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II
A contemporaneidade abriga uma série de fenômenos que vêm sendo mapeados por
inúmeros autores sob as alcunhas de pós-modernidade, modernidade tardia, alta
modernidade, supermodernidade etc. As rupturas que configuram este novo momento,
sobretudo as que dizem respeito aos modos de experiência do tempo, nos interessam
particularmente. Isso porque é através da cartografia do que está em jogo nos fenômenos
contemporâneos mais abrangentes e globais, que poderemos sustentar uma crítica de
fenômenos mais particulares e microfísicos. Neste contexto, um dispositivo tecnológico
deverá ser entendido como efeito de determinadas configurações de poder e, ao mesmo
tempo, como instrumento que sustém tais relações.
Zygmunt Bauman, um dos estudiosos do contemporâneo, tematiza o que chama
destemporalização do espaço social. O rebatimento do tempo – pura continuidade e
movimento – sobre o espaço conferiu ao tempo características que “naturalmente” apenas o
espaço possui. “A época moderna teve direção, exatamente como qualquer itinerário no
espaço. O tempo progrediu do obsoleto para o atualizado, e o atualizado foi desde o início a
obsolescência futura” (BAUMAN, 1998, p. 110). A época recém-moderna, supermoderna
ou pós-moderna assistiria a uma inflexão deste movimento que consistiria na crescente
suspeita com relação a essas estruturas espacializadas de tempo. Tais suspeitas não
reduzem a fragilidade do agir humano, mas parecem ter tornado frágil o mundo que orienta
esse agir, no qual as ações se inscrevem.
Como pode alguém viver a sua vida como peregrinação se os relicários e
santuários são mudados de um lado para o outro, são profanados, tornados
sacrossantos e depois novamente ímpios num período de tempo mais curto do que
levaria a jornada para alcançá-los? Como pode alguém investir numa realização
de vida inteira, se hoje os valores são obrigados a se desvalorizar e, amanhã, a se
dilatar? Como pode alguém se preparar para a vocação da vida, se habilidades
laboriosamente adquiridas se tornam dívidas um dia depois de se tornarem bens?
Quando profissões e empregos desaparecem sem deixar notícia e as
especialidades de ontem são os antolhos de hoje? E como se pode fixar e separar
um lugar no mundo se todos os direitos adquiridos não o são senão até segunda
ordem, quando a cláusula da retirada à vontade está escrita em todo contrato de
parceria, quando – como Anthony Giddens adequadamente o expressou – todo
relacionamento não é senão um “simples” relacionamento, isto é, um
relacionamento sem compromisso e com nenhuma obrigação contraída, e não é
senão amor “confluente”, para durar não mais do que a satisfação derivada?
(ibid., p. 112).
Estamos pleiteando, ancorados pelo método genealógico, que não há entre esses
novos regimes de temporalidade, manifestos na vida mais cotidiana, nos produtos da
1
O primeiro se manifesta pela valorização do indivíduo flexível, móvel, autônomo, independente, que
encontra por ele mesmo suas referências na existência e se realiza por sua ação pessoal. O segundo se exprime
pelo desenvolvimento de formas novas de pertencimento comunitário (os movimentos carismáticos, por
exemplo), de que as mais severas (...) são o resultado de um processo de exclusão social que o Estado-
providência não pôde gerenciar. Minha tradução.
indústria cultural, nos discursos políticos, nos planejamentos empresariais etc., e a
temporalidade que opera na interface do Skypecast nenhuma descontinuidade. O esforço até
aqui foi o de delinear alguns nós nas redes de poder constitutivas de nossa sociedade, a
partir dos quais o que está em jogo quando tecnologia e esquecimento se aliam poderia
ficar mais claro.
Naturalmente, as mudanças sociais que Bauman, Ehrenberg e tantos outros
mapeiam encerram inúmeras contradições. Essas contradições se acentuam na medida em
que coabitam a contemporaneidade, estados de coisa bastante distintos. A compreensão
histórica de um dispositivo tecnológico então, passa a não demandar apenas um olhar sobre
o seu passado, mas também sobre o seu presente, comprometido com o entendimento dos
diferentes sentidos que revestem seu uso, atrelados a variáveis políticas, econômicas,
sociais, culturais etc. Derivamos daí o mais importante paradoxo da interface do Skypecast:
por um lado, é favorável às articulações intersubjetivas tencionadas entre o neo-
individualismo e o neo-comunitarismo, tal como postulados por Ehrenberg, inserindo-se
como efeito-instrumento na lógica do capitalismo neoliberal das sociedades ocidentais; por
outro lado, constitui-se, ainda, na contramão de um certo controle, o que viabiliza o
apagamento, no dinamismo das trocas orais, o “livre-trânsito”, a articulação estratégica de
resistências menos ancorada no espaço e mais no tempo.
A heterogeneidade das relações entre esquecimento, tecnologia e seus usos não se
encontra, entretanto, apenas no interior de cortes operados no presente. Historicamente, as
perspectivas sobre memória e esquecimento variaram enormemente. Um retorno às
potentes perspectivas de Henri Bergson e Friedrich Nietzsche, desenvolvidas no século
XIX, nos servirão aqui como potentes contrapontos, com vistas a uma desnaturalização das
perspectivas hegemônicas na contemporaneidade acerca de memória e esquecimento e a
uma ampliação do escopo de análise dessas relações.
III
Um outro conceito presente no livro de Izquierdo e que aponta para essa tendência
informatizante é o conceito de working memory (memória de trabalho), importada do
universo informático e descrita nos seguintes termos:
Há basicamente dois tipos de memória de acordo com a sua função. Uma, muito
breve e fugaz, serve para ‘gerenciar a realidade’ e determinar o contexto em que
os diversos fatos, acontecimentos ou outros tipo de informação ocorrem, e se vale
a pena ou não fazer uma nova memória disso ou se esse tipo de informação já
consta dos arquivos. É a memória de trabalho. Ela serve para manter alguns
segundos, no máximo poucos minutos, a informação que está sendo processada
no momento (IZQUIERDO, op. cit., p. 19).
IV
Referência Bibliográfica: