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Resumo
Este artigo propõe-se a pensar uma articulação entre a obra Quarto de Despejo da literária
negra brasileira Carolina Maria de Jesus e o feminismo afro-latino americano ou amefricano,
da filósofa, historiadora e antropóloga negra brasileira Lélia Gonzalez. O intento é analisar
Quarto de Despejo enquanto uma obra de autoria feminina negra pela óptica do feminismo
afro-latino americano de Lélia e não por uma perspectiva do feminismo branco ou até mesmo
negro, pois o que Lélia nos apresenta é algo bem mais abrangente e localizado. Além de tudo
isso, é fazer um diálogo entre duas grandes pensadores negras brasileiras e sua enorme
contribuição para combater toda forma de opressão.
1.INTRODUÇÃO
Escrever sobre Carolina Maria de Jesus é sempre um desafio e uma encruzilhada que
lhe obriga a escolher um caminho e se despir de diversos preconceitos e estereótipos,
principalmente de noções normalizadoras que tentam encaixar a autora em algum movimento
ou vertente, pois acredito que Carolina seja uma “Escritora Improvável”, como nos diz Joel
Rufino dos Santos (2009). É tão improvável que neste artigo não pretendemos encaixar a
autora e sua escrivência (EVARISTO, 2008) em blocos conceituais ou analíticos, mas fazer
um diagnóstico da obra que analisaremos, Quarto de Despejo (2014), e sua denúncia de várias
formas de opressões (miserabilismo, machismo) e principalmente do racismo, por meio da
proposta de um feminismo afro-latino americano pensado por Lélia Gonzalez, por isso será
necessário acentuarmos a importância da literatura de autoria feminina negra, visto que é
neste ponto onde encontramos um contra-lugar, ou seja, uma negação do “lugar da mulher
negra” para criação de outras possibilidades além da favela e um grito de uma voz que não foi
ouvida na literatura, nem no feminismo e que foi ouvida por vozes que também não foram
escutadas: “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem
manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros” (JESUS, 2014, p.36). Sua
escrita é uma voz coletiva que fala por aquelas e aqueles que são desumanizadas/os, assim
como a filósofa Lélia Gonzalez que dedicou sua vida quase toda a combater o racismo e o
sexismo.
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Deste modo, o objetivo é fazer uma ginga entre estas duas pensadoras para
mostrarmos sua relação e sua importância na denúncia do racismo e sexismo que assola a
cultura brasileira (GONZALEZ, 1984), são temporalidades diferentes que confluem na luta
por vida e dignidade humana. Com Carolina pensaremos a situação das favelas e dos
favelados da Favela do Canindé-SP e sua respectiva denúncia em sua exímia obra Quarto de
Despejo publicada em 1960 que causou um grande alvoroço e polêmica ao ser publicada, e
com Lélia Gonzalez refletiremos sobre um feminismo insurgente que dá conta das demandas
das mulheres negras na América Latina ou Améfrica (GONZALEZ, 1988), que é a proposta
de um feminismo afro-latino americano exposto no seu texto Por um feminismo Afro-latino-
americano publicado em 1988 e que se articula de uma forma diferente, mas não é
antagônico, ao feminismo negro pensado pelas mulheres negras estadunidenses (DAVIS,
2016). O intento é um diálogo entre estes dois textos para reforçar a ideia de um feminismo
que esteja atrelado a condição das mulheres negras na América Latina compreendo todo seu
contexto e demandas a partir da literatura de autoria negra feminina e de um pensamento
feminista afro-latino americano elabora por mulheres negras, neste caso, Lélia e Carolina.
Não é nosso objetivo defendermos um feminismo ou “proto-feminismo” na obra da Carolina,
mas evidenciar a potência de Quarto de Despejo como uma grande obra de denúncia do
colonialismo, racismo e sexismo na sociedade brasileira, assim como o texto de Lélia.
Começaremos com uma breve reflexão sobre a literatura de autoria (TOFANELO,
2015); (ZOLIN, 2009) para adentramos dentro de uma discussão sobre a literatura de autoria
feminina afro-brasileira (AUGEL, 1996); (FERREIRA, MIGLIOZZI, 2016) e assim
construirmos um contexto de produção literária no Brasil para assim examinarmos a obra de
Carolina Maria de Jesus e fazer sua prosa com Lélia Gonzalez. Prosa essa, de produções em
tempos diferentes, mas que nos renderá uma grande reflexão sobre a situação das mulheres
negras na Améfrica, suas formas de resistência e denúncia. Para mim, Quarto de Despejo é
mais que uma obra autobiográfica; é uma denúncia político-ético-histórico-filosófico-poético
do colonialismo, racismo e sexismo brasileiro e este artigo irá acusar isso de uma forma
breve, mas incisa juntamente com Lélia Gonzalez.
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da escrita literária era reservado somente aos homens, donos dos consagrados
“cânones literários”. Algumas mulheres que quiseram se inserir nesse meio tiveram de o fazer
de forma escondida, por meio de pseudônimos (TOFANELO, 2015, p.1). Mas por mais que
as mulheres não pudessem estarem inseridas nesse meio ou quando escreviam não eram
reconhecidas, isso não quer dizer que elas não produziam. Gabriela Tofanelo no seu artigo A
Trajetória do feminismo na literatura de autoria feminina: espações e conquista de 2015 nos
faz refletir sobre mesmo muitas não sendo reconhecidas:
As mulheres sempre ocuparam lugar de destaque na literatura. Eram sempre
representadas nas literaturas canônicas como personagens, muitas vezes
protagonistas, dos livros de autoria masculina, ou seja, não possuíam voz
própria, eram representações pela voz do outro, o homem .Exemplos, temos vários:
Capitu, de Machado de Assis em Dom Casmurro; A Moreninha, de Joaquim
Manuel Macedo, Iracema, Senhora, Lucíola, todas de José de Alencar, entre tantas
outras (p.2).
Não que essas representações também fossem positivas ou tentassem demonstrar outra coisa
além do “lugar da mulher” ou o que é ser mulher através de uma ótica feminina, pois as
representações de personagens femininas na literatura foram realizadas de acordo com
estereótipos culturais da época, ditados pelo sistema patriarcal, como exemplifica a
pesquisadora e professora Lúcia Osana Zolin (2009, p.226): “o da mulher sedutora,
perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher indefesa e incapaz e, entre outros,
o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam”. Para Tofanelo, existem três
fases da literatura de autoria feminina:
A fase feminina, a partir de 1859, com o romance Úrsula, de Maria Firmina
dos Reis, no qual a mulher obtinha um caráter pejorativo, frágil e indefeso,
por estar presa ainda ao modelo patriarcal vigente na época; a fase feminista,
em 1944, com Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, em que a mulher
passa a questionar sua situação já evidenciada no movimento feminista; e a partir de
1990, surge a fase fêmea ou mulher, com uma literatura voltada para a
autonomia da representação feminina, sem mais serem necessários os
questionamentos anteriores em que a mulher tem uma chance nunca
antes permitida (...) (p. 4).
Desta forma generalizada é que ela tenta sistematizar as fases da produção literária
feminina no Brasil e o que seriam suas características. Nas duas últimas fases haveria uma
relação do movimento literário feminino e do movimento feminista, pois acabaria por seguir
um solapamento e crítica da literatura hegemônica para se articular um outro modo de
enxergar a literatura. Lúcia Osana Zolin em A Literatura de autoria feminina brasileira no
contexto da pós-modernidade 2009 nos adverte:
A considerável produção literária de autoria feminina, publicada à medida que o
feminismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge imbuída da
missão de “contaminar” os esquemas representacionais ocidentais, construídos a
partir da centralidade de um único sujeito (homem, branco, bem situado
socialmente), com outros olhares, posicionados a partir de outras perspectivas. O
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resultado, sinalizado pelas muitas pesquisas realizadas no âmbito da Crítica
Feminista desde os anos 1980 no Brasil, aponta para a re-escritura de trajetórias,
imagens e desejos femininos. A noção de representação, nesse sentido, se afasta de
sua concepção hegemônica, para significar o ato de conferir representatividade à
diversidade de percepções sociais, mais especificamente, de identidades femininas
antipatriarcais (p. 2).
Zolin nos atravessa com uma reflexão bastante intrigante sobre a presença das
mulheres na literatura, sua escrita e a relação com o movimento feminista para se reconstruir a
imagem da mulher dentro da literatura; vozes falando por elas mesmo e não mais a partir de
outro. Desta forma, a considerável produção literária de autoria feminina, a partir de então,
teve o papel de desestabilizar a legitimidade tradicional da representação da mulher na
literatura canônica, que em nada condizia com a grande multiplicidade de
identidades femininas (TOFANELO, 2015, p.4). Autonomia e reconstrução são palavras
importantes para compreendermos esse momento.
Desta forma, segundo Tofanelo (2015, p. 9), as narrativas de autoria feminina
representam a angústia de personagens em busca de uma identidade própria, livre da oposição
binária homem/mulher, com problemáticas outras que não as de gênero, demonstrando um
importante avanço para os estudos de gênero e para a crítica literária feminista. Mas fica uma
questão? Tratar da literatura de autoria feminina apenas na perspectiva de gênero não
excluiria outras mulheres que não se encaixam no perfil da mulher branca, ou seja, mulheres
negras? Não seria necessário pensarmos os problemas raciais nessa equação para atingimos
algum avanço? Quando se fala em “Multiplicidade de identidades femininas”, mas não se
específica que mulheres são essas, não se estaria ainda na mesma lógica patriarcal de
universalização? Por isso propomos uma reflexão sobre a literatura de autoria feminina negra.
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Muitas mulheres negras escreveram sobre sua dor, sofrimento, alegrias, prazeres ou
simplesmente escreveram. Escreveram para denunciar, para dizer, falar e existir, mostrar sua
própria humanidade o seu ser-negra-no-mundo. Acho o título do artigo da autora intrigante
“E Agora Falamos Nós” pois realmente é isso. Não são vozes que falam por elas, vozes de
homens ou mulheres brancas, mas elas mesmas falando por elas e para elas também. Amanda
Ferreira e Luiz Migliozzi auxiliam na articulação quando publicam em 2016 o artigo
Literatura afro-feminina brasileira no século XXI: corpo, voz, poesia e resistência para fazer-
nos ouvir “pensar a escrita afro-feminina é pensar um movimento, em um ato de resistência”.
Essa escrita não é uma escrita por escrever, mas uma escrita que diz: Eu existo! Eu resisto!
Desde a publicação de Úrsula em 1859 da Maria Firmino dos Reis que essa voz negra ecoa na
literatura brasileira.
Para Ferreira e Migliozzi (2016, p.2) Úrsula inaugurou a presença da mulher negra
na Literatura Brasileira/ afro-brasileira enquanto sujeito de sua história já que sempre foi
tratada como objeto dentro da literatura, e não apenas um objeto inferior, mas como um objeto
não-humano. Algo por exemplo que não ocorre com as mulheres brancas, visto que como
Sueli Carneiro argumenta no seu texto “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra
na América latina a partir de uma perspectiva de gênero”
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente
a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente
de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou
nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não
entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam
ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores
de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e
dondocas, ou de mulatas tipo exportação.(CARNEIRO, S/D, ...)
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propõe uma desconstrução e reconstrução por meio da escrita das faveladas/os negras/os que
viviam na favela do Canindé-SP na década de 60.
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Toda essa enorme reflexão que a obra de Carolina nos traz me faz pensar em outra
grande pensadora que denunciou de forma incisiva o colonialismo, racismo e sexismo e
propôs uma nova forma de enxergar o feminismo, Lélia Gonzalez. Lélia Gonzalez, intelectual
e feminista negra brasileira nos anos de 1980, refletiu atentamente sobre a realidade da
exclusão das mulheres na sociedade brasileira, principalmente das negras e indígenas. Ela foi
pioneira nas críticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes
trajetórias de resistência das mulheres ao patriarcado. Assim como Carolina, Lélia viveu uma
vida de exclusão e dificuldades. Conseguiu se tornar doutora em antropologia com bastantes
obstáculos, mas por meio da escrita e da militância combateu os estigmas e estereótipos
colocados às mulheres negras. A intelectual publicou diversos textos falando sobre racismo,
cultura negra, machismo e colonialismo, contudo, escolhemos o texto Por um feminismo afro-
latino americano de 1988 porque penso que este texto é um marco sobre o feminismo e sua
compreensão, estabelecendo novas formas de entender o movimento de mulheres.
Assim como Lélia, Carolina, busca por liberdade e por uma libertação coletiva da
situação violenta em que homens e mulheres negras se encontram: “21 de maio de 1958: Os
politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo
oprimido” (JESUS, 2014, p. 39). Essa relação não é por acaso, são duas mulheres negras com
sede de justiça que viveram condições humilhantes: Carolina foi durante muito tempo da sua
vida catadora de lixo e Lélia viveu diversos momentos de solidão e dificuldade para conseguir
emprego. Duas mulheres que mesmo nestas condições não desistiram nem por elas e nem
pelos seus.
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O que Lélia pretende com seu texto é mostrar as contradições do feminismo, ou seja,
“Ao evidenciar a ênfase direcionada a dimensão racial (quando se trata da percepção e do
entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior de
movimento de mulheres, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão”
(p.1). Por mais que a distância temporal não seja tão grande, Carolina e Lélia viveram
décadas do século XX diferentes, Lélia foi uma das primeiras a fazer estas ponderações sobre
o movimento de mulheres, imaginemos então Carolina da década de 60; poderíamos
considera-la uma autora feminista, visto que o feminismo não a contemplava de nenhuma
forma? Podemos pensar um pouco sobre esta questão mais à frente.
Para Lélia o feminismo enquanto prática e teoria é importante:
É inegável que o feminismo como teoria e pratica vem desempenhando um
papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao
apresentar novas perguntas, não somente estimulou a formação de grupos
e redes, também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao
centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou
patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão
das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o
encaminhamento das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por
exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou todo um debate
publico em que surgiu a tematização de questões totalmente novas –
sexualidade, violência, direitos reprodutivos, etc. –que se revelaram
articulados as relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a
discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaços por
parte de homossexuais de ambos os sexos, discriminados pela sua
orientação sexual (p.4).
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um caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte,
na sua grande maioria, do proletariado afrolatinoamericano.
Lélia é uma autora que atende há aquilo que chamamos de análises plurais e
inclusivas, visto que ela inclui na sua argumentação sobre as mulheres que são mais
oprimidas, tanto as mulheres negras quanto as indígenas, e quando a pensadora fala de
“amefricanas”, conceito político-cultural que é de fato, democrático, já que exatamente o
próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e
ideológico abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do
mundo a América. Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de
amefricanidade incorpora todo o processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação,
resistência, reinterpretação e criação de novas formas de existências (GONZALEZ, 1988, p.
76). É um conceito que engloba toda a diversidade étnica ou pluriétnica e experiências das
negras/os no continente Americano em relação com o continente Africano, por isso,
Améfrica.
Carolina, assim como Lélia, é mulher e negra, mas a todo momento está tentando
reforçar o caráter positivo e o orgulho de ser negra, por mais que lhe desprezem por causa de
sua cor:
16 de junho: eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles me
respondiam:
- É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho
o cabelo de preto mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto
onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça
ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se que é existe reincarnações, eu quero voltar
preta. (...) O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o
branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto,
atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro tambem. A natureza não seleciona
ninguém (JESUS, 2014, p. 64).
É potente essa passagem do livro de Carolina porque mostra como a autora enfrenta o
racismo e todos aqueles que tentam diminuí-la e desconsiderá-la. Esse orgulho de Carolina é o
que ela tem como arma. Assim como diversas mulheres negras e homens negros no Brasil a
autora tem consciência que sua humanidade é desconsiderada por causa de sua cor é por isso é
importante enfatizar o quanto isso não é tornar menor que ninguém ou inferior, por isso Lélia
também vai nos fazer ouvir:
Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas
do Brasil e de outros países da região -assim como para as ameríndias- a
conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração
de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de
homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da
escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e
mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos (p.9)
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O feminismo afro-latino americano é justamente este feminismo amefricano que é
articulado por mulheres negras da América Latina que vivem uma situação semelhante e
particular, lutando contra o racismo, colonialismo e machismo que assola suas vidas. Sofrem
pelos papéis atribuídos as amefricanas (preta e mulata); abolida sua humanidade, elas são
vistas como corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga” (do qual as mulatas
brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada a
super-exploração sexual das mulheres amefricanas (GONZALEZ, 1988, p.10).
Em um diálogo com Carolina Maria de Jesus, o único movimento, quiçá, que
poderíamos pensar a autora de Quarto de Despejo poderia ser um feminismo afro-latino
americano, não de forma normativa ou querendo encaixar Carolina em algum movimento
mesmo ela não fazendo parte, aqui é apenas uma tentativa de aproximações, pois sua obra é
marcada pela luta contra todas estas opressões nas quais vemos Lélia combatendo em seu
texto. Por mais Carolina tivesse uma visão, em alguns momentos em seu diário, negativa das
mulheres da favela, coisa que faz parecer contraditória: “tenho pavor destas mulheres da
favela (...) A língua delas é como os pés de galinha. Tudo espalha. Está circulando rumor que
eu estou grávida! E eu, não sabia!” (JESUS, 2014, p. 12); “Mesmo elas aborrecendo-me, eu
escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei
formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade” (JESUS, 2014,
p. 13). Isso não quer dizer que seu posicionamento não seja de empatia, na verdade, ela
mantinha mais uma honestidade aos seus princípios e compreensão, e ao mesmo tempo
cuidados por viver em um ambiente tão hostil de não o deixar ainda mais complicado: “Há de
existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais. O
que eu revolta é contra a ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se
espremesse uma laranja” (JESUS, 2014, p. 46).
Carolina tem um código ético severo quanto à sua sobrevivência e as vezes pode
parecer apática aos sofrimentos das mulheres da favela, principalmente das casadas:
(...) Elas tem que mendigar e ainda apanhar (...) A noite quando elas pede socorro eu
tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra
as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres
casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou
descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham
eram horríveis (JESUS,2014, p. 14).
Mas acredito que essa postura é mais lucidez diante da realidade hostil em que vive do que de
fato uma antipatia ao sofrimento destas mulheres, visto que Carolina “manifesta o que sofre
em prol dos outros” (2014, p. 36). As diversas mulheres que perpassam a obra de Carolina, as
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que ela constrói essa imagem são daquelas que ela acredita que são más influências para as
crianças:
... E o pior na favela é o que as crianças presenciam. Todas as crianças da favela
sabe como é o corpo de uma mulher. Porque quando os casais se embriagam brigam,
a mulher, para não apanhar sai para a rua. Quando começa as brigas os favelados
deixam seus afazeres para presenciar os batefundos. De modo que quando a mulher
sai correndo nua é um verdadeiro espetáculo para o Zé Povinho. Depois começam os
comentários entre as crianças (...) Tudo o que é obseno pornográfico o favelado
aprende com rapidez (JESUS, 2014, p. 40-41)
Com certeza podemos pensar em uma imagem negativa que Carolina faz destas
mulheres, mas também uma preocupação gigantesca com a formação das crianças, uma
tentativa de humanizar as pessoas que vivem no espaço onde lhes falta até motivos para viver,
ou segundo a Carolina: “Quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de
uso, digno de estar num quarto de despejo” (2014, p. 37).
Desta forma, cabe-nos uma questão que dizemos que voltaríamos: Carolina é
feminista? Não é o intento deste artigo responder essa pergunta ou encaixar a autora nesse
movimento, por mais que diversas autoras e autores já tenham tentando essa empreita de
colocar Carolina como feminista, ou proto-feminista negra, mas prefiro vê-la por ela mesma
ou em atravessamentos a Lélia Gonzalez, como uma autora amefricana que denúncia o
racismo e machismo ao seu modo de se expressar. Uma autora subversiva e plural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito deste artigo era fazer uma relação entre o feminismo afro-latino americano
de Lélia Gonzalez e suas críticas ao feminismo branco hegemônico com a obra Quarto de
Despejo de Carolina Maria de Jesus. A tentativa era uma breve aproximação do feminismo
proposto por Lélia com a obra de Carolina e algumas ponderações. Amefricanizar Quarto de
Despejo é potencializar diversas características denunciativas e combativas desta obra tão
intrigante e importante da literatura brasileira. Carolina e Lélia viveram décadas diferentes,
mas são atravessadas por condições semelhantes por viverem em um dos países mais racistas
da América Latina.
Concebeu-se a obra de Carolina não como livro feminista ou algo do tipo, mas como
uma obra denunciativa de humanidades negadas e inferiorizadas para a humanização das
mulheres, crianças, idosas que viveram na favela do Canindé. Em meio há um espaço
desumanizador, Carolina escreve e cria: “enquanto escrevo vou pensando que resido num
castelo cor de prata e as luzes de brilhantes (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para
esquecer que estou na favela” (p. 52). Lélia escreveu para denunciar as diversas opressões que
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recaem sobre os corpos pretos e amefricaniza suas existências para potencializar e registrar
suas resistências ao processo do genocídio.
Creio que nossos objetivos foram de certo modo alcançados no quesito de estabelecer
um diálogo entre essas duas grandes pensadoras, elaboração que ainda não tinha sido feito,
para abrirmos novos horizontes e possibilidades de análise da obra de Carolina Maria de
Jesus. Como uma grande obra, é algo aberto e não determinado e assim a gente tem diversas
compreensões e Carolinas também. Remeter a estas duas pensadoras é de extrema relevância
para que cada vez mais tenhamos o ímpeto de denunciar todo projeto de opressão e de
miserabilismo que assola nosso país.
REFERÊNCIAS
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Revista Liteafro, 2018.http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/artigos/teoricos-
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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São
Paulo:Boitempo, 2016.
FERREIRA, Amanda Crispim; MIGLIOZZI, Luiz Carlos Ferreira de Melo. Literatura afro-
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http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491524538.pdf. Acessado em 17 de junho de
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SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável . Rio de
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ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina.In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia
Osana (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
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