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Homilética
Michael Rose
7.1- Introdução
Há pregadores e pregadoras que se vêem expostos/as a um grave dile
ma: a gente gosta de ser teólogo ou pastor (ou ambas as coisas, embora uma
não esteja necessariamente integrada na outra), a gente gostaria de crer e se
esforça sinceramente (e aí já começa a dificuldade, pois o ato de crer, como
obra do Espírito, é entendido como estando fora do alcance humano, mas, por
outro lado, continua sendo uma tarefa) e também está disposto/a a falar sobre
isso, seja de cima do púlpito ou numa conversa. A gente concluiu uma
formação teológica (freqüentemente com muitas dúvidas, por um lado em
relação à própria disciplina que se estuda, mas também, por outro lado,
incitado pela "teologia científica", em relação aos conteúdos da própria fé),
encontra-se servindo a uma Igreja, cujo caráter institucional muitas vezes não
é inteiramente perceptível (p. ex.: o que com freqüência não está claro é a
relação da comunidade como local de trabalho concreto e a Igreja como
instância abrangente: o que é, a rigor, "Igreja" em termos teológicos?), e,
depois de algum tempo, integrou-se em seu biótopo pastoral. A gente está
disposto/a a prestar seu serviço da melhor forma possível. Como pregador/a,
a gente continua fazendo parte do conjunto da sociedade com todos os seus
jogos de linguagem e quer falar a outros participantes dos jogos lingüísticos.
Para tanto existem um espaço previsto e um tempo previsto, bem como, na
maioria das vezes, um texto previsto, um conteúdo que deveria preencher o
discurso. A gente tem expectativas - próprias e alheias - a cumprir, gostaria
de ser sincero, honesto e autêntico, quer falar de modo compreensível.. útil e
proveitoso. O pregador ou a pregadora se vê confrontado/a com uma multi-
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Teologia Prática no contexto da América Latina
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Homilética
..
prédicas feitas nos chamados "ofícios casuais". Ainda assim, parte do que
1 O mais tardar então chega o momento em que os pastores começam a pensar em mudar de paróquia.
2 Nessas questões terminológicas, adoto as propostas de Nelson KIRST, Rudimentos de homilhica, p. 17,.
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Teologia Prática no contexto da América Latina
dizemos neste ensaio sobre a prédica dominical também pode ser aplicada a
outras ocasiões.
c) As ponderações e os temas deste ensaio lidam com problemas teóri
cos da homilética. Não são dadas orientações práticas sobre a redação da
prédica. Mesmo assim, percepções teóricas sempre deveriam ajudar a prática
- pelo menos é isto que espero.
3 A chamada 2ª Epístola de Clemente, aproximadamente do ano de 150 d.C., é considerada a mais antiga
prédica comunitária protocristã. Grandes pregadores da I greja antiga foram Tertuliano (m. aproximada
mente em 220), Cipriano (m. após 258) e sobretudo Origenes (m. em 254).
4 Cf. verbete Homiletik, de Hans Martin MÜLLER, in: Die Religion in Geschichte und Gegenwart.
5 Cf. ID., ibid.
Escritura só pode ser adquirida com os dons do Espírito Santo6 • Dificitmonte
se pode superestimar a influência de Agostinho sobre a prática de pregação
da Idade Média. Assim, o método interpretativo relacionado ao sentido
quádruplo da Escritura que foi empregado na Idade Média remonta a Agosti
nho. O alvo da prédica era a instrução pela palavra; Crisóstomo entendia essa
instrução como único "meio e caminho para a santificação além do exemplo
da boa ação".
Na Idade Média nos deparamos com uma tradição de prédicas extrema
mente diversificadas. A prática da prédica de modo nenhum passou para o
segundo plano, e sim o sacramento tomou-se o centro do culto. A prédica
tomou-se, por um lado, um gesto de ameaça do clero e o pregador virou o
arauto que deveria preparar a comunidade para os terrores do dia do juízo. Por
outro lado, encontram-se múltiplas formas de prédica nas prédicas das êruzadas
que se dirigiam diretamente ao povo, nas prédicas escolásticas direcionadas a
ouvintes acadêmicos, mas sobretudo na prédica do misticismo.
No séc. 8 Carlos Magno tentou levar a efeito uma nova regulamentação
da situação do Estado e da Igreja. Após a época da cristianização exterior
deveria agora ter início, dentro das fronteiras de seu império, a consolidação
da vida cristã e eclesial, e ele decretou que em toda comunidade deveria ser
feita uma prédica dominical no culto para a edificação e instrução do povo7 •
Essa medida deveria representar uma profunda renovação na vida eclesial.
Até então tinha havido apenas prédicas ocasionais feitas por bispos em latim
que não eram entendidas pelo povo. Entretanto, essas prescrições não surti
ram maior efeito porque o clero comum, que era formado só para a celebra
ção das missas, não estava à altura dessa tarefa de pregação.
Assim, além das universidades, nas quais a prédica acadêmica era feita
para um público instruído, a tarefa de pregar ao povo ficou por conta das
ordens mendicantes. E essas prédicas tinhma um único tema: a penitência. "O
alvo da educação religiosa do povo não era mais o afastamento do paganis
mo, mas um estilo de vida cristã rigoroso e controlado (confissão auricular) e
sancionado (penitência) por instituições."8 A partir das prédicas sobre a
penitência surgiram as prédicas sobre indulgências, praticadas sobretudo
6 Agostinho, Crisóstomo, Orígenes, os grandes capadócios, Tertuliano - todos eles eram mais ou menos
instruídos em termos de retórica. Essa arte clássica do discurso tinha sua tarefa na argumentação
política e era ensinada como ciência.
7 Veja Dietrich RÕSSLER, Grundriss der Praktischen Theologie, p. 309.
8 ID., ibid., p. 30s.
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pelos dominicanos, as quais, por sua vez, tomaram-se uma das razões exter
nas centrais dos movimentos de reformas dos sécs. 15 e 16.
Como exemplo de pregador místico podemos mencionar, representati
vamente, o monge dominicano Eckehart, conhecido como Mestre Eckehart.
A idéia básica de Eckehart é a do nascimento da Palavra na alma. Suas
prédicas atestam uma visão mística e intuitiva que era determinada pela idéia
de que o núcleo essencial da alma humana e o fundamento divino do ser
deveriam ser, de alguma maneira, da mesma espécie, "que o ser humano e
Deus estariam ligados profundamente um com o outro em seu ser de um
modo que não poderia ser plenamente apreendido e enunciado num conceito
restrito"9•
b) Lutero e a época da Reforma: Lutero expressou-se de maneira extre
mamente crítica sobre a prédica da Igreja papal. Segundo seu juízo, só seriam
apresentadas "tolices", "lendas de santos, histórias mentirosas sobre sinais mila
grosos, peregrinações, missas, serviço aos santos, indulgência e coisas desse
gênero"10• É preciso refletir sobre esse juízo de Lutero, que foi assumido até a Era
Moderna, e obter clareza quanto às implicações a ele associadas.
"Lutero viu na palavra a categoria decisiva para o relacionamento do
ser humano com Deus."n Deus dá o ser por meio da palavra (Gn 1), promete
graça a seu povo, lhe dá ordens e o julga. O ser humano toma-se ser humano
por meio da palavra, por meio da linguagem 12• A fé é criada pela palavra que
vem de Deus. E mais: a própria prédica é entendida como palavra de Deus.
Segundo a convicção luterana, esse relacionamento de palavra falada externa
e palavra interior de Deus, que cria a fé no ser humano, é suficiente; o infinito
está inteiramente presente no finito: finitum capax infiniti. A palavra da
prédica não é uma.palavra que remeta o crente a outras fontes da religião que
seriam "mais reais ou verdadeiras", p. ex. aos sacramentos que comunicam a
graça. Neste ponto reside a mais inequívoca diferença em relação à com
preensão católica romana de mediação da salvação. Na Igreja Católica Ro
mana o culto era tido como instituição mediadora da salvação e os sacramen-
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Homiliticâ
13 E. Hirsch (in: BoA VII, 1-38) compilou as diversas manifestações de Lutero sobre a homilética
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dessa forma tão importante para nós hoje. A insi�tência dos reformadores no
acesso geral à escola antecipa justamente esse movimento: o indivíduo toma
se sujeito de si mesmo ao se deixar interpelar pela palavra. Segundo Lutero,
Deus quer dirigir a palavra ao ser humano enquanto indivíduo e quer fazê-lo
diretamente. É para o indivíduo que se destina a pregação da Palavra.
Não devemos pensar, contudo, que a Igreja medieval não tivesse uma
mensagem ou a recusasse aos crentes. Peter Comehl expôs, num panorama
global, a questão do nexo existente entre pregação, culto e espaço público.
Depois que, sob Constantino e seus pósteros, a Igreja antiga tomara-se a
Igreja imperial, sua tarefa consistia em produzir uma integração entre culto
cristão e culto público. Nesse processo, segundo Comehl, a liturgia desempe
nhou um papel destacado: "Ela marcava as amplas massas simplesmente por
sua faticidade, por sua riqueza de formas e símbolos, pela avassaladora
evidência de sua realização, que se dirigia a todos os sentidos, uma realização
da qual cada pessoa podia participar de acordo com sua capacidade." 14 Com
isso a Igreja cristã assumiu a herança da antiga religião imperial. Só se podia
ter acesso à salvação participando das celebrações sacramentais e litúrgicas
da Igreja. A afirmação de que não haveria salvação fora da Igreja refere-se
exatamente a essa participação na liturgia e nos sacramentos.
Na véspera da Reforma, toda a vida do indivíduo e da sociedade está
inserida nesse cosmo sacramental 15 • Na missa acontece a representação da
salvação diante do povo pelos ministros sacerdotais. Em todo o protestantismo
existe uma tendência a descrever esse sistema cúltico representativo como
instrumento de domínio. Pelo visto, tanto a menção do uso exclusivo da língua
latina quanto a alusão ao fato de que o povo estava excluído de uma participa
ção efetiva na missa pelo sistema sacerdotal dominante bastam para desacredi
tar o sistema de culto da Igreja antiga e da Idade Média1 6 •
Afirmar que a Igreja medieval não teria feito pregação seria fruto de
uma compreensão errônea. A liturgia é pregação, é um ato de pregação que,
como qualquer outro ato de pregação, não está imune a abusos. A palavra e a
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condução da vida diária." 18 A divisa do iluminismo que pairava sobre a
prédica era a libertação do ser humano de sua menoridade.
e) Daniel Friedrich Ernst Schleiermacher (1768-1834): No pensa
mento de Friedrich Schleiermacher encontra-se uma concepção homilética
inteiramente distinta daquela proposta pelo iluminismo. Para ele o culto e a
prédica não são atividades docentes - neles não há nada para "aprender", nem
de modo geral em termos práticos, como nas prédicas da época do iluminismo,
nem em sentido dogmático, como na ortodoxia. Bem pelo contrário: na
prédica se expressa a autoconsciência piedosa do pregador, cujo interesse
seria introduzir a comunidade nesse sentimento piedoso e fazê-la sintonizar
se com ele. O pregador sai do meio da comunidade, colocando-se diante dela,
e a faz participar, durante a prédica, do sentimento da religião. Ele comunica
à comunidade em sua alocução o que sente profundamente em si mesmo.
Segundo Schleiermacher, a prédica seria comunicação da autoconsciência
piedosa que se tomoú pensamento. "Ele [se. o pregador] adianta-se para
exibir sua própria concepção como objeto para os demais, para conduzi-los à
área da religião, onde é o lar dele, e para inocular-lhes seus sentimentos
sagrados: ele enuncia o universo, e em sagrado silêncio a comunidade acom
panha seu discurso entusiasmado." 19
Schleiermacher era um teólogo com uma inclinação e sensibilidade
acentuadamente artística. A partir daí explica-se também por que ele colocou
a prédica numa relação de analogia com o lirismo. O discurso simples
dificilmente estaria em condições de explorar de modo adequado as dimen
sões profundas da consciência religiosa. Para tanto seria necessária uma
linguagem que consiga vibrar junto com o conteúdo do discurso, assim como
a música o faz com as palavras do canto.
O que impeliria o pregador não seria seu próprio orgulho ou pretensão.
Pelo contrário: aquilo que ele sente interiormente faz com que comunique
isso à comunidade. "Sua primeira aspiração é, antes --_quando uma opinião
religiosa ficou clara para ele ou um sentimento piedoso permeia sua alma -,
também chamar a atenção de outras pessoas para esse objeto e, na medida do
possível, reproduzir nelas as vibrações de seu ânimo."2º
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condução da vida diária." 18 A divisa do iluminismo que pairava sobre a
prédica era a libertação do ser humano de sua menoridade.
e) Daniel Friedrich Ernst Schleiermacher (1768-1834): No pensa
mento de Friedrich Schleiermacher encontra-se uma concepção homilética
inteiramente distinta daquela proposta pelo iluminismo. Para ele o culto e a
prédica não são atividades docentes - neles não há nada para "aprender", nem
de modo geral em termos práticos, como nas prédicas da época do iluminismo,
nem em sentido dogmático, como na ortodoxia. Bem pelo contrário: na
prédica se expressa a autoconsciência piedosa do pregador, cujo interesse
seria introduzir a comunidade nesse sentimento piedoso e fazê-la sintonizar
se com ele. O pregador sai do meio da comunidade, colocando-se diante dela,
e a faz participar, durante a prédica, do sentimento da religião. Ele comunica
à comunidade em sua alocução o que sente profundamente em si mesmo.
Segundo Schleiermacher, a prédica seria comunicação da autoconsciência
piedosa que se tomou pensamento. "Ele [se. o pregador] adianta-se para
exibir sua própria concepção como objeto para os demais, para conduzi-los à
área da religião, onde é o lar dele, e para inocular-lhes seus sentimentos
sagrados: ele enuncia o universo, e em sagrado silêncio a comunidade acom
panha seu discurso entusiasmado." 19
Schleiermacher era um teólogo com uma inclinação e sensibilidade
acentuadamente artística. A partir daí explica-se também por que ele colocou
a prédica numa relação de analogia com o lirismo. O discurso simples
dificilmente estaria em condições de explorar de modo adequado as dimen
sões profundas da consciência religiosa. Para tanto seria necessária uma
linguagem que consiga vibrar junto com o conteúdo do discurso, assim como
a música o faz com as palavras do canto.
O que impeliria o pregador não seria seu próprio orgulho ou pretensão.
Pelo contrário: aquilo que ele sente interiormente faz com que comunique
isso à comunidade. "Sua primeira aspiração é, antes - quando uma opinião
religiosa ficou clara para ele ou um sentimento piedoso permeia sua alma -,
também chamar a atenção de outras pessoas para esse objeto e, na medida do
possível, reproduzir nelas as vibrações de seu ânimo."20
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A comunidade acompanha o pregador em suas descrições, deixa-se
conduzir pelo caminho indicado por ele. Ela responde em profundo silêncio e
em concordância de sentimentos com aquilo que ouve.
Quando termina seu discurso, o pregador volta para o círculo da comuni
dade. Nada o eleva acima da comunidade. Neste ponto Schleiermacher era �
inteiramente um defensor do sacerdócio de todos os crentes. O elemento de
ligação entre a comunidade e o pregador é a relação comum com a Escritura.
Sob esta ótica �-se designar o procedimento homilético de Schleiermacher.
como dialógico: "E um diálogo com sua passagem da Escritura, que ele [se. o
pregador] inquire e que lhe responde, e com sua comunidade."21
d) Karl Barth (1886-1968): Para a teologia dialética, a tarefa da
prédica era tão-somente a "proclamação da palavra de Deus", e não instru
ção, aplicação prática ou regalo com as profundezas de um sentimento
religioso indefinível. Nesta concepção, a questão decisiva da homilética é a
definição do relacionamento entre a palavra humana - que nossa prédica,
afinal, sempre é - e a palavra divina - que. uma prédica deveria ser. Ocorre
que, em certo sentido, a teologia dialética, ao definir o que é a prédica,
recorre a um padrão básico ortodoxo quando constata: praedicatio verbi Dei
est verbum Dei - "a pregação da palavra de Deus é palavra de Deus". A
palavra de revelação de Deus deve expressar-se na prédica; a prédica deve
poder tomar-se palavra de Deus. O pregador deve entender a si mesmo como
instrumento de Deus, que o requisita para, por meio da prédica do pregador,
tomar, ele próprio, a palavra. Isto, naturalmente, está fora do domínio do
próprio pregador, e a prédica é a "possibilidade impossível" do pregador.
Numa pequena homilética22 Karl Barth oferece a seguinte definição de
doutrina da prédica em duas partes:
1. A prédica é palavra de Deus, falada por ele mesmo lançando mão do serviço
da' explicação - em discurso livre, dirigido a pessoas da atualidade - de um texto
bíblico por parte de uma pessoa vocacionada para isso na Igreja obediente à sua
missão. 2. A prédica é a tentativa ordenada à Igreja de servir à palavra do
próprio Deus por meio de uma pessoa vocacionada para isso, e de servir a ela de
tal modo que um texto bíblico seja explicado, em discurso livre, a pessoas da
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HomilétiC8
atualidade como texto que diz respeito justamente a elas enquanto anúftció
daquilo que têm a ouvir do próprio Deus. 23
Excurso:
A influência da tradição homilética anglo-saxã
sobre o protestantismo latino-americano
A missão protestante na América Latina partiu dos Estados Unidos. No
início do séc. 19 formaram-se na Europa e nos EUA sociedades missionárias
que se colocaram como tarefa anunciar o cristianismo também nas partes do
mundo que ainda não haviam sido cristianizadas ou, como no caso da Améri
ca Latina, eram católicas. O evangelho deveria ser divulgado a toda a huma
nidade.
A missão na América Latina teve início numa época em que a idéia de
missão desfrutava de extrema simpatia e popularidade. No ano de 1900
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Homilética
29 Manfred JOSUTIIS, Gesetzlichkeit in der Predigt der Gegenwart. Esta· seção reporta-se de modo gemi
a esse livro. · · · ·J'
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Teologia Prática no contexto da América Latina
Paulo chama o evangelho de poder de Deus e diz que a lei impele o ser humano
para o pecado. (...) O evangelho presenteia aquilo de que fala e distribui aquilo
para que conclama. A palavra de Deus, portanto, não deixa o ouvinte vazio; ela
o transforma, de uma maneira ou outra, para a vida ou para a morte.30
O legalismo, por sua vez, que emerge e pode ser observado constante
mente na prédica, carece justamente dessa confiança na capacidade de atua
ção da Palavra. Por isso tais prédicas admoestam, apelam, conclamam. A
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unidade de Palavra e efeito, que pode transparecer no ato da pregação, é
desfeita. Embora ainda se fale a Palavra na prédica, aquilo "que realmente
importa" (?) é transferido para um tempo posterior. Após a prédica, após o
culto é que deve acontecer a ação da fé, deve ser tomada a decisão pela fé (!),
o ser humano deve mostrar sua obediência. "Não é mais a Palavra que faz
algo do ser humano, mas é o ser humano que deve fazer algo da Palavra."31
Mas a prédica não é nem um manual de instruções nem tem a tarefa de
transmitir notícias. Isto pode parecer provocador, mas o "valor informativo" de
uma prédica é realmente baixo. Quase não há novidades a comunicar. A Bíblia
é um dos livros mais lidos da literatura mundial. A gente "sabe" o que há nela
para se ler. No tocante ao conteúdo da Bíblia, os pregadores não têm qualquer
vantagem em termos de informação. O que eles têm de conhecimento que vai
além da medida normal é o conhecimento teológico especializado, maà este
não deve constituir o conteúdo da prédica no púlpito. Infelizmente, como
ouvintes acabamos ouvindo repetidas vezes detalhes exegéticos acerca do texto
de prédica. Ao fazer isso, o pregador se retira para uma "posição segura" e
apresenta à comunidade fatos históricos ou conhecimentos exegéticos "segu
ros". De certo modo ele objetifica o texto de prédica, transformando-o, assim,
numa grandeza manuseável. Além da questionabilidade retórica desse procedi
mento (a quem interessa isso?), há um aspecto teologicamente problemático
nisso. O recurso à historicidade encerra o perigo de que a apresentação de
histórias do passado remoto se tome uma espécie de relato de fatos salvíficos
cuja importância ou significância para o presente seja afirmada. Cabe unica
mente ao ouvinte, então, ter esses fatos históricos salvíficos como "conteúdos
de fé". Com isso, porém, a fé toma-se uma realização a ser feita pelo ouvinte.
Outra variante de pregação exegética consiste em atribuir às histórias
bíblicas um caráter modelar, que conclama o ouvinte a seguir o exemplo.
O aspecto legalista em ambas essas formas de lidar com o texto consiste
em que se conclama o ouvinte a medir-se pelo texto. Com isso a prédica
toma-se uma exigência de algo que o ouvinte deve desempenhar. Ele deve
portar-se correspondentemente para poder fazer jus às determinações da
prédica. De um modo dificilmente perceptível insinua-se um legalismo que
transforma o ouvir e o anunciar a graça num prelúdio que o ouvinte deve
confirmar por sua ação posterior. Essa ação posterior, contudo, deve, inversa
� mente, ser entendida como uma preparação para a graça, a qual, a rigor�
deveria ser gratuita.
31 lbid.
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32 Manfred JOSlmlS, op. cit, p. 36 e passim, não hesita em falar em "mania" ou "vício".
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com outras pessoas, sua família, seus amigos, seus vizinhos, seus concidadãos.
Ele não pode se esquivar da participação no processo de estruturação e
organização da sociedade, pois também uma recusa de participar de proces
sos políticos é um enunciado político.
O mesmo aplica-se à prédica. Como discurso, como alocução dirigida �
membros de comunidade que são, ao mesmo tempo, membros de uma socie
dade política, ela não cai num espaço sem política. O pregador diz algo
acerca de determinadas situações políticas - ou deixa de dizê-lo. Ambas as
coisas têm seu peso, ambas são registradas e processadas pelo ouvinte da
prédica.
Ora, existe, para além da impossibilidade de ser não-político, um "direi
to" ou até uma "tarefa" de fazer prédica política?
O título "Prédica política" obriga a uma análise da história da Igreja e da
teologia que aqui, todavia, só pode ser feita de modo rudimentar. Desde seu
início o cristianismo estava colocado na tensão entre religião e política. As
afirmações de Paulo em Rm 13. lss. apontam para primeiras perguntas a
respeito de como os cristãos deveriam regulamentar seu relacionamento com
o Estado. As perseguições às quais a jovem cristandade esteve exposta nos
primeiros séculos são resultado dessa tensão. E embora a ameaça para a
jovem Igreja tenha sido afastada pelo edito de tolerância de Constantino em
313 d.C., intensificou-se, ainda assim, o questionamento acerca de como se
deveria ordenar e conceber teologicamente o relacionamento entre religião e
Estado. Em última análise, essa questão ficou não-resolvida, e as tensões
entre a Igreja e os respectivos detentores do poder mudavam de acordo com
quem ocupava os cargos decisivos.
Na esteirá da Reforma ocorreram distúrbios políticos consideráveis. E
muitas vezes, colocar-se do lado da Igreja Romana ou dos reformadores era
uma decisão política para as dinastias. Em 1523 Lutero redige seu escrito "Da
autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência". E ele incute tanto
nos crentes quanto nos governantes que é a Deus que se deve obedecer em
primeiro lugar. Os príncipes deveriam tratar seus súditos de tal maneira que
estes se beneficiem de sua política de governo - e não os próprios príncipes.
Também e justamente para os governantes Cristo é o modelo pelo qual é
preciso orientar-se. Em sua "doutrina dos dois reinos" Lutero desenvolve a
idéia de que na Igreja é só a palavra que deveria governar. Esta máxima
suprema aplicar-se-ia também ao âmbito político, mas, para proteger o direito
e a ordem, as autoridades também têm ainda a espada à disposição. Ambos os
reinos, o reino da Igreja e o reino do Estado, estão subordinados ao manda
mento de Deus, do qual partem as incumbências e instruções. Por ser isto
Homilitica
163
:Ceológia Prática no contexto da América Latina
de Deus não deve ser entendida erroneamente como posse habitual, que lhe
possibilitasse assumir uma posição mais qualificada do que a dos outros. A
prédica política é uma voz ao lado de outras no concerto da formação da
vontade política; qualquer outra postura acarreta o perigo do clericalismo35 •
Com isso se indica que também a prédica política tem de envolver-se num
processo de formação da vontade política, que existe num Estado pluralista. "'
O transcurso da democratização foi diferente nos estados da Europa e nos da
América do Sul. Ao passo que na Europa foi o abandono da ordem hierárqui-
ca tradicional que precisou ser imposto, também contra a resistência das
igrejas, na América do Sul foram constantemente as igrejas que lutaram pela
democratização com os meios que tinham à disposição. A democracia traz
necessariamente consigo o pluralismo- na vida cultural, religiosa e política
de uma nação. Esse pluralismo merece ser protegido e conservado.
Se a pregação política não se entende como uma voz entre outras, ela
expõe o processo de democratização da qual ela própria participa aos perigos
de uma unilateralização. A democracia precisa de muitas vozes e muitos
valores (polivalência). Como pregadores temos de acrescentar mais uma voz
a esse coro de vozes: a voz do evangelho, que está fundamentado na liberta
ção do povo de Israel e que sabe contar histórias de liberdade. Pressupomos
que essas histórias também sejam essenciais no discurso político e para ele.
35 Veja, quanto a isso, as advertências de Barth contra um "Estado clerical"; Karl BARTII, Justificação e
direito, in: ID., Dádiva e louvor, p. 276s.
36 Gert O'ITO, Handlungsfelder der Praktischen Theologie, p. 260.
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37 Isso é contestado pela teologia dialética; veja Eduard THURNEYSEN, Die Aufgabe der Predígt.
38 Ortega y Gasset, cit. ap. Gert OITO, op. cit., p. 260.
39 A distinção entre emprego instrumental e medial da linguagem é tomada de ID., ibid., p. 263ss.
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Teologia Prática no contexto da América Latina
40 Aqui vale a pena remeter à afirmação central de Marshall McLuhan: o meio é a mensagem.
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a dogmática obstruem o acesso da comunidade ao texto ao invés de iluminá
lo. Prédicas dogmáticas ou exegéticas são muitas vezes o exemplo mais claro
de uma comunicação malograda, porque o pregador emprega um código
lingüístico diferente daquele dos ouvintes da prédica. A exortação a pregar na
linguagem do cotidiano pretende advertir contra esse abuso da linguagem
técnica ou científica.
Ora, depois de termos visto para que serve a linguagem do cotidiano - a
saber, para usar as coisas, o mundo-, só podemos ainda advertir contra um
emprego irrefletido da linguagem instrumental - e a linguagem técnica ou
científica representa exatamente esse caráter instrumental da linguagem.
Fazemos isso por duas razões:
1) A linguagem do cotidiano só repete, fixa, usa e funcionaliz& as coisas
(Deus!). Por meio da linguagem cotidiana nós utilizamos as coisas sobre as
quais falamos, as domesticamos.
Exatamente no mesmo nível de argumentação deve-se fazer frente à tese,
expressa repetidas vezes, de que a linguagem do cotidiano deveria ser a lingua
gem da fé e da prédica. O cumprimento dessa exigência, por mais convincente
que seja no marco de um conceito demasiado superficial de compreensibilidade,
teria necessariamente de privar o ouvinte justo daquilo que é mais e que é
diferente da repetição de seu cotidiano, da repetição das fixações e estreitamentos
transportados pela linguagem do cotidiano. 41
41 Ibid., p. 273.
42 J. ANDEREGG, Sprache und Verwandlung, 1985, p. 84, cit. ap. ibid., p. 274.
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Teologia Prática no contexto da América Latina
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Homilética
43 Como advertência: teologicamente fundamentado não significa que o pregador deva éUlldi.: •·�
nidade com ortodoxias teológicas, exegéticas ou históricas.
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Teologia Prática no contexto da América Latina
que as palavras que usamos. Um colega mais velho disse certa vez: "Um bom
pastor é um bom leitor e um bom vizinho." E eu acrescentaria que ele ou ela
deve também ser capaz de usar a linguagem para a finalidade para a qual
Deus a deu a nós: para lidar criativamente conosco e com as demais pessoas.
Já se domina muito neste mundo, também e justamente com palavras. Na
prédica as pessoas finalmente deveriam poder se experimentar como livres de
domínio ou dominação. Isso, entretanto, obriga o pregador a formar em si
mesmo urna forma de discurso que seja livre de domínio ou dominação.
Bibliografia
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