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Pesquisa revela troca de cartas em tupi entre indígenas

do século 17
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October 28, 2021

Por Juliana Alves

Fotomontagem de Lívia Magalhães com imagens de Patrick Raynaud/APIB e Eduardo


Navarro/Arquivo

A história é escrita pelos vencedores. No caso brasileiro, primeiro foram os portugueses


e, depois, os holandeses. Documentos que contam a história brasileira pela perspectiva
dos que foram vencidos – os povos originários – são raros. O professor Eduardo
Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP,
especialista em tupi antigo e em literatura do Brasil colonial, mostra uma dessas
exceções. Navarro pesquisou seis cartas trocadas entre indígenas em 1645, os únicos
textos conhecidos que os próprios indígenas escreveram em tupi nos tempos coloniais.
Essas cartas estão guardadas nos arquivos da Real Biblioteca de Haia, na Holanda, e
detalham uma guerra religiosa travada entre portugueses e holandeses, com a presença
de indígenas em cada lado, conhecida como Insurreição Pernambucana (1645-1654).

O professor explica que essas seis cartas pertenciam ao arquivo da Companhia das
Índias Ocidentais, uma empresa de comércio com capitais privados e também capitais
do Estado holandês. Essa companhia organizou uma invasão do Nordeste brasileiro em
1625, que não foi bem-sucedida. Os integrantes da companhia voltaram para o país
europeu com alguns indígenas a bordo, entre eles os caciques Pedro Poti e Antônio
Paraopeba. Na Holanda, os caciques foram convertidos ao protestantismo calvinista.
Cinco anos depois, houve outra tentativa de invadir a costa do Nordeste. E dessa vez
deu certo, principalmente, em Pernambuco, onde os holandeses permaneceram por 24
anos, desde 1630 até 1654.

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Carta de Felipe Camarão a Pedro Poti, de 19 de agosto de 1645 – Foto: Arquivo de Eduardo
Navarro

“E por que Portugal deixou a Holanda invadir o seu território?”, provoca Navarro. Ele
relata que, em 1645, fazia cinco anos que Portugal tinha saído do domínio espanhol e,
para firmar sua independência, era necessário obter apoio dos holandeses. Essa aliança
foi consolidada pelo padre Antônio Vieira, que também era diplomata. Ele escreveu o
plano Papel Forte, que consistia em entregar o Nordeste brasileiro em troca de apoio
político. Já os senhores de engenho não queriam a presença dos holandeses, pois
muitos estavam endividados com a Companhia das Índias Ocidentais. Queriam que os
holandeses fossem embora, para não pagar suas dívidas. Nesse período, o conde
Maurício de Nassau foi quem administrou Pernambuco e conseguiu apaziguar os
conflitos religiosos e dos senhores de engenho. Ele criou um ambiente de tolerância
religiosa, numa época em que em território português era obrigatório o catolicismo e as
outras religiões eram consideradas heresia.

Carta de de Felipe Camarão a Antônio Paraopeba, de 4 de outubro de 1645 – Fotos: Arquivo


de Eduardo Navarro

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Quando Nassau voltou para a Europa, em 1644, começaram a acontecer conflitos
religiosos. Jacob Rabbi, um alemão a serviço do governo holandês, provocou um
massacre em Cunhaú, no Rio Grande do Norte. As portas da Igreja de Nossa Senhora
das Candeias foram trancadas e dezenas de fiéis foram mortos. Esse foi o estopim para
a Insurreição Pernambucana.

Navarro descreve que, do lado holandês, ficaram Pedro Poti e Antônio Paraopeba,
indígenas protestantes, e, do lado português, Felipe Camarão, indígena católico, que
pedia a seus parentes Poti e Paraopeba que voltassem para o lado português. “Esses
pedidos estão nas cartas, todas de 1645: a primeira é de agosto e as últimas são de
outubro. Foram preservadas seis cartas, mas imagino que deve haver mais”, destaca o
professor. Ele conta que a primeira carta de que há registro é de Felipe Camarão,
pedindo para que Pedro Poti deixasse os holandeses, sob a alegação de que eram
hereges e “estão no fogo do diabo”. Camarão escrevia que os indígenas precisavam se
unir, pois eram do mesmo sangue e não podiam se matar daquela maneira. A resposta
do Poti é conhecida através de um resumo em holandês feito por um pastor holandês.
“Poti respondeu que não havia motivo para apoiar os portugueses, já que eles só fizeram
mal para seu povo: escravizaram e praticaram violência contra os potiguaras. Uma crítica
bem contundente”, ressalta Navarro. Diferentes dos holandeses, os portugueses não
preservaram as cartas dos indígenas, entre elas a resposta de Poti. “Por isso só é
possível ver as cartas que os holandeses receberam”, lamenta o professor.

Carta de Felipe Camarão a Pedro Poti, de 4 de outubro de 1645 – Fotos: Arquivo de Eduardo
Navarro

O conteúdo das cartas é constituído por textos sobre indígenas que desejam que seus
parentes se unam, que abandonem as suas posições na guerra e parem de matar os
seus parentes. Há comentários em que eles pedem que suas antigas tradições sejam
revigoradas. Por meio das cartas, obtêm-se também informações mais específicas, como
os nomes dos caciques que morreram na guerra e os lugares em que eles lutaram.

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Carta de Diogo da Costa a Pedro Poti, de 17 de outubro de 1645 – Fotos: Arquivo de Eduardo
Navarro

Pelo fato de as cartas serem escritas pelos próprios indígenas, pode-se observar como
era a língua efetivamente falada e usada por eles, de acordo com Navarro. Assim, as
cartas também são consideradas provas de que os missionários descreveram a língua
corretamente. Como conta o professor, há estudiosos que dizem que os missionários
jesuítas teriam adaptado a língua aos seus interesses. Entretanto, não foi isso o que
aconteceu. “As cartas comprovam que missionários escreveram exatamente aquilo que
os indígenas falavam.”

Antes de Navarro, houve algumas tentativas de traduções das cartas. Uma delas foi feita
pelo engenheiro Teodoro Sampaio, que recebeu as cartas pelo historiador José Hygino
Duarte Pereira, que foi quem as descobriu, em 1885. O engenheiro confessa, em seu
artigo Cartas tupis dos Camarões (1908), que até conseguia reconhecer o assunto das
cartas, mas não conseguia traduzi-las efetivamente. Eram “verdadeiros mistérios”.
Ninguém mais tentou traduzi-las até a década de 1990, quando o professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Aryon Rodrigues foi à Holanda buscar
essas cartas. Não conseguiu traduzi-las e mostrou-as a Navarro. “Eu pedi para a
biblioteca na Holanda e elas chegaram em microfilmes. E percebi que ninguém
conseguia traduzi-las porque não havia dicionário em tupi antigo. Eu tive que elaborar
um dicionário para depois traduzir as cartas”, explica Navarro. Após publicar Dicionário
de Tupi Antigo: a Língua Indígena Clássica do Brasil (2013), Navarro começou a analisar
as seis cartas de forma mais intensa.

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Carta de Diogo Pinheiro Camarão a Pedro Poti, de 21 de outubro de 1645 – Fotos: Arquivo de
Eduardo Navarro

“São os primeiros e os únicos documentos escritos pelos próprios indígenas até a


Independência do Brasil. É muito raro ter algo escrito pelos indígenas que tenha sido
preservado. Esse é o verdadeiro valor dessas cartas”, destaca Navarro. Com esses
“documentos preciosos”, de acordo com Navarro, observa-se também os rumos da
guerra. As cartas mostram o movimento dos exércitos, aspectos da cultura dos indígenas
potiguaras e certa tristeza por terem perdido sua cultura tradicional.

Carta de Diogo Pinheiro Camarão aos capitães Baltazar Araberana, Gaspar Cararu, Pedro
Valadina e Jandaia, de 21 de outubro de 1645 – Fotos: Arquivo de Eduardo Navarro

“Esse trabalho me alegra muito”, comenta Navarro. Ele afirma que há duas razões para
essa alegria. A primeira é que a pesquisa é uma contribuição para a cultura brasileira. A
segunda é que as cartas auxiliam no ensino. O professor conta que desde 2001 ensina
tupi para um grupo de indígenas potiguaras, na Paraíba, que tinham deixado de falar sua
língua e hoje buscam uma afirmação da sua identidade e querem aprender a língua.

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A pesquisa do professor Navarro será publicada no Boletim do Museu Paraense Emílio
Goeldi, de Belém, no Pará.

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