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Planejamento metropolitano: uma proposta de conservação urbana e territorial

Norma Lacerda, Sílvio Mendes Zancheti y Fernando Diniz

 
Planejamento metropolitano: uma
proposta de conservação
urbana e territorial
Norma Lacerda, Sílvio Mendes
Zancheti y Fernando Diniz**

Abstract

The objective of this work is to apply the concept of sustainable urban development
to a real case of metropolitan development planning in a developing country. The
ideas of integrated conservation are used as the framework for the formulation of
strategies and action polices for the management of the metropolis. The paper
explores the concepts of conservation and areas of transformation as well those of
service networks and information. The work tries to present general concepts for
new urban planning initiatives. However, it has a strong practical sense because it
is based on the real application of the new concepts on the formulation of the
Development Plan of the Recife Metropolitan Area.

Key Words: Sustainable Development, Urban Management, Recife Metropolitan


Area.

Resumen

El objetivo de este trabajo es aplicar el concepto de desarrollo urbano sustentable a


un caso real de planificación del desarrollo metropolitano en un país en vías de
desarrollo. Las ideas de conservación integrada se utilizan como marco para la
formulación de estrategias y políticas de acción relativas a la gestión de la
metrópoli. El artículo explora los conceptos de conservación y áreas de
transformación asi como también los relacionados con información y redes de
servicios. El trabajo intenta presentar conceptos generales para las nuevas
iniciativas de la planificación urbanas. Sin embargo, tiene un fuerte sentido
práctico porque se basa en la aplicación real de los nuevos conceptos en la
formulación del Plan de Desarrollo del Area Metropolitana de Recife.

Palabras clave: Desarrollo sustentable, Gestión urbana, Area Metropolitana de


Recife.

** Profesores do Centro de Conservação Integrada Urbana e Territorial (CECI) da Universidade Federal de


Pernambuco - Brasil.

Revista eure (Vol. XXVI, Nº 79), pp. 77-94, Santiago de Chile, diciembre 2000
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Planejamento metropolitano: uma proposta de conservação urbana e territorial
Norma Lacerda, Sílvio Mendes Zancheti y Fernando Diniz

Apresentação deslocamento contínuo das margens


da área urbana (a fronteira cidade/
O presente texto tem como objetivo campo), gerando um desenho do
apresentar uma nova proposta para o território semelhante a uma mancha
planejamento das áreas metropolita- de óleo com um centro e uma perife-
nas do Brasil. São apresentados novos ria de forma tentacular em contínua
conceitos e temas para o planeja- expansão. Na mancha urbana resul-
mento espacial metropolitano, que bus- tante, ficaram inúmeros vazios e
cam responder a questões sobre o áreas subocupadas. São áreas
desenvolvimento urbano sustentável. deixadas como reserva de valor, espe-
rando a elevação do preço do solo para
serem lançadas no mercado. Capi-
O conteúdo do trabalho constitui
talizaram os excedentes de valor por
uma síntese das reflexões realizadas
meio dos gastos públicos em infra-
pelos autores durante a elaboração da
estrutura e serviços urbanos nece-
proposta do Plano de Desenvolvimento
ssários para atender as novas áreas
da Região Metropolitana do Recife
ocupadas. Em geral, os tentáculos
(1998). Significa, portanto, um esforço
seguiram os eixos viários, onde existia
de generalização teórica, de maneira
uma pequena oferta de infra-
que as idéias apresentadas detenham
estruturas básicas e serviços urbanos.
um certo nível de aplicabilidade em
outras realidades metropolitanas do
Brasil e de outros países periféricos. A metropolização completou-se pela
Apesar da tentativa de teorizar sobre conurbação dos núcleos urbanos
o problema da planificação metropoli- tradicionais à cidade central. Nesse
tana, o trabalho a seguir ainda tem momento, o antigo território, composto
uma estrutura de ensaio. de várias urbanizações, com qualida-
des distintas de tempo, espaço e
processos culturais, tornou-se um
1. O processo de configuração
território com uma única urbanização
espacial das metrópoles
em termos físicos ‘a cidade esten-
dida’, mas contendo inúmeras for-
O Brasil é hoje um país urbano, uma mas de ocupação urbana, isto é, criou-
vez que 78% de sua população habita se uma unidade que manteve a
em cidades. Esse resultado foi gestado, diversidade dos diversos tipos de
sobretudo, nas décadas de 60 e 70, ocupação histórica.
quando as metrópoles brasileiras
foram estruturadas. As grandes
Assim, o modelo de organização do
cidades, capitais em geral, passaram
espaço, na fase inicial de formação
por um intenso processo de cres-
das metrópoles brasileiras, baseava-
cimento, decorrente da expansão
se na existência de um centro e uma
populacional e industrial. Além disso,
periferia, definindo uma forma espe-
absorveram os núcleos urbanos que
cífica de apropriação social, econômica
se organizavam ao seu redor.
e política do território. O centro
concentrava as principais atividades
A primeira fase do processo de econômicas, públicas ou privadas, as
metropolização, correspondente sobre- infra-estruturas urbanas e as áreas
tudo às décadas de 60 e 70, foi carac- habitacionais de mais alto nível de
terizada por um modelo de cres- renda. A periferia servia para abrigar
cimento urbano extensivo, isto é, de a massa da população migrante, de

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baixa renda. Eram formadas por meio além das infra-estruturas e serviços
de invasões, loteamentos populares e/ urbanos, na segunda fase foram, pau-
ou clandestinos, conjuntos habita- latinamente, abandonados por quase
cionais e outras formas típicas de todas as atividades de prestígio do
ocupação das grandes cidades dos paí- setor comercial e de serviços. Os cen-
ses periféricos. tros também deixaram de ser áreas
residenciais para os grupos sociais de
A segunda fase, que se inicia nos alta renda. Neles, emergiu um capi-
meados da década de 70 e se intensi- tal construído ocioso, caracterizado
fica na década de 80, foi caracteriza- pela baixa rentabilidade, significando,
da pelo processo de substituição de portanto, uma desvalorização da rique-
antigas estruturas construídas e za construída, pública e privada. Além
criação de novas áreas centrais. disso, ocorreu a perda de identidade
do cidadão metropolitano, uma vez que
A substituição do estoque esses centros constituíam um impor-
tante referencial histórico e cultural.
construído existente deu-se por meio
O resultado é que ficaram como
da verticalização de áreas residen-
lembranças que não se materiali-
ciais de alta qualidade ambiental e
bem localizadas relativamente às zavam enquanto espaços comuni-
infra-estruturas e aos serviços. Os tários. Dessa forma, a perda do valor
bairros tradicionais de baixa densidade cultural foi acompanhada de uma
e alta qualidade ambiental foram as outra perda: a do valor social.
principais vítimas da intensa ver-
ticalização. Esse movimento foi, e Na periferia pobre criou-se um am-
ainda o é, provocado pela migração biente urbano precário, constru-
intra-urbana, causada pelo processo de tivamente denso, com poucos espaços
ascensão social e, sobretudo, pela abertos, quase sem serviços e equi-
busca de símbolos como status, poder pamentos coletivos e com insuficien-
e prestígio. Alimentado pela especu- te infra-estrutura, especialmente a de
lação imobiliária, significou um per- esgotamento sanitário. Acrescente-se,
manente e diferenciado processo de ainda, que a natureza foi pratica-
valorização e desvalorização da terra mente arrasada, sobrando apenas o
urbana e do estoque de edificações relevo como registro do passado natu-
para gerar novas centralidades. No ral. Isso criou enormes problemas de
interior de tal processo surgiram, insegurança ambiental, manifestos
ainda, as "periferias dos ricos", isto é, nos alagamentos, deslizamentos de
áreas residenciais de alto luxo com morros, poluição de cursos d’água e
baixa densidade (os condomínios, por ausência total de vegetação.
exemplo), localizadas nas margens ur-
banas, próximas a eixos rodoviários co- Inquestionavelmente, o modelo
nectados com as áreas centrais. centro-periferia da metropolização
virou as costas aos ambientes
Esse mais recente modelo de me- naturais (rios, lagoas, os córregos etc.)
tropolização penalizou fortemente os que integram a paisagem urbana. Se
centros históricos da cidade central. o processo histórico de formação das
Se, na primeira fase do processo, os cidades brasileiras ocorreu, em gran-
centros congregavam as principais de parte, condicionado pelos recursos
atividades econômicas e de decisão, naturais, inserindo-os como elemen-
tos ambientais que poderiam ser

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apreendidos enquanto um conjunto mentado, com grandes problemas de
harmônico (natural e construído), as adequação ambiental e pouco articu-
práticas urbanizadoras mais recentes, lado do ponto de vista de uma
na maioria das vezes, desprezaram- identidade cultural da população com
nos. O que se presencia, nas metró- a ocupação urbana resultante.
poles, é, praticamente, um descaso em
relação aos seus recursos naturais, 2. M etrópole como um
desconsiderando-os como recursos território histórico
estratégicos em vista de seu poten-
cial econômico (turismo), de melhoria
da qualidade de vida, sem esquecer, 2.1. A diversidade e a unidade da
evidentemente, a importância de metrópole
preservá-los para as gerações futuras.
Por mais caótica que tenha sido a
Os anos noventa vêm significando constituição da forma do território
um período de mudança de tal modelo metropolitano, ele é um todo, uma
de urbanização. As taxas de cresci- unidade espacial. Inúmeros estudos
mento das grandes metrópoles dimi- recentes têm mostrado a diversidade
nuíram, ficando, em geral, abaixo das de apropriação desse território e as
taxas nacionais de expansão da suas conseqüências, em termos de
população. O modelo centro/periferia segregação social, espacial e eco-
deixou de ser dominante. A grande no- nômica. Contudo, esses estudos, em
vidade é o processo de migração intra- geral, desconsideram a dimensão da
metropolitano, responsável pela representação da metrópole enquanto
continuidade do esvaziamento de par- cidade expandida, que abarca os vários
cela importante de bairros residen- territórios das cidades que as
ciais por meio da substituição de integram, formando um único terri-
moradias unifamiliares por coletivas, tório urbanizado.
caracterizadas pela alta densidade, e/
ou por estabelecimentos comerciais e A metrópole se organiza a partir de
de prestação de serviços. Esse movi- um núcleo (a cidade centro regional)
mento vem criando segregações espa- que articula espacial, econômica, po-
ciais marcantes dentro de um con- lítica e culturalmente os outros nú-
texto de desigualdade na distribuição cleos urbanos a ele ligados em uma
da renda e na oferta de bens e serviços relação de dependência e/ou comple-
públicos. mentaridade. A conurbação entre os
núcleos urbanos é extensa, embora
A forma de ocupação espacial das não seja total, pois continuam a exis-
metrópoles dramatizou, portanto, os tir espaços "livres" entre as diversas
problemas de iniqüidade da sociedade manchas urbanas. Apesar dessa
brasileira. Criou uma distribuição, no fragmentação e descontinuidade es-
espaço, profundamente desigual em pacial, a metrópole compõe um con-
termos de moradia, renda, oferta de junto articulado e hierarquizado.
serviços e de infra-estrutura urbana,
amenidades e segurança ambiental e Enquanto um todo espacial, a
acesso a equipamentos de consumo metrópole é um produto recente, um
coletivo e cultural. Em síntese, um processo histórico que, por um lado,
território urbanizado de modo frag- sintetiza inúmeros outros processo
parciais de ocorrência contemporânea

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e/ou mesmo simultânea. Por outro, uma dessas parcelas sofreu ao longo
no seu interior existem formações de sua existência. Os tecidos antigos,
urbanas antigas resultantes de vários formados nos séculos XVII e XVIII,
processos sociais que terminaram ou convivem com tecidos de constituição
ainda estão em curso, como é o caso recente.
dos centros históricos tradicionais.
Todos estes processos estão articula- Desse modo, em termos de diver-
dos, mas, apesar disso, a metrópole sidade de formas de urbanização, a
produz fragmentações sociais percep- metrópole apresenta-se como um con-
tíveis no nível de todas as dimensões, junto de cidades e partes de cidades
sejam elas espaciais, econômicas, com origem em diferentes épocas his-
políticas ou culturais. tóricas que se integram em um todo
único. Enquanto artefato espaço/tem-
Assim, a metrópole, do ponto de poral, ela é uma unidade da diversi-
vista da apropriação humana do dade, cuja compreensão necessita da
território, é um todo constituído de análise particularizada e abrangente
partes clara e diferentemente carac- simultaneamente.
terizáveis. Existem as partes, mas
também existe o todo metropolitano. Essa unidade somente pode ser
É possível identificar as partes re- entendida por meio da dimensão tem-
correndo-se a um estudo morfológico poral do território, portanto da sua
do tecido urbano metropolitano, capaz historicidade. A metrópole brasileira
de individualizar as porções do tecido é decorrente do acúmulo histórico de
a partir dos diferentes padrões de práticas urbanizadoras que modelaram
ocupação do solo, ou seja, dos diversos um território com o uso de processos
artefatos que constituem a estrutura de estratificação (a arqueologia da
urbana. ocupação urbana) e justaposição dos
vários produtos da ação humana de
Procedendo-se dessa forma, pode- domínio da natureza. É esse acúmulo
se identificar-se, nas metrópoles cen- que dá sentido humano e cultural a
tradas nas antigas cidades brasileiras, este artefato gigantesco que é a me-
porções do tecido urbano formadas nos trópole.
séculos XVII, XVIII e XIX, bem como
inúmeras outras, típicas de padrões 2.2. Os vários tempos da metrópole
de ocupação do século XX. Tais parce-
las são a realização material das A fragmentação metropolitana torna-
concepções históricas da organização se compreensível por meio da análise
da cidade, sejam elas de origem eru- do tempo histórico atuando sobre as
dita (concepções urbanísticas formais)
diferentes formações espaciais da
ou populares (os traçados e edificações
metrópole. Existem diversos tempos
vernaculares). sobre o território metropolitano asso-
ciados a diferentes processos históri-
Todos esses registros históricos da cos, que estão sobrepostos ou atuando
ocupação urbana territorial coexistem simultaneamente (Secchi, 1998: 117-
na metrópole contemporânea. Mais 118). Pode-se identificar, pelo menos,
que coexistência, a leitura do mate- quatro diferentes tempos no território
rial urbano histórico permite identifi- metropolitano.
car as várias transformações que cada

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Primeiro, há os tempos longos, implantação de grandes investimentos
associados a determinadas localidades produtivos. Ele se articula, em deter-
e a processos culturais locais especí- minados momentos, aos tempos
ficos de remota origem histórica. locais, sendo que esses passam,
Algumas pequenas cidades e bairros embora nem sempre, a assumir os
antigos, que foram envolvidos pela ritmos do tempo metropolitano.
conurbação metropolitana, são núcleos Contudo, essa associação não é per-
seculares, com processos culturais de manente.
grande resistência aos impactos
homogeneizantes da modernização e Quarto, existe o tempo da globa-
da globalização. Podem ser citados lização, que é muito recente e sem
como exemplos o sítio histórico de características definidas. Nas
Olinda e a cidade de Igarassu, no in- metrópoles brasileiras, é ainda um
terior da Região Metropolitana do tempo fugaz, que faz suas aparições
Recife. Esses lugares têm uma con- de forma intermitente, sem grande
formação morfológica e tipológica aderência à realidade local. É um
estável, e os usos do solo mudam de tempo que está para se firmar.
forma mais lenta que em outras par-
tes do território metropolitano. Os tempos históricos se sobrepõem
em um determinado lugar na me-
Segundo, há os tempos mais trópole: o seu centro histórico. O cen-
recentes, associados aos núcleos ur- tro é o lugar da máxima estratificação
banos novos, formados no interior da das práticas urbanizadoras e do
conurbação como resultado do cres- acúmulo de significados culturais. As
cimento da mancha urbana. Esse é o suas várias camadas estão presentes
caso, ainda na Região Metropolitana fazendo com que os tempos diferen-
do Recife, dos municípios de Abreu e ciados permaneçam visíveis, criando
Lima e Camaragibe, que sugiram da significados novos que são apoiados
urbanização de trechos de rodovias nos velhos. Por isso, a metrópole não
situadas nos limites do município perde o seu centro cultural, apesar da
central da metrópole. Em tais locali- criação constante de vários centros
dades, o tempo histórico é de cur- urbanos (ou centralidades). É o centro
tíssima duração, sem trajetória histórico que ‘amarra’ as diversas
estável e ritmo definido. O processo partes do território metropolitano em
cultural local não está formado e as um único significado cultural. Por-
referências são aquelas da cidade tanto, é por meio do centro e de seus
central, da cultura de massa e das processos históricos que a metrópole
reminiscências dos locais de origem poderá tornar-se uma unidade
dos imigrantes. O espaço construído é significante no nível da nova cultura
precário, de feitura claramente tran- que a mesma está formando.
sitória, e busca maximizar os bene-
fícios da pouca infra-estrutura urba- 2.3. A permanência e a mudança
na existente.
A questão da temporalidade das
Terceiro, há o tempo da metrópole, metrópoles brasileiras está dire-
também recente. Ele abarca todo o tamente associada aos conceitos de
território mas existe, somente, para mudança e permanência das es-
certos processos sociais, como a
formação de infra-estruturas e a

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truturas urbanas que a compõe, bem maiores quanto maior for o período de
como da sua relação dialética. tempo futuro considerado. A partir das
estruturas urbanas do presente,
Por um lado, as metrópoles, en- somente é factível determinar um
quanto artefatos unos, são produtos conjunto potencial de estruturas fu-
recentes e claramente incompletos, turas possíveis, nas quais as es-
uma vez que estão em fase de cons- truturas herdadas do passado, de-
tante mudança. Por outro, certas correntes dos processo de seleção do
estruturas urbanas que as compõem tempo longo, terão grande proba-
lhes conferem um significado cultu- bilidade de ocorrência, isto é, atuarão
ral por apresentarem uma forte ten- enquanto forças de permanência.
dência à permanência, ou seja, um
alto grau de estabilidade morfológica A estrutura urbana do presente
e tipológica. São essas parcelas tem, por conseguinte, uma natureza
praticamente estáveis que passaram transitória entre o passado e o futuro.
pelo teste histórico da longa duração No processo de determinação das
e, portanto, são as partes signifi- direções de permanência e mudança,
cantes. fica sem sentido recorrer-se a essa
polaridade, pois todo o processo será
Permanência e mudança são, de de mudança. A permanência é, por-
fato, as forças básicas de qualquer tanto, uma forma de controle da
sociedade e não podem ser interpre- mudança. Do ponto de vista do plane-
tadas de modo compartimentado. jamento urbano, a gestão da mudança
Constituem uma unidade que, so- da estrutura urbana constitui a sua
mente pode ser diferenciada em nível diretriz básica.
analítico e não real. O tempo é uma
realidade insuperável e tem, somente, 3. Os desafios do
o sentido do passado ao futuro. Uma planejamento das
estrutura urbana do presente está metrópoles
condicionada por aquilo que foi no
passado e indeterminada (aberta)
3.1. Ser global e ser local
naquilo que será no futuro. No pre-
sente, ela é fruto da herança históri-
ca mais os atributos do ambiente onde As metrópoles brasileiras dos anos 90
está inserida. No futuro, ela será o enfrentam o grande dilema de se
produto da interação entre a herança inserirem no processo de globalização.
histórica e as condições futuras do Até o presente momento, tal processo
ambiente, da economia, da sociedade se apresenta excludente, criando dois
e da técnica. campos opostos: (i) o das poucas gran-
des cidades que fazem parte da rede
mundial de cidades globais, dela se
Devido à força das estruturas ur-
beneficiando; (ii) o das cidades
banas do passado, elas estão, em
dependentes das metrópoles globais que
algum grau, imanentes nas do pre-
articulam, no máximo, territórios
sente, sendo, no entanto, impossível
subnacionais e sofrem os grandes pro-
de se prever como serão no futuro. As
blemas decorrentes da rede mundial.
estruturas futuras, portanto, não serão
predeterminadas, uma vez que poderão
assumir múltiplas formas. Os seus Fechar os olhos a esse processo
níveis de indeterminação serão tanto seria uma decisão política insensata,

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fadada ao fracasso no curto prazo. nas demais, de tal forma que se
Numa época de processos de homo- diferenciem umas das outras. Parti-
geneização econômica nacional e in- cipar da globalização implica a cons-
ternacional, a prática urbanizadora trução de uma estratégia de sobre-
modifica-se a partir da ação dos novos vivência no interior da rede global. Tal
agentes econômicos que impulsionam estratégia significa, em grande parte,
a integração na macroescala territo- o reforço das especificidades locais
rial. O território metropolitano passa para que a diferença possa tornar-se
a significar, muitas vezes, território valor, revertendo, assim, a tendência
nacional ou internacional. Assim, as de desvalorização geral do capital fixo.
áreas de domínio (no sentido estraté- Valor na economia pós-industrial é,
gico) de uma cidade passam a ser de- basicamente, uma categoria despre-
terminadas pela capacidade de coman- gada da matéria e totalmente ligada
do de recursos e de geração de infor- ao intangível, isto é, a processos de
mação socialmente útil para qualquer criação de informação e cultura. A
outro agente social ou econômico do metrópole que consegue criar e fazer
mundo. São, por exemplo, as cidades reconhecer as suas especificidades, no
mundiais (Londres, Nova York, Fran- interior da rede global, passa a agre-
kfurt, Tóquio, Hong Kong e São Paulo, gar valor à sua produção local, inde-
entre outras) conectadas por redes de pendentemente do setor econômico no
informação e de finança e com alta qual esteja atuando.
capacidade de mobilidade dos seus
atores. No Brasil, esse processo é 3.2. O desenvolvimento sustentável
bastante nítido, levando a que somente
algumas metrópoles, em especial São As metrópoles brasileiras dos anos 90
Paulo e Rio de Janeiro, estejam par- enfrentam o enorme desafio de criar
ticipando, de forma mais intensa, do um processo de desenvolvimento ur-
circuito econômico mundial (Sassen, bano que permita reverter a marcha
1998: 48-57).
de degradação urbana instalada ao
longo dos últimos trinta anos, de for-
Pertencer a uma rede global, direta ma a melhor responder às exigências
ou indiretamente, não exclui o proce- do mundo contemporâneo. Foi diante
sso local. As cidades continuam da ameaça representada pela exce-
dependentes das suas especificidades ssiva degradação ambiental e da
locais, de natureza ambiental, cultu- complexidade de intervir nas cidades
ral, econômica e política. Isso, por sua que surgiu a noção de desenvolvi-
vez, vem dar maior valor a tudo o que mento urbano sustentável. Em suas
caracteriza o local. A homogeneização linhas essenciais, significa um proce-
global restringe-se a alguns processos sso de mudança capaz de garantir que
econômicos e culturais, mas não abar- os esforços de desenvolvimento gerem
ca os processos da vida e da cultura condições de maior eqüidade social,
do cotidiano. em consonância com a preservação
da qualidade dos recursos naturais e
A globalização pode acarretar uma ambientais e com o respeito às iden-
rápida perda de identidade das tidade socioculturais.
metrópoles integrantes da rede, a não
ser que cada uma consiga formar Assim, a relação entre urbanização,
processos específicos de geração de economia, política, natureza e cultu-
valor que não possam ser reprodutíveis ra deve ser mudada de forma que os

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processos de desenvolvimento não do por uma infra-estrutura viária de-
mais provoquem a perda do patrimônio ficiente, uma situação precária do
ambiental e cultural acumulado em transporte público de passageiros e
séculos pelas gerações passadas. Isso pouca fluidez no tráfego. Tais questões
implica uma mudança radical na for- remetem necessariamente ao tipo de
ma de tratar a dimensão cultural no ordenamento territorial até então
interior do planejamento do desen- gerado nas metrópoles brasileiras. Um
volvimento. O resgate de tal dimensão outro problema é o baixo nível de
significa considerar a cultura não competitividade das metrópoles em
como um instrumento manipulável de decorrência das externalidades ofer-
acordo com os interesses do momen- tadas, entre elas a qualidade de vida
to, mas como a base social do desenvol- em termos ambientais. Não sem
vimento, possibilitando e legitimando razão, as cidades de porte interme-
a malha complexa de valores existen- diário- que, via de regra, apresentam
tes em toda cultura. Nesse sentido, um melhor nível de qualidade de
as formas não-monetárias de valor vida- despontam como lugares privi-
associadas à vida em cidade e que são legiados para os investimentos.
a herança da construção histórica da
cidade e do território devem voltar a Além disso, a implantação das re-
ser os determinantes das políticas de centes propostas na área de teleco-
desenvolvimento. Como, no entanto, municações a grande velocidade, par-
articular economia, política, natureza ticularmente a instalação de inter-
e cultura numa proposta de desen- porto com seus teleportos, significará
volvimento sustentável metropolitano? a geração de fluxos de transportes
qualitativamente diferenciados, o que
Como foi evidenciado, o modelo in- requer, mais do que nunca, uma sin-
tensivo e extensivo de urbanização tonia entre sistema de transporte e
das metrópoles brasileiras, nas últi- ordenamento territorial.
mas três décadas, gerou um espaço
urbano profundamente fragmentado, Acrescente-se, ainda, que os inade-
com grandes problemas de funciona- quados e preocupantes padrões de
mento e de adequação ambiental, bem habitabilidade de parcela significati-
como pouco articulado em termos de va da população metropolitana
uma identidade cultural da população -traduzidos pelas precárias formas de
com a ocupação urbana resultante. Tal habitação e pela baixa qualidade dos
situação representa uma ameaça ao serviços urbanos ofertados- têm com-
desenvolvimento metropolitano, cons- prometido não somente a saúde de um
tituindo-se nas raízes primeiras dos grande contingente populacional, mas
estrangulamentos capazes de dificul- também o meio ambiente metropoli-
tar ou, até mesmo, inviabilizar o tano. Esse, via de regra, caracteriza-
almejado desenvolvimento sustentável. se pela elevada degradação para a qual
muito contribui a insuficiente quali-
Nesse sentido, um dos problemas dade dos serviços de esgotamento
que comprometem um melhor desem- sanitário e de coleta de lixo, em espe-
penho das atividades econômicas cial nas áreas ocupadas por populações
metropolitanas é a baixa capacidade de baixa renda que totalizam uma
de deslocamento das pessoas e das considerável porção do território me-
mercadorias em virtude das condições tropolitano.
do sistema de transporte, caracteriza-

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Assim sendo, o desenvolvimento senvolvimento sustentável é aquela
sustentável das metrópoles tem como fundamentada na especificidade cul-
condição básica um ordenamento te- tural do lugar e não nos diferenciais
rritorial que facilite a mobilidade das de provimento de serviços urbanos.
pessoas e da informação, o fluxo de Assim, as redes devem constituir-se
mercadorias e serviços e um meio em elementos de eqüidade social,
ambiente que garanta a qualidade de econômica e espacial da coletividade.
vida à sua população. Para tanto, é de
fundamental importância que os sis- Só dessa forma as metrópoles pa-
temas de mobilidade da matéria ssariam a oferecer condições de
(transporte) e de informação (comuni- crescimento às suas diversas ativi-
cação e, sobretudo, telecomunicações) dades econômicas, em consonância
e os serviços (abastecimento d’água, com a melhoria da qualidade ambien-
esgotamento sanitário...) sejam con- tal urbana e com a ampliação do direito
cebidos em forma de redes, abran- à cidadania da comunidade metropo-
gendo todo o território metropolitano, litana.
servindo, assim, de elementos de
ligação entre as diversas estruturas
3.3. Qualidade versus quantidade
(unidade ambientais) e, conseqüen-
temente, transformando o espaço me-
tropolitano em um tecido urbano mais Uma visão histórica de longo prazo da
coeso. urbanização do território metropolita-
no deve ser retomada como orientação
básica para as novas propostas de ação
A idéia de rede, espacialmente do organismo metropolitano. A expe-
abrangente, é básica para o sucesso riência das últimas décadas, quando
de qualquer proposta de planejamento se buscou desconsiderar este passado
metropolitano, pelo seu potencial em como o determinante das novas pro-
termos de uma maior eqüidade social,
postas em favor de um urbanismo de
sua flexibilidade de execução e sua
quantidade, contribuiu para gerar
capacidade de expansão por módulos. conflitos e frustrações nos meios téc-
Além disso, a conexão via rede não nicos, bem como descrença política
apenas potencializa a mobilidade da nas atividades de planejamento espa-
matéria e das informações no inte- cial. A visão quantitativa perdeu a
rior do espaço metropolitano, mas capacidade de percepção qualitativa da
também com os outros territórios urbanização, portanto, do seu sentido
nacionais e internacionais.. cultural. A sua clara opção pela ex-
pansão urbana, tanto a extensiva
Em tais termos, desenvolvimento como a intensiva, e a visão homoge-
sustentável urbano significa uma forte neizadora do espaço, indiferente às
ênfase na revalorização dos aspectos especificidades locais, levaram a:
culturais e ambientais da cidade, o
que, por sua vez, requer a existência • um urbanismo "simplista" do
de um provimento de redes de mobi-
ponto de vista formal (construir mais
lidade e de serviços que permitam a
ou mesmo numa ou noutra parte da
"aproximação" real e virtual das di-
cidade),
versas áreas ao criar uma proximi-
dade sem contigüidade, evitando a
• uma substituição acelerada de
homogeneização do espaço. A diversi-
estruturas ambientais urbanas de
dade de espaços que interessa ao de-
interesse histórico e cultural;

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Planejamento metropolitano: uma proposta de conservação urbana e territorial
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• uma desconsideração das carac- cimento. É uma proposta que parte da
terísticas e restrições ambientais das diversidade dos lugares urbanos e das
diferentes parcelas do território e, unidades significantes da metrópole,
como conseqüência, em termos de valores da natureza,
cultura e história. Ao mesmo tempo,
• uma legitimação do processo de aposta na formação das estruturas
especulação imobiliária e expansão urbanas que permitem à metrópole
continuada dos limites urbanos. participar do processo de integração
na macroescala espacial, especial-
Como cultura e processo histórico mente nas estruturas de mobilidade,
não puderam ser cancelados, a tra- informação, qualidade ambiental e
jetória da urbanização das metrópoles foi produção cultural.
determinada pelo conflito entre a
14 rocesos 14 ia dos 14 rocesos culturais No caso do planejamento metropo-
e as diretrizes transformadoras ema- litano, a maior ênfase, em termos de
nadas do planejamento metropolitano. campo de atuação das estruturas
A preponderância da continuidade his- institucionais de regulação e governo,
tórica sobre a vontade transformadora está no processo de ordenamento te-
foi indubitável. Afinal, as periferias rritorial e de controle e melhoria do
não foram criadas pelas idéias urba- meio ambiente. Isso não significa o
nísticas dos planejadores. Contudo, tal abandono de políticas locais de
preponderância levou a um conflito desenvolvimento econômico, melhoria
entre as duas forças, gerando grandes dos padrões de eqüidade social e de
custos sociais devidos aos atritos pro- participação política nos processos de
vocados pela tentativa de cancelar as decisão. Pelo contrário, o reforço das
forças de permanência. A transfor- ações sobre o ordenamento do terri-
mação a qualquer custo criou seus tório e da qualidade ambiental nece-
própriospadrões culturais de apropria- ssariamente passa por iniciativas
ção do território. nesses outros campos. Na verdade, o
planejamento metropolitano abre a
4. Um a proposta de possibilidade de variações de meios
nos campos da economia e da política
estruturação de um
participativa e institucional da me-
plano metropolitano
trópole.

Uma nova proposta para o plane-


A perspectiva cultural e ambiental
jamento metropolitano deve ter como
do reordenamento do território sob a
diretriz fundamental a requalificação
égide da sustentabilidade requer:
do espaço urbano e natural, isto é, a
agregação de valor àquilo que existe
de específico, de irreprodutível, e que • Reconhecer o que existe de es-
está vinculado à idéia de lugar e de pecífico no espaço urbano que, ao longo
suas qualidades. do tempo, vem mostrando o seu cará-
ter de permanência, necessitando de
pequenas alterações no sentido de
A consideração da especificidade
melhor se adequar às suas velhas e/
requer a revalorização dos atributos
ou novas funções;
culturais e ambientais do território
urbanizado, ameaçados de desapare-
• Reconhecer os espaços transitó-
rios que deverão passar por processos

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Planejamento metropolitano: uma proposta de conservação urbana e territorial
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de transformação de vários dos seus consolidado. A qualidade dos espaços
elementos para melhor se adequarem públicos, em termos construtivos, ti-
aos usos propostos; pológicos e infra-estruturais é maior
que a de outras partes da metrópole,
• Reconhecer os espaços de gran- não significando, porém, que não
de valor ambiental, colocando-os em precisem de ações de reparação, me-
uso adequado de forma a preservá-los lhoria e conservação.
para as gerações futuras;
As principais áreas de conservação
• Reconhecer as redes como estra- urbana são (i) os centros e bairros
tégia de organização espacial e como tradicionais; (ii) as áreas populares
principal meio de direcionar, com mais consolidadas; (iii) os bairros
critérios de maior eqüidade social, os originários de vilas e conjuntos
processos de provimento de infra- habitacionais dos anos 40 e 50; e (iv)
estruturas e serviços urbanos. os bairros que passam, atualmente,
por um processo de alto dinamismo
4.1. O permanente e o transitório imobiliário.
na metrópole: as áreas
de conservação e A conservação também é uma for-
de transformação ma de ação para as áreas que tiveram
uma origem popular e precária, mas
A idéia de permanência das estru- que conseguiram, nas décadas re-
turas ambientais urbanas vem centes, implantar um processo de
associada à idéia de mudança. Em qualificação urbana, a exemplo de
termos de política de ação sobre as certas áreas de urbanização de mo-
estruturas, é possível buscar-se a rros e de baixada. A ação pública
permanência por meio da conservação nessas áreas tem uma mesma
das estruturas existentes. Pelo lado diretriz: a da manutenção da qualidade
da mudança, a política de ação passa do espaço público, a modernização e
a ser a transformação das estruturas. complementação das infra-estruturas
e melhoria dos serviços públicos.
No caso do Plano de Desenvol-
vimento da Região Metropolitana do Cabe ainda ressaltar os grandes
Recife que serviu de referência para conjuntos habitacionais construídos
este trabalho, o território metropolita- nas décadas de 70 e 80, que apre-
no foi basicamente desagregado em sentam uma baixa qualidade de
dois tipos de áreas: as de conservação urbanização. São áreas que não
e as de transformação. Ambas dizem conseguiram criar um processo de
respeito às estruturas ambientais integração com o tecido urbano exis-
existentes. tente, transformando-se em grandes
guetos de exclusão urbana. Entretan-
4.1.1. Áreas de conservação to, são enormes áreas construídas que
abrigam parcela significativa da popu-
lação metropolitana e que, portanto,
As áreas de conservação são aquelas
devem ser melhoradas e integradas
que possuem um padrão de ocupação
ao tecido urbano.
do território caracterizado por uma
certa uniformidade das tipologias de
edificação e por um traçado urbano

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4.1.2. Áreas de transformação constituindo-se, no entanto, em poten-
cial para a criação de áreas urbanas
As áreas de transformação são aquelas de uso coletivo e de habitação. Para
em que, diferentemente das áreas de tais áreas, deve concorrer um processo
conservação, o processo histórico não de reabilitação e de reconversão.
produziu uma urbanização de qua-
lidade nem uma identidade própria. As áreas urbanizáveis, correspon-
São as áreas de urbanização mais dem àquelas parcelas do território que
recente, onde tanto as construções devem ser incorporadas à estrutura
privadas como as de uso coletivo são urbana construída. Como foi salien-
precárias e claramente transitórias. tado, a descontinuidade da mancha
São as áreas de favelas, de urba- urbanizada gerou vazios, tornando-se
nização difusa, ordenada segundo o necessário "costurar" o território por
provimento de uns poucos serviços meio da urbanização qualificada
urbanos ou de alguma infra-estrutura, dessas lacunas, de modo a dar senti-
como os eixos viários. São também do ou significado uno ao tecido urba-
aquelas áreas onde ocorreu uma no existente. Apesar do processo da
degradação muito grande da qualidade expansão espacial metropolitano ter
das construções devido a uma diminuído de intensidade, sobretudo
obsolescência funcional, locacional e na presente década, a RMR enfrenta-
construtiva, como foram os casos dos rá ainda esse problema.
eixos industriais no interior do tecido
urbano. Em todos os casos, as áreas Três tipos de áreas urbanizáveis
de transformação apresentam uma são identificados:
grande descontinuidade relativamen-
te à mancha urbana. Nas áreas de As áreas de interesse paisagístico
transformação, existe uma clara são porções do território que ainda
necessidade de complementar e/ou
mantêm significativas características
substituir parte significativa do am-
naturais, estando semi-ocupadas ou
biente construído. As áreas de muito próximas de densas áreas ur-
transformação podem ser classificadas banas, como margens de rios e lagoas,
em dois tipos: canais e gamboas dos estuários,
porções de mangues e alagados e
As áreas de reabilitação compre- remanescentes de matas. Essas áreas
endem, em primeiro lugar, aquelas encontram-se, em geral, na iminência
áreas de morros e das áreas baixas de ser invadidas por habitações
(alagadas ou não) ocupadas por habi- precárias ou atividades predatórias. A
tações populares de estratos de renda sua posição no interior da estrutura
muito baixos e em condições precá- urbana transforma-as em áreas es-
rias de construção. Existe uma clara tratégicas para a reconquista da
necessidade de uma intervenção apro- qualidade da vida urbana da metró-
priada às condições geológicas e pole. Devido a seus atributos naturais,
morfológicas dos terrenos. Em segun- elas podem ser utilizadas para
do lugar, as áreas de urbanização di- atividades urbanas de recreação, lazer
fusa ao longo dos eixos rodoviários. Em e instalação de equipamentos sociais,
terceiro lugar, compreendem as organizadas em meio a parques urba-
antigas áreas industriais internas à nos de média escala.
mancha urbana que foram "descarta-
das" do processo produtivo industrial,

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As áreas de amenidades são 4.2.1. As redes metropolitanas e a
aquelas áreas de urbanização que de- eqüidade social
vem ser ocupadas de forma predomi-
nantemente residencial, de baixa Como foi visto, desenvolver a
densidade, preservando características metrópole pela valorização das
naturais e amplas áreas verdes. especificidades dos lugares, isto é, re-
ssaltando as suas diferenças am-
As áreas com tecido urbano novo são bientais, requer um provimento de
as lacunas e parcelas pequenas nas redes de mobilidade e de serviços com
margens da mancha urbana. Essas dimensões metropolitanas, capaz de
últimas são em número mínimo, so- agregar as suas diversas partes em
mente necessárias à complementação um tecido único e, ao mesmo tempo,
da mancha urbana. de contribuir para uma maior eqüi-
dade social, econômica e espacial da
4.2. O direito das gerações futuras: coletividade. Em vez de sistemas
as áreas de valor ambiental e hierarquizados, devem ser estrutu-
as áreas rurais radas em forma modular com opções
de movimento no espaço, podendo ser
As áreas urbanas de grande valor am- implantadas gradativamente.
biental devem ser resguardadas como
recursos estratégicos para as gerações 4.2.2 As redes de mobilidade
futuras. Entre essas áreas podemos
citar: os baixos estuários com seus As redes de mobilidade são aquelas
cursos d’água e mangues; cursos que permitem o fluxo de pessoas de
d’água e zonas de alagamento tem- informação com rapidez e baixo custo.
porário; restingas; morros; mana- A idéia de mobilidade substitui a idéia
nciais; matas de grande porte e de acessibilidade anteriormente pre-
pequenos remanescentes das matas. ponderante. A mobilidade significa a
Além do critério da eqüidade inter- existência de um leque de possi-
gerações, deve-se ter como princípio bilidades de deslocamento de pessoas,
de regulação da ação a manutenção informação e cargas, por intermédio
da diversidade de formas do ambien- de uma grande variedade de meios
te. A utilização extensiva e intensiva disponíveis. São as redes de transpor-
de todos os recursos ambientais pro- te, armazenagem, comunicação e
voca, inevitavelmente, a uniformi- informação que articulam as pessoas,
zação e a perda da diversidade das as atividades e a região tanto em nível
formas de urbanização, construção e do seu próprio território como do exte-
apropriação da natureza. rior. A metrópole do futuro deve ser
pensada como possuindo uma rede de
A eminente urbanização predadora mobilidade única, constituída de dois
das áreas rurais elimina qualquer fluxos básicos e complementares: o
possibilidade de racionalização, no virtual (comunicações) e o material
sentido da eficácia do processo de pro- (transporte).
vimento de infra-estruturas, serviços,
equipamentos sociais de uso coletivo 4.2.3. O sistema de comunicação
e espaços públicos de qualidade. à distância

A grande novidade para o futuro das


redes de mobilidade das metrópoles são

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os serviços de comunicação por siste- constituirão elementos-chaves para o
mas de alta capacidade e velocidade, processo de desenvolvimento da
que visam, principalmente, à articu- metrópole e de sua organização espa-
lação do espaço regional com o res- cial. Com a rapidez da comunicação,
tante do país. Essas redes são organi- as empresas serão impulsionadas a
zadas em pontos nodais da estrutra diminuir consideravelmente os seus
urbana, que congregam os fluxos estoques. Assim, o novo sistema ten-
disseminados em nível local e reali- derá a ser formado por grandes cen-
zam as conexões com o exterior. trais de carga, localizadas no aero-
porto, nos portos e nos principais eixos
Essa nova forma de organização da rodoviários. Tais centrais de carga
comunicação refletirá sobre as ativi- distribuirão as mercadorias para uma
dades econômicas e culturais e sobre rede disseminada, cuja localização
a rede de transporte. O estabeleci- ocorrerá, preferencialmente, em áreas
mento desses pontos nodais induz à de maior concentração em termos de
redistribuição das atividades de ser- atividades de comércio e serviços. A
viço e dos centros de decisão empre- partir daí, as mercadorias seguirão os
sarial que, por sua vez, criam novos seus destinos em pequenos veículos,
fluxos de pessoas e veículos na região, tipo furgão, percorrendo um circuito
fluxos que serão qualitativamente di- fechado, várias vezes ao dia. A ten-
ferentes, pois estarão transportando dência, portanto, é tornar obsoletos os
pessoas diferenciadas, que requererão atuais armazéns de estocagem de
meios de transporte de qualidade. mercadorias, pertencentes, em geral,
às próprias empresas. O resultado será
Além disso, as mercadorias passam a existência de um importante patri-
a ser armazenadas e transportadas de mônio construído, que deverá ser
modo qualitativamente diferente. Os requalificado para novos usos. Outra
processos de produção e venda são conseqüência será a diminuição
considerável de pesados veículos de
ajustados por estoques pequenos, que
carga em áreas já congestionadas da
são atualizados em poucos dias, por
meio de sistemas computadorizados. metrópole.
Os processos "just-in-time" serão do-
minantes nas atividades que utilizam Diante do previsível aumento do
as redes de grande tráfego de dados. tráfego nacional e internacional por
Aeroportos e portos passam, assim, a transporte aéreo, os aeroportos con-
interargir com o sistema de distri- tinuarão, a médio prazo, sendo uma
buição de mercadorias da região com grande porta de entrada e saída das
muito mais intensidade, utilizando regiões. Nessa nova forma de orga-
meios diferenciados de transporte. nização da mobilidade, a movimen-
tação e a armazenagem de cargas
passam a se constituir em atividades
4.2.4. O sistema de
armazenamento e transbordo de suma importância e de grande
intensidade no aeroporto, requerendo
a expansão das áreas de armaze-
A implantação da rede de teleco- nagem, recepção e expedição, movi-
municações de grande velocidade nas mentação e outras. Todas essas
metrópoles significará uma nova mudanças colocam desafios não
reorganização dos sistemas de somente quanto às infra-estruturas
armazenamento e transbordo. Esses aeroportuárias, mas também à

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estrutura de articulação do aeroporto da história ao apresentarem sérios
com os outros sistemas de circulação problemas em termos de mobilidade,
regional. As articulações com os sis- com implicações no funcionamento do
temas metroviário e rodoviário regio- sistema social e produtivo. Nesse sen-
nal são, portanto, de vital importância tido, o espaço não foi aniquilado pelo
para o aumento do desempenho. tempo, mas, muito pelo contrário, as
distância cresceram, uma vez que os
Os portos constituem pólos estra- tempos de deslocamento aumentaram.
tégicos de desenvolvimento de quase
todas as metrópoles brasileiras. Na Assim, a nova ordem metropolita-
medida em que articulam amplos na exige intervenções no sistema de
espaços econômicos, constituem-se no transporte capazes de (i) garantir a
recurso econômico básico para orga- articulação da metrópole com o esta-
nizar todo o sistema de distribuição do, a região e o país por meio de ações
nacional e internacional da produção que evitem os sérios estrangula-
regional, que pode ser centrada nas mentos, assegurando um tráfego livre,
regiões metropolitanas. No caso dos inclusive, nas vias principais de
portos situados em áreas históricas acesso às metrópoles; (ii) garantir a
centrais, deverão assumir um papel eqüidade de acesso aos indivíduos em
que poderá recolocá-los como centro condições adequadas de conforto e
dinâmico metropolitano. Tal papel está segurança; (iii) assegurar a prioridade
associado a duas transformações bá- de circulação dos indivíduos, a pé ou
sicas. A primeira é a sua caracte- por meio não motorizado (como as bi-
rização como porto turístico para os cicletas), em relação às modalidades
navios de passageiros de rotas de transporte motorizado e, entre
internacionais e regionais. A segun- essas, (iv) priorizar os transportes
da é a reabilitação de grande parte da coletivos de passageiros.
sua área de armazenagem, resgatan-
do-a para a cidade, mais precisamen- 4.2.6. As redes de serviços
te para as atividades de serviço mo-
derno, comércio, atividades de recrea- As redes de serviços infra-estruturais
ção, lazer e habitação, com ênfase -os serviços de saneamento ambien-
especial na revalorização paisagística. tal (abastecimento d’água, esgota-
mento sanitário, drenagem e coleta
4.2.5. O sistema de transporte de lixo), de oferta de energia (elétrica,
regional e de articulação combustíveis líquidos e gasosos)-
metropolitana devem ser moldados pela forma do
ambiente natural e construído da
As atuais condições de mobilidade das metrópole.
pessoas e mercadorias nas metrópoles
brasileiras são preocupantes. Se os Do ponto de vista político-insti-
grandes avanços tecnológicos, so- tucional, é necessária, primeiro, uma
bretudo na área de telecomunicações, democratização do processo decisório
permitem pensar no aniquilamento do desses serviços, tendo como pre-
espaço pelo tempo, aproximando missas a descentralização e o forta-
instataneamente indivíduos, empre- lecimento do município e a criação de
sas, cidades e países, o mesmo não mecanismos de controle social. Se-
ocorre em nível das metrópoles gundo, faz-se necessário encontrar no-
brasileiras, que estão na contra-mão vos formatos de gestão, buscando for-

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mas de associação do poder público Para que isso aconteça, é essencial
com a iniciativa privada, como considerar que a metrópole foi cons-
concessões de parte do serviço ou a tituída por diversos processos cujo
criação de empresas nas quais os resultado foi o acúmulo das práticas
municípios são acionários, visando urbanizadoras, ou seja, das diversas
criar uma maior flexibilização nos camadas temporais, sobrepostas e/ou
sistemas. Terceiro, deve-se conside- justapostas, da ação do homem sobre
rar a possibilidade de criação de o meio urbano. É, portanto, formada
consórcios de municípios. Nesse caso, por várias estruturas ambientais que
o papel de articulação dos municípios se constituem em materialidades com
das regiões metropolitanas se múltiplas formas que, na sua essên-
apresentará como primordial. Além cia, corporificam idéias e ações dis-
disso, o Estado deve aperfeiçoar o seu tintas no tempo e no espaço, possi-
papel de mantenedor do controle e da bilitando a satisfação das diferentes
racionalidade dos sistemas. necessidades social e culturalmente
construídas.
Conclusões
Reconhecer a importância e o sig-
Diante do processo de descentralização nificado desses processos tem desdo-
político-administrativo brasileiro, o bramentos importantes em termos do
planejamento urbano volta a ser valo- conteúdo das propostas do planeja-
rizado como um importante instru- mento do desenvolvimento me-
mento de desenvolvimento local, ca- tropolitano, uma vez que sua ênfase
paz de nortear as práticas dos diver- deverá ser a revalorização dos aspec-
sos atores sociais. tos culturais e ambientais urbanos.
Sendo assim, a diretriz geral nor-
teadora do planejamento metropolita-
No que se refere particularmente
no deverá ser a conservação urbana por
às metrópoles, urge avançar em ter-
meio da requalificação do espaço,
mos de propostas que articulem os
respeitando a diversidade das unida-
seus diversos espaços fragmentados e
des ambientais e das paisagens
desarticulados -resultantes de um
significantes em termos de valores da
processo de urbanização intensivo e
natureza, cultura e história, e re-
extensivo e que podem ser ainda mais
conhecendo a função das estruturas
segmentados e desconectados pelo
naturais (rios, lagoas etc) e construí-
atual sistema municipal-, visando re-
das (as redes de mobilidade da matéria
construí-las como entidades reais
e da informação e de serviços) en-
mediante a sua recomposição espa-
quanto elementos indispensáveis de
cial, capazes de gerar uma melhor
integração entre as diferentes partes,
qualidade de vida para seus habitan-
com vista à formação de um tecido
tes e, ao mesmo tempo, de garantir
urbano mais coeso.
uma maior inserção no mundo con-
temporâneo. A integração da econo-
mia urbana no processo de globa- Tais procedimentos determinam os
lização demanda, mais do que nunca, objetos do planejamento espacial me-
intervenções que venham conferir tropolitano: as unidades ambientais e
valor às especificidades locais. as redes, que deverão servir de base
para serem trabalhadas as oportuni-
dades de desenvolvimento sustentável
dentro de uma perspectiva de diversi-

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Planejamento metropolitano: uma proposta de conservação urbana e territorial
Norma Lacerda, Sílvio Mendes Zancheti y Fernando Diniz

 
dade de suporte e material (ambien- Feastherstone, Mike (1997). O
te natural e construído) urbano. desmanche da cultura: globalização,
pós-modernismo e identidade. São
Não restam dúvidas de que a con- Paulo, Studio Nobel: SESC.
servação urbana é uma nova cultura, Fundação de Desenvolvimento da
uma nova forma de fazer a cidade e, Região Metropolitana do Recife,
mais ainda, as metrópoles, e de rea- (1983). Plano de Desenvolvimento
lizar a sua gestão social. Nesse sen- Metropolitano (PDM).
tido, é ainda um projeto, uma proposta Harvey, David, (1992). A condição pós-
dentro do contexto de discussão do moderna. São Paulo: Loyola.
desenvolvimento sustentável nas Sassen, Saskia, (1998). As cidades na
cidades. Além disso, é uma proposta economia mundial. Nobel, São Paulo.
que causará grandes reações, pois vai Secchi, Bernardo, (1989). Un progetto
contra toda uma prática de fazer a per l’urbanistica. Eunaidi: Torino.
cidade, sedimentada desde a indus- Zanchetti, Silvio y Norma Lacerda,
trialização do século XIX e a mercan- (1999). "Planejamento territorial na
tilização da prática do viver urbano. Região Metropolitana de Recife",
Também é uma proposta que se Cadernos de Estudos Sociais, Vol. 15
contrapõe aos preceitos da moder- (no prelo).
nidade, ideologia predominante na Zanchetti, Silvio, (1993). "A valorização
construção das cidades, especialmen- da paisagem no meio ambiente
te as norte-americanas, onde cons- urbano". Gunn, Phillip. Questões
truir o novo era considerado a razão ambientais litorâneas. São Paulo:
de ser do urbanismo. FAUUSP.
Zanchetti, Silvio. y Jukka Jokilheto,
Bibliografia (1997). "Values and urban conser-
vation planning". Journal of Archi-
Comissão Mundial sobre Meio Am- tectural Conservation, 1, March.
biente e Desenvolvimento, (1991).
Nosso futuro comum. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Var-
gas.

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