim, sim, ele mesmo. — Karin sorri, dissimulada, porque sabe que o assunto me incomoda. —
Aquele que pulou da cama da esposa para a sua.
— Ex — corrijo. — Ex-esposa.
— Mas ele ainda nem tinha assinado o divórcio! — destaca Paola, que, em uma modalidade
multitarefa, está escutando a conversa, lendo uma matéria na Vanity Fair, comendo um biscoitinho
e escolhendo a cor do esmalte que vai botar nas unhas.
Ela nunca gostou de Giorgio. Achava-o exagerado demais nos gestos, muito estranho para ser
sincero. Acabou que tinha razão.
— E quero frisar que ele tinha sérios problemas de memória. Principalmente quando devia
lembrar que estava namorando você e não podia sair transando com qualquer uma. — Paola limpa
as mãos, pousa a revista e suspira. — Alice, chega de homens problemáticos, indecisos, meninos de
quarenta anos, de sanguessugas e manipuladores. Eu já disse, você precisa gostar de si mesma, ou
vai continuar implorando por migalhas de atenção, sem conseguir o que realmente merece, que é
amor. Amor de verdade, não o que fica abaixo da cintura. Nesse quesito, todos eles são ótimos, ou
quase todos…
Faço uma careta porque sei que ela se refere a Alejandro.
— Tudo bem, tudo bem! — Balanço a mão. — Pelo que você diz, parece que eu preciso ser
internada! O tempo d.C., “depois de Carlo”, foi um pouco confuso, mas caramba, estou me
ajustando. Nossa relação foi séria.
— Alice, são mais de dois anos se ajustando. Nem um terremoto de magnitude oito exige tanto
tempo.
Cancerianos adoram bancar os espertinhos.
— E esse Tito? — pergunta Karin. — Ele deve gostar muito de você.
Paola balança a cabeça e abafa uma risada.
— O que foi? — pergunto.
— Nada. É verdade, ele gosta muito de você.
Suspiro e volto a examinar as unhas, esperando que o tom de rosa cintilante me ajude a melhorar
de humor nos próximos dias.
— Falar é fácil, Paola. Para você é simples, agora que encontrou Giacomo. Mas não é simples
para mim. O André, por exemplo, tinha o Quadro Astrológico perfeito. Signo do Zodíaco,
Ascendente, disposição planetária e afinidade de casal… E aí? Nada. Não tem faísca. Nem o menor
interesse.
— Não duvido!
— Acha que não sou inteligente o bastante para um astrofísico?
— Acho que é você que não tem interesse em um cara como ele — explica Paola, virando a
enésima página e lendo que franjas serão tendência de novo no próximo outono. — Nem sempre
tem faísca, nem quando tudo é perfeito.
— Não desista. Com estas unhas maravilhosas você vai conseguir pelo menos uns dez — diz
Karin, tentando me animar. — Um por dedo.
Olho minhas mãos cintilantes e me pergunto se alguém vai notá-las. Se David vai notar… Mas
pensar nisso não faz sentido, considerando as últimas coisas que ele me disse. Será que minhas
unhas pintadas o deixariam tentado? Aff. Não quero ser uma tentação.
— Quer sair com um amigo do Federico, meu namorado? — pergunta Karin, interrompendo
meus pensamentos tristes. — Ele comentou esses dias de um cara legal que frequenta o bar dele. Se
não me engano, é algum artista e muito gato. Se quiser…
— De que signo ele é? — pergunto, e ela pega o celular.
— Alice, pare — repreende Paola. — Não é assim que você vai encontrar o homem da sua vida.
— Como é, então, Paola? Onde vou encontrar? Vai vir de brinde na embalagem de batata frita?
— Eu me viro de novo para Karin, que já está ao telefone com Federico. — Não se esquece de
perguntar todos os dados do nascimento: hora, local… — sussurro, me levantando e dando as costas
à minha melhor amiga, que já está fazendo cara feia, eu sei. — Não vou encontrar ninguém se não
procurar, Paola. O que devo fazer? Ficar em casa, sem fazer nada, agora que Alejandro me deixou?
Acha justo?
Ela fecha a revista e me encara.
— E David? Que fim levou?
Boa pergunta, que fim levou David? Paola não sabe, mas isso é golpe baixo.
— Acho que podemos acrescentá-lo à longa, longuíssima lista de “Homens que descartaram
Alice”.
— Por que não cria uma chamada “Homens descartados por Alice”? Soa um pouco melhor. E está
na hora de começar.
Sei que ela tem razão, mas não consigo não me sentir rejeitada sempre que me dou mal com
alguém. Sei que, se não ia dar certo, então é melhor nem começar, mas em vez disso fico me
torturando, tentando entender o que há de errado comigo que o cara não gostou.
— David? — diz Karin, desligando o telefone. — Quero saber tudo. Quem é? O que ele faz? Qual
é o signo dele?
Paola pousa a revista.
— Pois é. Qual é o signo de David?
Admito a derrota balançando a cabeça.
— Não faço ideia.
— Idade?
— Não…
— Caramba, desse jeito a gente não descobre nem o horóscopo chinês! — comenta Paola,
brandindo o esmalte que escolheu.
— Para de me zoar.
— Só estou surpresa de a detetive Alice ainda não ter investigado. Você poderia roubar a carteira
dele e espiar o documento de identidade.
— É só dizer que precisa dos dados dele para a secretaria — sugere Karin, um pouco menos
irônica do que minha melhor amiga.
— Quem sabe? — prossegue Paola. — Talvez David seja o primeiro homem não horoscopado da
lista.
Suspiro.
— Não gostei muito da ideia.
LIBRA

Ser ou não ser… eis a questão. Mas não a única! Porque o pobre homem de Libra não é
atormentado apenas por dúvidas existenciais, mas por qualquer escolha cotidiana. A camisa azul
ou a xadrez? Espaguete ou bife grelhado? Porque, infelizmente, qualquer opção exclui alguma
outra, e o libriano não suporta a ideia de fazer a escolha errada. Isso perturbaria o mundo perfeito
e harmonioso que é seu hábitat natural. Hábitat que, de certa forma, você poderia desestabilizar, se
por acaso ele conseguisse decidir te chamar para um encontro…
21. O AMOR NOS TEMPOS DO AQUÁRIO





Estou muito orgulhosa de mim mesma.
Hoje, em vez de passar um domingo tedioso na solidão, com sobras de comida e cochilando
diante da tevê, tomei uma decisão e fiz uma coisa que nunca tinha feito.
Fui ao cinema. Sozinha.
Por que cinema tem que ser privilégio de casaizinhos e famílias? Eu adoro filmes, posso muito
bem ir como e quando quiser, sem perder os filmes que quero assistir só porque não tenho
companhia.
Claro, primeiro liguei para Tito, mas ele tinha compromisso.
Liguei também para Paola, só que ela estava almoçando com a sogra. E não fiquei com inveja
disso.
Meus pais não estavam nem na cidade. Foram para a praia, felizes de aproveitar um fim de
semana de sol.
De qualquer modo, não foi muito ruim me sentar sozinha na plateia. Coloquei os óculos e… fingi
fazer anotações enquanto as luzes estavam acesas. Para parecer uma espécie de crítica de cinema
de algum jornal.
Feliz por ter corrido tudo bem, decido me premiar com uma volta no shopping depois do filme.
Estou olhando as vitrines quando me deparo com uma cena que pareceria absurda demais em
qualquer roteiro.
Paro diante de um bar, sem saber se entro ou não, porque na verdade não tenho nenhuma
desculpa para me aproximar.
Lá dentro vejo Carlo, sozinho, sentado a uma mesa, e ele está claramente chorando.
Não sei o que fazer: por mais amigos que a gente tenha sido por todos esses anos, nos últimos
tempos nos afastamos muito.
Eu queria consertar isso, mas infelizmente nunca fui boa nessas coisas.
O que faz parte do meu DNA é a índole de enfermeira, uma patologia fácil de encontrar nas
mulheres da minha geração, criadas como gansos para fazer foie gras, à base de desenhos animados
dramáticos.
— Vai querer ficar ou não? — pergunta alguém às minhas costas, depois que eu entro. — Está
criando uma fila.
Que mau humor! Depois as pessoas não querem a fama de que em Milão estamos sempre
correndo; mas aqui até os idosos parecem estar com pressa, como essa senhora que me deu uma
cotovelada nas costelas para passar.
A poucos passos de mim, Carlo está distraído mexendo na xícara pousada à sua frente,
encarando-a como se fosse ler o futuro nela. Já enxugou as lágrimas, mas ainda tem os olhos
vermelhos. É como se estivesse em uma bolha fora do tempo, e tenho um pouco de medo de me
aproximar.
De repente, ele levanta a cabeça, como se tivesse percebido alguma coisa, mas não se volta para
mim. Seu olhar vai à porta do toalete, de onde sai uma garota usando apenas cores claras: a blusa,
a calça e os olhos têm o tom azul desbotado de miosótis.
Estou prestes a me aproximar quando a garota chega primeiro, sentando-se diante de Carlo e
segurando sua mão.
Parece que fui parar em uma cena que não é minha, na vida de alguém para quem deixei de ser
importante.
Vejo os dois conversando, Carlo aperta o braço dela, mas as vozes são baixas demais para que eu
escute o que estão dizendo.
Então os dois se levantam. Ela começa a se afastar, porém ele a segura pela cintura. Se houvesse
névoa, pareceria a cena final de Casablanca.
Eles se encaram, e nada mais existe, até que Carlo acaba com a distância entre os dois, beijando-
a suave e desesperadamente, o que me deixa trêmula.
Espere aí!
Esse não é Carlo, também conhecido como Meu-ex-namorado-que-rapidinho-engravidou-outra-
mulher-e-anunciou-o-casamento-no-Facebook? Não estou entendendo, porque neste exato
momento ele não parece em nada um futuro papai, e a mulher que ele está beijando não está
grávida.
Instintivamente, tento me esconder atrás da primeira coisa que vejo e que, na falta de pilastras, é
a idosa de antes.
— Socorro, me solta! — grita ela, apertando a bolsa contra o peito. Acho que pensou que eu
quisesse roubá-la.
Os amantes se separam e a moça olha Carlo intensamente antes de se virar e ir embora. Na
saída, ela passa a menos de meio metro de onde estou, o que faz o olhar de Carlo pousar primeiro
na vovozinha-escudo e depois em mim, que estou queimando de vergonha.
Por que, por que, por que me meti nessa enrascada?
Solução A: finjo que sou uma pessoa incrivelmente parecida comigo, mas não sou eu. Imito um
sotaque estrangeiro e me faço passar por cuidadora da velhinha citada anteriormente.
Solução B: finjo um ataque de amnésia, o chamo de “senhor” e talvez lhe pergunte que horas são.
Solução C: demonstro ter um mínimo de coragem e vou falar com ele.
Mas Carlo não diz nada e me vira as costas, sentando-se de novo diante da xícara de café já vazia.
— Hã… oi…
Ele sequer levanta a cabeça quando paro à sua frente, mas noto que seus ombros tremem quase
imperceptivelmente.
Sento-me.
— O que está fazendo aqui? — pergunta ele, em voz tão baixa que levo alguns segundos para
compreender.
— Eu… vi você… quer dizer, eu estava passando… você estava sozinho e resolvi entrar para dar
um oi.
— Então, oi — responde Carlo, seco, ainda sem me olhar.
Caramba, ele podia colaborar. Não era ele que estava tentando falar comigo, algumas semanas
atrás? Bom, que faça um esforço agora!
— Quer me dizer o que está acontecendo?
— Por quê? Você nunca vai parar de se meter na minha vida? E você tem olhos, não tem? O que
acha que aconteceu? — Ele ergue a cabeça e me lança um olhar feroz.
— Juro que não estava espionando. É verdade, eu estava passando por acaso, tinha ido ao
cinema…
Carlo estreita os olhos, depois olha um ponto qualquer atrás de mim.
— Então tem mais alguém com você? Paola?
E depois eu que me meto na vida dos outros…
— Fique calmo, eu fui sozinha — explico, soando meio agressiva.
— Ha! Isso não faz seu tipo. Imagina só! Você nunca iria sozinha.
— Então você acha que não consigo ir sozinha ao cinema? Não precisa ser nenhum gênio para
dar conta disso.
— Nós ficamos juntos por cinco anos, e você não fazia nada sem mim. Ou pelo menos sem Paola
ou alguma outra amiga. Fala sério.
— Do que você sabe? Já faz dois anos que terminamos, eu posso ter mudado. E mudei.
— Ha, ha! As pessoas não mudam. Você não muda. Essa é a droga da verdade.
Quando se esforça, Carlo consegue ser mais dramático que Hamlet.
— Você não sabe, a gente não convive mais.
— Eu sei o que vejo. Uma mulher tentando bancar a profissional e que usa sutiã de enchimento e
salto alto.
— Minha feminilidade te incomoda?
— Antigamente, você não estava nem aí para isso.
— Não, Carlo. Era você que não estava nem aí. Eu me adaptava. Eu me adaptei quando você
disse que só idiotas se maquiavam para ir trabalhar, só idiotas se arrumavam. Depois aprendi que
fazer isso me deixa confortável, então agora vou à manicure todo mês, está vendo? — Mostro as
mãos, com as unhas cor-de-rosa. Mas, não sei por quê, depois me sinto idiota por fazer isso. Por
estar nesse bar, discutindo com ele sobre nossa relação já morta e enterrada, depois de tê-lo visto
beijar uma desconhecida.
— Ah, as unhas. Claro, é um grande problema. Deve ser por isso que você não tem mais tempo
para os amigos.
Ignoro a alfinetada. Estou acostumada com o jeito dele, ainda mais quando está com raiva.
— Cada um tem a vida que escolheu.
— É mesmo? Acha que a gente sempre tem escolha?
De repente o ar ao nosso redor parece ficar espesso, difícil. Estamos presos aqui, as palavras
saindo com dificuldade, com uma fadiga desumana.
— Você não quer o bebê? Não ama Cristina?
— Não finja que não viu, Alice. Como eu beijaria outra mulher se amasse Cristina? — rebate ele,
nervoso. — Mas você não entende. Eu… eu amo aquela garota.
Eu me viro um instante para a porta, como se a mulher estivesse ali, ou pelo menos um eco dela
ainda no ar, junto com o rastro do perfume.
— Você não está é com medo do compromisso que vem por aí? Quero dizer, um filho não é pouca
coisa.
— E o que você sabe a respeito? Não sabe de nada. Não me perguntou nada. Simplesmente
desapareceu quando eu mais precisava do seu conselho, do seu apoio.
Baixo os olhos para minhas mãos, mas agora o esmalte cintilante me deixa ainda menos à
vontade.
— Eu me senti… traída. — Mal consigo murmurar, embora saiba que não faz muito sentido.
Eu me lembro de como me senti mal ao ler a notícia, como se ele estivesse seguindo com a vida e
eu não conseguisse fazer o mesmo. Como se eu fosse uma lata de conserva com o prazo de validade
quase vencido e que por isso ninguém quer comprar.
— Ah, para com isso, Alice. Faz tempo que terminamos. O que foi ótimo, porque a gente não se
amava de verdade.
Eu o encaro de novo, mais intensamente.
— Como assim?
— Agora sei o que é amor. O que sinto por Sonia é amor de verdade. E eu nunca tinha sentido
isso antes, nem por você e muito menos por Cristina.
Se ele cravasse a colherzinha de café no meu peito, fecharia com chave de ouro.
Passei cinco anos com esse homem, cinco dos melhores anos da minha vida, pensando que estava
com a pessoa perfeita para mim, com quem me casaria e teria filhos. E ele destruiu tudo com uma
frase. Ele estragou a relação mais importante que já tive, reduzindo-a ao nível de uma brincadeira.
— Sonia é… bem, é uma história complicada. — Carlo começa a explicar, como se não tivesse
dito nada demais. — Para começar, ela não confia totalmente em mim. O menino é um problema
para ela.
— Não diga! Mas que garota esperta!
O que ele esperava?
“Querida, eu te amo, mas vou me casar com outra. Ah, por falar nisso, ela está grávida.”
“Ah, amor, que notícia fantástica! Parabéns, eu vou ao batizado sem falta!”
Se a resposta fosse essa, eu realmente começaria a me preocupar com os genes recessivos das
louras.
Carlo me olha com desdém.
— Não achei mesmo que logo você fosse entender. Você sempre foi muito superficial, como o
resto do mundo.
— Ah, claro, porque você é muito sensível! — explodo, recordando de repente o que Tito me disse
sobre o horóscopo de Carlo.
Seria impossível que uma libriana com a Lua em Peixes, como eu, ficasse com um aquariano com
Ascendente em Gêmeos, como Carlo. Os aquarianos são os mais contraditórios do Zodíaco. Se você
diz branco, mesmo que para ele também fosse branco até um minuto atrás, com certeza agora vai
dizer preto. O aquariano odeia ser igual à massa. E com esse mergulho duplo em parafuso na vida
amorosa, Carlo com certeza saiu do lugar-comum. Se pensarmos que ele também tem a Lua em
Áries…
— É sua Lua em Áries que te deixa tão impulsivo e inconstante, sabia? Provavelmente também
favorece essa sua síndrome de Peter Pan, fugindo do compromisso com Cristina.
— Que palhaçada é essa? — Carlo dá um soco na mesa, fazendo a xícara estremecer. — Virou
uma idiota agora? Áries, Lua, horóscopo? Eu estou dizendo que minha vida está acabada e você me
vem com essas babaquices!
— Ah, claro, inteligente é você, que sai por aí bancando o reprodutor e depois fica chorando
como um bebezinho por causa da sua vida horrível.
— Achei que você fosse mais esperta, Alice. Erro meu. Assim como errei sobre nós dois. Levei
cinco anos para perceber que você não raciocinava bem, mas agora me bastaram cinco minutos.
Claro. Se alguém não pensa igual a ele, com certeza é burro. Ah, conheço esse joguinho muito
bem! É coisa antiga, uma das que eu não suportava em Carlo. Assim como suas meias arrumadas
por cor na gaveta, e como eu nunca sabia se o azul entrava antes ou depois do cinza na escala
cromática.
— Então dá para ver que sou meio lerda.
Eu me levanto e o encaro, relembrando tudo o que vivemos, o amor que ele jogou fora como se
fosse um chiclete que perdeu o gosto. E me sinto uma inútil porque, se o homem com quem tive a
relação mais séria diz que nunca me amou de verdade, então ninguém mais amou.
— Eu precisava da sua amizade — murmura ele.
E ainda tem coragem de falar de amizade? Quando não se importa de me magoar com tudo o que
diz?
Então percebo que sempre o idealizei, e parece que o vejo de verdade pela primeira vez. Não o
homem forte, inteligente, carismático que ele era quando estava tentando me conquistar. Agora vejo
um menino mimado, que não quer crescer, que tem medo de responsabilidades.
— Não sei o que fazer — continua Carlo, segurando a cabeça entre as mãos.
A raiva me invade como uma maré repentina. Compreendo que nunca fui especial para ele, mas
isso não me dói. Porque também me dou conta de que ele não é especial para mim. Não mais.
É uma dessas ocasiões em que lamento não ter um bigode, sobrancelhas grossas e voz rouca. Mas
sei exatamente o que dizer, a frase está preparada para mim desde 1939.
Encaro seus olhos cheios de raiva e mordo o lábio, hesitando por apenas um segundo antes de
dizer:
— Francamente, eu não dou a mínima — solto, tentando dar à frase o mesmo tom de Rhett
Butler, em... E o vento levou.
22. PÃO, AMOR E… ASTROLOGIA





— Onde encontraram você? No circo? Merda, Alejandro, onde você enfiou a bolsa com os spots?
Ferruccio está fora de si, gritando e gesticulando diante da traseira do furgão.
— No sé. Eu tinha colocado aqui.
Até os músculos de Alejandro parecem contraídos, de tão tenso que está.
— E agora, o que a gente faz?
— Te juro, Ferruccio, eu carreguei todo, sí, realmente no sé como es que ahora no está.
— Pois é, a gente contrata um estrangeiro e é nisso que dá… Alice! Vem aqui agora!
Quando me aproximo, faço uma careta, estreitando os olhos e franzindo o nariz como uma
daquelas governantas cruéis do cinema.
— Veja só isto aqui. — Ferruccio aponta as bolsas que acabam de ser descarregadas. — Falta a
número 4. E dentro estavam os spots que a gente ia usar para iluminar os calabouços para a prova
dos signos de Fogo. E agora, o que a gente faz?
Graças à audiência da dupla Tito/Magni, conseguimos um novo patrocinador, assim como uma
avalanche de comentários lisonjeiros sobre a possível reviravolta de qualidade do programa. E
recebemos uma locação maravilhosa, um castelo medieval, para gravar parte da próxima edição.
Deus do céu, estou quase me sentindo em Hollywood. E, para marcar meu status de brilhante
autora/produtora de tevê, estou usando um terninho azul-escuro bem ao estilo Armani, além de
uma postura profissional eficiente e severa, mas muito feminina. Adoro este trabalho.
— O que houve?
A voz às nossas costas faz com que nós três nos viremos.
Este é o único lado ruim de hoje: é Carlo quem supervisiona as produções externas. Ser obrigada
a lidar com ele depois das palavras que trocamos no outro dia, no bar, é tão agradável quanto
esmagar repetidamente o dedo em uma porta.
Mas eu sou uma profissional, o que significa que vou encarar a questão com calma, dignidade e
classe, deixando de lado nossos problemas pessoais.
— Alejandro pensou que a gente podia gravar a prova dos calabouços no escuro — respondo,
apontando displicentemente meu ex-namorado para meu ex-ex-ex-ex-ex-namorado. — Parece que
vocês homens esquecem suas responsabilidades muito depressa — acrescento, lançando a Carlo um
olhar severo.
Ele estreita os olhos.
— Para que a gente precisa lembrar, se vocês mulheres gostam de ficar repetindo o tempo todo?
E depois eu que gosto de brigar.
Abro a boca para retrucar, mas Alejandro se adianta.
— Pero eu juro que estaba alí, Alice. Recordo de haberlo puesto no bagageiro, não? — murmura,
passando a mão pela barriga tanquinho, como que para se tranquilizar.
Não, meu querido, agora não cola mais.
— Não interessa se você viu. Passado é passado. Já foi. E o presente? Onde está a bolsa com as
luzes? — Também tem mau humor para ele, é só pedir.
— Pare com isso — intervém Carlo. — Precisamos gravar a cena hoje à tarde. A bolsa vai
aparecer. Vamos nos concentrar no que devemos fazer agora. Não acha, Alice? No presente, como
você diz! Onde está a ordem do dia?
— Sim, sim — digo, balançando a mão. Como diz o ditado, eles que são brancos que se entendam.
Eu esperava que Carlo me apoiasse? Claro que não! Puxo a manga do meu blazer Armani-fake para
ver o relógio. — Daqui a pouco eu te passo, não se preocupe — acrescento, enquanto ele se afasta.
Depois me dirijo a Alejandro: — E então?
— Hum… puede ser que eu haya deixado para trás… no está em nenhum carro.
— Tudo bem — respondo, me tornando a policial boazinha. — Como a gravação vai ser à tarde,
você pode tranquilamente voltar para buscar os spots.
— Mas isso vai levar más de dos horas!
— Lamento, precisamos das luzes.
— Bueno, yo voy.
Alejandro balança a cabeça e se encaminha para um dos carros.
— Ah, não, desculpe, tesoro. Agora Ferruccio precisa de você aqui para preparar o primeiro
cenário, o dos signos de Terra. Você vai no intervalo do almoço.
— Mas…
Levanto a mão, pensando com prazer nos imperadores romanos que decretavam a morte de um
gladiador com apenas um gesto. Se me sinto culpada quando vejo Alejandro se afastar de ombros
caídos, pensando no restaurante de agroturismo onde vamos comer? Vejamos… Não, nem um
pouco.

Finalmente sozinha, desfruto a paz do campo aberto. A temperatura está pelo menos dois ou três
graus mais baixa do que na cidade, o ar é limpo, o sol resplandece em um céu tão azul que parece
retocado no Photoshop.
Inspiro profundamente. Às vezes a vida nos reserva reviravoltas divertidas, penso, me
espreguiçando enquanto confiro o porta-malas do meu carro e o fecho, para depois pegar as
escaletas e a ordem do dia na bolsa pousada no assento do carona.
Eu até poderia me acostumar a todo esse silêncio.
— Não vou colocar aqueles chifres na cabeça!
Silêncio que as pessoas da cidade não se envergonham de quebrar.
— O que foi agora?
Enquanto olho para o céu, ainda límpido e luminoso, Marlin sai do castelo envolta em um
magnífico traje de veludo e brocado, os olhos verdes expelindo fogo tanto quanto seus cabelos cor
de bronze.
— Não vou deixar me filmarem usando aquele troço que parece um par de chifres! — exclama
com voz estridente, dirigindo-se à moto da qual David está desmontando nesse exato momento.
Que vista incrível. Alejandro é obviamente bonito e escultural, mas os traços de David, assim
como seu físico, não são de modelo fotográfico. No entanto, ele tem um magnetismo tão grande que
devia fazer Alejandro ir se enterrar em algum velho moinho e fabricar bolachas.
David estica o pescoço e meu estômago dá cambalhotas. Travo os dentes e tento manter a
postura. Não vou vacilar diante daquele sorriso torto e daquele olhar sexy.
O confronto de algumas semanas atrás com Carlo me fez pensar que preciso mudar de atitude se
não quiser mais ser enganada. Amadureci, estou mais forte e mais determinada. Versão ALICE 2.0. Na
qual A é de Austera, L de Letal, e I-C-E de Invulnerável a Concessões Emocionais.
— Oi, Alice.
David vem com tudo, me lançando um de seus olhares sedutores, mas eu me desvio como em
Matrix e me volto para Marlin.
— Bem-vindo. Estamos nos preparando para a primeira tomada. Os signos estão na maquiagem
e Marlin está experimentando uns figurinos que… Ah, meu bem, você está linda! — exclamo,
fingindo só vê-la naquele momento. — Ficou incrível. Com esta roupa, então, que cinturinha! Você
emagreceu?
Ela se derrete toda e por um instante esquece o chapéu, realmente ridículo, que precisa usar.
— Você acha? Coloquei aplique no cabelo, isso alonga o corpo.
Já que as fotos dela quase não precisam ser reduzidas para caber nos guias de tevê, Marlin é
muito sensível a elogios sobre sua altura, por isso decido reforçar a dose.
— Sabe o que te alonga ainda mais? Sei que é um pouco estranho, mas na época só as damas
mais importantes usavam este chapéu. — Tiro o bicorne de suas mãos e o encaixo na cabeça dela.
— Voilà! Maravilhosa. Realmente, assim você fica altíssima.
Respiro aliviada enquanto ela se afasta toda contente, murmurando que vai usá-lo, afinal,
inclusive ao vivo, e talvez até lance uma nova tendência.
Mas nem tenho tempo de ficar feliz pelo meu feito rápido e sagaz, porque logo sinto um braço
envolver minha cintura. Os lábios de David tocam meu rosto, quentes e leves.
— Você foi fantástica. Eu não saberia resolver melhor.
As palavras dele invadem minha pele. Ele faz de propósito! Isso de provocar e fugir está se
tornando frequente na nossa relação. Relação! Esta coisa indefinível que existe entre nós.
Só que a nova Alice 2.0 faz com que eu me afaste um passo, para demonstrar que não caio mais
(se é que já caí) no seu charme.
— Mas então… O que você está fazendo aqui?
Muito bem, Alice: distante, profissional.
Agora é ele quem desvia o olhar, provavelmente intimidado pela minha nova postura.
— Conheço os proprietários — explica ele, laconicamente, abrindo a jaqueta de couro.
Não me surpreende que eu não soubesse disso até agora. Com David é sempre assim: você tem
que arrancar as informações de sua boca, e é sempre um parto, não importa se é para conseguir a
lista do supermercado ou a fórmula alquímica da pedra filosofal.
Imagine como deve ser cansativo viver com um cara assim!
Ele passa a mão pelo cabelo e se afasta. Os jeans pretos modelam suas coxas e traseiro.
— Hmm… — Suspiro. Pois é… muito cansativo…

O episódio que vamos gravar hoje tem um ar meio retrô. É uma daquelas competições divertidas
onde os concorrentes, divididos em times, precisam passar por provas de força, habilidade e
conhecimento, provavelmente passando muita vergonha no processo.
Para isso, dividimos os representantes dos signos do Zodíaco em quatro equipes.
Uma das primeiras coisas que aprendi como nova adepta da astrologia é que cada um dos doze
signos é presidido não só por um planeta que o domina, mas também por um dos quatro elementos:
Terra, Ar, Fogo e Água. Libra, por exemplo, é um signo de Ar, e isso significa que, como Gêmeos e
Aquário, é dominado pela esfera do intelecto e da criatividade. Somos pessoas curiosas,
independentes e de mente aberta.
Assim, divididos por elementos, todos os concorrentes vão enfrentar provas que se encaixem,
mais ou menos, com as características da equipe, recebendo pontos pela vitória ou perdendo pontos
pela derrota.
— Bom, vamos começar com a apresentação de Tito, depois acompanhar o jogo com as câmeras
— explica Carlo, dando ordens sobre o tipo de filmagem que pretende fazer.
Tito, de calça de couro e camiseta, está parecendo um pirata, e sabe disso.
— En garde! — diz ele, erguendo uma espada imaginária e me agarrando pela cintura, como se
quisesse me raptar.
— Não seja idiota — responde Alice 2.0, tentando ficar séria, mas com ele é muito difícil. Há dias
que Tito emana uma energia difícil de manter sob controle.
Ele me dá um beijo no ombro e me solta.
— Meu bem, você devia mandar todo mundo para o inferno e se divertir mais.
Para ele é fácil. Só que eu tenho que trabalhar com Carlo, o Escroto, que destrói relacionamentos;
Alejandro, o zíper mais veloz do Oeste; e David, o Indeciso, que dá um passo para a frente e dois
para trás. Não aguento. É como receber de uma só vez a visita dos fantasmas do passado, do
presente e do futuro.
— Se vocês já tiverem terminado com a gracinha, as pessoas com senso de responsabilidade por
aqui estão prontas para começar a correr — grita Carlo, que acabou de calçar os tênis.
— Uau, alguém acordou de mau humor hoje — comenta Tito.
Não lhe dou ouvidos e respondo a Carlo, levantando a voz:
— Aposto que sim. Quando se trata de correr, todos vocês estão sempre prontos.
Recebo um olhar fulminante. Mas a primeira prova é exatamente isto: uma espécie de corrida,
que ele, os câmeras e os assistentes precisam acompanhar de perto.
Claro que não é uma corrida comum. Para ficar mais divertido, acrescentamos uma caça ao
tesouro com provas práticas. Por exemplo, um tiro ao alvo em que um arqueiro fica em um pedestal
que balança, enquanto o restante do time tenta guiar o disparo.
É uma prova que favorece o elemento Terra, exigindo principalmente racionalidade, colaboração
e raciocínio. Então, teoricamente, Touro, Capricórnio e Virgem têm uma vantagem de
temperamento, principalmente sobre Leão, Sagitário e Áries, os signos de Fogo, que são mais
passionais e abusados, e já estão discutindo sobre quem deve ser o chefe da equipe.
Libra, Gêmeos e Aquário, os signos de Ar, perdem tempo discutindo estratégia, enquanto os
signos de Água, Câncer, Peixes e Escorpião pensam individualmente sobre a prova, se entreolhando
de modo desconfiado e suspirando com desânimo.
Quando me aproximo de Carlo para a gravação, ele me segura pelo cotovelo e me puxa de lado.
— Quer parar? Você está parecendo uma namorada ciumenta. Estamos aqui para trabalhar, e
não para um passeio no campo.
— Olha quem fala! — rebato, afastando a mão dele. — Caso você não tenha percebido, este
programa leva o meu nome. É como um filho para mim. E eu sei como terminar o que começo.
Acho que você não pode dizer o mesmo.
Tenho certeza de que ele está para me responder à altura, porque parece um vulcão um momento
antes de explodir, mas levanto o indicador para pedir tempo enquanto puxo o celular vibrante do
bolso.
No visor aparece NÚMERO DESCONHECIDO, por isso imagino que seja algum call center ligando
porque sou a felizarda vencedora da incrível promoção deles. Meto o celular de volta no bolso e tiro
o cronômetro, para dar início à prova.
— Apenas pare com isso — recomeça Carlo. — Já foi o suficiente você chamar Cristina para vir
conosco. Sabe muito bem que ela não pode se estressar agora. Não sei como você conseguiu
convencê-la.
— Ah, você acha que eu a chamei para vir? — Estava justamente me perguntando por que Carlo
a trouxe. Aliás, desde que chegamos, Cristina grudou em mim feito um mexilhão.
Logo que a competição começa, ela cola nos meus calcanhares.
— Sabia que você foi a primeira pessoa que conheci na emissora? — comenta Cristina, a certa
altura. — Lembra? Nos encontramos no dia da minha entrevista. Você parecia tão confiante… E foi
muito simpática.
Abro um sorriso rápido e levo a mão ao ouvido coberto pelo headphone, querendo que ela
entenda que não posso conversar porque estou trabalhando.
Olho o pequeno monitor à minha frente, no qual passam imagens que Carlo, Alejandro e os
outros estão gravando.
Atrás de mim, porém, Cristina continua tagarelando.
— Eu pensei… Naquela época, pensei que você era tão simpática que a gente ia acabar ficando
amiga.
Suspiro, tentando ignorá-la enquanto o Touro passa na liderança, acompanhado de perto por
Capricórnio, que seria capaz de vender a mãe para alcançar seu objetivo, enquanto Virgem já está
se organizando para a prova seguinte.
Virginiano é assim, sempre pensando à frente, em uma luta incessante para colocar ordem no
caos.
Eu me viro para Cristina por um instante, me lembrando de que seu aniversário é em 6 de
setembro. Virgem. Ambiciosa e certinha.
— A culpa é toda de Carlo — resmunga ela. — Se não fosse ele, eu e você teríamos nos tornado
boas amigas.
É verdade.
Admito, houve um tempo em que a gente se gostava. Mas depois ela deu em cima de Carlo, eu me
tornei o incômodo esqueleto no armário do namorado dela, e Cristina se tornou a incômoda relação
séria do meu melhor amigo. Ou seja, a amizade não teve futuro.
Volto a observar o jogo; a equipe de Água está se saindo pior, todos ainda emperrados na
primeira etapa e muito concentrados em culpar uns aos outros em vez de se comunicar. Não é
nenhuma surpresa, já que Água domina o inconsciente, tornando seus signos sérios e
introspectivos… Ou seja, antissociais e egocêntricos.
O Escorpião explode para cima de Peixes, que fica chorando no ombro de Câncer.
— Não sei, talvez — respondo. Não posso permitir que logo Cristina destrua minha postura
séria, depois de todo o trabalho que estou tendo com Carlo, Alejandro e David.
Mas, quando escuto um soluço, não consigo evitar de olhar para ela.
— É que eu estou muito emotiva… — diz ela, em lágrimas, segurando meu braço. — O bebê…
Quero dizer, meu humor fica oscilando o tempo todo, e penso coisas… acho… estou muito cansada.
Ela esfrega as costas e eu aponto para uma das cadeiras dobráveis que temos à disposição.
— Sente-se um pouco.
Ela concorda e se acomoda, fazendo beicinho como uma criança.
— A culpa foi minha. Eu me senti ameaçada por você, Alice. No fundo, sempre fiquei com medo.
Quando me envolvi com Carlo, todas as minhas amigas diziam para eu desencanar, porque, embora
vocês tivessem terminado, ele sempre voltava para você. Sou uma idiota de sentir tanto ciúme, né?
Porque você não é apaixonada por Carlo. E ele está para se casar comigo.
Admito que eu teria gostado de ver os dois separados, porque… porque sou uma imbecil e encarei
a relação deles, principalmente o bebê, como uma afronta pessoal. Mas foi um pensamento absurdo,
estúpido e egoísta, reconheço pelo menos para mim mesma. Estava com inveja da vida de Carlo,
porém não é culpa dele, e muito menos de Cristina, se eu só me relaciono com pessoas erradas.
Enquanto isso, os signos de Fogo chegaram à segunda posição, mas, quando alcançam o arco e
flecha, começam a brigar sobre quem deve fazer o disparo em vez de tentarem estabilizar o pedestal
e ajudarem o colega a ajustar a mira.
— Não se preocupe — digo a Cristina. — Não tenho raiva de você.
— Sempre te achei uma boa pessoa. Você não… não ficaria entre Carlo e eu, ainda mais sabendo
que ele vai ter um filho. Que tipo de pessoa faria isso?
Eu a encaro mais uma vez e leio uma súplica em seus olhos. Então compreendo. Por mais que
pareça calma e equilibrada, como uma boa virginiana, Cristina não está nem um pouco tranquila.
Sua ansiedade é visível, porque ela já percebeu que as coisas não estão nos devidos lugares. Na
realidade, o que ela está dizendo é que desconfia que Carlo e eu estamos tendo um caso.
Ela acaricia a barriga redonda e suspira, sentada ali sozinha, naquela cadeirinha isolada no
gramado, enquanto os outros estão todos ocupados com o jogo.
Os gritos de comemoração dos signos de Ar anunciam que eles já estão correndo de volta:
haviam perdido um tempão porque Gêmeos não parava de planejar sobre o terreno, Aquário
discordava de tudo e Libra ficava tentando acalmar os ânimos, mas agora parece que está tudo
certo e a estratégia que combinaram faz com que ultrapassem os signos de Fogo, que infelizmente
ainda disputam o arco entre si.
E se tivesse acontecido comigo o que está acontecendo com Cristina? Estou quase chegando
naquela idade em que, no máximo, poderei ser tia, mas seria pior se tivesse tido filhos com Carlo, o
Senhor da Inconstância.
Queria poder agarrá-lo e sacudi-lo. Dizer para ele deixar de ser criança de uma vez por todas.
Que não se pode botar filhos no mundo como quem cospe caroços de cereja, disputando quem atira
mais longe.
Enquanto isso, os quatro grupos quase terminaram a prova e agora procuram a chave do estojo
ao fim do percurso, revolvendo o terreno pantanoso como alucinados e cobrindo Alejandro de lama,
já que ele está agachado ali perto para gravar a cena. Quando um esguicho escorre do olho para os
lábios, vejo-o se contrair e conter uma careta. Já eu, me esforço para reprimir um sorriso.
— Carlo só está preocupado com o futuro — digo, me voltando para Cristina. — É o primeiro
filho dele também, e acho que ele queria dar de tudo para o bebê, assim como para você, mas com a
crise… E, bom, isso tudo é muito estressante para ele. Tenha um pouco de paciência.
Quando soa o apito que encerra a competição, o “obrigada” de Cristina é abafado pelos gritos da
equipe de Ar e pelas reclamações de Alejandro, coberto de lama da cabeça aos pés.
Raffaella corre ao encontro dele com um pacotinho de lenços de papel, mas Alejandro se esquiva
para falar comigo.
— Y ahora, o que faço, hein? — grita, puto da vida. — No tengo nada para me trocar.
Olho para ele e respondo com toda delicadeza:
— Bom, você pode tirar a camiseta… como sempre.
23. DE GÊMEOS, COM FUROR





Encontro Tito na estradinha diante do portão, todo agitado, gesticulando para um Alfa Romeo que
espalha cascalho ao longo da alameda.
— Estávamos esperando mais alguém? — pergunto, me aproximando.
Ele coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— André — responde, dirigindo-se um pouco a mim e um pouco ao motorista do carro, que freia
ao nosso lado e baixa o vidro.
André Magni levanta os óculos escuros e nos cumprimenta.
— Entre aqui — explica Tito. — Nossos carros estão mais à frente e você pode estacionar lá.
— O que André Magni veio fazer aqui?
Estou surpresa. É verdade que ele assinou um contrato de colaboração conosco alguns dias atrás,
mas sua presença não estava prevista para hoje.
— Ele tinha uma conferência aqui perto esta manhã, e eu o convidei para vir almoçar — explica
Tito.
Este set está realmente ficando movimentado. Primeiro Cristina e agora Magni, embora eu deva
dizer que o visual antiquado dele combina com essa propriedade rural de estilo britânico.
Mas eu queria falar com Tito sobre Carlo, e agora ele está correndo para André, que sai do carro
e se espreguiça.
— Espere, Tito!
Ele desacelera e sorri.
— Eu queria conversar com você antes do intervalo de almoço.
— Estou aqui — responde ele, e olho para André, que nos espera a uns cinquenta metros.
— Sim, mas… — Não sei se é correto revelar os problemas de Carlo e Cristina a terceiros, e com
certeza não quero contar para um sujeito que poderia transformá-los em equações matemáticas,
confundindo ainda mais minha cabeça. — Estou com um problema ético… — começo, segurando o
braço de Tito. — O que você faria se pensasse conhecer uma pessoa muito bem e gostasse da
pessoa, como amiga, quero dizer, mas então descobrisse que essa pessoa é meio… bom… digamos…
promíscua… Bom, se depois de pensar que esse amigo estava encaminhado, que tinha feito uma
escolha, você descobrisse que não é assim… — Olho para André, que está se aproximando, e falo
mais depressa porque não quero que ele nos alcance quando estou na metade do discurso. — Ou
seja, por mais que você goste da pessoa, não pode aceitar esse comportamento e não sabe se está
agindo corretamente ou não ao falar do assunto para alguém que, se descobrir a verdade, pode
tomar uma atitude a respeito…
Bom, agora que falei, me sinto aliviada. Tirei um peso dos ombros e consegui permanecer vaga,
respeitando a privacidade de Cristina e Carlo.
Quando me viro, porém, vejo que Tito ficou parado alguns passos atrás. Seu belo sorriso deu
lugar a uma expressão muito séria, e seus olhos ficaram estreitos como as seteiras do castelo
medieval que estamos virando de cabeça para baixo.
— O que acha?
— Acho que isso é muito hipócrita da sua parte — responde ele.
— Como assim?
— Você deveria tentar compreender seu amigo, em vez de condená-lo. Acha que é a dona da
verdade? Quem é você para julgar os sentimentos dos outros? Talvez ele nunca tenha se aberto
exatamente por medo de não ser compreendido, de ser rejeitado. E isso o deixaria muito, muito pior
do que continuar se escondendo sabendo que tem sua amizade.
Olho para ele, perplexa, e me viro um instante para Magni, que deve ter percebido que alguma
coisa está errada e parou no meio do caminho.
Do que o Tito está falando? Estou tão espantada pelo ataque sem sentido que não consigo abrir a
boca. Ou melhor, estou de boca aberta, sim, mas só consigo fazer isso, como um peixe fora d’água.
André tenta acalmar Tito pousando a mão em seu braço, mas ele recua bruscamente do toque e
se afasta.
Quero segui-lo para tentar esclarecer não sei bem o quê, mas um grito de gelar o sangue me faz
correr como uma alucinada em direção ao bosque.
— Sofre de vertigens, coitadinho… — comenta Raffaella, acariciando as costas de Alejandro, que
ofega agarrado à grama com ambas as mãos.
— Ele só tem que acompanhar da grua os movimentos dos concorrentes — explica Carlo.
Ao constatar que não aconteceu nada de grave, vou mais devagar.
— Es culpa sua! — grita Alejandro. — Sua e deste maldito programa! Ya tive que vestir esto —
diz, apontando a calça xadrez coladinha que dei para substituir a dele, toda enlameada. — Mas não
vou me pendurar naquela cosa suspensa no vazio!
Observo o barranco sobre o qual estamos montando o cenário para o jogo dos signos de Ar.
— Lamento, Alejandro, mas é seu trabalho — respondo, sem vacilar.
— E não tem nenhum perigo — completa Mara, a assistente de Dor de amor que peguei
emprestada hoje para ter uma secretária de edição. — Imagine se o presidente permitiria o
escândalo de uma morte em serviço.
Mas Alejandro não parece nem um pouco tranquilizado, e sua pele cor de oliva assume uma
tonalidade cinza.
Logo depois, todo mundo começa a argumentar ao mesmo tempo. Carlo, como diretor-realizador;
Raffaella, bancando a anjo da guarda em roupas de grife; Marlin (“Por que está reclamando tanto?
Não é ele que vai ser filmado. E minha maquiagem e meu cabelo, onde estão os profissionais?”),
direta e inabalavelmente egocêntrica.
Mas eu só consigo pensar em Tito, em onde ele se meteu e em por que ficou tão chateado.
Então me lembro do que Karin disse sobre Tito gostar muito de mim… E das insinuações da
minha mãe… Ela está sempre se dedicando a me arrumar um namorado, e depois estraga todas as
minhas expectativas reclamando dos que eu consigo.
Por um instante, acho que escuto a voz de Paola.
Na verdade, sempre que tenho revelações sensatas escuto a voz de Paola, mas como um tipo de
eco, como se ela fosse um espírito-guia ou algo assim.
De qualquer modo, o conteúdo é o mesmo. Minha voz, disfarçada de voz de Paola com eco, me
ilumina com seis palavras simples: Tito está apaixonado por você, Alice.

Ah, merda. E agora?


Porque, se Tito estiver realmente apaixonado por mim, o problema é sério. Muito sério.
Percebo isso ainda mais claramente quando entro no castelo e vejo um homem observando da
parede do átrio o quadro de um fidalgo com uma enorme peruca.
Poderia ser a cena de um filme de época, tipo Orgulho e preconceito; o sr. Darcy está ocupado em
contemplar o retrato de um antepassado quando Elizabeth entra na sala por engano, interrompendo
seus pensamentos. Só que as luvas que esse homem segura nas costas são de motociclista, e ele usa
jeans pretos e puídos ao estilo bad boy.
E com certeza não estamos em um filme de época, visto que meu celular começou a vibrar de
novo.
Irritada, atendo ao mesmo número desconhecido de antes.
— Alô?
David se vira de repente, deixando uma luva cair no chão com o susto.
— Alô, Alice? Foi Karin quem me deu seu número. Sou um amigo… — Uma voz tediosa murmura
ao telefone.
Não presto atenção e desligo o aparelho sem desviar os olhos dos de David.
Não dá para conversar com alguém quando seu coração está disparado diante de tanta beleza. E
não estou falando do quadro na parede.
Tem alguma coisa. David tem alguma coisa. Eu chamaria de mágoa, ou talvez de ansiedade, até
de melancolia. Talvez seja esse ar de mistério que me atrai tanto nele.
Mas, como sempre, ele só me olha sem dizer nada.
— “A fórgmula, dr. Jones…” — digo, porque estou nervosa. — “O zenhor me entrega a fórgmula e
pode ir emgbora” — concluo como uma vilã, depois caio na risada como uma idiota. — Desculpe,
mas você parecia tão sério! Virou-se para mim e ficou pálido como se tivesse visto um fantasma.
— Eu? Ah, pois é… Estava mesmo pensando nisso.
— Que eu faria uma imitação de Indiana Jones e a última cruzada?
— Que você entraria por aquela porta.
— Ah… — Abro um sorriso, embora eu não saiba bem o que ele quis dizer com isso. — Você é
mesmo estranho. Já te disseram isso?
— O tempo todo. E a você?
— O tempo todo. Pensei até em incluir essa informação na carteira de identidade.
Nós dois rimos.
— Viu por que não consigo desistir de você? — pergunta ele, pouco depois. — Você é brilhante.
Bonita, simpática, inteligente…
O.k. Para tudo. Falar que eu estou um pouco confusa é eufemismo.
— Quero dizer, eu queria que você entrasse porque preciso te dizer uma coisa.
Sorrio para ele.
— Então diga.
Ele fecha a boca, umedece os lábios, morde o inferior por um instante… O que causa uma pane
no sistema da Alice 2.0, desinstalando os arquivos de atualização e restaurando a velha e conhecida
versão, mais insegura e vulnerável do que nunca.
E é por isso que preciso esclarecer as coisas com Tito.
Se por acaso ele estiver mesmo a fim mim, como temo que esteja, eu não posso, simplesmente
não posso… Assim como não podia funcionar com André, ou com Alejandro, ou com Carlo, não
poderia funcionar com Tito. E não por causa dos nossos horóscopos, signos, Ascendentes ou por
qualquer planeta que tenha passeado caprichosamente na hora do nosso nascimento.
Não vai dar certo porque já estou apaixonada por outro.
Compreendi isso agora, entrando por aquela porta, vendo David ali de costas.
Ficou tudo muito claro, como se estivesse escrito na minha frente. Estou apaixonada por David.
E sinto um medo fodido.
Amo a força que vibra sob a expressão calma dele. Amo cada coisa que ele olha, porque o olhar
de David deixa tudo doce. Amo cada palavra que sai de seus lábios, e como sua voz é delicadamente
áspera e soa como uma carícia íntima.
— Sou um idiota — diz ele.
— Como assim? — O.k., às vezes ele é um pouco menos delicado. Franzo a testa. — Era essa a
grande revelação?
Minha brincadeira não reduz seu mau humor, e ele segura minha mão.
— Trazer você aqui foi um erro. O que eu tinha na cabeça? — Enquanto ele me arrasta para a
porta, fica repetindo (a voz como uma carícia, mas determinada): — Babaca, babaca, babaca!
— Quer parar um segundo? Não podemos ir embora. Eu não posso ir embora. Tenho que
trabalhar. Tenho que procurar Tito… — Por mais que eu queira sair daqui com ele, subir na moto e
abraçá-lo com força, apertando o rosto em suas costas, não posso abandonar o set e não posso
deixar Tito assim, sem antes resolver as coisas, ou pelo menos tentar.
Mas David não me dá ouvidos e afivela o capacete de um jeito agitado. Seus olhos nervosos não
encontram os meus enquanto ele abre o bagageiro da moto, pega outro capacete e o planta em
minha cabeça.
— Espere, vou ajeitar para você, a presilha é meio emperrada — explica ele, movendo os dedos
sob meu queixo. — Preciso conversar com você, Alice. Mas longe daqui. E logo. Por favor, venha
comigo. Agora.
O tsunami em seus olhos me domina. Me debato no fluxo desordenado de palavras e emoções, do
que é lógico, do que é justo, do que sinto e do que quero.
E concordo.
Ele me encara de novo, muito sério, respirando fundo como se quisesse criar coragem. Começa a
calçar as luvas, mas percebe que só tem uma.
— Espere, caiu no átrio, eu vi. — Corro para a porta, e o capacete faz minha cabeça balançar
como a de um daqueles cãezinhos mecânicos, os ouvidos abafados e as batidas do meu coração
ecoando no ritmo da respiração.
Retorno vitoriosa, balançando a luva, mas David não está mais sozinho.
De novo, tenho a visão de seu belo derrière, mas dessa vez não me distraio porque minha atenção
está na mulher com quem ele está falando e que parou ao lado da moto o cavalo do qual acabou de
desmontar.
Dupla um tanto estranha, uma motocicleta e um cavalo. Mas, por outro lado, ela, toda etérea em
uma roupa de montaria bege, e David, todo de preto, combinam como o dia e a noite.
Enquanto a observo, penso sobre a crueldade da vida.
E é a seguinte: por mais que alguém se esforce, elegância é realmente algo inato. Eu sou o
exemplo perfeito. Embora use um terninho quase Armani, estou andando como um robô, usando
um capacete e sentindo minhas bochechas amassadas, o que com certeza não me deixa com uma
aparência inteligente. Ela, porém, estava galopando pelos bosques, com vento, plantas e suor de
cavalo. Nós, reles mortais, no mínimo teríamos manchas de suor na camisa, cabelos despenteados e
o rosto vermelho. Ela, nada. Nenhuma alteração das funções vitais. Parece uma alienígena.
Eu queria tirar esse troço da cabeça, me sentiria um pouco menos imbecil e deslocada, mas a
presilha não abre. Melhor deixar a tarefa para David, ou será preciso chamar um serralheiro.
Mas, quando me aproximo, ele não reage. Mal olha para mim, encarando o chão, depois a outra
mulher.
— Barbara, esta é Alice… Alice Bassi. Uma colega. A autora do programa, na verdade. Alice, esta
é Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori… Que hoje nos abriu gentilmente os portões de sua casa.
— Prazer, sra. Bu-ka-inen… — É impossível acertar esse sobrenome. — Ahn, se a senhora é a
proprietária deste lugar incrível, parabéns. E muito prazer.
— Estou encantada por conhecer alguém do trabalho de David.
Ela parece Grace Kelly naqueles filmes antigos, em que acordava com o batom ainda intacto.
Enquanto aperta minha mão, seus olhos pousam em David, e os lábios revelam uma fileira de
dentes cintilantes como icebergs.
Será que é coisa de sobrenome? Se você se chama Blucher-Vattelapesca, com certeza anda por aí
com uma boa dose de arrogância. Tento imaginar como seria me apresentar com um nome desses.
Prazer, Alice Fritzalgoimpronunciável como Supercalifragilisticoespialidoso. Ao fim, você passa
cinco minutos tentando recuperar o fôlego.
Caramba, não gosto dela. A mulher é perfeita demais para não fazer com que eu me sinta
inferior. Olhando-a, me dou conta de todo poro obstruído da minha pele, dos meus cabelos
amassados sob o famigerado capacete, da bolha no dedão do meu pé esquerdo, dos ombros que
preciso me esforçar para manter mais eretos. Como é possível competir com Barbie Frau Blucher-
Fritz-Ricca? E ainda por cima há aquele olhar que ela lança a David enquanto pousa a mão em seu
braço com a graça de uma gueixa arrumando um iquebana. Deveria tomar mais cuidado com essas
mãozinhas cheias de dedos, se quiser preservá-los.
— Vocês já se conheciam, então — digo, imitando-a e tocando o braço de David.
— Ah, bem… sim. Já faz tempo que nos conhecemos… — Ela sorri para ele, como se colocasse
legendas no comentário.
— Ah, é mesmo? — Eu me aproximo um pouco mais e ela faz o mesmo.
— Trabalhei com o marido de Barbara antes de ser contratado pela Rede Mi-A-Mi — explica
David, dando um passo em direção à moto e deixando nós duas para trás.
Ah!
MARIDO!
Meritíssimo, peço para constar nos autos que foi pronunciada a palavra “marido”, ouvida
claramente por esta que vos fala.
— É mesmo? Que ótimo! — exclamo, sorrindo para a mulher. Bem, é muito mesquinho detestar
uma pessoa só porque ela é muito bonita, elegante, rica e tem um sobrenome impronunciável.
Quem sou eu para julgar? — Quero dizer, é ótimo que vocês tenham mantido contato, depois de
concluída a relação de trabalho. Dá para ver que você foi competente, David.
— Muito. Ele foi de grande ajuda em um período muito difícil — diz Barbara, com afeto.
David pigarreia.
— Barbara fez a gentileza de nos oferecer a casa para fazermos a gravação.
— Sim, você já disse.
— Ah, não é incômodo algum. Fiquei feliz de ajudar quando David pediu. Mas eu tinha meus
próprios interesses também, porque ultimamente o vejo tão pouco. O trabalho deixa David muito
ocupado. Aliás, como vai Flash?
— Vai bem. Parece feliz na casa nova.
A pergunta sobre Flash me soa estranha, como se devesse me lembrar de algo que me escapa.
E não é só uma questão de memória, mas também de distração, porque a equipe está se
aproximando na maior algazarra, em direção aos carros e furgões para finalmente ir almoçar.
Alejandro me lança um olhar cheio de rancor, provavelmente pensando na cascata de comida
gostosa e orgânica que nos espera no restaurante de agroturismo. Raffaella bate em seu ombro e lhe
entrega um saquinho com sanduíches, que ele deixa cair no assento do Peugeot que usará para
retornar à empresa e buscar a famigerada bolsa com os spots.
De longe, Mara me lança um olhar cúmplice, depois se aproxima dos dois, chamando a atenção
de Alejandro para o plano de trabalho vespertino, e se afasta com eles, ainda repassando as
informações.
Relutante, tiro a mão do braço de David. Por mais que odeie deixar o campo livre, tenho um
trabalho a fazer. Nossa minifuga tem que esperar, assim como a coisa que ele estava prestes a me
dizer.
Quando enveredo por entre os veículos estacionados, vejo Cristina perambulando como uma
alma penada, massageando a barriga.
— Tudo bem? — pergunto quando ela me alcança junto ao Peugeot.
— Estou me sentindo péssima — responde ela, com seu olhar de cordeiro indo para o abate. —
Vontade de…
— De quê?
— De vomitar!
Ah, merda! Ela se inclina para a frente, contendo uma ânsia com dificuldade, e eu abro às
pressas a porta do carro, pego o saquinho no assento e o coloco diante de sua boca, bem a tempo de
ela lançar ali dentro os sucos gástricos e o que resta das refeições do dia.
— Desculpe! Que nojo!
— Não foi nada — respondo. Aliás, pensando bem… — Pelo contrário, muitíssimo obrigada.
Enquanto ela se afasta para lavar as mãos e a boca na fonte, fecho o saquinho e o coloco de volta
no assento. Depois tento mais uma vez desatar o capacete, mas só consigo estragar uma unha.
— Algum problema? — pergunta Carlo.
— Você devia perguntar a ela — rebato, apontando Cristina, que se sentou na beirada do tanque
e mantém as mãos imersas até os pulsos. — Está muito cansada.
— Devia ter ficado em casa.
— Ela queria ficar perto de você.
Carlo morde o lábio e olha o relógio.
— O trabalho está indo bem, sem atrasos, mas não podemos nos distrair.
Olho para ele e de novo para Cristina. Será um milagre se ela conseguir engolir alguma coisa no
almoço.
— Tire este troço de mim — peço a ele, me referindo ao capacete.
Carlo manobra com os dedos sob meu queixo.
— Em uma coisa você tem razão — comento, absorta, desviando os olhos para Cristina. — Não
podemos nos distrair.
Ele compreende que não estou me referindo ao trabalho e afasta as mãos, parando de tentar me
libertar.
— Vamos, abre logo.
— Não consigo, e você também não merece um favor meu. Em vez de continuar cutucando
minhas feridas, será que poderia cuidar do seu favorito e ir buscá-lo, onde quer que ele esteja
escondido?
— Tito? — Claro que não vou contar para Carlo que também briguei com ele, embora, em última
análise, a culpa seja de Tito. — André Magni chegou, devem estar conversando em algum lugar.
— Acho que não. André está ali.
Acompanho seu olhar e vejo Magni com as costas apoiadas no tronco de uma árvore, os braços
cruzados e uma expressão atormentada.
Carlo me observa, depois olha para David e Barbara, esboçando um sorrisinho.
— Não podemos nos distrair…
Não adianta mandá-lo à merda, Carlo já conhece muito bem o caminho. Por isso me afasto fazendo
um gesto vago com a mão, e me aproximo de André Magni.
Quando se dá conta da minha presença, ele endireita os ombros e tenta sorrir, mas não se sai
muito bem. Alguma coisa o perturba, e ele não consegue disfarçar.
— Com licença, André, você sabe onde posso encontrar Tito… Tiziano? — pergunto, ainda
tentando abrir a presilha do capacete, mas só consigo apertá-la ainda mais.
Magni perde o ar tranquilo e me olha de cenho franzido.
— Estávamos nas proximidades do sítio onde seriam efetuadas as gravações quando ele me
comunicou sua exigência de permanecer sozinho — responde, seco.
— Ah, entendo…
Eu me afasto com um aceno de cabeça, que com o capacete deve parecer exagerado, e entro pelo
bosque, pensando em como puxar conversa com Tito sem magoá-lo. Pelo menos, não mais do que o
necessário.
Mas não vai ser fácil. Sei bem como são essas coisas, como amar pode doer. Quando Alejandro
me descartou, houve momentos em que eu só queria morrer.
Aimeudeus. Paro um instante, tentando organizar as ideias.
O set que estamos preparando dá para um barranco de pelo menos quinze metros.
E se ele teve alguma ideia idiota?
O.k., não vou ser tão dramática.
Quero dizer, eu posso pensar certas coisas, mas Tito nunca faria isso.
Mesmo assim, só para me garantir, me debruço um pouco quando chego ao despenhadeiro, para
ver lá embaixo. Meu Deus, que vertigem! O peso do capacete faz minha cabeça se inclinar para a
frente e sinto um aperto no estômago.
— Se eu fosse você, não faria isso. Nem mesmo com capacete — alerta uma voz às minhas
costas, e em seguida alguém me segura pelos braços.
— Você está vivo! — Eu voo para cima dele, dando uma cabeçada em seu peito como um jogador
de rúgbi.
— Ah, sim… por enquanto! — Ele não me abraça e, depois de ficar estranhamente imóvel por uns
instantes, me afasta. — O que você veio fazer aqui?
— Bom, antes de mais nada, estamos indo almoçar — murmuro, desconversando.
— Eu não vou. Estou sem fome.
— Ah, não faça isso.
— Não. Com você eu não como.
Meu Deus, odeio quando ele fica fazendo pirraça!
— Você já almoçou comigo um monte de vezes. Vamos, precisamos conversar.
— Não acho.
— Mas você tem que me deixar explicar. Entendo o que está sentindo, mas… é um erro. E, se estou
aqui, é porque você é importante para mim e quero que a gente pense junto.
Ele solta e refaz o rabo de cavalo, com movimentos nervosos.
— Alice, falando sério, deixa isso quieto. Assim, ninguém se magoa. Eu pensava que queria falar
com você a esse respeito, mas talvez sempre tenha sido difícil porque eu sentia que você não ia
entender. — Ele chuta umas pedrinhas, que rolam saltitando pelo barranco. — O problema é que
você é muito importante para mim, e eu não queria mais ficar mentindo só para manter sua
amizade. Até Paola sugeriu mais de uma vez que eu te contasse, mas…
— Paola?
Quer dizer, Paola, a minha Paola, sabia e não me disse nada? Tudo bem que ela é uma espécie de
Oráculo de Delfos, um Venerável Yoda de saias e cachinhos louros, mas, visto que a coloquei no
papel de melhor amiga, ela não deveria me manter atualizada sobre certas questões, desde que não
seja sobre as golfadas do seu filhote?
Tito assente.
— Ela percebeu logo, mas eu pedi que mantivesse segredo.
Fofocando pelas minhas costas! O.k., Paola arrumou problemas quando prometeu que não ia
contar, mas não podia ter me dado sinais? Sei lá, fingir esquecer um bilhete na poltrona quando eu
estivesse em sua casa, tamborilar com os dedos na mesinha em código Morse…
— Desculpa — digo, baixinho. — Eu preferiria que as coisas continuassem iguais.
— Eu também, mas chega um momento em que é impossível continuar escondendo a verdade. E,
acredite, para mim é muito difícil, eu nunca contei para ninguém… Mas, entre nós, Alice… Com
você é diferente. Ou melhor, era diferente.
— Tito, por favor, tente entender. Para mim também não é fácil. Nunca suspeitei de nada. Se pelo
menos você tivesse me preparado um pouco, sei lá. — Balanço a cabeça. Usando esse capacete, é
labirintite garantida. — Eu não queria, não queria chegar nesse ponto. Acho que até desconfiei,
mas na verdade não queria enxergar. Tito, tenho certeza de que no fundo do coração você sabe que
não dá. Sei que estou te magoando, mas não posso… não posso aceitar.
— Ah, bem que André disse que eu não podia confiar em você! Caralho, estamos no século XXI ou
o quê?
Pisco, atônita. Ah, quer dizer que até André sabia! Mais alguém para acrescentar? Meus pais? A
faxineira?
— E o que André tem a ver com isso? E também, certas coisas não mudam nunca. Hoje ou na
Idade Média, dá no mesmo…
— Ah, parabéns! — exclama ele, passando a mão pelo cabelo. — Tenho uma notícia para você:
as pessoas evoluíram. Você é que pensa como uma velha carola.
Olho para ele, boquiaberta.
— Carola? — E velha, murmura a voz de Paola (aquela com eco) na minha consciência. — Sou
só uma pessoa com moral!
Eu não queria magoá-lo, mas agora não estou nem aí!
Posso até ser velha, mas ainda tenho agilidade bastante para lhe dar um chute na canela.
Claramente, as coisas não estão indo muito bem.
Tito me segura pelos pulsos, para me manter à distância.
— Este é o seu jeito de resolver as coisas, não é? Como uma boa selvagem. Aliás, o que eu podia
esperar de alguém que chama de promíscuos os sentimentos de um amigo e ameaça contar para os
outros, para que ele seja rejeitado?
Meu segundo pontapé atinge o vazio. E também o terceiro. E o quarto. Tito é bem forte e meus
pulsos estão doendo.
— Então você acha que não tenho o direito de tentar defender uma mulher grávida? — grito,
com raiva. — Não deveria ficar puta por Carlo ignorar Cristina e querer cancelar o casamento?
Vamos lá, defende ele; afinal você também é homem. Mas como é possível que, a menos de cinco
meses da cerimônia, um cara se apaixone por outra mulher? Sou antiquada demais, sou mesquinha
demais por pensar desse jeito? Não quero ser uma pessoa moderna, se isso significa pisar nos
outros. Não tenho uma mentalidade tão aberta assim. Carlo está errado, e Cristina… Cristina
precisa mais do que nunca de uma amiga, agora, mas não sei se contar a ela como as coisas
realmente estão serviria para melhorar a situação. Por isso vim falar com você, primeiro, queria
um conselho seu, mas lamento que tenha entendido mal. E lamento ter ferido seus sentimentos…
mas compreendi o que eu estou sentindo, Tito. E não posso… não posso amar você. Para mim, você
é um amigo muito especial, mas não tenho mais nada a oferecer. E tenho muito medo de te perder,
acredite, essa possibilidade me apavora. Mas o que posso fazer, se não te amo? Provavelmente seria
tudo mais fácil se eu correspondesse aos seus sentimentos, mas você não pode me culpar. Nossos
horóscopos podem até ser maravilhosos juntos, mas…
Estou sem fôlego, as palavras saindo da boca como as lágrimas dos olhos. Não vejo mais nada,
não escuto mais nada, tendo esse troço maldito na cabeça, com o qual desconfio que serei
sepultada.
— Pode parar. Chega, Alice! Chega! — As mãos dele batem no capacete, produzindo um barulho
que ecoa no meu crânio.
Quando reabro os olhos, Tito está diante de mim, seu rosto a um palmo do meu nariz.
Seus dedos mexem a presilha maléfica e, após algumas tentativas, conseguem abri-la.
Estou livre. Assim que ele tira aquela cuia da minha cabeça, tenho a impressão de que consigo
respirar de novo. Como quando nossos ouvidos desentopem depois de um voo e ficam zumbindo, e
parece que a gente está ouvindo o mar.
Tito segura meu rosto e esboça um sorriso. Ele me encara, seus olhos são azuis, límpidos,
sinceros como nunca.
— Alice, eu sou gay.
Às vezes, o barulho do mar nos ouvidos recém-desentupidos pode provocar alucinações
auditivas.
— O quê?
— Eu sou gay. É isso que estou dizendo há meia hora. Já fazia um tempo que eu queria te contar.
Inclusive quando você me procurou, agora há pouco. Mas depois você fez todo aquele discurso
sobre promiscuidade, dizendo que não podia me aceitar…
— Eu estava falando de Carlo.
— Eu sei. Agora sei. — Ele suspira e ergue os olhos para o céu. Não há uma nuvem sequer. —
Sou gay — repete, baixinho, como se dissesse para si mesmo, absorvendo a ideia até os ossos. —
Era isso que eu queria te contar. — Tito dá de ombros e me olha de novo. — Não sei o que você
pensa disso, mas não se preocupe com o fato de não me amar. Eu também não amo você. Não nesse
sentido, pelo menos. Mas gosto muito de você, sua cabeçuda chata.
— Ah, Tito! — exclamo entre as lágrimas, dessa vez de alegria. — Eu também não te amo.
Não nos amamos. Viva!
Mas nos abraçamos com força.

Tito foi trocar de roupa para ir almoçar e, no estacionamento, ao lado do meu carro, ficou somente
o pequeno utilitário de Mara, que me espera apoiada no capô, com os braços cruzados.
Quando me vê, ela se levanta e enfia a mão no bolso.
— Tome, Nardi me pediu para te entregar isto, porque precisava ir embora.
Franzo a testa e recebo o bilhete dobrado em quatro e rabiscado apressadamente com caneta.
Volto ao escritório na terça-feira. Vou buscar você em casa nessa mesma noite, às oito. Alice, não é um pedido.

Eu me pergunto por que ele não me mandou uma mensagem no celular.


— Tudo bem? — pergunta Mara.
Sei que ela não leu. David entregou o bilhete para ela porque Mara lhe pareceu a pessoa mais
confiável. E tem razão.
Nas últimas semanas, pude conhecê-la melhor e passei a gostar dela, tanto pelo modo como
trabalha quanto pela pessoa que é. Descobri que a gente tem muita coisa em comum além da
relação terminada com Alejandro. Nós duas somos librianas, por exemplo. Saber disso me fez
gostar dela quase como de uma irmã, ainda que ela tenha Ascendente em Escorpião e todos os
planetas estejam posicionados para fazer dela uma mulher obstinada.
De fato, Mara é um pouco como eu poderia ser, se fosse menos enrolada.
— Tudo bem — murmuro, distraída.
Ela estica os braços atrás das costas enquanto contorna o carro e se dirige ao porta-malas.
— Jogou o almoço dele fora? — pergunta ela, enfiando a chave na fechadura do bagageiro.
Dobro o papelzinho e o meto no bolso.
— Fiz coisa melhor.
Sorrio, pensando em quando Alejandro meter a mão no saquinho de sanduíches e encontrar o
recheio que Cristina gentilmente me ofereceu. Ah, como eu queria ter instalado uma microcâmera
no carro dele!
Mara abre o porta-malas.
— O que fazemos com isto aqui?
Ali está a bolsa número 4, com os spots que Ferruccio procurava. Suspiro, olhando o relógio.
— Vamos esperar um pouco. Ele deve ter acabado de entrar na autoestrada. — Pego uma das
alças da bolsa. Ela segura a outra e, juntas, a carregamos para o galpão onde arrumamos todo o
equipamento. — Daqui a dez minutos nós telefonamos, dizemos que a encontramos e que ele pode
voltar.
Assim que fechamos a porta, vemos Tito vindo ao nosso encontro e sorrimos de um jeito
inocente. Muito inocente.
ESCORPIÃO

O homem de Escorpião deve sua imensa sorte aos romances baratos de banca de jornal. Bonito,
assustador e de poucas (bem poucas) palavras, o escorpiano banca muito bem o herói capaz de
torturar a protagonista por um enredo inteiro, e depois resolver tudo com uma proposta romântica
murmurada e um arquear de sobrancelha. Para conseguir ficar com um Escorpião, você deve ser
leitora assídua de histórias de terror, porque ele tem um lado sombrio pior que o de Darth Vader.
Mas, mesmo assim, prepare-se para um futuro de intermináveis sessões no analista, porque o
passatempo preferido do escorpiano é transformar você em um fantoche sob o comando dele.
24. ROSAS, SHOPPING E LIBRIANAS





Até gurus têm defeitos, e Paola, minha guru pessoal, resolve me perturbar justo quando precisa ir
ao shopping.
Porque ela e Giacomo se amam e se respeitam tanto que Paola nunca o arrastaria para uma tarde
de bateção de perna, então sou eu quem precisa lhe fazer companhia. Ele diz que é alérgico a algum
produto misterioso usado para limpar as vitrines, principalmente de lojas de roupas, e até compras
de supermercado os dois fazem pela internet.
Então a coitadinha da Paola, que tem o número do cartão de crédito no lugar do código do DNA ,
de vez em quando entra em crise de abstinência e me telefona, falando bem baixinho e de um jeito
disfarçado, como uma espiã russa:
— Está ocupada hoje à tarde? Não aguento mais ficar em casa. Ser mãe é incrível, mas... deixei
Sandrinho com a avó, vamos dar uma volta no shopping?
E, como por acaso eu estou de folga, mesmo que seja terça-feira, trocamos coordenadas e
sincronizamos os relógios.
Et voilà. O resultado é que estou há quarenta e cinco minutos dentro de uma loja de bijuteria.
Olhando brincos. Todos os brincos.
— Paola... — Tento fazê-la acordar, tamborilando os dedos na bancada.
Ela me encara com um sorriso luminoso e olhos cintilantes.
— Você gosta mais deste, grande e com pedrinhas azuis, ou deste, com pedrinhas azuis e grande?
Finjo avaliar a situação como uma especialista em pedras preciosas.
— Hmm, os dois são bonitos, mas acho que esse aqui brilha mais.
Ela me olha, em dúvida, depois confere de novo o espelho.
— Não sei... E este aqui, será que fica mais bonito?
Ela aponta um terceiro par, dessa vez vermelho-fogo.
— Com certeza, esse é a sua cara.
Mas não funciona, e ela recomeça a procurar entre as prateleiras.
Por instinto de sobrevivência, começo a examinar as pulseiras. Preciso fazer Paola parar. Deve
haver um jeito de sedá-la, mesmo que eu tenha que carregá-la nos ombros na volta para casa.
Não que eu não goste de fazer compras, mas hoje tenho as horas contadas.
Só que Paola não sabe disso.
— Com licença...
Vejo pelo espelho que tem uma vendedora bem atrás de mim.
— Ah, eu só estou dando uma olhadinha, obrigada.
Sempre fico meio irritada com vendedores me cercando. Ela perguntou antes se precisávamos de
ajuda. Na segunda vez, já fico incomodada.
— Certo. Mas é que um senhor passou por aqui, agora há pouco... Foi meio estranho, mas ele te
deixou cinquenta euros para fazer compras.
Olho ao redor, sem saber se estou procurando meu admirador secreto ou as câmeras ocultas da
pegadinha.
— Ah, ele já foi embora — explica a vendedora. — Mas aqui está. — Ela me entrega a nota e um
bilhete que diz apenas: Venha me encontrar, estou no bar em frente.
Meu coração dispara, porque logo penso em David. Para conferir, pego o bilhete que ele me
deixou no castelo (e que eu guardo na carteira com o maior cuidado). Não. As caligrafias são muito
diferentes. Por um lado, isso até me deixa feliz. Mandar cinquenta euros de presente... Bem, é um
tanto vulgar. Mesmo que a intenção seja boa, é exagerado. E bastante impróprio.
Suspiro, cabisbaixa, em contraste com a vendedora, que parece encantada. Não posso culpá-la, já
que ela foi jogada de surpresa no roteiro de Escrito nas estrelas.
Estreito os olhos em direção ao bar, mas a vitrine escurecida não me deixa ver mais do que
contornos, enquanto nas mesinhas do lado de fora tem apenas um casal sendo abordado por um
vendedor de rosas.
Rosas...
— Como ele era? Quer dizer, você pode me descrever o cara? — peço, sentindo meu rosto perder
a cor.
Claro, poderia ser outro admirador secreto. Mas qual é a chance de não ser o maníaco da rosa
amarela? Quero dizer, ninguém é assediado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, certo? Nesse
ritmo, talvez eu entrasse para o livro dos recordes.
— Hmm, bom, não muito alto, eu diria na média — começa a vendedora. — Cabelo de tamanho
médio, não muito encorpado, olhos...
— Normais — concluo por ela.
— Quem? — pergunta Paola, aproximando-se com as mãos cheias de quinquilharias.
— Um cara que nos deixou cinquenta euros de presente — explico, olhando para ela
significativamente, porque não quero falar do meu maníaco pessoal ali na loja.
Mas Paola nem percebe, e seus olhos brilham.
— Uau! Sério? — Ela umedece os lábios.
— Idade? O que você achou? Parecia um cara legal? — continuo, pegando tudo que Paola tem
nas mãos e jogando na bancada. — Vamos levar estes.
— Não sei. Normal. Meio misterioso.
— Dá para imaginar. — Do contrário, poderia ter vindo falar comigo. Em vez disso, fez de tudo
para se esconder. E agora quer que eu vá encontrá-lo no bar.
— Qual você acha que era o signo dele? — pergunta Paola, irônica, enquanto eu a puxo para
fora.
— Anda logo, sua idiota.
— Ai, calma... Meus pés estão doendo.
— Ah, então agora você é humana. Depois de dez quilômetros de vitrine, só podia dar nisso.
Entro impetuosamente no bar, escancarando a porta como os pistoleiros em saloons, mas não tem
nenhum freguês lá dentro.
— Por favor — digo, aproximando-me do balcão. — Temos um encontro aqui com um homem...
um homem que não conhecemos.
O sujeito no caixa, que parece o Vin Diesel, todo musculoso e tatuado, nos olha esquisito.
Primeiro para mim, depois para Paola, parando um segundo a mais no decote dela, vários números
mais generoso do que o meu.
— Ah, é mesmo? As duas? — pergunta, arqueando uma sobrancelha.
— Escute, tinha algum homem sozinho aqui no bar ou não? — devolvo, fuzilando-o com o olhar.
— Bem, na verdade, tinha. Alguns minutos atrás entrou um cara, pediu um café. Mas não
parecia estar esperando ninguém. Tomou o café e foi embora.
— Nós o perdemos! — reclamo para Paola depois que saímos do bar e corremos até a esquina,
esperando encontrar não sei o quê e não sei quem.
Gente circulando é o que não falta, e meu admirador secreto poderia ser qualquer um.
Olho desconfiada para alguns homens medianos que passam por nós.
— Bem — diz Paola, parando e massageando um pé, encostada a uma parede. — Quer se
acalmar, por favor? Talvez ele tenha se dado conta de que fez besteira e ficou sem graça. Você não
pode correr atrás, e dessa vez estou falando literalmente, de todo homem que demonstra um pouco
de interesse por você.
— Mas você não entendeu, Paola?
Eu a encaro, chateada e até surpresa de ver que fazer compras é como uma criptonita para ela;
diminui sua inteligência. Depois explico que muito provavelmente nosso patrocinador misterioso
não é o Pernalonga nem o príncipe encantado, mas o cara das rosas amarelas.
— Ah, merda!
Quando Paola xinga, é quase uma epifania, equivalente a uma profunda perturbação interior.

Já que nós duas estamos muito nervosas, não vemos outra solução a não ser comprar lingeries. Nos
acalmamos um pouco escolhendo calcinhas e sutiãs de renda, e nossa preocupação com o
admirador secreto dá lugar a outras perguntas existenciais, bem mais importantes.
— Melhor tanguinha ou fio dental?
Acho mesmo que um novo conjunto de lingerie é tudo de que preciso para começar bem meu
encontro com David.
Não que eu queira ir tão longe. De jeito nenhum... Bom, mas também, se acontecesse...
— Mas você não tinha dito que, depois de Alejandro, nunca mais compraria nada sexy até estar
em um relacionamento sério?
Que inferno, a memória dela está voltando!
— Nossa, olha aquele corpete azul! Aposto que Giacomo ficaria louco!
Paola cai na minha armadilha e pega o corpete. Acaricia as rendas do bojo. Hesita. Pisca
algumas vezes e me olha.
— Você está me escondendo alguma coisa?
Entro no provador a toda a velocidade.
— Tipo que meu melhor amigo é gay e minha suposta melhor amiga sabia e não me disse nada,
me deixando passar um monte de vergonha? — Puxo com força a cortina, me escondendo na
cabine.
A verdade é que não falei com ninguém sobre o encontro desta noite com David. Nem ela nem
Tito sabem. E não pretendo contar a nenhum dos dois.
Não sei bem o motivo. Talvez eu só queira aproveitar o momento sozinha, tê-lo só para mim. Não
quero ouvir uma palavra, julgamentos, conselhos... Quero que sejamos só eu e ele. Eu e David.
Do outro lado, ouço Paola bufar.
— Já pedi desculpas, mas continuo achando que era um assunto do Tito e que, se ele quisesse
contar, como acabou contando, era ele que tinha que fazer isso.
Abro a cortina para mostrar a ela o primeiro conjuntinho que vesti.
Ela me analisa da cabeça aos pés.
— Você fez depilação? — pergunta, estreitando os olhos.
Levanto os olhos para o céu.
— De vez em quando, até eu faço essas coisas, Paola — respondo, e volto à cabine massageando
as coxas ainda avermelhadas. Talvez seja o caso de passar um creme hidratante. Imagine se esta
noite eu ainda estiver cheia de pontinhos vermelhos! Não que vá acontecer alguma coisa. É só por
precaução.
— Hmm... — Escuto Paola murmurar, fora do provador. — Além do mais, o que você ia pensar
de mim, se eu ficasse fazendo fofoca?
Dessa vez, coloco só a cabeça para fora.
— Paola, a gente sempre faz fofoca. Sempre. É como respirar, é inevitável. — Mostro a ela a
segunda versão do conjuntinho.
— Muito sexy. Ficou bem em você. — Ela completa o elogio com um aceno de cabeça. — Agora
me diga, Miss Cinquenta Tons de Desculpas Esfarrapadas, com quem você vai sair hoje à noite?
Finjo não escutar e, enquanto me visto, penso rapidamente em uma mentira plausível.
— Por quê? Só posso me depilar se tiver um encontro? Gosto de me cuidar, de me sentir bem
comigo mesma.
— Claro, e amanhã eu vou jantar com Brad Pitt.
Franzo o nariz enquanto passo por ela para ir pagar.
— Giacomo e Angelina não vão gostar nem um pouco.
— Alice, não estou me metendo na sua vida só por curiosidade. Eu não quero ter que me
preocupar. Não quero passar a noite inquieta por sua causa, pensando em você não sei onde, com
sei lá quem partindo seu coração.
— E saber quem é te deixaria mais tranquila? Não vou sair com ninguém. Quer saber? Fiz
depilação porque vou ao ginecologista. Satisfeita?
Ela me olha torto.
— Então, deixe eu adivinhar: você cacheou o cabelo para um exame neurológico?
O.k. Não invejo Sandrinho, um dia ele vai precisar encará-la para explicar por que não voltou
para casa na hora combinada. Seguro as mãos de Paola e olho em seus olhos.
— Não estou chateada porque você não me contou sobre Tito. Preferia que tivesse contado e,
claro, me pouparia um grande mal-entendido, mas sei que você tinha boas intenções. — Agora vem
a parte mais difícil. — Mas isto de hoje eu quero fazer sozinha. Ele é... é importante demais para
mim e não quero arruinar tudo enchendo a cabeça de ideias. Quero curtir o encontro. Ver no que
vai dar. Caminhar com as minhas próprias pernas.
Depois de alguns segundos me olhando perplexa, Paola me abraça, esmagando os cabides e as
roupas rendadas entre nós.
— Ah, meu bem, estou tão orgulhosa de você! Só quero que se cuide.
Caramba, será que eu sou tão frágil que a minha melhor amiga tem que me tratar feito criança?
Claro, ela é canceriana, sofre de dedicação aguda, mas fazer compras já foi uma emoção forte; não
quero que agora ela comece a chorar.
Sorrio para a vendedora e passo o cartão de crédito sob o olhar terno e orgulhoso da minha
amiga.
— Um momento.
A vendedora nos chama de volta quando já estamos de saída, e eu levanto a sacolinha para ela,
pensando que se esqueceu de tirar o alarme antifurto.
— Quando as senhoras estavam no andar de cima, entrou um senhor e me pediu que lhes
entregasse isso aqui — diz a jovem, puxando de sob a bancada três magníficas rosas amarelas.
25. O ATAQUE DO LEÃO





Se eu pensava que dessa vez seria mais fácil e que a noite transcorreria sem grandes problemas,
bem, eu estava redondamente enganada.
No bilhete, David marcava de me buscar às oito, mas aqui estou, sentada na beiradinha do sofá,
com a bolsa no colo, há mais de vinte minutos. Encaro a televisão e só agora percebo que está
desligada.
Dou uma olhada no celular, mas não há ligações nem mensagens.
Mais uma vez, me olho no espelho do quarto, pensando na possibilidade de ligar para ele. Em
dúvida sobre ligar para ele. Mas não, seria péssimo. Eu deixaria óbvio que a única coisa que estou
fazendo é esperar por ele. Apesar de isso ser lógico, já que marcamos um encontro para vinte, ou
melhor, vinte e cinco minutos atrás... Só que seria melhor se David pensasse que sou uma mulher
ocupada e emocionalmente independente, então também me esqueci do combinado.
Quando saio para a sacada na intenção de regar as plantas pela terceira vez em meia hora, olho
de relance para a rua e o vejo.
Ele estacionou em fila dupla, do outro lado da rua, e vai e volta entre o carro e a entrada do meu
prédio. Na primeira vez, penso que esqueceu alguma coisa, porque abre a porta do veículo e faz
menção de entrar. Na segunda vez, acho que se esqueceu de trancar o carro, porque só chega a tocar
a maçaneta. Já na terceira, ele para no meio do caminho, e me pergunto o que é que está
aprontando.
Eu o vejo parado no meio da rua até que um carro começa a buzinar. David então coça a cabeça e
ergue os olhos. Mal tenho tempo de me esconder entre o vaso de manjericão mirrado e o que resta
da minha enésima tentativa com a sálvia.
Eu poderia acenar para ele, obrigando-o a parar com esse vaivém idiota e me interfonar. Mas
nunca o deixaria me ver da janela, como se estivesse vigiando a chegada dele. E confesso que estou
meio curiosa para descobrir onde isso tudo vai dar.
Entre uma folha e outra, vejo-o puxar o celular e, quando o meu toca, corro de volta para dentro
e o pego na mesinha da sala.
— Alô?
— Alô... Alice?
Não reconheço a voz do outro lado. Esperava que fosse David. Droga. Arrisco uma espiadinha
por trás da cortina e o vejo ainda lá embaixo, também às voltas com o celular. O que está fazendo?
Para quem está ligando, em vez de me interfonar?
— Quem fala?
— Eu sou... meu nome é Daniel, sou amigo da Karin. Meu signo é Peixes, Ascendente em Virgem.
— O quê? — Karin deve ter levado a sério quando pedi que ela descobrisse primeiro as
informações astrológicas desse cara. — Ah, o.k....
— E você? — pergunta Daniel Pisciano com Ascendente em Virgem.
— Eu o quê?
— Bem, seu signo...
— Libra. — Enquanto isso, lá na rua, David ergue o olhar para minha janela. — Então, Daniel,
desculpa, mas agora não é uma hora boa pra mim.
— Ah, no domingo você disse a mesma coisa.
— Hã, eu sei. Desculpa. Tenho uma vida complicada. Podemos nos falar amanhã?
Eu me despeço rapidinho e desligo. E agora, o que faço? Devia ter cortado logo, mas me senti
culpada. Se David descobrir que estou de conversinha com outro cara, vai soar bem mal.
Corro para o interfone assim que o ouço tocar.
— Alice? Está em casa?
Onde mais eu estaria, se atendi ao interfone?
— Sim, claro — digo, em tom bem displicente. Despistar. Despistar sempre. — Já chegou?
(Agora estamos competindo para ver quem faz a pergunta mais idiota.)
Há uma pausa. Como se a comunicação tivesse sido interrompida. Depois um suspiro.
— Sim. Estou aqui embaixo.
Ele me dá um beijo rápido na bochecha, mas, quando vamos atravessar a rua até seu carro, ele
pousa a mão em minhas costas e estende o braço, como se quisesse parar o trânsito e me servir de
escudo. Não sei por quê, mas esse pequeno gesto tem um efeito balsâmico e compensa um pouco a
distração que leio em seu rosto. Nem Kevin Costner seria mais protetor, e, quando o encaro, um
segundo antes que David feche a porta do carro, também penso, como Whitney: I will always love
you...
Estacionamos perto dos jardins de Porta Venezia, e é uma das primeiras noites realmente quentes
na cidade, tanto que o passeio entre os laguinhos e os canteiros parece nem fazer parte de Milão.
Andamos como se não tivéssemos destino. Por sorte, estou usando botas confortáveis, mas, de
qualquer jeito, os pés seriam o último dos meus problemas, porque caminhar ao lado de David é
andar nas nuvens.
Mas o que mais me faz suspeitar de que seja mesmo um sonho é que, pela primeira vez, ele está
falando sem se conter.
— Acho que sempre fui meio vago, mas é que eu prefiro pensar bem primeiro, entender as
consequências dos meus atos. Isso sempre funcionou pra mim, inclusive no trabalho. Pensar ajuda
a manter tudo sob controle.
De fato, essa é uma das coisas que adoro nele, que me faz considerar David um cara sério, firme,
protetor. Depois que ele toma uma decisão, é difícil que volte atrás e te pegue desprevenida.
Olho para ele de esguelha, me perguntando qual é seu signo, como será seu Quadro
Astrológico... e se combina com o meu.
A pergunta me vem à boca, mas a engulo.
Por quê?
Porque, de novo, assim como não quis dizer nada a Paola, decidi que com David não quero saber
de signos e planetas.
— Sempre achei que o que nos torna humanos, o que nos diferencia dos animais, é saber reagir
diante dos instintos. A chance de refletir diante de uma escolha — continua ele.
— Concordo. Pensar ajuda a organizar as coisas. Mas, no fundo, os sentimentos nos completam e
fazem com que a gente se sinta vivo — respondo, tentando encorajá-lo. Afinal, para um homem tão
controlado quanto ele, um homem que já deve ter sido muito magoado, com certeza não é fácil falar
dos próprios sentimentos e embarcar em algo novo.
— É, pois é... Mas as coisas nunca são simples. Às vezes, fatores externos complicam tudo... ou
até impossibilitam.
Ah, não. Impossibilitam não, caramba! Sei que trabalharmos juntos complica as coisas e que a
posição dele agora tem um pouco de, digamos, conflito de interesses com o que ele sente, mas não
vou deixar que a Rede Mi-A-Mi, o Presidentíssimo e a empresa estraguem minha vida.
— Por mais que a gente possa ignorar o que sente e fingir que não tem nada acontecendo, isso
não impede a gente de sentir.
Uma bicicleta passa bem perto de nós, a menos de meio metro, e, instintivamente, David me
puxa, enlaçando minha cintura. O calor de seus dedos queima minha pele através da roupa, sobe
pelo ventre e se espalha pelo corpo todo. Quero essas mãos em mim, penso. E, por um segundo,
temo ter dito isso em voz alta, porque ele me encara de olhos meio arregalados, constrangido.
Sua mão desliza e começa a se afastar.
E eu a seguro.
Não tiro os olhos dele enquanto nossos dedos se entrelaçam.
— Não faça isso... — sussurra David. É quase inaudível, mas estamos muito próximos.
— Isso o quê? — pergunto, tentando provocá-lo, e me aproximo um passo.
David umedece os lábios, mas em seguida recua.
— O que é aquilo? — indaga, mudando bruscamente de assunto.
Eu me viro um pouco.
— O Planetário.
— Sério? Podemos... Quer ir lá? Pode ser útil para o programa.
O programa. De novo. Sempre nos atropelando.
Mas ele não soltou minha mão. Não soltou.
Nos sentamos nos bancos ao fundo, enquanto as luzes se apagam e as pessoas fazem silêncio
quando a música começa.
— David, eu realmente não te entendo... — sussurro quando o vídeo se inicia.
Ele aperta ainda mais minha mão.
— É lindo — murmura ele. Vejo seu perfil erguido em direção à cúpula, onde aos poucos o céu
vai se iluminando com uma extensão infinita de planetas e depois é animado por estrelas cadentes.
A mão de David estremece e me transmite o arrepio que o percorre.
— ... e na realidade as chamadas estrelas cadentes não são estrelas. Chamam-se Perseidas e são
apenas poeira que se incendeia pela velocidade, como quando acendemos um fósforo —, diz o
narrador. — Por isso, sim, é muito romântico pensar em realizar um desejo quando se vê uma, mas
pessoalmente nunca soube de um pedido que foi realizado. Seja como for, se quiserem, aqui no
Planetário vocês verão muitas, e fazer pedidos é sempre bonito.
Eu me viro de novo para David e quero lhe dizer que meu único desejo é ele, mas não tenho
coragem.
É como se estivéssemos perdidos no espaço, em uma magia feita de planetas e estrelas cadentes
(perdão, Perseidas!) que se move ao nosso redor ao ritmo doce da música de fundo.
— Os signos do Zodíaco e a chamada astrologia tampouco fazem muito sentido — prossegue o
narrador. — As constelações são desenhadas pelo homem em um percurso bidimensional, mas, se
olharmos o céu a partir de outra perspectiva, veremos que as figuras mudam geometricamente, que
estrelas muitíssimo distantes entre si foram reunidas na mesma constelação...
A meu lado, David solta uma risadinha.
— Acho que André ainda não usou esses argumentos com Tito.
— Hmmm, acho que usou outros.
— Como assim?
— Ah, nada... Quero dizer, há muito que se pode falar contra a astrologia... Pensando bem, ela
não é muito confiável, mesmo.
— Está mudando de lado? E pensar que eu estou começando a acreditar... Por exemplo, meu
signo é Leão.
Ah, meu Deus. Não. Isso não está acontecendo. Ele não está me dizendo isso.
Logo quando decidi não saber mais nada de horóscopo.
Tampe os ouvidos, digo a mim mesma. Blá-blá-blá. Não quero ouvir. Não quero saber.
— Nasci em 22 de agosto de 1978, às onze e vinte da manhã. E vou dizer que, desde que
começamos a fazer seu programa, encontrei algumas coisas que se encaixam, pelo menos sobre
meu temperamento.
Pronto, ele falou. Por mais que eu me esforce para esquecer, a vozinha interior continua
repetindo obsessivamente sua data de nascimento.
— Ainda sobre as constelações dos signos zodiacais — prossegue o narrador —, é bom explicar
mais uma coisa, que inutiliza todo o sistema no qual se baseiam os autodenominados astrólogos: as
estrelas não são fixas e as constelações se transformam. Muito devagar, é verdade, como pecinhas
de um caleidoscópio. Por isso, o céu que vemos agora não é o mesmo de dois mil anos atrás.
Na cúpula do Planetário surge uma espécie de anel metálico que mostra os movimentos das
constelações, sublinhando que agora elas já não coincidem com as de antigamente, quando a
astrologia foi convencionada.
— Então, todos deviam ter um signo de reserva. Se não gostarmos do que nosso horóscopo diz,
podemos olhar outro — comenta David ao meu ouvido, sorrindo.
— Bobagem — respondo, seca, mais para mim mesma do que para ele, tentando silenciar aquela
vozinha interior que repete obsessivamente a data.
22 de agosto de 1978, 11h20.
22 de agosto de 1978, 11h20.
22 de agosto de 1978, 11h20.
22 de agosto de 1978, 11h20.
Jack Torrance teria orgulho de mim.
Tento me distrair olhando o céu do Planetário. E David até parece mais relaxado do que antes.
A certa altura, para observar melhor a constelação de Órion, precisamos nos inclinar bastante
(ela está exatamente acima de nós, e sentados nos bancos fica difícil de ver), então nos sentamos no
chão.
— Seria lindo poder realmente observar o céu assim — comento. — Talvez nas montanhas, onde
é verdadeiramente muito escuro.
— Seria lindo... — repete ele, e o escuto suspirar.
Crio coragem e, com a desculpa de ver melhor as estrelas, me deito, apoiando a cabeça no colo
dele.
Sua mão afasta uma mecha de cabelos da minha boca, delicadamente.
— Seria mesmo lindo — Ele repete. — Se fosse possível.

Como todos os sonhos, a magia do Planetário também termina, infelizmente. As luzes se acendem
na melhor parte, nos deixando bastante constrangidos. Eu me levanto, um pouco irritada de ter que
me separar do cômodo refúgio do seu colo. David solta minha mão.
Quando saímos entre as pessoas que assistiram à apresentação conosco (onde elas estavam?),
estamos distantes. Ele religa o celular e se afasta até um canto do saguão para dar um telefonema.
— Sim... não, desculpe, não pegava... — Escuto David dizer e sorrio, mas ele me vira as costas.
— É que estou fora...
Olho para ele. Depois encaro meu telefone desligado.
22 de agosto de 1978, 11h20.
Paola pode ter me mandado alguma mensagem. Do jeito que estava preocupada hoje à tarde,
nunca se sabe. Vou ligar o celular. Preciso ligar. Não é uma desculpa. Juro.
Quando o aparelho carrega todos os programas, vejo que chegou uma mensagem. Não é de
Paola, mas de Tito.
Tudo bem?

Talvez seja um sinal.


Sim, eu disse que não devia fazer isso... Mas David está naquele cantinho, falando ao telefone. E
eu estou aqui sozinha, quebrando a cabeça sobre o destino.
Além disso, por mais que eu tenha dito que astrologia não é confiável, Tito sempre me dá
informações úteis sobre os caras com quem eu saio, então deve haver algum fundamento.
Olho de novo para David.
— ... com amigos — Escuto-o dizer.
Talvez eu ficasse mais tranquila se soubesse que nossas chances são boas. Viveria esta noite com
mais serenidade.
E também me sinto meio culpada em relação a Tito, por não ter contado nada. Ele pode pensar
que estou me vingando porque ele não me contou sobre André. Então essa é a oportunidade perfeita
de consertar tudo.
Digito às pressas no display: 22 de agosto de 1978, 11h20.
Envio.
Sem comentar nada, sem dizer nome algum. Até porque sei que Tito vai entender na hora.
— Vamos comer alguma coisa? — pergunta David, guardando o celular. — Desculpe, era
importante — acrescenta, referindo-se ao telefonema.

De qualquer jeito, preciso dizer: é uma noite perfeita.


Caminhamos pelas ruazinhas estreitas do bairro Isola e seus locais íntimos e acolhedores, com o
clima de cidade antiga que às vezes faz parecer que estamos em Paris. Paramos em um pequeno
bistrô e pedimos taças de vinho e aperitivos. David sorri, pousando o rosto na mão para me olhar
nos olhos, e faz muitas perguntas sobre minha vida.
Qual é minha comida favorita (odeio pimentões, mas gosto de quase todo o resto), se leio
bastante (sim, é um dos meus muitos talentos), se gosto de dançar (tudo, menos tango depois
daquela experiência com Alejandro, e também David não é o tipo que me convidaria para uma
milonga), se já andei de moto (é melhor eu me concentrar na vida real, mas vi Top Gun tantas vezes
que acho que já dei várias voltas com o Tom Cruise).
Quando o garçom se aproxima e acende a vela no centro da mesa, alegando que isso dá um toque
de romantismo, sorrio, pensando que eles conhecem mesmo a clientela. Mas David se recosta,
cruzando os braços.
— Hum, obrigado — diz ele. Em seguida, quando o garçom se afasta e ficamos de novo sozinhos,
ele me encara de um jeito quase desconfiado. — Parece até que nada disso é real.
— Você acha?
O fato de termos a mesma impressão, como se essa noite fosse mágica, é muito mais do que eu
poderia esperar.
Ai meu Deus, tudo bem, ainda falta o resto da noite... E não vou me contentar de jeito nenhum
com sonhos e luz de velas. Mas, por enquanto, está ótimo, tudo corre superbem, como nunca antes
entre nós. Entre nós? Nunca senti isso com nenhum outro cara.
É porque você está apaixonada, Alice. (Paola, aquela com voz de eco.)
E porque (olho para David)... Porque ele é o Homem Certo.
Fecho um pouco os olhos, tentando ouvir algum alarme dentro de mim, uma consciência, uma
mudança, um deslocamento do eixo terrestre, um sinal qualquer do momento histórico que estou
vivendo.
Meu estômago ronca.
— Estou feliz por você ter me convidado para sair — digo apressada, para cobrir o barulho. —
Na verdade, eu pensava nisso há muito tempo. Só que, depois daquela conversa na semana passada,
no escritório, pensei que tinha entendido mal.
Suspiro e abro um sorriso meio trêmulo, esperando que ele me tranquilize.
David morde o lábio, também com uma expressão um tanto perdida, e segura minha mão.
— Escute, Alice...
Pronto, agora sei o que acontece quando o Homem Certo está prestes a se declarar. Não é um
tremor, não é um terremoto, é só uma canção. Começo a ouvir, ao fundo, as primeiras notas, muito
suaves, enquanto o olhar de David me causa um arrepio.
Now I’ve had the time of my life.
Patrick Swayze estava muito bem naquele filme.
No, I never felt this way before.
David continua com os lábios entreabertos, claramente emocionado demais para falar.
Yes, I swear, it’s the truth, and I owe it all to you.
Eu me pergunto se ele também está ouvindo uma canção e qual é.
— Alice...
— Diga.
— Acho... acho... seu celular está tocando?
Eu me viro para a bolsa. Claro que estou ouvindo a canção de Dirty Dancing; é o toque de Tito.
Seu nome e sua foto piscam no visor.
A música está tão alta que alguém da mesa ao lado se virou para me olhar de cara feia.
Pego o telefone e desligo. Desculpe, Tito, mas agora não dá mesmo.
— Não vai atender? — pergunta David, perplexo.
— Não, não... não é nada importante.
Caramba, claro que não é nada importante. Na ordem das minhas prioridades, poucas,
pouquíssimas coisas viriam antes da declaração do homem da minha vida.
— Onde estávamos?
Now I’ve had the time of my life...
Essas coisas nunca acontecem com a Julia Roberts.
— Talvez seja urgente — diz David. E solta minha mão, recostando-se na cadeira para tomar um
gole de vinho.
Não, não, não! Tito, você não viu que no meu horóscopo de hoje estava escrito NÃO PERTURBE?
Espero mesmo que seja algo muito urgente.
Tento sorrir sem perder a pose.
— Alô?
— Saia. Imediatamente. Vá embora.
— O quê?
— Você me ouviu? Alice, invente uma desculpa. Se despeça. Agradeça. E caia fora.
— Mas... — Ergo os olhos para David e ele está ali, diante de mim, mexendo distraidamente a
taça de vinho que pedimos. — Não posso.
— Alice, escute bem. — Do outro lado da linha, Tito usa aquele tom que os policiais usam
quando tentam te convencer a não pular de um prédio. — Esse homem, seja quem for, é muito
charmoso, eu sei. Mas é perigoso demais para você. Entendeu? Demais.
Isso é fato, porque só o olhar de David me atinge com a intensidade de uma carreta.
— Não. Eu entendi, mas não — respondo, obstinada.
— Eu já te enganei? Querida, me escute. Para começar, o Leão é por natureza o signo mais
egocêntrico de todo o Zodíaco. — Ele está falando rápido agora, com medo de que eu desligue o
telefone na sua cara (coisa que estou pensando em fazer). — O signo de Virgem, que está em
cúspide com esse sujeito, só reforça a característica, deixando-o ainda mais charmoso e mais
determinado. Então, se ele tiver decidido que vai te conquistar, ele vai.
— Então pronto. Assunto encerrado.
— Não, não, escute! Justamente porque curte estar no centro das atenções, ele se apaixona fácil,
mas é inconstante. E isso não é dito só pelo signo, mas também pelo Quadro Astrológico: ele tem
Mercúrio em Leão e Vênus em Libra, e isso dificulta que mantenha relações estáveis.
— Ei, espere aí, eu também... — Baixo a voz, porque estou gritando e, para que David não ouça o
que estou dizendo, cubro a boca com a mão: — Eu também tenho Vênus em Libra. E aí?
— Pois é, e você reparou com quantas pessoas saiu ultimamente?
Juro que vou esganá-lo.
— Não teria sido assim se Alej... — Mordo a língua. — Acabou?
— Quem dera! Ele tem Urano em Escorpião enquadrado ao Sol e isso faz dele um cara
praticamente indecifrável.
Dessa vez fico surpresa, encarando novamente David, que manuseia o garfo, observando os
dentes de aço. Touché, penso, porque sempre considerei esse homem um mistério.
— Ele é capaz de arrancar qualquer informação de você e depois usar em vantagem própria.
Aposto que fez um monte de perguntas, não fez?
— Hum, não... Quer dizer, sim... — Mas todo mundo não faz isso no primeiro encontro? Por que
devo pensar que David é algum tipo de espião?
— E também tem Vênus na Casa XII. Sabe o que isso significa? Hein, sabe? Vou dizer o que
significa: que ele não tem a mínima intenção de se casar e estabelecer família. É extremamente
independente e não quer vínculos estáveis. Pergunte, por exemplo, se ele quer ter filhos, estou
curioso — desafia Tito, de um jeito atrevido, e ouço sua voz ecoar, soando grave.
— Onde é que você está?
— Não importa. O que você precisa fazer é sair imediatamente daí. Diga que está se sentindo
mal. Que está com dor de barriga, que sua menstruação desceu. Só dá um jeito de ir embora.
— Você está maluco? — Como se eu fosse dizer para um cara, ainda mais para o Homem Certo,
que tenho problemas com minhas funções corporais. — Olha só, eu não posso. E não quero. Agora
vou desligar. Estou jantando fora e é falta de educação ficar ao telefone.
Desligo e guardo discretamente o telefone na bolsa, pedindo desculpas a David pela interrupção.
— Não se preocupe — diz ele, tranquilo, depois estreita os olhos. — Parecia importante.
— Ah... bom... é... uma amiga! — Por que ele está me olhando assim? Parece que está tentando
ler meus pensamentos. Enquanto ele é indecifrável... porque tem Urano em Escorpião. Ah, merda. —
Hum, então, uma amiga que está com problemas com o... noivo... estão em crise, porque ela quer
ter filhos, e ele não quer nem ouvir falar... — Paro para observar sua reação. O olhar de David fica
ainda mais penetrante ou é impressão minha? A boca se contrai?
— Bem, ele não está totalmente errado — responde ele, após alguns segundos. — Hoje em dia,
trazer filhos ao mundo é bastante irresponsável.
Será que fornecem saquinhos antipânico neste lugar?
Meu telefone toca de novo, e agora estou tão agitada que atendo sem hesitação.
— O que é agora? — grito no aparelho. Do outro lado, escuto ruídos, como se alguém estivesse
esfregando alguma coisa no microfone.
— Alice! — É Tito de novo, mas dessa vez sua voz está um pouco mais distante.
— Pare, desligue isso — grita uma segunda voz, que não reconheço de cara.
— Alice, você já foi embora?
— Não — respondo, meio cansada de toda essa insistência que está arruinando minha noite.
— Eu conferi a afinidade de vocês e é horrível! — exclama Tito, mas sua voz continua encoberta
por outros sons.
— Chega, Tiziano. Já passou dos limites — diz a outra pessoa. E agora reconheço. É André. Só
ele chama Tito de Tiziano.
— Só mais uma coisinha. Entre os Quadros Astrológicos de vocês... tem a Oposição Lua-Meio
Céu! — Ele quase soluça ao dizer isso.
— Tiziano, pelo amor de Deus, eu nunca ouvi tanta tolice junta!
— Você não entende, André. Essa união é impossível, não só porque não tem comunicação, com a
Oposição Lua-Júpiter. Ou, como se não bastasse, com a Oposição Lua-Saturno, que favorece ilusões
e instabilidade... A Oposição Lua-Plutão indica violência e agressividade!
— Por favor, nós já conversamos que é altamente improvável que exista alguma relação entre
planetas e destino. Pare com isso. Seja sensato. Agora vamos sair deste banheiro. Se despeça da
Alice e desligue. Alice, por favor, não dê ouvidos a ele e tenha uma boa noite.
— Sim... — Observo David, que está brincando com o cabo da faca para passar o tempo. — As
Oposições, né?
Tito retoma a palavra, agitado e esperançoso.
— Exato. Lembre-se de que até Barba Azul devia ser charmoso, porque se casou oito vezes.
— Ai meu Deus...
— Algum problema? — pergunta David, preocupado, e, quando ele se inclina para segurar
minha mão, eu salto como uma mola.
— Ah!
— O que foi? O que ele fez? — grita Tito.
— Nada... nada mesmo. Eu só estava distraída.
Isto é um pesadelo. Eu sabia, sabia que não devia ter enviado aquela data para Tito, foi um erro.
Mas, se tivessem dito às vítimas do Monstro de Milwaukee, o serial killer, com quem estavam
saindo, elas não teriam ficado agradecidas?
— Agora podem parar, vocês dois — intervém novamente André. — Seja razoável, Tiziano, veja
o nosso caso. Poderíamos ser mais diferentes?
— Ah, e você acha que eu não conferi nossos Quadros Astrológicos antes?
A ligação cai e afasto o telefone do ouvido, encarando o aparelho, perplexa.
Delicadamente, David o tira das minhas mãos.
— O que acha de agora deixar desligado?
Só consigo fazer que sim.
— Tudo bem? Você parece nervosa. — David não espera minha resposta e acena ao garçom para
pedir água gelada. — Ficou pálida. Está se sentindo mal? — E, quando ele toca meu rosto, percebo
todo o seu calor, uma onda quente que me atravessa e chega ao coração.
Não pode ser verdade.
Dessa vez, Tito deve ter cometido algum erro. Se não, essa com certeza é a exceção que confirma
a regra. Ou a exceção que nega a regra.
Porque eu quero esse homem, continuo a desejá-lo com todas as fibras do meu corpo, e leio a
mesma coisa nos olhos dele. Inclusive agora que ele ergue minha mão e a leva aos lábios.
Ah, que se dane!
Que se dane Tito e a astrologia. Com certeza André tem razão ao dizer para eu não me preocupar.
Afinal, ele tem até uma pós-graduação, não é?
— Eu queria dizer... — recomeça David. — Na verdade, queria pedir desculpas por como esta
noite está indo. Queria conversar com você. Dizer... Dizer coisas importantes, mas é muito difícil,
porque... porque sou egoísta e tenho medo de estragar tudo. Descul...
Pouso o indicador em seus lábios.
— Não tenho o que desculpar.
Ele olha ao redor.
— O que acha de sairmos daqui? Estou me sentindo sufocado.
Realmente o local ficou superlotado; não é o tipo de intimidade que eu queria para ouvir uma
declaração.
Lá fora, uma chuvinha leve nos faz correr grudados sob uma cobertura.
— Quando eu disse que esta noite não parecia real, eu não estava mentindo, Alice. Eu me sinto
tão bem com você... E isso é um problema, um grande problema.
Sorrio de um jeito atrevido e levanto o rosto para ele, com os cílios molhados de chuva.
— Esta noite foi um sonho, David. — Não importa que por pouco não tenha virado pesadelo, com
a intromissão do meu EX -melhor amigo. — Não podemos esquecer a lógica, pelo menos uma vez?
Ele fecha os olhos e suspira, erguendo o rosto para o céu.
Sua mão segura minha nuca, me puxando para perto, contra seu peito.
Sinto seu coração batendo forte, muito forte, contra meu rosto. Ele beija o alto da minha cabeça.
— Você não sabe o que está pedindo — murmura David.
Levanto de novo o rosto para ele, abrindo caminho por entre os botões de sua camisa, o tecido do
colarinho, o couro macio da jaqueta. Encontro primeiro seu queixo, e meus lábios o tocam de leve,
com medo de beijá-lo de verdade.
Os dedos de David mergulham em meu cabelo, me puxando de leve para trás. E então seus lábios
estão nos meus, sua boca me busca de um jeito doce e intenso, me saboreando enquanto nossas
respirações se confundem com o som da chuva.
Eu o amo.
Ah, se amo.
Tito pode dizer o que quiser. Pode me apresentar, selado com o lacre do papa, o Quadro
Astrológico deste homem. Eu o amo.
Os lábios de David se afastam por um segundo.
— Alice, está tudo errado. Você não quer isso. Não pode querer...
Minha cabeça gira, as pernas estão bambas. Não entendo mais nada. Não entendo o que ele está
dizendo.
— Eu só quero isso.
— Não... não... não... — Ele continua me beijando, seus lábios procuram os meus, sua língua é
uma carícia desesperada. — Mas você não sabe... — David ofega contra minha pele, o calor de suas
palavras queima meu pescoço. — Não sabe porque nunca me perguntou nada.
Tonta pelos beijos, não vejo sentido no que ele está dizendo. Tenho a impressão de ter perguntado
muita coisa, principalmente esta noite.
Eu me afasto, mas só os centímetros suficientes para poder falar, mantendo a testa encostada na
dele, olhos fechados, porque parece que nossa pele pode rasgar se eu me descolar dele rápido
demais.
— David, nem Houdini conseguia desaparecer tão rápido quanto você quando alguém faz uma
pergunta. Eu fiz várias. Sempre quis saber tudo de você.
Sua boca se move contra a minha.
— Você nunca perguntou se eu era livre.
Suas palavras são um disparo que passa perto demais do coração. O calor de seus lábios as
encobre, tornando o que ele diz incompreensível. Não entendi bem. Não posso ter entendido bem.
— Ahm... — Minha voz está rouca, como se tivesse escalado rochas em minha garganta para
poder sair. — E não é?
Só quando ele se afasta completamente eu sinto frio, porque David agora está longe, as costas
apoiadas contra a parede do prédio.
— Não. Não sou — admite ele, esfregando o rosto, mantendo a mão sobre a boca enquanto me
olha. Talvez constrangido com o que acaba de dizer, talvez para se conter de continuar me beijando.
Sei perfeitamente o que eu deveria fazer agora. Sei que deveria me virar, atravessar de novo a rua
e ir embora.
Sei que não deveria permanecer aqui, imóvel, encarando-o, pensando que o amo. Mas não
consigo fazer outra coisa.
— Adoro você, Alice. — Ele estende a mão, sem desencostar da parede, e acaricia meu rosto.
Minha cabeça grita para eu me afastar, que Tito tinha razão, que isso é tortura, que é um absurdo
chegar tão perto da felicidade só para descobrir que existem tantas mentiras entre nós.
Mas, em vez de me esquivar, descanso o rosto em sua mão.
— O que você acha que eu devo fazer? — pergunta David, suplicante.
Então levanto a cabeça e encaro aqueles olhos que eu pensava já conhecer tão bem, que eu
acreditava esconder um homem magoado, traído, que por isso tentava me manter à distância. Agora
acho que enxergo com mais clareza, e a pergunta que ele me fez um tempo atrás assume outro
significado: Você já traiu alguém? Ele não queria saber se eu era fiel, se o magoaria como alguma
ex, mas se eu aceitaria ser “a outra”.
— Do meu ponto de vista, é muito simples — digo com a firmeza de alguém desesperada. —
Termine com ela. Fique comigo. — Fui direta, cortante, talvez até injusta com essa outra mulher
que não tem culpa de nada, como eu.
David baixa os olhos.
— Não posso — responde baixinho, quase inaudível. — Não agora, embora as coisas não estejam
muito bem. Barbara é frágil, ainda mais depois que o marido morreu.
Barbara.
Barbara, barbie Grace Kelly, impronunciavelmente bela, rica e sofisticada?
— Aquela Barbara?
David morde o lábio e assente.
— A que você conheceu no castelo — confirma. — Quando pedi a casa emprestada para as
gravações do programa, pensei que seria mais fácil só colocar você diante do fato. Eu não ia
precisar contar, só apresentá-la como minha namorada. Mas depois... quando te vi entrar, percebi
que você ia ficar magoada, e seria injusto. Eu estava sendo egoísta, não assumindo minhas
responsabilidades.
Por isso ele queria me tirar de lá.
E, quando não conseguiu, porque eu precisava trabalhar, levou Barbara embora e me mandou o
bilhete marcando o encontro desta noite.
Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori. Ela me ganha até na quantidade de letras no nome.
Nunca tive nenhuma chance. Como posso concorrer com a perfeição?
— Sou um canalha, Alice.
Fecho os olhos e me obrigo a respirar.
— Sim. É mesmo.
— Vou levar você para casa.
Levanto a mão para impedi-lo de se aproximar.
— Prefiro chamar um táxi.
26. NÃO MEXAM COM A LIBRIANA





A esta altura já posso dizer que estou preparada para rejeições. Sei como enfrentar a situação. É
uma questão de usar gavetas. Gavetas mentais. Pego as coisas que não quero ver, as situações que
não consigo enfrentar e enfio tudo em um compartimento trancado. Uma gaveta que não vou abrir,
ao menos por um tempo. Por um bom tempo.
É proibido cutucar as feridas e jogar sal; portanto, é proibido ficar em casa remoendo, pensando
no que poderia ter sido, nos olhares, nas palavras suaves, nos beijos, em todas as lembranças.
Em vez disso, estou livre para me divertir. Para ir a boates lotadas, por exemplo, e para sair com
as minhas amigas, porque assim me sinto jovem e cheia de energia.
E cheia de álcool, também. Bom, não exatamente, não estou bêbada, só um pouco tonta. Mas me
aguento de pé perfeitamente. Consigo até tocar a ponta do nariz me equilibrando em uma perna só.
Talvez o taxista que está me esperando com a porta aberta não ligue muito, mas para mim é
importante.
Realmente me diverti. Dancei, cantei... acho até que beijei alguém, mas não me lembro, não tem
importância.
Expulsei David da minha vida.
Olhe para a frente, Alice, me ordeno. Para a frente, como sempre fez.
Não aconteceu nada. Você ainda é a mesma pessoa. Ele não mudou quem você é. Fico me
repetindo isso. Sem parar.
Este maldito táxi parece nunca chegar ao destino, e o jazz que está tocando no rádio só reabre
minhas feridas.
Estou cansada. Cansada de acreditar. Cansada de me decepcionar. Estou cansada de sofrer. Estou
cansada de ter que recomeçar toda vez. Estou cansada de me apaixonar por alguém que sempre
acaba escolhendo outra pessoa. Estou cansada de ser forte. Estou cansada de me dizerem que sou
forte, como se isso fosse desculpa para me machucar. Não aguento mais. Não acredito mais.
Se o amor fosse uma glândula, juro que mandaria removê-la. Uma amígdala inflamada. As
adenoides. As hemorroidas do amor.
Pago o táxi rapidamente, querendo escapar, e me apresso para pegar as chaves e abrir o portão.
Não vejo a hora de me fechar em casa e me enfiar na cama. Quando me sinto vulnerável, a
melhor coisa a fazer é dormir. Amanhã vou estar bem de novo, pronta para não pensar mais nisso.
A luz da escada ainda está com defeito e fica piscando sem acender totalmente. Que saco!
Chamo o elevador, mas algum vizinho não muito cuidadoso deve ter deixado a porta aberta em
outro andar, porque, quando aperto o botão, ele não se move.
— O.k., quero falar com um responsável — murmuro para ninguém. Se existe um Deus, eu
realmente gostaria de trocar umas palavrinhas com Ele agora, mas me contento com um de seus
subordinados.
Começo a subir a pé. E me lembro de quando David me carregou no colo por esta escada, na
noite em que saí com o amigo de Paola.
Essa é uma das coisas em que não devo pensar. Puf. Desapareceu na gaveta impenetrável. Fora.
Passo por uma rosa amarela caída.
Minhas mãos deslizam pelo corrimão, distraidamente. Eu me recuso a chorar.
O último lance de escadas está coberto de pétalas, que a luz ilumina como um flash enquanto eu
subo.
Só agora me dou conta.
Por que há pétalas de rosa na minha escada?
De repente, David está a mil quilômetros de distância, e eu estou aqui, no presente, despertada
dos meus problemas e sofrimentos, prestando atenção no mundo ao redor.
Está escuro. Ou quase.
É madrugada. E estou sozinha.
Talvez.
Procuro o celular na bolsa, nervosa, mas meus dedos esbarram na carteira, na agenda, no
pacotinho de lenços de papel que no táxi eu não encontrava de jeito nenhum.
Eu paro, encostada à parede, prendendo a respiração para ver se escuto algum ruído.
E ouço alguma coisa, sim. Um passo.
Ando mais um pouco e vejo.
A porta da minha casa é intermitentemente iluminada.
Penso naqueles filmes em que os figurantes idiotas descem ao porão escuro com uma lâmpada
que pisca algumas vezes antes de queimar totalmente e são assassinados. Tudo porque não
chamaram o eletricista.
Mas eu estou subindo, e não descendo. Não sou uma idiota que desceria ao porão a essa hora da
noite com uma luz assim.
Há, porém, as rosas, aquelas rosas amarelas que alguém continua me enviando.
A certa altura a luz parece se estabilizar. Continua estremecendo, mas permanece acesa.
Então eu corro. Subo os últimos degraus voando, enquanto aperto a chave, pronta para metê-la
na fechadura a toda a velocidade.
Mesmo assim vejo a sombra que se destaca no próximo lance da escada, um segundo antes que a
luz se apague de novo.
— Até que enfim você chegou.
Eu me viro e solto um grito digno de um dublador de Tarzan.
Então a mão de alguém cobre minha boca.
— Shhh! Quer acordar o prédio todo?
Tento me soltar, mas o homem me segura.
— Calma, Alice. Pantufinha, calma.
Eu me aperto contra a porta de casa enquanto meus olhos o focalizam, apesar do terror e da luz
piscante.
Ele assente e me solta devagar, abrindo um sorrisão.
— Eu voltei — cantarola, todo feliz. — E então, tesouro, não está contente por me ver? Não
recebeu minhas flores?
Atrás dele, nos degraus que levam ao quarto andar, há um enorme buquê de rosas amarelas.
— Como naquele filme que você adorava, lembra? A época da inconsciência.
— A época da inocência — murmuro, tentando entender o que está acontecendo.
Mal acredito nos meus olhos e pisco repetidamente, porque, depois de uma noite como esta,
talvez eu tenha ficado meio maluca.
Então respiro fundo e pergunto:
— O que você está fazendo aqui, Giorgio?
SAGITÁRIO

Dizer que o sagitariano poucas vezes é fiel é como dizer que Hiroshima teve só algumas vítimas.
Mas ele não faz por maldade; é geneticamente predisposto à traição, tendo nascido com um senso
moral subdesenvolvido que o impede de pensar antes de agir. Contudo, se tem uma coisa de que ele
gosta é de jogar a culpa do mal-entendido em você, a mulher que ele amava e que o obrigou ao ato
terrível de levar outra para a cama.
27. GÊMEOS DA PESADA





Muito bem, acabou o mistério. Por trás de cada rosa amarela, por trás de cada pétala e,
principalmente, por trás de cada espinho, esteve sempre ele. Giorgio, o homem que partiu meu
coração. O.k., um dos homens que partiram meu coração. Mas foi ele quem deu início à
longuíssima série. Embora, na época, o evento tenha sido marcado pela frase de Paola: “Você devia
agradecer a Deus. E trocar a fechadura de casa”.
Mas eu realmente acreditava na nossa relação. Durou quase um ano, o que, para mim, que
depois de Carlo não tinha conseguido sair com ninguém nem por mais de duas semanas, significava
que praticamente eu tinha encontrado o homem da minha vida.
— O que você está fazendo aqui, Giorgio?
É que de todos, de todos mesmo, que entraram e saíram da minha vida, Giorgio é provavelmente
o último que eu esperava reencontrar. Ou que eu queria reencontrar.
— Passei para ver você, feiticeirinha.
— Às duas da manhã? Qual é o seu fuso horário, o de Shanghai?
Não estou sendo nada gentil, eu sei, e por um instante acho até que fui grossa demais sem
motivo. Mas só por um instante, porque, quando me lembro das coisas que ele fez, penso que jogá-lo
escada abaixo seria até um ato de piedade.
— Hahaha, você e esse senso de humor... — responde ele, coçando a cabeça. — Eu precisava
falar com você.
— Não podia ligar?
— Eu tentei, mas acho que você mudou de celular.
Dou um tapa na testa.
— Ah, não, é verdade! Bloqueei ligações do seu número.
Ele me encara, magoado.
— Por quê?
Suspiro. Posso fazer uma lista?
— Me deu vontade.
— Você sempre foi impulsiva — comenta Giorgio. — Minha pantufinha fogosa.
Ah, não. Pantufinha fogosa, não.
— Estou cansada, Giorgio. Podemos remarcar? — Tipo para outra vida? — Deixe seu endereço,
eu te procuro.
— Então... esse é o problema. Eu não tenho endereço. Ambra me botou para fora de casa.
Uma estranha mistura de triunfo e pena me impede de comentar a revelação com algo mais do
que um “Ah!”.
Mas Giorgio continua falando:
— Aquela safada aproveitadora. Quer o divórcio, a canalha ingrata. E os filhos, obviamente. Os
meus filhos!
— Imagino. Bom, são dela também. Se ela quisesse os filhos de outro cara, aí sim, seria um
problema. E, também, quantas vezes ela já te expulsou? — Quando nos conhecemos, a ladainha era
a mesma.
Giorgio balança a cabeça.
— Desta vez é sério. Ela quer todo o dinheiro. Aquela maldita me fez bloquear as contas e...
Enquanto isso, abro a porta de casa. Não estou com disposição para passar o resto da noite aqui
na entrada, oferecendo o ombro ao meu ex chorando pela ex dele (a mulher, diga-se de passagem,
pela qual ele me deixou).
— ... então não tenho para onde ir — conclui Giorgio, olhando em direção à porta. Minha porta.
— Como assim?
— Pois é, Alice... sei que a gente se gosta muito e sei que você me perdoou, é o seu jeito. São só
algumas noites. Meus advogados já estão trabalhando para desbloquear tudo e não vou incomo...
— Não.
— Só por uma noite! Só para eu ter uma trégua. Ontem dormi no parque... Você não imagina que
tipo de gente circula pelo parque!
— Gente má?
— Gente com cachorro! Deixam os cachorros fazer as necessidades a menos de um metro de
você! — diz ele, estremecendo.
Eu suspiro.
— Giorgio, pense, isso aqui não é ficção. Não vou hospedar um cara que foi escroto comigo, me
traiu, me usou para provocar ciúme na esposa... — Ex-esposa, ele dizia! — Por acaso eu tenho
idiota escrito na testa?
Ele estreita um pouco os olhos e encara minha testa por alguns segundos.
Deus, dai-me forças.
— Eu... não sei o que fazer... — murmura ele, baixinho, a voz falhando. — Estou sozinho...
Completamente sozinho.
Entro em casa e fecho imediatamente a porta atrás de mim, temendo que ele vire o homem
borracha e se esgueire por baixo. Mas meu coração está disparado; estou me sentindo culpada.
Que merda, penso, meio triste. Giorgio vivia me dando flores exóticas e caras, e agora compra
rosas por atacado de vendedores de rua pensando que vai me impressionar o suficiente para
arrumar um lugar para dormir.
Decido fazer um chá, porque esse encontro me deixou nervosa e sei que vou levar um tempão
para dormir. E, enquanto espero a água ferver, cubro minha culpa com biscoitos de chocolate.
Giorgio continua na escada. Apoiou a cabeça na parede e jogou o paletó sobre os ombros, para se
cobrir. Sei disso porque o vejo pelo olho mágico enquanto vou e volto entre a cozinha e o corredor.
Se ele ficar ali, vai provocar um infarto na zeladora amanhã de manhã.
Como faço para mandá-lo embora?
Ainda não sei, mas esta é a pergunta que mais vai me atormentar nas próximas semanas.
28. LIBRIANA FEBRIL





Minha cabeça pesa toneladas; sintoma de um resfriado que está acabando comigo. Como a ponta do
iceberg que afundou o Titanic, essa gripe só dá um vislumbre de como me sinto: um lixo esperando
ser descartado.
(“Se fosse um pouquinho mais organizada, Pantufinha, teria encontrado os lenços e não
precisaria encher os bolsos com papel higiênico.”)
Era a desculpa ideal para ficar encolhida na cama, assistindo a todos os filmes do meu kit de
sobrevivência, mas vim ao trabalho mesmo assim.
— Alice? Alice, você está aí? Responda, por favor! Alice!
A voz de Cristina me dá um susto, e por pouco o celular não cai no vaso.
Pois é, agora “somos amigas”. Ou pelo menos foi o que ela decidiu, só porque simpatizamos uma
com a outra quando ela foi contratada pela emissora, mais de um ano atrás. Só que o conceito dela
de amizade se baseia em sua necessidade de ter uma aliada, um apoio, alguém que a tranquilize. E
talvez, principalmente, ela precise de alguém que possa vencer em uma discussão, considerando
como estou nos últimos tempos.
(“Viu? Desentupi pra você. Nem tinha percebido que a água não escoava direito, né? Mulheres
não prestam atenção nessas coisas.”)
— Sim, estou aqui. Pode falar — respondo, completamente fanha pelo nariz entupido.
— Hum, estou atrapalhando? Você está passando mal?
Dou descarga para justificar minha saída do banheiro, embora preferisse ficar trancada lá
dentro, meditando.
— Obrigada, só estou gripada. Vim buscar papel. — Suspiro. — Eu tinha mesmo que pegar um
resfriado em maio... — comento, assoando repetidamente o nariz.
— Sim. Maio... — repete Cristina, e a observo pelo espelho do banheiro. Ela está com os olhos
baixos e os punhos apertados.
— Está pronta? — pergunto, tentando clarear a mente. Temos uma reunião daqui a pouco e
preciso tentar estar mais alerta.
(“Coma pelo menos os ovos com bacon. Vão te alimentar. Não quer um copo de leite com uísque?
Leite com uísque mata tudo, imagine se não mata esses germezinhos sacanas que estão te deixando
mal.”)
Nem sequer tomei café, porque só de pensar em engolir alguma coisa meu estômago fica
embrulhado.
— Como você quer que eu esteja pronta? — Atrás de mim, Cristina interrompe meus
pensamentos com uma voz aguda que perfura meus ouvidos. — Já olhou pra mim? Meu casamento
está chegando. Sábado eu tenho a prova do vestido, e estou enorme de gorda. Gorda. Um baiacu.
Um leão-marinho. Uma baleia. Um balão. Um dirigível...
— Acho que você pode parar, antes de chegar a planetas e galáxias. Cristina, você está grávida.
Ao ouvir essa palavra, porém, ela soluça ainda mais forte.
— E estou um monstro. Vou me casar, e as pessoas podem me confundir com o bolo de três
andares!
— Claro que não, você é mais alta do que um bolo de três andares. — Acho que essa não é a
estratégia adequada: os soluços ficam mais altos. Talvez na bagunça dentro da minha bolsa ainda
estejam os tampões de ouvido que eu usava na piscina. — Mas você é também muito mais bonita do
que um bolo. Cristina, não fique assim. Você vai se casar, isso é incrível.
(“Esta noite dormi muito mal. Seu sofá é horrível, sabia disso, Pantufinha?”)
— Eu estou acabada! Horrorosa, até meu rosto está redondo. Não é à toa que Carlo nem olha
mais pra mim. E tenho que vestir aquele troço... aquele troço branco ridículo, cheio de paetês. Vou
parecer uma bola de neve. Uma bola de boliche branca rolando pela nave da igreja. Vou ser a noiva
mais feia e mais gorda do universo.
Tento consolá-la, e queria dizer que Carlo não olhar para ela não tem nada a ver com quilos.
Bela amiga. Mas às vezes é melhor não falar nada do que usar palavras para machucar. Por isso
não me sinto culpada por não ter retornado às seis ligações de Paola, nas últimas duas semanas...
Finalmente apoio a cabeça na minha mesa, querendo apenas desaparecer no meio da multidão.
Desaparecer como um balão no horizonte.
(“Você devia parar de culpar sua menstruação e admitir que engordou. Você devia praticar um
esporte, fofinha.”)

— E aí? Terra chamando Alice. Iniciando manobras de aterrissagem. Tuuuu... tuuuu....


A voz de Tito me alcança no além-túmulo onde me escondi, e ele levanta minha cabeça pelo
cabelo.
— Aaai!
Ele me encara, balançando a cabeça, antes de me soltar. Minha testa bate de novo na mesa.
— Já cansei de pensar no assunto. Só me diz se é velho ou novo. Velho ou novo?
— O quê, Tito? Quem? — Estou me sentindo como se estivesse em um carrossel. E eu só quero
descer.
— Esse Leão misterioso. Vamos, diga.
— De novo isso? Já chega. — Não quero, não quero mesmo falar do Leão. The lion sleeps tonight,
a whim away... — Já faz um tempão que você está me perturbando.
— Duas semanas, sete horas e vinte e três minutos.
A whim away...
— Já disse que não importa. Não importa mais, acabou antes de começar. E você deveria estar
feliz, né? Ficou dizendo que eu precisava sair correndo. Tinha razão. Acabou.
— Sim, mas eu sou curioso.
— Você é bisbilhoteiro.
— Sou bisbilhoteiro. Sou curioso. E estou preocupado com você.
Ele pega um punhado de sementes da tigela na minha mesa, olha para elas, depois mete algumas
na boca.
— São ervas aromatizantes, não são para comer — aviso, embora um envenenamento leve talvez
o distraísse.
Ele faz uma careta e devolve as restantes à tigela.
— Realmente, dariam um lanchinho péssimo. E você está estranha.
Ele que come ervas aromatizantes e eu que estou estranha, tudo bem.
— Estou resfriada.
— Não estou falando por causa dessa voz fanha. Mas você não devia dormir com a janela aberta.
— E como é que você sabe que eu dormi?
Cubro o telefone com uma das mãos, como se ele estivesse sem calcinha. Mas, na verdade,
celulares não precisam de calcinha. Na verdade, sou eu que tenho um rabo preso que vai daqui a
Timbuctu, e não só com Paola, mas também com Tito, porque não quis contar nada do que me
aconteceu nas últimas semanas.
— Foi só um chute, calma.
(“Dá para perceber que está faltando um homem aqui, meu bem. Chegou a hora de ter alguém
que pense em você. Que merda, eu devia ter tido filhos com você, não com aquela safada...”).
— Viu como eu tenho razão de ficar preocupado? Acho que você está nervosa assim por causa
daquele cara.
— Que cara? Não tem cara nenhum! — exclamo, preocupada de ele ter descoberto alguma coisa
usando seus poderes astrológicos.
Tito revira os olhos.
— Alô, eu queria falar com Alice... Ah, ela ainda está no País das Maravilhas? Eu estou falando
do Leão!
— Chega dessa história. — Balanço a mão para dispensar o assunto. — Você está ficando pior
que Paola. Já falei que não tem ninguém. Estou sozinha. Eu moro sozinha — resmungo.
Embora seja mentira.
Quer dizer, não é exatamente mentira, visto que, legalmente, sou a única ocupante do meu
apartamento.
Mas tenho um hóspede. E há mais do que alguns dias... Porque já faz duas semanas que Giorgio
acampou na minha casa.
Devia ser só por uma noite, mas depois eu quis acreditar que ele tinha mudado, e resolvi não
botá-lo para fora sem lhe dar uma chance. Para falar a verdade, é até útil tê-lo em casa... É legal ter
uma espécie de amigo/empregado doméstico que me leva o café da manhã na cama e deixa a casa
limpa e o jantar no fogo para quando eu chego.
Giorgio é imprevisível e tem múltiplas personalidades: é um típico geminiano. Uma delas é a do
perfeito “gueixo”, quando ele quer. E eu precisava de um pouco de companhia prestativa.
Na minha frente, Tito pousa a mão na minha testa e balança a cabeça.
— Tome cuidado, Alice. Seu horóscopo não está muito bom por agora. Você está em uma fase
crítica, como a lagarta no casulo para se transformar em borboleta. Tem a Lua remando contra e a
Oposição de Marte em Trânsito Negativo com Urano, que sugere uma inclinação à honestidade...
Ou a Quadratura do Sol, em Trânsito Negativo com a Lua de Nascimento, que faz você se sentir
carregando o mundo nas costas, com coisas demais para pensar.
O mundo nas costas? Pelo que Tito está dizendo, todos os planetas resolveram me usar como pino
para uma partida intergaláctica de boliche.
— Queria que você se abrisse comigo, como antigamente... — diz Tito, e estou tão desorientada
pelo resfriado que sua voz soa muito longe, vinda de uma dimensão paralela. — Se não, como vou
te ajudar?
— Tenho que lembrar que você contou primeiro a Paola sobre seu caso com André? E eu que
tenho que ser sua melhor amiga? — respondo, assoando o nariz.
— Bem, só que ela é a sua melhor amiga... por isso é meio como se eu tivesse dito a você. Por
osmose.
Jogo o papel no lixo e aperto meus olhos inchados, tentando demonstrar que posso até estar
respirando desse jeito horrível e ofegante, mas ainda consigo raciocinar. Em parte, pelo menos.
— Esses seus olhos inchados me fazem lembrar Marlon Brando em O poderoso chefão... Na
verdade, estou bem nervoso. André e eu vamos almoçar com a mãe dele neste fim de semana.
— Leve uma garrafa de vinho.
— Você me acha elegante? Quero dizer, sou uma pessoa elegante, na sua opinião? Porque eu sou
um homem do espetáculo, teatral, egocêntrico... oxigenado. Acha que meu cabelo está oxigenado
demais? A mãe dele pode me achar ridículo. Eles são tão sérios... E ainda não sei o que vestir.
Abro e fecho a boca, tentando formular uma resposta.
— Bem-vindo ao clube... A verdade é que não existe a roupa perfeita para essas ocasiões.
— Não é só pela roupa ou pelo cabelo, sabe? — diz ele, os ombros se curvando.
— Ah, não?
— Claro que não!
— Ah, entendi, então não fui a única a ficar um pouco pávida com...
— Olha aí, bem o tipo de coisa que ele diria. “Pávida”.
— Significa chocada.
— Exato. É que às vezes, quando André fala, não entendo nada. Eu o amo, mas não entendo.
Dou um suspiro.
— Meu bem, isso faz parte da condição humana... Quando é que os casais se entendem?
— O.k., mas, se a mãe dele também falar assim, vou ficar confuso. E se eu entender tudo errado e
fizer um papel de mer... um papelão? Viu? Corro um risco mortal.
— Tito, a mãe do André já sabe... que vocês são um casal?
— Claro que não.
Dou uns tapinhas leves na mão dele.
— Bom, eu trabalharia nesse problema primeiro.
— Trabalhar! Que bela palavra, para quem está deitada na mesa! — diz Raffaella, atrás de mim,
de um jeito maldoso e irritado.
— Grosseria está tão fora de moda — falo entredentes, porque posso estar com o nariz entupido e
a cabeça entorpecida de Vick Vaporub, mas não significa que esqueci todo o resto. — Só estou
gripada.
— Ah! Graças a Deus! — exclama Raffaella, em um acesso de religiosidade.
— Ouch! — Tito ri e cantarola uma musiquinha sobre sagitarianos.
Raffaella o fulminaria com seu olhar injetado de sangue. Aliás, fulminaria nós dois, mas por
sorte já deve ter mordido alguém, descarregando a maior parte do veneno.
— Você é só uma babaca egoísta, isso sim. Namorou Alejandro, o.k., mas vocês terminaram... E
comigo... comigo ele podia ter algo especial, se você não ficasse se intrometendo com todos aqueles
telefonemas, todas aquelas tarefas que arrumava para ele nos horários mais estranhos. Meu Deus,
ficar ligando às três da manhã e fazê-lo sair correndo... Porque, tadinho, ele precisa do emprego.
Você fez de tudo para nos separar. Para afastá-lo de mim. A gente não tinha tempo livre. Ele não
conseguia mais nem me levar para dançar tango, com todas aquelas gravações externas! Até nos
fins de semana. Você deve estar feliz agora que ele me deixou! Nunca é o bastante para você, né,
Alice? Tirou meu trabalho e agora Alejandro. Você quer tudo. E não faça essa cara! Você não passa
de uma babaquinha maldosa e egoísta.
— Você já disse isso — resmunga Tito. Raffaella o encara, furiosa. Ele dá de ombros. — Babaca e
egoísta. Detesto quando as pessoas se repetem. É sinal de pobreza intelectual.
Ela bate na mesa com as pastas separadas para a reunião.
Mas eu me perdi na conversa; mais exatamente, na parte dos telefonemas no meio da noite.
— Do que é que você está falando, Raffa?
Faz semanas que eu e Mara paramos de tramar contra Alejandro. Foi só uma brincadeira boba,
durante o horário de trabalho. Nunca me passou pela cabeça inventar tarefas extras para ele, muito
menos programar o despertador para as três da manhã, arruinando inclusive o meu sono e
correndo o risco de cultivar mais rugas do que as que já estão me aparecendo. Aff!
— Não se faça de boba. Hipócrita! Sei que era você. Ele... ele me disse!
— Ah! — exclama Tito de novo. — Você é maluca! Mas tem razão em uma coisa, meu bem: ele
não devia ter terminado contigo, vocês dois juntos podiam até formar um cérebro inteiro.
Quando ela nos deixa em paz, provavelmente para ir se encontrar com Cristina no banheiro e
fundar o Clube das Virgens Suicidas, Tito exclama:
— Ah, os homens... — Então me olha de esguelha, com ar de quem ainda está procurando uma
chance de falar do meu misterioso Leão.
Reviro os olhos.
— Pelo menos André é diferente — digo, desviando o assunto.
— Ainda bem. Fico feliz que ele não seja do tipo que promete a lua e depois te dá tanta porrada
emocional que você só vê estrelas. Sabe, um leão em pele de cordeiro.
Sei que ele errou o ditado de propósito.
— Haha. Que engraçado. — Não tenho mais papel com que assoar o nariz e me inclino para a
gaveta, procurando alguma caixinha esquecida de lenços. Meu reino por um retalho de celulose.
— Estou falando sério. Também sou homem. Um homem maravilhoso, diga-se de passagem —
prossegue Tito. — Pode chamar de sexto sentido astrológico, se quiser, mas sei reconhecer um
cretino à primeira vista. Como esse que entrou agora, por exemplo. É um imbecil, garanto. Olhe
como anda todo sério, com esse sorriso de vendedor, depois vira e... pronto... bem dentro do
previsto, olha para qualquer coisa que pareça vagamente com peitos. Estou curioso para saber
quem é a pobre coitada que namora esse cara. É uma idiota.
Não acredito na minha sorte quando, atrás dos absorventes, desencavo um único lencinho de
papel ainda limpo.
Levanto a cabeça, esfregando o lencinho no nariz, e me viro devagar.
— Ah, merda...
— Viu o cara?
— Tito, você não tem que ir se arrumar para gravar Dor de amor?
— Esqueceu que tenho uma reunião com você esta manhã?
— Sim... Mas...Você devia se preparar mesmo assim. — Tento empurrá-lo para a porta, mas até o
comandante do Titanic sabia que ia rolar uma tragédia, depois de esbarrar no maldito iceberg. —
Adoro quando você usa aquela fantasia de pirata e acho que você podia...
Do outro lado do loft, o homem que Tito estava apontando grita:
— Pantufinha!
29. LEÕES POR GÊMEOS





Fico paralisada enquanto Tito se volta para mim. Dizer que a expressão dele é séria era o mesmo
que dizer que Nero deu uma bagunçadinha em Roma.
— Ah, Giorgio... oi. O que você está fazendo aqui?!
O som de fundo poderia ser o dos violinos de Psicose.
— Vim porque sabia que você precisava de mim, baby. — Ele esvazia uma sacolinha de farmácia
na mesa ao lado. — Chegou o vendedor ambulante! — exclama ele, em um tom animado. —
Lenços, inaladores, termômetro, pastilhas para a garganta e... Ah! Absorventes. — Ele joga tudo
para cima, como um malabarista, improvisando um pequeno show para minhas colegas. —
Internos, para vocês estarem sempre livres e belas. Conferi na sua agenda e acho que você está
para entrar naqueles dias, Pantu.
— Que homem prevenido... — comenta Tito, de braços cruzados.
Giorgio dá de ombros e beija minha bochecha.
— Não faça isso — digo entredentes, quando ele tenta me segurar pela cintura. — Eu não quero
te passar germes...
Confirmando que meu carma astrológico deve estar parecendo um quadro de Picasso, as portas
de vidro se abrem e entra Nardi (decidi que de agora em diante vou chamá-lo apenas e unicamente
de “Nardi”), que se aproxima de mim sem olhar para mais nada nem ninguém.
— Como você está? — pergunta ele, depois de segurar meu braço e me puxar para um canto.
Olho ao redor, preocupada, e percebo que, agora que estou longe, Giorgio grudou em Tito.
— Estou gripada — respondo, vagamente.
— Sinto muito, Alice.
— Vai passar.
— Não estou falando da gripe.
— Eu também não. Vai passar. — Eu me pergunto o que ele ainda quer, porque essa conversa não
devia estar acontecendo. É incômoda e errada, tanto pelo lugar quanto pelo momento, além de ser
inútil.
— Percebi que fui um... um canalha. Não devia ter saído com você. Foi como me deixar levar por
algo incrível... mas que não pode acontecer. Você quer um namorado, um futuro juntos, e eu já
tenho Barbara.
Não, Barbara, não! Realmente não quero escutar Nardi falando da namorada. Isso só vai fazer eu
me sentir mais patética ainda.
— Obrigada por querer me fazer reviver toda aquela conversa constrangedora da última vez,
mas realmente não precisa. Eu lembro muito bem.
— Só queria dizer que, se eu não gostasse de você, se não me importasse nem um pouco...
acredito que teria me aproveitado dos seus sentimentos.
Isso me deixa ainda mais irritada. Fere meu orgulho ouvi-lo falar dos meus sentimentos (os
sentimentos eram só meus?), como se não tivesse nada a ver com ele.
— Acho que você está exagerando — respondo, fitando-o nos olhos. — Foi só um beijo. Não
estamos no século dezenove, você não se comprometeu para sempre. Para mim, são águas
passadas. Estou aqui para trabalhar e acho que você também.
Eu me afasto e meu coração parece estar em alto-mar no meio de uma tempestade, então
mergulha direto em queda livre quando vejo Giorgio ir ao encontro do Presidentíssimo com a mão
estendida e o sorriso puxa-saco digno de um ator consumado.
— Giorgio, pelo amor de Deus! — chamo, agarrando-o pela camisa. — Não é uma boa hora.
— Baby, não brigue comigo, você sabe que eu sou sensível. É que eu me preocupo com você, com
o jeito que te tratam aqui. Eles precisam saber seu valor!
— Muito fofo da sua parte, obrigada, mas tenho que trabalhar e você não pode ficar aqui.
Ele me responde fazendo aquele olhar do Gato de Botas.
— Você fica tão linda bancando a empresária, Pantufinha. Ah, eu devia ter me casado com você,
e não com aquela canalha!
É agora ou nunca, digo a mim mesma, porque, quando Giorgio ataca com
“Aquelacanalhadaminhaex”, acabou. Ele vai ficar falando disso por horas.
— Vi que na loja da esquina está tendo promoção de Rolex! — digo, usando minha última
cartada.
— É mesmo?
Perigo evitado: bens de luxo são para Giorgio como a criptonita é para o Super-Homem. Têm um
efeito catalisador, e qualquer outro pensamento é imediatamente pulverizado. Foi uma das coisas
que o ferrou. Giorgio se casou com uma mulher exatamente igual a ele, que agora está tentando
depená-lo até o último par de meias para fazê-lo pagar pelas aventuras extraconjugais. E, além
disso, ainda tem o pôquer on-line e o clube de strip-tease onde a câmera do detetive particular o
flagrou em uma festinha que faria Medo e delírio parecer um filminho caseiro.
Para piorar as coisas, David passa ao meu lado e me olha demoradamente, daquele seu jeito
magnético. Finjo não perceber, não ligar, estar totalmente no controle. Finjo ser uma mulher
completa, confiante, séria, que sabe o que faz e o que deseja, uma cozinheira excepcional, campeã
de lançamento de disco, uma bailarina aplaudida de pé ao fim de O lago dos cisnes... Resumindo, eu
o olho de volta, não consigo evitar, e para não parecer o tipo patético que fica babando por um
canalha, só me resta assoar o nariz.
— Pantufinha, pelo menos tome os remédios — diz Giorgio, praticamente espetando meu nariz
com o inalador. — Senão, você não vai parar de se remexer na cama e de roncar, como na noite
passada.
Infelizmente, David ainda está me encarando. Ele fala com o Presidentíssimo, mas lança olhares
na minha direção, e eu odeio me sentir tão vulnerável.
Depois de olhar torto para Giorgio, Tito se vira para David e o presidente. Depois para mim. Ele
cruza os braços e me encara como se me desafiasse a desmentir. Coisa que eu não poderia fazer nem
se quisesse, com um inalador enfiado no nariz.
— Agora eu entendi! — diz ele, após destampar meu nariz e devolver a arma a Giorgio, para
depois me puxar para mais longe. — Achou que ia esconder de mim? Que eu não ia perceber,
sabendo o signo dele e tudo o mais?
Hesito, bagunçando os papéis em cima da mesa.
— Não, tudo bem, mas já acabou...
— Alice, eu não falo por diversão que os Quadros Astrológicos das pessoas não combinam com o
seu. Mas, neste caso, isso está muito claro. Já observei vocês, e agora estou mais convencido do que
nunca do que eu disse sobre o Leão. Olhe para você. Ver os dois juntos só me dá ainda mais certeza
de que esse Leão pode ser o seu fim. Você está arrasada. E isso só pode piorar.
Meus olhos se enchem de lágrimas e minha garganta se fecha completamente.
— Não posso fazer nada — admito, com a voz embargada. David está aqui, a poucos passos de
mim, e tenho que me comportar como se fôssemos dois estranhos. — Tito, eu estou apaixonada por
ele. É horrível, sei. Não sei o que houve, não consigo parar de pensar nele, de amá-lo, apesar de
tudo.
Tito me encara de olhos arregalados, depois pousa a mão na minha testa.
— Deve ser a febre. Acho que você está delirando. — Ele desce a mão para o meu ombro
enquanto nos dirigimos à sala de reuniões. — Não vou te deixar afundar desse jeito! Eu... eu vou te
salvar!
30. O LEÃO FUGAZ





Números. Números e palavras.
Finalmente entramos em reunião e o clima ficou sério, como se, de repente, o cenário tivesse
mudado e já não trabalhássemos em televisão, mas em um banco, ou como se estivéssemos
planejando uma batalha, com muitos mapas e estratégias.
Não se fala de roteiros, de tiradas, de criatividade; em torno da mesa oval, meu programa é
dissecado algebricamente, transformando-se em segmentos de equações que correspondem a faixas
de horário, publicidade e alcance.
Parece que estou em outro lugar, alheia ao que acontece ao meu redor, como se meu corpo fosse
só um manequim de borracha.
É tanta gente falando que, dentro da minha cabeça, o burburinho se torna parecido com o ruído
do vento. Escuto apenas palavras esparsas, como “índice de aprovação”, “aumento das entradas
publicitárias” e “propostas de fusão”.
Enquanto o Presidentíssimo fala, expondo as maravilhas do mundo televisivo, os olhos de
David... de Nardi não deixam os meus.
Tento com todas as forças me impedir de ler qualquer coisa neles. Arrependimento. Tesão.
Carinho. Dor.
Digo a mim mesma que são reflexos do que sinto. Que só eu sinto.
Ele não quis se aproveitar dos meus sentimentos...
Não posso confiar em ninguém além de mim mesma. Talvez nem em mim mesma, já que sempre
errei nas minhas escolhas e na interpretação que faço das pessoas, principalmente dos homens que
encontrei.
Na folha diante de mim está escrito o nome do programa que eu criei: Guia astrológico para
corações partidos.
Por que escolho sempre o homem errado? Talvez o homem certo exista, talvez esteja mais perto
do que imagino, e eu não lhe dê chance de se aproximar.
Então pesco um nome no meio das vozes. David se levanta, a cadeira arranhando o chão.
O Presidentíssimo ainda está falando:
— Já que estão presentes todos que trabalham no Guia astrológico, eu diria que podemos fazer
uma breve digressão sobre a última edição.
David baixa os olhos por um momento, como se procurasse algo entre os papéis à sua frente, mas
isso dura apenas um instante.
— Sim, pois é, pensamos que a última edição do Guia astrológico para corações partidos merece
um evento especial. A audiência está nas estrelas... hã... e isso não foi um trocadilho.
Ninguém ri, e fico um pouco satisfeita de vê-lo atrapalhado. Bem-feito para ele, pode continuar
fazendo papel de bobo diante de um público difícil.
— Hum... acho que devemos encerrar em grande estilo, com um convidado realmente especial.
— O professor Klauzen — interrompe o Presidentíssimo, impaciente. — Das clínicas Klauzen,
hoje famoso em todo o mundo por seu método de programação dos nascimentos.
— Do Instituto Klauzen de Colônia? Da Fundação Klauzen de Hamburgo? — pergunta Tito,
arregalando os olhos, visivelmente eufórico diante da notícia.
— Sim, de tudo isso e muito mais — confirma o Presidentíssimo.
— Caramba, não vai ser fácil fazer uma entrevista com ele aqui no estúdio.
— Não será bem assim. Klauzen é um homem peculiar e muito ocupado. Então nós é que vamos
até lá. Gravaremos uma entrevista, Marlin e Nardi vão a Paris para isso.
— Por que não eu? — pergunta Tito, ressentido.
— Porque você já tem outras coisas a fazer aqui para o programa e porque, com Marlin,
conseguimos o patrocínio de uma grife de roupas femininas, que ela vai usar nas filmagens pela
cidade.
Dá para ver que Tito está morrendo de inveja, mas reage bem. Provavelmente a convivência com
André tem seus méritos.
— Já que conhece o professor pessoalmente, Nardi vai acompanhar Marlin. — O
Presidentíssimo sorri, satisfeito. — Encare isto também como um pequeno prêmio, David, pois
muito do sucesso atual da rede é mérito seu e de sua visão.
David assente sem sorrir.
— Obrigado, presidente — diz, retomando a palavra. — Bom, voltando a assuntos mais gerais...
Com a proposta de aquisição feita pelo grupo World, em forte crescimento no mercado televisivo, é
evidente que acertamos em apostar na renovação da nossa oferta. As novas edições deixaram o
público curioso, chamando para a Rede Mi-A-Mi a atenção da publicidade, criando novos
segmentos de mercado. Estou feliz que meu tempo aqui termine deixando perspectivas tão boas
para a empresa.
O Presidentíssimo aplaude, seguido por Marlin e todos os outros.
— O senhor fez um ótimo trabalho, Nardi. Vai nos fazer falta.
Tenho a impressão de que todo o sangue se esvai do meu corpo, embora eu não tenha feridas
abertas. Meu sangue se comprime sei lá onde, antes de começar a correr por minhas veias todo de
uma vez.
David vai embora.
David vai embora. Seu sorriso torto. Nossas briguinhas. Os mal-entendidos. Seus toques. Seus
beijos.
Eu sabia que seu cargo não era permanente, mas não fazia ideia de até quando duraria, e só
agora me dou conta de que, provavelmente, depois que ele for a Paris, não o verei mais.
Fico gelada e sei que é por culpa do buraco, do buraco em minha alma.
Há muitos apertos de mão, trocas de sorrisos, tapinhas no ombro, uma risada alta demais para
não ser vulgar. Enquanto recolho os papéis da mesa, sinto os braços e as mãos formigarem.
Parece que tudo acontece com o dobro de velocidade, enquanto tento me manter com os pés no
chão, porque tenho a impressão de que o movimento da Terra pode me virar de cabeça para baixo.
Faço um esforço para me levantar, mas algo acontece. Parece que meus pés afundam no chão,
que as paredes se dobram para cima de mim.
A mesa vem ao meu encontro.
E, de repente, não vejo mais nada.
31. O GOLPE FINAL DO LEÃO





Estou em um aposento escuro. É o meu quarto. Meu quarto da infância, com a escrivaninha, a cama
embutida no armário e a prateleira com meus brinquedos. Suspiro, aliviada.
Foi tudo um sonho. Apenas um sonho sobre meu futuro, como em Dallas, e Bobby não morreu, só
está tomando banho. Eu me aconchego no edredom. Hoje é segunda-feira e na escola me esperam
duas horas de aula de desenho. Por sorte me deixam usar o walkman, gosto de desenhar ouvindo
música.
Sinto uma leve fisgada, a pontada estranha de nostalgia.
Deve ser porque ainda estou sonolenta, e isso faz uma lágrima rolar pelo meu rosto... mas parece
que estou me esquecendo de alguma coisa.
— Você está com uma carinha...
Minha colega da escola, Giovanna, quer ir ao cinema quarta-feira à tarde.
— Paola, calma. Entendo que você é canceriana e está preocupada, mas Alice vai ficar bem, só
está com febre.
Mas eu estou economizando a mesada para comprar minha primeira fita de vídeo, a daquele
filme que passou na tevê no mês passado, O feitiço de Áquila.
— Não, não é só febre! Primeiro essa história dos signos e agora ele!
Talvez papai depois entenda o quanto quero o aparelho de videocassete e me compre um no
Natal.
— Por favor, não coloque a astrologia no meio, hein? Vamos separar os amigos dos inimigos. Se
me colocar no mesmo nível desse... desse sujeitinho de Leão, juro que faço um escândalo.
— Tito, você chegou agora na vida de Alice, não faz ideia do que esse idiota já aprontou.
— Ei, eu estou bem aqui! O idiota tem nome e é Giorgio. E eu sou de Gêmeos.
— Não! Você... você é Leão!
— Gêmeos.
— Leão!
— Gêmeos!
— Tito, esse traste é geminiano. Não vale nada, mas me lembro de uma festa de aniversário dele,
e foi no início de junho.
— Você se lembra, né? Que maravilha aquela festa havaiana, tinha um monte de garotas de
saiote, na piscina... Eu faço festas ótimas!
— Realmente, isso é típico de Gêmeos...
— Ah, eu lembro mesmo! Lembro melhor ainda das duas mulheres que peguei com você na
sauna. E elas não estavam de saiote...
— Bem, era um presente de aniversário. Eu não podia recusar...
— Nem vem com essa!
— Vocês querem café? Não, talvez seja melhor camomila. O que acha, Guido?
— Com certeza. Uma garrafa de camomila para todos, Adalgisa. Urgente!
Um burburinho encobre a voz dos meus pais.
Meu Deus, como eu queria que ainda fosse a década de 1990! Era tudo mais simples. A escola, o
estudo, as férias, o amor, o futuro, tudo parecia possível e ao alcance da mão. A vida com a qual eu
sonhava estava tão perto, e o tempo era um mar infinito e sem forma que nem mesmo todas as
fantasias conseguiam preencher. Agora tenho mais do que nunca a impressão de que o tempo é uma
linha finíssima, sobre a qual caminho na ponta dos pés e mesmo assim tenho dificuldade de manter
o equilíbrio.
Mas foi só um desmaio, porque estou doente, estava na sala de reuniões e fazia calor, porque
Giorgio voltou para minha vida cheio de prepotência, porque Carlo vai se casar com Cristina
mesmo estando envolvido com outra, porque Tito me dá conselhos astrológicos sobre quem
namorar, mas não compreende o próprio namorado, porque eu não deveria ter me apaixonado por
um Leão com um Quadro Astrológico tão desastroso.
Porque David vai embora.
— Pantufinha! Acordou?
A porta do meu quarto se abre, e a luz invade o ambiente como uma lâmina.
Talvez ele vá embora se eu não responder, se fingir que ainda não recobrei os sentidos.
— Baaaaaby, responde!
Pronto, esquece. Meus tímpanos agradecem. Mas só abro os olhos quando sinto um tapinha, e
então o encontro a um centímetro do meu rosto.
— Você acordou, Pantufinha! Finalmente.
Ele abre as cortinas, todo agitado, como um filhote insuportável de poodle.
— Seu cretino, você a acordou! — exclama Paola na porta.
Puxo a coberta acima da cabeça, instintivamente, porque as broncas de Paola são muito piores
do que eram as da minha mãe.
Só quando ela o agarra pelo braço noto que Giorgio está com um olho inchado e roxo.
— Quando uma pessoa sofre uma concussão, não se deve deixá-la dormir, não sabia, Paolinha?
— Quem tem concussão é você, e desde que nasceu. E não se atreva a me chamar de Paolinha,
Pantufinho, ou vai acabar com um salto de sapato espetado na jugular.
— É só um resfriado — intervém Tito, tentando acalmar os ânimos, graças a Deus. — E hoje de
manhã eu estava dizendo a ela que a Quadratura do Sol, em Trânsito Negativo com a Lua de
Nascimento, podia causar problemas.
— Chega dessa palhaçada! Não é à toa que ela está tão confusa, com você buzinando no ouvido
dela por meses!
Eu avisei. Quando Paola está atacada, não sobra ninguém vivo. Tito começa a se defender como
pode.
— Eu só estava tentando ajudar, já que o radar dela para os homens funciona pior do que um
robô doméstico fabricado na China. E preciso lembrar que você arrumou para ela um encontro com
aquele seu amigo ariano, Luca, que a largou na metade do primeiro encontro, deixando-a bêbada no
meio da rua?
— Ah, claro. Porque você fez um ótimo trabalho com Alejandro. Parabéns.
— O que isso tem a ver? Eu disse que era uma péssima ideia sair com aquele dançarino de tango
idiota. Nunca se deve confiar cegamente em um sagitariano sem verificar o Quadro Astrológico. E o
dele era péssimo.
— O que não se pode dizer de André... que agora é seu namorado.
— Esse foi um golpe baixo, Paola! Eu avisei pra ela...
— Não, Tito. Não é golpe baixo, é a verdade. Alejandro não deu certo e o Quadro Astrológico não
combinava com o de Alice. André não deu certo, embora o Quadro Astrológico combinasse com o
dela. Por quê? Porque eles são pessoas, e não signos. E Giorgio? Ele é um imbecil porque é
geminiano? Não esqueça que você também é!
— Com certeza ele tem um Mapa Astral horrível.
— Olha só, eu tenho um ótimo senso de direção. Nunca tive que pedir informação na estrada e
nunca precisei de um mapa rodoviário — interrompe Giorgio.
— Cala a boca! — respondem Paola e Tito.
— Já cansei de vocês! — explode meu ex-namorado. — Agora me deixem ficar com a Alicinha.
Você nem sabia o que fazer quando Alice desmaiou há pouco, meu caro cigano com bola de cristal,
só começou a chorar como uma criancinha. E a mandona aí do seu lado nem estava presente.
Chegou depois, e só para arrumar confusão.
— Já você, querido geminiano ex-leonino, chegou na hora certa para levar um soco de Nardi. Só
fiquei com pena de não ter feito isso eu mesmo.
Descubro a cabeça. Ouvi bem? Por que Giorgio teria levado um soco de David?
— Hã, desculpa interromper, mas...
— Está viva!
Giorgio pula em mim como se tivessem acabado de me tirar miraculosamente ilesa das ferragens.
— Deixe ela respirar! — diz Paola, dando um tapa no braço dele.
— Sai daqui, sua bruxa!
— Parem com isso! — grito tão alto que minha cabeça dói. Mas consigo fazer todos se calarem
por um instante.
— Alguém pode me explicar o que aconteceu?

Da cama, fito os três suspeitos que se entreolham, furiosos. E a história que eles contam parece um
daqueles filmes nos quais a verdade é sempre filtrada por um ponto de vista sólido e totalmente
parcial.
PAOLA: Candy, Candy, a grande batalha

Eu estava na casa da minha mãe, ajudando-a a fazer lasanha. Você conhece as lasanhas da minha mãe, né? Sabe há quanto tempo
eu suplico pela receita. Agora, depois que ela operou o tendão de aquiles, na semana passada, percebeu que não é eterna e que não
pode levar o segredo para o túmulo, aí decidiu me contar. Então você vê que, quando Tito me ligou, eu abri mão de uma coisa muito
importante para vir resolver seus problemas.
Tentei acalmá-lo por telefone:
— Tito, Tito, o que está acontecendo? Eu não entendo nada, se você fala chorando. Respire fundo. Isso. Respire! — Tive que falar
com ele como se falasse com um bebê.
— É a Alice! Vem logo, ela está mal... Eu... eu não sei mais o que fazer! Me ajuda, Paola! Me ajuda! Só você pode salvá-la.
— Mas eu estou fazendo lasanha!
— Deixa a lasanha pra depois! Pode não ter “depois” pra Alice.
Aí ele desligou.
Então larguei o rolo para massa e saí correndo. Por sorte, sempre tenho no carro a maletinha de primeiros-socorros. Melhor
prevenir...
E quando cheguei na Rede Mi-A-Mi... Caramba, eu não sabia se ia conseguir salvar todo mundo sozinha. Apertei a maleta contra
o peito e abri caminho por aquela multidão histérica, até que encontrei você nos braços de Tito. Ele estava te sacudindo e chorando
como um desesperado.
— Fale comigo, Alice! Fale comigo! — gritava ele.
Tito estava tão descontrolado que precisei dar um tabefe nele.
— Bom, agora me escute. Saia pra lá. Já cheguei. Eu cuido disso. Tudo bem?
Ah, os homens! Não aguentam ver ninguém passando mal. Giacomo foge para o porão no primeiro sinal de que Sandrinho vai ter
cólicas.

Talvez uma perda de consciência não devesse ser comparada com o ataque de diarreia de um
recém-nascido, penso. Mas quero bem a ela e compreendo o quanto a torna feliz poder jogar
Operando. Então deixo-a tocar minha testa para ver se estou ardendo de febre, me baixar a
pálpebra inferior e perscrutar meu olho com a determinação de uma bruxa lendo borra de café.
— Depois, chamada a ambulância — prossegue minha melhor amiga —, eu o vi. Vi este imbecil
do seu ex estapeando as pessoas à direita e à esquerda por todo o salão. Um espetáculo vergonhoso.
— Vergonhoso, exato! — interrompe Giorgio. — Há pessoas que não fazem a mínima ideia de
quais são as regras básicas de um combate corpo a corpo.
GIORGIO: Rambo, Apocalypse... now!

Milão. Merda. Estou de novo em Milão. Todo dia penso que vou acordar outra vez na selva.
Farejo o ar, sentindo na pele que há algo que não me agrada. Silêncio demais. Irreal demais. Resumindo, é muito silêncio irreal
para meus sentidos não me dizerem que alguma coisa está prestes a acontecer. E quando meus sentidos dizem isso, ah, pode apostar,
algo está prestes a acontecer.
Respiro mais fundo. Adoro o cheiro de napalm de manhã. É o perfume da vitória. Embora sejam 12h45 e eu não possa mais dizer
que é de manhã. Não importa.
Há duas mulheres, duas civis, de olho em mim. Poderiam até ser espiãs, então me aproximo e tento distraí-las com a visão do
meu corpo, os músculos tensionados enquanto pratico alguns movimentos de Ba Ji Quan.
— Lembra o Ba Ji Quan, Pantufinha?
— Ba Ji o Quê? — pergunta o homem usando maquiagem.
— Ba Ji Quan — repito. — É uma arte marcial chinesa. Sou mestre nela, modéstia à parte. Aprendi quando estava na China e
lutava nas jaulas.
— Pena que depois abriram as jaulas.
Paola. Eu a encaro de olhos estreitados, querendo fuzilá-la, ela e seus peitos incríveis. Parece não querer aceitar que tem à sua
frente um especialista em técnicas de guerrilha, um homem que é o melhor com fuzis, com facas e até de mãos nuas...
Apesar das duas civis que tentam bloquear minha visão, avisto algo adiante. É um energúmeno de quase dois metros que está
levando você embora.
Essa era a minha missão. Minha única missão.
Então pulo nele e grito:
— Deus perdoa, eu não! — Em chinês, obviamente. Para criar um clima.
E, quando arranco você das garras dele, tento de todo jeito te reanimar. Você não está respirando. Sorte sua, eu tenho uma
espécie de diploma em medicina de emergência, então sei o que fazer em caso de parada cardíaca. E, mesmo não estando com meu
canivete automático, que usaria para fazer um furo na sua garganta para facilitar a respiração, me empenho em uma respiração
boca a boca e uma massagem cardíaca.

— Ele teria quebrado suas costelas se Nardi, que estava te levando para o sofá perto da janela, não
tivesse dado um soco nele.
— Cale a boca, homem com rímel.
— Idiota, Alice só estava desmaiada e você queria fazer um furo na garganta dela!
Tento me libertar, mas são oito me segurando, tentando aplacar minha fúria. Quando me solto, me atiro no homem que me deu o
soco e me impediu de ajudar você. Não vejo mais nada. Fumaça, sangue.
— “Na cidade, a lei é você” — digo a ele. — “Aqui sou eu. Pode esquecer. Me solte, ou vou começar uma guerra que você nem
imagina.”
É uma fala de Rambo. Sei de cor.

— Obviamente, grito isso em chinês, Pantufinha. Você sabe que, quando estou furioso, sempre falo
em chinês.
É verdade, Giorgio fala chinês. E lituano. É especialista em artes marciais. Tem um diploma em
ciências políticas e outro em história das filosofias orientais. Etc. etc. É verdade, à primeira vista
ele pode parecer um idiota, e de fato é, mas sabe de um monte de coisa que, embora aparentem ser
incríveis, nele são completamente inúteis.
Segundo Paola, o cérebro dele deveria ser doado à ciência, mas imediatamente, para fazer um
favor ao mundo.
Antes eu achava todas essas excentricidades maravilhosas: mais do que um príncipe encantado,
ele era um príncipe eclético. Eu pensava que com ele minha vida seria cheia de aventuras, nunca
banal. Precisei de meses de terapia com Paola e de um curso de ioga para perceber que terminar foi
a melhor coisa.
Apesar de tudo, porém, não consigo desgostar dele agora. Quando estávamos juntos, ele me fazia
sentir a mulher mais linda do mundo, e eu experimentei uma vida que muitas garotas só vivem
através de romances e revistas. A tímida secretária que encontra o sheik. A garçonete que casa com
um príncipe-herdeiro. A produtora de tevê que conquista o extravagante bilionário deprimido com
a triste história de seu casamento destruído. Pena que tenha sido ele a destruir o casamento (várias
vezes, ao que parece), aplicando-se a isso com certa dedicação.
— Agora me explique: o que deu em você? O que deu em você para voltar com esse cara? —
reclama Tito, apontando para Giorgio. — Depois de tudo que eu te ensinei!

TITO: Jornada nas estrelas, a última fronteira.

Data Juliana: 2 456 402,92. Latitude: 45.28. Longitude: -9.12. Planeta: Terra.
O comportamento da Libra já estava me deixando preocupado nas semanas anteriores, e não só por causa do Trânsito Negativo
entre Marte e Urano que a deixa inclinada a tomar más decisões, mas também e principalmente porque ela mesma confessou ter
saído com um Leão com Ascendente em Libra, um homem com um Mapa Astrológico que em combinação com o dela teria resultados
potencialmente desastrosos.
Então, hoje cedo, depois de conferir seu horóscopo com atenção, decidi encará-la, querendo atenuar seu Trânsito Negativo com a
Lua de Nascimento dando meu apoio incondicional.
Não é do meu feitio errar tão feio o signo de alguém, mas Libra me deixou confuso de propósito, me dando a data errada, e meu
Mercúrio em Touro deve ter feito o resto, me deixando cego.
Estava irritado com ela, então fiquei quieto no final da reunião, em vez de ir comemorar nosso sucesso, como o Trígono de Saturno
havia anunciado. Eu não tinha dado muita importância à carga excessiva da Quadratura do Sol, em Trânsito Negativo com a Lua de
Nascimento, que causou o desmaio dela.
Infelizmente tenho Netuno em Sagitário, o que me impede de ser prático em certas situações, mas quando o outro geminiano
começou uma luta com...

Tito me encara, o queixo caído.
— Com... Nardi — diz ele. Depois balança a cabeça na minha direção e murmura: — O Leão. O
Leão tentou proteger você.
Mordo o lábio e baixo os olhos.
— Continue...
Mas não dá tempo, porque meus pais entram no quarto, muito agitados.
— Você está na TV! — exclama minha mãe, apertando o controle remoto da televisão do meu
quarto.
Não acredito no que vejo: no telejornal estão falando de uma briga ocorrida “nos estúdios de uma
conhecida emissora local”.
— Ai meu Deus.
Quando a matéria começa, parece Tiros em Columbine. Ou um filme de guerra dirigido por Lars
von Trier, todo gravado com a câmera no ombro e com movimentos bruscos. Um dos repórteres
explica diante da câmera que a equipe estava saindo para entrevistar um jogador de futebol, mas
que ele e o operador foram atraídos de volta pelos gritos vindos do loft das salas de produção. Atrás
dele dá para ver meus pés.
— Ai meu Deus — repito, e meu pai me dá um tapinha no ombro, tentando me confortar. — Eu
estou sem um sapato! Apareço na TV... e estou sem um sapato! — E também estou pálida e de boca
aberta. Só falta mesmo um fio de baba escorrendo dos lábios. Um desastre. Olho para Tito com
raiva, já que é ele me segurando. — Meu cabelo está na cara! E você nem fechou minha boca!
Ele cobre o rosto com as mãos.
— Desculpe! — diz ele, e explode em soluços. — Eu estava apavorado!
Então aparece Paola: usando marias-chiquinhas louras, com a maleta de primeiros-socorros,
jaqueta e botas de couro, parece Candy, Candy versão mangá Cyberpunk.
Em uma das tomadas do telejornal dá para ver Giorgio, que surge de um grupo de pessoas; deve
ter subido em uma mesa. Então ele pula, aos gritos, no meio da confusão.
— Olha, olha, escutou, Pantufinha? Shàngdì de kuānshù, wo bù zhīdào! — exclama ele. — Frase
forte, hein? Eu fiz eles verem com quem estavam lidando.
Eu só consigo murmurar “Ai meu Deus” pela terceira vez, como um mantra. Depois me escondo
debaixo das cobertas e tenho vontade de desaparecer.
Ainda escuto as vozes deles. Mãos me tocam. Não. Ainda estou com febre.
— Vão embora — digo. — Vão embora, todos vocês.

Preciso resolver as coisas. Tomar uma posição. Uma direção. Ter alguma ideia. Mudar de
identidade. Entrar para o programa de proteção à testemunha.
Só consigo pensar no mico que paguei em rede nacional.
E em David pulando em Giorgio para me defender. Ou foi só porque Giorgio o agrediu?
Não é só porque desmaiei que posso pensar que o homem que me salvou é o Príncipe Encantado.
É tudo besteira, eu deveria me concentrar em coisas mais importantes, tipo a carta de
advertência que com certeza vou receber. E isso se eu tiver sorte, porque Giorgio também deu uma
rasteira no Presidentíssimo naquela espécie de briga de bar, e o limite máximo para me demitirem
por justa causa pode ter sido atingido.
Como isso foi acontecer?
Paola tem razão quando diz que preciso ter mais amor-próprio, que não posso deixar as pessoas
invadirem meu espaço. Mas, por outro lado, Tito também tem razão quando diz que generosidade
faz parte do meu Quadro Astrológico. É a Lua em Peixes que me torna gentil demais e inclinada a
cuidar das pessoas.
Por exemplo, eu nunca conseguiria botar Giorgio na rua, mesmo depois de tudo o que ele fez. Se
tem uma coisa que aprendi com Tito foi que nossas identidades são escritas na hora do nascimento.
E, infelizmente, ser tão estranho e imprevisível é da natureza de Giorgio. No fundo, ele não é má
pessoa, só é hedonista ao extremo. Para ele, negar-se um prazer seria como espancar uma criança
ou roubar a pensão de uma velhinha: um crime contra a moral.
Pensando bem, é tudo muito claro, ou melhor, óbvio. Quando olhei o Quadro Astrológico de
Giorgio, alguns dias atrás, encontrei correspondências que me deixaram de cabelo em pé: a Casa VI
em Leão insinua seu amor por bens de luxo; e Marte em Câncer determina sua postura meio
ditatorial e sua possessividade nas relações.
E David? Com Júpiter na Casa IX , é óbvio que ele seja tão nômade, enquanto Vênus na Casa XII
diz claramente que ele é alérgico a intimidade. Barbara nunca vai pedir para eles morarem juntos,
para David não atrapalhar a criação de seus filhos. Por isso também nunca vai pedir filhos a David,
o que o faz se sentir livre. É a velha história da coleira com guia bem longa.
Sobre Alejandro há pouco a dizer. As correspondências, depois que aprendi a lê-las, eram um
farol na noite: a Casa VIII em Câncer, unida à Lua na III e a Mercúrio e Vênus na I, sublinhavam
como um pisca-pisca que ele busca prazer desesperadamente, que sua autoestima é totalmente
ligada à sexualidade, e isso o faz passar de uma mulher a outra.
Preciso de mais alguma prova, Meritíssimo?
De agora em diante... ou Zodíaco, ou morte.
CAPRICÓRNIO

O capricorniano tem um senso de humor digno de uma secadora de roupas, mas, lá no fundo, é
um cara sério e fiel. Ele quer uma relação duradoura. Com você. Principalmente se, depois de
conferir sua declaração de renda, ficar sabendo que você está para herdar a fortuna de alguma tia
velha. Pode preparar o vestido de noiva... e o contrato de comunhão de bens.
32. TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER SOBRE O
HORÓSCOPO (MAS NUNCA TEVE CORAGEM DE PERGUNTAR)





— Então, pela sua data de nascimento, deduzo que o senhor é... — Mordisco a base da caneta sem
desviar os olhos dele.
— Peixes.
— Peixes... — repito, anotando. — Pode me dizer também a hora e o lugar, por gentileza?
— Nasci em Milão, por volta das três da tarde, acho.
— Bom.
Digito velozmente no meu tablet e me perco na leitura.
O homem diante de mim suspira.
— Senhorita, vai querer as cem gramas de presunto, ou quer saber também quanto eu pesava no
momento em que nasci?
Levanto a cabeça bruscamente e o analiso, estreitando os olhos. Então mordo o lábio.
— Hmmm, não. Melhor não.
E, sem acrescentar mais do que um aceno apressado, viro as costas e saio às pressas da loja.
Com este são cinco. Talvez eu devesse pensar em mudar de casa, ou de bairro, porque isso está
ficando um pouco incômodo.
Por exemplo, um dia desses descobri que meu cabeleireiro tem a Casa VIII em Peixes, e isso
significa que ele é propenso a usar drogas. De fato, a julgar pelos penteados de algumas clientes, é
bem provável que use.
Também notei que o açougueiro está com um hematoma entre o amarelo-limão e o verde-
aspargo, e minhas suspeitas encontraram confirmação quando soube que sua Conjunção Saturno-
Plutão favorece doenças raras. Quer dizer, não quero ter que me tratar de alguma coisa da qual nem
consigo pronunciar o nome.
Também tive que mudar de médico: ele tinha Mercúrio em Gêmeos, e não é confiável, porque isso
costuma ser indício de superficialidade.
E agora fico sabendo que o cara do supermercado é pisciano! Todo mundo sabe que os piscianos
são mentirosos, e, com Vênus em Capricórnio, ficam muito frios e calculistas.
A consequência disso tudo é que acho que andei pelo menos uns cinco quilômetros hoje. Quando
entro em casa, estou exausta e muito tentada a deixar o telefone tocando na bolsa, mas reconheci o
toque de Paola, e não quero que ela pense que ainda a estou evitando.
— Por que você está ofegante? — pergunta ela, quando eu deixo escapar um gemido.
— Andei pelo bairro todo para fazer as compras de casa.
— Mas não tem um supermercado aí do lado?
— Ahn, tem, mas... Sabe quanta gente trabalha em um supermercado? Eu não ia conseguir olhar
o horóscopo de todo mundo, de todos os turnos, e por aí vai.
— Alice, escute, essa história do Zodíaco está começando a me preocupar.
— Obviamente.
— Como assim?
— Obviamente. É culpa do seu Netuno em Escorpião, que enfatiza a emotividade.
— Ah, fala sério!
— E eu sabia que você ia dizer isso. Por causa do Aspecto Negativo entre Mercúrio e Plutão, você
está cheia de preconceitos.
— Ah, vá pro inferno. Você parece possuída. Tito, saia desse corpo que não te pertence! Posso
falar com Alice? A minha Alice?
Começo a rir. Cedo ou tarde vou conseguir explicar até para Paola que, pela primeira vez na
vida, acho que tenho um instrumento que me deixa segura. Assim tudo fica um pouco mais fácil.
Não digo que seja matematicamente impossível errar, mas com certeza diminuo os riscos.
— Claro, eu estava brincando — digo, para ela ficar mais calma. — Sabia que aquele amigo da
Karin me ligou hoje de novo? Ele quer sair comigo.
Paola se anima.
— É mesmo? Persistente o rapaz, depois que você bateu o telefone na cara dele três vezes.
— Hmm... oito. Mas não é culpa minha se ele sempre liga na hora errada. De qualquer jeito, a
gente vai se encontrar. Marcamos para amanhã à noite.
Do outro lado, silêncio.
— Paola?
— Sim, estou aqui. Hã... E Pantufinho, o que acha disso? Porque Babe, o Porquinho Peidorreiro,
continua acampado no seu sofá, não?
— Pois é. No meu sofá, Paola, não na minha cama.
Pouso as sacolas no capacho e, segurando o telefone entre o ombro e o ouvido, procuro a chave
de casa.
— Giorgio e eu não estamos juntos. Ele está hospedado aqui em casa como amigo. Não tenho a
menor intenção de voltar com ele.
— Graças a Deus. Então ainda existem indícios de atividade cerebral no meio de todo esse caos
astrológico.
— Já parou para pensar que talvez esse “caos astrológico”, como você chama, seja o que me
mantém raciocinando? Ele tem Urano na Casa VII, pelo amor de Deus! Tem pavor de compromisso.
E eu já senti na pele nossa Quadratura Marte-Plutão... a gente nunca ia conseguir ter uma relação
séria.
— O.k., o.k. Desde que você fique longe dele, a gente pode trabalhar nos motivos depois.
Resmungo, e finalmente meto a chave na fechadura.
— De qualquer modo, você está sendo mesquinha. Coitadinho, com tudo o que ele está
passando...
— Ah, não! Coitadinho, não. Se você não ficar de olho, Giorgio vai te transformar em um
bichinho amestrado.
Dessa vez, caio na risada.
— Olha, ele pode até chorar em chinês, o que inclusive já aconteceu, e não ia conseguir me
comover. Estou morta de cansaço, só quero tomar um banho quente e passar o resto da tarde de
pijama. Além disso, ele saiu. Está procurando emprego, e eu consegui para ele uma entrevista em
um restaurante.
— Ótimo. Ainda bem. Quando ele estiver economicamente independente, não vai ter mais
desculpas para esvaziar sua geladeira.
Suspiro e entro em casa. Paola não tem jeito. Detesto seu Marte em Câncer. Em comparação,
Pinochet era mais maleável.
No entanto, mal entro e mãos rápidas arrancam de mim as sacolas de compras, e a surpresa me
faz derrubar o celular.
— Alice, o que houve? Tudo bem? — grita Paola.
— Sim, não foi nada. O telefone escorregou. Giorgio estava me ajudando com as compras.
— Mas esse idiota não devia ter saído?
— É, mas parece que já voltou.
Depois de me despedir, sigo a trilha de limões caídos e chego à cozinha.
— Como foi a entrevista?
— Não fui.
Giorgio rasga as sacolas para tirar as compras.
— Ei, espera, eu uso as sacolas para o lixo! E como assim não foi? Por quê?
— Escrevi um poema para você.
— Um poema? Ah, Giorgio!
— Shh. Escute.
Ele remexe o bolso da calça e tira um post-it.
— “Sorri ainda, prendendo meu coração entre os lábios. Fere-me com tua ironia coerente. Teu
coração leve. Já não espero sair disso ileso. O espelho dos teus olhos. As unhas francesas, entre teu
sorriso e minha melancolia.”
Muito bonito... Parece saído de um gerador automático de besteiras. Eu ainda devo ter gavetas
cheias de suas exuberâncias criativas. Ele me escrevia essas coisas principalmente quando tinha
feito alguma besteira. É como se diz, o lobo perde o pelo... mas não o vício.
— Obrigada. Vou mandar emoldurar — digo, arrancando o papelzinho de suas mãos. — Bom,
mas por que não foi à entrevista? Você me implorou para te arrumar alguma coisa.
— Bem, sim... — responde ele, guardando os ovos e o papel higiênico. — Mas em um
restaurante, como ajudante de cozinha? Não se pode dizer que você se empenhou muito... —
Suspiro e tiro a pasta de dentes da gaveta dos talheres, onde ele a colocou. — Giorgio Pifferetti não
trabalha como ajudante de cozinha. Giorgio Pifferetti está destinado a grandes coisas. Acha que
alguém como Giorgio Pifferetti pode ser ajudante de cozinha? Com este corpo, este cérebro...
Ainda bem que Paola não está aqui, porque tenho certeza de que ela completaria com algo tipo
“toda esta merda na cabeça”.
— Ajudante de cozinha? Na verdade, eles estavam querendo um sommelier, e, como você disse
que tem o certificado da associação italiana para isso, achei que tinha interesse em vinhos.
— Tenho interesse em beber. Principalmente se for um Cristal, acompanhado de ostras da
Bretanha. Mas sommelier! É praticamente um garçom.
— Você disse que qualquer trabalho servia. E sabe como é difícil, neste momento, encontrar
alguma coisa?
— Como assim? Você não confia no seu Pantufinho, Pantufinha? Você vai ver que vou encontrar
algo muito melhor.
Ele beija minha bochecha e se afasta, largando um ovo que rola pela bancada e que eu agarro em
pleno voo, antes que vire fritada no chão.
O que eu vou dizer? Não é fácil argumentar com um cara que tem o Sol na Casa II e também um
Aspecto Negativo entre Saturno e Netuno. Ou seja, é financeiramente ambicioso, mas cego no que
se refere às questões práticas.
Para ser sincera, não estou com a menor vontade de discutir. Vou ter que ligar para Alfredo, meu
amigo do restaurante, para pedir desculpas, mas nada que uns sorrisos e umas piscadelas não
resolvam.
Quando a água está pronta na banheira, entro no toalete e faço menção de fechar a porta.
— O que está fazendo, Superpantufinha?
Ah, ótimo, já posso me considerar bem-sucedida, agora que sou um chinelo com superpoderes.
— Estou exausta, vou tomar banho e depois relaxar na frente da TV.
— De jeito nenhum — diz ele, com um sorriso que vai de orelha a orelha.
— Como assim?
— Ah, não, porque seu Pantufinho pensou em te dar uma noite inesquecível.
— Onde?
— Ah, isso é surpresa!
Adoro surpresas. Quer dizer, geralmente. Mas o nome de Giorgio associado à palavra surpresa
me provoca um arrepio.
— Acho que não...

A chuva cai tão forte que os limpadores de para-brisa não dão conta de clarear a visão da rua.
Estou praticamente dirigindo com o nariz grudado no vidro, então vejo, como uma miragem, a
placa que diz AUTOESTRADA/PEDÁGIO A 3 KM. Graças a Deus, depois de trinta quilômetros sob chuva
torrencial, chegamos a Milão.
Giorgio não percebeu nada. Largado no banco de trás, dorme desde que entramos no carro, antes
de sairmos do estacionamento. Como uma criança. Ou melhor, como um adulto que entornou
quatro cervejas, duas caipiroskas e oito (eu disse oito) copinhos de sambuca.
— Acho que você vai precisar dirigir, Pantú — disse ele, esticando-se no banco traseiro.
— O.k. — suspirei.
Mas mesmo assim não estou com raiva dele.
Ainda sinto um pouco de adrenalina nas veias, e estou tão leve que o único efeito desse dilúvio é
fazer eu me achar pronta para disputar a Paris-Dakar. Se um pneu furasse, acho até que
conseguiria trocá-lo sozinha.
Bem, melhor não dar ideias ao destino.
No início da noite, torci o nariz ao ver o buraco aonde Giorgio me levou. Formávamos uma dupla
bem estranha, ele todo animado e eu com a cara amarrada de quem ganhou o prêmio de
consolação. Desanimei ao perceber que a “noite inesquecível” seria em um daqueles locais
supercafonas na via expressa; aqueles bunkers psicodélicos cheios de caipiras, com lâmpadas de
neon, garçonetes de patins mascando chiclete, e os fliperamas com seus ruídos metálicos se
fundindo com o tum-tum da música.
E as coisas não melhoraram quando ele me arrastou até o caixa, onde uma mulher esquisita com
uma sombra de bigode nos brindou com uma baforada de cigarro eletrônico na cara, antes de dizer:
— Venham comigo.
Ao porão.
— Hein? Como assim...?
— Com isto você mira, e com isto atira — explicou a bigoduda, no limite da impaciência. — E
tem que correr, querida. Se não os outros vão te alvejar e você apaga.
Lancei um olhar preocupado a Giorgio, enquanto ela me apertava no corpete de plástico cheio de
sensores ao estilo Tron.
— Não morre de verdade, Pantufinha. — Giorgio riu. — Mas seu fuzil fica bloqueado e você não
pode atirar por cinco ou dez segundos.
A energúmena me soprou na cara mais uma baforada de falso tabaco mentolado. Depois sorriu.
— Não, Pantufinha. Não morre. Mas você tem que mexer o rabo.
Resumindo, descobri que Giorgio tinha marcado um encontro ali com uns quarenta malucos de
um fórum que ele frequenta on-line.
Divididos em duas equipes, corremos até perder o fôlego por uns quarenta e cinco minutos. Estou
toda suada. Mas me sinto leve como nunca.
E vencemos. Além disso, nunca pensei que fugir e perseguir fosse tão terapêutico.
Foi meio como voltar a ser criança, admito. Giorgio é mesmo um mestre em certas coisas.
Achados como esse fazem parte daquele seu fascínio que tanto me impressionou quando o conheci.
Ele ainda tem a capacidade de brincar, não se leva muito a sério.
Então, além de ter feito amizade com boa parte do grupo, derrotado cinco e aprendido o aperto de
mão dos rappers americanos, graças a um bando de rapazes do time, não pensei no desastre da
minha vida amorosa por uma hora. Não, na verdade não pensei nisso a noite toda.
Claro que quem teve de pagar fui eu, oito doses incluídas.
Paola diria que estou deixando que ele abuse de mim de novo, mas eu digo que de vez em quando
até Giorgio tem utilidade. E me custou menos do que uma sessão no psicanalista. Disso, nem Paola
nem sua Conjunção Negativa entre Mercúrio e Urano poderiam discordar.
33. ATÉ O ÚLTIMO LEÃO





Franzo o nariz, sentindo um estranho odor de fritura, que me deixa confusa. Tento me encolher sob
as cobertas, me agarrando ao sonho que estou tendo, mas, dessa vez, quando olho David à beira-
mar, com o vento inflando meu cintilante vestidinho de verão, vejo-o levar aos lábios uma caneca
de cerveja.
Ele usa uma espécie de macacão curto e um chapéu tirolês com muitas plumas.
Como estou sonhando, isso não me incomoda e, se ele começasse a cantar “Edelweiss”, eu faria a
segunda voz. David segura minha mão e a leva aos lábios, me olhando nos olhos. Então diz:
— Tique-taque, Pantufinha.
E me beija.
Seus lábios são muito quentes, macios e têm sabor de... salsicha e mostarda?
Tudo bem, não importa, poderia ser até gosto de citronela, e eu continuaria a beijá-lo. Mas,
quando sinto algo metálico e pontudo, sou obrigada a abrir os olhos.
— Aaah, fique quietinha!
Giorgio está de cueca, inclinado sobre mim, tentando me matar com um garfo apontado para o
meu rosto.
Solto um grito e o garfo voa longe, junto com um pedaço de salsicha, enquanto a mostarda
esguicha no chão.
— Preparei o café da manhã, Pantú!
Faço uma careta.
— Salsicha às...? — Consulto o celular, que está carregando no criado-mudo. — ... às seis e vinte
e cinco de domingo?
— Café da manhã inglês — explica ele.
— Vá-pro-inferno italiano — respondo, me refugiando sob os lençóis.
Infelizmente, porém, só consigo cochilar por mais meia hora, porque o contínuo bater de panelas
que vem da cozinha não ajuda.
— O que você está aprontando? — pergunto, já de pé. Giorgio está usando um avental com a
frase BEIJEM A COZINHEIRA por cima da cueca e uma regata, e tem o braço imerso no traseiro de um
frango de dimensões estratosféricas.
— Peru recheado. Para o Dia de Ação de Graças — responde ele, como se fosse a coisa mais
natural do mundo. Mesmo que seja final de maio.
— O Dia de Ação de Graças não é em novembro?
— Mas eu quero te agradecer agora. Estou fazendo peru recheado.
Não sei bem como dizer a ele, porque já sei que Giorgio vai se chatear.
— Giorgio, eu tenho um compromisso na hora do almoço...
A mão dele permanece enfiada no peru.
— Como assim? Vai sair? E eu?
Será que eu deveria tentar explicar que ainda tenho vida social? Lamento decepcioná-lo, mas a
verdade é que, depois de passar três semanas com ele no meu microapartamento, preciso mais do
que nunca ficar um pouco sozinha. Comer o que quiser e na hora que quiser, sair com meus amigos
sem avisar com dias de antecedência, ou até simplesmente ver um filme sem ter que levar em conta
o gosto de outra pessoa (o que com ele é difícil, porque se o filme não tiver tiroteios, lutas corpo a
corpo, tecnologia militar avançada, Bruce Willis ou pelo menos Steven Seagal, Giorgio não curte).
— Já fiz o recheio. Fatiei as batatas. Temperei a salada. Achei que passaríamos o domingo juntos.
Você nem liga que eu trabalhei o dia todo?
Se ele soltar um “Esta casa não é hotel”, juro que começo a gritar.
— E com quem você vai sair? — pergunta ele, cruzando os braços.
— Tenho um brunch com Tito e André, marcamos há vários dias.
— Ou seja, você vai me abandonar aqui para ir pra farra com seu fã-clube — diz ele, ressentido.
— Pra farra?! E que fã-clube? É um brunch entre amigos, Giorgio.
— Homens. E isso significa que o tempo todo eles vão estar pensando em sexo.
Pode até ser, mas, conhecendo Tito e André, não é em sexo comigo que eles vão pensar. Longe de
mim, porém, comentar isso com Giorgio.
Estreito os olhos enquanto passo por ele para entrar na cozinha. Antes de continuar a conversa,
preciso de:
A) uma dose de café na veia;
B) meu computador, para conferir as Efemérides e as Conjunções planetárias de hoje.
Tenho muitos Trânsitos Positivos, inacreditável. Quase fico com pena que hoje não seja dia de
trabalho. Com Saturno Positivo com Urano de Nascimento seria bom aproveitar. O mais
interessante, porém, é o Trânsito de Júpiter com Plutão, que prevê mudanças e me deixa inclinada a
ganhar o respeito de alguém importante.
— E aí, Pantufofinha, vai ficar por isso mesmo? O que eu faço?
— Para começar, você podia sair para procurar emprego.
À menção da palavra “emprego”, Giorgio fica pálido e, sim, até dá uma tremidinha.
— Vou fazer isso na próxima semana. Eu tinha organizado uma tarde perfeita. Você e eu aqui em
casa, com uns joguinhos de mesa: Connect Four, algumas partidas de Buraco...
Uau. Enquanto entro no banho, ainda me pergunto como posso recusar essa proposta. Mas,
ironias à parte, fico com um pouco de pena que ele tenha tido tanto trabalho por nada. E, quando
saio, embrulhada no roupão, procuro Giorgio para me desculpar, mas o encontro em um canto da
sala. Ele está sussurrando para alguém, e assim que me vê dá um pulo.
— Oi, Alice, já está saindo? — pergunta, constrangido e nervoso. — Tchau, tchau.
— Na verdade, acabei de sair do banho. — Afinal, ainda estou até com uma toalha enrolada no
cabelo.
— Ah, sim... tudo bem. — Ele vira de costas para mim, abre a porta de correr e sai para a sacada.
— O que estava dizendo, senhor advogado?
Enquanto acabo de me vestir, escuto Giorgio andando para lá e para cá pelo corredor, imerso em
outros telefonemas. Mas é quando me despeço, já da porta, que ele me surpreende.
Ele se vira para mim e me encara, sério.
— Alguém andou ligando e perguntando por mim?
Dou de ombros.
— Não.
— Então, tchau. Bom almoço.

— Você meteu na cabeça que pode se virar sozinha, mas não é assim, querida. Não é assim.
Tito balança um dedo na minha cara, em um gesto dramático e ressentido.
— Você não vive dizendo que eu tenho que confiar mais em mim e nas minhas capacidades? —
digo com a boca ainda cheia de cheesecake com calda de chocolate.
— Pelo amor de Deus, quem diz isso é Paola! — responde ele. — Eu estou absolutamente
convencido da sua incapacidade de entender qualquer coisa e de fazer escolhas.
Reviro os olhos.
— Ah, vai, admite que eu aprendi. E também presto atenção, não confio mais em ninguém sem
conferir o Quadro Astrológico.
Dessa vez é André quem intervém, depois de pigarrear:
— Ahn, minha cara, acredito que Tiziano, quando a acusa de ser ingênua, está argumentando
por hipérbole... Ao passo que é evidente que, neste caso, o objeto da discussão seja uma
singularidade, e não uma pluralidade de comportamentos.
Lentamente, viro o rosto para Tito, meio apavorada por não ter compreendido nem uma palavra
do que André disse.
Tito, porém, faz um ar superior e dá de ombros.
— Experimente consultar seu superprograma astrológico de bolso. Deve ter alguma informação
sobre Touro.
Eu o fuzilo com o olhar, entre um copo de suco e um restinho de crêpe suzette, enquanto André
suspira e continua o discurso:
— Em termos simples, Tito está preocupado com a sua convivência com esse tal de Giorgio, que
você continua deixando dormir no sofá de casa. Segundo ele, esse homem está te manipulando.
— Não é verdade! — exclamo, mas depois baixo a voz. — Giorgio não está me manipulando, não
mais, só que ele não tem mais ninguém que o ajude, André. O que devo fazer? Mandar ele entrar na
fila da sopa dos sem-teto?
— Por outro lado, talvez o confronto com a realidade da indigência o impelisse a uma busca mais
tenaz por uma ocupação, Alice. Já ponderou a possibilidade de que seja justamente você o obstáculo
ao êxito dele, com sua atitude desmedidamente protetora?
— Claro que não... — Ou sim? Fito as quatro mil e quinhentas calorias restantes de cheesecake
que ainda tenho no prato. — Ele jurou que semana que vem vai procurar trabalho. Qualquer
trabalho.
— Ah, não me diga que está levando a sério um geminiano! — diz Tito, sarcástico.
— Você também é geminiano! — rebato. — Que não é só um signo duplo, é um signo múltiplo...
esquizofrênico, eu diria. Quantas personalidades vocês têm? Já contou, por acaso?
— Mas o que isso tem a ver? Os Quadros Astrológicos são muito diferentes. Ele, por exemplo,
tem Marte em Câncer! O que é óbvio, sendo tão narcisista, ditatorial e incoerente.
— Coisas que você não é nem um pouquinho.
— Considerando que você agora é uma especialista, deveria perceber que é sua Lua em Peixes
que te faz ser tão boazinha com esse cara, ou já o teria expulsado a pontapés.
Agora estou ofendida de verdade e tento retribuir na mesma moeda.
— E você tem certeza de que não é sua Vênus em Leão falando? Porque eu acho que, a não ser
que a pessoa esteja sempre se esforçando, você guarda rancor, como se tivesse sido profundamente
traído.
Acho que acertei o alvo, porque Tito abre e fecha a boca sem dizer nada. Por dez segundos.
— Olha só quem fala! — exclama ele, quando se recupera. — Logo você, que tem Saturno em
Libra!
— Pelo menos não tenho Plutão na Casa I — devolvo.
— Mas tem a Casa XI em Escorpião!
— E você, um Aspecto Negativo entre Lua e Meio Céu! Inconstante!
— Saturno em Libra! — grita Tito, com raiva.
— Bom, agora vamos moderar os tons — intervém André. — Não acham que estão sendo um
pouco estranhos?
— Mas ela disse que eu tenho Plutão... quer dizer que eu gosto de ser o centro das atenções.
— E ele, então? — rosno, engolindo um terço da torta sem sequer saboreá-la. — Não é culpa
minha se tenho Saturno em Libra! André, Saturno em Libra atrasa o casamento, e eu posso até me
casar com um velho. Na sua opinião, quem foi mais escroto: eu, dizendo que ele é egocêntrico, ou
ele, querendo que eu vire cuidadora de idosos?
— Bom, mas também não é culpa de Tiziano se você tem Saturno em Libra... — Há um instante
de silêncio. — Ah, chega, mas que asneiras você me faz dizer, Alice! Os dois se dão conta das
bobagens que estão falando?
— Não são bobagens! — respondemos em coro Tito e eu.
— Nem meu namorado me apoia — reclama Tito.
— Ah, meu bem, não fique assim — me intrometo. — Eu estou aqui!
— Flagrada: Lua em Peixes!
— Não é justo!
Tito sempre me pega, mas na verdade não estou raiva, estou rindo.
Ele me dá um tapinha e ri também.
— Bem, então, falando de coisas sérias, você sabe que está na hora de tomar providências, não?
— Está falando do Trânsito de Júpiter com Plutão?
André revira os olhos. Provavelmente nos considera “criaturas um tanto insanas”, mas gosta da
gente mesmo assim.
— Exatamente. Não está animada?
Tão animada que salto da cadeira ao sentir o celular vibrar no bolso do jeans.
— Com licença — digo, pegando o aparelho. — Estão me ligando.
Tito suspira, mas logo percebe minha expressão.
— Não me diga: o leonino? Desligue.
— Mas... e se for importante?
— É importante se ferrar ainda mais? Desligue.
— Alô?
Eu me levanto para evitar que Tito, que fica gesticulando para mim, tome o celular da minha
mão.
Do outro lado:
— Alice?
Por que a voz dele tem sempre o poder de derreter meus joelhos?
— David.
— Onde você está?
Olho ao redor, como se por alguns instantes tivesse esquecido completamente.
— Por quê? Estou... Estou na California Bakery.
— Aquela em Porta Romana?
— Sim.
— Ótimo. Estou indo.
— O quê?
Mas ele já desligou.
Sei que Tito está com raiva. Está fazendo cara feia e não me olha nos olhos.
Mordo o lábio antes de dizer:
— Ele está vindo para cá.
— Já chegou — responde meu amigo.
André se vira, fazendo ruído com a cadeira.
Estou prestes a me virar também quando a voz dele me bloqueia, bloqueia tudo em mim. Cérebro,
sim, mas também coração, fígado e rins.
— Posso me sentar?
— Por favor — diz Tito, apontando a quarta cadeira à nossa mesa. — Você tem realmente um
sexto sentido, sabia? Deve ser Saturno em Virgem. Ou será que instalou um microchip em Alice?
David baixa os olhos para o cardápio e em seguida pede um café ao garçom que se aproximou.
Faz tudo com uma tranquilidade que deixa Tito ainda mais nervoso.
— Eu estava aqui perto — explica David. — Alguém sabe como é a Tarte Tatin daqui?
Até mesmo para Tito, habituado à improvisação teatral, esse aparecimento inesperado e fora de
contexto é desconcertante. Então, dessa vez sou eu que finjo uma pontinha de superioridade ao
tentar lhe explicar o comportamento de David:
— Não esqueça que ele é bom em confundir. Tem Mercúrio na Casa X .
Tito encara David, que ainda parece ocupado em consultar o cardápio.
— Pois é. E tem uma Oposição entre a Lua e o Ascendente. Sem esquecer Vênus na Casa XII —
aponta ele, sério, e só eu compreendo.
Sei o que ele está dizendo. Esse Aspecto, no Mapa Astrológico de David, significa que ele tem
dificuldade em relacionamentos e é um solitário. Como se não bastasse, há Vênus na Casa XII, o que
significa instabilidade no amor. Ou seja, 2 a 0. Fim de jogo.
— Querem parar com isso? — David fecha a cara. — Parece Batalha Naval. Já fui atingido e
afundado, o.k.?
— Claro — responde Tito. — Já paramos. Vamos falar de coisas sérias. Como vai Barbara?
Agradeça a ela de novo pela hospitalidade.
De modo arrogante e deliberado, David pega meu garfo e espeta no prato de Tito a torta de
chocolate que ele ainda não terminou de comer.
— Ótima — diz David, mastigando, sob o olhar raivoso do meu amigo. Para Tito, a comida é
sagrada. Acho que nem André pode pescar impunemente em seu prato. Ainda mais uma torta de
chocolate.
— O que te traz aqui, sr. Nardi? — pergunta André, tentando acalmar os ânimos ao mudar de
assunto. — Pode-se intuir que deve ser uma questão improcrastinável.
— É mesmo — murmura David.
Arqueio a sobrancelha, enquanto ele lança um olhar a Tito.
— Eu precisava ver Alice para falar da nossa viagem.
— Viagem? — dizemos os três ao mesmo tempo.
— A viagem a Paris.
— Mas você não vai com Marlin?
— Ela foi chamada para um teste, então você vai comigo — responde David, simplesmente.
— Mas então, por que não eu? — indaga Tito. — Afinal, sou o apresentador do programa.
David o encara com uma expressão pétrea por um longo momento, e vejo Tito engolir em seco.
— Porque eu quero Alice.
34. O DIA EM QUE O PEIXE SAIU DO MAR





É como tentar esvaziar o mar com um dedal.
Arrumar uma mala em pouco tempo te dá as mesmas chances de sucesso, com a vontade de
partir se alternando com a euforia estúpida de quem vai se jogar na frente de uma carreta.
Meu trem para Paris parte amanhã às seis em ponto, então esta noite eu deveria me concentrar
na mala e no trabalho. Mas daqui a menos de uma hora tenho que sair para encontrar o misterioso
Daniel em uma exposição. Eu poderia ter explicado que era melhor adiar, mas, depois de ter lhe
dado bolo cerca de um milhão de vezes, não tive coragem. Ou melhor, me obriguei a não cancelar o
encontro justamente para me distrair de David e dos dias que vamos passar juntos na cidade mais
romântica do mundo.
Como se não bastasse a agitação interna, tenho o bônus de alguém de fora enchendo meu saco,
como um chihuahua com os dentinhos cravados no meu tornozelo, que choraminga enquanto finge
me ajudar, mas faz exatamente o contrário do que lhe peço: Giorgio, que parece estar em missão
suicida para me impedir de fazer tudo o que preciso fazer no pouco tempo que me resta.
Outro problema são as vozes discutindo em minha cabeça. Claro que é um sintoma de loucura,
mas tenho o atenuante de ser de um signo duplo e, ainda por cima, com planetas importantes em
constelações diametralmente opostas. À ideia de ficar colada em David por três dias, meu Netuno
em Sagitário já calçou os sapatinhos de cristal e contratou o serviço de abóboras para ir ao baile,
enquanto Mercúrio em Escorpião... bem, neste momento, Mercúrio em Escorpião está dizendo que
eu sou retardada por pensar em filmes românticos e colocar protetor solar na mala. Estou indo a
Paris. E é só primavera.
— Por que não leva o suéter amarelo para fazer a entrevista? — Giorgio fica me rondando,
brincando com as peças de roupa espalhadas na cama.
— Quero o vestido azul. Pare de ficar andando ao meu redor como uma bolinha de fliperama,
tenho pouco tempo e ainda preciso me arrumar para esta noite.
Consigo arrancar o vestido de suas mãos e metê-lo na mala de rodinhas enquanto a boca de
Giorgio fica tensa.
— Você podia não ir hoje. Assim teria mais tempo e descansaria mais. Sem contar que nem
conhece esse sujeito. Pode ser perigoso!
Mais perigoso do que passar a noite em casa com ele? Não creio, porque, se continuar assim,
corro o risco de ser presa por homicídio doloso.
Ainda que, admito, não esteja pulando de vontade de sair. Preferia tomar um banho e curtir um
pouco de música, bebericando uma taça de vinho. E ficar fantasiando com David, sem pensar em
como sou idiota de fazer isso.
Tento abafar Netuno e Mercúrio ao entrar no banheiro para me maquiar, mas um dos dois (o
maldito do Mercúrio, provavelmente) sibila que, em vez de me deixar levar por uma excitação tola,
eu deveria estar furiosa com David por se meter assim na minha vida. Porque três dias tão perto
dele são masoquismo puro. Não estou ansiosa? Não estou com raiva? Não quero quebrar a cara
dele?
... em vez disso, não quero que ele me abrace e me beije de novo?
Calado, Netuno, calado. É melhor eu sair logo. Não posso ficar em casa a noite inteira em poder
desses dois. Melhor me distrair. E, para piorar, ainda tem Giorgio, que mesmo agora, depois que
fechei a porta do banheiro, bate para saber a que horas pretendo voltar para casa.
— Não faço ideia, Giorgio, eu tenho um encontro.
Meu Deus, agora vou ter que prestar contas de tudo na pouca vida social que me restou?
— Pois é, você nem liga para as entrevistas de emprego que eu vou fazer nos próximos dias.
Podia me ajudar a encontrar novas ideias e novos projetos.
— Adiei este encontro quatro vezes. Se esse cara ainda não me mandou à merda, devo a ele pelo
menos um pouco de respeito. E, também, quando eu estiver fora você vai ter todo o tempo e toda a
tranquilidade para pensar e trabalhar.
Sei muito bem que não é assim que funciona. A criatividade não está entre os talentos de Giorgio,
a menos que se trate de construir castelos de mentiras. Não, seu ponto forte é manipular pessoas,
levando-as a fazer o que ele quer.
Mas no fundo isso não é problema meu. Melhor pensar nesse Daniel, que foi muito compreensivo
todas as vezes em que bati o telefone na cara dele, ou em que adiei nossos encontros. Sem contar
que estou curiosa, porque ele é Peixes com Ascendente em Virgem e tem um Quadro Astrológico
muito interessante. Merece pelo menos um encontro. Ainda que hoje com certeza não seja o melhor
momento. Nem para mim nem para ele: hoje de tarde eu liguei para me desculpar sobre ter que
desmarcar o jantar de amanhã, e ele disse que já tinha compromisso para hoje, mas que adoraria se
eu o acompanhasse.
Infelizmente, porém, se eu achei que ia deixar em casa a discussão rolando na minha cabeça, me
enganei redondamente. Mercúrio discute com Netuno sobre os comos e os porquês do encontro.
— Senhorita, tem certeza de que quer ir a essa exposição? — pergunta o taxista, freando de
repente.
— Por que a pergunta?
— Você parece muito agitada e agora está esmagando meu ombro. Se preferir, eu te levo de volta.
E dar a Giorgio essa satisfação? Ou deixar David estragar minha vida? Jamais.
— Tenho certeza. Continue, por favor.
Alguns minutos depois, o carro encosta ao lado de uma calçada lotada de pessoas e guarda-
chuvas. Que droga, eu estava tão aérea que não percebi que começou a chover.
Claro que eu não ia dar sorte no primeiro encontro... sempre tem que ter alguma coisa, um
agente atmosférico ou uma Conjunção Astral que seja, para atrapalhar, mesmo quando minhas
expectativas já não são muito grandes. Decerto não estou esperando achar o homem perfeito em um
encontro às cegas, quando estou em uma crise emocional e com um ex acampado no meu sofá, mas
ficaria grata ao deus do cabelo se ao menos por uma vez fosse compreensivo com o meu.
Obviamente não trouxe guarda-chuva, e minha bolsa é tão pequenininha que protegeria no
máximo um grampo, por isso estou discutindo com Netuno e Mercúrio quando saio do carro me
contorcendo para puxar parte do casaco por cima da cabeça, motivo pelo qual não percebo que na
realidade não estou me molhando.
— Você deve ser Alice.
Vejo primeiro o guarda-chuva, grande, tranquilizador e aberto sobre minha cabeça, e só depois o
rosto do homem que o segura e que me encara com um sorriso lindo e um par de olhos verdes e
sinceros.
— Daniel — diz ele, me estendendo a mão livre.
Balbucio algo tipo “Hmm... Aaalice...” enquanto tento recuperar o controle do meu maxilar e
devolver a língua para dentro da boca. Ele é maravilhoso.
Maravilhoso?, berra Netuno, indignado. Você devia correr à igreja mais próxima e acender uma vela.
— Venha, vamos lá para dentro, antes que todas essas poças molhem sua roupa.
Ele me acompanha até a entrada, mantendo a mão em minhas costas, nem muito alto nem muito
baixo. Quando entramos, me ajuda a tirar o casaco e, sem nenhuma hesitação, o coloca no
vestiário, junto com o guarda-chuva.
Enquanto ele faz tudo isso, tenho a chance de analisá-lo. Ou melhor, teria, se meu cérebro não
tivesse dado tilt e não estivesse transmitindo apenas uma série de bipes, como as TVs quando
entram em curto-circuito.
Daniel é alto, tem cabelos longos, de um castanho acobreado, presos em um coque, e usa óculos
que lhe dão um ar intelectual, reforçado pelos jeans desbotados e pela camisa para fora da calça.
Hmm, e um cara desses ia querer você?, começa Mercúrio, pragmático, mas também bastante
maldoso.
E por que não? Por que você não pode ser a protagonista de um conto de fadas?, rebate Netuno,
piscando e soprando um beijinho.
Daniel me acompanha pelo corredor que leva à exposição e me agradece por ter aceitado seu
convite, feito assim no último minuto. Ele quase se desculpa, como se não tivesse sido eu a cancelar
nosso encontro de amanhã e acabar complicando as coisas.
Ele é muito simpático, tranquilo, e, enquanto conversamos, olhando quase distraidamente as
fotos expostas nas paredes, Daniel faz com que eu me sinta mais leve, como se nos conhecêssemos
desde sempre e esse não fosse nosso primeiro encontro. Logo eu não fico constrangida nem com a
sua inegável beleza, naturalizo sua aparência como se observasse o Davi de Michelangelo e pudesse
até falar com ele.
— Ei, Daniel!
Ele se vira, animado, e me apresenta a um tal de Franco, acompanhado de uma moreninha com
uma boina inclinada na cabeça.
— Está tudo incrível, sabia? E... eu também queria te agradecer.
Daniel aperta o braço dele, balançando a cabeça.
— Agradecer o quê, Franco?
Enquanto Franco o puxa para um canto, a moreninha de boina sorri para mim.
— Daniel foi um dos poucos a ficar do lado de Franco em um momento muito difícil — explica
ela. — Ele tem uma sensibilidade extraordinária. Dá para ver pelas fotos.
Olho ao redor, como se as paredes tivessem se iluminado de repente, revelando pela primeira vez
as fotografias. Foi ele quem as tirou?
É, pois é. Não é uma exposição qualquer. É a exposição dele.
A moreninha sorri de novo e me cutuca de leve.
— Sortuda...
Quando Daniel volta e Franco e a moça se despedem, ele pede desculpas por ter me deixado
sozinha.
— Você não disse que eu estava saindo com o artista em pessoa. As fotos são lindas, parabéns.
— Ah. — Ele dá de ombros. — As imagens são só um testemunho, um modo de chamar a atenção
para as histórias por trás delas. O importante não são as fotos em si.
Ele parece meio envergonhado. Tira os óculos e os limpa na barra da camisa, como se precisasse
de alguma distração.
Netuno: Talvez tenham reativado a fábrica de príncipes encantados. Talvez ainda os produzam, em
edição limitada, certo, mas ainda os produzem.
Mercúrio: Bem, é claro que isso é tudo pose, uma tática esperta para te impressionar e tentar...
tentar te levar para a cama hoje mesmo. Bobinha.
— Eu gostaria de saber o que você acha delas — diz Daniel, enquanto expulso aquele bate-boca
da minha cabeça.
Nós nos aproximamos de uma das fotografias. Há pessoas lotando uma praça. Têm idades
diferentes, roupas diferentes, e, no entanto, parecem estar se comunicando. Estão dançando, e em
seu rosto há uma alegria que faz todos parecerem jovens, até os mais velhos.
Olho um instante para Daniel e não sei o que dizer. Ou melhor, na briga entre Mercúrio e
Netuno, tenho certeza de que não vai sair nada muito inteligente, não só porque as fotos que eu tiro
saem sempre tremidas, mas também porque, no geral, não entendo nada de arte. Porém a fotografia
exposta parece falar por si só, de fato.
— Eu acho... — Estou tateando. — Gosto de como você capta o que as pessoas estão sentindo. É
como se tivesse esperado para bater a foto quando tudo estava perfeito, não só o enquadramento,
mas também a emoção, quando você sentia o que elas sentiam. Você é bom em ler as pessoas. Você
ama as pessoas... — Pigarreio; dessa vez, sou eu que estou meio constrangida.
Uau, desde quando me tornei crítica de arte?
— Desculpe — concluo, porque estou me sentindo meio filósofa de boteco.
Estou olhando para o chão quando ele toca meu braço.
— Fiquei muito impressionado, Alice. É a primeira vez que alguém me diz sentir isso diante de
uma foto minha. — Ele me encara, estreitando um pouco os olhos, como se soubesse muitas outras
coisas de mim, só pelo que eu disse. — E você é Libra com Ascendente em Sagitário — diz em
seguida. — Espírito e matéria. Uma bela combinação.
Espere aí. Acho que não ouvi bem.
— Você está falando do meu...?
— Do seu Quadro Astrológico — explica ele, e vejo seu rosto corar um pouco. — Sei que em
nossa cultura isso é considerado uma tolice, mas em outras é levado em grande conta. Na Índia, por
exemplo, é determinante para um casamento: os pais nunca dariam o consentimento à união dos
filhos se os Mapas Astrológicos dos noivos não estivessem em harmonia.
— Você esteve na Índia?
Em um canto, noto imagens de algumas mulheres de sári, os braços cobertos com intricados
desenhos feitos com hena. Também nessa foto, Daniel jogou com a luz e a plasticidade dos corpos,
mas principalmente soube captar um momento de vida, o nascimento de uma emoção.
— Gosto de conhecer o mundo. Bem, principalmente tentar compreender as pessoas que
encontro. Cada um de nós é um cofre de solidão, de desejos, de medos e de esperanças. Mas isso
você sabe, porque é uma pessoa com sensibilidade rara.
Engulo em seco.
— Hum, bem... Tenho a Lua em Peixes...
Ele assente de um jeito misterioso, como se essa revelação lançasse uma luz nova e maravilhosa
sobre mim, como se eu acabasse de dizer que sou a última descendente de Mahatma Gandhi, Buda
ou Elvis Presley.
Pelos olhos dele, me sinto e me enxergo diferente, como se ao lado de Daniel não estivesse Alice,
mas uma mulher melhor, mais bonita e mais segura de si. Fico cada vez mais livre para contar o
que sinto diante de suas fotografias, e cada vez mais envolvida no que vejo e no que digo.
Depois, enquanto saboreamos um drinque sem álcool (a exposição é beneficente, com renda
inteiramente destinada à luta contra o alcoolismo), vem a ducha fria, e sou teletransportada de
volta à querida e velha Alice, com melancolias, frustrações etc. É verdade que ninguém pode fugir
de si mesmo.
A poucos passos de mim está a mulher de sobrenome tão grandioso quanto sua conta bancária:
Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori.
Ela é uma lady, nascida em berço de ouro e, por acaso, é também namorada do homem que eu
não consigo expulsar da minha cabeça e da minha vida.
Daniel, atencioso, pergunta se tem algo errado:
— É o coquetel? Está gelado demais?
Dou a desculpa de uma fotografia meio triste exposta ali perto.
— Você é muito empática — diz ele, antes de explicar, com olhos brilhando, as circunstâncias
daquela viagem, a história daquela pessoa e de que modo aquela experiência o enriqueceu.
E eu, com toda a minha empatia... observo Barbara Buchneim etc. etc. de soslaio e me pergunto
se David não vai aparecer também, enquanto Mercúrio me faz notar que sou uma pessoa muito,
muito infeliz.
Tento me concentrar na foto e nas palavras de Daniel, mas fico virando a cabeça toda hora,
procurando o rosto dele no meio da pequena multidão presente. David não está, por sorte. Mas
talvez, na verdade, isso me deixe meio triste. Queria ver a cara dele ao me encontrar com um
homem lindo como Daniel.
— Gostou? — pergunta Daniel, e, quando o encaro, confusa, ele acrescenta: — Você estava
sorrindo... — Em seguida franze a testa e volta a fitar a imagem pendurada na parede. — Pois é, são
crianças guerrilheiras. Infelizmente, são levadas de suas casas muito novas e praticamente
enviadas à morte.
— Ah!
Encabulada, mordo o lábio e me viro às pressas, mas, ao fazer isso, quase dou de cara com
Barbara.
— Boa noite, Daniel.
Ativo meu sorriso agradável, simpático e distante, ainda que ela mal pareça me ver.
— Quero te dar parabéns de novo, em nome da Fundação Wessler. O senhor tem uma visão muito
exótica. Pensa em publicar um catálogo?
Ah, claro. Já entendi por que ela veio falar com ele. Daniel é o convidado de honra desta noite.
— Para levantar fundos, sem dúvida. Mas não me peça para escrever os textos, não me vejo como
escritor... — Depois ele se volta para mim. — Mas Alice poderia me ajudar. Ainda nem as
apresentei, desculpem. Alice Bassi, Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori, que patrocina a
fundação com a qual eu colaboro.
Fico tentada a fingir que não ouvi, a tentar sumir por entre as paredes, mas Barbara me encara.
Noto que seus olhos se estreitam por um instante e em seguida se arregalam de surpresa.
— Acho que já nos conhecemos — diz ela, sem me estender a mão. — A senhorita trabalha com
meu namorado. Certo?
Estou maluca, ou ela acentuou um pouco a palavra meu? Não movo um só músculo, com medo
de demonstrar qualquer coisa que não quero.
— Ahn, sim, ele é o supervisor dos nossos programas — explico, mais para Daniel do que para
Barbara, que com certeza sabe do trabalho de seu namorado.
— Não por muito mais tempo — diz ela, com um sorriso felino. — Em duas semanas, David vai
começar a trabalhar no start-up da minha propriedade na Bretanha, que eu pretendo transformar
em um spa. Vai levar algum tempo, pelo menos um ano, um ano e meio. Mas é um lugar especial
para nós, e não vai ser nenhum sacrifício ficarmos lá por um período. Só nós dois.
Bom. Então, onde paramos? Ah, sim, eu estava procurando uma corda para pendurar no teto.
Tento sorrir, esperando que meus dentes não quebrem de tão gelados, mas, por sorte, o homem
maravilhoso ao meu lado intervém:
— Então, precisamos nos organizar para o retrato de vocês dois que a senhora pediu. Amanhã,
pode ser?
— Infelizmente, amanhã David vai a Paris a trabalho — responde Barbara.
Daniel olha de relance para mim, e então sorri e dá de ombros.
— No fim de semana, então.
Por que o fato de que ele vai fotografar David e Barbara me faz sentir tão impotente, vencida?
Daniel não é um padre, e algumas fotos dos dois juntos não equivalem a um casamento.
Felizmente, a tortura não dura muito, e quando Barbara se afasta, Daniel diz que já cansou de
ficar ali dentro e pergunta se quero caminhar um pouquinho lá fora.
Então descobrimos que Milão assumiu uma nuance nova-iorquina. A chuva parou, o ar está
fresco, mas agradável, a pavimentação das ruas brilha, banhada pela água e pela luz dos postes, e
nossos reflexos seguem junto das sombras.
— Você está bem? — pergunta ele, tirando o paletó para colocá-lo em meus ombros, exatamente
como nos filmes.
— Sim...
Respiro bem fundo e me dou conta de que é verdade. Estou bem. A simples presença de Daniel me
dá certa tranquilidade.
— Tive a impressão de que... — começa ele, sentando-se em um banco — algo não estava bem.
Alice, sei que não posso entrar na sua vida de uma hora para outra, que é arrogante, e que você
pode estar no meio de alguma coisa...
Algo me diz que ele percebeu como fiquei magoada pelo discurso de Barbara. Não sei o que dizer,
mas, por sorte, Daniel não parece esperar uma resposta, porque prossegue:
— Mas eu gostei muito de você e quero te ver de novo, se você deixar. — Este homem lindo e
perfeito segura minha mão e a leva aos lábios. — Então saiba que vou estar bem aqui quando você
voltar da viagem com David. E espero que, até lá, tenha decidido o que é melhor pra você.
AQUÁRIO

Depois de passar anos acostumada a lutar com todos os outros signos do Zodíaco, você vai ficar
surpresa de ver o aquariano... te dando razão. Sempre. E depois continuar fazendo tudo igualzinho
a antes. Ele é um cara de pau? “Claro que sim”, o aquariano admitiria com um sorriso. Mas também
é alguém movido pela vontade de ser diferente, de se destacar; então, por princípio, vai sempre
fazer exatamente o contrário do que você propôs. Não importa se isso o obrigará a dizer que a Terra
é plana ou que pode haver vida em Saturno, porque, para ele, pior do que o erro é ser como todos os
outros.
35. UM LEÃO CHAMADO DESEJO





É constrangedor que meu subconsciente esteja tão falido que não consiga produzir nem um
pesadelo decente. Estou perseguindo um homem com cabeça de leão, mas, quando dobro a esquina
para onde o vi correr, encontro outro cara com rabo de peixe, que tenta me agarrar. Muito didático,
sem dúvida não preciso de Freud para explicar o significado: assim como minha vida amorosa,
meus sonhos também são uma porcaria.
Tirando o fato de que é um sonho pouco imaginativo, acho que faz sentido que meu sono seja
agitado. Daniel-Sou-O-Homem-Para-Você versus David-Quem-Me-Entende-É-Um-Gênio. E bem na
véspera de três dias em Paris, com a entrevista do professor Klauzen e tudo o mais.
Além disso, mal consegui dormir, fiquei no computador calculando afinidades, sondando
Quadros Astrológicos e olhando todas as Efemérides possíveis e imagináveis.
O que consegui? Para falar matematicamente: a ordem dos fatores não altera o produto. Por mais
que eu revire o Tema Natal de David, não funciona mesmo com o meu.
Esse foi o motivo do ataque de pânico desta noite, coração disparado e suor escorrendo.
Fiquei olhando o teto, me perguntando por que, por que, POR QUE fui nascer com esse Quadro
Astrológico tão azarado que faz com que eu me apaixone por quem não se apaixonará por mim.
Que droga! Será que estou a um passo da felicidade, mas sinto como se um rolo compressor tivesse
passado por cima de mim?
Como se não bastasse o sonho, quando finalmente consegui adormecer, a complicação foi a cama.
Nunca fiquei tão desconfortável. Eu me virei e me revirei sem parar, tanto que agora estou toda
dolorida, além de estar com torcicolo e garganta seca. Provavelmente, estou dormindo de boca
aberta.
E, realmente, acabo acordando com meu próprio ronco.
Só para sair de um pesadelo para outro.
Porque não estou na minha cama.
Tampouco na de Daniel, o que até poderia ser interessante.
Não. Enquanto me lembro das últimas horas da minha vida (o despertador tocando, Giorgio
mantendo o banheiro ocupado por meia hora e eu afinal correndo com a mala de rodinhas em
direção ao metrô), percebo, meio desesperada, que estou no trem. Que adormeci e,
consequentemente, me embolei no assento como uma contorcionista chinesa. Que dormi e
provavelmente ronquei a plenos pulmões.
E que estou com a cabeça apoiada no ombro de David.
Sem falar na mão apoiada em sua perna.
Quero morrer. Aqui. Agora mesmo. Obrigada.
— Dormiu bem?
Endireito-me imediatamente, fingindo uma dignidade que não tenho, e tento falar alguma coisa,
não desculpas, com certeza, porque ainda estou com raiva. Algo sobre a viagem, pronto.
— Quanto falta?
— Menos de uma hora — responde ele. — Eu estava dando uma olhada na biografia de Klauzen.
Agradeço aos céus, literalmente, por seu Saturno em Virgem, que o faz dedicar muita atenção a
tudo que se refere ao trabalho e me poupa de comentários sobre como eu estava grudada nele.
— Klauzen está muito na moda e logo vai abrir uma clínica particular na Itália, onde será
possível fazer os bebês nascerem de acordo com o método dele.
O famoso método Klauzen de programação de nascimentos. Coisa de rico, na verdade, mas, com
seus cálculos e os partos induzidos, os pais mais prevenidos poderão proporcionar a seus filhos a
vida quase perfeita, sob as melhores energias das estrelas.
— Klauzen... — repito, olhando meu reflexo no vidro da janela e pensando mais no meu cabelo
bagunçado do que em outra coisa. — Tivemos sorte, ele não dá muitas entrevistas. — Olho a foto
do professor no material de divulgação e percorro rapidamente sua biografia, rica em homenagens.
Claro que já sei que ele é capricorniano, com Ascendente em Escorpião e Lua em Aquário.
Percorro minhas anotações e penso em dizer “Elementar, meu caro Watson”. Tudo no Tema Natal
desse homem fala de uma força de vontade equivalente à de um tanque de guerra. Do contrário,
como se consegue um avião particular, uma cobertura em Manhattan, uma casa em Mônaco e um
palacete na Bretanha, só para descansar do trabalho e jogar golfe?
Na Bretanha...
— Ele é amigo de Barbara, não é? — pergunto, desanimada.
David encara as folhas de papel à sua frente.
— Era grande amigo do marido dela. Caçavam juntos.
Não sei por quê, mas por um instante imagino os dois em trajes coloniais, com a bota apoiada na
cabeça de algum pobre animal, enquanto ela, etérea e flutuante, prepara xícaras de chá no meio de
um dia quente, sem ser perturbada por uma única gota de suor.
— Não me diga! Aquela lá tem um dedo em tudo, parece um polvo — comento.
— Não sou a marionete dela, se é isso que você quer dizer.
David me olha de um jeito sério, mas seu celular começa a tocar e ele se levanta em um pulo,
tropeçando na mesinha à nossa frente, para em seguida tentar passar por cima de mim e sair para
o corredor.
— Ei, espera!
Também me levanto, enquanto o celular continua tocando cada vez mais alto, quase
tempestuosamente, e David e eu ficamos agarrados entre os assentos e a mesinha, os corpos
grudados, os corações batendo um contra o outro e os olhos... Os olhos, maldito seja ele com esse
olhar magnético. E maldita seja a atração exercida sobre nós pela Conjunção Vênus-Plutão!
Estou irritada. Estou irritada. Estou irritada. Estou excitada. Estou excit...
Ai, droga!
Dou quase um salto carpado em direção ao corredor, apoiando as mãos no braço da poltrona do
lado oposto. O rapaz que a ocupa levanta a cabeça do tablet e nos lança um olhar interrogativo.
— Ahn, sabe o jogo Twister? — digo, enquanto liberto uma perna. — Estávamos entediados...
O rapaz ergue uma sobrancelha e depois, sem dizer nada, retorna ao seu joguinho.
Que simpático! Com certeza deve ser escorpiano.
Enquanto isso, David atende ao telefone.
— Oi, Barbara... Sim, ainda estou no trem.
Ouvir esse nome me provoca uma ânsia súbita.
Repito para mim mesma que Daniel pode ser o homem da minha vida, que não faz nenhum
sentido continuar perseguindo David sem estar consciente de que isso é saltitar alegremente para a
autodestruição.
Vejo-o se afastar pelo corredor.
Meu Deus, fico sem fôlego só de olhar para ele. Não existe justiça neste mundo?
— Me desculpe, a senhorita sempre fica sem calça?
Eu me viro rápido diante dessa pergunta absurda.
E arregalo os olhos quando, para piorar, vejo à minha frente uma senhora de cabelos grisalhos.
— O quê?
A mulher suspira.
— Perguntei se a senhorita sempre fica descalça no trem — responde ela, apontando meus
sapatos. — Porque garanto que não é muito higiênico.
De fato... Devo tê-los tirado quando me deitei com postura de contorcionista. E também por isso
não ouvi a frase direito. Ainda estou meio dormindo.
Deixo-a passar e me sento de novo, dando uma conferida no celular. Mensagem de Daniel. Que
bonitinho!
Será que David acha que é o único homem na Terra?
Não, meu querido, tenho muitos homens à disposição, e você poderia ser o sortudo. Claro, você é
lindo de dar raiva, tem aquele olhar incrível que me faz derreter como manteiga no sol, mas...
— Chá, café, sexo ou biscoitos, senhorita?
Ao meu lado está o garoto com o carrinho de lanches. Que acabou de me oferecer sexo. Fico
vermelha até a raiz do cabelo.
— O quê?
— Chá, café expresso ou biscoitos? — repete ele tranquilamente.
Não, não, eu ouvi “sexo” muito bem! Não posso ter me enganado de novo!
A culpa, afinal, não pode ser toda da Conjunção Vênus-Plutão.
E David ainda está me olhando.
“Sexo”, sussurra mais alguém.
Olho ao redor, mas todos estão encarando um celular, um tablet, um jornal, um livro... ou seja,
estão cuidando das próprias vidas e não teriam motivo para fazer coro.
Eu me levanto e corro para a outra ponta do vagão, tentando me distrair com o smartphone.
Mas então paro. Posso acabar como o cara de O iluminado, escrevendo a mesma frase obsessiva e
compulsivamente. E pior, sei lá, poderia ser algo tipo: Sexo e expresso, afinal tudo é complexo. Eu me
pergunto que Trígono, Quadratura ou Conjunção Astral está provocando esta tempestade hormonal
não identificada.
Ou mais do que identificada. Olho David de novo.
Respire, Alice. Dê oxigênio ao cérebro.
Infelizmente, porém, na batalha hormônios contra cérebro, não há jogo.
Era justo o que eu queria evitar, o que temia nessa viagem de três dias sozinha com ele. Eu me
conheço, sei que quando estou com David sou tão objetiva e decidida quanto um fósforo.
— Tudo bem?
— Claro...
Eu me viro, pigarreando e endireitando a coluna.
(SEXO). Calado, cérebro satânico.
Mas David também parece nervoso. A curva dos lábios está mais tensa e cruel do que
normalmente.
— Você parece cansada — diz ele, baixinho. — Está com os olhos inchados.
Levo as mãos ao rosto imediatamente. (SEXO?) Que ótimo. Agora vamos falar das minhas rugas,
ou podemos adiar?
— Dormi pouco — digo, tentando passar por ele para voltar ao assento, onde talvez encontre
outra posição de ioga para (SEXO!) dormir. DORMIR.
— Talvez não tenha sido muito sensato você sair ontem à noite — comenta ele, duro. — Eu me
viro de repente. — Já que o trem partia às seis e tinha uma longa viagem pela frente.
Então Lady B. contou a ele que me viu na exposição. Com Daniel.
Ótimo!
— Acho que consigo decidir sozinha o que é melhor para minha vida. Ultimamente, refinei
minha intuição e tudo melhorou muito.
— Acha mesmo? Acha que é tão esperta assim?
Não acredito que ele está sendo tão arrogante comigo. Mas, por outro lado, o que posso esperar
de um cara que tem Mercúrio em Leão?
— Acho, sim, porque pessoas honestas dizem logo o que querem, não ficam enrolando as outras
— respondo, pensando primeiro em Daniel e em como foi direto em declarar suas intenções, e
depois em David, sr. Complicação, que primeiro só diz que tem um cachorro por companhia, e só
depois, mas muito depois, confessa ter também uma namorada que parece a Grace Kelly.
— Ou talvez algumas pessoas simplesmente gostem de preencher as informações como acham
melhor.
Claro. Olha só como ele usa logo Netuno em Sagitário e distorce a conversa, me transferindo a
culpa.
Depois, porém, seu Trígono Sol-Lua aparece, fazendo-o mudar completamente de atitude. David
segura minha mão e eu encaro seus olhos tristes.
— Alice...
Maldito.
— Estou muito preocupado com você. Precisamos conversar. — Ele morde o lábio e olha ao
redor, depois baixa a voz. — Não entendo o que você está aprontando. Ontem à noite, você foi
àquela exposição... E vive com aquele homem... Quero dizer, se está fazendo isso tudo para me dar o
troco, saiba que só vai machucar a si mesma.
— O quê? — O.k., estou considerando o uso de violência. — Não acredito que você está falando
disso. É o típico egocentrismo do Leão com Mercúrio em Leão!
— Está falando do meu horóscopo?
— Estou falando do seu Quadro Astrológico. Depois de doze episódios, você nem aprendeu a
diferença?
— Onze... Quanto ao último capítulo, acho que ainda precisamos conversar. — Pois é. O último
capítulo ainda não foi escrito. — Seja como for, aquele homem não serve para você.
— Quando eu quiser sua ajuda para decidir quem levar para a cama, eu te ligo, o.k.?
Ainda devo estar febril. Espero estar febril, porque do contrário não existe explicação racional
para eu ter dito isso.
— Então está indo para a cama com ele?
Mordo a língua e faço um apelo a todo o poder da minha Conjunção entre Mercúrio e Plutão, que
teoricamente deveria me tornar uma pessoa discreta.
— O que importa? Você está indo para a cama com Barbara, e eu não posso dizer nada.
Mas não, devem ser os outros três ou quatro Aspectos do meu fabuloso Mapa Astrológico que
estão dominando a conversa. Sol e Marte, que são agitados demais; ou talvez Lua e Netuno,
inquietos e irritados, só para dar algumas opções. Obrigada, mamãe!
Ele então responde:
— Tecnicamente...
Vai chegar o momento em que vou dar uma de Glenn Close em Atração fatal e tentar matá-lo com
uma barra de metal atravessada no peito. Que resposta é “tecnicamente”? E eu também não fiz
nenhuma pergunta. Não quero saber se ele faz ou não faz sexo com Barbara. Até porque ele não
quer fazer comigo.
Mas que merda significa esse “tecnicamente”? Tecnicamente sim? Tecnicamente não?
Tecnicamente este homem está me enlouquecendo.
Faço menção de passar por ele, mas David estende a mão na minha direção. O trem dá um
solavanco e, em vez de alcançar meu braço, a mão de David para em meu quadril.
— Alice, espere... — Instintivamente, ele abraça minha cintura e ficamos nos olhando por
alguns instantes, assim, sem dizer nada.
— Com licença, estão fazendo SACANAGEM?
David e eu, os olhos grudados um no outro, pulamos de susto e congelamos. Vejo-o corar até a
raiz dos cabelos, como sei que está acontecendo comigo, para então se voltar para o homem ao
nosso lado.
— Com licença, podem me dar passagem? — repete ele, sorrindo.
Nós nos afastamos, a fim de desimpedir o corredor.
É quando tenho certeza: vai ser difícil. Ah, vai ser muito difícil superar esses três dias...
36. NADA DE SEXO, NÓS SOMOS LIBRA





Paris pode até ser maravilhosa, mas eu não curto nem um pouco as primeiras horas. Estar
consciente de que é uma cidade mágica e romântica me deixa ainda mais chateada. O táxi a
atravessa em disparada, e nós dentro dele parecemos ausentes, em lados opostos do assento, usando
o envelope do material de divulgação como escudo.
Eu queria passar primeiro no hotel para tomar um banho, mas Klauzen, honrando sua Casa X em
Virgem, tem uma agenda de reuniões bem rigorosa e, apesar das sete horas no trem, ele nos espera
pontualmente na hora do almoço.
Pontualmente ao menos para nós. Porque ele nos deixa esperando quarenta e cinco minutos, que
eu passo olhando um pouco para David e um pouco para a baguete elaborada na mesa de centro.
Não sei qual dos dois eu comeria primeiro.
Quietinha, Alice, e repita comigo: “Não para o Leão, sim para o Peixes”. Mas arrancar uma pessoa
do coração não é simples como abrir uma porta e lhe pedir que saia.
Klauzen chega com seu séquito logo depois da enésima alfinetada de David: “Imagino que,
enquanto estamos aqui, Giorgio tem carta branca na sua casa. Olha que...”.
Estou para responder que não é da conta dele quem frequenta minha casa, mas o supermédico
dos nascimentos, o senhor supremo de todos os ginecologistas, Klauzen, surge na minha frente com
seus olhos cinzentos e glaciais.
— Bom, sem perda de tempo. Item um: faremos a entrevista amanhã às dez da manhã. No salão
da minha cobertura. A luz é perfeita. Item dois: vou conceder a vocês uma hora, já que a entrevista
vai ter três minutos do programa, um tempo mais do que aceitável em televisão. Item três: vocês
terão permissão para fazer quatro perguntas. Vão encontrá-las na folha anexada à ficha que minha
assistente lhes dará...
Rápida e silenciosa como um robô, a mulher louro platinada ao lado dele me estende um
envelope.
— Aí encontrarão também material filmado a acrescentar. Menos de setenta segundos, a serem
distribuídos pela matéria. Depois da entrevista, ela vai explicar a vocês onde e o que usar. —
Terminada a lista, Klauzen se levanta em posição de sentido, e quase espero que bata continência.
— Bem, isso é tudo. Podem ir. — Ele move a cadeira, se ajustando à mesa, e David se ergue,
acenando para que eu faça o mesmo.
Enquanto nos afastamos, eu me volto por um instante, só para ver o Doutor Capricórnio Em
Pessoa chamando um garçom, enquanto a assistente-robô permanece de pé atrás dele.
— Item quatro — digo, voltando-me para David com dentes cerrados. — Em vez dele, eu
preferiria ter como ginecologista Edward Mãos de Tesoura.
Estamos na rua, e David faz sinal para chamar um táxi.
— O que você prefere fazer? Almoçamos, ou quer ir primeiro ao hotel?
Eu me dou conta de que ainda não são nem duas da tarde, o que significa que falta muito tempo
antes da entrevista. Muito tempo com David e eu sozinhos.
— Prefiro ir ao hotel — respondo com firmeza. — Mas você pode ir comer.
Ele franze a testa.
— Não, vamos ao hotel. Comemos depois.
Mordo o lábio, dou de ombros e me viro quando um táxi para à nossa frente. David se adianta e
abre a porta, me olhando de esguelha e sorrindo timidamente. Baixo os olhos e entro, tentando
entender o que estou sentindo. Ser de um signo duplo não ajuda em nada, porque, se por um lado
me sinto formigar de expectativa por estar em Paris com ele, por outro, toda essa situação, com
todas as implicações, me dá muito medo.
Você está se arriscando muito, Alice. Vocês não estão aqui em lua de mel, apesar do que pensa sua
Vênus em Libra. Não são nem namorados. Então pare com isso, antes de começar a fantasiar.
Lanço um olhar a David; lindo, lindo, tão lindo que dá vontade de pular nele, e suspiro.
É, não... Não vai rolar nem primeiro nem último tango em Paris.
O instinto de sobrevivência, ou melhor, meu Aspecto de Sextil entre Saturno e o Ascendente, me
diz que, para evitar problemas, devo ficar o mais longe possível de David, e por isso pego o guia da
cidade que, no último instante, me lembrei de enfiar na bolsa, sem muita esperança de poder usá-lo.
De fato, sou muito organizada para essas coisas; não por acaso tenho a Casa IX em Virgem.
Pronto, sim, a Torre Eiffel pode ser a solução. Ver Paris sozinha, do alto, vai me dar uma sensação
de infinito e de que estou no controle, tenho certeza.
Dobro o cantinho da página e fecho o livrinho enquanto meu estômago ruge como um
lobisomem. Malditos sejam Klauzen e a pirâmide de baguetes que, por boa educação, deixei na
mesa.
— Se você quiser, conheço um bistrô bem legal aonde podemos ir, depois que deixarmos as
bagagens no quarto.
E eu, entre a fome e a ansiedade, não consigo evitar encará-lo de olhos arregalados.
Quarto?! Tenho que parar pra pensar, antes de cometer a enésima gafe graças aos delírios do
meu Aspecto entre Netuno e Plutão. Ele não quis dizer que vamos ficar em um só quarto. Pronto.
Mas por que não paro de pensar nisso? Caramba, basta olhar para ele e não faço outra coisa além
de pensar em sexo.
Sou uma mulher fria e profissional. Sou uma mulher fria e profissional...
— Ah, eu pensei em dar uma volta pela cidade, não quero me sentar para comer.
Excelente. Ele que faça o que quiser; afinal, não estamos amarrados um ao outro.
Mas, quando o táxi para diante do hotel, meu coração acelera.
E se for mesmo um quarto só?
Meu coração está na garganta quando nos aproximamos do balcão da recepção, e as rodinhas da
mala imitam meu estômago, emaranhando-se no tapete.
— Cuidado...
David me segura antes que eu saia rolando pelo hall e me acompanha pelos últimos metros
mantendo a mão nas minhas costas, como se eu fosse de vidro, ou uma anciã com osteoporose.
— Bonjour, mademoiselle, nous avons réservé deux chambres pour le compte de Rete Mi-A-Mi —
diz David, pousando no tampo sua carteira de identidade.
A jovem digita velozmente no teclado do computador.
— Oui, monsieur... — responde ela, antes de erguer os olhos e franzir a testa. — Je suis désolée,
mais il y a un petit problème avec vos chambres.
Apesar do meu escasso francês, entendo algo como: lamento, mas tivemos um probleminha com
os quartos dos senhores.
Puta merda, eu sabia! Existem vários filmes românticos sobre incidentes desse tipo: uma
distração na reserva, um probleminha por causa do idioma, uma emergência repentina, um vírus
informático, uma tempestade de meteoritos que desarranjou todos os sistemas de comunicação...
Fico imaginando para onde vai todo o sangue quando a gente o sente fugir do corpo, como agora.
— Quel genre de problème? — pergunta David, enquanto repasso mentalmente que:
A) fiz depilação;
B) a roupa íntima que coloquei na mala não é excessivamente sexy, mas também não é feia;
C) eu trouxe o pijama estampado com pinguins! Merda...
E assim por diante, praticamente até o Z, com estas bobagens, até porque não quero que nada
aconteça entre mim e David.
Porque eu tenho amor-próprio.
Porque estou conhecendo outro cara, muito mais merecedor de crédito e menos problemático do
que ele.
Porque... Ah, que merda, será que vendem cintos de castidade aqui em Paris?
— Vous avez demandé deux chambres sur le même étage, mais ce n’est pas possible, parce que l’hôtel
est presque complet et il y a peu de chambres doubles libres. Donc je dois vous donner une au troisième
étage et l’autre au cinquième, je suis désolée. Dans la chambre au cinquième étage il y a une baignoire
et un coin salon, cependant.
O.k., meu francês acaba mais ou menos em Oui, je suis Catherine Deneuve, então não entendi
nada do que a mulher disse agora.
Em seguida, porém, a recepcionista pousa duas chaves no balcão.
— Pas de problème — diz David.
Nenhum problema.
— O quê? — pergunto calmamente, quase fingindo um bocejo, para demonstrar meu pouco
interesse no assunto. Mas por dentro estou mais agitada que John Travolta dançando em Os
embalos de sábado à noite.
— Eles não têm dois quartos no mesmo andar. O seu é no quinto e o meu no terceiro. Bom, não é
um grande problema, certo?
O John Travolta dentro de mim para de dançar, acende as luzes e começa a recolher com tristeza
os confetes da festa.
— Não, imagine... Nenhum problema.

Eu me fecho no quarto, batendo a porta, decidida a dar uma boa bronca no meu Netuno em
Sagitário, que é um maldito sonhador. Estou decepcionada e tenho que exorcizar pela enésima vez
qualquer pensamento que não envolva trabalho e, principalmente, os que incluem uma cama.
Penso em tomar uma ducha fria, mas, quando entro no banheiro, vejo uma banheira enorme, com
hidromassagem. Perfeita para romance.
Então bato a porta com força. Melhor evitar. Aliás... Tive uma ideia.
No elevador, quando David perguntou se nos encontraríamos em meia hora, não respondi.
Portanto...
Só faço xixi e confiro a bolsa antes de pegar a chave e sair às pressas. Se eu descer logo, ele ainda
vai estar no quarto e eu vou poder andar pelas ruas de Paris, sozinha e sossegada.
Que tristeza.
Sim, mas é também minha única salvação, penso, apertando compulsivamente o botão do
elevador.
Vou mandar uma mensagem a David quando estiver em segurança no metrô, só para me livrar
do sentimento de culpa, embora não saiba muito bem o que vou dizer.
Praticamente atiro as chaves no balcão da recepção enquanto disparo rumo à porta giratória
como um velocista no fim da corrida.
— Já está pronta? Ótimo! — David fecha o jornal e o deixa na mesinha. Depois se levanta e vem
ao meu encontro. — O que você quer comer?
— Na verdade... — E não há muito o que inventar. — Eu queria andar um pouco sozinha —
admito, evitando fitá-lo nos olhos. Tenho certeza de que ele compreende. Deve compreender.
— Mas vai ter que parar para comer alguma coisa, de qualquer jeito. Então, me faça companhia
no quiosque aqui ao lado. Eu adoro as galettes e os crepes salgados, mas odeio comer sozinho.
Pisco várias vezes, tentando evitar vislumbres dos olhos de David, que me transformariam em
gelatina.
— Tudo bem... — cedo.
Afinal, vamos só comer. É um preço pequeno a pagar pela liberdade que terei depois.
Só quando nos sentamos, após pedirmos as galettes, é que me dou conta do quanto estou faminta.
E, considerando que só tomei uma xícara de café às cinco da manhã, diria que é mais do que
plausível que eu esteja tentada a devorar até os pés da mesa.
Devoramos em silêncio a primeira galette.
Na segunda, começamos a emitir alguns gemidos de apreciação.
Na terceira, ele diz:
— Deve ser caro te sustentar... Que fome, hein?
Paro no meio da mordida, então me forço a engolir com um gole de Coca-Cola.
— Olha quem fala. Nós comemos a mesma coisa.
— Mas eu sou homem.
— E daí?
— Mulheres não deveriam comer como passarinhos?
— Eu li que os passarinhos comem oito vezes o próprio peso.
— Espertinha.
— Machista.
Nós mordemos o lábio para conter risadas. Ele porque não quer ser o primeiro, acho que quer ver
como eu reajo; e eu porque não quero lhe dar a vitória, e também porque posso estar com comida
entre os dentes. Mas quando vejo as ruguinhas destacando o olhar dele, não consigo me conter.
— É o ar de Paris... — diz ele, sorrindo e dando de ombros. — É tudo mágico, não acha?
— Você gosta daqui?
— Morei aqui por alguns anos.
— Em Paris também?
Olho ao redor, e é estranho como poucas palavras de David transformam meu olhar sobre tudo à
volta. Eu me pergunto como é viver em uma cidade estrangeira, adaptar-se diariamente à língua,
imergir na rotina do ambiente. Mas ele tem Júpiter na Casa IX , por isso seu destino de cidadão do
mundo já estava escrito nas estrelas.
Quando lhe digo isso, David dá de ombros e começa a me contar sobre quando se mudou para
fazer mestrado na Sorbonne, logo depois da universidade.
— Na realidade, foi há muitos anos. É meio estranho ver a cidade assim tão mudada. Como
aqueles colegas de escola de que você se lembra sempre com a cara que tinham naquela época...
Depois você topa com eles e se dá conta de que agora são adultos, exatamente como você. Mesmo
que pareça impossível.
Meu Deus, me sinto tão pequena e estúpida... Ele viveu pelo mundo, e eu, exceto como turista,
nunca saí nem do bairro onde nasci. Sempre pensei que ele e Barbara não combinavam, que eram
um par errado, porque ela é uma mulher sofisticada, saída de um romance de Fitzgerald, mimada e
frágil como porcelana. Porém, quanto mais conheço David, mais percebo sua complexidade, e todas
essas facetas me são atraentes, mas também perigosamente atordoantes.
— É melhor eu ir — digo de repente, fingindo olhar a hora. — Já que você conhece Paris tão
bem, não quero te fazer bancar o turista. — Puxo a carteira e pego vinte euros, que coloco na mesa
para a conta.
David pousa a mão na minha:
— Pode deixar, eu pago...
— Posso pedir reembolso à produção — respondo, resoluta, pousando a carteira de lado para
agarrar a conta.
No entanto, a mão de David se fecha no meu pulso.
— Você ainda está com raiva de mim, Alice.
Não é uma pergunta, mas sou obrigada a erguer os olhos.
E não devo confiar em seu Mercúrio em Leão, porque ele seria capaz de vender gelo a esquimós.
— Estamos juntos aqui somente a trabalho, David.
Ele suspira.
— Então, nem amigos somos mais?
Sinto a raiva ferver.
— E quando fomos? — digo, sem esperar resposta. Balanço a cabeça diante do seu olhar
magoado. — Estou apenas tentando viver a minha vida, David.
— E não quer que eu esteja nela.
Nos encaramos em silêncio. Ele alivia a preensão e solta meu pulso. Eu mordo o lábio, como se
algo em mim quisesse engolir também estas palavras, mas depois digo:
— Não. Não quero que você esteja nela.
37. O LEÃO DOS SEUS SONHOS





Paris é uma cidade muito superestimada. E depois dizem que Milão é feia... Bem, talvez seja, mas
pelo menos Milão não te deixa puta da vida. Milão é monótona, Milão é caótica. Milão é discreta.
Milão é cinzenta e não magoa ninguém.
Paris é como caminhar descalço sobre cacos de vidro. Você se corta toda vez que olha, os
estilhaços indo sempre mais fundo. Com os bistrôs coloridos. Com as avenidas arborizadas. Com os
cantinhos de cartão-postal, onde há sempre um casal se beijando ou te pedindo para bater uma foto.
Deveriam escrever isso nos panfletos de viagem: se você estiver de coração partido, não vá a Paris.
Entrada reservada aos casais felizes.
Vai tomar no cu, Paris.
Caminho olhando para baixo, decidida a não encarar nada até chegar à Torre Eiffel. Vou até lá de
qualquer jeito. Já nem sei como, mas vou me arrastando, até porque não tenho mais o que fazer
além disso e, se me der por vencida e me trancar no hotel acabando com as garrafinhas do frigobar
como se não houvesse amanhã, eu não... ficaria menos triste do que já estou. Aliás, qual é a altura
da Torre Eiffel?
O celular toca.
— Qualquer coisa em que você esteja pensando, pare imediatamente. E se lembre de me comprar
um presente. Uma echarpe da Hermès seria ótimo, se você estiver nos Champs-Élysées.
— Não estou nos Champs-Élysées.
— Que pena.
— Não para o meu cartão de crédito. O que houve, Tito?
— Seu horóscopo de hoje é um desastre.
— Não só o horóscopo...
— Pois é...
Como sempre, falar com Tito me faz sorrir.
Fico sabendo que estes dias serão astrologicamente um pouco tensos. Um pouco tensos... Talvez
seja assim que os parisienses descrevem os dias da Revolução Francesa: um pouco tensos. Isso
porque sete dos meus dez Trânsitos estão Negativos. Quase um recorde. Minha Lua de Nascimento
pode esperar ataques em várias frentes por parte de Sol, Marte e Netuno. Vou ficar irritada,
deprimida, confusa e com humor inconstante. Pior do que ficar de TPM.
Também o maldito Vênus está trocando socos com Júpiter, Saturno e Plutão. Eu pensei que pelo
menos o planeta que governa o meu signo ia me proteger. Não dá para confiar!
— Significa que você tem que cuidar das despesas e não sair fazendo compras como uma louca
— explica Tito.
— Tirando a echarpe da Hermès.
— Tirando isso.
— Hmm.
— Vai ser difícil, mas você tem que se concentrar no trabalho e tentar não afogar as mágoas em
crepes...
— Como é que você sabe dos crepes? — pergunto, olhando ao redor, como se esperasse vê-lo
surgir de uma loja de suvenires, celular no ouvido, como Rupert Everett em O casamento do meu
melhor amigo.
— Júpiter — responde Tito, lacônico.
— Júpiter gosta de crepes?
— Mais ou menos.
— Tito...
Ele suspira na outra ponta do telefone, como se tivesse compreendido que até agora estávamos
brincando e a pior parte estivesse por vir.
— Alice.
— Não estou aguentando — desabafo, de repente. — Paris, David... Não é coisa demais? Por que
as estrelas são tão cruéis? Por que não me deixam em paz e não me deixam ter um namoro
tranquilo, normal, sem confusões, pelo menos por um tempo? Estou cansada.
Caio sentada em um daqueles bancos lindos que só existem em Paris, aqueles de ferro batido, que
em Milão, se existiam, já sumiram, e talvez seja por isso que instalaram aqueles troços verdes, que
tentam muito mal se passar por arbustos.
— Porque este é o momento de se abrir às mudanças, querida — responde Tito. — De aprender a
dizer não até para o que você mais queria. Alice, você tem um Trânsito Positivo entre Mercúrio e
Urano, o que significa que vai entender e se adaptar a novas situações. Você é libriana, e não é fácil,
porque fica criando fantasias, mas precisa parar com isso. Meu bem, isso é o que as estrelas te
dizem para aprender neste momento. Pare de lutar contra moinhos de vento e deixe as coisas
acontecerem... só isso.
Odeio Tito. Meus olhos se enchem de lágrimas, e estou na rua, sozinha, em um país estrangeiro.
E nem sei como é que se pede um lencinho em francês.
— Tchau, Tito — digo, com um nó na garganta.
— Espere, Alice!
Mas não quero continuar escutando e desligo, encolhendo as pernas contra o peito e apoiando o
queixo nos joelhos, como fazia quando criança.
Um casalzinho passa por mim, abraçado. Se eu tivesse gasolina e um isqueiro, atearia fogo neles.
No banco em frente estão dois adolescentes trocando beijos de língua em público, em vez de ficar
em casa fazendo os deveres da escola. Espero que sejam reprovados.
Depois vejo uma moça sozinha em uma mesa, parecendo distraída e meio perdida. Como eu?
Então seu belo rosto francesinho se ilumina com um sorriso francesinho e um belo homem se
aproxima, a abraça e a beija como naquela famosa foto em preto e branco.
Pensando bem, talvez as garrafinhas do frigobar não sejam má ideia, e que Paris, a Torre Eiffel e
os beijos à francesa vão todos tomar no cu.
Com um gesto de irritação, pego o guia e o jogo na cesta de lixo. Realmente, aos diabos esta
cidade romântica e seus monumentos. Aos diabos os esquemas e tudo o que preestabeleci.
Começo a caminhar a esmo pelas ruazinhas menores, subindo e descendo escadarias, saindo em
praças maiores ou menores, mais ou menos cheias de gente. Não olho direito os nomes das ruas.
Não quero pontos de referência para me orientar. Quero que Paris me engula e me mostre quem é,
se tiver coragem.
Quero que a cidade me anule e me faça renascer. Francesa, quem sabe... com narizinho
arrebitado, quadris estreitos e uma baguete embaixo do braço.
Estou ofegante depois de subir a enésima escadaria, e penso que, com os músculos pesados de
cansaço, me sinto melhor. Paris se apoia nos meus ombros, me sobrecarregando com seu peso feito
de horas de sono perdidas, de uma viagem interminável e de um coração que não sei em quantos
pedaços ainda pode ser partido.
Mas... Paris é bonita. Não como nos cartões-postais, contudo. Olho ao redor e acho que vejo seu
lado mais discreto, a alma mais exposta e verdadeira, diferente do multicolorido chamativo do
Moulin Rouge.
O problema é que, agora, eu realmente não faço mais ideia de onde estou. E, embora tenha feito
um pouco as pazes com a cidade, não virei francesa. Ou seja, além de ainda ter um nariz de batata,
falo francês muito mal. Como fui idiota e joguei fora o guia com o mapinha e tudo o mais, preciso
comprar outro se quiser ter uma chance de me orientar.
— Bravô, Alice — digo, entrando em uma livraria para pegar um mapa qualquer. E percebo, já
quando estou na fila do caixa, que a carteira não está na minha bolsa.
Panicô.
Meu coração partido acelera com dificuldade, martelando nos meus ouvidos.
Como eu faço para retornar ao hotel?
Como roubaram minha carteira?
Merda. Os documentos!
Onde fica a embaixada italiana?
A única coisa que me resta fazer, infelizmente, é engolir o orgulho e ligar para David vir me
buscar.
Claro que vai ser mais uma porrada no ego. Obrigada, Paris, querida.
Enquanto teclo apressadamente no celular, me preparo para atravessar a rua. Espero que o sinal
fique verde e, assim que acontece, olho para a frente, começando a atravessar a faixa de pedestres.
Então paro bem no meio da rua.
David está diante de mim, do outro lado.
— Você me encontrou — diz ele.
— Você é que me encontrou! — respondo, porque não quero de jeito nenhum que David pense
que eu estava procurando por ele ou, pior ainda, o seguindo!
Aperto com força a tela do smartphone para cancelar a ligação para o número dele. Tarde
demais. David mete a mão no bolso e tira o celular, que devia estar só para vibrar, e me encara,
abrindo um leve sorriso.
Eu desvio os olhos, e ele não diz nada.
Quando buzinam para nós, bem pouco à francesa e muito mais à italiana, ele segura meu braço e
me puxa do meio da rua.
— Aonde estava indo? — pergunta em seguida, quando estamos sãos e salvos na calçada.
— A lugar nenhum — admito, fingindo me interessar por um par de sapatos em uma vitrine. —
Eu me perdi.
— Não tinha o mapa?
Faço um gesto vago com a mão, como se dissesse que é uma longa história e que não quero
explicar.
— Podia usar o GPS do celular.
Eu e a tecnologia: capítulo 1, “Introdução”.
Nem tinha pensado nisso.
Sou uma idiota, principalmente quando só consigo pensar em David.
— De qualquer jeito, eu estava quase sem bateria. E fui roubada. Isso é mais grave... perdi minha
carteira. Estou ferrada. O que se faz nesses casos? Tenho que ir à polícia? À gendarmerie? À
embaixada? Meu francês mal dá para pedir uma eau minérale. E provavelmente eu acabaria
confessando algum homicídio enquanto tento me explicar.
David sorri de novo e balança a cabeça.
— Nada de polícia. Nem de gendarmerie.
— Então, vou ter que viver na clandestinité.
— Não, você só tem que dizer “Obrigada, David”.
Eu me viro para ele, que, como um ilusionista, está puxando algo do bolso interno da jaqueta.
Mon salvateur! É a minha carteira. Como foi que...?
— Você a deixou no restaurante, quando saiu correndo.
— Eu não saí... — Tudo bem, é melhor nem começar. Encaro David. — Ah. Obrigada.
David parece surpreso, e é sua vez de desviar o olhar, metendo as mãos nos bolsos.
— Na verdade, eu queria que você esquecesse a carteira.
— Como assim?
— Me deu a desculpa para te seguir.
— Você me perseguiu?
— Não, eu te segui. Não persegui. Falando assim, pareço um maluco.
Parece mesmo, considerando que já falei várias vezes que não quero mais nada com ele. Mas
acho melhor não dizer isso em voz alta, uma vez que estou agradecida por ter me resgatado. Meu
senso de orientação é digno de uma pessoa afetada por labirintite crônica.
— O.k. Você me seguiu.
— Sim. Mas depois te perdi, quando você se levantou do banco. E reapareceu naquele
cruzamento.
Lembro que fiquei sentada por um bom tempo naquele banco, xingando Paris e os casais
apaixonados, e conto isso a David. Tirando a parte dos casais apaixonados, obviamente.
— Por que você não falou comigo lá?
David dá de ombros.
— Achei que você ia querer me comer vivo, apesar das galettes. Estava com uma cara...
Deve ter sido quando eu estava considerando atear fogo naqueles adolescentes se beijando. Dou
de ombros, tentando mudar de assunto para algo mais seguro. O que significa qualquer outra coisa
que não seja nós dois.
— Eu queria ver se Paris me surpreenderia... fora dos pontos turísticos clássicos.
— Bem — diz ele, estendendo o braço para mim como um cavalheiro da Belle Époque —, que
melhor guia, então, do que um ex-parisiense um pouco nostálgico?
A essa altura nem tenho mais forças para dizer não. Recusar outra vez a tentativa dele de fazer as
pazes. Por isso aceito, mas não seguro o braço dele. Isso seria demais. Mas sorrio.
— O que aconselha o seu Guia de Paris para Mulheres Céticas?
38. O LEÃO DO PONT-NEUF





— Eu invejo muito o fato de você conseguir se adaptar a qualquer lugar e a qualquer situação,
sabe? — digo, parando no alto da escadaria para onde ele me conduziu. — Meus pais não me
deixaram nem mochilar pela Europa... Ficaram com medo de acontecer alguma coisa!
David pisca para mim.
— Pois é, você podia acabar descobrindo um novo continente!
Embora meu Mercúrio em Escorpião fique meio chateado, sei que ele está só brincando. E
também estou muito ocupada observando o lugar lindo ao meu redor, que eu e meu guia de Paris
ignorávamos, para falar alguma coisa.
— Et voilà la Promenade Plantée — diz David.
Estamos em uma velha ponte de tijolos vermelhos, uma linha ferroviária desativada ao longo da
qual foi construído um caminho ajardinado.
— Nem parece que estamos em uma cidade.
— Quando morava em Paris, eu vinha aqui sempre, em dias bonitos como hoje.
Imagino que ele vinha ler, talvez estudar, porque é um lugar ideal para isso. Embora haja outras
pessoas, o clima é relaxado, os sons amenos.
— Veio passear com alguma francesinha... — digo, mudando o tom de propósito, como se
estivessem implicando amigavelmente com ele.
O Saturno em Virgem de David o faz fechar a cara.
— Não.
Olho para ele de esguelha, e mais uma vez vejo um homem que gosta da solidão. Eu me pergunto
o que isso pode significar, o que vai ser de seu futuro.
— Não... — Ele hesita. Nós nos sentamos em um banco.
— Como assim?
David balança a cabeça e sorri, enigmático como só alguém que tem Plutão na Casa XII consegue
ser. Depois fita alguma coisa à sua frente.
Por trás das árvores dá para ver as janelas dos andares mais altos das casas. Uma mulher passa
atrás de uma vidraça, segurando um cabide no qual está pendurado um vestido de noite. Vejo-a
abrir a porta do armário para guardá-lo.
— Eu nunca trouxe ninguém aqui — diz David por fim, sem me encarar.
— Eu sou a primeira?
O pensamento me atinge assim que o expresso. Engulo em seco, querendo colocar meu coração
no lugar certo de novo.
— Muito tempo se passou.
— O lugar mudou?
— Eu. Eu mudei. Mas ainda acho este lugar incrível. — David continua olhando para a frente. —
O que você acha que aquela mulher vai fazer esta noite?
Pisco, perplexa.
— Que mulher?
Ele indica com o queixo a janela para a qual olhei há pouco.
— Não sei. Vai jantar, acho. Você a conhece?
David esboça um sorriso e balança a cabeça.
— Não. Mas sempre gostei de espiar as casas e me perguntar como é a vida das pessoas.
Isso é muito estranho. Eu jamais imaginaria que David Nardi se distrairia olhando a janela dos
outros.
— Ela pode ir a um restaurante, por exemplo — digo, quando o silêncio entre nós fica longo
demais.
— Quem?
— A mulher. Sim, é uma noite especial. Hoje de manhã, quando ela saiu para comprar pão,
praticamente tropeçou em uma pessoa, um cara. — Uso o lado criativo do meu Mercúrio em
Escorpião.
David me encara, cético.
— Um cara?
Mordo o lábio, tentando inventar mais um trecho da história.
Mas ele me ultrapassa:
— Um antigo colega de escola.
— Seu primeiro amor.
— O irmão gêmeo do seu primeiro amor, na verdade! Mas ela não sabe disso e confundiu os dois
— diz David, me surpreendendo com essa ideia maluca, digna de uma novela.
— Por que ele não contou a verdade? — pergunto, interessada na evolução da história.
— Porque, secretamente, sempre foi apaixonado por ela.
— Você é um gênio.
David levanta a mão, e fazemos um high-five.
Às vezes, é tão fácil ficar com ele.
Depois de percorrermos o jardim por uns dois quilômetros, descemos a escada e saímos nas
galerias sob os arcos.
— Este é o Viaduc des Arts, o Viaduto das Artes. A maioria dos espaços foi transformada em
ateliês para artistas.
Há quadros, tecidos, lojas de suvenires que fariam os olhos de Paola brilharem, mas não nego
que exercem o mesmo efeito em mim, e por alguns minutos me perco entre as barraquinhas,
tentando escolher o que levar.
— Em cada lugar que visito, compro um ímã de geladeira. Sei que não é muito original como
suvenir, mas eu gosto. E quanto mais cafonas, melhor.
— Eu nunca compro nada — responde ele, alguns passos atrás, as mãos enfiadas nos bolsos.
— Que pena! Sua geladeira seria uma obra-prima — respondo, sorrindo.
Ele dá de ombros.
— Quando você sabe que cada objeto comprado vai significar uma caixa a mais na próxima
mudança, você pensa muito bem se realmente quer aquilo.
— Nossa, como você é prático!
— Você aprende a ser prático se desde os sete anos ouve o pai dizendo que não pode carregar
mais do que a mochila e uma maleta.
— É mesmo? — Penso nos meus prantos histéricos quando mamãe e papai se recusaram a me
comprar a casinha da Barbie de quase um metro quadrado. — E você brincava com o quê, se não
podia ter nada?
— Eu tinha uma barraca de camping.
— Uma...
— É, uma barraca. Era a minha casinha, e eu só queria dormir ali dentro, quando criança — diz
ele baixinho, enquanto caminhamos pela rua. — Ficava entocado por horas, e às vezes a barraca
era um castelo, às vezes um forte, uma trincheira ou uma astronave. Era divertido.
Um menino sozinho em uma barraca, brincando apenas com a imaginação. Sim, Dickens o
acharia divertido.
O sol está se pondo quando saímos do metrô de Havre-Caumartin e entramos em uma loja de
departamentos, onde David decidiu que vamos jantar. Lamento um pouco não ir à Torre Eiffel, mas
acreditei quando David disse que é mais bonito vê-la na paisagem do que de cima. E, enquanto
saboreamos uma taça de champanhe nesse terraço panorâmico incrível, a cidade se acende e brilha
com as cores do anoitecer, e a torre, mais do que qualquer outra coisa, reluz como se fosse
cravejada de diamantes.
— Obrigada, meu guia — digo a ele, enquanto brindamos. — Reconheço meu erro. Admito que
fiquei com raiva quando soube que ia ter que vir a Paris com você, considerando que... — Pigarreio
um pouquinho, porque o terreno da conversa é muito escorregadio. — Bem, considerando a
situação e... — Estou prestes a mencionar Daniel, mas me contenho e digo: — ... Giorgio. Porque
não confio muito em deixar minha casa nas mãos dele. — Engulo quase todo o champanhe de uma
só vez, e me parece que minha cabeça flutua mais leve.
— Pois é, Alice, já que estamos no assunto...
Olho ao redor e suspiro. Meu estômago não está revirando, não estou ansiosa nem
desconfortável.
— Graças a você, estou conhecendo lugares incríveis, e pelo menos uma vez na vida realmente
me sinto em paz comigo mesma. Sabe de uma coisa? Tirando o trabalho, quero aproveitar esses
dias como se fossem férias de mim mesma. Prometo que vou tentar não pensar mais nos problemas.
— Eu o encaro diretamente. — Inclusive nos nossos.
Estou falando sério. Será que o champanhe me subiu à cabeça? Mas não, acho que estou
completamente lúcida. Até tranquila. Paz e amor, penso. E se o amor é impossível... Suspiro. Bem,
pelo menos podemos ter paz.
— Desculpe, eu te interrompi.
David me encara. As rugas sutis ao redor de seus olhos estão ligeiramente mais marcadas. Ele
parece cansado. Depois de um instante, sorri.
— Esqueci o que era.
— Então era mentira — respondo, com uma risadinha.
— Eu não minto.
Faço uma expressão desanimada.
— Eu disse que estou em paz comigo mesma, não que fiquei idiota.
Então ele ri.
— Tudo bem. Digamos que era mentira.
Nós olhamos para Paris; a torre, Montmartre, as luzes, e penso que tudo nesse momento poderia
ser definido assim: uma mentira.
Inclusive nossas mãos, os dedos se tocando, entrelaçando-se por apenas um instante, enquanto
observamos a cidade em silêncio.
Uma belíssima e cintilante mentira.
39. DOIS NA CAMA NUMA NOITE DE CHUVA





Sob chuva forte, corremos rindo como crianças para a entrada do hotel.
As nuvens se adensaram sobre nossas cabeças antes do fim do jantar, e, agora que saímos do
metrô, as gotas frias atravessam nossas roupas como agulhas. David tenta nos proteger sob a
jaqueta de couro, e eu rio porque ficamos nos esbarrando de um jeito desajeitado.
— Tomara que tenha um cabeleireiro perto do hotel... senão, na entrevista de amanhã, o câmera
mal vai conseguir focalizar Klauzen escondido pelo meu cabelo em formato de arbusto.
— Estão ficando cacheados... — diz David, me observando após apertar o botão para chamar o
elevador, como se analisasse a reação química de algum importante experimento em laboratório. E,
para comprovar, toca um cachinho que se grudou ao meu rosto.
— Sim, eu fico igualzinha a um pastor-bergamasco.
— E continua atrevida.
Dou de ombros.
— É culpa de Mercúrio em Escorpião.
As portas do elevador se abrem e entramos em silêncio. David me olha sem dizer nada, aperta o
botão do seu andar.
— Tudo bem amanhã às oito? Para o café da manhã? — pergunta, se recostando à parede.
Suspiro.
— Sim. Acho que sim. Vamos fazer esse último esforço.
É quase uma hora da manhã e, levando em conta o milagre que vou precisar realizar para cuidar
das olheiras e do meu cabelo, tenho que programar o despertador para as seis e meia, no mínimo.
— O último esforço comigo... — diz ele, franzindo um pouco o nariz.
— Não foi o que eu quis dizer.
Mas, quando ele me olha, penso que sim, é verdade. É o último esforço com David, que depois vai
seguir seu caminho, ir para outro emprego e para outra fase de sua vida.
Pigarreio, mas não digo nada.
— Escute, Alice, o fato de estarmos aqui em Paris juntos... Eu queria te pedir desculpas por ter
organizado tudo no último minuto; sei que você tinha outros planos para a semana, mas era muito
importante que...
O elevador para, as portas se abrem para o corredor.
— Eu sei — interrompo. — Está tudo bem.
É uma despedida, e no fundo eu sempre soube. A partir de agora, as horas que nos separam do
resto de nossas vidas podem ser contadas nos dedos.
— Foi um dia incrível, David. E eu queria que continuasse assim. Amanhã a gente volta à vida
real. Boa noite. — Eu me inclino e beijo seu rosto.
A mão dele pousa no meu braço, mas só por um instante.
— Boa noite, Alice.
Quando o elevador fecha as portas e recomeça a subir, me afundo em um abismo. A vida real não
é só para amanhã: agora mesmo já sinto sua amargura. Percebo o cheiro meio rançoso do carpete,
dos arranhões nas portas de alumínio, o zumbido das luzes. Em um filme, em um dos meus filmes,
um vazio como esse seria um erro de roteiro. Agora já deveria ser de manhã, na entrevista com
Klauzen, ou, no máximo, teria um rápido close na minha mão apagando a luz do quarto. A vida não
é feita apenas de cenas significativas, de palavras importantes, de diálogos inteligentes.
Infelizmente. A realidade é feita principalmente de momentos como esse; segundos vazios em que a
insensatez de tudo te esmaga como um trem em alta velocidade.
O elevador para suavemente e sobre a porta se ilumina o número cinco, meu andar. Desencosto
da parede dos fundos, coçando distraidamente a mão. Em seguida as portas se abrem com um
chiado e eu deveria sair, mas permaneço ali, paralisada.
David está apoiado no umbral, levemente inclinado para a frente, o rosto vermelho enquanto
tenta recuperar o fôlego.
Levanto a cabeça para conferir de novo o número do andar, para o caso de o elevador não ter se
movido. É realmente o quinto.
— O que você está fazendo aqui?
— A... A... Alice... — Atrás dele, a porta da escada de serviço ainda balança.
Após alguns segundos, o elevador começa a se fechar, mas ele estende o braço e me segura.
— Desculpe. Me desculpe... mas não posso deixar você ir embora assim — diz ele, ainda
ofegante.
Então me beija.
Pois é.
David segura meu rosto, erguendo-o, e seus lábios me tocam, primeiro delicadamente, depois
cada vez mais insistentes.
Eu queria não reagir, ou empurrá-lo, mas em vez disso abro a boca, depressa, me rendendo
completamente às sensações, à delicadeza, ao calor.
Ele sussurra alguma coisa enquanto continua beijando meu rosto e pescoço, alguma coisa
incompreensível, mas é como se eu entendesse tudo, do mesmo jeito. Não preciso de palavras.
E quando as portas do elevador ameaçam se fechar de novo, ele me puxa para fora, ainda me
beijando ali, no corredor, me apertando contra a parede.
— David...
— Me desculpe — murmura contra os meus lábios. — Mas eu não podia te deixar. Eu deveria
estar no meu quarto... Em vez disso, assim que o elevador se fechou, me senti um idiota. Não podia
ir para o quarto e fingir que nada estava acontecendo, esperando amanhecer. Subi a escada
correndo. Ainda estou sem fôlego. Não estou muito em forma, mas não podia te deixar. Você disse
que hoje foi incrível, que não é real... Mas é, sim. É real, Alice. Mais do que nunca. Acho que não
existe nada mais real do que isto. Você e eu. Agora.
Então eu o acaricio. Quase não acredito que tenho a liberdade de fazer isso, de tocá-lo. E beijá-lo.
Meu Deus, cada fibra do meu corpo quer cantar. Ele é meu! David é meu!
Minhas mãos tremem tanto que o cartão magnético da porta quase cai no chão. E em seguida
estamos na cama. Ele desabotoa minha blusa.
Já nem sei há quanto tempo esperei por esse momento, ou melhor, sonhei com ele. David colado
em mim, me beijando como se sua vida dependesse disso. Ele tenta puxar a camisa pela cabeça e o
tecido se embola. Eu me estico para abrir pelo menos os primeiros botões.
Rio, mas ele logo me cala com outro beijo.
— Você não vai mais escapar — sussurra ele, se inclinando para roçar a boca em minha barriga.
“Não vai mais escapar...” Mais do que qualquer coisa no mundo, quero ficar nos braços dele,
sentir seu corpo no meu, seu cheiro.
O que sinto fazendo amor com ele é um fogo que me queima por dentro. Não é só físico, minha
mente está tão envolvida quanto meu corpo. Não consigo parar de olhá-lo. Queria continuar a
beijá-lo, ainda que isso me deixe sem fôlego. É o fim do mundo, aqui, nesta cama, onde não existe
mais nada além de nós, de Paris, da chuva.
Na vida existem aqueles instantes que te marcam para sempre, e sei que esse será um deles.
Nunca vou esquecer o rosto de David em meu ombro, a sensação de sua testa em meus lábios e seus
dedos possessivos nos meus quadris.
— Em que você está pensando?
Ele suspira, fechando os olhos por um instante.
— Em como nos encontramos hoje. No meio do caminho. Alguns casais passam a vida sem
conseguir isso.
Fico em silêncio por um tempo.
— E... nós somos um casal?
— Alice.
Suspiro.
— E agora? Em que está pensando?
Sinto-o se mover sob o edredom.
— Alice, escute, essa coisa... Essa coisa de dizer tudo o que passa pela cabeça... Não é muito o
meu jeito. Aliás, acho que não é o jeito de nenhum homem.
— Bem, você tem Urano em Escorpião, por isso é tão introvertido. Mas saiba que nós mulheres
odiamos os silêncios. — Balanço a cabeça. — Não tem o que fazer, realmente somos dois sexos
diferentes.
— No silêncio também há comunicação, Alice. No olhar, no gesto. Basta saber ver as pessoas, e
não é preciso saber o horóscopo delas, como se fosse um livrinho de instruções.
Eu me aconchego a ele, desfrutando do calor e do perfume de sua pele, os pelos de seu peito
contra minha bochecha.
— Com você, eu gostaria bastante de um livrinho de instruções.
Ele me beija, e fazemos amor de novo antes de adormecermos abraçados.
É assim que acordo, com as pernas entrelaçadas às dele, seu nariz afundado em meu cabelo.
Assim que me lembro do que aconteceu, perco o fôlego de novo, com medo até de me mexer e
fazer tudo sumir.
Mas o despertador toca.
E não programei nenhum despertador.
Na verdade, é um telefone, e David levanta a cabeça na mesma hora, já se esticando para fora do
colchão em busca da calça. Ele apenas me olha antes de se levantar.
— Alô? Sim. Não. Não estou no quarto.
Eu me sento na cama, recostada à cabeceira, abraçando o travesseiro, enquanto ele veste a calça
e vai até a porta do quarto.
— São... Caralho, nove horas?
David abre a porta, mas depois se vira para mim com um olhar urgente, e, prendendo o telefone
entre o queixo e o ombro, aponta o pulso, onde não há nenhum relógio. Então ele sai para o
corredor, descalço e vestido só com a calça, e a encosta atrás de si.
— Barbara, não, escute, eu acordei cedo e desci para ler os jornais no hall — diz David quando
me aproximo.
Essa frase tem o efeito de uma era glacial.
Não fico chocada apenas pelo fato de que ele consegue inventar uma mentira mal tendo acabado
de acordar, mas também por todo o teatro envolvido: como ele saiu do quarto ainda fechando a
calça, como fala baixo contra o telefone. E, principalmente, o patético clichê de trair a namorada
com uma colega de trabalho durante uma viagem.
Tenho vontade de vomitar.
De repente não vejo mais o David por quem me apaixonei, vejo apenas um aproveitador
mesquinho, um sedutor barato que, afinal, conseguiu o que queria.
Tanto romance, ontem. Tanta doçura. Agora, toda essa doçura me deixa apenas um gosto
amargo.
Nós dois.
Aqui, neste momento.
As únicas coisas reais.
Agora, eu não passo de algo a esconder atrás de uma porta entreaberta.
David fala com Barbara por alguns minutos, o tom baixo, as palavras velozes. Não compreendo o
que ele diz, mas, no fundo, nem preciso.
Pouso a mão na maçaneta quando o escuto se despedir e dizer que estará na casa dela amanhã.
Engulo a raiva até senti-lo empurrar a porta para entrar de volta no quarto.
É então que também faço força e bato a porta na cara dele.
40. SEXO, MENTIRAS E LEÃO





David que tente falar comigo, penso repetidamente, apertando várias vezes o botão do elevador, uma
hora mais tarde, quando estou pronta para a entrevista de Klauzen.
Por sorte, com o smartphone, consegui mudar a reserva do trem e, depois do compromisso com o
médico, vou seguir direto para a estação. Sem intervalos.
Dessa vez não haverá tréguas nem desculpas por causa daqueles olhos escuros dele.
Nem por aquele bumbum...
Nada.
Que se dane. Barbara pode ficar com ele. Os dois se merecem.
Falso. Mentiroso. Dissimulado.
E hipócrita.
Ele que tente se aproximar de mim sendo todo fofo e romântico: sou capaz de arrancar a mão
dele com uma mordida.
Caminho pelo hall, para lá e para cá, de braços cruzados. Afinal, tenho que esperar por ele. Mas,
por outro lado, eu o coloquei para fora do quarto só de calça, e a chave dele ficou comigo, junto com
a camisa, a jaqueta e as meias, recordo com certa satisfação. Provavelmente ele teve que descer
seminu para pedir outra chave. Ah, se eu pudesse ver o vídeo de segurança!
Olho o relógio, e já é tarde. Folheio o material de divulgação sem ler realmente as
recomendações para a entrevista. Não estou nem aí para Klauzen, só não vejo a hora de toda essa
história acabar para poder ficar bem longe daquele monstro (David, não Klauzen) e voltar para
casa.
— Mademoiselle, pardonnez-moi...
A princípio, nem me viro, mas então alguém toca meu ombro e me vejo diante de uma moça com
o uniforme azul do hotel, que me entrega um envelope.
— C’est pour vous... par monsieur Nardi.
Tudo bem, entendo mais ou menos, e de qualquer modo só preciso ouvir Nardi para compreender
que é uma mensagem de David.
Alice,
Você tem todos os motivos para estar furiosa e pensar mal de mim. Qualquer coisa que eu pudesse dizer para tentar me
desculpar não seria certo escrever em um bilhete.
Infelizmente preciso ir embora, é mesmo urgente. Mas tem uma coisa que tenho que te contar e que é o verdadeiro motivo para
nós dois estarmos em Paris.
Eu não podia te contar antes.
Não, para falar a verdade... poderia ter contado ontem, mas não quis estragar o clima que havia entre nós. Sou um cretino, sei
disso.
Fui eu que dei um jeito de Marlin ser chamada para um teste, para que não pudesse vir a Paris.
Eu queria que você viesse comigo, e não só porque não confiava em Marlin para uma entrevista tão importante.
Alice, eu precisava tirar você de Milão.
Giorgio, que você está hospedando na sua casa, é procurado pela polícia por fraude de seguros. A emissora foi contatada pelas
autoridades depois de transmitir a matéria em que ele aparecia causando confusão no escritório. Ele foi reconhecido por pessoas que
examinaram sua documentação após alguns supostos acidentes que, segundo Giorgio, o deixaram permanentemente inválido.
Por enquanto, consegui manter o presidente fora dessa confusão, mas precisava tirar você de casa para que não atrapalhasse as
investigações e, principalmente, para evitar que acabasse envolvida na história.
Tem outras coisas que preciso te dizer. Coisas importantes, muito importantes, mas que precisam ser ditas cara a cara, olho no
olho. E não tenho tempo. Não posso explicar agora, mas preciso fugir. Tem a ver com Barbara, mas não do modo que você imagina.
Por favor, confie em mim, pelo menos uma vez. Só em mim, sem olhar horóscopos nem fazer mil conjecturas sobre meu Mapa
Astral.
Confio em você para a entrevista. Sei que é uma profissional e que, apesar do que pode estar sentindo agora, vai fazer seu
trabalho da melhor maneira possível. Pode ser importante para o programa. E também para o seu futuro profissional. Vai fundo.
Eu queria te dar um beijo, mas você provavelmente não deixaria.
DAVID

Nem sei como faço para chegar ao táxi e dar ao motorista o endereço do hotel de Klauzen, escrito
em um pedacinho de papel. Minhas pernas estão tão bambas que pareço ter borracha no lugar dos
joelhos. E me sinto totalmente confusa.
Ainda estou com raiva de David. Como não estaria? Mas sua carta foi como uma avalanche sobre
um esquiador que já tinha quebrado uma perna. Claro que a perna dói muito, mas agora há também
o problema de estar sepultado pela neve.
Ou seja, já havia o problema de David, e o fato de ele ter escolhido Barbara, no fim das contas.
Agora entrou também a história de Giorgio e a confusão em que ele me meteu.
Por um instante considero trocar novamente a passagem e voar para Timbuctu.
A suíte em que me instalam é completamente branca e tem um ar asséptico que me faz pensar em
hospitais. Ou na última cena de 2001: Uma odisseia no espaço.
Klauzen está sentado em uma poltrona diante da janela pela qual entra a luz da manhã e nem se
vira quando me aproximo. Minha mão, estendida para ele, é apertada pela assistente.
— Senhorita Bazzi, venha comigo que lhe explico a entrevista.
E me afasta de Klauzen, que não deu o mínimo sinal de ter percebido minha presença. Se eu fosse
uma mosca, talvez ele balançasse a mão para me afastar, mas não é o caso, eu não existo.
Bem, meu caro, não vou me descabelar porque um capricorniano arrogante nem olha para mim.
Você pode até ser o senhor de todos os ginecologistas, mas, para mim, não passa de um incômodo
cisquinho no olho. Sem contar que, depois de tantos anos de solidão, é bastante improvável que eu
venha a precisar de Klauzen.
Por isso, decido que nem vou tentar ganhar a simpatia dele.
A grosseirona da assistente me explica como levar a entrevista, onde me sentar, que perguntas
fazer. Eu poderia até tentar me impor um pouco, mas usei o restinho da minha força de vontade
quando me obriguei a tomar o elevador e subir até aqui. Então fico muda e concordo com tudo.
Não vejo a hora de chegar em casa.
Certo. E o que me espera lá?
Meu Deus, a polícia! Nem sei se ainda vou ter uma casa quando chegar a Milão...
Imagino um cena de CSI, meu prédio circundado por aquelas faixas amarelas e um investigador
bonitão à paisana (já viram algum investigador que não tenha sido Mister Universo nesses seriados
americanos?) informando que minha casa está interditada para as buscas sobre o caso.
... E se eu precisasse mudar de identidade para entrar em um daqueles programas de proteção às
testemunhas? Já tenho problemas suficientes de socialização sem precisar me isolar nas
montanhas.
Somente quando me sento diante de Klauzen e a assistente se inclina para sussurrar ao ouvido
dele que estamos prontos é que ele fecha o jornal e vira seus olhinhos de gelo para mim.
— Ligue a câmera — diz ele, sem preâmbulos, estalando os dedos como se eu fosse um poodle,
enquanto a assistente lhe ajeita os cabelos grisalhos com um zelo maníaco.
— Pardon?
Ele revira os olhos com impaciência. Em seguida murmura alguma coisa para Inga, em um
rigoroso alemão. Meu Deus, mesmo que ele não estivesse falando em alemão, eu me lembraria de
um daqueles velhos filmes em preto e branco sobre a Segunda Guerra Mundial.
Inga me encara sem expressar nada.
— Professor fala. Não fazer perguntas.
Olha, eu imagino que seja muito conveniente ter quase uma secretária-robô que te facilita tudo
na vida, mas é ridículo que seja ela a me responder quando ele fala o meu idioma muito melhor.
A não ser que seja tudo uma tática: ele pode pensar que soa mais assustador em alemão; neste
caso, não estaria totalmente errado.
Afinal, estamos falando de um capricorniano que, se não tivesse feito carreira na medicina, teria
o currículo perfeito para ser um ditador. Ele tem o Ascendente em Escorpião, o que lhe dá uma
força de vontade poderosa e tirânica, além de um temperamento que faz o Barba Azul parecer
tímido. Como se não bastasse, ainda tem uma Oposição Lua e Saturno, que acentua bastante sua
arrogância.
Mas o lema da minha vida nos últimos tempos tem sido este: tenho que engolir o sapo, não ficar
beijando para ver se aparece um príncipe.
Por isso aceno para Pierre, o câmera, começar a gravar, e me sento com toda a educação de que
sou capaz.
O sorrisinho satisfeito de Klauzen me dá nos nervos. Me faz lembrar o de Giorgio, quando ele fica
me manipulando para conseguir exatamente o que quer. E o de Alejandro, então? E o de Carlo, o de
David, o de todos os homens que não tiveram o mínimo escrúpulo em passar por cima de mim
como um rolo compressor?
Prepotente, Klauzen começa a falar de seu assunto preferido: ele mesmo.
Da Fundação Klauzen, dos Laboratórios Klauzen, das Clínicas Klauzen, do Método Klauzen...
É tão klauzencêntrico que me deixa tonta. Certo, a combinação entre Signo Solar e Ascendente
lhe dá uma segurança inabalável, mas me pergunto como ele se relaciona com as pessoas, se é que
faz isso.
— Em seu simpático programa — diz ele, irônico, a certa altura —, vocês falam de horóscopos...
E, bom, isso, minha cara, não tem nada a ver com a ciência, como você deve saber muito bem. Mas
estudos recentes fortaleceram a hipótese de que há uma ligação entre o período de nascimento de
um indivíduo e suas especificidades. Por exemplo, os bebês concebidos em maio tendem mais que os
outros a nascer prematuramente; em consequência, são mais frágeis de saúde. Da mesma forma,
parece que os nascidos em outubro têm ótimos resultados acadêmicos, coisa que é mais difícil para
os que vêm à luz em julho. Estes, por outro lado, podem ser mais resistentes fisicamente. E é justo
esse tipo de previsão que põe o Método Klauzen na vanguarda, dando a um genitor o conhecimento
necessário para que ele escolha calmamente a melhor data de nascimento para seus filhos. Então a
senhorita percebe que, graças ao Instituto Klauzen, é possível enfrentar essas problemáticas
desagradáveis e limitar os inconvenientes que podem decepcionar os pais, o próprio bebê e a
sociedade.
Na minha cabeça soa um alarme.
— Desculpe, mas, desse jeito, não haveria uma espécie de discriminação?
Klauzen para seu monólogo e me olha de cara amarrada.
— Evidentemente, a senhorita esqueceu que deveria permanecer calada.
Ah, sim, eu sou uma profissional séria e preciso desta entrevista para o programa.
— Quer saber? Podem ir para o inferno, o senhor, a Fundação Klauzen, o Método Klauzen e até
os pequenos Klauzen que sairão do forno nas suas clínicas nazistas. O senhor foi informado de que
a eugenética foi banida há dezenas de anos? O que está propondo é uma vergonha. O senhor quer
produzir crianças perfeitas sob encomenda dos pais. Crianças que sejam privilegiadas pelo modo
como foram concebidas e como nasceram. Crianças ricas, filhas de pais ricos que terão toda a
atenção. E os outros? Seremos escravos desses indivíduos privilegiados? Por acaso não temos todos
o direito de sonhar mudar de vida?
Inga está tão alerta que ameaça entrar em curto-circuito, se colocando na frente do doutor,
protegendo-o com o próprio corpo. Como se eu quisesse atentar contra a vida dele.
— Pode convocar o exército dos clones — digo, apontando para a secretária. — Não tenho a
menor intenção de encostar no senhor. Seria muito desagradável para mim. Sabe de uma coisa?
Tenho orgulho dos meus defeitos! O mundo, do jeito como o senhor quer, seria de um tédio mortal. E
isso é tudo por hoje. Adeus.
41. DEU A LOUCA NO GEMINIANO





Quando ponho os pés na plataforma da estação, parece que estou saindo de uma bolha, com toda a
sensação de estranheza que acompanha esse fato.
Estou mesmo de volta. Estou em casa, em Milão, sozinha. Agora, tenho que enfrentar o que resta
da minha vida, arrumar as coisas, mais uma vez. Organizar. Reconstruir.
Que saco!
Em primeiro lugar, tenho que fazer uma faxina mental. Do tipo: quem é David?
Mas não. Quando você esfola um joelho, precisa esperar criar casquinha, não pode recomeçar
logo a correr. E eu, com David, fiquei coçando o machucado por meses.
Foi principalmente por isso que ignorei a última mensagem de Daniel, e não respondi para
informar que voltaria um dia antes do previsto. Saio da estação e olho ao redor em busca de um
táxi.
Na verdade, no momento, tenho um motivo bem mais prático para ignorar o fotógrafo.
Embora os sofrimentos da jovem Alice ainda estejam em primeiro lugar na classificação das
minhas angústias cotidianas, eles são seguidos de perto pelo nervosismo com a situação de Giorgio
com a polícia.
Eu não podia deixar Daniel me levar para casa, quando não tenho nem ideia do que me espera.
Isso se eu ainda tiver uma casa, se ela não tiver sido interditada como cena de crime ou algo do
gênero.
A fila de pessoas à espera de táxi é absurda, até porque não aparece nem um carro, o que é bem
estranho para as sete e meia da noite.
— Dizem que o trânsito está infernal e que os táxis não conseguem circular — explica alguém,
impaciente.
— Primeiro passaram uns carros da polícia — diz outro. — Deve ter acontecido alguma coisa.
Tudo bem, por sorte não moro muito longe e acabo indo de metrô, enlatada como uma sardinha
no meio de uma nuvem de cheiro de suor.
— Eu desisti e deixei o carro em Loreto — diz um sujeito com pinta de empresário. — Tem
polícia em todo canto.
Quando finalmente saio para a rua, também percebo algumas viaturas passando. E, acima de
mim, um helicóptero voa baixo, fazendo barulho.
Na minha cabeça, de repente, surge uma centena de filmes de ação, com as forças armadas
caçando criminosos e explodindo carros, abrindo fogo no meio das ruas e praças, enquanto Giorgio,
usando uma jaqueta de couro e óculos escuros, integra o elenco de Matrix, esquivando-se das balas
em câmera lenta.
Eu me apoio na mala de rodinhas como se fosse uma muleta.
Só consigo pensar: Preciso. Chegar. Em casa. Logo.
Se é que ainda tenho casa!
É que as únicas cenas de prisão que já vi foram em filmes americanos, e nelas os caras nunca são
sutis.
Será que arrombaram minha porta? Com a fechadura blindada que instalei ano passado, bem
que eu queria ver. Será que usaram gás lacrimogêneo para confundir Giorgio e impedi-lo de fugir?
Vou precisar arejar o ambiente.
E o sangue? Ai, meu Deus! Não sei tirar manchas de sangue das paredes. E também, que nojo,
não vou mais conseguir dormir em uma casa onde foi cometido um homicídio cruel.
Mas que merda eu estou pensando? Por que rolaria um tiroteio na minha casa? Foram só golpes
em seguros. Não acho que é o caso de brincar de polícia e bandido no meu corredor.
Estou na frente de casa, encarando o interfone, tentando decidir o que fazer. Bem, em tese eu não
deveria saber de nada... Então seria normal subir e ver o que está acontecendo. A polícia poderia
desconfiar se de uma hora para outra eu mudasse meus hábitos.
Quando meto a chave na porta, me sinto meio como Judas.
Quero dizer, provavelmente nossos celulares estão sendo monitorados, mas eu nem pensei em
avisar a Giorgio, principalmente por medo de ele resolver propor de fugirmos juntos. Eu preferiria
a prisão em solitária a passar o resto dos meus dias com ele ao estilo Bonnie e Clyde.
O apartamento parece estranhamente tranquilo, só que...
Escuto uns gemidos. Uma espécie de grunhido baixinho, como um animal ferido.
Por um instante penso que atiraram mesmo em Giorgio e o deixaram para morrer na minha casa.
Mas é a polícia, não um matador de aluguel! O nervosismo faz a gente pensar cada coisa...
Estou assustada, mas me obrigo a avançar para descobrir o que está acontecendo. Pé ante pé,
chego à cozinha, de onde vêm os sons.
E congelo na porta, cobrindo a boca para não gritar.
Giorgio está completamente nu, exceto pela minha luva de forno, que usa para dar palmadas em
uma desconhecida, igualmente pelada, de quatro na mesa da cozinha.
— Giorgio! — grito, horrorizada.
Ele se vira com a luva de forno erguida.
Cubro os olhos para não ter mais que ficar olhando para toda essa nudez.
— Que merda você está fazendo?
— E quem é essa aí? — pergunta a estranha que está de quatro.
— Minha irmã! — exclama meu ex-namorado.
Eu estava esperando qualquer coisa nessa volta para casa, menos encontrar duas pessoas
transando entre o forno e a pia. E a polícia? Onde está a polícia?
— Sua irmã? — repito.
— Pantuffy, eu posso explicar tudo — diz ele, mais devagar, piscando para mim. — Me deixe
trabalhar — sussurra.
Trabalhar?
Quero dizer, eu não flagrei Giorgio supervisionando as operações para o lançamento de uma
nave. No máximo, isto aqui poderia ser o teste para um filme pornô, mas, felizmente, não vejo
câmeras.
— Vista-se — ordeno, seca. — E depois me conte o que esta mulher faz na minha casa. Ou
melhor, estou vendo o que ela faz... Bom, vista-se!
— Casa dela? — responde a mulher, que pelo menos está recolocando as peças íntimas. —
Giorginho, você me disse que era seu apartamento temporário... que precisava de dinheiro para
reformá-lo enquanto espera suas contas na Suíça serem desbloqueadas.
— De certa forma... realmente, o empréstimo do seu banco seria vital — responde ele, desviando
o olhar para a janela.
Eu me apresso a lhe virar as costas.
— Você pode ao menos colocar uma cueca? Não quero ver minha luva de forno com estampa de
moranguinhos cobrindo suas partes íntimas.
E onde foi parar a polícia? Ainda escuto as sirenes lá fora. Será que erraram o endereço? Eu que
deveria chamar a polícia?
Mas o que fico pensando é que, como voltei para casa um dia antes do previsto, estarei aqui
quando vierem prendê-lo. Ou seja, com um movimento, estraguei todo o disfarce da viagem a Paris.
— Giorgio, escute... — Só consigo pensar que, se eu quiser ter uma chance, ele não pode ser
preso na minha casa. Não comigo aqui, pelo menos. — Você tem que ir embora imediatamente.
— Claro, Pantú, claro — interrompe ele, tentando cobrir minha boca com a mão. O que me deixa
horrorizada, considerando o que ele estava fazendo com ela um minuto atrás.
— Não se atreva! — exclamo, me afastando com um salto felino.
— O.k., mas me escute — diz ele, vestindo o short. — Tenho um voo daqui a menos de três horas.
— O quê?
Bem, pelo menos estamos de acordo quanto ao fato de que ele tem que sair desta casa agora
mesmo.
— Acho que a polícia está me procurando. Um mal-entendido. Coisa burocrática, de seguros etc.
Pouco antes de você viajar, meu advogado me ligou para avisar. E... — Com um gesto, ele aponta o
corredor e, consequentemente, a cozinha. — Eu precisava de um bom dinheiro para a passagem
para a Tanzânia. Você não tinha... — Não sei com que coragem, mas ele me olha até ressentido. —
Por isso eu trouxe aquela lá.
— Você transou com uma mulher do banco para conseguir um empréstimo?
Ele dá de ombros, depois se volta e levanta o estrado da minha cama box, revelando o baú. Ali
está uma mala pronta.
Não presto muita atenção, mas, depois que ele a retira e já vai fechar a cama, grito:
— Onde foram parar minhas coisas? Onde... onde estão meus videocassetes?
O baú sob meu estrado está vazio. E, junto com as outras coisas, também desapareceu meu kit de
sobrevivência.
Giorgio me encara, surpreso.
— Aquela velharia toda? Joguei no lixo — diz ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Tenho que me apoiar no armário para não desmaiar.
— Parecia um monte de porcaria esperando uma limpeza. — O imbecil ainda dá de ombros de
novo, com ar totalmente inocente. — Era o meu presente de despedida.
E ainda banca o romântico!
— Pantuffy, eram só uns VHS velhos, eu te arranjei um belo Blue-Ray. Você vai ver como é
melhor, com o Dolby Surround.
Mas eu nem estou escutando mais.
— Você jogou fora... — Não consigo respirar. — Jogou fora... — Meu Deus, estou morrendo. Meu
número um, o primeiro videocassete que comprei, aos treze anos. E também Ghost, Uma linda
mulher, Dirty Dancing... — Como pôde?! — exclamo, empurrando-o para a porta.
— Mas, Pantú, por que você ficou assim?
— Por que fiquei assim? Porque não suporto mais você. Faz dois meses que encalhou no sofá da
minha casa com a desculpa de que não tem emprego e precisa pagar pensão à sua ex-esposa.
— Ex...? — grita a outra da cozinha.
— Esposa! E dois filhos! — acrescento.
Escuto o ruído de saltos pelo corredor e a porta de casa batendo.
Giorgio faz beicinho, como se eu tivesse estragado uma brincadeira.
— Está com ciúme, Pantufinha?
— Estou! Estou com ciúme da minha vida, da minha casa, das minhas coisas, do meu tempo! Ah,
mas o que adianta tentar explicar alguma coisa a um... um... um... idiota que acha que se divertir é
ver quantas doses de vodca aguenta antes de vomitar a alma no tapete? — Eu o agarro pelos
ombros e o empurro, do jeito que está, para o corredor. Não me importa nem um pouco que esteja
seminu.
Escancaro a porta e estou prestes a batê-la na cara de Giorgio, mas na soleira vejo dois homens
que nos encaram de testa franzida.
— Olá... Estamos procurando o sr. Giorgio Pifferetti.
Dou um suspiro de alívio.
— Os senhores são da polícia?
Eles se entreolham, perplexos.
— Bem, sim.
— Estão atrasados!
— O trânsito estava ruim... — diz um dos dois, coçando a cabeça.
— Hoje está havendo uma manifestação... — completa o outro, como se pedisse desculpas.
— Tudo bem, aqui está ele. É todo de vocês.
E empurro Giorgio para os braços dos dois, batendo a porta sem esperar resposta.
PEIXES

O homem de Peixes não se cansa de dizer que te ama. Claro que é mentira. Também diz que você
é o único amor da vida dele. Não acredite. Jura que aquela mulher que você flagrou ele beijando na
rua é só uma prima com quem estava tendo uma conversinha. A essa altura, você vai querer dar
uma surra nele. Não faça isso! É exatamente o que ele quer, para poder mostrar aos amigos e
parentes os hematomas que comprovam o seu desequilíbrio mental e sua crueldade. Porque, se tem
uma coisa de que o pisciano gosta mais do que contar mentiras, é de sentir pena de si mesmo e fazer
os outros sentirem pena também.
42. O QUE ACONTECEU COM A LIBRIANA?





Tudo que eu tenho agora, exceto as muitas lágrimas de raiva e tristeza, é uma casa de pernas para o
ar, um coração partido e nenhuma chance de me distrair assistindo Uma linda mulher.
Tentei passar o tempo no sofá, mas tinha muita coisa na cabeça, e ficar sem fazer nada estava me
enlouquecendo.
Então, sem os filmes de sempre para me consolar, tentei me distrair fazendo faxina, arrumando e
limpando a casa até nos cantinhos mais remotos. Melhor ainda: nos dois dias seguintes, me torno a
rainha da furadeira, tanto que a certa altura o apartamento parece um queijo suíço de tanto quadro
e prateleira que resolvi instalar.
Mas preciso dizer que descontar tudo nas paredes foi bem satisfatório.
E só agora que terminei, agora que tenho um belíssimo apartamento de solteira, cheio de livros e
pôsteres de velhos filmes, é que me permito sentar e chorar.
Choro. De alívio.
Eu me sinto estranhamente livre e leve, e tenho a sensação de que, de agora em diante, vou
mesmo recomeçar.
Sem Giorgio. Sem David... E, sim, claro, também sem meus filmes do kit de sobrevivência.
Mas todo começo vem de um final, certo?
Depois de me deixar chorar um pouco, jogo os lenços de papel fora. Chega de lágrimas, Alice. De
agora em diante, é crescimento, e ponto final.
Estou fazendo compressas de água fria nos olhos quando escuto a campainha.
Ah, não. Não atendi ao último telefonema de Paola (eu estava furando paredes) e ela deve ter
vindo para cá de novo, armada com uma vassoura para catar meus cacos do chão.
Mas quando abro a porta, quem encontro não é minha amiga multiuso.
— Você tem que me ajudar!
— Como assim?
Cristina me encara, olhos marejados e lábios trêmulos; tudo indica que vai cair no choro.
E cai mesmo.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela se joga nos meus braços, soluçando.
— Carlo está atrás de mim... você tem que me esconder!

— O problema é a Lua na Casa XII. A Lua na Casa XII sempre resulta em complicações no amor. E
em instabilidade emocional — digo, soprando o chá.
— O problema de Cristina é que o seu ex-namorado, futuro marido dela, é um grande filho da
puta. Esse é o problema de Cristina.
Paola é assim. Pragmática. Direta ao ponto. Culpa da Conjunção entre Lua e Saturno do seu
Tema Natal, mas nem posso dizer isso a ela, porque também tem Vênus e Marte em Câncer, e pode
guardar rancor para sempre.
O problema é que Cristina descobriu o que não devia, ou seja, que Carlo, aquariano e incansável
amante da liberdade, prestes a ser pai, a trocou por outra. E Cristina, transtornada, embora seja
uma virginiana com Mercúrio em Libra, apareceu na minha casa pedindo abrigo por tempo
indeterminado.
— Sim, mas o meu problema — falo baixinho, afastando Paola do sofá onde Cristina está
cochilando — é que eu não estou pronta para me tornar mãe... nem mãe adotiva ou tia postiça, se
isso significa acordar no meio da noite para trocar fraldas ou esquentar leite. Cristina não pode
ficar aqui em casa e ponto final.
Acabei de reconquistar minha liberdade. Acabei de me livrar de Giorgio. E até dei um jeito na
casa!
Posso até ser má pessoa, mas nunca fui muito fã de filmes cheios de bom-mocismo. Na prática,
minha vida já fica bastante complicada entre a confusão do trabalho e a confusão ainda mais
confusa das minhas relações, para ainda por cima eu me encarregar da ex-grávida do meu ex. Até
Freud acharia isso um rolo enrolado demais.
— Como sempre, você está se adiantando muito, Alice — devolve Paola. — Tem que dar um jeito
de resolver a situação, e não ir pensando logo no pior.
Foi justamente por isto que a chamei: Paola é a amiga que todo mundo queria ter. É Câncer com
Ascendente em Câncer, ou seja, tem muita sensibilidade, e, com Plutão na Casa III, é óbvio que
consegue sentir empatia com as pessoas.
Quando Cristina apareceu aqui em casa toda chorosa, fiz o que qualquer pessoa que conhecesse
Paola teria feito: liguei para ela.
Ela, honrando seu Quadro Astrológico, em cinco minutos conseguiu fazer Cristina parar de
chorar, contar tim-tim por tim-tim o que aconteceu e, finalmente, dormir.
Rapidinho. Coisa de profissional.
— Tem certeza de que não vamos pegar alguma doença? — pergunta minha incrível melhor
amiga, franzindo o nariz e puxando com a ponta dos dedos uma das cadeiras da cozinha.
— Limpei tudo — respondo, meio emburrada.
Claro que, com o poder persuasivo dela, eu também acabei contando sobre Giorgio, a prisão e a
cena na cozinha.
— Mas passou também aquele desinfetante tipo limpeza profunda? — insiste ela, sentando-se na
ponta da cadeira. — Nunca se sabe, falando de um cara como ele.
— Não se esqueça de que eu sou bastante detalhista, apesar da Lua em Peixes.
— Alice, você devia parar de uma vez com essa coisa de astrologia. Não sei se percebeu, mas
você não diz mais uma frase sem que haja no meio uma Lua, uma Conjunção ou uma Tríade.
— Um Trígono. Já te expliquei pelo menos três vezes.
— Pois é. Olha, Alice, um amigo de Giacomo teve problemas com álcool e foi para um centro...
Ele me disse que lá tratam um pouco de tudo, inclusive de dependências psicológicas em relação a
internet, jogo... e horóscopo.
— Paola, me escute de uma vez por todas: a astrologia me ajuda a entender muita coisa, tanto de
mim quanto das outras pessoas... E, quando a gente aprende mais do assunto, em noventa por cento
das vezes dá para evitar muita chateação.
Ela arqueia uma sobrancelha, levando a xícara de chá aos lábios.
— E David? — rebate Paola na hora, em tom de desafio.
Bom, claro que contei sobre David e o que aconteceu em Paris. Liguei para ela do trem para
desabafar.
— David é... a exceção que confirma a regra — respondo, me levantando para fingir procurar
alguma coisa no armário e não ter que olhá-la nos olhos. — Quero dizer, se a pessoa sabe que o
próprio Quadro e o dele são absolutamente incompatíveis... mas ainda assim não dá importância,
quer se ferrar e ir contra as estrelas...
— O nome disso é atração — responde Paola, sem se alterar. — Eu até faria uma pesquisa
estatística para ver quantos casais bem-sucedidos se baseiam em quadros astrológicos compatíveis.
Vamos tentar?
— Como assim?
— Giacomo e eu, por exemplo. Já conferiu?
— Hã... — Estou para responder quando o ruído do aspirador de pó nos distrai e nos faz correr
para a sala. Devo ter transmitido a Cristina o vírus da donadecasite, porque agora é ela que quer
fazer faxina.
Depois de um segundo de confusão, porém, Paola e eu nos damos conta de que há uma mulher
com mais de seis meses de gravidez na ponta dos pés no meu sofá, com a haste do aspirador de pó
erguida acima da cabeça, ocupada em remover a sujeira da parte mais alta da estante.
— Cris, pare com isso! — grito, mas, com o aspirador ligado, nem mesmo eu me escuto.
Paola é muito útil de novo, puxando prontamente o fio da tomada.
— Cristina — diz, estendendo-lhe a mão —, você não devia fazer esforço.
Dessa vez, porém, admito que o fascínio de Câncer não funciona, e Cristina se volta, com a Ira de
Khan no rosto.
— Querem que eu morra sufocada? Sou alérgica a poeira. Querem que eu tenha um choque
anafilático? Que eu dê à luz no tapete?
Ai, meu Deus, será que ela já está com as dores do parto?
— Preciso esquentar água? — pergunto a Paola, desesperada.
— Só se quiser fazer outra xícara de chá, idiota. — Em seguida, ela agarra com precisão de ninja
a haste do aspirador, baixando-a. — Ninguém vai parir aqui. Por enquanto.
Mas, ao desarmar a mulher grávida, Paola acaba golpeando a caixa que coloquei há meses no
alto da estante, aquela que meus pais me deram quando reformaram a casa e que está esperando
para ser inspecionada.
— Cuidado! — Faço o gesto heroico de aparar a caixa, me arriscando para salvar as duas de
serem soterradas por uma chuva de livros, papéis e quinquilharias.
— Caramba... quebrou alguma coisa? — pergunta Paola de imediato, vindo em meu socorro (ela
realmente não consegue evitar).
— Não faço ideia — digo, e vejo que Cristina voltou a soluçar no sofá, como nos melhores
melodramas. — Calma, vai...
Mas obviamente ela não me dá ouvidos e continua chorando, sufocando as lágrimas contra as
almofadas.
Paola já está em ação para arrumar tudo, e eu deixo Cristina ajudá-la.
— Tudo bem, faz dois meses que eu estou para olhar essa caixa. É um sinal do destino.
Paola revira os olhos.
Há uns cadernos da universidade. E também uma velha boneca de quando eu era criança.
Canetas que, obviamente, não funcionam mais. E papéis. Muitos papéis aleatórios. Mamãe deve ter
esvaziado alguma gaveta diretamente na caixa.
— E isto aqui? — diz Paola, pegando alguma coisa do chão, como se tivesse encontrado um
tesouro. — O que uma colher está fazendo no meio de folhas soltas e de cadernos? Realmente, você
é muito desorganizada, Alice.
Respiro fundo e tiro o objeto da mão dela.
— Não é uma simples colher, sabia? É uma colherinha da sorte, presente do meu tio quando
nasci — explico, com certo orgulho. — Está vendo? Aqui tem meu peso, ahn, eu tinha quase quatro
quilos... — Então tenho uma ideia e me sento ao lado de Cristina, tentando distraí-la. — Que tal
mandarmos fazer uma para o seu bebê? Olha que bonitinha. Tem a data de nascimento, a hora, meu
tamanho...
O efeito, porém, não é o que eu esperava. Cristina soluça ainda mais forte, tanto que por um
instante penso em sedá-la com uma colherada bem dada na cabeça. Não, com certeza meu instinto
materno fez as malas e migrou para muito, muito longe.
Faço menção de me levantar do sofá.
Volto a me sentar.
Com o olhar fixo à frente por alguns segundos.
Paola se endireita, as mãos nos quadris.
— Tudo bem?
Continuo olhando para a frente.
— Não sei.
— Como assim? Está tonta? Passando mal? — Ela corre para mim e pousa a mão na minha
testa.
Como resposta, levanto a colher, como se fosse uma prova.
Ela, evidentemente, não compreende.
— A hora... — sussurro. — Olha a hora.
— “Alice Bassi, nascida às vinte e três e quarenta e cinco...”, é isso? O que tem?
— Minha mãe sempre me disse que eu nasci às onze.
Paola ergue uma sobrancelha e me olha como se avaliasse a hipótese de chamar uma
ambulância.
— E daí? Você nasceu às onze e quarenta e cinco.
— Sim, mas da noite! — exclamo. E, dessa vez, levanto do sofá e corro para ligar para meus pais.
— Como vai, meu amor? — pergunta meu pai na outra ponta da linha.
— Papai, quando foi que eu nasci? — questiono, dispensando as preliminares, a voz trêmula.
— O quê? Filha, você está bem? Está com febre?
— Eu perguntei a mesma coisa, sr. Bassi — diz Paola em voz alta, ao meu lado.
— Ah, Paola! Olá, mande um oi para sua mãe.
— Obrigada!
— Querem parar, vocês dois? É uma questão de vida ou morte!
— Exagerada! — responde Paola.
— O que houve, pequenina? — pergunta papai.
— Pai, preciso saber a que horas eu nasci. Com precisão.
Ouço ao longe a voz da minha mãe:
— Diga a ela para vir buscar os sapatos, já peguei no sapateiro.
— Sua mãe mandou dizer que os sapatos estão prontos. Quando você vem?
— Logo, papai. Mas...
— Sabe quem eu vi um dia desses na praça? Sua professora do colégio. Lembra dela? Envelheceu
bastante, sabia?
— Papai, faça as contas, já se passaram quase vinte anos desde o colégio... Mas alguém pode me
dizer, por favor, a hora que eu nasci? Porque encontrei a colherinha com meus dados, o presente do
tio Christian, e...
— Falamos com ele ontem, com Christian. Mandou um abraço. Sempre pergunta por você,
coitado. Por que você não liga para ele de vez em quando? Ele vai precisar colocar uma placa no
joelho.
— Que pena. Pai, por favor... estou ligando porque preciso saber que horas eu nasci. Por favor,
me fala, depois eu dou todos os telefonemas que você quiser... — suplico.
Do outro lado há um silêncio constrangido. Em seguida:
— Adalgisa, a que horas Alice nasceu?
Quase vejo minha mãe saindo da cozinha e olhando para ele de testa franzida. Escuto-a
murmurar alguma coisa, mas não compreendo.
— Sua mãe diz que foi às onze — informa ele.
— Sim, mas às onze da manhã ou da noite? — Aliás, na verdade foi quase às doze horas. O
tempo é uma coisa tão relativa!
— Da noite. — Escuto a voz da minha mãe.
Caio de joelhos.
— Alice? Alô, Alice?
Estou tão chocada que nem me mexo quando Paola toma o telefone da minha mão.
— Sim, boa noite, sr. Guido, aqui é Paola. Sim, todos bem, obrigada. Alice está aqui, mas não
pode falar agora. Não... Está olhando as estrelas...
Quando me viro, Cristina parou de chorar e está me entregando um copo d’água, que eu engulo
de uma vez.
— E então? — questiona Paola, de braços cruzados.
Não lhe dou ouvidos e me arrasto para o computador, abrindo o programa de astrologia e
inserindo meus dados para o novo cálculo.
Algumas coisas não mudaram. A posição dos planetas é quase a mesma. Mas... os planetas nas
Casas e as Casas em relação ao signo, assim como os Aspectos entre os planetas e até o Ascendente
não são os mesmos.
Nunca foram os que eu pensava.
Meu Deus, preciso me sentar.
Mas já estou sentada!
Abro a boca, mas só me sai um fio de voz:
— Quem sou eu? Quem eu sou?
43. PERDIDA NA ASTROLOGIA





Tem gente demais. É a primeira coisa que penso quando atravesso a porta do loft e escuto o
burburinho. Alguém se vira para me cumprimentar:
— Oi, Alice!
— Bom dia, Alice.
— Olá, Alice.
— Alice...
Alice. Alice. Alice.
Não fazem outra coisa além de repetir meu nome, que nunca me pareceu tão distante de mim.
Quero rejeitar todos os chamados.
— Alice!
Levo um susto quando alguém pousa a mão no meu ombro.
— Enrico! — exclamo, recuando um passo imediatamente.
— Bom dia — diz meu chefe, com um sorriso largo. — Eu trouxe brioches para todos, quer?
Lanço um olhar para a escrivaninha dele, rodeada por um monte de gente.
Abro a boca, mas não consigo dizer nada. Como se comporta a Alice que é Libra com Ascendente
em Leão, com o Sol na Casa IV, Marte na II, Casa VI em Capricórnio e com todos esses novos anexos
e conexões entre planetas, Trígonos, Conjunções e Oposições?
Come o brioche? Não come e vai logo trabalhar?
— Um instante.
Viro as costas para ele e tiro da bolsa as folhas nas quais imprimi meu novo Tema Natal, para
dar uma olhada rápida.
— Está passando mal? — pergunta Enrico. — Alguma dor de estômago? Só assim para você
recusar um brioche.
— É mesmo? — respondo, desconfiada. Não me lembro direito do Quadro Astrológico dele, mas
o escorpiano costuma ser misterioso e ameaçador. Por isso, sua pergunta pode ter algo nas
entrelinhas.
Ou não.
A esta altura, quem pode dizer?
Minha cabeça lateja.
Depois de nos encararmos em silêncio por alguns instantes, ele dá de ombros e se afasta.
— Se você mudar de ideia logo, talvez ainda encontre algum. Daqui a meia hora, não garanto.
Aproveito esse instante de sossego para reler meu novo Quadro Astrológico. Mas meu estômago
revira.
Como essa pode ser eu? Eu que sempre quis um relacionamento sério, montar uma família, ter
estabilidade... E a Quadratura entre Lua e Netuno diz que não consigo criar raízes? Por outro lado,
aqui diz que sou individualista... E também enérgica, autoritária e egocêntrica. Mas eu não sei nem
onde me encaixo. Quanto a ser enérgica, nesse momento realmente precisava que alguém me
sacudisse.
E até sei quem.
Tito ainda não respondeu às minhas mensagens, o que é estranho, porque geralmente ele vem
correndo me ajudar.
De repente penso em uma coisa e folheio as páginas que imprimi.
Casa IX em Touro: amigos tendem a se ligar ao sujeito por interesse em vantagens econômicas
pessoais.
Aimeudeus... E se eu tiver sido enganada?
Que idiotice, o que Tito ganharia com isso?
Bem, ele se tornou um astro da televisão. Hmm...
Então eu o vejo. Está entre os fregueses de Enrico, o Briocheiro, maquiado como o pirata fajuto da
novela. Com os braços acima da cabeça, segurando como troféus um brioche e um cannolo, é
praticamente impossível não vê-lo.
— Alice, meu bem! — exclama ele, como uma mãezona, enquanto abre caminho em direção a
mim.
Meu bem uma ova! Se ele acha que vai me sedar com carboidrato na veia, realmente não me
conhece. Aliás, como eu também não o conheço, estamos empatados.
— Tito! — grito de volta. Estou frustrada, sim, mas não consigo deixar de abraçá-lo.
— Ei, ei, calma... se está com tanta fome assim, eu te dou os dois — diz ele, piscando. — Mas
você podia ter vindo comemorar com Enrico. Parece que a esposa dele finalmente voltou para casa.
Dou uma olhada em Enrico, que está gargalhando, as bochechas ruborizadas. E fico feliz por ele.
Precisava de uma boa notícia, um final feliz, ao menos para alguém.
Mas como é que Tito consegue pensar em comida quando o planeta inteiro está em perigo?
Tudo bem, talvez eu esteja exagerando, mas é como se já adulta eu descobrisse que fui trocada no
berçário, adotada ou raptada ainda bebê dos braços dos meus pais. Bem, mais ou menos. Porém o
efeito é que eu me sinto como um animal em vias de extinção.
— Recebeu minhas mensagens? Leu o e-mail? E o anexo?
Tito, porém, não parece entender a gravidade da situação e leva a mão à boca para disfarçar um
bocejo.
— Só uma olhada. Fiquei até tarde com André. Preciso de mais um café.
O.k., se esse é o preço para ele me dar ouvidos, eu colheria e torraria pessoalmente os grãos para
ele.
— E aí? — pergunto, dez minutos e um café depois.
— Mas isso é maravilhoso, Alice!
— Como, maravilhoso? Tito, você sabe o que está falando? Faz ideia do que isso significa para
mim?
Ele, porém, continua sentado na beira da escrivaninha, muito tranquilo, lendo as folhas
amassadas que lhe passei.
Para ele é maravilhoso. Já eu não dormi a noite inteira. Fiquei me levantando o tempo todo para
me olhar no espelho, convencida de que meu rosto começaria a se fragmentar, como em Vampiros
de almas.
— Claro, meu bem. Antes de mais nada, é maravilhoso que você possa se tornar esse tipo de
mulher, forte e decidida. Aliás, já conferiu a afinidade de casal com... bom, você sabe quem? Talvez
não dê tão errado agora.
Obviamente, foi a primeira coisa que fiz. Ou melhor, a segunda, se contarmos as cabeçadas na
parede.
A terceira coisa foi recomeçar a bater a cabeça na parede. Nossos Quadros Astrológicos, o meu e
o de David, brigam ainda mais do que antes.
— Não vem ao caso — corto. — Esta não sou eu! — exclamo, batendo o indicador contra meu
novo Quadro Astrológico que me lançou nas águas da incerteza, arrancou minha identidade e me
deixou neurótica. Então pego as folhas das mãos de Tito e começo a ler. — Aqui diz que eu teria
Ascendente em Leão. Pois é, significaria que eu sou uma líder nata. E aqui, olha... Tenho Marte na
Casa II... dizendo que sou empreendedora. Quem me dera! Acha que posso apresentar isto aqui
quando pedir o próximo financiamento?
— Ah, Alice — diz Tito, fazendo pouco-caso. — Você fala como se não soubesse interpretar um
horóscopo. E, francamente, depois de todos esses meses eu pensei que você já soubesse um pouco
mais a respeito. — Ele toma os papéis das minhas mãos. — Pronto, olha. Seu Ascendente. É verdade
que Leão costuma ser indício de liderança, mas, aqui, ó: “dotado de enorme criatividade, porém
tende a dramatizar tudo, provavelmente por ser um pouco inseguro, lá no fundo” — proclama,
parecendo bem satisfeito. — Esta é você.
Pego as folhas de volta e encontro a parte que ele acabou de ler. É uma linha e meia dentro de
pelo menos outras quinze que falam do quanto gosto de me destacar, de ser a chefe, de guiar as
pessoas e de ser uma fonte de inspiração. Fonte de inspiração! Eu, que a vida toda consegui no
máximo inspirar os homens a me abandonarem.
— E tudo isso aqui? — pergunto, fazendo-o notar o resto da lenga-lenga astrológica.
Tito dá de ombros.
— Na verdade, você poderia ser assim, mas vai ver ainda não encontrou a força para sair da sua
concha. — Ele retoma as folhas. — Mas aqui está certo, olha: “Você tem um grande coração e é tão
gentil e bondosa que se magoa quando precisa confrontar a crueldade e o egoísmo dos outros”.
Resmungo e recupero o Quadro Astrológico, acenando para Luciano se aproximar.
— Escute — digo ao meu colega de trabalho, ainda olhando para Tito com ar de desafio —, se
alguém, lendo seu horóscopo, te falasse que você tem um grande coração e é tão gentil e bondoso
que se magoa quando precisa confrontar a crueldade e o egoísmo dos outros...
Luciano assente, apertando os lábios em uma careta pensativa.
— É verdade, Alice. Acertou direitinho. Nem todo mundo entende isso, posso te garantir. Eu
tenho uma personalidade muito sensível.
Depois que ele se afasta suspirando, Tito bate palmas para mim.
— Parabéns, parabéns. E daí?
— E daí que qualquer um diria que se reconhece nessa descrição.
Ele estreita os olhos e cruza os braços, na defensiva.
— Mas você, não.
— Claro que sim. Mas, se todo mundo se reconheceria, que valor tem? Tito, por que você não
entende? Se esse tempo todo eu acreditei ser a mulher do outro Tema Natal, me reconhecendo tim-
tim por tim-tim, seguindo todo dia o andamento dos astros, como se eles falassem comigo, agora
não posso simplesmente dizer: ah, ops... vamos riscar tudo e abrir um novo capítulo, com uma Alice
totalmente diferente. Porque é isso que este Tema Natal me diz, Tito. Que eu sou uma pessoa
diferente.
— Você é você, incondicionalmente, meu bem...
Suspiro.
— Certo. Isso mesmo, Tito. Exatamente isso. Eu sou sempre eu, incondicionalmente. — Balanço a
cabeça. — Agora, é melhor eu ir para o estúdio.

Minutos depois, chego à porta do estúdio de gravação e ponho a cabeça para dentro bem a tempo de
ver o letreiro de neon com GUIA ASTROLÓGICO PARA descendo do teto, solidamente preso por alguns
cabos de aço.
Ferruccio supervisiona as operações de desmonte enquanto os cenários do meu programa
televisivo são colocados na empilhadeira de forma organizada, prontos para ser guardados no
galpão dos acessórios, onde serão repintados e transformados em outra coisa.
A segunda parte do letreiro, CORAÇÕES PARTIDOS, ainda está pendurada, e continua pairando
atrevidamente no ar. Bem abaixo dela vejo Carlo, e nem se tivesse uma seta apontando dele para o
letreiro a descrição poderia ser mais perfeita.
— E então? — digo, tentando engolir o sentimento de culpa. Por pouco Cristina não me fez
assinar com sangue o juramento de não lhe revelar onde ela está.
— Ahm... — responde ele, com um suspiro triste.
Não é típico de Aquário ficar sem palavras, e menos ainda de Carlo, porém entendo que seja um
momento complicado, mesmo para ele. Mas pigarreio.
— De certa forma, não era o que você queria? Como ia viver ao lado de uma mulher que não
ama, estando apaixonado por outra? E não me fale do bebê. O bebê não tem nada com isso.
Carlo se senta em um cubo de compensado.
— Mas eu não sei o que quero. Nunca sabemos, Alice. Você sabe o que quer? Tudo é sempre preto
no branco?
Não. Nunca é. Não mais. Talvez antigamente fosse, mas, com a idade, o panorama desbota e a
gente tem que se esforçar cada vez mais para ver todas as nuances. As palavras de Carlo fazem
muito sentido, estranhamente. Todos nós temos medo. Ninguém sabe de fato aonde ir.
Estendo a mão para ele, e quando Carlo se levanta eu o abraço.
— Tudo vai dar certo — sussurro. Vou falar com Cristina, tentar convencê-la a conversar com
ele. Estou me sentindo calma, em paz com o mundo.
Então Carlo se afasta e seus olhos estão tão marejados que quase deixo escapar que Cristina está
lá em casa.
Mas é ele quem fala primeiro.
— Eu já ia esquecendo... Passei pelo presidente agora há pouco e ele disse que quer falar com
você.
Ah.
Bom, ninguém pode ficar calmo e em paz com o mundo por mais de trinta segundos.
Enquanto saio dos estúdios e subo a escada, ainda estou tentando compreender meu novo Quadro
Astrológico, porque é em momentos como esse que eu gostaria muito de saber o que esperar.
Tito diria que é típico da Libra não gostar de surpresas e querer tudo sob controle. Eu diria que é
típico de mim. Sim, sou libriana, mas talvez não fosse muito diferente se tivesse nascido em março.
Para falar a verdade, mesmo que eu agora desconfie um pouco da astrologia, ainda estou meio
preocupada com aquele Mercúrio na Casa IV, porque costuma indicar instabilidade. Muitas
mudanças, também. Eu poderia não ter mais condições de pagar o aluguel. De fato, no Quadro
Astrológico também diz que posso trabalhar de casa, tipo vendendo coisas por correspondência.
Sinto um calafrio.
Automaticamente ligo para Paola, porque tenho certeza de que duas palavrinhas com ela vão
colocar minha cabeça de volta no lugar.
— Então, você não contou sobre Cristina? — questiona minha melhor amiga, irritada. — Não
acha que essa palhaçada já durou o suficiente? Aqueles dois precisam conversar.
— Paola, eu prometi! E Carlo me disse que o Presidentíssimo quer falar comigo, então temos um
problema mais urgente.
— Primeiro descubra o que ele quer e depois, se for o caso, me ligue de novo, e a gente conversa.
Assim falou Paola-Pragmática, a mulher mais séria do espaço sideral. E tem razão. Por que eu
não consigo pensar como ela? Não parece ser tão complicado.
— Enquanto não falar com o presidente, você não saberá o que ele quer — reitera Paola, e me
sinto um pouquinho mais tranquila. — Afinal, tirando a história de Giorgio, que lhe arrumou um
probleminha com a justiça, além de um olho roxo e um escritório revirado... por que ele estaria
irritado com você?
Paro diante da porta do Presidentíssimo com o punho erguido, prestes a bater. Pois é, por que ele
estaria irritado comigo?
Digo a Paola que falo com ela mais tarde e desligo, então bato na porta, sem me dar tempo para
pensar.
— Presidente...
— Sente-se, Alice.
Quando saio de lá, uns vinte minutos depois, parece que entrei em um daqueles filmes de ficção
científica em que a gente passa por uma porta e se descobre em uma realidade paralela.
Essa sensação nem deveria ser nova para mim, já que acabei de descobrir que não vou ser mais a
mulher confusa e sonhadora que eu era, mas uma empreendedora que transforma sua imaginação
em projetos concretos para o futuro.
Minhas pernas tremem, e fito o celular com o número de Paola já selecionado. Na vida que eu
levava antes, ligaria para ela imediatamente. Mas e agora?
Agora preciso que essa notícia se assente em mim, em silêncio. Preciso saborear o gostinho dela,
suas implicações, as possibilidades.
O Presidentíssimo pediu que eu saia da Rede Mi-A-Mi.
Não, não fui demitida, não exatamente.
Nos últimos meses, o Guia astrológico para corações partidos desequilibrou a audiência dos canais
maiores, e muitos perceberam isso. Então a rede recebeu, além da oferta de uma fusão que nos
salvará da falência, a proposta de ceder o programa. E uma empresa de produção também
perguntou por mim. Querem me entrevistar. Em Roma. Se eu estiver interessada.
Estou interessada?
Sem me dar conta, paro diante de uma porta fechada. Se estou em busca de um lugar para
meditar, não há nada melhor do que um escritório vazio.
E talvez até seja bom ver essa sala sem ele, sem David e suas coisas. Vai me ajudar a limpar a
mente de sua imagem, a encarar esse ponto de transformação a partir do qual ele não está mais na
minha vida. Se eu tomar essa decisão, muitas das pessoas que conheço agora não farão mais parte
da minha vida. Não sei se terei forças para isso.
Se por um lado a ideia me empolga, por outro me deixa aterrorizada.
E giro a maçaneta.
A sala está iluminada e quieta. Na escrivaninha há uma caixa grande, e os contornos nas paredes
brancas mal denunciam os pôsteres e molduras que já estiveram lá. Ao lado de uma janela há uma
lata de tinta que fará desaparecer qualquer rastro da presença de David aqui dentro.
Suspiro baixinho e me viro para sair, mas a porta que eu havia deixado aberta está fechada agora
e, ainda que seja difícil de acreditar, David está na minha frente.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, a voz soando aguda.
— Bem, é o meu escritório. Enfim, por hoje. Vim para... — Ele aponta a caixa na escrivaninha.
— E você?
Ele parece hesitante ao falar, as palavras saindo com dificuldade, como se cada sílaba lhe
custasse muito.
Eu queria que meu coração não batesse tão forte nos ouvidos. Tão forte que me deixa confusa
enquanto a lembrança dos nossos beijos me tira da realidade por alguns segundos.
— Bem...
— Alice...
Falamos juntos, atropelando um ao outro. Até nossas palavras querem se abraçar.
Sou uma romântica idiota! Ele pode dizer o que quiser, mas a verdade é que me usou de um jeito
horrível.
— Vou deixar você terminar de organizar suas coisas — digo, desviando o olhar e dando um
passo em direção à porta. É um movimento arriscado, visto que ele está na frente, mas preciso
demonstrar que não vou mais ficar em xeque-mate. — Com licença — emendo, fazendo-o entender
que precisa me abrir passagem.
David dá um passo para o lado, mas continua com a mão na maçaneta.
— Por favor, Alice, não tivemos mais chance de conversar depois... de Paris.
As emoções se embolam no meu estômago. O que ele quer? Minha bênção também?
— Não há nada a dizer, David. Nós nos deixamos levar pela situação e pela atração que sentimos
nos últimos meses. — Penso no Ascendente em Leão que não me pertence e que não quero, mas que
às vezes acho bom deixar ser minha característica dominante, como se eu tivesse dupla
personalidade. — Bem, nós realizamos a fantasia. E vamos encerrá-la aqui. Podemos voltar às
nossas vidas.
Ele me olha de testa franzida e solta a maçaneta, mas só para segurar minha mão.
— Você tem razão em falar que nos sentimos atraídos por todos esses meses. — Ele acaricia o
dorso da minha mão. — Alice... não é fácil para mim. Eu sou... Não consigo confiar nas pessoas.
Minha vida nunca foi muito estável, desde garoto. Já te contei isso. Então tenho muita dificuldade
em... em me apegar. Acabo me magoando e magoando quem quer ficar comigo. Barbara, por
exemplo...
Ah, não, não vou ficar ouvindo a beatificação de Barbara. Não mesmo, não aguento.
— Escuta, David. Você não precisa se justificar. — Junto minha força de vontade e consigo
afastar a mão da dele. — Eu também pensei a respeito, e as coisas realmente não funcionariam
entre nós. De qualquer jeito. Para começar, nossos Quadros Astrológicos são totalmente
incompatíveis. E também... sinceramente, você não é o que eu quero para a minha vida. Quero um
homem que esteja presente. Quero um homem que me faça sentir importante, que não me deixe
ansiosa toda vez que nos falamos, porque não sei quando vou vê-lo de novo ou se ele está
escondendo alguma coisa de mim, ou qual será o humor dele no dia. — Suspiro e o encaro. — Não
quero mais brincar. Quero um homem com quem eu possa construir alguma coisa. Ou pelo menos
com quem eu acredite que posso. — David ainda abre a boca para falar, mas eu o interrompo: — E
talvez Daniel seja esse homem.
Meu coração quase sai pela boca ao dizer isso. Acho que cortei com uma guilhotina o antes e o
depois, e agora os dois pedaços da minha vida não podem mais ser reunidos.
David me olha nos olhos. Então passa por mim, alcançando a escrivaninha e a caixa.
— É bom saber que você tem as ideias tão claras — diz ele, ainda de costas. — Você é uma
pessoa incrível, Alice. — David se vira um instante, e seu sorriso torto, doce e um pouco
melancólico, ainda deixa meus joelhos trêmulos. — Se essa história toda pelo menos te fez entender
melhor as coisas e te deixou mais determinada... só posso ficar feliz.
44. VICIADA EM ASTROLOGIA





— Isto aqui não é um centro comercial.
— Um ponto pela sagacidade, Sherlock. — Paola entra primeiro no hall de um instituto todo em
tons pastel e com música ambiente.
— E então? O que viemos fazer aqui? Você disse que queria me mostrar um novo centro!
— E quero — diz ela, dando de ombros, sorrindo de modo satisfeito, por causa de seu Júpiter em
Virgem. — Este é um novo centro. Foi você que pensou em um centro comercial.
É claro que me sinto enganada. Desde quando Paola considera a existência de qualquer outro
centro que não funcione para fazer compras?
Olho ao redor, e o lugar agora tem todo o jeito de ser um hospital.
— Você está passando mal, Paola? Aconteceu alguma coisa?
Aimeudeus, se lhe acontecesse alguma coisa eu realmente não saberia o que fazer.
— Alice, eu estou ótima. — Ela me tranquiliza. — É com você que estou preocupada.
Pisco algumas vezes.
— Mas eu não estou doente!
— Sua fixação em horóscopo está cada vez pior — responde Paola, séria.
A culpa é toda do seu Aspecto Negativo entre Marte e Urano, que a faz ter tanta certeza das coisas
que fica arrogante.
— Você deveria falar disso com alguém — continua ela. — Um profissional.
— Um espremedor de cérebros, um médico de malucos!
Não acredito que caí nessa armadilha. Não dá para confiar em uma pessoa que tem Aspecto
Negativo entre Plutão e Meio Céu! Sempre achei que o Quadro Astrológico dela talvez estivesse
errado, mas agora não tenho dúvidas: Paola está abusando da nossa amizade e me enrolou para
impor sua vontade.
— Quero ir embora.
— Espere um pouco, Alice. Caramba! Vamos dar uma volta. Só para olhar. Se você me fizer esse
favor, eu te pago um almoço no japonês que você adora.
Bem, por um lado não quero ceder, mas Paola também tem Saturno em Áries, e não quero que ela
guarde rancor de mim por décadas. Sem contar que há meses não ponho os pés no Sakura, e posso
me vingar pedindo os pratos mais caros.
Por isso, acabo fingindo concordar e ela anda toda arrogante até a recepção.
Descubro que este lugar é um centro de tratamento para dependências psicológicas e que as
pessoas vão e vêm, sem ser internadas.
Portanto, nada de quarto todo acolchoado para Alice. Isso já me tranquiliza um pouquinho,
embora meu Marte em Leão me diga para não baixar a guarda.
A moça que nos acompanha em nosso “só-um-tour-de-observação” diz que pessoas aparecem por
ali com muitos problemas diferentes. Principalmente pessoas que vivem destacadas da realidade. É
assim que ela diz, usa o termo “destacado” como se fôssemos pedaços de fita adesiva cuja cola secou
e que têm dificuldade de aderir e se integrar ao resto.
— Aqui, conosco, elas aprendem a enfrentar outros problemas, a sair da concha protetora onde
se refugiaram — diz a doutora. — E pouco a pouco nós as resgatamos e devolvemos à realidade.
Paola me encara com uma expressão muito satisfeita, como uma criança com um doce. Se
houvesse justiça neste mundo, ela ficaria com diabetes.
— Mas que tipo de pessoas? — pergunto. — Quero dizer, vai ver elas só gostam muito de uma
coisa... Quando alguém está curioso sobre algum assunto, é normal que fale disso com frequência.
— Claro — responde a doutora.
— Claro — ecoa Paola, meio amarga, dessa vez.
— Mas não é normal que esse assunto absorva todo o resto, ou que nos faça perceber a realidade
de modo distorcido, como se fosse um meio de entender a vida.
— O único meio — acrescenta Paola, assentindo.
A doutora nos convida à cafeteria, já que não podemos assistir a uma das sessões. Ainda bem. Eu
não queria me pegar dizendo: “Bom dia, meu nome é Alice e sofro de dependência de horóscopo!”.
Mesmo que isso talvez deixasse Paola feliz.
A cafeteria parece um lugar legal, e há várias pessoas sentadas às mesinhas. Mas, felizmente,
ninguém está de pijama, ninguém olha fixo pelas janelas com olhos vítreos e um fio de baba
escorrendo do queixo.
Paola e a doutora se acomodam, continuando a conversa, e eu vou ao balcão fazer os pedidos.
Ao meu lado há um senhor simpático de uns sessenta e poucos anos, que lembra um pouco meu
pai e com quem simpatizo de imediato. Está remexendo nos bolsos à procura de algum trocado e,
quando sorri para o atendente, este balança a cabeça e reclama:
— Não posso vender fiado sempre, Armando.
Coitadinho, talvez sofra de Alzheimer; ele tem uma expressão tão aérea que não me
surpreenderia.
— Posso? — pergunto. — Posso lhe oferecer um café?
Ele me encara perplexo, e o atendente comenta:
— Armando, você atrai todas as mulheres bonitas. Que sortudo!
— É, pois é, pois é... a senhorita... realmente caiu do céu.
Começo a rir enquanto peço café também para Paola e a doutora. Para mim, um chá quente, e,
enquanto espero que fique tudo pronto, me espreguiço e esfrego os braços.
— Isto mesmo — diz Armando, colocando açúcar em seu café. — Um chá quente é a melhor
coisa para aquecer os ossos... com a temperatura caindo e as chuvas previstas até o fim de
semana...
— Ah, o senhor ouviu a previsão do tempo? — pergunto distraidamente.
— Se eu ouvi?! — exclama ele. — Se eu ouvi?!
O atendente se volta para mim e balança a cabeça de novo.
— Senhorita, Armando tem uma estação meteorológica completa na casa dele.
Nos três minutos seguintes descubro que Armando frequenta o centro justamente por causa de
sua paixão por meteorologia, e que a simples menção ao assunto abre um perigoso turbilhão que
ninguém aguenta.
Ele sabe tudo sobre correntes, precipitações, tempestades e afins. Parece um velho lobo do mar
em sua estação meteorológica improvisada no banheiro de casa, entre o boxe e o bidê... Por isso
acabou no centro, quando “a santa da sua esposa” ameaçou pedir o divórcio depois de quarenta e
três anos de honrado serviço matrimonial. Como dizem, quem semeia ventos colhe tempestades!
A doutora chega para me ajudar a levar os cafés para a mesa e, quando o reconhece, o saúda
perguntando:
— E então, como vai com sua esposa?
Armando suspira.
— A situação é muito variável. Na vida de casal as temperaturas estão em queda, mas confio em
que meu empenho enfrente os temporais como um anticiclone...
A doutora apoia a mão no braço de Armando e balança a cabeça para detê-lo antes que enverede
pelo discurso meteorológico.
— Desculpe, desculpe... — diz ele, coçando a cabeça e puxando do bolso umas pílulas, que
engole em seguida. — Me deixam mais tranquilo — explica, dando de ombros.
Tudo bem, mas eu não sou assim. Quero dizer, não reduzo a termos zodiacais qualquer coisa que
alguém me diz. Aimeudeus! Tenho o Nodo Lunar Norte na Casa XII! Nunca tinha pensado nisso, mas
pode ser indício de problemas psicológicos e até de internações hospitalares.
Aimeudeus, aimeudeus, aimeudeus!
Não, não, calma, Alice, calma: esse era o meu velho Quadro Astrológico!
No novo, vejamos... Eu vou para um canto olhar no celular, porque ainda não o sei de cor. Tenho
Saturno na Casa IV, o que significa dificuldades, mas tudo bem... E Marte na Casa II, que prenuncia
conflitos, principalmente no campo econômico, mas em última análise nada diz que sou uma louca
que vai acabar em uma camisa de força.
Por um momento agradeço aos céus (literalmente) por ter descoberto que errei de horóscopo.
Depois paro para analisar: Só penso em astrologia, exatamente como Armando com as mudanças
climáticas.
Fujo para o banheiro.
No espelho está a Alice de sempre. Ou melhor, a Alice que parece a de sempre, mas que também
é uma desconhecida porque, desde que descobriu que o Quadro Astrológico não é o que imaginava,
parece que perdeu a identidade.
Dou uma risada histérica.
Não quero acabar aqui dentro fazendo confissões e recebendo aplausos por conseguir passar
vários dias sem consultar as estrelas.
Lavo as mãos em água fria e finalmente decido sair. Minha fome passou, mas Paola vai pagar o
almoço do mesmo jeito, por ter me feito passar por essa experiência horrível, embora tivesse razão.
— Vamos? — digo, indo ao seu encontro na mesinha.
Ela me encara preocupada, mas assente.
— Vamos. — Como sempre, compreendeu sem que eu precise explicar.
A doutora nos acompanha até a saída, ainda conversando com amabilidade, e depois aperta
calorosamente nossas mãos.
— Sua amiga me contou que seu problema é a astrologia — diz ela.
Tenho vontade de enfiar a cara em um buraco.
— Não, quero dizer... sim, gosto de astrologia, mas não acho que...
Ela afaga minha mão e se afasta comigo por alguns passos.
— Claro, claro, querida... mas por que não tenta as runas? São muito mais eficazes, pode
acreditar.
45. INSUPORTÁVEL VIRGINIANA





— Eu trouxe isto para você — diz Daniel erguendo uma sacola assim que me aproximo. Ele está no
portão da Rede Mi-A-Mi, encostado ao carro.
— O que é? Um presente? — Fico meio constrangida ao receber a sacola e olhar dentro.
— É só um poncho. Vi em uma vitrine... e achei que combinava com seu cabelo.
Suspiro, mal contendo um sorriso, enquanto tiro o poncho da embalagem e o experimento. Talvez
não seja a estação adequada, mas Daniel é o cara mais fofo do mundo.
Fico na ponta dos pés e o beijo.
Estamos saindo há quase três semanas.
Com frequência.
Isso quer dizer que, desde que começamos, praticamente não passamos um dia sem nos ver, tanto
que me parece muito, muito mais tempo. Talvez seja porque Daniel deixa minha vida muito
interessante.
Além de ter essa beleza rústica, ele é uma dessas pessoas socialmente engajadas que parecem
estar em sintonia com o universo. Como domingo passado, quando fomos ajudar a limpar as águas
daquele riacho... Qual era o nome mesmo?
Ele me abraça e eu me entrego ao cansaço. Tive outra reunião hoje e não vejo a hora de relaxar.
A casa dele é pequena, mas linda, e um bom banho e talvez um pouco de televisão depois de um
jantar orgânico é tudo de que preciso.
— Esta noite vamos sair. Quero te dar um presente, por isso vou te levar a um lugar que você vai
adorar.
Bato palmas, animada, e lhe dou outro beijo na bochecha. É bom ter um namorado com tanta
iniciativa, e ele sempre tem ideias incríveis.
Já no carro, ligo o telefone, que começa a vibrar com mensagens e chamadas perdidas.
Duas são de Tito, e logo sinto um aperto ansioso na garganta. Cancelo imediatamente o aviso,
decidindo ignorar as ligações. Não nos falamos há mais de duas semanas.
Não é que eu esteja com raiva dele, só estou tentando evitar de cair de novo no túnel da tentação
astrológica. Um túnel, é preciso dizer, onde foi ele que me enfiou.
E não, não me sinto culpada. Decidi que não devo me culpar por fazer a escolha madura de tirar
alguém da minha vida. Faz parte do meu plano de crescimento. De agir como uma mulher adulta.
Esse plano também deveria me fazer retornar à ligação da famosa produtora de Roma, mas ainda
não consigo.
A notificação seguinte é de uma ligação de Paola, e depois uma mensagem.
Me ligue de volta assim que puder.

Tudo bem, para ela acho que vou ligar. Afinal, ela sempre apareceu quando precisei, e é justo
também fazer algo por ela. Talvez depois do jantar, porque não é educado ficar ao telefone quando
se está na companhia de alguém.
Depois, há trinta e duas chamadas perdidas de Cristina.
Começo a coçar ferozmente o pescoço.
— Tudo bem? — Daniel se volta para mim.
— Hum? Sim... Por quê?
Daniel sorri, paciente, e estende a mão para acariciar meu pescoço.
— Você precisa daquela pomada de chá verde que usei no Quênia. Pare de se coçar, você está se
machucando.
Mas não posso evitar. Não a suporto mais. Cristina, quero dizer. Basta ouvir sua voz ou ver seu
nome no telefone para começar a urticária.
Escondo o celular na bolsa, como se fosse a prova de um crime.
Não é por maldade. Trinta e duas chamadas. Realmente. Trinta e duas. Como o celular só ficou
desligado por duas horas, isso significa um telefonema obsessivo-compulsivo a cada três minutos e
meio.
— Alô, Cristina? Tudo bem? — Minha voz soa calma, mas por dentro estou cuspindo fogo como
um dragão.
— Vou denunciar todos eles! — grita ela, quase estourando meu tímpano.
— O que aconteceu?
Falo bem devagar, afastando o aparelho do ouvido para escutar a explicação cansativa sobre por
que o mundo é tão cruel com ela.
— Minha mãe quer me impedir de cancelar a cerimônia. Assumiu o controle do meu casamento e
telefonou para todo mundo dizendo que obviamente ele vai acontecer. Obviamente uma ova! Eu não
me caso com Carlo nem sob tortura!
Com uma barriga do tamanho de uma melancia e a estabilidade psicológica de Alex DeLarge em
Laranja mecânica, realmente não dá para querer casar depois que o noivo confessou estar
apaixonado por outra.
Embora, na minha opinião, fosse ser uma ótima vingança se casar com ele e depois atormentá-lo
para o resto da vida.
— Cris, você não quer ao menos conv...
— Ah! Passou para o lado deles? Não é mais minha amiga? Pode falar. Eu sei que você sempre
me odiou. Sei que nunca foi com a minha cara...
— Cris, por favor... Você tomou o calmante natural?
Paola deu uns calmantes para ela, na enésima tentativa de fazer Cristina recuperar algum
equilíbrio, mas talvez seja tarde demais. Não se pode salvar todo mundo.
— Tudo bem? — pergunta Daniel, começando a estacionar o carro.
Cubro o fone com a mão.
— É só que eu não estou pronta para ser mãe! — murmuro, nervosa, e ele me encara de testa
franzida. — Por favor, Cris, calma. Escuta, vou jantar fora esta noite... Não, não vou chegar tarde...
Sim, eu ligo para mandar sua mãe ir se foder... com certeza. Tudo bem... mas fique tranquila...
tchau. Claro que eu gosto de você. Tchau... Não, não te odeio por você ser uma grávida gorda e
maluca. Tchau, tá? Está com desejo? Tudo bem, eu peço no restaurante... Tchau. Tchau. Sim... Tch...
— Aperto a tecla de desligar e relaxo no assento, fitando o vazio.
Daniel toca meu braço e, quando o encaro, ele se inclina para me beijar.
— Melhor não dizer aquilo para a mãe dela, porque ela pode se ofender e tenho certeza de que
sua amiga não quer isso de verdade — comenta ele, antes de sair do carro.
Quando eu também saio, não estou preparada para o terreno lamacento que me acolhe e meu pé
desliza, quase me derrubando.
— Cuidado! — Daniel me segura, passando o braço pela minha cintura, e não me solta até
chegarmos diante da porta. — Consegue?
Se eu consigo atravessar uma porta? Hmm, vejamos... Eu o encaro e suspiro, sorrindo.
— É difícil. Mas posso tentar.
— Então espere.
Ele entra primeiro, empurra a porta e a mantém aberta para mim.
Sim. Bom. Era uma brincadeira. Ele não entendeu? Hmm. Tudo bem, murmuro um “obrigada” e
entro.
A primeira coisa que noto é que estamos em uma espécie de galpão de fazenda com piso em
granito, como o da casa dos meus pais quando eu era pequena, três reformas atrás. As luzes são de
neon, daquele branco frio, e uma delas, em um canto lá no fundo, está piscando como se fosse
queimar.
— Não é um lugar fantástico? — diz Daniel.
Nossa, eu não o definiria assim, mas por enquanto vamos nos contentar em desviar os olhos da
luz piscante para não ter convulsões.
Não estou de má vontade; afinal, sou uma libriana com Vênus em Libra e Lua em Peixes, e isso
me faz naturalmente predisposta a apreciar coisas bonitas e luxuosas, então percebo logo quando
um ambiente pode ser melhorado. É genético.
Ah, não. Fiz de novo! Dou um tapinha na testa, para me punir dessa fraqueza astrológica.
Não posso, não posso, não posso pensar em astrologia!
— Não gostou? — pergunta Daniel, preocupado.
— Ah, não... não é isso. É só que eu tinha me esquecido de uma coisa. Está tudo bem... — Estendo
a mão e entrelaço os dedos nos dele. — É um lugar bem rústico... — digo, olhando as paredes
descascadas.
Daniel sorri e coloca o menu na minha frente, me fazendo arregalar os olhos.
Eu estava esperando um papel rabiscado à mão e cheio de erros de ortografia, não este elegante
livro encadernado em seda, e muito menos os pratos que leio nas páginas...
Camarão graúdo ao chocolate com tomate, amêndoas e pistache; risoto de vieiras com creme de
coral, tomilho, limão e açafrão... Eu nem sabia que coral era comestível. Sorrio para Daniel.
— Eu sabia que você ia gostar daqui. E ainda nem viu o resto. Todo o galpão faz parte de um
projeto de recuperação do terreno.
Ele está prestes a explicar melhor quando meu celular toca de novo. Na tela aparece o nome de
Paola, e não tenho coragem de deixar cair na caixa postal.
— Com licença um minutinho — digo a Daniel. — Alô, Paola... escute, estou jantando fora, posso
te ligar...
— Alice, você tem que fazer alguma coisa! — A voz dela não tem nada da calma habitual que,
sinceramente, às vezes me irrita. — Não aguento mais. Giacomo não aguenta mais. E Sandrinho
está com urticária.
— O que houve?
— Sua amiga Cristina me liga sem parar. Ouvi toda a história com Carlo. Toda a história de
Carlo. E toda a história sem Carlo. Eu quero ter vida própria, sabe? E ela também não me liga para
pedir conselhos, só quer vomitar em mim toda a negatividade. Você tem que ligar para Carlo! —
conclui ela, em tom exasperado e definitivo.
— Paola, não posso ligar para ele. Prometi a Cristina que não me meteria nisso... E você mesma
disse que ela é quem tem que decidir quando vai conversar com ele.
— Isso era o que eu pensava antes de dar a ela meu telefone. Sério, Alice... estou correndo risco
de divórcio. Eu e Giacomo estávamos quase... Bom, Sandrinho está na casa da minha mãe e você
sabe como é, nós...
— O.k., o.k., entendi, entendi. Vou ligar agora e ver o que eu posso fazer. Calma.
— Ligue para Carlo. Só eles podem resolver as coisas.
— Tudo bem. Vou cuidar disso. — Suspiro, exasperada, e preciso de alguns segundos para me
acalmar e lembrar sobre o que eu e Daniel estávamos falando. — Você estava dizendo...
Mas, de novo, meu celular começa a tocar, e agora é Cristina.
— Ah, não!
Daniel passa a mão pelo rosto.
— Não vou atender — digo, resoluta, baixando o volume.
Estou prestes a desligar o aparelho de vez. Pois é, mas e se ela estiver passando mal? Dou uma
olhada para o telefone. Parou de tocar.

Tento relaxar e saborear o prato maravilhoso que acaba de ser posto à minha frente, esquecendo
Cristina, Paola e qualquer outra interferência externa. Daniel me serve mais vinho e eu suspiro de
novo diante de sua beleza inegável e selvagem.
Este homem é perfeito, penso. Talvez tenha valido a pena sofrer tanto, se era para esperar a
chegada dele, com quem me sinto tão sintonizada.
— O poncho, as flores, este restaurante... até parece que estamos comemorando alguma coisa.
Estamos fazendo aniversário e eu me esqueci? — brinco, na verdade um pouco nervosa, porque,
quando a esmola é demais, o santo desconfia.
Daniel limpa os lábios e me encara, perplexo.
— Bem, só dá para comemorar aniversário depois de um ano, Alice. Nós só estamos saindo há
poucas semanas.
É verdade. Não sei se deveria explicar que era uma brincadeira. Bem, digamos que nossa sintonia
é quase perfeita. Em última análise, que casal não tem que se adaptar um pouco?
— Eu queria te falar de uma coisa... — digo, meio hesitante.
Estou fugindo da questão há mais de três semanas, mas preciso enfrentar logo o assunto porque
se refere ao meu futuro.
Ainda não respondi à proposta que recebi da outra produtora, de ir para Roma.
— Na realidade, temos uma coisa a comemorar, sim — diz ele, me interrompendo e me fitando
intensamente nos olhos. — Alice, como falei, não estamos saindo há muito tempo, mas sinto que
você está se tornando uma pessoa importante na minha vida.
Franzo a testa e tento me concentrar nas palavras de Daniel, mas parece que nos meus ouvidos
ecoa o efeito doppler da sirene de uma ambulância.
— Bom, realmente são só três semanas. Pouco. Bem pouco tempo.
— Sim. Mas eu não quero te perder, Alice.
Estreito os olhos, perplexa, porque não compreendo.
Ele se vira para o garçom e acena, depois se levanta e me chama para segui-lo. Passamos por
outra porta, que leva ao terreno dos fundos. Ando com ele, concentrada no calor da mão que Daniel
pousou na minha cintura.
— Me ofereceram um projeto incrível, do tipo que eu sempre sonhei, sabe? — explica ele.
Alcançamos o que de início parece um painel de madeira, mas Daniel pega uma extremidade e
faz o painel deslizar, revelando que se trata de uma porta. O ambiente é fracamente iluminado, e
pequenos spots de luz branca contornam as linhas de algumas esculturas modernas.
— Este lugar nunca é o que parece — comento, meio nervosa, vislumbrando na penumbra
algumas figuras que se movem; outras pessoas.
— A Fundação Wessler acredita muito nisso, e estão dispostos a me financiar por dois anos, que é
a duração do projeto.
— Dois anos? — Estou atordoada. — Ah, bom... — Não sei o que dizer. — Mas onde?
— Circulando pelo mundo. Não vou ficar no mesmo lugar por mais de dois meses.
Ah. E eu achando difícil falar com ele sobre Roma!
— Mas, Alice... — Ele me encara e aperta minhas mãos, levando-as aos lábios. — Você iria
comigo.
— O quê?
Não sei por que de repente faz tanto calor aqui dentro e por que tenho a impressão de que essa
escultura, que parece uma enorme colmeia recurvada, está prestes a cair em cima de mim.
Respiro fundo. E penso que só a ideia de mudar de cidade já me apavora, imagine sair pelo
mundo durante dois anos.
— Daniel, não sei...
De repente, sinto falta de Tito. De seu abraço tranquilizador, de suas palhaçadas que
amenizavam os problemas, de sua leveza.
Me afastar de Daniel me deixa mais tranquila, então começo a circular pela exposição, como se
flutuasse.
Observo o que parece o rosto de uma mulher reconstruído com estilhaços de vidro. A legenda diz
que é o retrato da esposa do artista.
Sei lá como é ser a esposa do artista. Como é ser transformada em uma obra de arte?
O que a esposa do artista faz enquanto o artista está sendo artista?
Na penumbra, Daniel conversa com silhuetas escuras.
Sem dúvida, como ele diz, eu poderia conhecer o mundo. Uma oportunidade rara de riscar
praticamente tudo da lista de coisas que eu sempre quis ver.
Mas e depois?
O que se deseja, quando não se tem mais nada a desejar?
Que droga! Estou confusa e me fazendo perguntas demais. E na escola sempre odiei as aulas de
filosofia. Provavelmente é por isso que agora tenho a impressão de que meu cérebro está
derretendo. Não consigo acompanhar meus pensamentos. Já estou me imaginando em um camelo,
com um traje saariano... Mas também estou na Índia com um sári lindo, ou escalando o Himalaia,
agarrada à montanha de mãos nuas. E Daniel? Hmm...
Retrato da esposa do artista enquanto o artista está artisticamente ocupado.
Fito os olhos da mulher feita com fundos de garrafa. Ou, pelo menos, encaro o que parecem ser
os olhos. Na realidade, poderiam muito bem ser as orelhas ou as narinas. Ainda bem que Daniel é
fotógrafo, porque, se eu fosse a mulher retratada aqui, arriscaria dizer umas palavrinhas ao meu
marido.
O problema, porém, é que me sinto pequena demais para enfrentar tudo isso. Não que não esteja
à altura, só parece impossível que a mulher que imagino possa realmente ser eu. Eu, Alice Bassi. A
funcionária que sonhava em fazer cinema e em vez disso acabou nos programas de uma pequena
emissora de tevê.
A secretária de produção que uma produtora de Roma quer entrevistar.
Esse também parece um sonho maior do que eu.
O problema é que poderia ser o meu sonho...

Atrás de mim luzes se acendem e, quando me viro, noto um pequeno palco, apenas um cubo sobre o
qual foi disposto um microfone. Alguém bate palmas, e eu acompanho só para seguir o fluxo, mas,
quando reconheço o homem que subiu ao estrado, meus braços parecem ficar dormentes.
— Ah, merda... — murmuro.
— É o professor Klauzen — explica Daniel, que já se aproximou de novo e abraçou minha
cintura. — Parte da renda do leilão desta noite será dedicada às pesquisas dele.
— A arte é vida... A vida é arte... — declama Klauzen do palco. — Ou, no caso desta noite, a arte
devolve à vida seu maravilhoso potencial de perfeição. “O que é belo há de ser eternamente uma
alegria”, disse Keats no poema que dedicou à perfeição da beleza. A beleza de uma vida sã e plena,
como as vidas que as pesquisas Klauzen esperam alcançar...
— Ele é um grande homem — sussurra Daniel ao meu ouvido. — Se apaixonou de verdade pelo
meu trabalho e quer que eu faça uma reportagem sobre suas pesquisas. Com muitos retratos. — Ele
beija meu rosto. — Ter a parceria de uma pessoa desse calibre é fundamental.
Ah, claro. Será que Daniel não podia considerá-lo o emérito babaca arrogante e esnobe que
Klauzen realmente é? E, melhor ainda, será que esse babaca podia não ser tão importante para a
carreira dele? Roo as unhas ferozmente, a ponto de tirar sangue de um dedo.
— Porra!
— Ahn, Alice, meu amor, fale baixo — recrimina Daniel.
Klauzen continua se exibindo no palco, enquanto eu me pergunto se o holofote focalizando nele o
impede de distinguir o rosto do público e, no caso específico, o meu. Assim pelo menos tenho tempo
de pensar em um jeito de escapar.
Com certeza, quando Klauzen terminar de bancar o Marlon Brando, Daniel vai querer
cumprimentá-lo. E eu não quero ser a pessoa que vai destruir sua carreira.
— Vou ali um instantinho, jogar um pó de arroz no rosto...
Daniel me olha de um jeito avaliativo.
— Mas você já está tão pálida...
Fecho os olhos e respiro fundo.
— Na verdade, quero dizer que preciso fazer xixi — explico, deixando-o sem resposta.
— Ah... tudo bem. Os banheiros ficam lá no fundo. Eu te espero aqui.
Obviamente, não fico muito animada com a notícia.
Após toda a reforma que fizeram neste lugar, devo dizer que o banheiro é uma decepção.
Praticamente um cubículo e com um só reservado, que, no momento, ainda por cima está ocupado.
Enquanto espero, meu olhar pousa no espelho. Realmente estou da cor da noiva cadáver. Daniel
observou bem.
Faço uma careta.
Sou uma idiota. Estou me queixando de quê? Tenho um homem perfeito, bonito, atencioso...
Certo, ele não tem o menor senso de ironia, mas e daí? Não somos todos iguais neste mundo.
Que droga, se havia uma pessoa que eu não queria encontrar nunca mais era Klauzen! Suspiro.
Que azar!
No reservado, escuto puxarem a descarga, e então enxugo as mãos e me endireito, tentando
assumir uma expressão neutra.
Errata.
Na lista das dez pessoas que eu nunca mais queria encontrar, de repente me dou conta de que
Klauzen não ocupa o primeiro lugar.
Porque no topo fica Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori, que está na minha frente neste
momento.
Por um instante, penso até que seja uma espécie de visão divina, mas ao contrário, porque, para
mim, Barbara e Satanás devem ser primos de primeiro grau. O segundo pensamento que me ocorre
é: Barbara Buchneim-Wessler Ricci Pastori faz xixi como nós, reles mortais. E, além disso, tira a
calcinha da bunda.
É um pensamento idiota, mas me conforta um pouco.
Torço para conseguir me camuflar ao lado da pia, mas é inútil tentar fugir. Barbara me encara
com seus olhos verdes, e seu rosto passa do relaxamento de quem acabou de se aliviar para a
rigidez de alguém que de repente percebeu que tem uma lembrancinha desagradável sob os sapatos.
Para deixar bem claro, nesse caso eu sou a lembrancinha desagradável.
Não falamos nada, e o ruído da água correndo quando ela abre a torneira ressoa ensurdecedor
como uma cachoeira.
Um instante depois, ela já saiu, e eu me fecho no reservado, onde ainda paira o cheiro de seu
perfume caro de baunilha e jasmim.
E agora? Quero dizer, se eu ainda podia inventar uma desculpa para Klauzen — tipo fingir estar
atordoada por todas as obras de arte deste lugar e passar o resto da noite olhando fixamente para
uma estátua —, com Barbara já sei que não vai funcionar.
Fecho o vaso sanitário e me sento na tampa, segurando a cabeça entre as mãos. Mas que merda,
será possível que eu sempre vou acabar escondida em um banheiro, chorando sobre a vida?
Poderia ser pior?
David pode estar aqui com a namorada.
Ah, não. Eu imploro, Senhor do azar, me poupe ao menos disso.
— Alô?
— Oi, meu bem! Não acredito que você afinal me ligou!
A voz de Tito está empolgada, e eu sorrio a contragosto.
— Desculpe... é só que... estou tentando assumir o controle da minha vida e não me deixar viver
pelo horóscopo.
— Sem problemas, meu bem. Mas então, onde você está?
— Bom, trancada em um banheiro...
— Ah... Parece um ótimo método para assumir o controle da própria vida.
— Tito, estou em uma fazenda nos arredores de Milão. Sabe aqueles lugares restaurados, um
pouco por estar na moda e um pouco por ação beneficente? Fazem até exposições aqui.
— Hum, sim. Entendi. Acho que fui aí com André, umas semanas atrás. A comida é ótima. — Ele
fica em silêncio, esperando que eu diga alguma coisa, e, quando não falo nada, continua: — E o
banheiro, como é?
— Bem... decepcionante.
— Ah, pois é. É nisso que os arquitetos me decepcionam.
— Tito, Klauzen está aqui.
— Ah, merda!
— E acabei de esbarrar com Barbara Buchneim-Wessler etc. etc.
— Dupla merda! Não tem uma janela por onde sair escondida?
Levanto a cabeça e percebo uma pequena, e com grades.
— Mas não posso fugir, Tito, eu vim com Daniel.
— Então finja uma parada cardíaca, e eles te levam para casa.
— Claro, para dar ao dr. Klauzen a satisfação de pegar nos meus peitos enquanto banca o herói
na frente de todo mundo.
— Bem, pelo menos ele tentaria te ajudar... dessa vez.
— Se me reconhecesse, aposto que me quebraria alguma costela de propósito, ou talvez me
deixasse para morrer — digo, amassando o rolo de papel higiênico.
— Bom, então nos próximos dias eu vou passar para uma visita... Aí no banheiro onde você
mora.
— Fale sério.
— Não, fale sério você! — explode ele, perdendo o tom leve. — Você ignorou seu melhor amigo
por três semanas. Agora está aí trancada no banheiro de um restaurante. É assim que pretende ser
adulta, Alice? Sempre fugindo para não tomar decisões mais sérias? Recusando oportunidades por
medo de se descobrir?
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que sei que te ofereceram uma entrevista de trabalho em Roma e você ainda não
respondeu. Porra, Alice, quer perder o emprego dos sonhos por causa do milésimo cara que, na
verdade, você nem ama?
Eu sabia que era um erro ligar para ele. Agora tenho um nó gigante na garganta.
— Você... você... você... — É só o que consigo dizer, como se tivesse ficado gaga.
— Eu, nada. Agora vai lá e mostre suas garras de uma vez. Você é Alice Bassi. Graças a você e ao
seu programa, uma emissora de tevê que todos consideravam liquidada voltou a ter uma audiência
de dar inveja aos canais maiores. Você é obstinada, é uma sobrevivente. Porque caiu e se levantou.
Sempre. E, ainda que não acredite, há mais forças nesses seus bracinhos finos do que nos de um
lutador de sumô. Vai lá e arranque os olhos daquela víbora.
Eu me levanto subitamente, tão energizada por esse discurso de encorajamento que pareço Rocky
Balboa disputando o título mundial.
— Vou lá quebrar eles ao meio.
— Ótimo. Nos vemos no inferno, gringa.
E eu vou. Mas embora abra a porta do banheiro como um bandido de faroeste, à medida que o
burburinho aumenta e a luz diminui, minha coragem começa a vacilar.
Tudo bem, talvez não seja o caso de quebrar eles ao meio. Talvez baste dar um oi rapidinho, aí eu
finjo um desmaio e me levam para casa. Também parece um ótimo plano.
Obviamente, dou muita sorte: Daniel subiu ao palco e está ladeado tanto por Klauzen quanto por
Barbara. Como se não bastasse, agora que a apresentação acabou, as luzes foram reacendidas e,
mesmo que quisesse, eu não teria como me esconder.
Vou direto ao olho do furacão.
— Aí está você! Pensei que tivesse caído no vaso! — exclama Daniel, eufórico, rindo sozinho.
Bom, pelo menos algum humor ele tem, de vez em quando... Tipo humor de criança no ensino
fundamental.
— Ahn... — digo. (Parabéns, Alice, belo ataque! Eles já estão tremendo.)
Depois, estranhamente, enquanto Barbara aperta os lábios com irritação, Klauzen franze a testa e
sorri. Ele exibe os dentes que já passaram por muitos clareamentos e me estende a mão.
— Ah, então a senhorita é a famosa namoradinha do nosso Daniel!
Ponto um: eu não era definida como “a namoradinha” de alguém desde a escola, quando o pai de
Jean Pietro Guastamacchi flagrou a gente se pegando no banco do jardim em frente à casa dele.
Ponto dois: não sei se essa versão de Klauzen Papai Noel me causa menos ou mais horror do que
a versão nazista.
Ponto três: esse comportamento educado só pode significar uma cilada ou um aneurisma.
— Ah, bem, namorada, quer dizer... sou só uma amiga — respondo, me afastando um pouco.
— Ah, claro — intervém Barbara, sorrindo também, mas de modo nem um pouco tranquilizador.
— Hoje em dia, as pessoas chamam muita coisa de amizade...
Não entendo o que ela quer dizer, mas é melhor fingir que não foi nada.
— Você! — exclama Klauzen em seguida.
Dou um pulo e me preparo para o pior. Agora ele vai dizer que eu sou uma incompetente, que vai
mandar me tirarem de qualquer projeto em que eu pretenda me inscrever na vida e que vai
transmitir ao mundo, via satélite, meu ataque histérico.
— Seu rosto não me é estranho, sabia? Por acaso tem parentes na Bretanha?
— Ahn... — Sério: será que ele não me reconheceu? — Não, na verdade não.
— Talvez... — começa Barbara com um sorrisinho sonso. — Em Paris?
Klauzen balança a cabeça.
— Paris? Por quê? Só vou até lá a trabalho, não conheço praticamente ninguém.
Eu arqueio uma sobrancelha, me perguntando se na verdade ele não está curtindo com a minha
cara, se esse não é um método de tortura para me fazer pagar por todos os pecados.
Bem, não tenho certeza sobre Klauzen, mas com Barbara sei muito bem que é isso mesmo. Então
tento desviar rapidamente a atenção deles para o meu “namoradinho”.
— Daniel me contou sobre o projeto que vocês lhe propuseram — comento.
— E eu convidei Alice para me acompanhar. Acho que ela poderia ser muito útil ao
empreendimento — acrescenta Daniel.
Mas Barbara nos interrompe:
— Ah, não tenho a menor dúvida. A srta. Bassi sempre sabe ser útil. — Ela me encara ao dizer
isso e, meu Deus, percebo que sabe o que aconteceu em Paris entre David e eu.
Se eu já não odiava David o suficiente por ter me usado, agora o odeio ainda mais, depois que ele
provavelmente tentou limpar sua consciência me retratando como algum tipo de vilã.
Klauzen me encara, surpreso.
— Como assim? Trabalha em quê, srta. Bassi?
— Ahn, eu trabalho... em televisão. Sou assistente de produção.
Agora ele vai lembrar. Agora vai somar dois mais dois e me levar ao seu laboratório para fazer
experiências desumanas.
— Ah! Televisão. Não gosto muito, sabe? E recentemente tive uma péssima experiência em uma
entrevista. Eu estava em Paris e havia uma jornalista idiota... — Ele me encara e eu engulo em
seco. — Uma mulher grosseira e, sobretudo, estúpida como uma galinha. Eu tinha explicado a
complexidade do meu trabalho, dado a ela as perguntas e assim por diante. E ela, nada, queria de
qualquer jeito agir por conta própria, tanto que precisei suspender a entrevista. Foi extenuante.
— Não acredito! — deixo escapar, porque, caramba, ele não só não se lembra da cara da
entrevistadora como também não entendeu, ou melhor, sequer escutou o que ela lhe disse.
— Você não esteve em Paris, amor? — comenta o homem que, se continuar assim, em pouco
tempo será meu ex-namoradinho, além de ex-fotógrafo, porque vou arrancar sua mão.
— Eu, hum... Já faz tempo. Quero dizer, é... Nem tive tempo de ver nada.
— É o que acontece quando você não sai do quarto de hotel — diz Barbara, me olhando de cara
feia, para depois acrescentar: — Trabalhando.
Sem dúvida estou acabando com eles, como sugeriu Tito...
— Vou deixar vocês falarem de trabalho e buscar alguma coisa para beber...
Mas não dou nem um passo quando a voz de Barbara me alcança:
— Vou com você.
O.k., tenho que me lembrar de ficar de olho no copo, para não dar a chance de ela atirar a bebida
na minha cara.
Fazemos o pedido. Em um momento de lapso mental, eu peço um Sex On the Beach, o que dá
margem para Barbara comentar:
— Bem típico...
E ela, por sua vez, pede algum drinque que soa como Diamond Perfect ou algo do tipo.
Ficamos em silêncio até os coquetéis serem servidos. O meu é de um laranja vibrante com uma
sombrinha no topo; o dela brilha como se tivesse luz própria, em uma elegante taça comprida.
— É feito com pó de diamante — explica Barbara, percebendo meu olhar curioso. — É um
coquetel muito especial. E pouca gente pede, por causa do valor.
Sim, claro. Quem se contenta em exibir diamantes nos dedos? Melhor bebê-lo, não?
Deus, se o Senhor existe, que ela tenha uma indigestão fulminante! Pode pelo menos considerar a
ideia?
— Você me dá vontade de rir, sabe? — diz ela, depois de provar um gole do drinque.
— É mesmo? Que bom, assim você exercita alguns músculos do rosto. — Agora estamos só eu e
ela, e parece inútil fingir educação.
Ela abre um meio sorriso.
— Tenho vontade de rir, vendo o trabalho e a dificuldade que você teve para alcançar seus
objetivos, e, no entanto, continua no mesmo lugar. Uma pobretona que nem é muito bonita,
tentando fisgar o milésimo idiota para subir na vida e se tornar alguém que não consegue ser
sozinha.
Pouso o copo e tiro delicadamente a sombrinha. Por um instante, imagino cravá-la na garganta
de Barbara, como a protagonista em Kill Bill.
— Acho que foi isso que você fez. É só uma questão de ponto de vista.
Ela dá uma risadinha.
— Acho que você não entendeu. Eu não preciso fazer nem querer nada. São os outros que querem
algo de mim. Que me querem. David quis me levar para a cama assim que botou os pés na
propriedade do meu marido. — Ela me olha intensamente, esperando que esse golpe me atinja.
Mas ela não sabe que essa ferida já está meio cicatrizada.
— Claro que você é muito bonita. É normal que desperte o desejo dos homens. Mas isso não
significa amor.
Ela balança a cabeça.
— Ah, amor! David também veio com essa história... Não, Alice, não é só a beleza. O que eu
tenho é classe, coisa que não se compra em lojinhas de departamento, sinto muito. — Barbara
estala a língua. — Você, com suas roupinhas baratas e sua vida burguesa, pensa que todo mundo é
igual, que todos deveriam ter as mesmas chances. David também sempre me irritou com essa
conversa, aliás. — Ela faz um gesto vago depois de pousar o copo. — De qualquer jeito, eu estava
cansada dele. É um idiota, se acha que é o amor que move o mundo. — Barbara sorri. — E, por
outro lado... Você escolheu Daniel, que pode se tornar rico e famoso em poucos anos. Eu te acharia
esperta, se não tivesse deixado de lado um fator fundamental.
— E qual seria?
— Eu, queridinha.
Ela se afasta, rebolando de um jeito sexy, embora discreto, e vejo as cabeças de muitos homens se
virarem à sua passagem.
Meu coração martela no peito por tudo o que eu queria ter dito, por tudo o que queria ter feito,
mas estou congelada.
Por um só pensamento.
David a deixou.
46. AQUÁRIOS DE UMA NOITE DE VERÃO





Minha cabeça gira. Estou sem ar. Minhas mãos e meus braços formigam. Todo o meu corpo foi
tomado por altos e baixos de pressão.
Decido sair, deixando para trás as pessoas e o burburinho ao redor.
Digo a mim mesma que só preciso de um pouco de silêncio, e então me dirijo à porta, pensando
em ficar ali fora por alguns minutos, ao menos para tomar um pouco de ar e clarear as ideias.
David e Barbara não estão mais juntos.
Sim, mas eu não estou apaixonada por Daniel? Nossa relação é boa, estável, clara. Sou uma
idiota de pensar...
De qualquer jeito, que bom que David terminou com ela. Deve ter percebido o quanto Barbara é
escrota. E não significa que fez isso por mim. Talvez ir para a cama comigo tenha deixado as coisas
mais claras, fazendo-o perceber que não a amava.
Posso pelo menos ficar feliz com isso?
Mas então por que sinto que é errado?
Por que estou esperando que ele volte para mim?
Estou prestes a sair quando vejo a um canto algo que não via há pelo menos dez, não, há pelo
menos vinte anos: uma velha cabine telefônica, daquelas fechadas como uma nave espacial, com o
aparelho de fichas e as paredes internas de plástico.
Entro ali e já me sinto um pouco melhor, como se fosse abraçada. E penso em quando usava
cabines como essa, na adolescência, para ligar para os meus namorados, quando estava de férias.
Acaricio a parede empoeirada e penso nos gritos e nas lágrimas que esta cabine já presenciou.
Porque muitas vezes, durante as férias de verão, meu coração ficava partido de imaginar que os
meus namorados estavam arrumando outras garotas lá nas praias ou nas montanhas ou nos lagos
onde estivessem.
E sempre condicionei minha vida à deles.
Deslizo até o chão, encolhendo os joelhos e abraçando as pernas.
Tito está certo ao dizer que eu tenho medo de assumir o controle da minha vida. Afinal, se você
não joga, não perde. E se eu fizer tudo errado? Se não puder culpar alguém, nem os astros, ou o
azar, por ter atrapalhado as coisas... então realmente vou ficar mal.
Mas não seria pior perceber, sei lá, daqui a vinte ou trinta anos, que não fiz nada por iniciativa
própria? Que nunca tive coragem? Que nunca tomei decisões, e deixei que os outros, sempre os
outros, as tomassem por mim?
David e Barbara terminaram.
E não sei o que isso quer dizer.
E não sei o que quero fazer.
E sei que, no fundo, o horóscopo não tem nada a ver com isso. Ou melhor, até pode ter, se eu o
encarar como se deve: somente uma sugestão para compreender qual é o meu potencial.
Afinal, tenho Ascendente em Leão, certo?
Tenho um sobressalto quando três golpes surdos ecoam na cabine. E, quando levanto a cabeça,
no vidro comprido e estreito da porta de pressão está o rosto de Tito, desgrenhado e sorridente.
Sinto uma lágrima cair, mas só uma e de alívio. Ele agarra o trinco, abre a porta e se abaixa.
— Está apresentável, ou ainda está vestindo a roupa do Super-Homem?

Pedi desculpas outra vez, tentando explicar por que precisei me afastar um pouco dele. E também
que senti muito sua falta. E Tito quase chora.
Eu também, mas sou chorona mesmo.
Ele dirige pela noite.
— Então, como você quiser: chega de astrologia.
— Isso. Muito bem. — Cruzo os braços, embora a dependência em relação ao horóscopo, nesse
momento, me pareça o último dos meus problemas.
— Portanto...
— É...
— Pois é.
— Quantas estrelas, hein? — comento, olhando pela janela.
— Já vem você puxando o assunto!
— Ufa. Tudo bem, na verdade a culpa não é toda do horóscopo, você tem razão. Tenho que ser
mais corajosa, preciso. — Evito falar sobre David e Barbara, porque só de pensar nisso ia cair de
novo no círculo vicioso de erros. Eles terminaram? Não me interessa. Agora vou cuidar da minha
vida. — Aquela entrevista... É verdade. Amanhã, telefono para marcar.
Tito abre um sorrisão.
— Isso aí, meu bem! E também, saiba que... — Ele hesita um instante. — Suas energias estão em
ótimo nível, basta acreditar nas suas capacidades... — Tito morde o lábio, como se estivesse se
contendo.
— Tito... — digo em tom de aviso.
— Na minha opinião... este é um ótimo momento para você tomar qualquer tipo de iniciativa no
trabalho. Grandes chances de semear coisas que vão dar frutos.
Suspiro, irritada.
— O.k. Por causa de qual Trígono?
— Um Aspecto Positivo de Marte com o Sol — admite ele, falando superdepressa.
— Pois é.
— Desculpe.
Mas nós começamos a rir e, quando o sinal fica vermelho e temos que parar, solto o cinto de
segurança e me inclino para abraçá-lo.
— Eu te adoro, sua maluca! — diz ele.
— Eu também te adoro.
Nos afastamos e eu fungo um pouco, ainda meio emocionada.
— Tem certeza de que está melhor? — pergunta ele, com olhar inquisitivo.
— Sim, sim — respondo, vaga.
— Desculpe pelo que eu disse no telefone.
— Como assim?
— Que você não ama Daniel.
— Ah.
— É que eu não te entendo... Obviamente ele é muito gostoso...
— Tito!
— Bem, é um cara bonito. Mas eu já te vi apaixonada, e você perde a cabeça, dança, borbulha
como espuma do mar, brilha como uma estrela.
— Talvez fosse só paixão, Tito. E, como você sabe, deu tudo errado. — Dou de ombros. — De
repente é melhor algo mais tranquilo?
Ele suspira e balança a cabeça.
— Não é amor.
Mordo o lábio.
— Tudo bem, mas vai ver eu não preciso de amor agora.
Estou reafivelando o cinto, e Tito acelera o carro, pronto para arrancar de novo, quando um
carro de polícia nos ultrapassa em alta velocidade. Logo depois, vejo uma ambulância, com sirene e
luz vermelha piscando, dobrar no sinal à frente e entrar direto na minha rua.
— Viu? — diz Tito. — É só reclamar que já aparece alguém pior.
Eu me inclino para aumentar o volume do rádio, porque está tocando uma música de que gosto.
— Ah, pelos anéis de Saturno, será que Giorgio fugiu da cadeia?
Levanto a cabeça enquanto Tito está fazendo a curva, e também vejo a barreira de interdição na
rua e a ambulância estacionada em frente ao meu prédio.
— Aimeudeus! — exclamo, soltando de novo o cinto e pulando fora do carro antes de ele parar
completamente. — Cristina!
Meu coração dispara enquanto corro para casa, parecendo me mover em câmera lenta.
Se tiver acontecido alguma coisa a Cristina, nunca vou me perdoar.
Meu Deus, ignorei a ligação dela no restaurante. Vou morrer de culpa, eu sei!
Depois, porém, vou mais devagar. Alguns metros adiante, ouço gemidos vindos de detrás da
ambulância, como se alguém estivesse sendo dilacerado por uma cólica.
O bebê está nascendo!, penso.
E sinto o sangue subir todo à cabeça enquanto me imagino inclinada entre as pernas de Cristina,
tendo que ajudá-la a parir no meio da rua. Onde estão os paramédicos nessa cena, só Deus sabe!
Só que de repente acho que estou ouvindo uma música. Os acordes de uma guitarra.
A melodia aumenta de volume e fica mais articulada.
— Cristinaaaa, Cristina... a-a-a-a-a!
Paro e arregalo os olhos, depois olho para trás e vejo Tito, que me seguiu, debruçado no capô de
um carro estacionado e se contorcendo de rir.
Alguém grita de uma janela:
— Chega! São quase duas da madrugada!
Mas Carlo, indiferente aos paramédicos que se entreolham, pasmos, e aos guardas, que se
aproximam um pouco mais, continua a cantar:
— Ueeemust be mistaks! — Ele modula a voz em agudos e vibrato.
— Mas que merda...? — Escuto de um dos rapazes da ambulância. — Fomos chamados para
isso?
— Devem ter pensado que ele estava morrendo. Desafinado desse jeito... parece que levou um
tiro no joelho — comenta o outro.
Levanto os olhos para a fachada do prédio, imaginando a carta de reclamação que vou receber do
síndico. Com certeza a sra. Sacca, a solteirona do quarto andar, mal pode esperar para fofocar sobre
esse idiota fazendo serenata com uma música dos Cranberries. E é o meu ex-namorado que está
fazendo toda essa confusão para reconquistar a mulher que vive na minha casa há um mês e pouco,
sem que eu tenha informado isso à administração e, portanto, sem pagar a porcentagem dela na
conta de água e tudo o mais. Sei disso porque a velha já me parou quatro vezes para se queixar. Não
da música, da porcentagem, quero dizer.
Até porque acho que ela não entendeu que é uma música. Não por surdez, porque aquela lá
reclama até se você deixar cair um alfinete, mas porque um ouvido humano jamais conseguiria
distinguir aquilo como uma canção.
E por que eu consigo?
Bem, passei cinco anos com Carlo, ouvindo-o cantar no chuveiro!
Por que Carlo escolheu justamente Zombie dos Cranberries para fazer uma serenata é um
mistério insondável. Embora tenha substituído a palavra “zombie” por Cristina, o romanticão.
— Meu Deus, mas por que todo mundo está me criando problema esta noite? — murmuro
entredentes. E, enquanto procuro as chaves na bolsa, minha mão topa com o celular, no qual pisca
uma mensagem. De Paola.
Não aguentei mais. Desculpe, mas quem chamou Carlo fui eu; assim Cristina vai se acalmar um pouco.

Eis então revelado o mistério de como Carlo apareceu na frente da minha casa a essa hora, armado
de guitarra e muita força de vontade.
A sra. Mazzanfanti, a velhinha do primeiro andar, está debruçada na sacada, de camisola, e curte
o espetáculo balançando a cabeça.
— Boa noite, Alice — cumprimenta ela, tranquila. — Você conhece aquele moço ali?
— Quem, eu? Não, não. — Com certeza, antes de amanhecer, terei renegado Carlo bem mais de
três vezes.
— Só que eu não entendo nada do que ele diz. Sabe como é, sou um pouco surda...
— Sorte sua, minha senhora! Sorte sua! — grita Arcelli, o professor de música do segundo andar,
que deve ser quem está sofrendo mais.
Olho para as minhas janelas, no terceiro andar. Só a da sala está aberta, mas as luzes estão
apagadas.
— Vamos lá, calma... — diz um dos guardas, tocando o braço de Carlo, que continua dedilhando
o único acorde que aprendeu, modulando sua voz desafinada de cabeça erguida. — Você não pode
continuar gritando aqui, a esta hora. Chega!
Mas Carlo não dá ouvidos a nada e a ninguém e continua fitando a janela da minha sala, e sinto
um aperto tão forte no coração que corro com as chaves em direção à entrada.
Se Cristina não descer sozinha, vou arrastá-la à força.
Antes de bater o portão, olho de novo para Tito, que acena com o polegar para cima em sinal de
aprovação.
Estou impaciente demais para esperar o elevador e subo a escada saltando os degraus de dois em
dois. Mas, quando chego ao final do lance entre o segundo e o terceiro andar, sinto o celular vibrar
na bolsa e, quando o pego, vejo o nome de Cristina no display.
— Alô! — exclamo.
Do outro lado, escuto um sussurro:
— Alice... ele está aqui! Carlo. Em frente ao prédio.
Paro e tomo fôlego.
— Eu sei. Estou chegando em casa. Abra a porta, vamos.
Dez segundos depois, escuto uns passinhos leves, como de quem caminha na ponta dos pés, e em
seguida o ruído da chave girando na fechadura.
— Ele está aí embaixo! — sussurra ela, com os olhos brilhando e as bochechas vermelhas.
— Eu vi. Ou melhor, ouvi.
Cristina me agarra pela mão e me puxa para a janela aberta, mas me faz permanecer atrás da
cortina, bem escondida.
— Está fazendo uma serenata!
— Mais do que qualquer coisa, eu diria que ele está se arriscando a ser preso. — Talvez existam
programas de reabilitação onde Carlo possa aprender a cantar, mas acho que Cristina não está
interessada nisso. — Vá falar com ele.
— Não... — responde ela, mas sem muita convicção, cobrindo-se ainda mais com minha cortina.
— O que você quer? Vai esperar que cante o álbum inteiro? O perigo é algum franco-atirador
resolver acabar com a mísera existência dele. — Em seguida, assumo a situação e me debruço para
gritar: — Ela já vai descer! Pare!
— Até que enfim! — berra alguém do outro lado da rua.
— Não vou descer.
— Cristina, aquele homem lá embaixo é... — Dou de ombros. — Tudo bem, é um babaca.
Ela faz uma careta.
— Mas ama você e você o ama. Sei disso porque... Porque, se não amasse, você não estaria aqui
com o ouvido grudado na janela e os olhos brilhando. E também não estaria com um barrigão desse
tamanho.
— Ele é um idiota, estragou tudo — rebate ela, amuada.
— É um crianção de quase quarenta anos, Cristina. E você sabia disso antes mesmo de
começarem a namorar. Ele ficou com medo. Casar... Ser pai... Criar uma família... Caramba, até eu
estaria apavorada!
— Eu também tenho medo — admite ela, e me abraça com força. — Tenho medo de não estar à
altura deste bebê, de não ser uma boa mãe. Só de ser mãe, já tenho medo!
— Então diga isso para ele.
Pegamos o elevador em silêncio, ela batendo nervosamente com o pé. Eu a acompanho até o
portão com um braço ao redor de seus ombros, emocionada como se a estivesse levando ao altar.
Assim que a vê, Carlo para de tocar e apoia a guitarra no chão, enquanto as pessoas ao redor
explodem em aplausos. Acho que é principalmente por ele ter parado, mais do que por eles estarem
para fazer as pazes.
Vejo-o estender os punhos fechados para o policial, como nos filmes americanos em que o
bandido se deixa algemar.
Os dois agentes trocam um olhar e o mais velho balança a cabeça.
— Vai lá, vai lá, idiota. Vai falar com a sua gata — diz, suspirando.
E Carlo e Cristina se abraçam e se beijam. Não é uma cena linda e plastificada como as que a
gente vê nos filmes. Mas a gente sabe que nos filmes tudo é refeito cem vezes até ficar perfeito.
Na vida, a cena tem que ficar boa de primeira, se não temos que recomeçar tudo, ou mudar de
rumo, de pele, evoluir. E é isso que eu vou fazer.
Olho Carlo e Cristina juntos de novo, apaixonados, e penso que, em última análise, no fim o
amor venceu, embora não seja o meu amor.
Percebo a mão de Tito no meu ombro e me entrego ao seu abraço, e me sinto forte, realmente
forte. Feliz por tudo o que aprendi e pronta.
Sim, agora estou realmente pronta.
Epílogo
A LIBRIANA QUE SUBIU UMA COLINA E DESCEU DE UMA
MONTANHA





Externa. Noite. Daquelas noites escuras, mas tranquilizantes, com um céu cheio de estrelas. Volta e
meia se vê uma estrela cadente. No alto da colina, duas figuras, um homem e uma mulher, sentados
na grama, duas silhuetas escuras, rostos erguidos para o alto.
— Agora olhe e faça um desejo.
— Não é meio ridículo ver uma estrela cadente e achar que um desejo vai ser realizado? Não é
meio inútil?
— Não. Não, se te faz pensar sobre o que realmente deseja. Se perder nas estrelas é um pouco
como conhecer a própria alma e entender o que você quer da vida.
Os dois se olham. Ela suspira.
— É muito bonito. E muito verdadeiro.
— E então? Fez um desejo?
— Sim. — Ela hesita, como se estivesse constrangida. — E você?
Ele aproxima o rosto do dela.
— Vou torcer para ser o mesmo que o meu.
Ela se inclina para ele, pronta para lhe dar um beijo.
— E... CORTA ! — grita uma voz rouca de fumante.
— Achei muito bom — comento, e depois acrescento, levantando a voz para que toda a equipe
me escute: — Pausa para o almoço!
As luzes se acendem de novo e fica visível o fundo azul, em vez da noite estrelada que o
computador projetava sobre ele. Silvain Morel desce, saltitante, do morrinho coberto de grama
sintética, mexendo nos bolsos em busca de um cigarro.
— Ei! Você podia me dar uma mãozinha para descer! — grita Nicoletta Orsini, a atriz lindíssima
que faz o papel de Alessia, a protagonista do meu filme.
Bom, “meu filme”... para falar a verdade, o filme é de Lars Franchini. Nome verdadeiro Lanfranco
Franchini, conhecido diretor de televisão com o sonho de fazer cinema, e por isso o chamamos
internamente de Lars. Mas é também um pouco meu, visto que, desde que nos conhecemos, Lars e
eu somos unha e carne.
Em pouco tempo, me tornei seu braço direito. É estranho, mas é verdade: parece mesmo que Lars
gosta das minhas ideias, das minhas histórias, dos meus diálogos. E, de fato, esse que Silvain e
Nicoletta acabam de interpretar foi escrito por mim, Alice Bassi, assistente de direção da minissérie
Eu te amei sob as estrelas. Certo, Woody Allen é outra coisa, mas, caramba, ainda estou começando.
— E entom, Alisssce, o sotaque estava certo? — pergunta Silvain, colocando o cigarro na boca.
— Ficou bom — respondo, arrancando o cigarro de seus lábios antes que ele o acenda, nos
colocando em risco de virarmos as estrelas cadentes, visto que estamos num ambiente fechado, sem
janelas e cheio de material elétrico. — Mas seria conveniente você aprender italiano, já que
trabalha aqui. Inclusive, economizaríamos no fonoaudiólogo.
Ele abre um sorriso oblíquo e sedutor.
— E você sai com moi, se eu aprender italianô? — Ele ergue a camiseta fingindo passá-la na
testa para remover a maquiagem, mas com o único objetivo de me fazer admirar seu abdômen
impressionante.
Mordo o lábio para não rir. Conheço bem sua coleção de músculos, visto que fui eu a fazer uma
seleção entre os portfólios dos atores, e no de Silvain tem uma foto em que ele não usa muito mais
que um chapéu de palha. Mas desde Alejandro me dei conta de que o músculo que mais me
interessa em um homem é o que fica na cabeça. E talvez seja por isso que ainda estou solteira.
Embora um milhão e meio de italianas desse tudo para estar no meu lugar agora, visto que o índice
de aprovação de Silvain é inversamente proporcional ao seu quociente de inteligência.
— Hmm — digo, fingindo pensar no assunto. — Qual é o seu signo?
— Touro, ma chérie.
Suspiro.
— Sinto muito. Libra com Touro... — Faço uma careta, querendo dizer que não funciona. — Não,
realmente não combina — acrescento, me afastando. — Bom almoço.
Vou buscar minha bolsa, porque, apesar da pausa, ficarei no set para examinar com Lars
algumas anotações.
Quando me inclino para pegá-la, ouço latidos e franzo a testa, me perguntando se me esqueci de
alguma cena que devemos filmar hoje com um cachorro. Mas não me dou o trabalho de folhear a
ordem do dia. Sei muito bem que não há cenas com cães. Por isso, olho para fora do barracão do set
e estreito os olhos sob o sol forte do meio-dia.
Não vejo cachorros, embora algo pareça se mover rápido no fim da estrada, mas é tão alto que
parece um pônei. Provavelmente é para aquela série, Peplum, que estão rodando aqui ao lado.
Entro de volta para pegar meu sanduíche e aceno para a secretária de edição, o operador de
áudio e a figurinista, enquanto Mario, o assistente de câmera, se aproxima de mim, coçando o nariz.
— Desculpe encher seu saco, Alice, mas você pode me explicar uma coisa? — Ele me mostra o
roteiro, onde marcou observações sobre seu trabalho.
— Lanfranco tinha pensado em um dolly travelling — explico, interpretando os rabiscos a lápis.
— Mas, por contenção de custos, sugeri um carrinho.
— Ah, ótimo! Simplifica meu trabalho, obrigado. E acho que vai funcionar muito bem em termos
de narração, porque acho que aqui Silvain...
— E então? — Alguém grita da porta. O diretor, um homem grande perto dos cinquenta anos,
alto e imponente como Orson Welles, se aproxima tirando os óculos e coçando a barba. — Quer
deixar minha garota em paz? Chega, Mario... chega.
Mario morde o lábio.
— Desculpa, Lars... ahn, Lanfranco. — E, dirigindo-se a mim: — Não vai comer?
Levanto o pacotinho com meu almoço.
— Eu trouxe a schiscetta.
Mario franze as sobrancelhas e eu começo a rir, porque de vez em quando esqueço que não estou
em Milão, mas em Roma, especificamente em Cinecittà, e aqui eles não entendem palavras como
“schiscetta”.
— Significa lanche embalado — explico, piscando o olho.
Ele ri e sai, desaparecendo na luz do sol.
Também rio, embora esteja cansada. Falta menos de uma semana para o final das gravações e
estou praticamente dormindo no set.
— Pode falar, Lars.
Ele faz uma careta assim que ouve o apelido, mas depois me dá um tapinha no ombro e pisca.
Sou a única aqui dentro que pode zoá-lo com esse apelido sem me arriscar a ser pendurada no dolly
e chicoteada na ágora da série O império de Roma.
— Vou buscar o script com as anotações. O que acha de a gente conversar ali? — propõe ele,
apontando o topo da colinazinha de mentira onde acabamos de gravar a cena das estrelas cadentes.
Arqueio uma sobrancelha.
— Tem certeza?
Eu o conheço o suficiente para saber que em geral ele gosta de ficar no conforto da poltrona de
diretor, e acho que só de olhar qualquer um saberia que subir aquela colinazinha lhe custaria
algum fôlego, com os quilos a mais que ganhou à base de espaguete.
— Sim, sim. Ou melhor, faça o seguinte: pegue isto aqui. — Ele me passa o headphone que uso
para ouvi-lo à distância pelo rádio wireless, quando precisamos estar em pontos diferentes do
cenário. — Me dê uma ajuda para arrumar o set, porque você e eu nos entendemos de cara e, se eu
tiver que explicar tudo para o Omar, vou acabar tendo uma úlcera.
Enquanto fala, noto que seus olhos brilham e ele umedece os lábios, como se estivesse impaciente
com alguma coisa.
— Tem certeza de que está bem? Não está se arriscando a um AVC, né?
Para um cara desse tamanho, não seria a primeira vez. Eu já lhe avisei que, com o ritmo que
mantemos, ele deveria perder peso, mas como se faz para convencer alguém que parece uma
criança toda vez que vê um prato de massa?
— Que nada! — responde ele, cruzando os dedos. — Imagine se alguém vai ter um ataque
cardíaco porque está feliz com uma coisa...
Franzo a testa.
— O que aconteceu? Notícias da Filme Delfino? — pergunto, esperançosa. Sei que ele
apresentou seu projeto algumas semanas atrás e, se tiver sido aprovado, só pode significar uma
coisa: cinema! Finalmente.
— Hein? Não, quer dizer, sim... quase... — De repente ele fica sério. — Alice! — exclama, em seu
tom mais severo, aquele que costuma usar para evitar se perder em explicações à equipe, que
realmente pensa que ele é uma espécie de ogro babaca e sem coração. — Não vamos gastar energia,
o.k.?! Você sabe que isso bagunça meus triglicerídeos. Então, coloque esses fones e obedeça.
— Tudo bem, não se irrite.
— Vamos, vamos — diz ele, com um sorriso, e até me dá um beliscãozinho na bochecha. — Se
não terminarmos, como é que você vai a Milão no próximo fim de semana, para seu dia mais
importante?
Respiro fundo.
— Meu Dia Sagrado, Lars. Meu Dia Sagrado. Só vou fazer as unhas, e não me casar.
— Bom. Que seja — responde ele, virando-se e fazendo um gesto vago com a mão. — Aliás, não
entendo por que você tem que ir a Milão fazer as unhas. Saiba que em Roma também existem
manicures.
Certo, mas Karin está em Milão. E, principalmente, Paola está em Milão. E, embora eu não possa
me queixar da vida que estou tendo na capital, não renunciaria ao Dia Sagrado com minha melhor
amiga nem que fosse trabalhar em Hollywood.
Sete meses atrás, depois que Cristina voltou com Carlo, depois que os paramédicos se deram por
vencidos e compreenderam que não havia ninguém a internar, e eu voltei a ser a única inquilina do
meu apartamento, finalmente dei aquele famoso telefonema.
Menos de duas semanas depois estava em Roma, com mamãe Adalgisa e papai Guido atrás,
porque, mesmo com uma filha adulta, é melhor se garantir pessoalmente de que no lugar onde ela
vai trabalhar não são todos maníacos sexuais e drogados.
— Esse pessoal da televisão é assim — comentou meu pai, com certa presunção.
— Papai, eu trabalho em televisão há dez anos.
— Sim, sim, mas estou falando do pessoal da televisão séria.
— Ah, ainda bem.
Comecei cuidando de vários programas de entretenimento, até que, em uma festa da produção,
conheci Lars, e foi amor à primeira vista. Não, por favor, não esse tipo de amor, mas uma espécie de
afinidade. Lars é um pouco como eu: se casou três vezes, agora não acredita mais no amor e
desabafa filmando os roteiros mais melosos que a televisão já viu, fazendo a alegria das donas de
casa de meia Itália.
Eu, não, não precisei de três casamentos e, graças a Deus, não precisei de três pensões
alimentícias para compreender que o amor não é tudo na vida. Ou melhor, agora posso dizer que
descobri o quanto é bom viver como protagonista, sem esperar sempre que alguém me escolha,
para depois me largar logo quando começo a me apegar.
E, se não faço como Lars, que desconta na comida e em roteiros onde pode matar a protagonista
com uma síncope ou um acidente de carro se não gostar mais dela (ou pode fazer a mulher
descobrir uma vocação de missionária que a leva para qualquer terra distante se ele estiver de bom
humor), é só porque vejo o amor em muitas coisas. Gosto de observá-lo quando passeio por Roma,
vejo-o nos bancos de praça, nas cores do céu e nos recantos das ruas históricas.
Tito continua dizendo que é só questão de tempo e que o amor vai chegar. Ah, se vai... Mas eu sei
que não é igual para todo mundo. Não está escrito em lugar algum, e muito menos nas estrelas, que
o amor chega para todos, e que eu também vou encontrar meu André, disposto a me seguir até
Roma e até o fim do mundo, se me oferecerem um trabalho de apresentadora, como o que aconteceu
a ele.
Mas, mesmo que na minha história não apareçam as palavras “e viveram felizes para sempre”,
isso não significa que eu esteja triste.
Quando chego em casa antes do pôr do sol, agora que é primavera, fico na sacada do meu
apartamento e observo Roma com suas lindas cores, e me digo que a felicidade é isto: uma casa, o
trabalho dos meus sonhos, os amigos, um gato que ronrona e vasos cheios de gerânios. Porque,
quando você aprende a amar a si mesma, até cuidar dos outros é um prazer. E você não se perde.
Ligo o radiotransmissor, ajeito o prendedor na cintura dos jeans, coloco os headphones,
regulando o volume, e depois enfrento a subida da colinazinha.
— Alice... Testando. Testando. — A voz de Lars grasna no fone de ouvido. — Está me ouvindo,
Alice?
Aperto o botão de resposta.
— Sim, sim. Pode falar.
— Bom, escute... Hmm, ahn... pegue aquela toalha vermelha e ajeite-a melhor. E a cestinha de
piquenique, vire-a para mim. Um pouco para a direita.
Obedeço.
— O.k. E agora?
— Bom. Sim. Pronto. Agora, sente-se aí que estou chegando. E... mantenha os fones de ouvido!
Dou de ombros e faço como ele diz, me sentando de pernas cruzadas na grama falsa. E, enquanto
o espero, começo a mordiscar meu sanduíche, folheando a ordem do dia e as partes do script que
devemos gravar.
Ao escutar um ruído seco, porém, pulo de susto e ergo os olhos, porque de repente tudo ficou
escuro.
— Lars? — chamo no fone.
Ninguém responde. Então tento me levantar, mas, sem pontos de referência, cambaleio. O que,
pensando bem, não é uma boa coisa, considerando que estou no cume falso, a alguns metros do
solo.
Instantes depois, aparecem no fundo azul a lua e as estrelas.
Por que tenho a impressão de que alguém está brincando com o equipamento de iluminação?
— Lanfranco! Ei... — chamo de novo. — Parem com isso, rapazes, o computador vai acabar
pifando.
Ouço alguma coisa chiar no headphone, mas não compreendo, parecem vozes, mas distantes.
— Instale... — escuto, e depois silêncio. E ainda: — Pode começar...
Parece a voz de Lars, mas como se ele estivesse falando com outra pessoa.
E as estrelas começam a cair.
Vê-las daqui é sem dúvida um espetáculo. Se eu não soubesse que é tudo uma projeção para o
filme, acreditaria estar realmente em uma montanha, diante de um céu maravilhoso.
Ao fundo, nos headphones, há uma música tocando.
Congelo. A canção é “Reality”, do filme La boum — No tempo dos namorados, que ninguém
imaginaria ser o filme preferido de Lars, mas é. Eu sorrio. O.k., essas são as clássicas pegadinhas
que fazemos na equipe. A única coisa estranha é que em geral fazemos isso quando estamos um
pouco mais tranquilos em relação ao trabalho, e não no meio de gravações atrasadas. Lars me
surpreende; pensei que ele fosse mais profissional.
— É isso aí, rapazes... bom, muito bom... entendi. Muito obrigada. Mas já chega, que temos pouco
tempo. — Volto a me sentar e cruzo as pernas na grama de plástico. Não sou uma mal-humorada
que não sabe rir de uma brincadeira, mas não sei mais o que fazer. E também, infelizmente,
“Reality” me faz pensar em outra coisa... em alguém que agora está sepultado no fundo de uma
gaveta de recordações.
Pego meu celular e uso a lanterna para começar a ler o script. Ou, pelo menos, finjo fazer isso.
— Victor Hugo dizia que a alma é cheia de estrelas cadentes. — Não ouço mais a música no fone
de ouvido, e sim uma voz. — Acho que ele estava tentando ser poético, mas não conseguiu muita
coisa.
Não é a voz rouca de Lars, é uma voz que não conheço. Mesmo assim, meu coração começa a
martelar na garganta.
— Acho que de certa forma você não estava errada em pensar que somos frutos de estrelas, sabe?
— continua a voz, e eu mordo o lábio, porque no fundo, muito no fundo, acho que reconheço esse
timbre, e isso dói como uma facada. — Todos os átomos que formam nosso corpo foram criados
bilhões de anos atrás. O ferro em nosso sangue, o oxigênio que alimenta os pulmões, o cálcio dos
ossos.
Enquanto o escuto, as estrelas no firmamento diante de mim continuam a brilhar, a cair, a pulsar,
e parecem realmente vivas como um corpo humano.
— Alice...
E agora me dou conta de que a voz já não está nos headphones, mas bem atrás de mim. Quando
me viro, vejo uma silhueta escura, justamente como imaginei a cena do filme que estamos
gravando, a cena do filme que escrevi.
Estreito os olhos para tentar enxergar melhor, porque me digo que é impossível, totalmente
impossível. E uma loucura. E fora de contexto.
Não é possível que ele esteja aqui. Porque...
Sinto ódio de mim mesma, porque no escuro uma lágrima escorre até meu queixo. E então
respondo:
— David...
E me digo, mais uma vez, que não pode ser verdade, simplesmente porque as coisas nunca
acontecem como a gente as imaginou, como a cena de um filme. Só que ele está subindo a
colinazinha (o.k., a colinazinha de mentira) e deixa o headphone escorregar para o pescoço. Joga o
paletó no ombro.
— Oi — diz ele, com aquela voz quente que tentei em vão esquecer, aquela voz que é uma carícia,
apesar de todas as coisas ruins que me fez.
— Oi — respondo, e a minha voz soa aguda como um açoite.
David se senta ao meu lado, como se tivéssemos marcado encontro ali para olhar as estrelas.
— Você parece bem — comenta ele, me observando, enquanto aquele sacana do Lars, talvez junto
com o diretor de fotografia, acende luzes difusas, de modo que eu posso fitar David nos olhos.
— Hum, obrigada.
Ele ergue a mão, mas não chega a tocar meus cabelos, porque sou eu que puxo um cacho para
trás da orelha.
— Por que seu cabelo está tão curto?
— É mais prático — explico. — Sabe como é, quando se tem pouco tempo para ficar no secador...
— Faço um gesto vago. — Coisas de mulher, pronto.
— Coisas de Alice — rebate ele, sorrindo.
Desvio os olhos dos dele, porque são intensos demais.
— Hum, talvez.
— Mas continua linda. Ou melhor, está mais do que antes, está... sofisticada.
Solto uma gargalhada, porque nesses meses de trabalho em Roma, em que fiquei me
reconstruindo, acho que fiz de tudo, menos me tornar sofisticada. Mas depois paro de rir, porque ele
segura minha mão.
— David, esta é a minha vida... Estou trabalhando. Por que você veio aqui? Por que apareceu
hoje, agora, depois de tanto tempo?
Vejo-o morder o lábio e olhar o céu falso acima de nós.
— Sinto sua falta.
Balanço a cabeça.
— Falta de quê? Da garota desajeitada e histérica que morria por você?
— Você nunca foi assim. É irônica e divertida, é inteligente, bonita, carinhosa e altruísta...
— E idiota. Porque sempre caí na sua conversa. Vá embora, David, você sabe que a gente não vai
dar certo.
Ele sorri e estreita um pouco os olhos.
— Porque eu sou Leão com Ascendente em Libra?
— Porque é um cara de pau. Os signos não têm nada a ver com isso. — David aceita o golpe
fechando os olhos e assentindo. — Desculpe. Eu queria ter tido essa conversa com você há meses,
ter dito várias coisas. Praticamente sei de cor as frases. Mas agora me dou conta de que não tem
mais sentido — digo.
— Por que mudou de ideia?
— Porque não me dói mais. E aprendi muitas coisas. Que não preciso de amor, ou de um homem,
para ser feliz, por exemplo. E tenho sido muito mais feliz nesses sete meses do que quando
namorava alguém.
— Hum, sei...
Olho para ele.
— Sabe o quê?
— Eu sabia que você tinha vindo para Roma, que tinha terminado com Daniel e que estava
trabalhando aqui. Não. — Ele me detém, levantando a mão. — Se vai me acusar de ter te seguido,
ou pior, de ter me intrometido na sua vida, não, eu não fiz isso. Pelo menos até hoje. Mas fiquei feliz
por você, pelos seus sucessos, pelo fato de estar mostrando as unhas e ter feito alguma coisa por si
mesma. Só por si mesma.
— E agora, por mim mesma, eu te peço para ir embora. — Eu me levanto, porque tudo está
ficando muito doloroso e não quero me sentir assim. Não aqui, não agora, depois de todo o trabalho
que tive. — É tarde demais. Talvez, se você tivesse aparecido meses atrás, quando se separou de
Barbara...
— Alice, eu já tinha terminado com Barbara quando fomos a Paris.
Dou um passo para trás, porque preciso criar certa distância entre mim e o que ele acaba de
dizer.
— Eu queria você, eu te amava... — diz ele, me encarando. — Já te amava naquela época, desde
antes, mas tinha muito medo do que ia acontecer se eu te falasse, depois de passar a vida tentando
ser autossuficiente, temendo ser abandonado.
Ele tenta se aproximar, mas eu o impeço.
— Não... — sussurro.
— Eu ainda te amo. E sei muito bem como você se sente.
— Vá embora.
— Alice...
— Sabe muito bem como eu me sinto? Ótimo. Porque foi você quem me fez sentir assim. Foi você
quem quis. Não veio me procurar por meses, mesmo sabendo que eu estava aqui... sozinha... mesmo
sabendo... — Por que estou chorando? Alice, pare com isso. Alice, acorde! Você não é mais aquela
garota. É uma Alice forte, segura de si, uma mulher que sabe o que quer, que as pessoas admiram.
— Vá embora, por favor. Me deixe em paz.
Eu me sento de novo e seguro a cabeça entre as mãos, envolta pelo silêncio e pelo escuro. E não
sei quanto tempo se passa, mas me parece uma eternidade.
Então uma voz ecoa do alto-falante do barracão:
— Alice!
— Por que você fez isso, Lars? — pergunto, enxugando os olhos e tentando não deixar a voz
tremer muito.
— Porque você merece, querida. Merece uma chance de ser feliz.
Balanço a cabeça.
— Esta é só uma chance de sofrimento, e você sabe. Sabe muito bem, já que se casou e se
divorciou três vezes...
— Certo. E, se acontecer a quarta, vou fazer tudo de novo. Alice, você não pode ser feliz sem
correr riscos. Não se chega ao topo sem saber que se pode cair. — Como não digo nada, ele
prossegue: — Minha querida, aquele homem que você mandou embora me disse que mudou
completamente de vida para poder voltar para você. Mudou de trabalho para poder ter uma casa de
verdade, para construir alguma coisa contigo, quando antes sempre teve medo de uma relação séria
e estável. E, se um homem faz tudo isso, se leva sete meses sem desistir... Bom, querida, significa que
você pode pedir o quanto quiser às estrelas cadentes que te façam ganhar na loteria, mas, se não
conferir os números, nunca vai saber se está com o bilhete premiado.
Lars reacende todas as luzes e o céu estrelado desaparece; estou de novo cercada pelas paredes
do set, pelos cabos, pelos trilhos para o carrinho, pelas escadas para o equipamento de iluminação.
Estou de novo cercada pela minha vida. E estou sozinha.
David veio me procurar.
E disse que me ama.
Minhas pernas tremem quando tento me levantar.
Ele disse que me ama e eu o mandei embora.
Eu que estou apaixonada por ele há um ano, apesar da distância, apesar dos nossos Quadros
Astrológicos, apesar da dor e apesar de ter tentado esquecê-lo fugindo da minha antiga vida.
Queria descer mais depressa, mas essa colina parece ter se tornado uma montanha; eu queria
poder correr para a porta, mas o medo me bloqueia. Tenho medo de não o encontrar mais.
E tenho medo de encontrá-lo de novo.
— David! — chamo, mas estou sem fôlego e ele não me ouve. Continua caminhando em linha
reta pela alameda que leva à reconstrução da Roma antiga. — David!
De repente, escuto um latido. David para e abre os braços, porque Flash está correndo ao seu
encontro. Mas então o cão passa por ele e, abanando a cauda, vem para cima de mim e me derruba
com suas patas poderosas e a força mal calibrada de um alão em um arroubo de afeto.
— Flash! Alice!
David corre para mim, para a mulher sofisticada que está elegantemente caída no cascalho com
sessenta quilos de cachorro no colo.
E, com Flash ainda latindo, ele me levanta do chão e me abraça com força.
— Desculpa, Alice. Desculpa... Eu não devia ter dado ouvidos a Lanfranco. Devia só ter ido falar
com você.
— Lars tem um fraco por histórias românticas, ainda mais quando ele pode ser o diretor. E... —
Eu o encaro — ... nesta, ele talvez tenha conseguido escrever um final feliz.
David sorri e então, como ele hesita, eu o beijo. Ainda tenho medo. Tenho medo de fazer a escolha
errada, tenho medo de que não dê certo com David, tenho medo de ficar com ele para sempre e
tenho medo de sofrer. Tenho medo do desconhecido, porque não sei o que pode acontecer amanhã,
nem daqui a uma hora.
Isso significa viver sem a astrologia. Viver sem alguém nos bastidores para te soprar as falas,
mas que também tire a graça de descobrir tudo sozinha, de se entender sem culpar uma Conjunção
errada, um planeta torto ou o Ascendente.
Beijo David e o abraço com força, e não tenho mais medo dos meus medos, porque sei que dessa
vez as estrelas vão ficar só olhando.
AGRADECIMENTOS

Para realizar esta viagem atravessamos os Quatro Elementos, escalamos Trígonos, dissecamos
Quadros Astrológicos, observamos Constelações, desfiamos Décadas e desarrumamos os Planetas...
Mas, se Alice e eu chegamos a escrever estas páginas, devemos isso a uma série de pessoas sem as
quais dificilmente ela teria a palavra e eu daria conta de suas aventuras.
Laura Ceccacci: obrigada por ter escutado, lido, rido e participado das “aliciadas” da Alice e um
pouco também das minhas! Obviamente, sendo você também libriana, teríamos esse grande feeling,
mas sua energia e o profissionalismo da Laura Ceccacci Agency foram o impulso a mais que era
necessário a este projeto.
Patrizia Rizzo: a melhor canceriana do mundo. Jamais vou abençoar o suficiente aquele dia de
muitos anos atrás em que os astros nos colocaram no mesmo caminho. Foi somente graças aos
nossos serões, às nossas infinitas conversas e aos seus conselhos que Alice pôde ser o que é, assim
como Paola... e um pouco como eu, também.
Cristina Caboni: autora dedicada e amiga maravilhosa, que, como todo geminiano que se
respeite, interpretou vários papéis, me paparicando ou me dando bronca segundo a necessidade. Se
você não tivesse acreditado em mim desde o início, e antes mesmo do início, tudo isso dificilmente
teria acontecido.
Cristina Prasso: que nos conquistou, Alice e eu, com seus sapatos desencontrados e seu amor pelo
cinema. Se na editora Nord eu me senti logo em casa, foi mérito seu; e seu entusiasmo pelo Guia foi
melhor do que qualquer Trígono positivo que alguém pudesse ter. Se tem algo de ruim em você,
como você mesma já admitiu, é o fato de ser ariana... Mas é um defeito que se perdoa muito
facilmente.
Giorgia di Tolle: que é uma sagitariana com ascendente em Libra. Ou seja, muito igual a mim, e
por isso (e não só!) a melhor editora que eu poderia desejar.
Barbara Trianni, muito capricorniana, como ela mesma se define, e maravilhosa no trabalho de
assessoria de imprensa, e Giacomo Lanaro, que, tudo bem, embora seja escorpiano, tem ideias
geniais para o marketing na Nord. E ainda Marco Tarò, Cristina Foschini, Giuseppe Somenzi, Paolo
Caruso, Benedetta Stucchi, Elena Pavanetto, Caterina Sonato, Viviana Vuscovich, Graziella Cerutti,
Mauro Tosca, Oriana Di Noi e Laura Passarella, e espero não ter esquecido ninguém, porque todos
na GeMS acreditaram em mim e neste romance, empenhando-se com entusiasmo para mandá-lo
aos meios de comunicação.
Um agradecimento especial a Simone Morandi, que teve a paciência de ler e de corrigir os
despropósitos astrológicos. Se por acaso tiver qualquer imprecisão do tipo, obviamente a culpa é
minha, e espero que sejam consideradas como licença poética.
Jean Paul Bosco: que entrou com entusiasmo, profissionalismo e eficácia na família libriana da
agência, levando este livro a resultados inimagináveis.
Gisella Guidi e Roberto Zucca: meus pais, respectivamente pisciana e geminiano, como prova de
que até as mais estranhas combinações de signos e quadros astrológicos podem funcionar. Obrigada
também à minha irmã Carlotta, porque eu te amo, apesar de sermos tão diferentes, e a Fabrizio,
Matteo e Martina.
Claudio Canossi: um aquariano que me ensinou muita coisa e, embora os anos passem, ainda
permanece ao meu lado como um excelente irmão mais velho. Não matei Carlo, como você ficou me
pedindo, porque preferi que ele encontrasse a felicidade que também desejo a você.
Jean Claude Rousseau: sem seus preciosos conselhos, sorrisos e estímulos por todos esses anos eu
certamente teria perdido o rumo.
E também a Corina, que faz minhas unhas no meu verdadeiro Dia Sagrado, e que é uma amiga
querida.
Um agradecimento realmente sincero e de coração também a Valeria Sciandra, pisciana que
nada em meio às flores em uma loja maravilhosa que é uma inspiração por si só. Obrigada pelos
abraços e pela inesgotável paciência. Adoro a frase que você me escreveu naquele bilhete e que
reflete o que eu também sinto: “Estou muito feliz por ter você em minha vida, você a deixa mais
bonita”.
Meu pequeno clã de amigas dançantes: Amanda, Deborah, Laura e Serena, que, além de dançar,
estão sempre prontas para me escutar e me entender.
Obrigada também a Valerio, embora eu não entenda como ele pode ser virginiano. Que pena que
não te conheci um pouco antes, já que você sabe tanto de astrologia! E a Bianca, que é ariana e uma
verdadeira força da natureza.
E, ainda, um trio de sagitarianos: Roberto, Pietro e Marialuisa, que se de algum modo inspiraram
Alejandro (eu não faria a ninguém uma desfeita dessas!), ainda assim me deram sempre um ombro
amigo, apoio e ótimos conselhos.
Obrigada também a Alessandra Roccato, que por tantos anos tem sido minha amiga e me ensinou
muito sobre escrita e tradução.
A Musetta, Byron, Modì e minha doce e complicada Drusilla, que me encaram com seus olhões de
gato enquanto escrevo.
Por fim, não posso esquecer meus dois pequenos clãs: minha família de teatro, com Silvia, Ilaria,
Lidia, Stefano e Raffaella, Roberto, Paolo, Oscar, Fabio, Chiara, Elena.
E o meu “Civico 69”, o simbólico edifício no qual cresceram os meus sonhos durante os dois anos
do curso de escrita do professor Raul Montanari (capricorniano carismático!), e que é até hoje
habitado por Francesco, Carmen, Paolo, Elena, Rosa e Maria.
Amigos, que as estrelas estejam com vocês. Obrigada por tudo.
DIEGO CANTORE


SILVIA ZUCCA é formada em inglês e literatura, e, como a protagonista de seu romance,
trabalhou durante anos em uma pequena rede de televisão. Sua verdadeira paixão, no entanto,
sempre foi a escrita, e agora se dedica em tempo integral a ela, tanto como tradutora quanto
como autora.
Copyright © 2015 by Silvia Zucca

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Guida astrologica per cuori infranti

Capa
estúdio insólito

Preparação
Milena Vargas

Revisão
Ana Maria Barbosa
Márcia Moura

ISBN 978-85-438-0646-4





Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Cosme Velho, 103
22241-090 – Rio de Janeiro – RJ
Telefone: (21) 2199-7824
Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br
Sumário

Capa
Rosto
Prólogo
Áries
1. Afogados no mar de Libra
2. O recomeço de Áries
3. O dia de cão de uma libriana
4. Um geminiano para toda obra
Touro
5. Libriana à beira de um ataque de nervos
6. A libriana, o ariano, sua mulher e o amante
7. O sol não é para Áries
8. Uma segunda-feira de Libra
Gêmeos
9. Uma libriana de futuro
10. A maldição do Escorpião
Câncer
11. O perfume do sagitariano selvagem
12. Librianas são fáceis
13. Libriana em apuros
14. O pequeno sagitariano
Leão
15. O Sagitário está servido
16. A culpa é do horóscopo
Virgem
17. As regras de uma canceriana
18. Onde os librianos não têm vez
19. Taurinos também têm coração
20. A libriana de rosa-shocking
Libra
21. O amor nos tempos do Aquário
22. Pão, amor e… astrologia
23. De gêmeos, com furor
Escorpião
24. Rosas, shopping e librianas
25. O ataque do Leão
26. Não mexam com a libriana
Sagitário
27. Gêmeos da pesada
28. Libriana febril
29. Leões por gêmeos
30. O leão fugaz
31. O golpe final do Leão
Capricórnio
32. Tudo o que você sempre quis saber sobre o horóscopo (mas nunca teve coragem de perguntar)
33. Até o último Leão
34. O dia em que o peixe saiu do mar
Aquário
35. Um Leão chamado desejo
36. Nada de sexo, nós somos Libra
37. O Leão dos seus sonhos
38. O Leão do Pont-Neuf
39. Dois na cama numa noite de chuva
40. Sexo, mentiras e Leão
41. Deu a louca no geminiano
Peixes
42. O que aconteceu com a libriana?
43. Perdida na astrologia
44. Viciada em astrologia
45. Insuportável virginiana
46. Aquários de uma noite de verão
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos

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