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A HEGEMONIA AMERICANA

Paulo Arantes e Peter Pál Pelbart discutem "Império", de Negri e Hardt


Por Afonso Luz

O encontro "Trópico na Pinacoteca" do mês de abril de 2003 tratou de uma das mais
polêmicas reflexões sócio-políticas da atualidade, o livro "Império", de Michael Hardt e
Antonio Negri, publicado em 2000 nos Estados Unidos e traduzido para o português no
ano seguinte pela Editora Record.

Em quase 500 páginas de uma prosa heterodoxa e contagiante este longo ensaio, ou
manifesto, incita-nos a refletir sobre as articulações entre fenômenos contemporâneos
diversos. As novas tecnologias de informação, o esquadrinhamento genético da vida, a
crise dos estados nacionais, a organização social em redes, os erosivos fluxos
financeiros, os conflitos ecológicos, as formas avançadas de controle psicossociais são
abordados no livro como nexos de uma nova forma de poder conceituada como
“Império”. Mas esse “Império” pode ser visto também como campo simbólico e
material no interior do qual se travam novas lutas sociais, ou “biopolíticas”, por
emancipação e reconhecimento.

A mesa reuniu, na Pinacoteca do Estado, o filósofo Paulo Arantes, professor da


Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), autor de “A Ordem do
Tempo em Hegel” (Hucitec) e “Sentimento da Dialética” (Paz e Terra), e o professor
Peter Pál Pelbart, do programa de Pós-Graduação de Filosofia e Psicologia Clínica da
PUC-SP e autor de “O Tempo Não-reconciliado” (Perspectiva) e “Vida Capital: Ensaios
de Biopolítica” (no prelo). Pelbart coordena também a Cia. Teatral Ueinzz.

O debate, promovido pela Pinacoteca e por esta revista eletrônica, foi coordenado por
Lisette Lagnado, crítica de arte e co-editora de “Trópico”.

Paulo Arantes: a tensão entre liberdade republicana e expansão imperial

Paulo Arantes iniciou sua intervenção sugerindo que os autores de “Império”, oriundos,
um da esquerda acadêmica norte-americana e outro de movimento libertário italiano,
estranhamente concordam com o atual presidente americano, George W. Bush.

Para fundamentar sua tese, Arantes comparou duas citações, uma do livro de Hardt e
Negri (págs. 198-200) e outra de um pronunciamento recente de George W. Bush. Os
autores do livro afirmam que o “Império” inventado pelos americanos atende a
“demanda” do restante do mundo que veria os EUA como a única potência global capaz
de impor ordem e segurança. O presidente americano, por sua vez, alega que esse
“poder de polícia” internacional seria missão indeclinável.

As raízes dessa estranha coincidência estariam, para o filósofo, nas crenças históricas e
morais que constituem a nação americana. Para Arantes, “Império” se destaca da média
publicada sobre globalização -à esquerda ou à direita- justamente por não ser
antiamericano.

“Quando Bush diz: ‘Os EUA aceitam de bom grado a sua responsabilidade de liderar
esta grande missão em prol da humanidade no combate de seus adversários’, ele está
encarnando aquilo que há de mais profundo e que poderíamos definir como -o que já
seria um juízo de valor- ‘mitologia americana’, ‘ideologia americana’ ou coisa que o
valha. O presidente diz, e os americanos entendem, sejam de esquerda ou de direita. É
um automatismo de linguagem.”

Para Arantes essa “linguagem política tem a idade do país. Está lá no testamento de
George Washington, no de Jefferson, na doutrina Monroe”. Na sua opinião, “a idéia de
que o povo americano é especialmente dotado e que aceita, com relutância, a
responsabilidade da guerra, existe desde os puritanos. Por isso, quando Bush fala, os
americanos compreendem.”

Para o filósofo, o que causa estranhamento é que “dois autores gauchistas tenham
chegado à mesma conclusão”. Caberia então indagar “como um autonomismo italiano
entronca na tradição que remonta aos formuladores da Constituição americana, que de
certa forma rege até hoje o imaginário daquele país, que pode ser visto como exótico ou
excêntrico”.

Arantes seguiu enfatizando o paradoxo representado pela convergência entre Bush e os


autores do livro. “ ‘Nós’, dizem os americanos desde que chegaram lá, ‘não somos
iguais ao resto da humanidade. A colonização clássica européia entendia que o direito
canônico justificava a intervenção bélica atribuindo caráter sagrado à guerra colonial.
Os puritanos estenderam esse caráter sacro à terra em que aportaram -uma noção que
sobrevive no reconhecimento da excepcionalidade do território norte-americano”.

O filósofo notou que, por oposição à soberania européia do Antigo Regime, a sociedade
americana seria organizada em torno da idéia do contrato entre iguais, do autogoverno e
da democracia direta. Só que, contraditoriamente, é também uma sociedade violenta,
xenófoba, destruidora e predadora.

Para Arantes essa contradição se expressa em um dilema original no pensamento


americano entre ser república ou ser império. Hardt e Negri não teriam levado esse
dilema em consideração. Ao desconhecer a tensão entre os dois princípios, o livro
embarcaria “no discurso oficial americano”.

“O livro inteiro provoca e é alimentado pelo disparate monumental que consiste em


entender a história do mundo contemporâneo como um prolongamento da história
constitucional americana,” disse o filósofo.

Para Arantes, “os pensadores constitucionalistas americanos resolveram o dilema


combinando república e império. Para evitar a decadência e corrupção advinda da
expansão imperial, como mostra a experiência do Antigo Regime, os americanos
organizaram-se em pequenas repúblicas. Em cada uma haveria homogeneidade racial,
religiosa e política. Cada um dos estados aderiu à União, na condição de quase
autônomo”.
Estaríamos assistindo a mais um episódio de compatibilização da tensão entre império e
república. Segundo Arantes, “na metade do século 19, esta mitologia de base adquiriu
uma outra expressão, quando os Estados Unidos fizeram aquilo que os americanos
nunca admitiram ter feito: a expansão territorial imperial. Em meio século, atravessaram
o continente até o Pacífico, adquiriram terras, massacraram índios, se envolveram em
guerras com o México. Na virada para o século 20, através de uma guerra com a
Espanha, entraram na corrida imperialista da Europa, já enquanto país continental”.

“Os americanos não foram colonialistas ou imperialistas nos termos europeus. Não os
interessava ser porque a economia americana de então já era a mais avançada do
mundo, o que dispensava a ocupação e a subordinação colonial clássica. Interessava,
sim, implantar as enormes corporações americanas nas economias européias avançadas,
o que foi feito através daquilo que viria a ser chamado de multinacional. A economia
americana começava a se desterritorializar.”

Os Estados Unidos teriam negado o colonialismo clássico também por razões racistas.
“Eles não podiam incorporar populações racialmente inferiores aos anglo-saxões eleitos
e investidos de um destino bíblico.”

O filósofo comentou que há em “Império” um capítulo sobre a Constituição americana


onde aparece uma nova forma de soberania, imanente, produzida de baixo para cima. “É
o pensamento de Jefferson sobre a pequena propriedade, do governo barato, do
presidente que voltava de bonde para casa e não admitia que ninguém lhe pagasse a
passagem. “É a tendência do governo popular de pequenos proprietários, que se perdeu
na passagem da declaração de Independência para a Constituição, episódio que os
autores sintomaticamente caracterizam como um golpe dado pelos Federalistas”, disse
Arantes.

E continuou: “Essa América representava um sonho europeu de liberdade. Para


Jefferson, a polícia deveria ser mínima, não haveria exército permanente, ou fiscalidade.
Os gastos da administração seriam restritos ao trivial. ‘Nós nos autogovernamos’. Trata-
se de uma tradição de esquerda que não conhecemos.”

Arantes enfatizou a contradição nesse ideário: “Havia escravidão, pena de morte e tudo
mais, elementos que Negri e Hardt mencionam só de passagem. E contra o ideário de
Jefferson havia Hamilton. O primeiro secretário de fazenda de Washington defendia a
expansão do território, a intervenção na política internacional, Banco Central e União
fortes. Quando os americanos se viram suficientemente fortalecidos, eles saíram a
campo. A entrada na Primeira Guerra significou assumir pela primeira vez o destino
manifesto que é a expansão moral e espacial da excepcionalidade da democracia
americana”.

O filósofo vê aí o surgimento do fundamentalismo contemporâneo: “Como quem leva a


salvação, a verdade, e prepara, a batalha final entre o Bem e o Mal, o Armagedom.
Desde os puritanos os americanos se preparam para esta ‘batalha’. Não foi uma
invenção de Hollywood, isto já estava lá na cabeça deles.”

Arantes apontou que os Estados Unidos projetaram planetariamente a expansão


territorial contínua, o imaginário do “espaço americano”. “Não há europeu que tenha
visitado os Estados Unidos, desde o século 19 até o fim do 20, que não tenha se referido
a essa espacialidade extraordinária. Ela está amplamente tratada em livros que falam da
pintura de Pollock, ou no trabalho de Baudrillard que descreve o deserto hiperreal dos
Estados Unidos.”

Os americanos transformam isto numa espécie de grande matriz capaz de abarcar a


humanidade porque vai se expandindo, agregando Estados democratizados, racialmente
homogêneos e partilhando as mesmas crenças constitucionais, políticas e religiosas,
segundo Arantes. “Hoje eles estão de boa fé acreditando que incorporam a este espaço
imaginário da sua República imperial outros países por justaposição de territórios
descontínuos, como protetorados militares, alargando fronteiras inteligentes,
imaginárias, jurídicas ou culturais.”

Negri e Hardt, para Arantes, imaginam estar escrevendo um novo Manifesto Comunista.
“Eles dizem: ‘Companheirinhos, nós temos que tomar ao pé da letra este imaginário
americano, enraizado em processos sociais reais que, trazem em si mesmos os germes
de sua superação. Este nosso discurso é um discurso de fim da história, como o de
Fukuyama, só que com os sinais trocados. Ele termina numa paz da pós-história, para
nós ‘Império’, que na acepção americana é Pax, termina numa espécie de pacificação
pura. Daí a função policial das guerras americanas, daí a verdade deles, que a nós parece
uma abominação, o fato de que os Estados Unidos relutam, mas aceitam desempenhar
este papel.”

Arantes terminou sua fala advertindo que é necessário cautela quando se fala em
incorporação, pois “o mundo está se desintegrando e todos querem se integrar a este
espaço de ordem, conforto, bem-estar e civilização que se chama Império Americano”.
Para o filósofo, Negri e Hardt fazem a teoria dessa incorporação e a apresentam de
maneira revolucionária.

Peter Pál Pelbart: A “multidão” como princípio de resistência ao “Império”

O professor Peter Pál Pelbart apresentou uma leitura diversa do livro. Para ele, a obra é
“a primeira grande cartografia do terceiro milênio”, capaz de pensar o presente com um
recorte ao mesmo tempo histórico e filosófico, cultural e econômico, político e
antropológico. “Com clareza perturbadora aparecem os processos de dominação e
assujeitamento que se instalaram nos últimos anos, bem como algumas indicações,
ainda embrionárias, sobre possibilidades de reversão”, disse. Para Pelbart, o Império, tal
como definido no livro, “é uma nova estrutura de comando, em tudo pós-moderna,
descentralizada e desterritorializada”. Sem fronteiras, engloba a totalidade do espaço do
mundo, apresenta-se como fim dos tempos, ordem a-histórica, eterna, definitiva.
“Penetra fundo na vida das populações, nos seus corpos, mentes, inteligência, desejo,
afetividade. Esse poder já não se exerce verticalmente. Sua lógica, em parte, sim,
inspirada no projeto constitucional americano, é mais democrática, horizontal, fluida,
entrelaçada à heterogeneidade do tecido social, articulando em rede singularidades
étnicas, religiosas, minoritárias”.

Em substituição aos dispositivos disciplinares que antes formatavam a subjetividade,


surgem, conforme o livro, novas modalidades de controle que atuam por meio de
mecanismos de monitoramento mais difusos, “imanentes”, incidindo diretamente sobre
os corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais antes necessárias, que,
de qualquer forma entraram aos poucos em colapso. “O novo regime de controle em
espaço liso e aberto se exerce através de sistemas de comunicação, redes de informação,
atividades de enquadramento, e é como que interiorizado e reativado pelos próprios
sujeitos, no que os autores chamam de um estado de alienação autônoma.” O professor
afirmou que nessa nova configuração, “biopolítica designa a entrada do corpo e da vida
no domínio dos cálculos explícitos do poder. Vida agora inclui a sinergia coletiva, a
cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial
contemporânea -o intelecto geral- e significa inteligência, afeto, cooperação, desejo”.
Ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, “a vida ganha uma
amplitude inesperada”. É o que explica, segundo Pelbart, a inversão do sentido do termo
cunhado por Foucault: “Biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a
potência da vida”. Definir o Império como regime biopolítico implica em duas coisas:
“Reconhecer que nele o poder sobre a vida atinge uma dimensão nunca vista, mas por
isso mesmo nele a potência da vida se revela de maneira inédita.” Pelbart desenvolveu
essa noção de “vida” tomando o “exemplo do trabalho contemporâneo, pós-fordista.
Baseado na informação, na ciência, na comunicação, nos serviços, o trabalho
contemporâneo, dito “imaterial”, já não produz só sapatos, mas principalmente
informação, conhecimento e imagens. Ele confunde tempo de produção e de
reprodução, depende da criatividade coletiva, tende a funcionar em rede e se realizar por
meio da cooperação intelectual.

“Mais e mais o trabalho contemporâneo aparece como atividade produtiva da multidão


(e não do capital), de sua vitalidade. Nem por isso o trabalho deixa de ser explorado.
Pelo contrário, o capital encontra nessa força-invenção disseminada, na potência de vida
da multidão, a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. É a Multidão, e não o
Império, em última instância, que cria, gera e produz novas fontes de energia e de valor
que o Império tenta modular, controlar, capitalizar. O poder do Império é apenas
organizativo, não constituinte, ele parasita e vampiriza a riqueza virtual da multidão. ‘O
próprio Império não é uma realidade positiva’, dizem os autores, numa inversão que
abre uma poderosa linha de escape para pensar a resistência constituinte.”

Pelbart observou que tradicionalmente o termo “multidão” é usado de maneira


pejorativa, indicando um agregado disforme que cabe ao governante domar e dominar.
“Povo”, por outro lado, é concebido como um corpo público animado por uma vontade
única. Segundo ele, Negri e Hardt, contudo, tomam outra perspectiva. “Numa tradição
que, por um lado remonta a Espinosa, por outro se baseia na mutação do trabalho
contemporâneo, a multidão, por definição, é pura multiplicidade, é plural, heterogênea,
centrífuga. Por conseguinte, ela é refratária à unidade política, não assina pactos com o
soberano e não delega a ele direitos, seja ele um mulá ou um caubói. Ela inclina-se a
formas de democracia não-representativa. A multidão, na sua configuração acentrada e
acéfala, é o oposto da massa. Como bem o lembra Elias Canetti, a massa é homogênea,
compacta, contínua, unidirecional, todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa,
complexa, multidirecional.”

Para Pelbart, “ao recensear as formas de resistência atuais, desde certos modos de
deserção e defecção, de evacuação dos lugares de poder, até a explosão de revoltas
virulentas, ora incomunicáveis entre si, ora ‘globalizadas’, os autores de ‘Império’
insistem em que se trata de lutas a um só tempo econômicas, políticas, culturais,
‘biopolíticas’ -pois são lutas que têm por objeto a forma de vida, já que o Império é
acima de tudo controle de forma de vida”.
“No entanto, apesar de sua intensidade, e por mais que criem novos espaços e novas
formas de comunidade, e pensemos na linhagem que vai de Seattle a Gênova, passando
por Chiapas, ou mesmo a mobilização planetária contra a guerra do Iraque, essas
revoltas ainda parecem obsoletas”, disse o professor. “É que uma exigência maior se
impõe a cada dia: a de ir além da recusa, transpôr o Império para ‘sair do outro lado’.
Trata-se de construir, no não-lugar que as desconstruções das últimas décadas deixaram
e no vazio que o Império produziu, um lugar novo, a partir da sinergia da multidão,
tecendo ontologicamente novas determinações do humano, de vida. A utopia que se
entrevê nesse tom a um só tempo cáustico e terno não configura um contorno acabado
com cores de um outro mundo, mas apenas prolonga as linhas de força já presentes
neste mundo, num telos coletivo e experimental da multidão. Ao invés de utopia, seria
mais conveniente falar em desutopia.”

Pelbart vê no livro um variada inspiração conceitual que vai de Maquiavel a Guy


Debord, Foucault, Deleuze-Guattari passando por Espinosa e Marx e pela experiência
da autonomia italiana. Os autores conjugam desconstrução e afirmação num novo
estatuto para filosofia, que deixaria “de ser a coruja que levanta vôo depois do fim da
história, afim de celebrar seu final feliz, para tornar-se proposição subjetiva e desejo,
praxis”.

“Muitas perguntas ficam em aberto ao final da leitura desse livro, e algumas delas são
irrespondíveis teoricamente, como se a resposta só pudesse vir precisamente da
multidão, na sua heterogeneidade, no seu hibridismo, no seu nomadismo forçado ou
voluntário, no sofrimento e miséria que as novas segmentações do Império produzem a
cada dia, naquele ponto em que o poder sobre a vida se revela tão total que faz aparecer,
afinal, o seu avesso, um meio de pluralidade poderoso em que o Império soa apenas
como um espectro, como a organização do medo, como superstição.”

Pelbart finalizou assim sua análise:

“Num conto conhecido, Kafka relata que o imperador da China manda construir uma
muralha para se proteger dos bárbaros, mas essa muralha é feita de blocos esparsos, com
lacunas quilométricas entre um bloco e outro, que não protegem de nada nem de
ninguém. Em todo caso, de nada adiantaria, visto que os bárbaros já estão acampados a
céu aberto no coração da capital, diante do palácio do Imperador. O Império
contemporâneo não é feito de trincheiras e muralhas para se proteger dos nômades. O
próprio império já é nômade, ou melhor, ele é a resposta política e jurídica à
nomadização generalizada, de fluxos de toda ordem. Há algo no funcionamento do
Império que é puro disfuncionamento. Como diz Kafka num outro contexto: ‘Não
vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala
como no equipamento de um veleiro destroçado.

Talvez seja esta rachadura, que um livro como Império pode nos ajudar a pensar, com
todas as reservas que se possa ter a várias das categorias por ele propostas. Ele pode ser
útil para pensar a lógica imanente do poder contemporâneo, e nesse contexto concreto,
biopolítico, para repensar a relação entre capital e vida, controle e desejo, política e
subjetividade, e mais amplamente, a relação sempre problemática e explosiva entre o
poder e a potência, entre o constituído e o constituinte, entre a soberania e a imanência.
Foi isso que nele me interessou, e por isso deixei de lado, aqui, todas as possíveis
divergências ou reticências, analíticas, doutrinárias ou estilísticas, minhas ou de seus
inúmeros críticos, bem como outras vias interessantes nele presentes para pensar a
guerra, o estado de excessão, a polícia global, a militarização atual do psiquismo
mundial.

Parafraseando Benjamin, é como se a partir de uma redescrição de nosso presente pós-


moderno, esse livro tentasse escová-lo a contrapelo, e examinasse as novas
possibilidades de reversão vital que se anunciam. Pois no interior dessa megamáquina
de produção de subjetividade e de terror a que se chama Império, o livro prospecta a
positividade constituinte e antagônica da multidão, que anuncia novas modalidades,
talvez pós-humanas, de se agregar, de combater, de trabalhar, de criar sentido, de
inventar dispositivos de valorização e de autovalorização capazes de nos fazer ‘sair do
outro lado’ do Império. Negri e Hardt flertam com o demônio, mas para transpô-lo”.

Afonso Luz
É critico de arte e estudante de filosofia na USP.

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