Você está na página 1de 12

II

o Estado Visto Pela Lente Regional


José Batista Neto·

"O que é deeisivo na tomada de decisões políticas não é o que ocorre antes
ou adiante do Estado. É o que ocorre no seio do Estado"
(Nicos Poulantzas)

A análise do processo de intervenção do Estado nas diversas porções do


espaço nacional está em pauta porque há lacunas na Historiografia a ser
preenchidas. Há lugar para toda uma produção na linha da recuperação
histórica da relação Estado e região.
O encaminhamento de abordagem do lugar da questão regional constitui
um rico Iilão a ser explorado. Por esse filão deve dar-se um desfiar de pesqui-
sas de interesse para a compreensão do processo de ocupaçã%rganização do
espaço nacional. Nessa linha encontra-se, por exemplo, o dcslindar da rela-
ção do Estado brasileiro com o sem i-árido nordestino e, sobretudo, a apre-
ensão das bases epistemológicas sobre as quais é construída a intervenção do
Estado na região, em determinadas etapas do processo histórico brasileiro.
Enfrentar a questão região a partir da relação Estado-semi-árido
nordestino é como tatear em superfícies desconhecidas, pois de todo novas.
É, também, se confrontar com explicações consagradas. Explicações que
costumam privilegiar o úmido sobre o sem i-árido, o litoral/mata sobre o
sertão.
O lugar escolhido para análise aqui desenvolvida, coloca a perspectiva
de frente para o sertão e de costa para o litoral, reescrevendo a história de
"dentro para fora", dando voz a uma porção espacial regional que só tem
visitado as discussões sob a ótica da negatividade. Algo como scmi-árido,
região-problema.
Inegavelmente, não se está só diante de um tema pouco trabalhado
mas, também, de uma questão importante para a compreensão da história da
política regional gostada no interior do Estado brasileiro ao longo do tempo.
Aqui, arrisca-se com o novo. Arrisca-se com a "insegurança" só confc-
rida à criação acadêmica quando esta se confronta com o consagrado. Vive-se
li o risco de, sendo original, ser somente a reconstrução de velhas abordagens.

• Mestre em História pela UFPE, onde leciona. Atua também no ensino de 1° e 2° graus e
dirige o Centro de Desenvolvimento de Pessoal da Secretaria de Educação e Cultura da
Prefeitura do Recife. Publicou artigos nas revistas, Agreste, Tópicos Educacionais e na
coletânea Recife: que Ilislória é esta?

\
-

y
-.

Basicamente, arrisca-se numa teorização que conduza a uma assim as contradições sociais geradas, em princípio, pela divisão do
compreensão totalizante da questão da intervenção do Estado na região serni- trabalho. Isto porque o exercício da dominação aponta para a necessidade de
árida, cujo mote lançado é o entendimento da criação e da ação da Inspeção reprodução das relações sociais vigentes e, para isso, toma-se fundamental
de Secas entre 1909 e 1934. ocultar no interior do Estado o conteúdo c1assista dessas mesmas relações e
O enfoque tcórico-metodológico privilegiado tenta apreender a realidade do próprio Estado.
do semi-árido nordestino do ponto de vista do Estado - sua constituição e Assim, se de um lado, o Estado é o lugar privilegiado que organiza e
sua intervenção na sociedade. Tal perspectiva implica considerar, de forma unifica interesses privados de classe, de outro lado, é, por sua ação, que as
prévia, a existência de uma divisão do trabalho na região scmi-árida. Ao que classes dominadas permanecem divididas e politicamente desorganizadas. Isto
se sabe, na ordem social vigente na região scmi-árida durante a I República porque é dentro do Estado que são reproduzidas as condições de existência da
configura-se uma distribuição, quantitativa e qualitativamente, desigual do sociedade, cujo conteúdo fragmentado já é dado, anteriormente, pela divisão
produto. A existência da desigualdade social manifesta-se sob a forma de do trabalho. Ou seja, é no Estado que se produzem as condições de
como alguns homens dispõem da força de trabalho de outros homens e na reprodução da divisão do trabalho na sociedade.
apropriação do produto do trabalho por uma classe proprietária do capital. A questão do Estado está, então, diante de uma evidência: há pelo
Esta apropriação, por sua vez, acarreta contradições sociais fundamentais. menos duas formas contraditórias e complementares sob as quais ele existe.
Em sociedade, a presença da contradição traduz-se, de ordinário, em conflitos, O Estado enquanto materialidade e enquanto aparência/representação. Sob a
que é elemento do conteúdo mesmo das sociedades capitalistas. A luta primeira forma ele é território de conflito social entre as classes sociais. Sob
política que se abre encontra expressão nos diversos interesses que habitam a a segunda, expressão de interesses particulares como interesses gerais de
ordem social: interesses individuais e interesses coletivos de todos os modo a recobrir todo o conflito social.
indivíduos. No caso em questão - intervenção do Estado no sem i-árido - os confli-
A contradição entre essas duas formas de interesse, que se funda na tos que estão no interior do Estado se desdobram. Eles existem tanto entre as
própria divisão social do trabalho, toma conta de toda a sociedade, classes de uma mesma região quanto entre classes de regiões diversas. É
instaurando uma luta efetiva entre classes pela dominação. O exercício da inconsistente teoricamente analisar a intervenção estatal sem considerar os
dominação está com a classe que detém o capital, isto porque os interesses conflitos de classes nos seus diversos níveis. Isto porque, "quanto às deter-
dominantes são, em cada época, os interesses da classe dominante. Ocorre minações da atuação do Estado, as relações entre classes são fundamentais,,2.
que, se a luta for aberta e frontal, isto é, sem mediações de qualquer tipo, as Além do que, "o Estado é propriamente constituído pelas contradições de
estruturas de produção de classe e poder têm a sua existência e reprodução classe que, sob forma específica tornam-se contradições internas a ele .. :,3
ameaçadas. Daí a necessidade do controle e da intervenção política de um Por outro lado, os estudos da intervenção estatal nas regiões não podem
"ilusório interesse "geral" como Estado". (.. .) a luta prática destes interesses perder de vista a perspectiva do nacional, na medida que uma região é parte
particulares, que constantemente e de modo geral chocam-se com os de um todo, que a ele se integra de forma diferenciada de outras regiões, mas
interesses coletivos e ilusoriamente tidos como coletivos, torna necessários combinada com as demais. Desse modo, a compreensão do regional só é
o controle e a intervenção prática do ilusório interesse - "geral" como possível a partir dos marcos de um referente nacional. Pois, assim como "a
Estado"}, Desse modo, a intervenção do Estado é algo fundamental para a região não existe por si mesma", a sua explicação necessita extrapolar os
produção do capital e para a reprodução das relações sociais. O que implica limites territoriais que a demarcam.
dizer que o Estado apesar de operar dentro de relativa autonomia, porque ao A existência de diferenciais regionais e classistas é que exige a
III intervenção do Estado nas regiões. A finalidade é: dar solução aos conflitos,
intervir gera interesses especifícos - interesses estatais -, atua sempre sobre
uma base social real de conteúdo c1assista e dessa base não corta laços. tomando como pressuposto a produção da reprodução das relações sociais.
O conteúdo c1assista do Estado faz com que esse se torne o lugar Tal pressuposto exige, por sua vez, a constituição de aparelhos cujos
privilegiado onde as classes dominantes fazem seus interesses particulares objetivos são: dirigir e viabilizar a intervenção. Ocorre que, como o Estado
I ganhar aparência de interesses coletivos, isto é, de toda a sociedade, soldando

II
,
1 MARX. K. e ENGELS. F. - A ideologia alemã. S. Paulo. Grijalbo. 1977. p. 48.
2 MACllADO, Lia Zanoua _ Estado, escola e ideologia. S. Paulo. Brasiliense. 1983. p. 7.
3 MARX. K. e ENGELS, F. q op. cit. p.

123
122
III

l~l ~
traz na sua interioridade um forte conteúdo c1assista, porque materializa os IOCS/IFOCS: intervenção planejada do estado
interesses da classe dominante com predominância sobre os demais com que
estes se conflituarn, é necessário recobrir aquele conteúdo de modo a É evidente que o Estado está prenhe daquilo que é o conteúdo das
assegurar a reprodução da dominação. Assim, para recobrir os conflitos sociedades capitalistas: as contradições sociais. Por isso, no Brasil, as
sociais e o caráter classista da sua intervenção, o Estado procura apresentar- diversas intervenções estatais nas regiões não ocorrem livres de conflitos,
se como expressão/representação de interesses gerais, embora sejam os Afinal, aquelas são uma decorrência direta destes, que se evidenciam quer
interesses particulares de classe que efetivamente pratique. Esta é a segunda entre classes, quer entre regiões. De modo que o princípio que se advoga aqui
forma - aparência/representação - sob a qual o Estado se expressa. é o da anterioridade do conflito sobre a intervenção estatal. Ou seja, a
No caso do Estado brasileiro há espccificidades que tornam difícil o intervenção não se antecipa à existência de conflitos, mas é sobre estes que
emprego de modelos clássicos de intervenção estatal. No Brasil a oposição ela se dá.
Estado-sociedade civil não é tão nítida, particularmente na I República. Aqui No caso aqui tratado, diversos níveis de conflito estão presentes. Po-
não há um Estado ausente da economia, deixando-a ao jogo livre da socie- rém, bem mais forte é a natureza inter-regional. O nível de desenvolvimento
dade civil. No lugar disso, o que há é uma interferência estatal quase total, do capitalismo no país durante a J! República não havia criado uma
que articula tudo - classes, economias, regiões - e que se esforça por regula- diferenciação de formas de capital de tal modo que pudesse separá-Ias em seg-
montar as relações sociais. Até porque no Brasil não se pode colocar o mentos distintos com espaços próprios. Tal quadro implica na impossibi-
Estado à parte. As classes - dominantes e dominadas das diversas regiões- lidade real de organização de forças sociais que representem interesses scto-
vivem reivindicando, ao longo da história republicana um Estado intcrvcn- riais da economia. No lugar de tais interesses emergem os interesses gerais
cionista. Desse modo, o Estado entrecruza-se com a sociedade civil e esta da região, que são na verdade a transposição ideológica de interesses indi-
com aquele. viduais de classe. Isto porque, "o geral é de fato a forma ilusória da coieüvi-
O Estado no Brasil apresenta espccificidades ainda, porque a intervenção dade"> Isto indica a existência de antagonismos interregionais muito mais
estatal ocorre num período da história republicana - 1889/1930 - em que significativos que os interclasses. A luta do sem i-árido pela intervenção do
predomina o não-intervencionismo na relação do Estado com as diversas Estado é a luta entre regiões e não entre formas nominais do capital.
regiões. Mas que tipo de intervencionismo? Aquele que unifica no interior O encaminhamento da intervenção não ocorre, como só é de ser, ao
do Estado as contradições entre classes, para que se estendam espacialmente sabor da região que a demanda: a sem i-árida. Tampouco ocorre como uma
os pressupostos da produção e reprodução do capital sob a presidência de um mera extensão dos interesses das classes dominantes a nível nacional. A
único processo: o da acumulação de capital. "Essa idéia de Estado unitário é intervenção é produto de uma correlação de forças sociais que atuam na
essencial para que se tenha uma visão integradora do processo social, sociedade e no Estado. O que ocorre é que as classes dominantes da região
permitindo que se compreenda como a acumulação do capital se realiza a dominante - a sudcstina - respondem politicamente às pressões regionais,
ritmos distintos e complementares e como a reprodução deste processo mas toma para si a direção política do processo intervencionista. Ou seja, a
implica efetivamente na mudança e submissão das formas de, produção intervenção, mesmo representando um ganho das classes dominantes da
- tradicionais e não no reforço de relações historicamente superadas+. Isto é, o região dominada, mantém-se sob o restrito controle das classes que detêm a
Estado integra regiões distintas que passam a cumprir funções diversas e hegemonia a nível nacional. Isto porque a definição política pela intervenção
próprias à formação social de cada região. Por isso, pode falar-se numa é parte de um todo e a síntese do todo é feita sob a égidc da dominação da
intervenção estatal específica para cada região sem perder de vista, contudo, região sudeste sobre as demais, tendo por princípio sobre o qual se funda a
que a acumulação capitalista é o referente nacional que preside o processo dominação, o desenvolvimento desigual e combinado. Tal princípio é que
intcrvcncionista. norteia a intervenção estatal e que institui os limites e contornos dentro dos
quais a política regional do Estado se constrói. Por ele, efetiva-se a
modernização das relações entre Estado e região scmi-árida, que é feita sob os
marcos de um conteúdo conservador. A necessidade de modernizar de forma

4 MARTL'iS, P. Ilenrique N. - "Estado burgês e a natureza do planejamento no Nordeste" in


Capítulos de Geografia do Nordeste. Recife. UGI. 1982. P: 75, 5 MARX, K, e ENGELS, r. - op, cit, p. 49.

124 125
conservadora é explicada pela tendência predominante que emerge da Por outro lado, quando se caracterizam as formas de intervenção do Es-
correlação de forças sociais que habitam o interior do Estado e da região onde tado no econômico da região, anteriores à SUDENE, como não-planejadas,
OCorre a intervenção. Assim é que, visando intervir no conflito inter-regional porque o que fizeram foi reiterar as relações de produção já existentes, o que
sem produzir alterações na composição do poder, a intervenção estatal renasce com toda força é a visão dualista do desenvolvimento regional. Algo
encaminha-se para tomar forma de intervenção planejada. como fez o Estado no SE, o que não fez no NE. Ou seja, no SE a inter-
A criação da rOCSIIFOCS pode ser tomada como o marco inicial da venção estatal se deu no sentido da modernização das relações de produção, de
ação planejada do Estado para o semi-árido a nível da economia e da política forma a conduzir o processo à submissão ao capital, enquanto no NE o que
regionais. Daí, então, cabe fazer perguntas. É possível falar em houve foi a reiteração de formas "arcaicas" não-capitalistas". Ocorre que o
planejamento estatal na r República? Por que a rOCSIIFOCS significa o que houve para o scmi-árido foi o mesmo processo de subordinação da região
início da ação planejada? Que espécie de ação planejada executa a rocs / ao capital ocorrido no SE. Só que por formas diferenciadas. O que se assiste
IFOCS? Que discordância a afirmação inicial estabelece com abordagens na Ia República, no tocante à intervenção do Estado no sem i-árido, é a
coneagradas, como a de Francisco de Oliveira, que percebem somente na inauguração da ação planejada regendo relação Estado-região, cuja finalidade é
criação da Sudene a inauguração do padrão planejado? a introdução da dominação econômica política do capital sobre a região. De
Para responder a essas perguntas partir-se-à de uma exposição da visão modo que a política de planejamento implantada pela IOCSIIFOCS passa a
de F. de Oliveira sobre planejamento para em seguida polemizar com ela. agir como instrumento político para a subordinação do scrni-árido ao capital,
Segundo Oliveira, a emergência do padrão planejado ocorre a partir do final determinando o caráter, ao mesmo tempo que modcrnizantc, conservador da
dos anos 40 dentro de uma crise regional. A solução de tal crise é intervenção. Tal modernização, que a IOCSIIFOCS agencia, tem por
encaminhada pela via estatal e corporifica-se na SUDENE. Esssa afirmação objetivo precípuo: integrar o sem i-árido ao Estado-nação, tornando-o porção
111 parte de um determinado conceito de planejamento que se define como "uma espacial complementar e subordinado à região hegemônica - o Sudeste -,
forma transformada do conflito social e sua adoção pelo Estado em relacio- obedecendo aos princípios da concentração e acumulação capitalista.
namento com a sociedade é, antes de tudo, um indicador de tensão daquele O exame da expansão capitalista sobre o país revela a ocorrência de
conflito, envolvendo as diversas forças e os diversos agentes econômicos, diferenciais de acumulação entre as regiões sem i-árida e o Sudeste,
sociais e poluicos'"; Ainda segundo o conceito de Oliveira, o planejamento especialmente na área da cafeicultura. A tendência dessa expansão é, de um
Ir/ no NE ocorre como elemento repositor dos pressupostos do sistema lado, a homogeneização das formas de reprodução de capital sob o comando
I capitalista no início do processo produtivo, de forma a reproduzir as relações do processo de concentração e centralização de capital e, de outro lado, da
de produção. Julga, então, Oliveira que até a década de 50 a intervenção no heterogeneização dessas mesmas formas. A disposição das diferentes formas
econômico, através dos diversos órgãos - IFOCS, DNOCS, CHESF, de reprodução no espaço nacional apresentam contudo, um desenvolvimento
CVSF - não fez mais que reiterar as relações de produção já instalada 7. desigual mas combinado. Porém, as combinações que se organizam entre as
Tal conceito não consegue dar conta inteiramente do que ocorre entre porções regionais do espaço não a eximem dos conflitos, posto que
1909-34 nas relações do Estado com o sem i-árido, embora ele represente um repousam sobre uma base desigual. O desenvolvimento regional é antes de
grande avanço na interpretação da questão regional no Brasil. O conceito de tudo desigual porque é fruto de diferenciais de acumulação. A existência do
l/I planejamento, assim definido, parece estar eivado de um certo economicis- conflito entre as forças de homogeneização e as forças de hcterogcncização
mo. Isto porque, a ação planejada é vista como "uma forma de reposição termina por acender o contorno das regiões, que não se instituem apenas por
tranformada de mais-valia que se repõe no processo produiivow, ocorrendo constituírem porções espaciais com diferentes níveis de acumulação mas
essencialmente na passagem entre os resultados do produto e a reposição do também por construírem politicamente interesses diversos e conflitantcs. As
ciclo produtivo.

II 9 "O investimento do DNOCS reforçava, num caso como noutro, a estrutura arcaica:
I expandia a pecuária dos grandes e médios fazendeiros e contribuía para reforçar a
6 OUVElRA, r. - Elegia de uma re (li) gião ... p. existência do 'fundo de acumulação' próprio dessa estrutura, representado pelas 'culturas de
7 Idem, ibidcm, p. subsistência' dos moradores, mcciros, parceiros e pequenos sitiantes." Oliveira, r. op. cit. p.
54. O que foi dito para o DNOCS pode ser considerado para a IOCS/lrOCS, segundo o
8 Idem. p.
autor.

126
~27

'/
r I
Para o scmi-árido nordestino, a institucionalização dessa estratégia
combinações, acima referidas, são responsáveis, ainda, pela organização de política funciona como uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que ela
uma divisão regional do trabalho, dentro da qual cabe a cada região uma permite a reprodução de determinadas forças sociais no poder, diminui o
função específica dentro do processo de acumulação. Segundo Oliveira, na poder de questionamento da região e das classes do poder nacional. Por isso
maioria das vezes, as diferenças regionais reais são criadas em proveito das mesmo, é possível ao grupo sudestino trabalhar, ao nível político-
regiões de maior acumulação!" ideológico, a proposta de que por soluções técnicas (açudes, poços, estradas
Ora, o processo real da expansão capitalista encaminha-se para a de ferro e de rodagem, portos, pisciculturas etc) se superariam os problemas
constituição de diferenciais regionais reais. Isto é certo. Por isso mesmo da economia regional. Proposta que é, ao mesmo tempo, uma camisa de
surge a necessidade de "recobrir", ao nível da intervenção política e do força e uma cilada política para o sem i-árido, porque é restringir toda a
discurso ideológico, as contradições surgidas a partir desses diferenciais. complexidade da luta política intcr-regional aos limites do institucional ou
Assim, ainda na 1" República, a partir de 1909, a opção planejada é a forma mesmo do meramente técnico. Em suma, se se tomar a questão da
encontrada para guiar as relações entre Estado e Região, por se constituir perspectiva do sem i-árido, a luta no âmbito do institucional e do técnico é
num elemento capaz de cindir, ao nível político e ideológico, as contradições luta sob normas e leis desconhecidas da região, porque esses são elementos
entre o econômico e o político que a expansão capitalista gera!': que não estão presentes na sua cultura política, logo, é luta em terreno
O deslocamento do eixo do conflito, evidência de contradições econô- inimigo com as armas do inimigo.
micas, para a questão do planejamento é, inclusive, uma maneira eficaz de A intemalização do "padrão técnico" como solução dos problemas da
manter a dominação a nível nacional com o sudeste e de encaminhar a luta região, enfraquece a percepção política dos problemas do scmi-árido e dá a
intcr-rcgional para o terreno "neutro" do técnico. O objetivo tentado e justa medida do quando os compromissos políticos, oriundos da "política
atingido era de banir os diferenciais econômicos regionais do debate político dos governadores", diminuem o poder de fogo da classe dominante regional
e dar lugar a uma interminável discussão de natureza técnica. Nesse "affaire", frente à política regional do Estado.
coube ao Estado, através de sua agência de planejamento - IOCS/IFOCS -, Desse modo, dentro da camisa de força que a forma planejada de
criar expectativas, em diversos segmentos da sociedade regional, de que "tudo intervenção instaura, as críticas em tomo da crise regional não foram apro-
tenderia a melhorar, caso medidas racionalizadoras (medidas fruto de um fundadas. O discurso da classe dominante regional não ultrapassa os limites
planejamento) fossem tomadas para solução dos problemas emergentes'V', da "desigualdade regional". Não extrapolam os quadros legais instituídos. A
A finalidade: dissolver os antagonismos regionais gerados pelos diferenciais decisão política de criar uma agência de intervenção como a IOCS/IFOCS
reais para soldar a nação enquanto espaço integrado. representa um balizamento legal dentro do qual a luta política inter-regional
Dito de outra maneira, a ação ifocsiana assume a forma planejada por deve ocorrer, sem que produza efeitos altcradores da composição do poder a
ser esse o caminho político adotado pelas classes dominantes, a nível nível nacional. Isto significa "aburguesar" a relação Estado e Região, porque
nacional, para o tratamento dos conflitos regionais que permeiam toda a as reivindicações regionais passam a correr, a partir da IOCS/IFOCS, em
sociedade brasileira na Ia República. trilhos institucionais de caráter eminentemente legal. Substitui-se a luta po-
A intervenção estatal planejada, como solução do conflito regional, já lítica pela luta institucional/legal. A emergência da institucion::llização/lega-
surge balizada. A criação da Inspetoria se dá dentro de uma política de Iização da luta intcr-regional é responsável pela individualização, municipa-
lização ou mesmo estadualização da relação Estado e Região, impedindo que
II alianças estaduais sustcntadora do poder político nacional na }! República, a
as reivindicações regionais fossem encaminhadas de forma coletiva.
I chamada "política dos governadores".
Esse quadro cria dois desdobramentos a nível da luta política intcr-
regional. Primeiro, a divisão do interior das classes dominantes das diversas
regiões do NE, impedindo a composição de "blocos" regionais para a luta. A
\O OUVEn{A, F, - op, cit. p, 27, criação da Inspetoria de Secas vai representar a abertura de uma "concorrência
11 "A formulação deste sistema ideológico encontrava sua expressão mais acabada quando aos mecanismos e instrumentos do Estado, com a finalidade de utilizar a
conseguira cindir o nívcl político do nível econômico, afastando definitivamente os irnpasscs
riqueza social (transformada em imposto e esse em investimentos nas ativi-
criados pelo debate sobre política oligárquica e formulando ao nível de 'planos econômicos',
soluções 'técnicas, 'neutras' para a resolução dos problemas da economia interna,"
TIIEODORO, Janice - Raizes da ideologia do planejamento: Nordeste (1889.1930). p. 22.
12 TIIEODORO, J, - 0r. cit, 24.
129
128
II~

dades econômicas)" 13 na reprodução das estruturas de produção e de poder a


nível das regiões. Por outro lado, a própria composição do poder dificulta a Nesse sentido, a afirmação de Oliveira de que, em período anterior ao
aglutinação das diversas forças políticas regionais que passariam a atuar em final dos anos 50, a intervenção no econômico de órgãos como a
bloco nas suas reivindicações dentro do processo de luta inter-regional "... as IOCS/lFOCS não fez mais que reiterar, através de seus mecanismos, as
diversidades dos interesses da classe dominante em cada região impedem que características "arcaicas" das relações de produção já instaladas no semi-árido,
se configure no seu interior uma atuação de cunho nacional" 14. Ao parece questionável. Primeiro porque se a modernização da relação entre
contrário, a corrida pelos recursos e serviços da IOCS/lFOCS leva a um Estado e Região, no período estudado, não acarretou uma transformação tão
divisionismo interno. Portanto, articular as classes dominantes regionais é profunda nas relações sociais a ponto de ela não definir a constituição de
tarefa difícil dada a própria composição social e do poder regional. Ao lado uma burguesia e um proletariado regionais no sentido clássico dos termos,
disso, ao constatar-se que o poder regional trabalhou pela proposta isto não implica em dizer que o "processo burguês" não se tenha afirmado.
intervencionista, que resultou na IOCS/lFOCS, chega-se à conclusão que Ele afirmou-se sim, mesmo a ritmos distintos e complementares da região
esse poder foi tragado pelas teias de um poder que ele mesmo ajudou a tecer. hegemônica, porque a extensão e a profundidade das mudanças operadas pela
I O segundo desdobramento é aquele que aponta para o seguinte: mesmo intervenção estatal tem como um dos seus elementos determinantes o nível
considerando como correto o discurso das desigualdades regionais, na de desenvolvimento das forças produtivas. "O importante é se compreender
perspectiva da classe dominante regional, a restrição da solução dos que os efeitos econômicos gerados pela intervenção do Estado na economia
II1I
problemas regionais a uma prática intervencionista planejada, embora depende diretamente do nível de desenvolvimento das forças produtivas
lII
modernizadora da relação Estado e Região, impossibilita ela mesma uma existentes em cada atividade e do estágio histórico da acumulação do capital,
diminuição dos diferenciais regionais reais através das armas que utiliza. A que marca claramente, por exemplo, as diferenças da intervenção estatal no
prática planejada impossibilita a mudança, na medida em que é sob tal estágio concorrencial e no monopolista'í". O que o Estado faz com sua
prática que se submetem as soluções propostas ao sistema de dominação, intervenção, é estender espacialmente os pressupostos de produção e
onde prevalecem os interesses das classes dominantes sudcstinaslô- reprodução do capital. "Estado burguês, assinale-se, busca oferecer os meios
Desenvolvendo a discordância com a interpretação de F. de Oliveira, materiais para superação do tradicional e afirmação da sociedade burguesa e
segundo o qual o planejamento "é um sinal de mudança - é o sinal mais não o contrário" 17.
marcante do capitalismo dos oligopálios", não há porque afastar a A visão de Oliveira, ressalvada sua enorme contribuição aos estudos
possibilidade de existência do planejamento fora da etapa monopolista do rcgionais'ê- segundo o professor e pesquisador P. Henrique Martins, não se
Estado capitalista. A ação planejada pode anteceder àquela etapa, muito orienta no sentido de compreender a intervenção estatal na região dentro dos
embora venha a servir a interesses diversos dos que serviria na vigência do condicionamentos e especificidades do aparecimento da sociedade burguesa
Estado Monopolista. Afinal, se a inserção do planejamento é "sinal de no Brasil nem da organização do poder burguês e dos aparelhos de dominação
mudanças" no conteúdo do capitalismo, rcstringi-Io à etapa monopolista, burgueses. Isto estaria presente no pensamento de Oliveira ao afirmar o
parece tomar essa prática um momento acabado da própria história do "comportamento político conservador e historicamente regressivo [da classe
sistema. Ocorre que essa concepção leva a não considerar, ainda, que o dominante regional] ao negar a necessidade do desenvolvimento das forças
planejamento não só antecede ao Estado Monopolista, como pode estar na materiais e sociais de produção".19 Isto é, o que caracterizaria a classe
11i. gênese mesma da dominação de uma região pelo capital em um período do dominante regional seria uma posição conservadora, manifesta por uma
Capitalismo Concorrencial. Porém, para perceber o processo regional dessa permanente resistência defensiva à mudança e a qualquer modernização que
I maneira, impõe-se apreendê-Io pela sua constituição, privilegiando a análise
da formação sobre o estudo da forma.
16 MAR TINS, P. Ilenrique N. - op. cit, p. 76.
17 Idem, ibidcrn, p. 76.
13 OUVEIRA, F. Planejamento e Poder: o enigma transparente. Trabalho apresentado para
18 Segundo P. lIenrique Martins, F. de Oliveira foi quem contribuiu para a compreensão da
discussão na Mesa-redonda "Geopolítica, Planejamento e Poder", na 30' Reunião Anual da
questão regional no sentido de que procurou situar as classes dominantes regionais no
1111 SBPC, S. Paulo. rnimco. julho de 1978.
1 processo de organização do Estado burguês. Além -do que foi por seus estudos que se
14 TIIEODORO, J. - op. cit, p. 110. conseguiu explicar como grupos econômicos dominantes na região se reproduzem no
15 Idem, ibidem. p. 107. interior do processo de expansão do Capitalismo no Brasil.
19 MARllNS, P. lIenrique N. - op. cit, p. 70.

130
131

---
levasse à dominação do capital sobre as formas econômicas tradicionais da IOCS/IFOCS: antecipação do intervencionismo centralista
região. De modo que a intervenção do Estado na região não operaria estatal
mudanças modernizantes. No lugar da modernização haveria a recriação de
"formas de defesa anticiclicas não capitalistas". Ou seja, a presença da A substituição da postura omissa - não intcrvencíonista - do Estado
IOCS/IFOCS viria reforçar as características primitivas da produção do em 1909, frente às questões do semi-árido, por um intervencionismo sob a
serni-árido, que é o próprio paradigma da interpretação de Oliveira. forma planejada encaminha o debate para um vão conclusivo. A Inspetoria
Contudo, na visão de P. Henrique, aqui encampada integralmente, seria de Secas é uma antecipação do que se generalizará no Estado brasileiro pós-
u.ais apropriado considerar as relações sociais de produção dentro do período 30. Ou seja, há ainda na I! República - República Velha? - uma
estudado como relações sociais de transição. Sua explicação é a seguinte: modificação na forma do Estado se relacionar com a região. Essa
"As constontes referências às relações de produção não capitalistas, tanto na modificação está irnplcmcntada na Inspetoria de Secas. Um elemento
área algodoeira-pecuária, como na açucareira, como sendo provas incontestes modernizador da relação, desde que implica no aparelhamento do Estado no
do reforço das formas arcaicas devem ser vistas com certo cuidado. Elas sentido de intervir na economia e na sociedade do scmi-árido.
seriam arcaicas se efetivamente produzissem um movimento anti-histórico, Esse intervencionismo tem características específicas, bem distintas
de desacumulação do capital. Naturalmente, não é isto que se observa. Pelo daquelas verificadas na etapa rnonopolista do Estado brasileiro, como já foi
contrário, uma verificação mais meticulosa dessas relações sociais demonstra aqui assinalado. No periodo estudado, 1909-34, o que se assiste é a criação
sua propriedade na acumulação do capital quando esta se realiza ainda a ritmo de uma agência de estudos e obras cuja ação visa assegurar a produção e
lento e intensidade diminuta. Ou seja, verificando-se a presença dessas reprodução das "condições gerais de produção". A ação dessa agência se des-
relações de produção concretamente, conclui-se na verdade pela sua dobra. De um lado, produzindo capital, sob a forma de estradas de rodagem e
importância decisiva para a possibilidade material e histórica da dominação de ferro e de obras da chamada "solução hidráulica".22 De outro lado, efeti-
do capita/".20 E conclusivamente arremata: "Ora ao construir barragens e vando o controle da força de trabalho, pela garantia da ocupação em obras e
açudes, perfurar poços e construir estradas de rodagem por todo o Nordeste serviço dos trabalhadores e camponeses em períodos secos. É por essas duas
semi-ârido, a intervenção do Estado também se mostrou planejada na medida faces da prática intervencionista estatal que se processa a transferência da
em que objetivava criar as condições para a produção dos pressupostos do riqueza social, através do Estado, para as mãos de um determinado segmento
capital, estabelecer as bases materiais indispensáveis à afirmação do da sociedade do sem i-árido - a classe dominante regional. A finalidade:
"processo burgês".21 produzir e reproduzir as "condições gerais da produção" .
Historicamente, a ação planejada na prática da Inspetoria de Secas, se A produção e a reprodução de tais "condições gerais" ocorre, contudo,
tomado período 1909-34, resulta em: ao nível econômico, estabelecimento dentro de novos marcos. O "sinal de mudança", a que se refere F. de Oliveira
das bases materiais para a afirmação do "processo burgês", A IOCS/IFOCS quando trata da emergência do "padrão planejado" nas sociedades capitalistas,
é agente do "aburguesamento" das relações entre Estado e região: ao nível está nos novos contornos que a presença estatal assume na região. O Estado
político, constituição da Inspetoria como instância de mediação dos conflitos brasileiro, através da IOCS, IFOCS, produz capital e efetiva o controle da
intra e intcr-rcgional; ao nível ideológico, por fim, construção de um força de trabalho operando sob relações capitalistas típicas. Evidências da
discurso amaciador dos conflitos sociais, pelo isolamento da questão social existência de relações dessa natureza e de que elas são operadas efetivamente
em favor da emergência de um debate de natureza eminentemente técnica. pela Inspetoria são encontradas na institucionalização de uma hierarquia entre
as diversas instâncias do Estado, na racional idade como ingrediente da
administração pública, na sofisticada divisão técnica do trabalho com que a
IOCS/IFOCS trabalhava e, fundamentalmente, na regulação de relações
sociais por um aparato legal de natureza burguesa já instituído em outras
regiões do país.

20 Idem, ibidcm. p. 76-77.


21 Idem, p. 76. 22 Idem, p. 74.

132 133
mentos reivindicatórios organizados, próprios de centros onde o capitalismo
Sobre esse último aspecto é dado perceber com clareza que, ao produzir está mais "avançado". Esses movimentos são as greves.
e reproduzir "condições gerais de produção", a Inspetoria o faz sob um Ora, uma das funções de base da Inspetoria é assegurar o controle sobre
aparato legal vigente nas relações sociais econômicas dos centros urbanos do a força de trabalho, por isso, quando de emergência das greves, fato inteira-
país. Por exemplo, os diversos Regulamentos revelam que ela pratica a mente novo nas relações de trabalho no serni-árido, cabe a IOCS/lFOCS
normatização com base num corpo de leis, da vida em sociedade. Esses reprimir tais movimentos além de contribuir efetivamente para a construção
Regulamentos formalizam decisões políticas de classe e indicam a natureza de uma nova ideologia da dominação do trabalho.
das relações sociais que se está travando entre regiões, entre classes de uma A IOCS/lFOCS, contudo, além das funções de base aqui já registrada,
mesma região, entre as diversas instâncias do Estado ou mesmo entre as cumpre outras. Sua ação constitui-se de estudos sobre diversos aspectos do
instâncias do Estado e os indivíduos em particular. A propósito, a quadro natural da região, que visavam transformar-se em obras e serviços.
institucionalização das relações sociais por leis formalizadas é própria da Logo, uma ação dentro de uma lógica racional. Ora, intervir a partir de uma
existência, ao nível jurídico-político, de um Estado de natureza capitalista. lógica racional é outro dado que demonstra que a 10CS/lFOCS representa
Isto porque o Estado capitalista funda sua legitimidade num sistema jurídico- "sinal de mudanças" na organização e ação do Estado brasileiro diante da
político formalizado. No Estado eapitalista o direito é reduzido à lei, como questão regional e, pois, antecipação? Logo, "antecipação" do intcrvencio-
afirmava Marx em "A Ideologia Alemã". nismo centralizado estatal.
Contudo, a prática de relações de produção capitalistas na região é mais "Sinal de mudanças", vê-se na IOCS/lFOCS a própria gênese da
uma virtual idade que uma efctlvidadc histórica. "extensão prodigiosa das funções do Estado." Por ela inicia-se o alargamento
Assim, a rigidez das estruturas de produção social e política do scmi- das funções do Estado. O "princípio de um alargamento na direção do saber e
árido não permitem transformações mais profundas. O capital avança, da Ciência, a concentração do saber e poder ... " nas mãos do Estado e da
domina e subjuga a região, mas tal condução se dá "por cima", via classe classe dominante regional. Isto implica, nos marcos da inserção do Estado
dominante regional e aparato jurídico-político. O uso de tal via assegura na região, a produção de conhecimentos sobre o sem i-árido, realizado por
àquela classe o controle do processo de mudança, impedindo que no sem i- diversos ramos da Ciência, apropriados por setores sociais determinados. E,
árido se aprofundem relações tipicamente capitalistas até o processo de mais que a apropriação do saber, a privatízação de obras e serviços, desde que
trabalho. Isto faz com que a constituição da burguesia e do proletariado estes constituem a material idade na qual se converte o saber financiado pela
agrário venha dar-se de forma muito lenta, isto é, a ritmos diversos dos riqueza social. De sorte que, pela ação ifocsiana verifica-se o início de uma
encontrados na região sudeste. "Nos Estados da Federação, onde aformação verdadeira rcdcfinição das funções do Estado. Redefinição que afeta
das classes burguesas se faz mais lentamente, a presença ativa de grupos diretamente o recorte em matéria do público, do privado, do político e do
tradicionais no controle dos aparelhos de poder (IOCS/IFOCS no meio) econômico. "Assiste-se assim a toda uma reformulação dos espaços do
exprime o esforço exercido no sentido de assegurar a reprodução de sua público e do privado, do político e do econômico e social, a uma
função de base, isto é, de garantir a integridade da propriedade fundiária, modificação considerável de sua articulação".24 A diferença nítida, aqui, entre
embora desempenhem concomitantemente o p~el de instrumento político o público e o privado, o político e o econômico não se verifica, ensejando
necessário à afirmação da dominação burguesa". um estado de coisas em que o privado reproduz-se pelo público, o político
Mesmo que a intcrnalização/institucionalização do aparato legal ocorra pelo econômico e, assim, reciprocamente. De modo que essa especificidade
1" sob o controle da classe dominante regional, a subordinação da região ao da formação social brasileira da }' República demonstra que o espaço
capital, isto é, a afirmação da dominação burguesa faz com que nela público ainda não se encontra formado nesse momento, fato que é
penetrem as contradições sociais próprias daquela relação social. Até onde é irnpcditivo da constituição de um regime democrático no país.
possível a Inspetoria penetrar com a modernização das relações de trabalho Privado que se reproduz pelo público, político que se alimenta pelo
junto ao pessoal técnico e, principalmente, junto aos trabalhadores que econômico são pressupostos da reprodução do poder na região. Mas, o que
contratava surgem novas formas de luta trabalhista, traduzidas em movi- mais marca de conteúdo novo a existência da IOCS/IFOCS na região é a

23 Nota significativa desse elemento da ação ifocsiana é a privatização das obras públicas, 24 OLIVEIRA, F. - Planejamento e poder: o enigma transparente. p. 3.
responsável pela valorização das propriedades nas quais eram construídas.

135
134
~

privatização do saber por ela produzido. Isto, que é a privatização do saber


produzido por um aparelho do Estado que funciona a partir de investimentos Há pelo menos dois níveis de análise a ser trabalhados no que se refere
públicos, materializa-se em obras e serviços - forças produtivas -, igual- às bases conceituais do discurso ifocsiano. Num primeiro nível, cumpre
mente privatizados. A materialização das forças produtivas por proprietários apreender como aqueles dois conceitos são vistos pela Inspetoria de Secas,
111 rurais é sinal de que a separação dos agentes diretos da produção - trabalha- para num segundo, polemizá-Ios à luz de certos pressupostos, dirigindo a
dores, rneciros, parceleiros etc - da propriedade dos meios de produção está análise a críticas ao sistema ideológico construído pelo Estado e pela classe
realizando-se no sem i-árido. A separação dos agentes diretos da produção da dominante regional, e, no limite, propor rcdefinições nas bases conceituais
propriedade dos meios de produção é expressão do braço político do Estado que possam fazer surgir um novo sistema ideológico.
no econômico da região agenciado pela Inspetoria de Secas. Mas, por que tal O exame crítico que se quer aqui não é a prática daquele postulado
ocorre? Sob o regime das relações sociais capitalistas, as forças produtivas moral que manda trocar a ideologia atual por uma ideologia crítica, como se
não são mais as forças dos agentes diretos da produção, estão, pois, estes uma simples troca dessa natureza fosse capaz de remover os limites e os
"despidos", desapossados daquelas. As forças produtivas, nesse regime, são grilhões impostos à região. "Exigir, assim, a transformação da consciência
instrumentos dos indivíduos enquanto proprietários privados. As forças vem a ser o mesmo que interpretar diferentemente o existente, isto é, reco-
produtivas são as "forças" da propriedade privada, como na afirmação de nhecê-lo mediante outra interpretação"25. Ou então, opor a uma fraseologia
Marx em "A ideologia alemã". Daí, então, emerge a contradição entre as dominante nada mais do que outra frascologia, esquecendo o primordial, que
forças produtivas na região e as relações de produção aí existentes. Contra- é combater de alguma forma o mundo real existente, como no dizer de Marx
dição que o Estado, através da IOCS/lFOCS, contribuiu para aprofundar. e Engcls na crítica à filosofia idealista alemã. Ou pior, não estabelecer cone-
Conclusão: a crise regional que a criação da Inspetoria de Secas tenta xão entre a ideologia e a realidade, automatizando aquilo que a história tor-
resolver não é superada. Ao contrário, é aprofundada, porque a IOCS/lFOCS nou indissociâvcl. Se assim fosse seria ingenuidade, má-fé, ou ainda, idco-
é agente da concentração e acumulação capitalista na região sem i-árida. logização e ilusionismo. E a ilusão, como a fantasia, fica bem nos contos e
lendas infantis. A ciência é sempre uma nódoa no temo branco da ilusão.
Não há crítica sem pressupostos. Por isso cabe de antemão elucidar
o discurso ideológico da IOCS/IFOCS: a região e a seca pelo aqueles pressupostos sobre os quais se fará a análise nos dois níveis
caleidoscópio da água propostos, o que significa, em verdade, elucidar a própria forma como a
ideologia se exerce numa formação social capitalista. Esses pressupostos são
o discurso ideológico ifocsiano do período estudado, 1909-34, está em número de dois. O primeiro deles aponta para a ligação indissociávcl
montado sobre dois conceitos: um de região e outro de seca. Ambos entre a ideologia e as condições materiais de existência. No caso em questão,
constituem as bases epistemológicas do próprio discurso regional ora feito a articulação é entre a ideologia regional e as condições materiais de
pelo Estado, ora pela classe dominante regional ou mesmo pelos dois existência na região. O que os indivíduos pensam e o conhecimento do real
simultaneamente. São eles que balizam a compreensão que essas duas por eles produzido são produtos da transformação do próprio espaço regional.
instâncias da sociedade, Estado e classe dominante regional, têm da questão Ora, levantar os nexos entre realidade material e ideologia é definir um
regional. De modo que a questão regional passa necessariamente pela itinerário metodológico que é o da concepção materialista de história. Por ela
elaboração de um significado de região e de seca. Diz-se de um significado não cabe pinçar as idéias, os conceitos, os pressupostos da sociedade fora do
porque a elaboração dos diversos significados é de todo improvável. O processo de constituição e reposição das condições materiais de existência,
conhecimento da realidade é sempre o conhecimento de parte da realidade. "mas sim de permanecer sobre o solo da história real, não de explicar a
Isto porque a produção do conhecimento contém um forte conteúdo de classe praxis a partir da idéia, mas de explicar asformações ideológicas a partir da
e, como tal, é sempre uma construção parcial da totalidade. A propósito, a praxis material .. :'26 Ou seja, reverter aquilo que o idealismo põe no seu
compreensão da totalidade, efígie "vendida" pelo marxismo, não ocorre nem pensar sobre a realidade.
em circunstâncias da produção científica em que são usados pressupostos
epistemológicos daquela Filosofia da Ciência. Nenhum conhecimento exaure
a realidade. A realidade é que exaure o conhecimento, tomando-o anacrônico,
inadequado e caduco. 25 MARX, K. e ENGELS, F. - op. cit. p. 26.
26 Idem, ibidem. p. 56.

136
137

,:,.,~ '.''''
No concreto, cumpre perceber os nexos entre os conceitos com que a função substituir a realidade da dominação de classe e do conflito social que
IOCS/IFOCS trabalha ao nível das ideologias e a sociedade regional na qual o Estado e a sociedade encerram pela idéia de irucrcssc geral que o próprio
a Inspetoria intervém. Estado encerra. Ou seja, à ideologia cumpre elaborar as representações cole-
O segundo pressuposto aponta para o modo como os homens tivas e universais que são inversões da realidade social, de modo a emprestar
representam a realidade em que vivem. Para a dialética materialista, mesmo a legitimidade à forma que essa realidade toma. Por fim, ambos, Estado e
ideologia estando indissoluvelmente ligada às condições de produção da ideologia, concorrem para a reprodução da hcgcmonia-cstado de dominação de
existência, "as idéias tendem a ser uma representação invertida do processo uma sociedade por uma classe que generaliza seu poder c suas idéias.
real ... " 27 na formação social capitalista, ISlO porque "todo o conjunto das Dados os dois pressupostos de análise, passar-sc-á a ver como os
relações sociais aparece nas idéias como se fossem coisas em si, existentes conceitos de região e de seca - bases cpístcmolõgicas do discurso regional
por si mesmas e não como consequências das ações humanas".28 ifocsiano - são vistos pela Inspetoria de Secas. Comece-se pela discussão
Nessa ótica, as relações sociais quando representadas mostram-se em torno do conceito de região.
inversões do real, porque as idéias que se faz dessas relações, de início, são A IOCS/lFOCS, na verdade, é quem dá os primeiros passos no sentido
representações aparentemente desvinculadas do processo real e não elas na de estabelecer uma divisão regional do espaço nordestino. Inicialmente de
sua matcrialidadc, Porém, tais idéias apenas aparentam desvinculações com o forma genérica - os primeiros regulamentos já demarcam as áreas em que a
real. De fato, as dcsvinculaçõcs não existem. A aparente contradição entre o intervenção estatal deve dar-se a delimitação e divisão interna da região
mundo real e as idéias oculta as contradições reais de relações sociais reais. evolui para uma etapa CIentífica, em que critérios cuidadosos e relativamente
Em primeiro lugar, porque as idéias que se faz das relações sociais reais rigorosos são levantados. Ora, ao delimitar a área de intervenção o que a
tendem a ser expressão de um interesse geral que se põe acima das classes e Inspetoria faz é estabelecer uma região institucional de aplicação de uma
de seus interesses particulares, apresentando-se como poder social unificado, política do Estado. Logo, os estudos e a atuação da IOCS/IFOCS devem ser
logo, um poder desligado dos homens. Em segundo lugar, porque os que considerados na própria hlstória da divisão regional do país num capítulo
produzem tais idéias - os intelectuais - o fazem ocupando um lugar dado na referente aos primórdios dessa divisão. O que comumenlC não é feito.
divisão social do trabalho, qual seja o de desvinculados diretamente do A delimitação e a divisão interna da região com que trabalha a
processo produtivo. Mas, em nenhum momento, do lugar de não- Inspetoria parte de um certo corte cpistcmológico. Ela privilegia na região
desvinculados das relações sociais em que vivem. Conclui-se então que, se é os caractcrcs físicos sobre os elementos humanos, econômicos e sociais. De
da divisão social do trabalho que nasce essa suposta autonomia das idéias em forma que a concepção de região natural é a concepção de região da Inspetoria
relação ao mundo das relações concretas, logo é das condições materiais de de Secas, bem ao gosto do que os estudos geográficos discutiam na época.
produção e reprodução das relações sociais que se constroem as idéias ou um Segundo o gcógrafo Manoel Corrê a de Andrade, as primeiras décadas desse
sistema ordenado dessas mesmas. século são marcadas por uma série de divergências quanto à concepção que a
O fato de a formação social capitalista estar montada sob uma divisão Geografia adotaria para a região. "As opiniões entre os geôgrafos, porém,
do trabalho que separa proprietários de não-proprietários, trabalhadores intc- nâo eram coincidentes; assim, o inglês Percy Roxby, tinha a tendência de
lcctuais de trabalhadores manuais, gera um quadro de dominação dos pri- focalizar, sobretudo, o aspecto econômico, enquanto americanos como J. F.
meiros sobre os segundos, que exige a criação de instrumentos que garantam Chamberlain, adotavam a divisão física. Na Itália, em 1920, Ricchieri
politicarncntc a dominação. Dois desses instrumentos são o Estado e a procurou conciliar as divergências e conceituar uma região natural
ideologia, cada um com uma função própria. Uma irnbricada à outra. O geográfica ... "29 Ora, ao optar pelo privilcgiamcnto dos elementos naturais
Estado, que aparece como um conjunto de aparelhos - 10CS/lFOCS no sobre outros, a 10CS/IFOCS fica com O que há de mais atrasado nas
meio - que visam submeter a sociedade às regras políticas da classe domi- discussões travadas ao nível dos estudos regionais da Geografia. Diverge,
nantc. Ele, na sua matcrialidadc, é território do conflito que as contradições assim, de uma visão atualizada, já discutida rp país na década de vinte e
sociais que o pcrmciarn produzem. A ideologia, por seu lado, tem por formalizada por Delgado de Carvalho, que afirma ser o espaço geográfico
subdividido por regiões naturais. O que implica dizer que a região natural é,
27 CIIAUf, Marilcna - O que é ideologia. S. Paulo. Brasiliense. 61 edição 1981. p. 63. 29 ANDRADE, M. Corrêa - Espaço, polarização e desenvolvimento. S. Pauto. Grija1bo. 41
28 Idem, ibidem. p. 64. edição. 1977. p. 36.

138 139
por excelência, a região geográfica e que esta tem a seguinte concepção: "A invertendo o real. Enfim, a Inspetoria pratica a linguagem da inversão,
região natural é uma subdivisão mais ou menos precisa e permanente que a substituindo a região pela idéia de região.
investigação e a observação permitem criar numa área geográfica estudada, O segundo conceito sob o qual se desenvolve o discurso ideológico da
com o intuito de salientar a importância das diferentes influências fisiográ- Inspetoria é o de seca. O discurso oficial de seca do período ifocsiano é
ficas, respeitando o mais possível o jogo natural das forças em presença e constituído de três partes. Ele, geralmente, inicia-se por uma descrição do
colocando a síntese assim esboçada sob o ponto de vista especial do fator quadro natural da região, passa à narração da estiagem tomada como crise
humano nela representado" 30. hídrica e fecha na crença de uma "solução hidráulica" associada à construção
No lugar disso, a Inspetoria faz, primeiramente, delimitações genéricas, de vias de acesso - de rodagem e férrea - à região. Isto quer dizer que há uma
porque estudos fisiográficos de maior envergadura sobre a região não haviam ênfase na seca enquanto fenômeno físico. Ora, carregar a compreensão do
ainda sido feitos até então, para depois definir critérios calcados em observa- fenômeno como se ele fosse uma mera crise do quadro natural implica,
ções pluviométricas. Ora, a concepção de região semi-árida da IOCS/lFOCS, novamente em relevar a importância da instância do social que o fenômeno
nesse instante, de reduzida à região natural sofre nova restrição na sua abran- fundamentahnente contempla. O que equivale dizer que o conceito "certo" de
gência e na sua substância. O que é região natural restringe-se ao que está na seca como fenômeno climático, através do discurso da Inspetoria, torna-se
pluviometria. A região é reduzida a índices de precipitação. A região vira "verdadeiro" na consciência social da região e da nação. A IOCS/lFOCS
uma quantidade. Despojada dos aspectos qualitativos, o semi-árido assume contribui, nessa perspectiva, para a sistematização da ideologia burguesa. De
ao nível do conceito de região uma conotação, diante do Estado, absoluta- um lado, apreendendo a base material de uma sociedade e a essa apreensão
mente negativa. Ela que é uma porção do espaço de índices irregulares duran- transmitindo interesses de classe como interesses universais (para todos e de
te o ano. O sem i-árido, em síntese, vira uma quantidade negativa. Zero à sempre). De outro lado, amaciando a contradição realidade-discurso ao
esquerda. afirmar a "verdade" do discurso.
Ora, fazer a leitura do real da região pelo caleidoscópio da água Ora, se a seca existe num espaço já organizado socialmente ela é antes
significa inverter aquilo que é fundamental numa determinada porção do de tudo um fenômeno humano, logo social. Por isso está, igualmente
espaço: a forma como a sociedade se organiza para a produção e reprodução carregada de todas as injunções do modo como o social está organizado
de sua existência, que impõe um recorte social no espaço. Mesmo que a historicamente.
Inspetoria considere, ao nível do discurso bem dito, a problemática social Dadas estas considerações, cumpre questionar: por que a ênfase na seca
como um elemento fundamental da questão regional, ao nível da prática, a enquanto um fenômeno meramente físico? Cabe fazer as mesmas colocações
ação se restringe a suprir aquilo que melhor se adequa à sua concepção de atribuídas à concepção de região do discurso oficial. A finalidade é uma e
região. O que vale dizer que se o semi-árido é uma região, cujo problema precisamente "mascarar as relações de dominação e de exploração econômica
essencial é a irregularidade no abastecimento de água, a intervenção estatal do homem no espaço semi-ârido'Ô}, enfim, através do discurso, produzir e
só pode objetivar a garantia do fornecimento contínuo do "precioso líquido". reproduzir a hegemonia da classe dominante regional a nível intra-regional.
Isso posto, cabe agora questionar: qual o papel que a concepção de A visão de seca e da solução por restringir-se ao âmbito fisiográfico -
região, produzida pela ação intcrvcncionista da IOCS/lFOCS, exerce ao falta de água e reposição de água, respectivamente - deixa intocada a questão
nível das relações políticas? A concepção do sem i-árido como região natural social, seus determinantes e seus desdobramentos. O ser homem, enquanto
concorre diretamente para dar sustentação política ao exercício da hegemonia ser social, aparece como entidade geral e não organizado em classes diversas
dentro da região, que é a finalidade maior da prática intervcncionista. A e distribuídas por uma divisão social do trabalho historicamente dada. O
privatização da ação ifocJiana - estudos e obras -, por sua vez, determina social, nessa visão, é produto, é consequência é determinado pelo meio
que a intervenção venha a ser apropriada pela classe dominante regional. físico. Logo, está-se diante de uma perspectiva determinista, porque nela a
A IOCS/IFOCS com sua concepção de região põe o semi-árido de seca é dctcrminantc da história regional. I
cabeça para baixo. Atrofia do social e hipertrofia do natural. Dcsconsidcração A seca, na perspectiva determinista, não emerge como um momento de
do dinâmico e valorização 40 estático. Converte-se assim, o ideal em real, crise da sociedade nordestina. Isto é, por ela, não é dado perceber que no

31 MARTINS. P. lIenrique N. - A seca: um capitulo da histôria do Nordeste. Recife. mimco.


30 CARVALIIO. Delgado citado por ANDRADE. M. Corrêa. op. cito p. 37. Trabalho apresentado na Reunião Anual da SBPC. 1984. p. 2.

140 141
momento-seca condcnsam-sc fatores diversos que desorganizam, de forma demais. Há, por fim, uma seca enquanto relação de classe ao nível da região
generalizada, a estrutura de produção regional: forças produtivas e relações de entre classe proprietária e classe não-proprietária.
produção. As forças produtivas pela destruição material e as relações de Na verdade, os três níveis de seca trazem um traço comum. Todos são
produção pela perda do controle da força de trabalho "retirante". Ora, o que relações de classe. Por isso mesmo, todas são relações de conflito, posto
ocorre historicamente nos instantes de crise é a instauração de condições serem relações fundamentalmente de contradição.
necessárias ao qucstionarncnto da estrutura de poder dominante que se Esse entrelaçado, que é a gestação social da seca, atravessa o discurso
encontra rachada devido à desorganização na sua base material, a estrutura de sobre o fenômeno de uma ponta a outra, tornando o cnfrcntamcnto político
produção. Por conta disso, as contradições sociais se aguçam e o germe da da questão bastante complexo. Ao nível do discurso é possível perceber um
mudança social cumpre seu princípio ativo. Está-se falando dos saques, das conceito nacional, fundado numa visão negativa da região, que serve de base
invasões, dos assaltos, dos homicídios, da organização dos bandos de para o descaso e a incutia dos poderes públicos. Um outro conceito é
cangaceiros, evidências inqucstionávcis da "temperatura" em que as construído, esse a nível regional, fundado ora numa visão negativa, ora
contradições se encontram no interior da região. numa visão positiva da região, pilar sobre o qual erguem-se os reclamos e
Nesse quadro, a visão oficial de seca, base conccitual da política oficial reivindicações da "região". É esse o conceito gostado pela classe dominante
de seca, gcsta-sc no sentido da recomposição da estrutura de poder através da regional. Por isso visita frcqücmcmcntc os meios de comunicação, os
restauração dos elementos materiais da produção. Ora, para uma sociedade púlpitos eclesiásticos e tribunas parlamentares. O conceito dessa região trata
com tão baixo nível de força produtiva, só poderia ser proposto, de um lado, a questão como se a região estivesse organizada de forma unitária, passando
a "solução hidráulica" e, de outro, a abertura de vias de comunicação, à margem das desigualdades e conflitos sociais que permeiam a região.
segundo as próprias necessidades de reprodução da estrutura de produção: A Finalmente, há um conceito que se produz ao nível da subordinação. Saído
"solução hidráulica" para recomposição de uma importante força produtiva dos trabalhadores, posseiros, mcciros, pequenos proprietários e dos
para uma economia agrícola, a água, e mais estradas de ferro e de rodagem sindicatos. Costura-se como denúncia dos desvios de verbas, socorros
para assegurar o controle da força de trabalho, por permitirem o envio de públicos e privatização de obras e serviços.
~ socorros imediatos. Há, pelo menos, duas conclusões a serem extraídas dessa discussão.
Na verdade, o conceito oficial de seca não é um conceito pobre de Uma, que há muitos níveis de seca e de sem i-árido. Ou seja, a seca e o scmi-
fundamentos. Tem-se, sim, um conceito elaborado a partir da perspectiva da árido vistos de forma diversa pelas diversas classes sociais que se encontram
dominação. Essa perspectiva exige a restrição da abrangência do real do na região e fora dela. Outra, que, embora haja muitos níveis de seca e do
fenômeno à condição de fenômeno fisiográfico. Isto é, a perspectiva da sem i-árido, há uma única seca e uma única região, a das contradições
dominação estabelece uma correspondência entre seca conccitual e crise do sociais.
quadro natural. A seca, vista desse modo, acaba por ser uma importante Assim posto, a seca não é uma ocasional idade, mas uma permanência.
apropriação conceitual feita pelas classes dominantes regional e nacional,
utilizada na elaboração das diretrizes da política de seca. Por isso mesmo, é
possível afirmar que a perspectiva oficial de seca abole a "seca real" pela
"seca do capital" [e se transforma em seca de poder ... ].
O que se quer afinal com tal discussão? Numa frase. Um novo conceito
de seca. Pois é a partir da formulação de um novo conceito que se construirá
o contra-discurso lcgitimador de uma prática nova, diferenciada da prática de
dominação. Para que se possa deixar de fazer da seca um instrumento de
dominação. Oferece, aqui, uma proposta de conceito ao exame da sociedade.
Há muitos níveis de seca, pelo que é dado perceber da análise do
discurso. Há uma seca enquanto relação intcr-rcgional. Aquela que emerge da
relação entre Estado e região sem i-árida. Há um conceito de seca que se
produz da relação entre classes proprietárias de regiões diversas - sem i-árida e

142 143

Você também pode gostar