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Interfaces de esquecimento: tempo-real no Skypecast

Icaro Ferraz VIDAL JUNIOR


Graduando em Estudos de Mídia na Universidade Federal Fluminense. Atua como bolsista
de Iniciação Científica FAPERJ na pesquisa “Tecnologias, modernização da percepção,
memória e esquecimento: por uma genealogia da tecnocultura contemporânea”, sob
orientação da Profª. Drª. Maria Cristina Franco Ferraz.
UFF/FAPERJ - RJ

Resumo: A fim de contribuir para uma genealogia da tecnocultura contemporânea, nos


detivemos nos deslocamentos históricos entre práticas e sentidos, que atravessam os
fenômenos cognitivos da memória e do esquecimento. Partimos do inovador conceito de
memória, desenvolvido por Henri Bergson em Matéria e memória, obra de 1896, e da
perspectiva nietzschiana do esquecimento como força inibidora ativa como contrapontos às
perspectivas sobre memória e esquecimento que se tornam hegemônicas na
contemporaneidade e ao estatuto que articula tecnologias digitais de comunicação à gestão
destes processos cognitivos. Propomos uma análise da interface do espaço destinado a
ciber-sociabilidade chamado Skypecast, disponível no software de comunicação Skype, que
leve em conta a natureza histórica dos regimes de temporalidade e sociabilidade que tal
interface implementa.

Palavras-chave: mídia digital; memória e esquecimento; Nietzsche e Bergson

Vivemos, contemporaneamente, um paradoxo. Por um lado, a aceleração dos fluxos


informacionais e os imperativos de flexibilidade demandam um acentuado regime de
esquecimento. Por outro, os projetos de dilatação da juventude, as tecnologias informáticas
de armazenamento de dados cada vez mais otimizadas e o horror a patologias como o mal
de Alzheimer, amplamente difundidas midiaticamente, implementam o esquecimento como
algo, no mínimo, a ser temido. Se o paradoxo consiste em um modelo que nos ajuda na
compreensão mais ampla dos regimes de memória e esquecimento, aqui nos servirá
também para a análise desses fenômenos na interface de uma ferramenta do software de
comunicação Skype: o Skypecast.
Skypecasts são salas de conversa ao vivo, “vendidas” como comunidades. São salas
que funcionam basicamente através da oralidade (é possível também enviar mensagens
escritas – mas apenas individualmente – a usuários da sala), que podem ser criadas por
qualquer usuário do Skype e que só são acessíveis enquanto duram, em tempo-real, não
deixando registro disponível para futuros acessos. É possível ingressar em um Skypecast
que esteja acontecendo ou que esteja prestes a acontecer, mas o passado do software é
inacessível, as conversas encerradas não ficam disponíveis e a duração máxima de um
Skypecast não ultrapassa cinco horas.
Ao sair de um Skypecast, o usuário pode selecionar dentre os participantes da sala
aqueles com os quais gostaria de manter contato de modo autônomo, sem que precise
passar novamente pela “comunidade”. Assim, a própria noção de comunidade é colocada
em xeque e o que se tem é uma rede pessoal e privada de relações surgidas de encontros
efêmeros articulados a partir de temas que vão do onipresente sexo, a todo o tipo de auto-
ajuda, passando por temas políticos, culturais, de consumo etc.
A natureza oral destas salas, aliada a uma interface que não deixa registro, conferem
à ferramenta um caráter que, em uma primeira visada, poderia ser simplesmente colocado
ao lado dos imperativos contemporâneos por esquecimento. Se, sem dúvida, isso se dá em
um certo sentido, já que as relações intersubjetivas são predominantemente descontínuas no
tempo e sua virtual continuidade se efetiva somente a partir de interesses individuais e
privados, por outro lado, ao se deslocar, dentro de um mesmo momento histórico, para
outras realidades sociais, econômicas, culturais e/ou políticas, o esquecimento se reveste de
uma nova potência.
Propomos então, desdobrar nossa análise em dois níveis. Em um primeiro nível,
sincrônico, investigaremos a potência ambígua do esquecimento, ancorados na suspeita
decorrente do elevado volume de Skypecasts em árabe. Fenômeno que, em tempos de
guerra contra o terror pode estar apontando para uma interface na qual a inexistência de
registros a posteriori demandaria dos dispositivos de controle estratégias ainda não
formuladas. Em um segundo nível, este diacrônico, operamos um retorno a perspectivas
que no historicizante século XIX tematizaram memória e esquecimento com uma
radicalidade não menos potente. As teses de Henri Bergson, publicadas na obra de 1896
intitulada Matéria e memória e a perspectiva nietzschiana acerca do esquecimento,
postulada, sobretudo nos primeiros parágrafos da segunda dissertação da Genealogia da
moral serão nossos contrapontos no mapeamento das rupturas operadas pelas perspectivas
que hoje se configuram como hegemônicas.
Cumpre advertir ainda que ao propormos uma análise dos regimes de memória e
esquecimento, estamos nos colocando, inspirados pelo gesto genealógico de Michel
Foucault, sobre um solo que não é o solo da “verdade”. Não se trata, portanto, de verificar o
que “é” a memória e o que “é” o esquecimento, mas de cartografar os discursos e práticas
vinculados a tais processos que sintomatizam, ao mesmo tempo em que configuram modos
históricos de lembrar, esquecer e experimentar o mundo. Tais discursos e práticas não serão
entendidos aqui como atravessando a história em direção a uma “verdade” cada vez mais
“verdadeira”, mas nos termos de seus efeitos de verdade.

II

A contemporaneidade abriga uma série de fenômenos que vêm sendo mapeados por
inúmeros autores sob as alcunhas de pós-modernidade, modernidade tardia, alta
modernidade, supermodernidade etc. As rupturas que configuram este novo momento,
sobretudo as que dizem respeito aos modos de experiência do tempo, nos interessam
particularmente. Isso porque é através da cartografia do que está em jogo nos fenômenos
contemporâneos mais abrangentes e globais, que poderemos sustentar uma crítica de
fenômenos mais particulares e microfísicos. Neste contexto, um dispositivo tecnológico
deverá ser entendido como efeito de determinadas configurações de poder e, ao mesmo
tempo, como instrumento que sustém tais relações.
Zygmunt Bauman, um dos estudiosos do contemporâneo, tematiza o que chama
destemporalização do espaço social. O rebatimento do tempo – pura continuidade e
movimento – sobre o espaço conferiu ao tempo características que “naturalmente” apenas o
espaço possui. “A época moderna teve direção, exatamente como qualquer itinerário no
espaço. O tempo progrediu do obsoleto para o atualizado, e o atualizado foi desde o início a
obsolescência futura” (BAUMAN, 1998, p. 110). A época recém-moderna, supermoderna
ou pós-moderna assistiria a uma inflexão deste movimento que consistiria na crescente
suspeita com relação a essas estruturas espacializadas de tempo. Tais suspeitas não
reduzem a fragilidade do agir humano, mas parecem ter tornado frágil o mundo que orienta
esse agir, no qual as ações se inscrevem.
Como pode alguém viver a sua vida como peregrinação se os relicários e
santuários são mudados de um lado para o outro, são profanados, tornados
sacrossantos e depois novamente ímpios num período de tempo mais curto do que
levaria a jornada para alcançá-los? Como pode alguém investir numa realização
de vida inteira, se hoje os valores são obrigados a se desvalorizar e, amanhã, a se
dilatar? Como pode alguém se preparar para a vocação da vida, se habilidades
laboriosamente adquiridas se tornam dívidas um dia depois de se tornarem bens?
Quando profissões e empregos desaparecem sem deixar notícia e as
especialidades de ontem são os antolhos de hoje? E como se pode fixar e separar
um lugar no mundo se todos os direitos adquiridos não o são senão até segunda
ordem, quando a cláusula da retirada à vontade está escrita em todo contrato de
parceria, quando – como Anthony Giddens adequadamente o expressou – todo
relacionamento não é senão um “simples” relacionamento, isto é, um
relacionamento sem compromisso e com nenhuma obrigação contraída, e não é
senão amor “confluente”, para durar não mais do que a satisfação derivada?
(ibid., p. 112).

Se o declínio das grandes narrativas religiosas e nacionais “liberaram” os indivíduos


de roteiros rigidamente fixados de subjetivação, esta “liberdade” não se separou de sua
sombra: a autonomia. O imperativo de autonomia aliado à flexibilização das relações com o
Estado, ao ingresso da empresa na cena política e à aceleração produtora de corpos
frenéticos e esquecidos confluem no mal-estar pós-moderno. Alain Ehrenberg (1991),
cartografando estas rupturas na sociedade francesa de início dos anos 90, detecta o que
chama “generalização da competição”, fenômeno que se produz sobre um fundo de
fragmentação da existência, caracterizada pelo duplo movimento interdependente de um
neo-individualismo e de um neo-comunitarismo.
Le premier se manifeste par la valorisation de l´individu souple, mobile,
autonome, indépendant, qui trouve par lui-même ses repères dans l´existence et
se réalise par son action personelle. Le second s´exprime par le développement de
formes d´appartenance communautaire nouvelles (les mouvements
charismatiques catholiques, par exemple), dont les plus dures (...) sont le résultat
d´un processus d´exclusion sociale que l´État-providence n´a pu maîtriser 1 (ibid.,
p. 15).

Estamos pleiteando, ancorados pelo método genealógico, que não há entre esses
novos regimes de temporalidade, manifestos na vida mais cotidiana, nos produtos da
1
O primeiro se manifesta pela valorização do indivíduo flexível, móvel, autônomo, independente, que
encontra por ele mesmo suas referências na existência e se realiza por sua ação pessoal. O segundo se exprime
pelo desenvolvimento de formas novas de pertencimento comunitário (os movimentos carismáticos, por
exemplo), de que as mais severas (...) são o resultado de um processo de exclusão social que o Estado-
providência não pôde gerenciar. Minha tradução.
indústria cultural, nos discursos políticos, nos planejamentos empresariais etc., e a
temporalidade que opera na interface do Skypecast nenhuma descontinuidade. O esforço até
aqui foi o de delinear alguns nós nas redes de poder constitutivas de nossa sociedade, a
partir dos quais o que está em jogo quando tecnologia e esquecimento se aliam poderia
ficar mais claro.
Naturalmente, as mudanças sociais que Bauman, Ehrenberg e tantos outros
mapeiam encerram inúmeras contradições. Essas contradições se acentuam na medida em
que coabitam a contemporaneidade, estados de coisa bastante distintos. A compreensão
histórica de um dispositivo tecnológico então, passa a não demandar apenas um olhar sobre
o seu passado, mas também sobre o seu presente, comprometido com o entendimento dos
diferentes sentidos que revestem seu uso, atrelados a variáveis políticas, econômicas,
sociais, culturais etc. Derivamos daí o mais importante paradoxo da interface do Skypecast:
por um lado, é favorável às articulações intersubjetivas tencionadas entre o neo-
individualismo e o neo-comunitarismo, tal como postulados por Ehrenberg, inserindo-se
como efeito-instrumento na lógica do capitalismo neoliberal das sociedades ocidentais; por
outro lado, constitui-se, ainda, na contramão de um certo controle, o que viabiliza o
apagamento, no dinamismo das trocas orais, o “livre-trânsito”, a articulação estratégica de
resistências menos ancorada no espaço e mais no tempo.
A heterogeneidade das relações entre esquecimento, tecnologia e seus usos não se
encontra, entretanto, apenas no interior de cortes operados no presente. Historicamente, as
perspectivas sobre memória e esquecimento variaram enormemente. Um retorno às
potentes perspectivas de Henri Bergson e Friedrich Nietzsche, desenvolvidas no século
XIX, nos servirão aqui como potentes contrapontos, com vistas a uma desnaturalização das
perspectivas hegemônicas na contemporaneidade acerca de memória e esquecimento e a
uma ampliação do escopo de análise dessas relações.
III

Hoje assistimos à generalização da informática como modelo explicativo dos


fenômenos humanos. Memória e esquecimento passam a ser compreendidos como dados
armazenados ou deletados. As relações entre homem e tecnologia informática passam a
operar nos mais diversos sentidos: todo o tipo de metáforas informáticas na explicação de
fenômenos cognitivos, tecnologias informáticas de imageamento cerebral localizando
memórias e sensações, modelos cognitivos pautando e, simultaneamente, sendo pautados
por interfaces de softwares etc. As implicações político-filosóficas deste projeto de
informatização total não são poucas.
Em uma direção bastante diferente da que hoje seguem os saberes como as
neurociências e a genética, Henri Bergson postulou seu conceito de memória. O livro de
divulgação científica intitulado Memória, do neurocientista Iván Izquierdo, por exemplo, se
inicia com as seguintes frases:
Memória é a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações.
A aquisição é também chamada de aprendizagem: só se ‘grava’ aquilo que foi
aprendido. A evocação é também chamada de recordação, lembrança,
recuperação. Só lembramos aquilo que gravamos, aquilo que foi aprendido
(IZQUIERDO, 2002, p. 9).

A construção destas primeiras frases já revela um conjunto de expressões que não


são nem de longe meras casualidades, mas articuladoras dos pressupostos filosóficos que
costumam vir velados no interior desse tipo de discurso. A concepção de memória como
um feixe de informação e a metáfora informática presente tanto no uso da expressão
“gravar” quanto em sua equiparação com a aprendizagem, por exemplo, funcionam
atualizando a metáfora do homem-máquina, que já não se apresenta mais com um conjunto
mecânico de roldanas e engrenagens, mas como um complexo informático que tem como
hardware, o cérebro e como software, a própria memória.
Um recuo à perspectiva de Henri Bergson sobre memória é extremamente pertinente
nesta problematização do estatuto redutor da memória às suas bases neurais, que se produz
contemporaneamente como “verdade” através da difusão de pesquisas neurocientíficas no
imaginário popular. Primeiramente, por conta do sofisticado argumento bergsoniano de que
apesar de o fato psicológico possuir um correlato cerebral, não se pode deduzir um do
outro.
Que haja solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro, é incontestável.
Mas há solidariedade também entre a roupa e o prego onde ela está pendurada,
pois, se retiramos o prego, a roupa cai. Diremos por isso que a forma do prego
indica a forma da roupa ou nos permite de algum modo pressenti-la? Assim, de
que o fato psicológico esteja pendurado em um estado cerebral, não se pode
concluir o “paralelismo” das duas séries psicológica e fisiológica (BERGSON,
1999, p. 5).

A seguir, por conta da presença, na filosofia de Bergson, de um regime de


temporalidade que viabilizou uma resposta que privilegia a experiência compartilhada do
tempo como puro escoar, como duração, à pergunta que Izquierdo e outros neurocientistas
tentaram responder recorrendo à lógica informática. A partir da noção de que a menor
percepção já ocorre no tempo e, portanto, dura, Bergson adverte que, de fato, não há
percepção sem lembrança.
Nossa percepção, por mais instantânea que seja, consiste portanto numa
incalculável quantidade de elementos rememorados, e, para falar a verdade, toda
percepção é já memória. Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente
puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro (ibid., p. 175-176).

Um outro conceito presente no livro de Izquierdo e que aponta para essa tendência
informatizante é o conceito de working memory (memória de trabalho), importada do
universo informático e descrita nos seguintes termos:
Há basicamente dois tipos de memória de acordo com a sua função. Uma, muito
breve e fugaz, serve para ‘gerenciar a realidade’ e determinar o contexto em que
os diversos fatos, acontecimentos ou outros tipo de informação ocorrem, e se vale
a pena ou não fazer uma nova memória disso ou se esse tipo de informação já
consta dos arquivos. É a memória de trabalho. Ela serve para manter alguns
segundos, no máximo poucos minutos, a informação que está sendo processada
no momento (IZQUIERDO, op. cit., p. 19).

A “memória de trabalho”, postulada por Izquierdo, parece, diferentemente da noção


bergsoniana de que toda percepção se dá no tempo e envolve um trabalho da memória, ser
um dispositivo produzido para escapar à dimensão inapreensível da duração, produzindo
uma perspectiva de algum modo estática sobre a memória que, de acordo com a visão
bergsoniana, vincula-se a uma concepção de temporalidade que é radicalmente dinâmica -
puro fluir e mudança incessante. Essa tendência à imobilidade é considerada por Bergson
válida na esfera da ação. Para agir, percebemos a matéria – que é puro movimento – como
imóvel, mas a transposição dessa tendência para a esfera especulativa consiste em um
equívoco.
Assim, abordagens dos dispositivos que articulam o fenômeno contemporâneo de
equacionamento – e redução – da identidade pessoal a uma base neural, que atentem para o
caráter dinâmico e movente da memória, convertem-se em um potencial revelador dos
pressupostos político-filosóficos de certos programas neurocientíficos. Tais pressupostos
não são tão difundidos quanto as “verdades” neurocientíficas, amplamente disseminadas e
respaldadas pelos mídia.
Outro contraponto às desespiritualizantes perspectivas informáticas acerca da
memória e do esquecimento é o conceito nietzschiano de esquecimento. Nietzsche inicia a
segunda das Considerações intempestivas evocando a imagem de animais pastando em um
campo e ressaltando que o homem, acostumado a se vangloriar de sua humanidade, não
pode deixar de experimentar inveja pela felicidade que os animais exalam. O homem
pergunta ao animal porque este não lhe fala da sua felicidade. O animal quer responder,
quer explicar que sempre esquece, imediatamente, o que quer dizer. Mas logo se esquece
também desta resposta e se cala. De acordo com Maria Cristina Franco Ferraz (2002), este
instigante texto aponta para temas que se desenvolverão na obra posterior do filósofo: “a
valorização do esquecimento como uma força plástica que é condição de toda felicidade,
identificada à possibilidade de coincidir com o presente, com o instante” (ibid., p. 58).
Na língua alemã, prossegue Ferraz, “instante” não se diz por referência a uma
abstração temporal, mas em conexão com o corpo, por alusão à imediatez, ao movimento
de intermitência de que os olhos e a visão são dotados. Essa temporalidade, mais “animal”
do que “humana” associa-se à mobilidade do corpo – os olhos. A própria metáfora
Augenblick (Augen, olhos e Blick, olhadela) nos afastaria então da introspecção, do regime
de interioridade, propriamente humano, indicando um horizonte de inumanidade,
pressentido e perdido pelo homem. Depois de lançar seu olhar sobre o animal, o homem
admira-se de sua incapacidade de aprender o esquecimento, estando constantemente preso
ao passado.
Na Genealogia da Moral, Nietzsche tematiza uma outra memória. Criar um animal
capaz de prometer, ressalta o filósofo, é uma tarefa paradoxal que a natureza se impôs com
relação ao homem. Isto fica mais claro para aqueles que reconhecem a força que atua na
direção contrária: a força do esquecimento. Esquecer, para Nietzsche, não consiste em uma
passividade, mas em “uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à
qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em
nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar ‘assimilação
psíquica’), do que todo o multiforme processo de nossa nutrição corporal ou ‘assimilação
física’” (NIETZSCHE, 1998, p. 47).
O estatuto do esquecimento em Nietzsche é dotado de uma positividade radical:
esquecer é condição de felicidade, jovialidade, esperança, orgulho e presente. O
esquecimento entendido como digestão, aquele incapaz de esquecer como um “dispéptico”,
que de nada dá conta. Precisamente este animal do esquecimento por excelência,
desenvolveu uma faculdade que opera na direção oposta: a memória. Auxiliado pela
memória, o esquecimento é suspenso, por exemplo, nos casos em que prometemos. Não se
trata de simplesmente “não-mais-poder-livrar-se” de uma impressão recebida, mas de um
“não-mais-querer-livrar-se”, um “prosseguir-querendo o já querido”, uma memória da
vontade, uma memória do futuro.
A história dessa memória é a história da origem da responsabilidade. A tarefa de
tornar o homem capaz de prometer pressupõe a tarefa mais imediata de tornar o homem
uniforme, constante, confiável. A consciência desta rara liberdade, deste poder sobre o
destino e sobre si mesmo tornou-se um instinto dominante, a que o homem chama de sua
consciência. Mas como se fez no homem, essa “encarnação do esquecimento”, uma
memória? Não sem dor. Eis um axioma que Nietzsche atribui à mais antiga (e infelizmente
mais duradoura) psicologia da terra: “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória:
apenas o que não cessa de causar dor fica na memória”. Bastaria então, olhar nossas antigas
legislações penais para entender o preço pago pela criação deste “povo de pensadores”.

IV

As relações entre tecnologias (cada vez mais, apenas as informáticas), memória e


esquecimento são múltiplas e problematizáveis sob inúmeras chaves teórico-filosóficas.
Parte de nosso esforço consistiu em apontar o Skypecast em seus diversos usos como
complexificador dos regimes de esquecimento implementados pela lógica do tempo-real.
Em um segundo nível, fizemos o esforço de apontar alguns traços de duas perspectivas que
recolocam, no século XIX, o tema da memória em termos que são, ainda hoje, radicalmente
inovadores e potentes, as perspectivas de Henri Bergson e de Friedrich Nietzsche.
Finalizamos, apontando para a re-potencialização do esquecimento que a interface
do Skypecast, no confronto com condições sócio-político-econômica-culturais
mundialmente heterogêneas, historicamente configuradas em consonância com as formas
do capitalismo tardio, implementa. E pleiteando, ancorados nisto, a cartografia das
resistências que emergem na contemporaneidade, mais em termos temporais do que
espaciais.

Referência Bibliográfica:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editor, 1998.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
EHRENBERG, Alain. Le culte de la performance. Paris: Hachette, 1991.
__________. O sujeito cerebral. Esprit, 309, Novembro 2004, p. 130-155.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. “Bergson hoje: virtualidade, corpo e memória”. In:
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FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora,
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem
da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
VIDAL JUNIOR, Icaro Ferraz. Skypecast: inteligência coletiva em tempo-real?. Midiarte
(on-line). Disponível em:
http://www.pacc.ufrj.br/midiarte/teste2/conteudo.php?secao=resultadoscomp

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