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TEM GENTE COM FOME

RESUMO:

Ensaiar é sempre a tentativa de pintar um quadro, seja fazer um auto-retrato de si, seja pintar
outros a parti de si. O que tentarei elaborar nesse breve ensaio será um traço sobre a vida de
uma negra que viveu na favela do Canindé - antiga favela localizada nas margens do rio tiete
em São Paulo e que hoje é o viaduto de tiete, Carolina Maria de Jesus e a sua relação, por
meio da experiência da fome e da pobreza, como produto de sua literatura esboçando assim
um possível pensamento da fome, com o Absurdo e a Revolta; dois sentimentos e noções que
permeiam toda a sua obra Quarto de despejo. Neste traço sobre o Absurdo e a Revolta a partir
da fome e da pobreza, é que iram caber as contribuições do filósofo e literário Albert Camus,
e de alguns pensadores brasileiros, pois este (Camus) teve, assim como Carolina, a
experiência da pobreza e soube despejar tintas policromáticas nos seus ensaios e romances.
Analisarei como a partir da relação conceitual-literária entre Camus e Carolina, é possível
construir um quadro da fome como força cosmológico-ontológica da emergência de um
pensamento da fome que combate a própria fome por meio de recursos filosófico-literários.
Nesse sentido, esfomeados de justiça como Rodolfo Teófilo, Oswald de Andrade, Joel Rufino
dos Santos e Glauber Rocha, serão auxílios operativos para uma dinâmica textual na qual,
Carolina Maria de Jesus, será o ponto nevrálgico da elaboração emergente da fome como
escrita de si, de luta contra a opressão.

AQUÉM: MORTE (CAMUS) E VIDA (CAROLINA)

O diário que foi publicado como livro em 1960, Quarto de Despejo, foi escrito entre
15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960. 1960 foi o ano em que o Jornalista Audálio
Dantas, com o seu ímpeto ingênuo de “mudar o mundo ou pelo menos, a favela do Canindé”
conheceu a “negra Carolina” (2014, p.6). Ele mesmo descreve esse encontro no prefácio da
obra de Carolina:

Repórter, fui encarregado de escrever uma matéria sobre uma favela que se expandia
na beira do rio Tietê, no bairro Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra
Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto
que, na hora, desisti de escrever a reportagem.1

1
Prefácio escrito por Audálio Dantas para a edição de 1993 intitulado; A atualidade do mundo de Carolina. A
edição que utilizo, no entanto, não é de 1993, mas a de 2014 impresso pela editora Ática. Para saber mais ler,
Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favela. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014, p. 6-8.
Esse encontro mudou tanto a vida de Carolina quanto a de Audálio. Para Audálio, “Escritor
nenhum poderia escrever melhor aquela história: a visão de dentro da favela” (2014, p.6). E
foi isso que Carolina lhe ofereceu, uma visão de dentro da miséria da favela e dela como uma
experimentadora daquilo tudo. Através desse encontro, Carolina foi desvelada para o mundo
da literatura brasileira, e Audálio Dantas foi o seu “desvalador.” O livro correu o mundo e foi
traduzido para diversas línguas, vendidos aproximadamente 100 mil exemplares da obra, os
jornais, os rádios e a televisão sensacionalizavam a negra semi-analfabeta que sonhava em ser
uma grande escritora e que havia conseguido o seu breve dia a dia de fama. Muitos literários
da época teciam elogios e vários outros agouros, como descreve Audálio:

Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo


sentido, num bicho estranho que se exibia “como uma excitante curiosidade”. Sobre
o livro escreveram alguns dos melhores escritores brasileiros: Rachel de Queiroz,
Sérgio Milliet, Helena Silveira, Manuel Bandeira, entre outros. O que não impediu
que alguns torcessem o nariz para o livro e até lançassem dúvidas sobre a
autenticidade do texto de Carolina. Aquilo, diziam, só podia ser obra de um
espertalhão, um golpe publicitário.2

Nesta pequena descrição de Audálio só consigo enxergar o racismo e o machismo imbricados


na recepção da mídia brasileira e do mundo literário brasileiro, pois, por ser mulher, negra e
semi-analfabeta, foi totalmente desacreditada de sua obra. Não aconteceria a mesma coisa se
ela fosse... Na verdade, não aconteceu a mesma coisa com algumas contemporâneas suas;
Rachel de Queiroz e Clarisse Lispector, que por mais que fossem mulheres e enfrentassem as
dificuldades de ser mulher num país machista, não carregavam a marca da escravidão na sua
cor. Carolina era mulher, negra, semi-analfabeta e favelada; o perfil do sem-perfil, sem nome,
no Brasil. Fica-nos uma questão, como uma mulher, preta e favelada conseguiu ser ouvida no
Brasil do século XX? Estava atrelada ao movimento negro que na época era insurgente? Na
verdade, não. Carolina não participava de nenhum movimento. O único movimento que ela
participava era o movimento da luta por sobrevivência. Era uma negra em movimento. Como
podia então ser tão lúcida e consciente em meio a tanta miséria e desgraça? Como conseguia
pensar em um lugar onde o pensamento vacila aonde o corpo chegava aos seus limites, que
mesmo com fome escrevia? Essas são algumas das questões que permeiam a vida e o
pensamento do filósofo e literário Albert Camus.

3
Do outro lado do Atlântico entre a “miséria e o sol” encontrava-se o filósofo aqui
supracitado. O ano de 1960 é o ano em questão. No ano em que Carolina explodia para o
mundo e no Brasil, Camus encontrou a morte num acidente de automóvel. Uma vida marcada
2
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favela. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014, p.7.
3
CAMUS, Albert; RUMJANEK, Valerie. O avesso e o direito. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2003.
por uma grande miséria na infância e com um sucesso gigantesco na literatura dos seus 21
anos aos 46 anos. Carolina termina seu diário no dia 1º de janeiro de 1960 com a rotina de sua
vida de Sísifo, “Levantei às 5 da manhã e fui carregar água” (JESUS, 2014, p.191), três dias
depois, do ano que seria o ano que revelaria Carolina para a literatura, morria o vencedor do
prêmio Nobel de 1957, Albert Camus. Tanta coincidência no mundo da literatura e no mundo
da miséria e da fome. A fome faz literatura, a fome faz mundos. 26 de agosto de 1959
escrevia Carolina: “A fome é a pior coisa do mundo” (JESUS, 2014, ibid). Num barraco na
favela do Canindé, onde a escritora se sentia uma estrangeira, vivia Carolina e seus três filhos,
a miséria e a literatura se confundem e se fazem. A fome, grande personagem da vida de
Carolina e que tem até cor, é a falta, a esterilidade sob a qual Carolina redigi seus romances,
sua vida, sua poesia, sua escrivivência.4

Numa França turbulenta, com vários rompimentos e divisões, Camus se sentia um estrangeiro
e fazia a si mesmo buscando e lutando por um mundo onde não exista mais nem carrasco
nem vítima.5 Vida e morte se entrelaçam... Carolina nunca ouvira falar de Albert Camus, mas
vivia o combate entre seu desejo de unidade do mundo e a irracionalidade do mundo:

13 de agosto: Levantei as 6 horas. Estava furiosa com a vida. Com vontade de


chorar, porque eu não tenho dinheiro para comprar pão. (...) Os filhos foram a
escola. Eu saí sozinha. Deixei a Vera porque vai chover. Fui catar estopas e fui catar
papelões. Ganhei 30 cruzeiros. Fiquei triste pensando: o que hei de fazer com 30
cruzeiros? Estou com fome (...) (JESUS, 2014, p. 189).

Vivia o drama da vida no deserto aonde o pensamento chega aos seus limites. Lugar esse
muito conhecido por Camus; o mediterrâneo, a desmedida na medida, onde o desespero tem
que se tornar lúcido para que a vida seja potente e possível. Onde não há esperança, futuro, e
onde o amanhã não existe, pois um dia sobrevivido já é uma vida (CAMUS, 2004, p.130-
141).

Este ensaio tem como objetivo traçar um plano entre alguns conceitos-sentimentos elaborados
por Camus e a escrevivência do Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, tentando
valorizar e mostrar como a escrita de Carolina é uma escrita que visa não interpretar, mas

4
O conceito de escrevivência foi cunhado pela escritora e militante do movimento negro Conceição Evaristo em
1995 a partir das palavras “escrever” e “viver”. Na conclusão de seu texto para um seminário sobre mulheres e
literatura, Conceição Evaristo afirma que a escrevivência das mulheres negras “não é para ninar os filhos da
Casa Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2007, p. 21). Escrevivência tem a
ver, portanto, com autobiografia, com a ideia de “escrita de si”, com o fato de que a subjetividade de qualquer
escritor ou escritora contamina a sua escrita. Para saber mais, ler EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de
minha mãe um dos lugares de nascimento da minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.).
Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2007, p.16-21.
5
Texto de Albert Camus publicado por partes pela revista Combat em 1948.
mostrar, por meio da experiência, a vida na miséria. Mostrar a realidade de vários brasileiros
que é escamoteada no Brasil da Democracia Racial, no país do futebol e do carnaval. É
interessante como Josué de Castro já tinha essa preocupação em 1946 quando escreve
Geografia da Fome:

O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso
que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho,
chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva
capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita
acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Consultando a
bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigüidade. Extrema
quando a pomos em contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas
outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda
mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da
fome — de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. 6

Em 1946/47 Carolina desembarcava na Luz-SP, enquanto o negro pernambucano, Josué de


Castro, publicava o livro que desmascara o Brasil para o mundo; denunciando sua fome, sua
miséria, e ainda colocando um culpado:

O que tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata da pressão modeladora de


forças econômicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre ò homem e sobre o grupo
humano, em última análise, através de um mecanismo biológico: através da
deficiência alimentar que a monocultura impõe, através da fome que o latifúndio
gera, e assim por diante.7

O latifúndio é a fome que devora o povo. Sei que estamos avançando um pouco na reflexão
sobre a fome, mas acredito que ela seja o personagem central deste ensaio. Um personagem
que não falta na vida de milhões e milhões de brasileiro. Durante sua trajetória, Carolina,
também concordará com Josué de Castro:

Diz o brasileiro

Que acabou a escravidão

Mas o colono sua o ano inteiro

E nunca tem um tostão

(...)

Fazendeiro ao fim do mês

Dá um vale de cem mil-réis

Artigo que custa seis

Vende ao colono por dez.8

6
CASTRO, Josué. Geografia da fome : o dilema brasileiro : pão ou aço. — Rio de Janeiro : Edições Antares,
1984, p. 29.
7
IBID
A partir disso, o que se pode dizer que será feito neste ensaio é uma tentativa de refletir sobre
a fome, a pobreza, a miséria, buscando traçar linhas de pensamento com o filósofo Albert
Camus e com outros pensadores brasileiros, para protestar e reivindicar a filosofia e a
literatura, o pensamento, como uma forma de insurgir contra a violenta desigualdade
social/racial em que vive o Brasil. De que serve a filosofia e literatura se não estão a favor da
vida? Se não lutam contra forma de negação da vida? Não nos serve de nada. Por isso coloco-
as no âmbito do engajamento, para que assim sejam combatentes da injustiça. Camus é
imprescindível na composição do texto, pois o autor, no próprio Mito de Sísifo9 estabelece
uma concepção de uma literatura-filosofia contra o destino e contra a injustiça da condição
humana contingente, nascida do sentimento de fragilidade comum da condição humana
(GERMANO, 2012, p 29). Deste modo, o desdobramento do ensaio seguirá uma ordem de
reflexão que partirá da relação entre absurdo e fome, fome e revolta, digressões conceituais
para complementação ou aprofundamento de análises sobre a personagem principal do ensaio,
a fome. Estejamos servidos.

ESCRITA ERRADA? BREVE REFLEXÃO.

Poderão surgir algumas questões sobre este ensaio no tocante a ortografia de Carolina que
vários autores e autoras quando escrevem sobre a literária sempre colocam uma nota de
rodapé explicando que os “erros” são do texto da autora analisada, contudo, não farei a
mesma coisa, pois não considero “erros” alguns supostos erros cometidos por ela no texto.
Sigo a linha da linguística proposta por Marcos Bagno, uma linguística/gramática que rompa
com os preconceitos da língua e compreende que língua é um produto cultural, logo se
desdobra a partir da dinâmica cultural. Carolina não comete erros, mas sim desvios da
ortografia oficial:

Outro modo interessante de romper com o círculo vicioso do preconceito lingüístico


é reavaliar a noção de erro. A noção tradicional (eu diria até folclórica) de erro é que
permite que pessoas como Sacconi escrevam livros absurdos como Não erre mais! e
vendam milhares de exemplares deles. Como vimos na primeira parte do livro, o
Mito 6 expressa a prática milenar de confundir língua em geral com escrita e, mais
reduzidamente ainda, com ortografia oficial. A tal ponto que uma elevada
porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na verdade, mero desvio da
ortografia oficial (BAGNO, 1990, p. 122).

8
CASTRO, Eliana de Moura & MACHADO, Marilia Novais da Mata. Muito bem Carolina! Biografia de
Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte, C/Arte, 2007, p.21.
9
Ensaio de extrema importância para este texto, pois inicia a discussão sobre o absurdo como ponto de partida
para discutir a relevância de se combater as injustiças sofridas pelos desafortunados. Para aprofundamento, ler
CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Tal passagem do livro Preconceito Linguístico (1990) me faz recordar o poema de Oswald de
Andrade, grande poeta modernista brasileiro, Erro de português10:

Erro de português

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

Vejo a possibilidade de interpretar este poema por dois vieses; o poeta satiriza o fato de os
portugueses terem errado o caminho para as Índias, pois acabaram chegando à hoje conhecida
América. Faz uma demonstração clara da relação de poder entre o índio e o português quando
diz que o “português vestiu o índio” e foi uma pena, pois se fosse uma manhã de sol “o índio
teria despido o português”; relação entre dominador e dominado. Se tivesse sido o inverso o
índio que teria despido o português; outra interpretação possível é que fora um erro do
português “vestir” o índio com sua cultura, religião e preconceitos, colonizando-o e
exterminando sua cultura. No fundo as duas interpretações se relacionam e faz com que
reflitamos sobre a língua como uma questão política, de dominação. Por que o tupi não é
nossa língua oficial? Ou o Bantu? Ioruba? Como nos diz Bagno (1999, p.123), a ”ortografia
oficial é fruto de um gesto político, é determinada por decreto, é resultado de negociações e
pressões de toda ordem (geopolíticas, econômicas, ideológicas).”

Não irei me prolongar neste assunto. Só trouxe a reflexão para já deixar enegrecido que não
irei ficar fazendo notas de rodapé justificando os “erros” da autora, pois como já disse, não
considero erros, mas desvios da ortografia oficial, assim como sua vida foi desviada, mas a
literatura lhe restitui um caminho.

ABSURDO: UMA ESCRITA DA FOME

10
ANDRADE, O. In: Faraco & Moura. Língua e Literatura. v.3 São Paulo: Ática, 1995. p. 146-147.
“A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida.”11 Tão antiga quanto a própria
consciência que nos abriga em breves reflexões ensaísticas sobre a existência produtiva
artística. Pensar a fome é pensar um abismo no qual escorregamos e tombamos em baixo de
um lugar indecifrável. É quase pensar brasileiro, já que ela seria nossa maior peculiaridade
filosófica, como já nos descrevia o poeta abapuru, que nos dirá que a “só a antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão
12
mascara de todos os individualismos, de todos os coletivismos.” A antropofagia, o ato de
transforma o tabu em totem, a atividade filosófica de transvalorar a restrição em adoração, é a
nossa expressão reflexiva mais autóctone. Poderia estar exagerando? Não sei ao certo. Só sei
que nossa existência filosófica só faz sentido a partir da fome, que é a nossa história; a
história dos desterrados, dos desapossados que nunca nada possuíram e que vivem o
saqueamento de terras que nos ligam há muito tempo, mas que mesmo assim buscamos
continuamente voltar a tais terras.

A fome é a privação, algo não dito, negado na nossa sociedade que prefere fechar os olhos a
essa imagem tão real do Brasil dos Brasileiros... A Fome (1890) livro escrito pelo baiano de
coração fortalezense, Rodolfo Teófilo, nos faz pensar a condição humana desumanizada pela
fome, na qual ela reduz seres humanos a bichos rastejantes atrás de migalhas.13 Que coisa é
essa que reduz seres humanos a devorados pela fome?! Tão devorados que chegam a comer a
si mesmo; da antropofagia à autofagia. Teria algo de se privar da própria fome comendo-se a
si mesmo? Quando não se tem nada para comer, come-se a si mesmo. A seca tornar seca toda
expressão de vida. A fome é a experiência cosmológico-ontológica que perpassa todo
pensamento que quer viver no país “com pobreza”. O pensamento da fome é o limite que
vários flagelados (as) passaram para encontrar um lugar na luz que irradia do sol de cima para
baixo em que alguns raios que ainda conseguem perpassar a dura camada que escamoteia os
que vivem debaixo dessa camada.

Ditas algumas poucas palavras sobre esse fenômeno, trago-a para entendermos o que seria
esse Absurdo que o filósofo Albert Camus nos incita a pensar. O Absurdo é o tema central de
toda a sua obra o Mito de Sísifo, no qual, o filósofo, tenta analisar o nascimento do absurdo a
partir do mundo da miséria, em que a lógica do Absurdo se desdobra por:

11
CASTRO, Josué. Geografia da fome: o dilema brasileiro : pão ou aço. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984,
p. 11.
12
ANDRADE, O. In: Jorge Schwartz. Oswald de Andrade: Manifesto Antropófago. São Paulo: Abril Educação,
1980, p. 81-83.
13
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p. 62-65.
Reconhecer que tal luta supõe a ausência total de esperança (que nada tem a ver com
o desespero), a recusa contínua (que não deve ser confundida com a renúncia), a
insatisfação consciente (que não se poderia assimilar à inquietude juvenil). Tudo o
que destrói, escamoteia ou desfalca estas exigências (e em primeiro lugar a admissão
que destrói o divórcio) arruína o absurdo e desvaloriza a atitude que pode então ser
proposta.14

O absurdo, por mais que se admita sua existência, é algo que não pode ser admitido, pois,
15
complementa Camus, “o absurdo só tem sentindo na medida em que não seja admitido.”
Por mais que reconheçamos que o absurdo é uma negação, uma privação, ele não deve ser
algo que eu me conforme, que diga “é assim mesmo. Fazer o quê?!”. Tal atitude diante do
absurdo seria não enfrentá-lo, e não encará-lo é negar a injustiça que salta aos nossos olhos. A
partir dessas categorias, Camus, vai analisando quais filósofos/literários atendem e não
atendem a esses critérios. Meu intento aqui não é analisar se a obra da Carolina é uma obra
absurda segundo as noções de Camus, mas sim, de fazer uma comunicação transcultural entre
eles, isto é:

Uma dialogia semiótica, não um diálogo “entre” formações que se pretendam


verdadeiras e estanques, mas a lógica do trans ou vaivém “através” dos limiares do
sentido, não uma filosofia de portas e sim de pontes ou de transição para
correspondências analógicas, que não são necessariamente conciliatórias ou
harmônicas, mas que abrem caminho para novos termos das disputas de sentido.16

No Quarto de Despejo, vejo Carolina, recusando toda a situação em que vive toda a miséria
que assola sua vida: “19 de maio: ... eu estou começando a perder o interesse pela existencia.
Começo a revoltar. E a minha revolta é justa” (JESUS, 2014, p. 35). Essa revolta da Carolina
é a recusa que Camus fala, recusa contínua... Pode nos parecer um tanto paradoxal essa
passagem, pois no momento ela está numa espécie de renúncia, mas depois entra numa
recusa. É uma ambiguidade cortante essa de Carolina.

Joel Rufino dos Santos, literário e historiador brasileiro, escreveu um livro em 2009 sobre
essa autora tão improvável, Carolina Maria: uma escritora improvável; tão improvável que
ele chega a descrevê-la como um fenômeno bovaryano: “O termo bovarismo vem de Mme.
Emma Bovary, personagem de Flaubert (1821-1880), e significa a distância entre o que se
pretende ser e o que se é realmente. Carolina foi um caso de bovarismo pelas letras (...)”
(SANTOS, 2009, p. 29). Retomo essa observação de Joel, não para ficar discorrendo sobre a
14
CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2004.
p. 46.
15
Ibid.
16
Trago o termo utilizado por Muniz Sodré no seu livro Pensar Nagô, no qual ele analisa o sistema de
pensamento presente nos terreiros da nação nagô para demonstrar uma filosofia viva no seu sistema de ver o
mundo. Este termo faz com que não reduzamos a obra de Carolina à de Camus, demonstrando apenas uma
comunicação, não uma assimilação. Para entender mais, ler SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2017, p. 22-23.
personagem Carolina nos diários e a persona Carolina fora dos diários, o mesmo já faz isso
muito bem no seu livro. Tomo essa passagem do livro de Joel para entendermos um pouco
mais sobre a ambiguidade de Carolina. Não só pela passagem acima citada, mas quase por
todo o livro; o preconceito, a violência e tudo mais. Por isso acredito, assim como Joel (2009,
p. 143), que:

Quarto de despejo desfez estereótipos que temos- já que nem tanto hoje- dos
favelados: que são unidos, que não têm preconceitos raciais, que são solidários,
talentosossambistas, cordiais e infelizes. Carolina nos apresenta outra favela: na
Canindé, os favelados são desunidos, preconceituosos, egoístas, medíocres, nem
sempre apreciam batuques, são agressivos – e felizes.

Por mais disso, Carolina exibiu o contrário do que pensamos de fora: os homens, em qualquer
posição social, se parecem mais do que se diferenciam. Rasgou máscaras sociais. E foram
essas máscaras, em geral brancas, que Carolina mostra a verdadeira cara do Brasil:

16 de junho:... eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles me


respondiam:

- É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho
o cabelo de preto mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto
onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça
ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se que é existe reincarnações, eu quero voltar
preta. (...) O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o
branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto,
atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro tambem. A natureza não seleciona
ninguém (JESUS, 2014, p. 64).

Essa parte do diário é uma das mais conhecidas, pois é nela que Carolina assume sua já
assumida pretura. Aonde é desmascarada a falsa democracia racial brasileira; onde a máscara
branca cai e o racismo se desvela em prosa.

REVOLTA E FOME

Muitas digressões foram feitas e alguma digestão pode ter vindo, ou não, pois tal pensamento
é mais indigestivo do que digestivo. A digressão feita foi o processo do vômito. Carolina o
sabe. Pensar “revolta e fome” se apresentam como algo óbvio, algo quase concomitante em
quem sente a falta que investi seu cotidiano. Nesse sentido, ainda fica-nos a questão de início,
“como alguém consegue produzir literatura/pensamento na fome, na miséria, com tanta
lucidez do que ocorre?” Carolina preservará o pensamento lúcido, esse pensamento absurdo
que não é indiferente ao sofrimento, às injustiças, mas, justamente, se revolta contra ele.
Podemos até pensar que nos seus diários era onde ela se refugiava e sentia que estava unida à
um todo maior de esperança, aonde poderia se vingar da miserabilidade que era sua vida
naquele lugar. Uma arrogância que ameaçava seus ameaçadores em colocá-los no seu livro:

19 de julho de 1995: (...) Quando as mulheres feras invade o meu barraco, os meus
filhos lhe joga pedra. Ela diz:

- Que crianças mal iducadas!

Eu digo:

- Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender.
Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo
o que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas
desagradáveis me fornece argumentos (JESUS, 2014, p. 20).

Tanta força literária; sua arma eram as palavras. Enquanto os outros podiam esfaqueá-la, ela
lançava seus punhais de palavras para se proteger. É uma arrogância lúcida essa de Carolina,
pois ela percebe o quanto tais ameaças são perigosas. Conhecia o poder de um livro, das
letras. Seu refúgio eram as letras, os livros... o mundo literário frente ao mundo da miséria; e
esse mundo da miséria é o seu palco literário de onde tira as imagens que constroem seu livro
a partir de si mesma.

A revolta em Carolina é uma revolta que diz Não e diz Sim, ao mesmo tempo. É uma “revolta
justa”, como ela mesma diz. É uma revolta diante do custo de vida, uma revolta diante da
falta:

15 de julho de 1955: Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar


um par de sapatos para ela. Mas o custo de vida dos generos alimentícios nos
impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de
vida. (JESUS, 2014, p.11)

20 de junho de 1958:... Não tinha papeis nas ruas. E eu queria comprar um par de
sapatos para a Vera. (...) Segui catando papel. Ganhei 41 cruzeiros. Fiquei pensando
na Vera, que ia bradar e chorar, porque ela quando não tem o que calçar fica
lamentando que não gosta de ser pobre. Penso: se a miseria revolta até as crianças...
(JESUS, 2014, p. 66).

Da vontade de complementar essa ultima frase e dizer “imagina só a revolta em nós adultos
que temos um pouco mais de consciência.” Para Camus, na sua obra, O Homem Revoltado, “a
consciência nasce da revolta” 17, é a parir da revolta que a percepção da situação em que se
está inserido é conscientizada, e tal consciência se expande com o contato cada vez mais
lúcido da miséria. Segundo Joel Rufino dos Santos, Carolina foi tomando cada vez mais
consciência quanto mais suas experiências sociais se alargaram:

Na sua opinião, a princípio, os males da favela se deviam ao abandono dos políticos.


Mais tarde, conforme sai experiência social aumentou – ela conheceu, por exemplo,

17
CAMUS, Albert. O homem revoltado. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2010, p. 26.
favelas na Argentina, no Chile e no Uruguai – ampliando o vocabulário político,
teve uma compreensão melhor daqueles males. Compreendeu que havia uma razão
econômico-social mais larga e anterior a favela: o latifúndio era o motor da miséria
urbana e só a reforma agrária o desativaria. (...) A escritora passou de uma
consciência comum à histórico-sociológica (SANTOS, 2009, p.136).

A literatura de Carolina é uma expressão de revolta, de protesto contra a condição desumana


em que ela vive, e, logo, mesmo não intencionalmente, denuncia toda uma condição que não é
só a dela, pois o movimento de revolta não é egoísta, pode ter determinações egoístas, no
entanto, toda pessoa que se revolta, revolta-se contra toda forma de mentira, de opressão
(CAMUS, 2010, p. 28). Na Revolta, o ser humano se transcende no outro, e desse ponto de
vista, a solidariedade humana é metafísica, pois, trata-se, por ora, de uma espécie de
solidariedade que nasce nas prisões (CAMUS, 2010, p. 29); que nasce na condenação comum
em que o revoltado vive com outras pessoas e logo busca a libertação de tal situação, isto é, a
revolta está entre (nos) os oprimidos. Aqueles em que é negado falar, se manifestar, em que
são colocadas máscaras de flandres, como na escrava Anastácia, pois, por se negar a ir para a
cama com seu senhor e se manter intocável por ele, apanhou muito e foi sentenciada a usar
uma máscara de ferro por toda a vida18, ou seja, ela disse NÃO. Esse NÃO, a negação, é o
início da revolta; “Que é o homem revoltado? Um homem que diz não” (CAMUS, 2010, p.
25). Mas qual “o significado deste não? ‘As coisas já duraram demais’, ‘até ai, sim’, a partir
daí, não’; ‘assim já é demais’, e ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar.’
Territoralizar a existência para se defender, é o que o povo oprimido faz para poder
sobreviver; territoralizar, colocar limites porque não aguenta mais ser explorado. Foi isso que
Anastácia fez e tantas outras pessoas fizeram (fazem), no entanto, a reação do senhorzinho
mimado que tem tudo não será a de respeito; mas sabemos, revoltosamente, que a revolta não
ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão” (IBID).
Nossa revolta é justa...

A história dos oprimidos no Brasil, que quase sempre foram e são maioria, é a história da
falta, da pobreza, da fome; é a história do genocídio da maioria da população brasileira, os
afro-brasileiros, como nos diz Abdias do Nascimento no seu livro O genocídio do Negro
Brasileiro: processo de um racismo mascarado (1978), “a história não oficial do Brasil
registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro.” É um
genocídio cultural, físico, artístico, de todas as formas. Sistematizado e institucionalizado.
Abdias fala de um genocídio, pois é um extermínio de um povo, não de uma minoria, mas de
uma maioria que é exterminada há mais de cinco séculos nesse país mascarado. Retomo

18
DE JESUS, J. A Máscara. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 16, 10 maio 2016.
Abdias, brevemente, para nos dá um estalo do que estamos analisando, de que forma alguma é
imparcial, pois, como negro brasileiro, tenho a obrigação de denunciar o racismo que destrói
vidas cotidianamente. Carolina o desmascara na sua literatura... Não apenas ela, mas vários
autores e autoras negras fazem isso ao escrever nas margens da literatura, dentro e fora dela,
como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Lima Barreto, Conceição Evaristo, e tantos outros
e outras.

Eduardo de Assis Duarte auxilia na reflexão, quando no seu texto sobre literatura afro-
brasileira, Por um conceito de literatura afro-brasileira19, tenta ajudar de forma conceitual-
operativa na compreensão sobre o que é seria uma literatura afro-brasileira, e conclui:

Literatura Afro-brasileira: processo, devir. Além de segmento ou linhagem,


componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo “dentro e fora”
da literatura brasileira, como já defendia, na década de 1980, Octavio Ianni (1988,
p.208). Uma produção que implica, evidentemente, re-direcionamentos recepcionais
e suplementos de sentido à história literária estabelecida. Uma produção que está
dentro porque se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas e
processos de expressão. Mas que está fora porque, entre outros fatores, não se
enquadra no ideal romântico de instituir o advento do espírito nacional. Uma
literatura empenhada, sim, mas num projeto suplementar (no sentido derridiano) ao
da literatura brasileira canônica: o de edificar uma escritura que seja não apenas a
expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que a
ponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização.
Daí seu caráter muitas vezes marginal, porque fundado na diferença que questiona e
abala a trajetória progressiva e linear de nossa história literária (DUARTE, p.15,
grifos do autor).

Por mais que seja tentador entrar nessa discussão sobre a literatura afro-brasileira, não
adentrarei agora, pois creio que é um debate profundo que merece mais linhas, visto sua
importância. No entanto, trago rapidamente essa discussão, para que se entenda onde estamos
traçando linhas, pois Carolina Maria de Jesus é considera uma escritora afro-brasileira, então,
é imprescindível tocar no assunto. E mais ainda, como a literatura afro-brasileira é uma
literatura que pensa o sujeito negro, além de enunciador, protagonista, um sujeito que utiliza a
literatura para se humanizar; “já que à literatura cabe nos recordar, todo o tempo, que somos
humanos. O seu exercício tem o dom de nos fazer mais humanos (...). E, como não podemos
ser mais que humanos, o destino da literatura é trágico: ela lutará sempre contras as tentativas
de nos desumanizar” (SANTOS, 2009, p. 25). A literatura afro-brasileira é a resposta ao
processo de desumanização dos negros e negras brasileiros, é a afirmação de sua existência;

19
Uma versão reduzida desse texto está publicada em Estudos de literatura brasileira contemporânea, Nº 31.
Brasília, UnB, janeiro/ junho de 2008. A presente versão encontra-se também em DUARTE, E. A. e FONSECA,
M. N. S. (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011,
vol. 4: História, teoria, polêmica.
protesto contínuo de afirmação. Por isso a fome/falta, será o que nunca nos conformaremos;
ela é o indício de que querem nos matar, e a literatura a evidência de que queremos viver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ESTÉTICA DA FOME.

Tem gente com fome


Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
(...)
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome 
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

(Cantares ao meu povo (1981), Solano Trindade)

Considerei esse breve ensaio como um esforço literário-filosófico de demonstrar uma relação
possível entre Carolina Maria de Jesus e Albert Camus, contudo, esse era apenas o
direcionamento conceitual, pois o ensaio ensaia outros horizontes reflexivos além da própria
obra da Carolina e das noções camusianas de absurdo e revolta. No fundo, o que tentei
explanar nesse texto foi um pensamento da fome que surge de uma estética/literatura que
emerge num âmbito estéril, onde a falta e a necessidade devoram o sujeito. Digo estética da
fome, no sentido de Glauber Rocha – grande cineasta baiano expoente do cinema novo dos
anos 50 aos 80, quando apresenta uma tese (manifesto) intitulada, Uma Estética da Fome,
sobre o cinema novo num evento que ocorre em Gênova no ano de 1965, com o tema Cinema
Latino-Americano. O pequeno texto deslindado por Glauber trata da temática central do
cinema brasileiro, a fome. Para ele,

A fome latina, por isto, não é somente um sistema alarmante: é o nervo da sua
própria sociedade. Aí que reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do
cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta
fome, sendo sentida, não é compreendida (ROCHA, 1965, p. 2).

Assim, Glauber Rocha demonstra que;


De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou,
analisou, excitou os tema da fome: personagens comendo terra, personagens
matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias,
escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o
miserabilismo hoje tão condenado pelo Governo do Estado da Guanabara (...), pela
crítica a serviço dos interesses oficiais, pelos produtores e público- este não
suportando as imagens da própria miséria (IBID).

O miserabilismo da sociedade brasileira é o que todos querem esconder, colocar pra debaixo
do tapete, ou melhor, despejando no quarto de despejo, pois, segundo Carolina (2014, p. 195),
“(...) é por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os
pobres, somos os trastes velhos”, o lugar onde é despejado tudo aquilo que é considero pelo
Estado como lixo, como descartável, inútil:

...As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos
que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou
na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de
sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso,
digno de estar num quatro de despejo (JESUS, 2014, 19 de maio, p 37).

O cinema novo e a obra de Carolina, ambos nas mesmas ocasiões temporais, isto é, 1960,
denunciam a fome vivenciada por inúmeros brasileiros; “Nós compreendemos esta fome que
o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo
tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de
dizer isto; e sobretudo, não sabe de onde vem esta fome” (ROCHA, 1965, p.2). Fome esta que
Carolina compreendera muito bem e protestava contra: “13 de maio: E assim no dia 13 de
maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014, p. 32). Fome que
ela sentia e entendia perfeitamente:

27 de maio... Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não
catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome
é pior do que a do alcoo. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos
faz temer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago. Comecei a sentir a
boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando nasci o
destino marcou-me para passar fome (JESUS, 2014, p. 44).

O destino, a desigualdade social brasileira, destinou vários a fome, a miséria. O pensamento


da fome é um manifesto contra a própria fome, pois o assume para superá-lo. Uma estética da
fome, segundo Glauber Rocha (1965, p. 2), “é uma cultura da fome, minando suas próprias
estruturas, pode superar-se qualitativamente e a mais nobre manifestação cultural da fome é a
violência,” pois o comportamento exato de um faminto é violência e a resposta que ele pode
dá é também violência, contudo, tal violência é revolucionária, fazendo com que o opressor
compreenda, pelo o horror, a força dos corpos (cultura) que ele oprimi. Glauber utilizou o
cinema como esta arma revolucionária que demonstra a violência sofrida por quem é
atravessado pela fome, e Carolina utilizou a literatura para combater e compreender que há na
fome um processo de educação, “10 de maio: ... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa
que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no
próximo, e nas crianças” (JESUS, 2014. p. 29). Tal passagem está além de uma educação pela
fome, pois parte de uma estética para uma ética da fome, uma moral que leva a não aceitação
da injustiça. A fome em Carolina é um paradigma ético. Isso faz com que compreendemos em
Carolina, assim como Camus, Glauber Rocha, que a não aceitação do absurdo é um princípio
ético. A política da fome é uma existência no nosso país, e seu combate é a nossa
responsabilidade ética.

Acredito que vários percursos foram tomados nessa discussão, uma discussão que ainda tem
muito ao que se aprimorar. Este ensaio é um croqui de uma reflexão muito maior que ainda
está se redigindo, fazendo-se a si mesmo como pensamento da fome para protestar a fome
brasileira e mundial. A ousadia de falar de um pensamento da fome é a aventura de pensarmos
nos limites que temos, na revolta que devemos ter diante da fome. Uma fome que tem cor que
ataca um grupo que tem a cor mais escura, “eu sou negra a fome é amarela e dói muito.” Por
isso a emergência desse pensamento. Carolina Maria de Jesus é o seu expoente em prosa
latente.

20 de maio:... Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade.


Quem não conhece a fome há de dizer: “Quem escreve isto é louco”. Mas quem
passa fome há de dizer:

- Muito bem, Carolina. Os generos alimenticios deve ser ao alcance de todos.

Como é horrível ver um filho comer e perguntar: “Tem mais? Esta palavra “tem
mais” fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem
mais. (...) os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte
quando vê o seu povo oprimido (JESUS, 2014, p. 38).

A poetisa do povo, a que traz para si a responsabilidade de vociferar por aqueles que são
silenciados. Grito, logo existo... Carolina grita pra que seja ouvida, não é um grito de socorro,
mas sim um grito de protesto. Um grito que sai dos soterramentos em que viveu... Grito que
se afirma pela literatura. E por mais que duvidassem de seu grito, ela gritava mais alto para
dizer, “... Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as
miserias são reais” (JESUS, 2014, 29/5, p. 46). Seu grito demonstra o miserabilismo dos
favelados... Um pensamento que afirma para negar.

REFERÊNCIA
ANDRADE, O. In: Faraco & Moura. Língua e Literatura. v.3 São Paulo: Ática, 1995, p. 146-
147.

ANDRADE, O. In: Jorge Schwartz. Oswald de Andrade: Manifesto Antropófago. São Paulo:
Abril Educação, 1980, p. 81-83.

CAMUS, Albert; RUMJANEK, Valerie. O avesso e o direito. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 2003.

______ O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record,
2004.

______O homem revoltado. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2010.

CASTRO, Josué. Geografia da fome: o dilema brasileiro : pão ou aço. — Rio de Janeiro:
Edições Antares, 1984.

CASTRO, Eliana de Moura & MACHADO, Marilia Novais da Mata. Muito bem Carolina!
Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte, C/Arte, 2007.
DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. S. (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
DE JESUS, J. A Máscara. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 16, 10 maio 2016.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento da


minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas
brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p.16-
21.

GERMANO, Emanuel Ricardo. A dimensão ética da revolta em Albert Camus: Filosofia


Política, e arte. Fortaleza: EDUFC, 2012.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favela. 10 ed. São Paulo: Ática,
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ROCHA, Glauber. Estética da Fome 65; in ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo.
Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004, pp. 63-67.
SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

SOLANO TRINDADE, Francisco. Cantares ao meu povo. São Paulo: Editora Brasiliense,
1981, p. 34-5.
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.

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