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© Editora Novos Diálogos, 2012

Equipe Editorial
Clemir Fernandes | Flávio Conrado | Wagner Guimarães
Capa e Diagramação
Oliverartelucas
Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados.
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A Coleção Perfis Protestantes conta com o apoio da Associação


Basiléia, uma organização sem fins lucrativos que apóia pessoas e pro-
jetos por meio da assistência social, do apoio missionário, da publica-
ção e da educação.A Basiléia organiza e matém um acervo de fontes
e documentos sobre a memória do protestantismo brasileiro, situado
na cidade de Campinas. Para contatos:abasileia@uol.com.br.

Dados Catalográficos

Santos, Lyndon de Araújo
S237r Robert Reid Kalley : um missionário diplomata na gênese
do protestantismo luso- brasileiro / Lyndon de Araújo Santos
[e] Sergio Prates Lima .- Rio de Janeiro : Novos Diálogos,
2012. – Inclui bibliografia.

100p. ; 18cm. - (Perfis protestantes).

ISBN: 978-85-64181-23-6
1. Kalley, Robert Reid, 1809- 1888 -----Biografia. 2. Kalley,
Robert Reid, 1809-1889 ---- Protestantismo. I. Lima, Sérgio
Prates II. Título. III. Série.
CDD 922.581

Índice para catálogo sistemático:


1. Protestantismo: História ; 280. 407
Sumário

Apresentação ...................................................................... 7
Introdução ......................................................................... 11
Capítulo 1
Um agnóstico convertido .............................................. 15
Capítulo 2
Do bom doutor inglês ao lobo da Escócia .................. 19
Capítulo 3
Os antecedentes da ida para o Brasil e sua chegada .43
Capítulo 4
O surgimento da Igreja Evangélica Fluminense ...... 63
Capítulo 5
A consolidação da obra de Kalley ................................ 71
Conclusão
O retorno para a Escócia e seus últimos dias ............ 83
Fontes e Referências Bibliográficas ............................. 85
Cronologia ......................................................................... 93
Apresentação

Presente desde a primeira metade do século deze-


nove — através de imigrantes luteranos alemães e an-
glicanos ingleses —, o protestantismo se enraizou no
país através de diferentes e diversas denominações,
missões e instituições. Recentes pesquisas já falam de
uma comunidade de mais de 30 milhões de evangélicos
espalhados por todo o território brasileiro. Seu dina-
mismo é responsável por uma presença cada vez mais
destacada na mídia, na política, nos esportes, na ação
social etc., e cresce cada vez mais o interesse de diferen-
tes setores da sociedade nas dimensões organizativas,
doutrinárias e históricas do protestantismo brasileiro.
Apesar desse crescente interesse, muito pouco se
publicou de forma acessível ao grande público sobre
a história do protestantismo brasileiro. Desse modo,
tem-se a impressão de que o protestantismo tem pouca
ou nenhuma herança histórica no nosso país, perden-
do-se de vista sua rica e importante contribuição na
construção da nação brasileira. Para as comunidades
protestantes, o desconhecimento ou esquecimento de
importantes etapas e (des)caminhos cria espaço para
que se reproduza o velho adágio de que ao esquecer-
mo-nos do passado nos condenamos a repetir os seus
erros.
Nesse contexto, a Coleção Perfis Protestantes pre-
tende criar um espaço para a recuperação e rememo-
ração histórica de modo que tanto a sociedade quanto
a Igreja Evangélica brasileiras possam compreender o
que singulariza e caracteriza o protestantismo no país
na perspectiva de toda a sua trajetória.
A Editora Novos Diálogos, em parceria com a As-
sociação Basiléia, buscou profissionais que se dedicam
academicamente ao tema a fim de possibilitar o aces-
so do grande público a esse rico material ainda pouco
conhecido. A escolha de perfis biográficos e o forma-
to de bolso segue a lógica de que esse gênero literário
consagrado — a biografia — combinado a um formato
leve mas não menos embasado na pesquisa histórica —
o livro de bolso — têm a capacidade de atrair leitores
e leitoras para a fascinante jornada de missionários e
missionárias, pastores e pastoras, musicistas, compo-
sitores, educadores e educadoras, literatos e outros
profissionais que assumiram a herança protestante em
terras brasileiras.
Esperamos que a Coleção Perfis Protestantes ajude
a recompor, através de perfis biográficos de pessoas e
movimentos da trajetória histórica do protestantismo,
um panorama amplo de sua implantação, consolidação
e desenvolvimento na vida social e cultural de nosso
país nos séculos 19 e 20.
Os editores.
Prefácio

Os autores desta biografia recorreram a diferentes


fontes para escrever um relato histórico de forma clara
e concisa. O objetivo foi o de apresentar a trajetória de
vida de um dos mais importantes personagens do mun-
do protestante do século dezenove. Cartas, bilhetes,
diários, fotografias, depoimentos, ofícios, planilhas de
gastos, recibos, relatórios e livros já publicados foram
utilizados para construir esta narrativa.
Os méritos, portanto, devem ser dados aos autores e
às fontes relacionados nas referências finais. Entretan-
to, como toda escrita histórica, esta biografia não deixa
de ser uma releitura do percurso deste missionário, a
partir dos olhares compartilhados e motivados por no-
vas questões que o presente nos coloca.
Uma delas se refere ao modo como os evangélicos
brasileiros têm perdido cada vez mais os referenciais
e as heranças do seu passado comum. Os evangélicos
de hoje desconhecem a memória dos antepassados que
propagaram a crença protestante, inventaram sentidos
e tradições, construíram patrimônios e estabeleceram
a fé reformada em todos os cantos do país. Isto se deve
ao discurso que menospreza o passado, mas também
porque os historiadores possuem uma dívida social em
disponibilizar obras que inspirem o respeito pelos le-
gados passados.
Outra questão diz respeito à febre editorial por bio-
grafias que o mercado explora para satisfazer a sede de
curiosidades por detalhes das vidas pessoais de figuras
destacadas. É preciso produzir biografias que ultrapas-
sem o mero desejo de vasculhar intimidades, mas que
retratem uma época e contribuam para a compreensão
das teias de sentidos em que os sujeitos históricos estão
envolvidos.
Para os escritores desta obra, revisitar a trajetória de
vida de Robert Kalley significa rever dois aspectos. O
primeiro relaciona-se à revisão dos acontecimentos a
partir do olhar de nossa geração, que recebeu uma in-
terpretação reificada do doutor. Em outras palavras, a
versão de um personagem exaltado à condição de he-
rói. O segundo, tentar encontrar nas suas falas, gestos,
atitudes e discursos, pistas e sinais para o sentido da
fé reformada hoje, assim como a discussão permanen-
te acerca de um modelo eclesial relevante para a so-
ciedade. Enfim, que protestantismo foi esse que mis-
sionários estrangeiros trouxeram para o Brasil, o qual
se disseminou sob variados e diferentes formatos e se
inseriu na cultura, na política, na religiosidade e no co-
tidiano das relações sociais? Uma narrativa biográfica
nos aproxima de possíveis respostas.
A principal fonte utilizada foi o livro de memórias
publicado pelo filho adotivo dos Kalley, João Gomes
de Rocha, intitulado Lembranças do Passado. Esta com-
pilação tardia, publicada de forma seriada durante anos
no jornal O Cristão, foi editada e lançada no início da
década de 1940. O legado desta obra para o conheci-
mento e as pesquisas sobre o protestantismo no século
dezenove é de fundamental importância. Rocha con-
tribuiu para que as gerações futuras pudessem revisitar
o mundo oitocentista brasileiro em que o protestantis-
mo se estabeleceu. Ao mesmo tempo descreveu o con-
texto carioca onde a fé reformada se inseriu de forma
permanente na sociedade brasileira.
Robert Reid Kalley possibilita a compreensão mul-
tifacetada de um personagem que pertenceu a diferen-
tes espaços sociais. Foi um cidadão do mundo do sécu-
lo dezenove. A vida devotada à pregação da fé protes-
tante foi articulada por um conjunto de componentes
que contribuíram para uma trajetória paradigmática.
Desde os recursos herdados, a formação médica, a ex-
periência de conversão, as muitas viagens pelo mundo,
a capacidade de negociação e de intervenção jurídica,
Kalley foi um sujeito histórico no seu tempo. Daí que
os autores procuraram situá-lo sempre no contexto
mais amplo, sem perder o foco da narrativa dos aconte-
cimentos e sem cair no trivial factualismo.
A biografia de Kalley certamente inspirará novas
perguntas sobre as práticas e os rumos do chamado
segmento evangélico no Brasil de hoje. Esperamos,
portanto, que os leitores se apropriem desta obra como
instrumento de releitura também do presente.

São Luis do Maranhão | Rio de Janeiro,


Março de 2012.

Os autores.
Capítulo 1

Um agnóstico
convertido

R obert Reid Kalley nasceu em Mount Florida, Es-


cócia, em oito de setembro de 1809 e foi batiza-
do na Igreja Livre da Escócia (Presbiteriana). Era filho
de Robert Kalley, um próspero comerciante e de Jane
Reid Kalley. Ficou órfão de pai antes de completar um
ano de idade. Sua mãe se casou novamente, com David
Kay, um homem também devotado à Igreja Presbiteria-
na, que dispensou ao menino cuidados iguais aos dos fi-
lhos do seu anterior casamento. Jane também não viveu
muito e ainda na infância Kalley tornou-se órfão de mãe.
O menino foi cuidado pelo padrasto, que continuou
levando-o à igreja e desejou que o jovem fosse pastor.
Aos 16 anos, Kalley entrou para a universidade e, a par-
tir de então, tornou-se agnóstico. Desde a adolescência
se tornara incrédulo e agnóstico, tendo sido influencia-
do por Thomas Paine e outros autores.
Foi com estas palavras que, no seu diário, referiu-se
a este período da sua vida:
Bastante jovem ainda, propus-me estudar os vá-
rios ramos da ciência. Com a ajuda do microscó-
pio, investigava maravilhas da Natureza, invisí-
veis à vista desarmada. Com a ajuda do telescó-
pio, penetrei o vasto espaço sideral, conhecendo
as distâncias, a dimensão imensa e a grande velo-
cidade dos corpos celestes. Como resultado des-
sas investigações, cheguei à conclusão que me era
impossível aceitar a doutrina da existência de um
Ser Divino, e nessa convicção continuei por mui-
tos anos (…). Fui um infiel, acostumado a des-
prezar toda a religião, sentindo grande gozo na
frieza, nas trevas e na exibição da infidelidade.1
Aos vinte anos, em agosto de 1829, diplomou-se ci-
rurgião e farmacêutico pela Faculdade de Medicina e
Cirurgia de Glasgow, embarcando a seguir como mé-
dico de bordo para a Índia no navio Upton Castle. Pos-
teriormente realizou mais duas viagens a Bombaim, na
Índia, ocasião em que conheceu vários portos, como
Funchal, na Ilha da Madeira, onde o navio atracou para
deixar algumas cargas. Percebeu a grande necessidade
de médicos no Oriente.
1. Testa, 1963: 20.

18 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


A miséria e o fanatismo religioso na Índia o impac-
taram e em Funchal se impressionou com a pobreza
e ignorância do povo. Chegou a ser convidado para
uma terceira viagem, em 1832, mas não foi, pois estava
abrindo seu consultório em Kilmarnock, cerca de 30
km de Glasgow. Logo depois, tomou conhecimento de
que aquele navio havia se incendiado próximo ao cabo
da Boa Esperança. Toda a tripulação e os passageiros
morreram.
Kalley era uma pessoa espirituosa. Sendo uma figu-
ra benquista nas altas rodas sociais de Kilmarnock, era
convidado frequentemente para festas sociais e fami-
liares. Devido às suas participações nessas festas, ficou
conhecido como o médico dançarino de Kilmarnock.
Tendo prosperado financeiramente, relacionava-se mui-
to bem com a alta sociedade e dela recebia seus honorá-
rios, mas não deixou de tratar gratuitamente dos pobres.
O contato com um paciente cristão muito enfermo
e muito pobre, muito o impressionou. Kalley não tinha
dúvidas de que aquele homem era muito sincero em
sua crença e na convicção de sua fé. Mais tarde, houve
outro fato que o impressionou ainda mais. Desta feita
a paciente era uma mulher que enfrentava grandes so-
frimentos com serenidade e fé, e as conversas que teve
com ela levaram-no a reconsiderar as objeções que ti-
nha acerca do cristianismo.
Como homem meticuloso, dado aos estudos, não
aceitou os argumentos que lhe foram apresentados

Robert Reid Kalley 19


sem questioná-los. Iniciou uma pesquisa meticulosa na
Bíblia, tendo se tornado um estudioso dela, principal-
mente das profecias referentes aos judeus e à Palestina.
Esta leitura possibilitou um processo de conversão e,
logo a seguir, um grande interesse pela evangelização
dos judeus.
Kalley foi impactado pela morte de Robert Morri-
son (1782-1834), médico e missionário escocês e pres-
biteriano, ligado à London Missionary Society. Morrison
foi pioneiro protestante na China (Cantão), e marcou
profundamente a sua vida. Ofereceu, então, os seus
serviços à Junta de Missões da Igreja Livre da Escócia,
pretendendo tornar-se médico-missionário e evange-
lista. Mas tendo em vista o fato da China não estar in-
cluída entre os campos missionários daquela igreja, seu
oferecimento foi recusado. Dirigiu-se, então, à London
Missionary Society que, em fins de novembro de 1837,
o admitiu como médico missionário para a China. Foi
combinado que deveria embarcar em 1839, devendo
realizar novos estudos médicos e teológicos.
Kalley fechou seu consultório médico, matriculou-
-se na Universidade de Glasgow e obteve o título de
doutor em medicina em abril de 1838. Contudo, dois
meses após ter sido nomeado missionário, Kalley ficou
noivo de Margareth Crawford, cuja saúde muito frá-
gil não recomendava viagens, muito menos atividades
missionárias na China. A nomeação foi suspensa até
uma ocasião oportuna.

20 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Capítulo 2

Do bom doutor
inglês ao lobo da
Escócia

E mbora a China ainda estivesse nos seus planos, o


agravamento do estado de saúde de Margareth le-
vou o casal a mudar-se por um período para a Ilha da
Madeira — território português na costa atlântica cujo
clima o havia encantado anos antes —, tendo chegado
a Funchal em outubro de 1838.
Era a capital da Madeira que possuía uma grande
colônia de escoceses ligada à indústria do vinho. No
entanto, passados os primeiros tempos da adaptação,
Kalley percebeu que os ingleses da ilha já tinham ao
seu serviço dois médicos, enquanto os madeirenses vi-
viam sem qualquer atendimento e eram em sua maio-
ria analfabetos. Paulatinamente, Kalley foi deixando
de lado seu projeto de missionar na China e a priorizar
a ajuda na resolução dos problemas que, em sua visão,
o rodeavam na Madeira: a pobreza, a promiscuidade, o
alcoolismo, o analfabetismo e a superstição.
Paralelamente ao emprego de sua profissão e re-
cursos para auxiliar a população pobre e analfabeta da
ilha, Kalley passou a fazer também proselitismo. Sua
visão acerca do estado espiritual dos madeirenses era a
pior possível, sendo o catolicismo visto como sinônimo
de atraso, enquanto o protestantismo, de progresso. O
missionário partilhava da visão de mundo de sua épo-
ca, a de que os países mais adiantados cultural e econo-
micamente eram protestantes.
A alfabetização era o principal aliado no propósito
proselitista. O esforço alfabetizador obedecia a um es-
quematizado programa pedagógico, já que o texto bá-
sico nas aulas era a Bíblia. Muitos alunos estabeleciam
os primeiros contatos com a leitura através da Bíblia.
E à medida que o adestramento na leitura e na escrita
se solidificava, crescia o interesse pelos textos bíblicos,
aumentando o número de simpatizantes e seguidores
das doutrinas protestantes.
Kalley iniciou uma campanha de alfabetização, que
culminou com a criação de escolas domésticas, para as
quais foram contratados diversos professores que mi-
nistravam o ensino elementar, com aulas diurnas para

22 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


as crianças e noturnas para os adultos. As adesões a
esta iniciativa foram muitas e em pouco tempo já exis-
tiam dezessete escolas com mais de oitocentos alunos.
Este trabalho mereceu das entidades oficiais um louvor
público, nas Atas da Câmara do Governo Municipal da
Cidade do Funchal, do dia 25 de Maio de 1841, em que
Kalley era nomeado como O Bom Doutor Inglês e o seu
trabalho caracterizado como esforço filantrópico em
favor dos pobres, doentes e analfabetos.
Os protestantes sempre valorizaram a leitura da
Bíblia. Então, para obter sucesso em suas atividades
proselitistas, os missionários protestantes geralmen-
te agiam no sentido de alfabetizar as populações com
as quais realizavam suas atividades missionárias. Não
sem razão, os protestantes ficaram conhecidos como o
povo do livro. O caso de Kalley na Ilha da Madeira não
foi diferente. Ao encetar suas atividades com os caren-
tes, fidelizou-os à fé protestante. Além das prédicas, ha-
via os cânticos, pois a música desempenhava um papel
especial na missão de fixar o que era pregado.
O doutor resolveu lançar também uma campanha
contra o alcoolismo, apoiado por literatura que man-
dou vir da Inglaterra, espalhando-a por toda a ilha.
Nesses folhetos eram explicados os malefícios do ál-
cool e também eram ensinadas diversas terapias para
combater a sua dependência.
Kalley aprendera a língua portuguesa e foi à Lisboa,
com o propósito de revalidar seu diploma de médico.

Robert Reid Kalley 23


Depois de ter sido examinado pela Escola Médico-
-Cirúrgica daquela cidade, foi habilitado em junho de
1839 para exercer medicina nos territórios de Portugal.
Seguiu então para Londres, onde manteve novos con-
tatos com a London Missionary Society, à qual pedira
que o ordenasse pastor e o indicasse como seu agente
na Ilha da Madeira.
A London Missionary Society aprovou a sua ordena-
ção, mas por não ter atividades missionárias naquela
ilha, não o aceitou como agente. Embora não tivesse
feito estudos formais de teologia, Kalley foi aprovado
nos exames e ordenado no dia oito de julho de 1839
por seis ministros ligados àquela sociedade missioná-
ria. Estes agiram por iniciativa pessoal, sem representar
uma denominação, tendo Kalley retornado à Ilha da
Madeira em outubro do mesmo ano, ordenado pastor
protestante.
Em 1840, Kalley abriu um pequeno hospital com
doze leitos em Funchal, no qual havia paralelamen-
te uma farmácia e um consultório. As consultas eram
gratuitas para os pobres. Cerca de cinquenta pacientes
eram consultados em média por dia, sendo as consul-
tas precedidas por um pequeno culto, em que era lida
a Bíblia e feita uma oração, prática repetida nas visitas
domiciliares a pacientes. Passado algum tempo, o êxito
de suas atividades como médico e outras que patroci-
nava trouxe-lhe simpatias por parte da população com
quem contatava e a quem dispensava atenção; e esse re-
24 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima
conhecimento verificava-se nas adesões às suas ideias
religiosas.

O acirramento dos ânimos na


Ilha da Madeira
No final de janeiro de 1842 começou um período
de hostilidade por parte do clero católico, dando início
a um movimento anti-herético que, com a cooperação
das autoridades civis, rapidamente assumiria propor-
ções maiores. Instituições religiosas católicas, apoiadas
por alguns políticos, começaram a realizar uma intensa
propaganda contra as atividades de Kalley. Logo após,
começaram as perseguições. Houve, a princípio, pro-
testo das autoridades eclesiásticas contra o aumento
sistemático do número dos seguidores de Kalley, que
passou a ser chamado de fanático escocês. O bispo da
Madeira, porém, fazia parte do grupo de amigos de
Kalley e, tendo recebido uma carta de Lisboa advertin-
do-o que fossem interrompidas todas as atividades mé-
dicas e educacionais que poderiam pôr em risco a lei e
a ordem, alertou-o acerca do perigo que a continuidade
de suas atividades acarretaria.
Assim, houve um apelo para que Kalley encerrasse
as atividades do pequeno hospital e também das es-
colas. Porém, recusou, por ter convicção de que havia
sido constrangido por Deus para a realização de suas
atividades. Em sua visão, se via como um representante

Robert Reid Kalley 25


divino que deveria levar a boa nova aos madeirenses,
mesmo que para isso violasse as leis e as normas de um
país estrangeiro. No entanto, tinha a certeza de que
não estava infringindo a constituição portuguesa.
O que efetivamente ocorria era a disputa por um es-
paço exclusivamente ocupado, até então, pelo catolicis-
mo, com outra forma de religião cristã além da católica.
Este era o grave problema. Por isso, deu-se a politização
e a influência de líderes religiosos junto à burocracia
estatal, no intuito de estabelecer políticas restritivas,
contrapondo dois ramos do cristianismo, protestantes
e católicos. Kalley resolveu apelar ao juiz da Madeira,
solicitando uma decisão sobre a legalidade ou não do
tratamento hostil a que vinha sendo submetido; além
disso, escreveu um livro em que, utilizando sempre a
terceira pessoa, relatava a perseguição da qual era ví-
tima, fazendo questão de afirmar sua independência e
desvinculação com entidades ou agências missionárias.
Nesse pequeno livreto, afirmava que não havia sido
enviado por nenhuma sociedade missionária, e que não
estava, desde a primeira vez que esteve naquela ilha, no
emprego, ou debaixo da dependência de sociedade ou
indivíduo algum. E que recebia donativos, sempre em
benefício dos pobres, tanto de portugueses quanto de
ingleses e que
exceto da parte dos seus doentes mais abastados
a quem ele atende medicamente, nunca recebeu a
menor remuneração pelos seus trabalhos na Ma-

26 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


deira. Ele é obrigado a mencionar, ainda que não
sem bastante repugnância (porque lho podem
atribuir a ostentação), que tem atendido e admi-
nistrado remédios de graça a muitos milhares de
pessoas nesta Ilha.2
A sua tentativa era demonstrar que se tratava ape-
nas de um filantropo, que se dispunha a ajudar a gente
pobre da Madeira e que, eventualmente, falava-lhes de
sua fé, minimizando sua atividade. Efetivamente, a me-
dicina era utilizada com o fim de não apenas ajudar os
madeirenses, mas como meio eficaz de atingi-los, fra-
gilizados pela enfermidade, demonstrando cuidado e
lhes mostrando que havia outro caminho a seguir, isto
é, o protestantismo.
E para isso valeu-se da amizade do bispo de Fun-
chal, que declarou que Kalley pregava ou explicava as
Escrituras, mas sempre em sua casa e que apenas uma
vez o fizera fora de casa. Este fato foi atestado pelo vigá-
rio Francisco Pereira, que declarou participar de uma
atividade dirigida por Kalley, sem que este falasse coisa
alguma ofensiva ou ilegal, limitando-se a fazer a leitura
da Bíblia, nada tendo lhe parecido contrário à doutrina
que a Igreja Católica ensinava.
Kalley acabou sendo preso por seis meses. Muitos
dos seus seguidores foram encarcerados e também es-
pancados. Sucediam-se as pressões governamentais
e eclesiásticas e arruaças populares, acobertados pela
2 . Kalley, 1875.

Robert Reid Kalley 27


impunidade que as autoridades locais permitiam. A
oposição às iniciativas pedagógicas de Kalley cresceu
e o Governador Civil mandou fechar todas as escolas
protestantes, dando ordens para que fossem intimados
quaisquer professores ou professoras das Escolas de
Primeiras Letras pagas por Kalley, para que não con-
tinuassem a ensinar pessoa alguma, sob pena de serem
autuados.
Em sua defesa quanto ao funcionamento das esco-
las, Kalley afirmou ter encontrado o povo num estado
de grande ignorância, daí estabelecer escolas em dife-
rentes partes da ilha. Os seus mais de 800 adultos vi-
nham recebendo instrução e os professores usavam a
Bíblia como cartilha . Além disso, tanto os professores
quanto os alunos eram todos católicos e as Bíblias e os
Novos Testamentos utilizados eram as versões tradu-
zidas pelo Padre Figueiredo, sendo exatamente iguais
às utilizadas pelo clero da Ilha e nos domínios de Por-
tugal.
A situação social e econômica na Ilha da Madeira à
época era bem desfavorável, o que facilitava o acirra-
mento dos ânimos e a disposição em abandoná-la em
busca de outras terras. Houve a junção de vários fatores
à mesma época, como a instabilidade política e social
pela qual passava Portugal, além da questão religiosa.
Esta seria mais uma no quadro de problemas e dificul-
dades pelos quais Portugal e, especialmente a Madeira,
passavam. A relação com a Igreja Católica era conflitu-

28 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


osa, havia turbulência política, além de uma grave crise
econômica na Ilha.
O acirramento dos ânimos e a oposição às ativida-
des proselitistas de Kalley cresceram. Passaram a cir-
cular notícias de que os seus atos de filantropia eram
apenas pretexto para a disseminação do protestantis-
mo em território português. Sua prática de ler a Bíblia
aos enfermos que eram atendidos em seu pequeno hos-
pital chegou aos ouvidos do governo local, que comu-
nicou o fato à Rainha D. Maria II, que deu instruções
ao bispo de Funchal sobre como proceder.
Ainda em 1841 começaram a ser questionadas as
atividades de Kalley com a mudança de posição de di-
versas pessoas que haviam confiado de boa fé nas ativi-
dades filantrópicas, e que se sentiram enganadas — já
que os propósitos e objetivos seriam outros —, tendo
se aproveitado das boas relações estabelecidas com di-
versas pessoas da ilha, desde o povo até as autoridades
madeirenses. O juiz foi consultado e após a devida con-
sideração, emitiu seu parecer oficial em março de 1843.
Em seu parecer, afirmou que não existia lei alguma
que condenasse o ensino educacional e religioso exerci-
do pelo doutor, uma vez que ele não estava infringindo
nenhuma cláusula dos tratados entre a Grã-Bretanha e
Portugal. E afirmou ainda que ele não se opunha à reli-
gião oficial em encontros públicos, até mesmo porque
as únicas reuniões que ele mantinha eram aquelas em
sua própria residência, ou aquelas para os simpatizan-

Robert Reid Kalley 29


tes do protestantismo que vivem nas adjacências. Essa
afirmação do juiz contraria as anotações de Kalley, que
registrou que em suas reuniões, às vezes, milhares de
pessoas se reuniam para ouvi-lo e também as do vigá-
rio, que dissera que apenas uma vez Kalley havia falado
em público.
Por meio dos seus contatos ele conseguiu a libera-
ção de taxas e impostos sobre medicamentos que havia
mandado importar. Seu objetivo, ao atender a popula-
ção carente era usar a medicina como subterfúgio para
realizar seu verdadeiro propósito: proselitismo. Para
isso, nos primeiros momentos de sua atuação entre os
madeirenses, exerceu gratuitamente a medicina, es-
pecialmente entre os pobres, fundou escolas e, tendo
atraentes qualidades pessoais e facilidade de expressão,
criou em torno do seu nome uma auréola de simpatia,
consideração e respeito por parte de todas as classes so-
ciais da Madeira.
Como consequência dessa atividade filantrópica,
simpatia, ajuda aos mais carentes e a criação de diver-
sas escolas de primeiras letras, a Câmara Municipal de
Funchal lhe elogiou pelos serviços prestados à instru-
ção e pelos atos de filantropia praticados para com os
deserdados da fortuna. Por causa disso, o governo da
metrópole isentara do pagamento de direitos na alfân-
dega os medicamentos importados que fossem des-
tinados ao tratamento dos pobres. Mas, com o passar
dos tempos, o benemérito transformara-se num feroz

30 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


propagandista, reconhecendo-se claramente que nele
o proselitismo sobrelevava em tudo o desinteressado
exercício da caridade.
Logo a seguir, houve uma correspondência em que
o governo ordenava que as atividades proselitistas de
Kalley cessassem, tendo em vista que havia usado a
amizade com os funchalenses, que acreditavam em
suas boas intenções ao fazer filantropia. Nesta altura
dos acontecimentos, Kalley, anteriormente denomina-
do de “o santo inglês” e de “o bom doutor inglês” era
agora conhecido como “o lobo da Escócia”.
Em dezembro de 1844, o denominado caso Kalley
chegou a ser discutido na Sessão da Câmara dos Depu-
tados, em Lisboa. Foram feitas diversas considerações
sobre as leis que regiam a prática de cultos religiosos
em território português e seus domínios. Foi rememo-
rada a chegada de Kalley à Ilha da Madeira e sua obra
filantrópica, bem como reconhecido o apreço que de-
dicou à população madeirense.
O governo português, tendo tomado conhecimento
das atividades ofensivas à religião do Estado, orientou
o bispo eleito a fim de que fizesse cessar as atividades
proselitistas de Kalley. Mas como tais atividades não
tivessem cessado, ao governo não restou alternativa,
a não ser decretar a prisão de Kalley, sem estabeleci-
mento de fiança. Na visão de alguns madeirenses, de-
pois de sua soltura, aumentou o atrevimento de Kalley,
provocado pela impunidade, continuando a explicar as

Robert Reid Kalley 31


Escrituras a seu modo e curando o corpo de alguns mi-
seráveis a troco de lhes estragar e roubar as almas.
Em sua carta ao governador interino da Madeira,
o bispo de Funchal (a esta altura não mais amigo de
Kalley) afirmava que ouvira a acusação de que Kalley
havia proferido um sermão e nele havia induzido por-
tugueses a seguirem sua seita, a blasfemarem contra
Jesus Cristo, alegando que ele não se fazia presente na
hóstia, condenava a Conceição Imaculada de Maria
Santíssima e pregava contra o culto devido às imagens.
Além disso, explicava a Bíblia a seu modo às pessoas
que o procuravam para tratamento de saúde. O bispo
tomou, então, a iniciativa de enviar pessoas de sua con-
fiança, “inteligentes”, para observar o que era dito; mas
neste caso, nada fora notado que fosse contra a religião
do Estado.
Logo a seguir, o bispo tomou a iniciativa de convo-
car Kalley a fim de mostrar-lhe que suas atividades es-
tavam erradas, tendo recebido a promessa de que não
mais pregaria, o que cumpriu por algum tempo. Porém,
logo a seguir, voltou a reunir seus seguidores em casa,
encontros nos quais participavam ingleses e uns pou-
cos portugueses. A estratégia de Kalley ao perceber o
aumento de participantes em suas atividades foi redo-
brar os seus esforços em estabelecer maior número de
escolas às suas custas. Ao recusar-se a atender os apelos
do bispo católico, que queria evitar o acirramento dos
ânimos, Kalley demonstrava estar imbuído da convic-

32 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


ção de que sua atuação na Madeira tinha uma função
profética, isto é, tirar os madeirenses das “trevas da
ignorância”, conduzindo-os à “verdadeira experiência
cristã”, o protestantismo.
Era recorrente a constatação de que as coisas não
iriam acabar bem. Ocorriam os ultrajes dirigidos à re-
ligião católica, que concitavam contra Kalley, já que na
visão dos católicos, ele havia ido à Madeira com o ob-
jetivo de arrancar do povo as crenças nos seus líderes
e levar dissensões ao seio das famílias. Kalley não se
dispunha a silenciar-se, uma vez que se achava imbuí-
do de funções designadas por Deus. Isso provocou rea-
ção pelas graves perturbações iniciadas por Kalley, que
obrigaram as autoridades portuguesas a intervirem a
fim de coibirem os desmandos proselitistas.
Para os protestantes, o catolicismo era uma forma
de idolatria e os governantes católicos eram conside-
rados tiranos, impunham a idolatria e os perseguiam.
Por isso, deviam ser combatidos, se necessário, até com
o uso de armas. Kalley era desvinculado de agências
missionárias ou denominações, era independente, ten-
do como objetivo fazer proselitismo e não estabelecer
mais uma instituição religiosa. Então, ao enfrentar as
hostilidades, não podia esperar apoio externo neste
caso.
Em 1844 um jovem, Nicolau Tolentino Vieira, se
convertera ao protestantismo. Tal conversão chegou
aos ouvidos do bispo. Tolentino Vieira foi convocado

Robert Reid Kalley 33


pelo juiz quatro dias após sua profissão de fé, tendo
sido preso e levado perante o tribunal. Era formalmen-
te acusado de abandonar a fé do Estado e de seus pais.
O jovem rebateu as acusações do juiz, afirmando que
nunca recebera a religião dos pais, embora participasse
de suas cerimônias, ritos e festas e que só encontrara
a verdadeira religião ao ler a Bíblia. Após uma série
de perguntas, o juiz liberou Tolentino Vieira, que, no
entanto, foi alvo de citação no domingo seguinte em
todas as igrejas católicas da Ilha da Madeira, como in-
curso na pena de excomunhão.
Além da excomunhão pura e simples, houve ou-
tras penalidades: ninguém deveria lhe fornecer água,
fogo e pão; se porventura alguém lhe devesse algo, não
deveria pagar, além de serem considerados imundos
membros excomungados e separados do seio da união
Igreja como rebeldes e contumazes. Todos quantos
descumprissem as ordens eclesiásticas seriam também
punidos, tanto os que lhe pagassem dívidas porventura
havidas, quanto os que lhe dessem água, fogo ou pão,
sendo passíveis de igual punição, isto é, a excomunhão
e as penalidades da lei.
Kalley viajou à Inglaterra entre junho e setembro de
1845. Ao retornar, sua situação piorou. Em sua estadia
na Inglaterra, encontrou-se com dirigentes das socie-
dades bíblicas e personagens interessadas na divulga-
ção do protestantismo em outras terras. Kalley se tor-
nou mais ousado em suas prédicas e atuações.

34 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Era voz corrente ente os madeirenses que os pró-
prios doentes que ele atendia na sua casa eram obriga-
dos a escutar as suas prédicas religiosas, embora mani-
festassem repugnância em fazê-lo. Eram gerais os cla-
mores contra Kalley, mas nem as advertências e ordens
emanadas das autoridades, nem as ameaças populares
diminuíam o fervor do médico escocês, que, com a casa
cercada pela polícia e ouvindo os insultos que lhe diri-
giam, continuava a propagação dos seus ideais religiosos.
Kalley, em sua tentativa de inserir o protestantismo
na Madeira, não limitava sua atuação junto às colônias
estrangeiras residentes na ilha, conforme prescrevia a
Constituição e era entendido pelas autoridades locais,
mas à população nativa, numa evidente invasão de es-
paço. Igreja e religião eram umbilicalmente unidas,
constituindo-se veículos inseparáveis de poder.
Apesar de todos os problemas, ocorreu em 1845 a
fundação da Igreja Presbiteriana do Funchal, que não
teve, num primeiro momento, existência legal. Esta é a
data reconhecida do nascimento do protestantismo em
Portugal, pela intervenção de Kalley que desenvolveu a
primeira e mais determinante ação para o nascimento
do movimento protestante em Portugal, com a funda-
ção, em maio de 1845, da Igreja Presbiteriana do Fun-
chal, primeira congregação protestante portuguesa.
Mas Kalley não foi pastor desta comunidade. Hou-
ve apoio da Igreja Escocesa de Funchal (frequentada
pelos escoceses e ingleses) e de um pastor que lá che-

Robert Reid Kalley 35


gara, Willian Hepburn Hewitson, em março de 1845.
Na casa pastoral da Igreja Escocesa, a Ceia do Senhor
foi celebrada pela primeira vez em português, segun-
do a liturgia presbiteriana. Pouco depois, em maio, foi
organizada, sob a liderança de Hewitson, a primeira
Igreja Presbiteriana portuguesa, com mais de sessenta
membros comungantes, sendo eleitos vários presbíte-
ros e diáconos. Kalley foi preso e Hewitson havia che-
gado à ilha para uma estadia de um ano (sem ter tido
qualquer contato anterior com Kalley), possibilitando
assim continuar o trabalho de Kalley onde este o havia
deixado.
O mais provável é que Kalley tenha dado apoio à
comunidade, mas sem vinculação formal com ela nem
com participação efetiva na organização da igreja, uma
vez que sempre insistia em manifestar sua independên-
cia e autonomia.

A Fuga de Kalley
Kalley morava numa quinta, num local denomina-
do Vale Formoso, onde realizava suas atividades reli-
giosas. Em 1846 as dificuldades aumentavam e Kalley
apelava ao cônsul britânico e também pedia proteção
à polícia. Durante um bom tempo, a casa vinha sendo
guardada pela polícia. Kalley continuava trabalhando
como médico, atendendo gratuitamente aos enfermos
e distribuindo medicamentos e esmolas aos pobres.
36 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima
Mas, em agosto de 1846, sua casa foi cercada por popu-
lares e a polícia não pôde contê-los.
A casa teve suas portas arrombadas, foi imediata-
mente invadida, tendo os invasores vasculhado todos
os recantos em busca de Kalley. Assaltaram a residên-
cia e a reviraram à procura do proprietário para linchá-
-lo. Mas Kalley não foi encontrado, tendo se refugiado
na casa de um compatriota. Ali o cônsul inglês o acon-
selhou a sair o mais rápido que pudesse da Madeira.
Desta residência refugiou-se em um barco no porto do
Funchal. Disfarçou-se em velha inglesa e para tal ves-
tiu-se de mulher, arrancou os dentes incisivos e meteu-
-se numa rede, escapando, assim, à fúria popular.
Kalley e Margareth deixaram, assim, a Ilha da Ma-
deira e a maioria dos habitantes que haviam aderido às
suas pregações foram compelidos à emigração, tendo
rumado para a Guiana Inglesa (Demerara), Trinidad e
Tobago, Estados Unidos (Illinois, Nova Iorque e Ha-
vaí) e Brasil, onde formaram diversas comunidades
protestantes, sem vinculação entre si, mas que ainda
hoje se reúnem.
Após a fuga de Kalley e o êxodo de muitos dos seus
seguidores, em virtude dos prejuízos sofridos — quei-
ma de sua casa, destruição da biblioteca, saque de sua
adega de vinhos — houve reclamação judicial. O pro-
cesso de indenização não foi pacífico. Não houve, em
princípio, interesse da Secretaria de Estado dos Negó-
cios Estrangeiros do Governo Britânico em resolver o

Robert Reid Kalley 37


caso. Kalley publicou, então, um livro em maio de 1847,
no qual contava o andamento do seu caso — Short Sta-
tement of Dr. Kalley`s Case: His Expulsion from Madeira
[Breve relato do caso do Dr. Kalley: Sua expulsão da
Madeira], sem versão em português. O Governo de
Portugal demorou sete anos para cumprir com a exi-
gência britânica, pagando-lhe, então, a indenização de
1.574 libras esterlinas.
A maioria dos autores que aborda a questão da saída
de madeirenses em grande número ao longo do sécu-
lo dezenove elenca como motivação maior, quase que
única, a questão religiosa. Não podemos nos furtar, po-
rém, de apontar também a grave crise econômica pela
qual passou a Ilha da Madeira, fenômeno que impulsio-
nou a saída em massa de madeirenses. Há uma tendên-
cia dos autores em supervalorizar a questão religiosa na
saída, esquecendo de citar também outras motivações
ao longo da história.
Quando Kalley chegou à Madeira, em 1838, esta já
se encontrava em crise, que só foi se agravando nas dé-
cadas seguintes. Assim, ao se virem acuados, sem pers-
pectivas de trabalho e sofrendo perseguições por terem
abandonado o catolicismo, os denominados kallistas
ou calvinistas da Madeira emigraram em grande nú-
mero. Tudo isto corresponde à realidade,
pois a primeira grande leva da emigração madei-
rense na centúria oitocentista teve como principal
motivo a questão religiosa em torno do Doutor

38 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Robert Reid Kalley (...). Todavia, as hostilidades,
originadas pelo clero tradicional do Funchal, le-
varam à sua saída forçada em 1846 acompanhado
de mais de dois mil madeirenses: primeiro dirigi-
ram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua
e St. Kitts) e daqui, alguns, passaram a Illinois na
América do Norte. 3
Efetivamente, houve dois grandes períodos de sa-
ída em massa de madeirenses. Entre 1844 e 1846, o
motivo principal foi o proselitismo protagonizado por
Kalley. Muitos madeirenses que haviam se convertido
ao protestantismo sofreram perseguição e migraram.
Resultado dessa perseguição foi a fuga de cerca de três
mil madeirenses, que emigraram para Trindade, ou-
tros para Tobago, St. Kitts, Arouca e Demerara. Entre
1848-49, outro grupo foi embora, desta feita para os
Estados Unidos, principalmente Jacksonville, Sprin-
gfield e New York.
Houve uma segunda grande saída, mais impor-
tante que a primeira, que atingiu seu ápice a partir de
1847, tendo como principal causa a crise econômica.
A principal atividade econômica da ilha, a viticultura,
foi vitimada por doenças que atacaram a cultura da
vinha e destruíram a única esperança econômica dos
madeirenses, obrigando-os a sair. Segundo registros
de 1858, os acontecimentos religiosos pelo qual pas-
sou a Madeira deram lugar à espantosa emigração do
3. Vieira, 1993: 110.

Robert Reid Kalley 39


ano de 1846, e estes seguidos da fome de 1847, torna-
ram a emigração assustadora, ainda com a depreciação
do preço do vinho, em seguida a completa falta dele.
Tudo isto fez que a emigração continuasse com mais
força até 1854.
A emigração madeirense, na segunda metade do
século dezenove, não pode ser dissociada desta con-
juntura, crise econômica e perseguição religiosa. A
conjuntura econômica, sem dúvida, foi também um
forte elemento provocador da emigração, uma vez que
diminuiu assustadoramente o número de consumido-
res dos vinhos madeirenses, a partir da década de 1940.
Problemas econômicos causados pela crise da viticul-
tura propiciaram essa migração, mas os autores que es-
tudam o período supervalorizam as questões religiosas
na fuga, deixando de lado as análises econômicas e so-
ciais que perpassam o período.
A Ilha da Madeira foi palco de divergências religio-
sas, que provocaram a saída de milhares de habitantes
locais à procura de outros lugares em que pudessem
dar sequência as suas vidas. Mas não foi a perseguição
religiosa a única motivação para essa migração. Houve
uma sobreposição de motivos, que atingiram grave-
mente a estrutura socioeconômica madeirense, levan-
do a ilha e sua população a um total estado de prostra-
ção. Somado a isso, a intolerância religiosa foi mais um
dos motivos que levavam os madeirenses a procurarem
outros locais para viver. A intolerância foi motivada

40 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


pela preocupação em resguardar o espaço hegemônico
católico, que perdurara há séculos.
Por outro lado, um médico e missionário protes-
tante, numa situação financeira privilegiada, usando
de sua profissão, aproxima-se dos madeirenses, espe-
cialmente dos mais pobres e carentes, atende-os em
suas enfermidades, não cobrando pelo atendimento,
fornecendo-lhes medicamentos, criando até mesmo
um pequeno hospital, e conseguindo fazer prosélitos.
Ao atender às pessoas, estas se viam quase que obriga-
das por gratidão a dar ouvidos às prédicas de Kalley,
uma vez que estavam fragilizadas e dependentes de seu
atendimento. Além disso, instava-os a aprenderem a
ler, usando a Bíblia como livro base em sua didática,
lida por Kalley em suas consultas, em reuniões domés-
ticas e agora nas escolas. Verteu para o português hinos
entoados em seus encontros, com coros repetitivos,
que fixavam rapidamente na mente de seus ouvintes.
Ao ser contestado pelas autoridades, procurou usar
argumentos jurídicos, a fim de garantir o pequeno es-
paço que havia conquistado no espectro religioso ma-
deirense. Foi instado a fechar suas escolas, proibido de
exercer concomitantemente a medicina e a farmácia;
prometeu que não mais faria prosélitos, não cumprin-
do a promessa e continuando a fazer tudo o que fazia
antes porque partia da premissa de que antes importa-
va obedecer a Deus que aos homens. Tais atitudes leva-
ram ao acirramento de ânimos que culminou com sua

Robert Reid Kalley 41


fuga, travestido para não ser assassinado. Seus seguido-
res foram igualmente perseguidos e milhares tomaram
outro rumo, a fim de não serem mortos.
Kalley usou de todas as formas os acordos existen-
tes entre a Grã-Bretanha e Portugal a fim de, pelos pri-
vilégios que os britânicos gozavam em Portugal, inserir
o protestantismo naquela ilha. Criou muitos proble-
mas; foi alvo de discussões, artigos na imprensa, e seu
caso chegou a ser discutido no parlamento português.
Certamente por dispor de muitos recursos financeiros,
pôde fazer sua defesa, viajar e publicar os argumentos
utilizados. Se não fosse pela sua privilegiada situação
financeira, sem vinculação denominacional ou institu-
cional de qualquer espécie, não teria conseguido atin-
gir tantas pessoas na Ilha da Madeira ou causar tanta
polêmica e celeumas.
Apesar da migração em massa ocorrida entre 1843
e 1846, é surpreendente que não tenha havido descon-
tinuidade nas atividades protestantes na Ilha da Ma-
deira. Em 1853, uma nova leva de emigrantes partiu.
A partir de 1875, já com mais tolerância e com apoio
da Igreja da Escócia, foi possível a formação de várias
igrejas presbiterianas na ilha, que continuaram a existir
ao longo do século vinte. Várias igrejas norte-america-
nas apoiaram os madeirenses, fixados primeiramente
nas Antilhas e depois nos Estados Unidos. Outra leva
partira em 1853, indo diretamente para os Estados
Unidos, estabelecendo-se nas cidades de Springfield e

42 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Jacksonville, no Estado de Illinois. As igrejas que for-
maram filiaram-se à Igreja Presbiteriana dos Estados
Unidos da América.
Mais tarde, alguns madeirenses puderam participar
do início dos trabalhos congregacional e presbiteriano
no Brasil, a partir de 1855 e 1859, respectivamente.

Robert Reid Kalley 43


Capítulo 3

Os antecedentes da
ida para o Brasil e
sua chegada

A pós a fuga da Madeira, Kalley viajou por diversos


lugares, especialmente no Oriente Médio, so-
bretudo Síria e Palestina, entre 1850-1852. Saindo de
Funchal, Kalley e Margareth desembarcaram em São
Vicente, uma das ilhas das Antilhas, onde ficaram al-
guns refugiados madeirenses; o casal seguiu viagem a
Londres. Até o outono de 1847, residiram em Hastinge
e Saint Leonard e depois partiram para a Ilha de Malta,
lá permanecendo por dois anos, período em que Kal-
ley atuou como médico, evangelista e professor. Com
o agravamento da saúde de Margareth, já em 1850, o
casal rumou então para Beirute, à procura de melhores
ares para Margareth. Dois anos depois, Margareth fale-
ceu, tendo sido sepultada lá mesmo.
No Oriente Médio, passou dois anos trabalhando
entre os judeus, tendo viajado extensivamente na Pa-
lestina, tornando-se um bom conhecedor da história
extrabíblica de lá. Ajudou por cerca de seis semanas
uma comunidade protestante em Safed, uma pequena
congregação, metade da qual era constituída de judeus
convertidos e a metade restante de antigos muçulma-
nos e nestorianos.
Nesta mesma época, já viúvo, Kalley conheceu Sa-
rah Poulton Wilson, que estava em Beirute acompa-
nhada do pai e do irmão mais moço, doente dos pul-
mões. O rapaz chegou a ser consultado por Kalley, que
não deu esperança de restabelecimento de sua saúde.
O jovem faleceu também no Líbano, onde foi sepulta-
do. Kalley retornou à Inglaterra na mesma embarcação
que a família Wilson. Em 14 de dezembro de 1852,
casou-se com Sarah Poulton Wilson (oriunda de uma
família protestante congregacional), que passou a se
chamar Sarah Poulton Kalley. No ano seguinte o casal
viajou para Trindade, a fim de visitar os madeirenses e
depois seguiu para Illinois, nos Estados Unidos, onde
havia também outro grupo de madeirenses.
Kalley adquiriu uma casa em Springfield, e lá resi-
diu até 1854, tendo se esforçado em trazer aos Estados
Unidos muitos madeirenses, entre eles Francisco de
Souza Jardim, que mais tarde seria um importante co-

46 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


laborador também no Brasil. Já em 1855 o casal viajou
a Port of Spain, com o intuito de visitar os madeirenses
que haviam fugido para a Ilha de Trindade (atual Tri-
nidad e Tobago), de onde rumou aos Estados Unidos,
para também visitar madeirenses radicados em Illinois.
Ao longo do período em que permaneceram nos Esta-
dos Unidos, Kalley e Sarah mantiveram contato com
diversas igrejas e sociedades missionárias em Boston,
Nova Iorque e Washington.
Nas sociedades ocidentais o que vigorou foi um
clima profundamente cristão, sendo a vida impregna-
da de valores cristãos, o que trouxe em seu bojo o fato
que, independentemente da crença individual, não ha-
via escolha na ordem externa. Assim, a Igreja entrou no
continente americano sob a proteção e o patrocínio das
coroas ibéricas, como instrumentos da ordem política
a ser instituída.
Essa era a grande dificuldade enfrentada por Kalley
em seus contatos com os católicos. Ele tentava quebrar
a hegemonia católica em vigor há séculos. Por outro
lado, achava os seguidores do catolicismo pagãos que
precisavam abandonar suas práticas, a fim de que pu-
dessem experimentar a verdadeira face do cristianis-
mo, o protestantismo. Confrontou-se na Ilha da Ma-
deira, sem contar com apoio institucional de sua deno-
minação de origem, a Presbiteriana da Escócia, já que
sempre negara envolvimento com instituições missio-
nárias ou denominações, embora formalmente nunca

Robert Reid Kalley 47


tenha deixado de pertencer à sua igreja de origem na
Escócia.
Negava a pertença, mas utilizava as mesmas práticas
das juntas missionárias ou denominacionalistas na Ma-
deira e posteriormente no Brasil, como será visto mais
adiante. Era um missionário independente, já que se
manteve com seus próprios recursos financeiros em to-
dos os lugares em que atuou. Kalley, com sua propalada
autonomia e independência, utilizou como estratégias
missionárias o culto doméstico, a prática de medicina
social e a alfabetização em escolas de primeiras letras.
Seu culto era informal, sem grandes liturgias, com uso
de cânticos, que ele traduziu ou adaptou ao português.
Sua práxis pastoral era exercida dessa maneira.

A chegada ao Brasil: do Pharoux


ao Gerheim
Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley saíram
da cidade de Southampton, Inglaterra, em abril de
1855, e chegaram na Baía de Guanabara no dia 10 do
mês seguinte, trazidos pelo navio a vapor Great Wes-
tern, o mais rápido a cruzar o Atlântico na época. Ape-
sar desta rapidez, foram 31 dias de viagem por terem
feito paradas em Lisboa e na Ilha da Madeira. O casal
viveu 21 anos no Brasil, de 1855 a 1876.
Hospedaram-se no Hotel Pharoux, depois de um
agitado desembarque devido à preocupação com as

48 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


bagagens, aos assédios dos ambulantes e dos agentes
de hotéis. Alugaram um carro e percorreram a cidade
à procura de uma pousada decente. O vislumbre inicial
impactou o olhar do casal diante de um porto precário
e de uma cidade confusa, insalubre e de preponderân-
cia étnica mestiça e negra. O Pharoux não era o local
ideal para ficar, mas ali permaneceram 11 dias.
Os Kalley ficaram desiludidos diante do cenário de
uma cidade com problemas de infra-estrutura como
iluminação, esgoto, pavimentação e limpeza, contras-
tante com a beleza natural da paisagem. No entanto,
nesta segunda metade do século dezenove, o Rio de
Janeiro passaria por transformações que contribuíram
para o propósito missionário do casal e o surgimento
de um núcleo de fiéis em Petrópolis e uma pequena
igreja no bairro da Saúde no Rio.
Desde 1850, o Brasil havia tomado medidas incenti-
vadoras de imigração, visando não somente a ocupação
territorial, mas o suprimento de mão-de-obra qualificada
nos centros urbanos. Isto porque o tráfico de escravos ha-
via sido proibido e a disponibilidade interna desta mão-
-de-obra compulsória já não mais supria a expansão do
mercado interno e da produção. A transição para a utili-
zação da mão-de-obra assalariada possibilitaria oportuni-
dades de empregos e variados tipos de pequenos serviços
num centro que se expandia como a capital do Império.
Robert Kalley temia que os boatos de sua persegui-
ção na Ilha da Madeira prejudicassem as suas incursões

Robert Reid Kalley 49


como missionário no Brasil. Seus primeiros contatos
sociais mostraram que não seria possível manter o
anonimato. Hospedaram-se, então, no Hotel dos Es-
trangeiros no largo do Catete, onde ficaram dois me-
ses procurando uma casa na cidade mas sem sucesso.
Seguindo a tendência das elites da época, procuraram
a região serrana a fim de se refugiarem das frequentes
epidemias que assolavam o município da corte.
Subiram, então, para Petrópolis onde encontraram
um lugar mais sadio e próximo a colonos protestantes
alemães e suíços, além de negros e católicos. Neste con-
texto multirracial e religioso iniciou seus esforços mis-
sionários efetivos, ao alugar uma casa — Gerheim ou lar
muito amado — no distrito petropolitano de Schwei-
zerthal.
Somente em meados do mês de outubro ocupariam
a propriedade. As duas criadas alemãs, um jardineiro
português e um velho soldado que veio a falecer de có-
lera formaram o primeiro núcleo a participar dos cultos
domésticos diários dos Kalley.

A vida em Petrópolis
As ações missionárias dos Kalley trouxeram os pri-
meiros resultados. Logo o doutor percebeu que neces-
sitaria de ajuda nesta tarefa. Em Petrópolis e na cidade
do Rio viviam todo tipo de gente: trabalhadores, de-
sempregados, negros escravos, negros forros, negros

50 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


de ganho, mulheres, crianças, frades e padres, freiras e
religiosas, mascates, vendedores, desocupados e mar-
ginais, além de estrangeiros que cada vez mais afluíam
à procura de oportunidades de vida, fazer fortuna e re-
tornar para suas terras.
Robert Kalley escreveu cartas pastorais para os ma-
deirenses em Illinois e outras particulares para seus
amigos portugueses nos Estados Unidos. Descreveu o
Brasil e o Rio de Janeiro, desafiando-os a o auxiliarem
na tarefa religiosa de expansão da nova fé. No domin-
go de 19 de agosto de 1855, Sarah Kalley reuniu cinco
filhos de uma família inglesa, dando início à escola do-
minical para ensino das Escrituras. Por sua vez, Robert
Kalley reunia-se com homens de cor conversando sobre
as Escrituras.
Sarah trazia na bagagem a experiência e a tradição
das escolas dominicais iniciadas na Inglaterra nas dé-
cadas finais do século dezoito. Estas eram voltadas
para as camadas baixas da sociedade, sobretudo crian-
ças desassistidas pela violência com que a Revolução
Industrial tratou trabalhadores pobres e operários.
Conciliavam o ensino religioso com noções de higie-
ne, moral, civismo e outros conteúdos escolares. Sarah
também trazia a vivência do modelo congregacional de
igreja, de autonomia e independência da comunidade
local.
Estas influências foram decisivas para o modelo im-
plantado e construído de igreja no Brasil. Após a expe-

Robert Reid Kalley 51


riência vivida na Ilha da Madeira e as decepções para
com as estruturas institucionais eclesiásticas, os Kalley
criaram uma experiência eclesiástica distante de estru-
turas e controles externos.
O fato de ser médico, inglês, abastado, capaz de
fazer amizades facilmente e estabelecer relações di-
plomáticas com as autoridades, fez com que Kalley
constituísse uma rede de relacionamentos que servi-
riam para a expansão da fé protestante. Ele adquiriu
a visão e a prática da diplomacia nas muitas viagens
que fizera pelo mundo, como para o Egito e Palestina,
e pela experiência da perseguição na Ilha da Madei-
ra. O Kalley do Brasil foi um homem mais cauteloso
e estratégico, buscando respaldar-se juridicamente
ante os enfrentamentos inevitáveis que aconteceram,
por conta do proselitismo religioso num país católico
romano.
Um império brasileiro oficialmente católico não ad-
mitia a existência de outra religião concorrente. Desde
os tempos de colônia, o protestantismo era conside-
rado heresia e uma ameaça à integridade do império
lusitano d’além-mar. As visitações do Santo Ofício e a
Inquisição chegaram a detectar e punir incidências de
heresias calvinistas e luteranas.
Este quadro mudou a partir do Tratado de Comér-
cio firmado entre a coroa portuguesa e a Inglaterra em
1810 que garantia a liberdade de culto para os súditos
britânicos. A independência em 1822 trouxe a autono-

52 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


mia política e a constituição de 1824 afirmou a oficia-
lidade da Igreja Católica, mas também tolerância para
com outros cultos no âmbito privado, isto é, nas casas
dos estrangeiros.
O Imperador Pedro II, embora sustentado politi-
camente pela ordem escravocrata e pela classe latifun-
diária, cultivava um espírito esclarecido e tendente ao
liberalismo de seu tempo, tolerante e acolhedor das
novas ideias e tecnologias. Ele chegou a visitar Kalley
em Petrópolis quando este se achava acamado e não
pôde recebê-lo. Em outras ocasiões, trocou com Ka-
ley longas conversas sobre o oriente e as suas viagens.
Este contato foi de fundamental importância para o
momento de perseguição que as autoridades civis e
eclesiásticas moveram contra Kalley e os protestantes
primitivos em Petrópolis.
Entretanto, a Igreja Católica Romana permanecia
como religião oficial do império. Como consequência
disto, o registro de nascimento, a cerimônia de casa-
mento e enterro em cemitérios eram prerrogativas ex-
clusivas da Igreja, subsidiada e reconhecida pelo esta-
do, ainda sob o prolongamento do regime do padroado
régio no período imperial.
Apesar da crise da manutenção desta aliança, a
Igreja Católica Romana mantinha sua hegemonia
religiosa e política. No entanto, os ventos liberais, o
espírito anticlerical, a secularização, a insurgência de
novos cultos, de novos ideários e movimentos, como

Robert Reid Kalley 53


o positivismo e a maçonaria, minaram a força desta
instituição religiosa, até o estabelecimento da laicida-
de do poder público e a separação do Estado a partir
de 1889/1891.
Neste cenário, Robert Kalley surgiu não somente
como um religioso autônomo, mas também como um
médico profissional servindo gratuitamente os des-
validos. Este havia sido o modo pelo qual conquistou
milhares de adeptos crentes na Ilha da Madeira anos
atrás. No Brasil, embora repetisse esta prática, não dei-
xou de estrategicamente criar vínculos de confiança
com as elites, projetando-se como profissional, homem
culto, viajante e conhecedor do mundo.
O jornal Correio Mercantil de 20 de novembro de
1855 noticiou que “o Sr. Dr. Robert Kalley, sacerdote
protestante inglês, que se acha entre nós de viagem,
ofereceu à comissão sanitária do município da Estre-
la os seus serviços a favor da pobreza”. Para o doutor,
aquelas eram oportunidades de transmissão da nova fé,
o que de fato se deu no surto de cólera que assolou a
cidade de Petrópolis. Administrou a vacinação, prática
ainda incomum no Brasil e que se tornaria política pú-
blica somente no início do século vinte.
Em dezembro de 1855 chegava ao Rio de Janeiro o
Sr. William D. Pitt, que tinha sido aluno da Sra. Kalley
na Inglaterra e migrara para os Estados Unidos, onde
aprendeu o ofício de carpinteiro. Foi o primeiro a acei-
tar o convite de Kalley, para auxiliá-lo no labor missio-

54 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


nário. Apesar de ser acometido de cólera ao chegar a
Petrópolis, conseguiu emprego no Arsenal de Marinha
depois do restabelecimento. Pitt se dedicou a visitar os
doentes, tanto ingleses como de outras nacionalidades.
Mais tarde transferiu-se para a Igreja Presbiteriana,
tendo-se tornado comerciante adquirindo seu próprio
negócio.
Findou-se o intenso ano de 1855. As chegadas
de Pitt e de mais três madeirenses com suas famílias
inaugurariam uma nova etapa da vida missionária dos
Kalley no Brasil, com o surgimento de uma igreja com
brasileiros conversos e estrangeiros.

Os mascates da fé
No ano seguinte Kalley estrategicamente organi-
zou, estruturou e supervisionou as atividades missio-
nárias, auxiliado pelos colportores madeirenses Fran-
cisco da Gama, Francisco de Souza Jardim e Manuel
Fernandes. Sediado em Petrópolis, o médico os ar-
regimentou a fim de o auxiliarem no esforço de ex-
pansão da fé protestante. Vindos dos Estados Unidos
onde viviam refugiados da perseguição madeirense,
assumiram funções de distribuidores de Bíblias e de
literatura religiosa, retirando desta atividade o seu
sustento.
Eram colportores, ou seja, vendedores ambulantes
de livros religiosos de conteúdo protestante. Perambu-

Robert Reid Kalley 55


lavam pelas ruas em contato direto com a população,
oferecendo literatura e transmitindo o diferencial da
crença evangélica. Eles traziam na bagagem a experi-
ência de sucesso, resistência e perseguição sofridos na
Ilha da Madeira, de onde fugiram de uma ameaça de
linchamento público.
Eram verdadeiros mascates da fé, associando a pre-
gação religiosa à atividade comercial. Pois encontra-
ram condições propícias para exercerem seus dotes
profissionais, dada a carência de mão-de-obra especia-
lizada e, também, de um mercado em expansão para es-
tas tarefas profissionais. Além de missionários urbanos
e mascates, foram os iniciadores da nova igreja, seus
oficiais eclesiásticos e pregadores leigos.
Estes líderes condicionaram o trabalho secular à
vocação religiosa. Introduziram os valores e os com-
portamentos da fé reformada de recorte puritano e
pietista. Comunicavam a mensagem religiosa nas
ruas do Rio de Janeiro em contraponto às doutrinas
católicas, gerando inúmeros conf litos e intolerân-
cias. Eles enfatizavam a guarda do domingo, a re-
núncia aos santos católicos, o abandono das imora-
lidades e a prática da confissão da fé em Jesus Cristo
como salvador pessoal como elementos integrantes
fundamentais da vida religiosa. Estes elementos pas-
saram a fazer parte do ethos evangélico comum aos
diferentes ramos denominacionais do protestantis-
mo no Brasil.

56 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Em agosto de 1856 foi alugada uma casa na Rua da
Boa Vista, 45, atualmente Conselheiro Zacarias, no
Morro da Saúde, município da Corte. Foi um período
marcado pelas primeiras perseguições e pela inserção
da pregação protestante no cotidiano da cidade do Rio
de Janeiro. Estes primeiros anos foram difíceis e áridos
para a nascente comunidade. Os poucos convertidos
eram cuidados e protegidos com zelo e a pregação en-
contrava resistências por parte do povo, da Igreja Cató-
lica e de parte das autoridades.
O contato direto, de caráter proselitista e polêmico,
produziu bem poucos resultados, embora este fosse repu-
tado como método principal de expansão da fé. As opor-
tunidades de contato eram aproveitadas como visitas aos
enfermos. O primeiro batismo de um brasileiro ocorreu
em novembro de 1857, o Sr. José Pereira Louro, o segundo
jardineiro de Kalley no Gerheim, em Petrópolis.
As atividades religiosas e de vendedores foram be-
neficiadas pela emergência de um mercado favorável à
circulação de Bíblias e de outras literaturas religiosas.
Crescia o interesse das pessoas, estimuladas pela pro-
paganda e pela ascensão de uma camada de leitores
urbanos. Além disso, havia a influência do pensamen-
to jansenista em instituições educacionais que enfa-
tizavam a necessidade de leitura bíblica como parte
da espiritualidade cristã. O Colégio Pedro II incluíra
no seu programa o estudo das Sagradas Escrituras.
A existência de um mercado para a venda de Bíblias,

Robert Reid Kalley 57


as oportunidades de novas profissões e a vocação re-
ligiosa e missionária, estavam por trás da vinda dos
colportores.

Vale a pena conhecê-los mais de


perto
Francisco da Gama era comerciante de origem.
Dissera a Kalley não possuir ofício e que a cidade não
era um bom lugar para negócio, o que não estava tão
certo nesta sua opinião. O Doutor, então, perguntou-
-lhe se queria vender livros e falar das Boas Notícias da
salvação de graça que há no Evangelho, o que foi aceito.
Um senhor em Londres, amigo de Kalley e parente de
Sarah Kalley, sustentou Gama por muitos anos. Em
sua residência as primeiras reuniões foram realizadas
no estilo de culto doméstico para vizinhos e amigos de
trabalho.
Ajudou a fundar a Igreja Evangélica Fluminense e
a Igreja de Niterói, tornando-se presbítero e exercen-
do notável liderança na comunidade. Sua posição mais
tarde foi a de interlocutor de Kalley quando de suas fre-
quentes ausências. Nos primeiros tempos “caminhava
pelas ruas, oferecendo, de casa em casa, as Escrituras
Sagradas e folhetos e falando a várias pessoas do amor
de Jesus”. Em 17 de março de 1858, Gama escreveu
para Kalley relatando as dificuldades encontradas na
dupla tarefa de evangelizar e vender livros.

58 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Às vezes passava dias sem nada vender, mas com-
pensava suas perdas com as oportunidades de prose-
litismo. Percorria lugares como Botafogo, Largo do
Marchado, Rio Comprido, São Cristóvão, Matacava-
lo, aproveitando-se de intervalos de trabalhadores nos
seus serviços diários. As dificuldades e as resistências
vinham de diferentes formas, como a desconfiança da
qualidade e do conteúdo, a falta de leitura e de dinhei-
ro e a zombaria de alguns que não queriam tanta san-
tidade.
Mas, pelo menos dois fatores facilitavam a aceita-
ção destas publicações: o preço bem barato e as Bí-
blias que eram “traduzidas pelo Padre Antonio Pereira
segundo a vulgata latina”. O fato de serem traduzidas
por um padre era usado como meio de transpor pre-
conceitos ou barreiras diante da acusação de ser uma
bíblia protestante falsa. As Bíblias e os livros vendi-
dos logo entraram com certa abundância no mercado,
sendo estas mercadorias vendidas também em lojas e
livrarias.
A atividade destes mascates da fé causou reação de
católicos que, anonimamente, reagiram por meio dos
jornais da época. Uma delas foi a carta publicada no
Correio Mercantil de 16 de dezembro de 1857, “para ser
lido [a] pelo Sr. Bispo”, a qual denunciava um grande
número de Bíblias impressas em Londres, baratas e tra-
duzidas pelo padre Antonio Pereira. “O público incauto
e ignorante, bem como S. Ex. Reverendíssima, não de-

Robert Reid Kalley 59


veriam ser iludidos com a falsa bíblia vendida por mas-
cates de livros”, continuava.
Gama faleceu em 18 de março de 1882, com 56 anos
de idade. Antes de sua morte, trabalhou também como
zelador da Casa de Oração. Foi, efetivamente, um co-
-pastor de Kalley, chegando mesmo a administrar os
sacramentos quando de sua ausência, juntamente com
Francisco de Souza Jardim.
Outro madeirense auxiliar de Kalley foi Francis-
co de Souza Jardim. Quando Kalley fugiu da Ilha da
Madeira disfarçado de anciã enferma numa rede, foi
Jardim um dos carregadores, relutante e desconfiado.
Ao chegar ao Brasil, foi trabalhar como limador no
mesmo Arsenal de Marinha em que trabalhava Pitt
e ali esteve por cerca de cinco anos. Aproveitava os
intervalos do almoço para conversar e convidar inte-
ressados para assistirem ao culto doméstico, na Rua
Boa Vista, onde morou com o amigo Gama por cerca
de seis meses.
Jardim foi escolhido presbítero da Igreja em 01 de
janeiro de 1862 vindo a falecer em 16 de janeiro de
1896 com 79 anos. Depois de despedido do Arsenal de
Marinha, o Dr. Kalley o convidou a evangelizar pelas
ruas e pelas casas, oferecendo Bíblias e tratados evangé-
licos. Casou-se em segundas núpcias possibilitado pelo
Decreto 3069 de 17 de abril de 1863, que regulava os
casamentos acatólicos, o primeiro a ser celebrado por
Kalley no Brasil.
60 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima
Manuel Fernandes era lavrador de origem e acabou
estabelecendo-se nesta atividade em Petrópolis. Ini-
cialmente percorria “todas as estradas da colônia, pro-
curando ocasião de oferecer o Evangelho e de encon-
trar quem quisesse possuir o Livro de Deus”. Depois
de uma experiência mal sucedida na venda de livros,
foi preso pelas autoridades após denúncia de um indiví-
duo, pois não tinha licença para comerciá-los. Sua ina-
bilidade, talvez, para o comércio, trouxe dificuldades
financeiras de sustento para a família. Kalley comprou
um terreno com casa para Fernandes, que passou a ti-
rar da terra seu sustento e, por isso, deixou de sair para
vender livros todos os dias. No entanto, continuou sua
atividade missionária como evangelista pessoal.
Kalley mantinha com os quatro auxiliares uma re-
lação episcopal e gerencial. Os envolvimentos com os
negócios eclesiásticos eram paralelos aos negócios co-
merciais. Em bilhete escrito em 28 de outubro de 1857
a Francisco da Gama, Kalley disse: “Espero que nesses
dias havemos de achar tempo de arranjar as nossas con-
tas, e de falar em nossos negócios e do Senhor”. Pois
os colportores de Kalley tinham a obrigação de fazer
um diário das atividades comerciais e religiosas com
detalhes, reunidas num relatório no final de semana e
apresentado a Kalley na segunda pela manhã.
Supervisionava a ação dos quatro obreiros leigos
arrojados, tanto no bairro da Saúde como em Petró-
polis. Em certa medida, até limitava suas iniciativas

Robert Reid Kalley 61


missionárias, provavelmente por causa da experiên-
cia na Madeira que lhe ensinara estratégia e cautela.
“Não me parece que seria prudente ir falar aos doen-
tes nos hospitais, por hora”, disse, escrevendo a Fran-
cisco Jardim.
O esforço missionário destes leigos se concentrava
em visitas às casas do bairro da Saúde e dos bairros vi-
zinhos, estabelecimentos comerciais, locais de traba-
lho e repartições, o que em si define um público alvo:
famílias pobres e médias, a classe média mercantil e
burocratas. No entanto, a massa da população de ne-
gros escravos e livres, brancos desempregados, vadios
e capoeiras, era aparentemente excluída, conquanto
não teriam condições de comprar os livros, ainda mais
lê-los.
Foram estes obreiros leigos que efetivamente abri-
ram e forçaram as oportunidades de contato, enfren-
tando situações de conflito e perseguições. O trabalho
era uma forma de identificação com aquele contexto de
profissionais e operários, regularmente atingidos com
a pregação protestante. Além de persuadir os primei-
ros convertidos, tornaram-se a primeira liderança leiga
da Igreja nascente. Estabeleceram um modelo de vida
religiosa cristã a partir da realidade que encontraram
em meio ao contexto da cidade. Puderam traduzir a fé
protestante às situações concretas dos evangelizados,
talvez numa outra linguagem, com outro discurso, dis-
tante do discurso oficial.

62 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Ao mesmo tempo, os colportores tiveram uma for-
te ação missionária no bairro da Saúde, no Município
Neutro. Estes foram, efetivamente, os que inseriram a
fé protestante no contexto urbano nascente do Rio de
Janeiro. Sua importância equivale e até ultrapassa em
certos aspectos à figura de Kalley.

Robert Reid Kalley 63


Capítulo 4

O Surgimento da
Igreja Evangélica
fluminense

O cotidiano de Kalley em 1858 se resumiria a in-


cursões esporádicas junto aos liderados no bairro
da Saúde, quando ali realizava cultos públicos e minis-
trava a ceia eucarística aos fiéis. Em Petrópolis, atendia
aos enfermos, na maioria pobres e escravos, além de
pessoas da elite e da corte. Mantinha relações amisto-
sas com os membros do Corpo Diplomático britânico
e com as autoridades brasileiras.
Preservava contatos pastorais com os refugiados da
Ilha da Madeira, seu velho rebanho, que moravam em
Illinois e na Ilha da Trindade. Passava o tempo escre-
vendo para jornais a partir de uma postura polêmica
e racionalista, apresentando a fé protestante de forma
elaborada e contundente.
Entre os anos de 1858 e 1864 ocorreu um período
de clara expansão não somente numérica, mas de pre-
sença na sociedade como um todo. Kalley, morando em
Petrópolis perto da corte e da elite do Império, investiu
seus dotes pessoais na assistência médica aos necessita-
dos e a abastados, escreveu em jornais, polemizou com
a Igreja Católica, conquistou vitórias jurídicas relativas
a questões como o casamento e o enterro de cristãos
não-católicos. Portou-se como um interlocutor da co-
munidade ante a sociedade, aparou seus conflitos jurí-
dicos e políticos; enfim, tutelou a Igreja a partir de sua
influência pessoal.
O crescimento numérico trouxe novas preocupa-
ções e perspectivas, principalmente sociais, na medi-
da em que a conversão à fé protestante implicava em
perdas e conflitos. Duas senhoras da corte foram bati-
zadas no ano de 1859 em Petrópolis, provocando-lhes
perseguições. Kalley as batizou num momento do cul-
to doméstico, de forma privada e discreta. Mesmo as-
sim, a liderança católica e as autoridades reagiram em
oposição.
Neste mesmo ano, Kalley foi proibido de exercer a
medicina no Brasil, quando um subdelegado ignorou
seus diplomas e os serviços médicos já prestados. Sem
um enfrentamento direto, o doutor requereu a revali-
dação do seu diploma na Escola de Medicina do Rio

66 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


de Janeiro e habilitou-se ao exercício da medicina com
uma defesa de tese no dia 29 de agosto.
Outra investida contra as atividades de Kalley
aconteceu por iniciativa do Núncio Apostólico e do
presidente da Província de Petrópolis, que entraram
com uma representação junto à Legação Britânica so-
licitando a sua retirada da cidade ou que parasse com
a pregação do protestantismo. O texto ainda referia-se
ao episódio da expulsão de Kalley na Ilha da Madeira.
Mas a população apoiou Kalley por meio de um abai-
xo-assinado.
A estratégia de Kalley com relação a esta interven-
ção se deu por meio de uma consulta jurídica de onze
questões submetidas aos renomados juristas Joaquim
Nabuco, Urbano S. Pessoa de Mello e Caetano Alber-
to Soares. Seus pareceres foram favoráveis aos direitos
dos acatólicos, no tocante à liberdade de culto. Defen-
deram uma concepção ampliada da tolerância religiosa
presente na Constituição, ao contrário da interpreta-
ção dos acusadores.
A resposta foi apresentada à Legação Britânica. De-
fendia a não-vinculação da propaganda protestante a
nenhuma igreja ou organização, somente por uma con-
vicção pessoal e prática privada doméstica. O grupo
reunido em sua casa era majoritariamente composto
de estrangeiros, sendo que as duas brasileiras já ha-
viam renunciado às ideias católico-romanas antes de
conhecerem Kalley. Procurou, portanto, provar que a

Robert Reid Kalley 67


liberdade por ele exercida estava dentro das leis e ame-
açou publicar fora do país o cerceamento da liberdade
de culto. Em 3 de agosto de 1859 o governo comunicou
a Kalley que não procederia contra ele conquanto per-
manecesse dentro dos limites por ele informados.
O ano de 1859 ainda reservaria outra crise de natu-
reza diferente. Em 12 de agosto chegou ao Rio de Ja-
neiro o jovem missionário presbiteriano Ashbel Green
Simonton. Bem recebido por Kalley inicialmente, o re-
presentante de uma missão norte-americana discordou
com o modelo e a estratégia do médico em divulgar a
fé protestante no Brasil de forma criteriosa e secreta.
Preferia os contatos abertos com a colônia americana a
fim de iniciar uma igreja. Kalley divulgou, então, uma
carta anônima criticando a postura de Simonton que o
confrontaria pessoalmente.
Apesar de posterior reconciliação, a ruptura acon-
teceu já que optaram por percursos distintos quanto à
propagação religiosa evangélica. Kalley fora motivado
pelo rigor quanto ao contexto de perseguição e hostili-
dade ante a pregação protestante. Também pela insa-
tisfação de ver outro agente religioso em disputa pelo
espaço religioso no mesmo lugar de atuação. Outros
desacordos aconteceriam posteriormente com os mis-
sionários presbiterianos, em torno de questões minis-
teriais e do uso dos hinos traduzidos pelo casal Kalley.
No ano de 1861 deu-se a impressão da primeira co-
leção de 50 hinos com a tradução de letras que forma-

68 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


ram a base da hinologia evangélica no Brasil, utilizada
pelas demais denominações. Os Salmos e Hinos tiveram
uma sucessão de edições que procuraram aprimorar e
acrescentar novos cânticos, a partir da experiência li-
túrgica da igreja local e da sensibilidade musical de Sa-
rah Kalley. Ela foi a musicista que compilou, traduziu,
adaptou e propagou a tradição hinológica do protestan-
tismo europeu e norte-americano no Brasil, juntamen-
te com seu esposo.
A teologia e a doutrina eram não somente ensinadas
de forma sistematizada. Eram também cantadas como
instrumento de fixação de sentidos para a fé. As es-
trofes reproduziram o legado do pietismo e do purita-
nismo protestante, com ritmos, métricas e harmonias
distintos das modinhas e das cantigas populares. Eram
diferentes dos cânticos gregorianos e cantochões cató-
licos, dos entrudos e dos batuques dos cultos africanos.
Ainda neste ano ocorreu a aprovação da lei 1.144 de
11 de setembro, autorizando o reconhecimento dos ca-
samentos de pessoas acatólicas. Esta e outras conquis-
tas jurídicas foram de fundamental importância para
a nascente comunidade e para o estabelecimento dos
demais ramos do protestantismo no século dezenove.
A comunidade se caracterizava por ser perseguida,
peregrina, doméstica e formada por minorias e estran-
geiros. Havia uma sensibilidade social ante as questões
da escravidão, da saúde pública, da educação e das rela-
ções para com o Estado Imperial.

Robert Reid Kalley 69


No ano de 1862, os Kalley viajaram para a Inglater-
ra por conta de uma enfermidade do missionário. Nes-
te período e depois do retorno, foi estabelecido o culto
doméstico em Niterói com intensas perseguições. Por
sua vez a igreja iniciou um período de organização ecle-
siástica, com a eleição de presbíteros e a procura de um
sucessor para Kalley.
A opção e a conveniência, as ligações eclesiásticas de
Sarah e a coerência com o caráter independente de Kal-
ley concorreram para a instalação de um modelo congre-
gacional ou independente de igreja, funcionando a partir
de uma democracia interna, sem dependência de uma es-
trutura eclesiástica exterior e sem um clero formal.
Junto com estes avanços deu-se a preocupação em
estabelecer um padrão interno de vida eclesiástica e
religiosa. Em abril de 1863, foram estabelecidas as “Re-
gras da Igreja Evangélica Fluminense (...) para seu re-
gime interno”, conforme o livro de Atas da Igreja. Eram
normas internas e regulamentos que viriam orientar a
vida religiosa da comunidade por décadas, embora ofi-
cialmente se reconhecesse o estatuto como único. Tais
regras assumiram o poder de uma tradição sustentada
e reproduzida pela comunidade.
O acesso e a entrada na comunidade eram criterio-
sos, devendo o novo membro ser examinado por uma
comissão que decidiria sobre sua aceitação ou não. O
exame aferia a crença do candidato, assim como a sua
conduta religiosa e moral. A leitura pública das Escritu-

70 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


ras deveria ser feita pelo ministro ou pelos presbíteros.
Os membros deveriam avisar previamente seu intento
de ler publicamente.
Era exigida a participação regular na ceia eucarísti-
ca, a participação nos cultos públicos e em outras reu-
niões restritas ao grupo, com registro das presenças e
orientação proibindo a divulgação do teor das reuniões
privadas com risco de punição. Os cultos tinham suas
regras de comportamento como o não conversar du-
rante a celebração.
Kalley tinha uma pregação essencialmente teológi-
ca e doutrinária. Seu conteúdo se definia na exposição
de uma ortodoxia e, consequentemente, de um padrão
ético-comportamental. Os termos usados não eram de
todo comuns aos ouvintes, com um raciocínio lógico,
encadeado de ideias e envolto numa retórica quase
agressiva. Estava convencido de ser possuidor de argu-
mentos insuperáveis que lhe garantiam acesso à verda-
de revelada, especialmente escriturística. Daí ter tam-
bém um propósito apologético.
Trata-se de uma exposição que compreendia traços
da escolástica protestante, do puritanismo inglês e do
pietismo alemão presente nas ondas avivalistas euro-
peias e norte-americanas. Ou seja, a verdade conhe-
cida de maneira proposicional e acompanhada de um
sentimento específico, impunha-se à realidade de uma
população em sua maioria iletrada, marginalizada e de
uma religiosidade mágica e lúdica.

Robert Reid Kalley 71


Contudo, não foram as elites letradas e liberais,
questionadoras da oficialidade católica e de seu ultra-
montanismo que acolheram a mensagem protestante.
Antes, representantes das camadas médias e pobres
dos bairros periféricos aderiram com maior convicção
ao ideário protestante, a partir da fala mais simples e
contextualizada dos colportores e da própria comuni-
dade emergente.
Cresceu o número dos colportores para dez, todos
membros da Igreja Evangélica Fluminense, que avan-
çaram para regiões de Minas e Bahia, Portugal, Ilha da
Madeira e África. Em 2 de outubro de 1863, Kalley foi
eleito pastor da Igreja, possibilitado pelo Decreto Im-
perial 3.069 de 17 de abril do mesmo ano, que ordenava
o registro da eleição dos ministros de religiões toleradas
junto à Secretaria do Império. O britânico Richard
Holden foi eleito seu pastor auxiliar em 1865.

72 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Capítulo 5

A Consolidação da
obra de Kalley

Q uase dez anos depois de sua chegada ao Brasil,


Kalley estabeleceu sua residência no bairro da
Saúde em 1864, no mesmo lugar onde a Igreja se con-
gregava para as reuniões regulares, na Travessa das
Partilhas, Ladeira do Barroso. No entanto, nos meses
de dezembro a abril subia para Petrópolis, e depois Te-
resópolis, a fim de descansar e recuperar-se de proble-
mas de saúde.
A Igreja ficava sob a liderança de brasileiros, os anti-
gos e novos colportores, além de outras lideranças que
começavam a despontar. Iniciou-se a escola dominical
no Rio de Janeiro e foi criada a Sociedade de Benefi-
cência por proposta de Pedro Nolasco, a fim de aten-
der aos necessitados. Em 3 de setembro, João Severo de
Carvalho e José Bastos Pereira Rodrigues foram eleitos
diáconos da comunidade.
As perseguições do clero ultramontano, os enfrenta-
mentos na imprensa escrita e na Assembleia Provincial,
as ações violentas contra a igreja em Niterói, a guerra
do Paraguai, a oposição do governo à liberdade religio-
sa e a instabilidade social favorável à Igreja Romana,
faziam Kalley antever sua partida do império. Aliados
a estes fatores, os problemas com a saúde e com o pro-
cesso de escolha de um sucessor formavam um cenário
crítico para o doutor. No entanto, escreveu numa carta
em 1867: “Julgamos que aqui é o lugar onde podemos
ser de maior utilidade ao crescimento do Evangelho”.
Internamente enfrentou problemas com o auxiliar
Holden, sobretudo em decorrência de uma viagem
para tratamento médico na Europa. Após a sua recu-
peração na Europa, fez uma extensa viagem à Palestina
que lhe valeram conhecimentos e experiências utiliza-
dos em palestras públicas, como aconteceu posterior-
mente em Recife. O período de afastamento do Brasil
foi de dezembro de 1868 a julho de 1871. Nesse perí-
odo, travou intensa correspondência com a liderança
da igreja, mantendo a supervisão sobre suas atividades
e sendo informado dos problemas, dos conflitos e dos
progressos.
A influência da doutrina presbiteriana do batismo
de crianças e o darbismo de Richard Holden foram
exemplos destes conflitos internos. A igreja chegou

74 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


a fazer uma tensa reunião de avaliação do ministério
pastoral de Holden, gerando uma crise que proporcio-
naria a sua saída em 1872, após o retorno dos Kalley.
Holden era um experiente agente da Sociedade Bíblica
norte-americana, ligado originalmente à Igreja Epis-
copal. Fora influenciado pelas doutrinas dos Irmãos de
Plymouth, e apresentava comportamentos emocional-
mente instáveis para um padrão protestante da época.
Fazia longas orações e pregações, além de apresentar
evidências de que falava em outras línguas.
A solução encontrada foi o investimento na forma-
ção de um jovem promissor visando a sua sucessão.
João Manuel Gonçalves dos Santos foi enviado por
Kalley ao Colégio de Pastores, na Inglaterra, uma ins-
tituição dirigida pelo renomado pregador e amigo pes-
soal de Kalley, Charles Haddon Spurgeon. De agosto
de 1872 a agosto de 1875, Santos recebeu sua formação
teológica, sendo eleito pastor auxiliar ao retornar para
o Brasil, em dezembro de 1875.
Ante a iminência de sua partida e a chegada de San-
tos, os conflitos doutrinários e as crises vivenciadas
pela passagem de Holden, Kalley elaborou uma síntese
doutrinária que deixaria como legado para a Igreja. A
Breve exposição das doutrinas fundamentais do cristia-
nismo, escrita em vinte e oito artigos, representou um
extrato de sua teologia, abrangendo diferentes temá-
ticas e conteúdos, resumindo o seu ensinamento de
anos de militância pastoral. Estava desta forma prepa-

Robert Reid Kalley 75


rado o cenário para a sua partida definitiva do Brasil,
em 1876.
Antes, porém, em 1873, visitou Recife, onde um col-
portor chamado Manoel José da Silva Vianna, desde
1868, distribuía Bíblias e reunia um grupo de conver-
sos. Em 1871, Vianna intensificara o esforço missioná-
rio indo morar num local pobre da cidade, realizando
cultos domésticos e vendendo livros. As oposições e
perseguições não tardaram a acontecer por parte da
população, das autoridades e da Igreja Católica. Livros
e Bíblias foram confiscados e Vianna chegou a ser pre-
so, sob a acusação de vender Bíblias falsas e realizar
reuniões protestantes. Lideranças e intelectuais libe-
rais saíram em defesa de Vianna, criticando a postura
do bispo e defendendo o direito dos leigos de lerem a
Bíblia.
No final de setembro de 1873, os Kalley chegaram
a Recife logo após a revogação da proibição dos cul-
tos com o fechamento do local de reuniões, da acir-
rada discussão entre maçons e católicos romanos e
da divulgação na imprensa dos conflitos religiosos e
ideológicos. Kalley agiu diplomaticamente visitando
as autoridades e alertando-as sobre a questão da liber-
dade religiosa e o registro do casamento de acatólicos.
Ajudado por britânicos e pela comunidade de Vianna,
Kalley fez palestras sobre a Palestina, atraindo grande
público num teatro. Além disso, realizou batismos e ce-
rimônias de casamento e organizou a chamada Igreja

76 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


Evangélica Pernambucana no dia 19 de outubro. Nova
onda de perseguição popular aconteceu por conta dos
casamentos. No dia 10 de novembro, contudo, retorna-
ram para o Rio de Janeiro.

Ensino ilegal, mulheres e


escravidão.
A atuação de Kalley no Brasil não se deveu somente às
suas iniciativas pessoais. Seu protagonismo foi devedor
de outras pessoas e de variáveis circunstanciais. Em vista
disto, os movimentos da nascente comunidade e certos
posicionamentos do missionário precisam ser identifi-
cados. Kalley nem sempre estava à frente das ações da
igreja, mas, certamente, a amparava com sua presença
pastoral, carismática e financeira. Daí a importância de
vermos a experiência do ensino, a participação das mu-
lheres e o posicionamento com relação à escravidão.
A Igreja Evangélica Fluminense teve como experi-
ência pioneira o esforço de educação primária através
de uma escola diária, localizada no bairro da Saúde, a
partir do ano de 1872. Sua iniciativa não estava fora
de toda uma preocupação da sociedade civil que agia
independentemente das ações oficiais do governo im-
perial. O segundo Império concentrou seus esforços
no investimento de reformas básicas, como os trans-
portes, e em favorecer mais as elites através da cultura
e do ensino superior.

Robert Reid Kalley 77


A população confinada nos morros, desassistida
pela escassez de serviços públicos e de oportunidades
de trabalho, formava o contingente significativo sem
acesso à educação, sobretudo as crianças. O bairro da
Saúde era um destes refúgios, verdadeiros quilombos
urbanos organizados como forma de sobrevivência e
resistência. Estes segmentos assistiam a uma evolução
urbana da qual não eram participantes, antes margina-
lizados.
No município da Corte, o ministro do Império le-
gislava sobre a instrução pública, conforme Ato Adi-
cional de 1874. O ensino primário foi ampliado em seu
programa, as escolas públicas e sociedades particulares
de instrução multiplicaram-se, e o poder público fisca-
lizava e intervinha, não sem polêmicas, no magistério
particular. O ensino não era obrigatório, no entanto, “a
Reforma de 1879 estabeleceu a liberdade de ensino, su-
jeita à fiscalização do governo, a obrigatoriedade de fre-
quência nas escolas primárias, novos programas, caixas
econômicas, escolas profissionais”.
Dentro deste cenário deram-se os esforços da Igreja
Evangélica Fluminense, mais especificamente por ini-
ciativa e preocupação de Sarah Kalley, com a abertura
de uma escola primária que atendesse aos filhos dos
crentes. No ano da inauguração, surgiram numerosas
iniciativas particulares de ensino e, na Corte, foram
iniciadas as Conferências Pedagógicas. Sarah identificou
as dificuldades em abrir-se uma instituição de ensino

78 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


primário: falta de professores habilitados, as dificulda-
des impostas pelas autoridades e a proibição dos pais a
que seus filhos frequentassem as aulas.
O governo havia indeferido o pedido de missioná-
rios norte-americanos para abrir uma escola primária
e o caminho adotado pela igreja foi o da ilegalidade.
A igreja decidiu abrir a escola diária em assembleia de
membros realizada em 31 de maio de 1872, estabele-
cendo a urgência do funcionamento, a particularidade
aos membros da igreja, a gratuidade, a voluntariedade
das contribuições, a criação de um espaço apropriado
para as aulas, o pagamento de salário ao professor.
A Igreja temia que o governo dificultasse o seu
funcionamento. A escola, na verdade, era mais vista
como instrumento de propagação da fé, a pretexto da
instrução particular. Servia para reforçar, no cotidiano
da Igreja e das crianças assistidas, assim como em suas
famílias, os valores da religião protestante.
Sarah Kalley compôs “hinos evangélicos para o se-
tor da educação primária” enquanto seu esposo “ocu-
pava-se em compor um catecismo para os alunos da
escola diária”. Justifica-se aí sua ilegalidade mesmo em
meio ao temor de intervenção do governo imperial, já
que o ensino oficial era associado diretamente à reli-
gião oficial, o catolicismo romano.
A segunda esposa de Kalley, Sarah Poulton Kalley,
foi de fundamental importância no surgimento de uma
igreja protestante no Rio de Janeiro e para o desenvol-

Robert Reid Kalley 79


vimento posterior do protestantismo no Brasil. O seu
legado musical, a experiência do ensino religioso e se-
cular, as noções de higiene social e privada, as anota-
ções e os registros diários, marcaram o lugar feminino
na biografia de Kalley e no protestantismo.
Ela vivenciara nas terras inglesas o fenômeno do
crescimento populacional em torno das indústrias e
teve contato com a realidade operária e miserável da-
quela população. Sua formação intelectual correspon-
deu a das famílias abastadas de industriais ingleses
com professores particulares, colégio interno e conta-
tos com o continente, onde exercitou as línguas fran-
cesa e alemã.
Entusiasta do movimento das escolas dominicais,
defrontou-se também com o abandono da infância e
com a exploração da mão-de-obra infantil. Acresce-se
a esta sua formação, a vivência eclesiástica congrega-
cionalista que veio influenciar Kalley e a própria estru-
turação interna da Igreja Evangélica Fluminense.
O início da Igreja Evangélica Fluminense está iden-
tificado a uma classe religiosa dirigida por ela a cinco
crianças em 19 de agosto de 1855. Esta identificação já
revela, em certa medida, características da comunida-
de que seriam acentuadas posteriormente: a presença
da mulher no ensino e a preocupação para com a in-
fância.
Esta participação se deu dentro de limites estabele-
cidos por uma leitura teológica específica e pelas impo-

80 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


sições culturais encontradas no contexto urbano cario-
ca. Predominou a mentalidade projetada sobre a mu-
lher enquanto colaboradora ou auxiliadora do homem
(marido), repassada e reforçada tanto na comunidade
nascente como nos registros e fontes documentais.
A experiência de Sarah no Brasil ultrapassou os li-
mites ideológicos de ser uma colaboradora. Determi-
nou em muito o desempenho de Kalley e a formação
da comunidade protestante primitiva. Seu cotidiano
não estava limitado somente à esfera doméstica. Antes,
organizava uma agenda de necessidades e interesses,
recebia regularmente (toda semana) os relatórios das
vendas dos colportores, conduzia as classes de música e
de instrução geral, compunha e traduzia hinos religio-
sos, além da tradução de livros e folhetos para a propa-
gação da fé. Também, o mais interessante, “preparava
sinopses e estudos de assuntos que facilitavam a com-
posição dos trabalhos dominicais de seu marido”. Na
esfera litúrgica, compôs hinos e estimulava a congrega-
ção a cantá-los com maior motivação.
Dentro da comunidade exercia claro respeito,
sendo chamada de Senhora. Certamente sua posição
abriu espaços para que outras mulheres exercessem
funções significativas no meio da comunidade, como,
por exemplo, Isabel Russell, Leopoldina Rosa Maria
Fialho, Luiza Maria Ferreira e Carlota Faulhaber da
Gama, que ensinavam tanto o ensino religioso como o
secular na escola diária.

Robert Reid Kalley 81


Ao mesmo tempo, sedimentou-se uma determinada
visão da mulher dentro da comunidade, especialmente
a esposa do pastor. João Manoel Gonçalves dos Santos,
o sucessor de Kalley, assim definiu para a sua futura es-
posa, de nome Filomena, a sua posição: “Como mulher
do Pastor, sua posição terá de influir entre as famílias
da Igreja, no trato e no amor para com os irmãos, no
zelo e no interesse pelo serviço de Cristo e nas relações
para com um marido Pastor”. Ou seja, à mulher cabia a
função de relações públicas para com as famílias e ter
uma esfera eclesiástica definida tendo em vista a figura
central masculina do pastor.
Em 11 de julho de 1871, Sarah organizou a Socieda-
de de Senhoras, conduzindo sua primeira sessão com
onze participantes. Na ocasião, foi feita uma “consi-
deração da vida e do caráter de Eva, a mãe da raça hu-
mana”. Não se tem registro ou notas sobre o conteúdo
deste ensino, mas podemos inferir que, neste espaço
feminino, haveria a oportunidade para uma leitura das
Escrituras a partir da mulher ou, pelo menos, um olhar
feminino sobre o texto sagrado.
Enfim, Sarah Kalley significou a projeção da mu-
lher dentro do universo protestante primitivo, assim
como a conquista de espaços na comunidade e rompi-
mento com certos costumes do país, embora com esferas
de ação delimitadas. Ela mesma reconhecia tais limi-
tes diante da supremacia masculina, pois “duvidava da
propriedade de uma mulher ocupar a tribuna ou o púl-

82 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


pito perante uma assembleia mista. Ela mesma nunca
esteve disposta para oficiar deste modo, exceto, quiçá
na classe de música e na de ensinar os hinos”.
Desde o princípio da evangelização protestante em
Petrópolis (1855), os negros estavam presentes nas
classes de ensino e nos cultos domésticos. Kalley não
se furtava em reuni-los em torno do ensino das Escri-
turas. A religião representava para os negros um espaço
de ascensão social, de novas sociabilidades a serem vi-
venciadas no contexto urbano.
E não tardou para que houvesse negros conversos
na comunidade. Felipe Nery, Antonio José Garcia e
Faustino Massão Carneiro foram negros convertidos e
batizados na Igreja Evangélica Fluminense. As trajetó-
rias de cada um reproduziram as diferentes estratégias
e formas de adesão ao protestantismo, como um novo
espaço de construção de identidades e de ascensão so-
cial.
Kalley chegou a excluir um membro da Igreja por
não haver alforriado um negro de ganho e fez veemen-
te crítica à prática da escravidão vigente no Brasil. Pu-
blicou um pequeno tratado teológico condenando a
escravidão, um discurso que concorria a favor da abo-
lição do sistema escravista, junto com os liberais e os
positivistas.

Robert Reid Kalley 83


Conclusão

O Retorno para
a Escócia e seus
últimos dias

O s últimos dias no Brasil foram de supervisão e


de contatos por cartas com as diferentes igrejas
e grupos. Illinois, Ilha da Madeira, Recife, Lisboa, Rio
de Janeiro e Niterói eram os locais onde Kalley manti-
nha contatos e exercia sua liderança. Os problemas de
saúde agravados e o clima quente do Rio o obrigavam
a fazer árduas viagens para Petrópolis e Teresópolis.
Entretanto, resolvida a questão da sucessão na Igreja
Evangélica Fluminense e superados os conflitos com
o darbismo de Holden, no dia 10 de julho de 1876 os
Kalley voltaram para a Europa, para a Escócia.
Deixou uma Igreja com cerca de 150 pessoas con-
gregadas, uma liderança por ele formada, um legado
hinológico e litúrgico, uma confissão de fé e uma tra-
jetória diplomática que favoreceu a fixação da fé protes-
tante no Brasil de modo definitivo.
Em Edimburgo, o doutor ainda se envolveria com
a Sociedade da Reforma Escocesa, a Sociedade Bíblica
da Escócia e a Missão Médica de Edimburgo. Recebia
estudantes, amigos e personalidades atraídas pela figu-
ra do médico-missionário. Escrevia cartas e supervisio-
nava as igrejas no Brasil, orientando os passos das suas
lideranças nativas, como o pastor João Manoel Gonçal-
ves dos Santos, na Igreja Evangélica Fluminense.
Kalley foi um personagem do seu tempo. Sem o pro-
pósito de reificar o sujeito histórico, podemos afirmar
que ele representou as mudanças do mundo protestan-
te oitocentista. A partir de um estilo de vida autônomo
e de uma personalidade independente, suas ações se
deram ao largo e fora das estruturas eclesiásticas com a
marca da autonomia pessoal, mas sempre sujeito a uma
rede de relacionamentos que lhe dava sustentação.
Esta maneira de se conduzir lhe proporcionava fle-
xibilidade e diálogo, aprendendo com os contextos nos
quais se inseria. Deixou legados permanentes para o
perfil religioso do protestantismo no Brasil, juntamen-
te com Sarah Kalley.
O funeral de Kalley aconteceu no Cemitério Dean,
em Edimburgo, no dia 24 de janeiro de 1888. Morreu
como membro da Igreja Estatal da Escócia.

86 Lyndon de Araújo Santos e Sérgio Prates Lima


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Fontes Internet
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Cronologia

1809 – Nasceu em Mount Florida, Escócia, no dia oito


de setembro.
1829 – Diplomou-se cirurgião e farmacêutico pela Fa-
culdade de Medicina e Cirurgia de Glasgow, no mês de
agosto.
1837 – Admitido como médico na London Missionary
Society em fins de novembro para ser enviado à China.
1838 – Matriculou-se na Universidade de Glasgow e
obteve o título de doutor em medicina no mês de abril.
1838 – Mudança para Funchal, capital da Ilha da Ma-
deira, para tratamento da saúde de Margareth, sua pri-
meira esposa.
1839 – Habilitado no mês de junho para exercer me-
dicina nos territórios de Portugal tendo revalidado seu
diploma de médico, depois de ter sido examinado pela
Escola Médico-Cirúrgica em Lisboa.
1839 – Foi aprovado nos exames e ordenado no mês de
julho por seis ministros ligados à London Missionary
Society.
1840 – Abriu um pequeno hospital com doze leitos em
Funchal, em que havia paralelamente uma farmácia e
um consultório.
1841 – Recebeu das entidades oficiais um público lou-
vor, nas Atas da Câmara do Governo Municipal da Ci-
dade do Funchal do dia 25 de Maio, sendo nomeado
como O Bom Doutor Inglês.
1842 – No final de janeiro começou um período de
hostilidade por parte do clero católico. Ficou preso por
seis meses.
1844 – Em dezembro o denominado Caso Kalley che-
gou a ser discutido na Sessão da Câmara dos Deputa-
dos, em Lisboa.
1845 – Viajou à Inglaterra entre junho e setembro e, ao
retornar, a situação havia piorado. Fundação da Igreja
Presbiteriana do Funchal no mês de maio, sendo esta
data reconhecida como o nascimento do protestantis-
mo em Portugal.
1846 – As dificuldades aumentavam, Kalley apelou ao
cônsul britânico e também pediu proteção à polícia,
mas em agosto sua casa foi cercada por populares e a
polícia não pôde contê-los. Foge disfarçado de anciã
enferma numa rede, sendo acompanhado de mais de
dois mil madeirenses que exilaram-se.
1847 – Publicou um livro no qual contava o andamen-
to do seu caso (Short statement of Dr. Kalley`s case: His
expulsion from Madeira, sem versão em português) no
mês de maio.
1847 – Saindo de Funchal, Kalley e Margareth desem-
barcaram em São Vicente, uma das ilhas das Antilhas,
tendo ficado lá alguns refugiados madeirenses; o casal
seguiu viagem a Londres. Até o outono deste ano resi-
diram em Hastinge e Saint Leonard e depois partiram
para a ilha de Malta, lá permanecendo por dois anos,
período em que Kalley atuou como médico, evangelis-
ta e professor.
1850-1852 – Por causa da saúde abalada da esposa,
Kalley viajou por diversos lugares, especialmente no
Oriente Médio, sobretudo Síria e Palestina.
1852 – Morre Margareth em Beirute, onde foi sepul-
tada.
1852 – Kalley conheceu Sarah Poulton Wilson e casou-
-se com ela em 14 de dezembro.
1853 – O casal viajou para Trindade, a fim de visitar
os madeirenses e depois seguiu para Illinois, nos Estados
Unidos, onde havia também outro grupo de madeirenses.
1855 – Kalley e Sarah saíram da cidade de Southamp-
ton, Inglaterra, no mês de abril, e chegaram no Rio de
Janeiro no dia 10 de maio. No domingo de 19 de agosto
Sarah deu início à escola dominical. Chegada em de-
zembro de William D. Pitt.
1856 – Kalley organiza, estrutura e supervisiona as
atividades missionárias, auxiliado pelos colportores
madeirenses Francisco da Gama, Francisco de Souza
Jardim e Manuel Fernandes. Em agosto foi alugada
uma casa na Rua da Boa Vista, 45, no Morro da Saúde,
município da Corte.
1857 – Primeiro batismo de um brasileiro no mês de
novembro, o Sr. José Pereira Louro.
1858 – Fundação da Igreja Evangélica Fluminense. Pe-
ríodo de expansão e crescimento.
1859 – Batismo de duas senhoras da corte em Petrópo-
lis, provocando novas perseguições. Proibição de exer-
cer a medicina no Brasil, revogada após defesa de tese
e revalidação do seu diploma pela Escola de Medicina.
Chegada em 12 de agosto no Rio de Janeiro do jovem
missionário presbiteriano Ashbel Green Simonton.
1861 – Impressão da primeira coleção de 50 hinos com
a tradução de letras que formaram a base dos Salmos e
Hinos. Aprovação da lei 1.144 de 11 de setembro, au-
torizando e reconhecendo os casamentos de pessoas
acatólicas.
1862 – Os Kalley viajam para a Inglaterra por conta de
uma enfermidade do missionário.
1863 – Em abril são estabelecidas as “Regras da Igre-
ja Evangélica Fluminense”. Em 2 de outubro, Kalley é
eleito pastor da Igreja, possibilitado pelo Decreto Im-
perial 3.069 de 17 de abril do mesmo ano, que ordenava
o registro da eleição dos ministros de religiões toleradas
junto à Secretaria do Império.
1864 – Kalley estabelece sua residência no bairro da
Saúde em 1864, no mesmo lugar onde a Igreja se con-
gregava na Travessa das Partilhas, Ladeira do Barroso.
1865 – O britânico Richard Holden é eleito pastor au-
xiliar de Kalley.
1868 a 1871 – Viagem à Palestina de dezembro de
1868 a julho de 1871. Manoel José da Silva Vianna
distribui Bíblias e reúne um grupo de conversos em
Recife.
1872 – Saída de Richard Holden e envio de João Ma-
nuel Gonçalves dos Santos ao Colégio de Pastores, na
Inglaterra, dirigida por Charles Haddon Spurgeon.
Elaboração da síntese doutrinária Breve exposição das
doutrinas fundamentais do cristianismo. Organização e
fundação da escola diária.
1873 – Kalley visita Recife no final de setembro
em meio a perseguições. Realiza batismos e ceri-
mônias de casamento, organiza a Igreja Evangélica
Pernambucana no dia 19 de outubro.
1875 – João Manoel Gonçalves dos Santos é eleito
pastor auxiliar em dezembro.
1876 – No dia 10 de julho os Kalley voltam para a
Escócia.
1876 a 1888 – Mora em Edimburgo, envolve-se com
a Sociedade da Reforma Escocesa, a Sociedade Bí-
blica da Escócia e a Missão Médica de Edimburgo.
Recebe estudantes, amigos e personalidades. Es-
creve cartas e supervisiona as igrejas no Brasil.
1888 – Morre em 17 de janeiro e o seu funeral acon-
tece no Cemitério Dean, em Edimburgo, no dia 24
de janeiro.
Este livro foi produzido pela oliverartelucas com as fontes
Arno Pro e BaskervilleOldFacDCD; impresso no
papel de miolo Creme 80g e capa Cartão Supremo 250g
em maio de 2012.

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