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SITES PARA PESQUISA E CONHECIMENTO SOBRE A IDADE
MÉDIA, PRINCIPALMENTE A PORTUGUESA:
Base de dados sobre as cantigas medievais galego-portuguesas, onde estão
disponíveis todas as cantigas, os manuscritos, a música (original e versões/criações
contemporâneas), as iluminuras da Biblioteca da Ajuda: http://cantigas.fcsh.unl.pt/
AHLM – Associação Hispânica de Literatura Medieval: http://www.ahlm.es
Arquivo Português de Lendas (APL) http://www.oct.mct.pt/bds/dout2/index.jsp
Bibliografia de Textos Antigos Galegos e Portugueses: http://gahom.ehess.fr/
Cantigas medievais galego-portuguesas online (Instituto de Estudos Medievais,
Universidade Nova de Lisboa): https://cantigas.fcsh.unl.pt
Cantigas de Santa Maria (Centre for the Study of the Cantigas de Santa Maria
– Universidade de Oxford). Base de dados. http://clarisel.unizar.es/
Corpus informatizado do português medieval (Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa):
http://www.fordham.edu/halsall/newadds.html
GLOSSA - Glossário da poesia medieval profana galego-portuguesa:
http://glossa.illa.udc.es
Cancioneiros medievais: www.cancioneros.org
Música trovadoresca: www.trobar.org/trubadours/index.php
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personagens caricatos (os camponeses, os cavaleiros e os padres). “É uma visão
deturpada, muito vendida pelos filmes, mas que não corresponde à realidade”, inicia a
discussão o historiador Carlos Nogueira, professor de História Medieval da
Universidade de São Paulo. A professora de História Medieval da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Miriam Coser, concorda e reforça: “O primeiro
grande engano é mesmo achar que na Idade Média a sociedade era formada por padres,
guerreiros e camponeses”. Na realidade, insiste, a organização social era muito mais
complexa. Outros atores compunham aquele cenário e, para o arrepio dos que pregam
que se trata da Idade das Trevas (onde se oprimia o conhecimento, a escrita, as mulheres
e os infiéis), os mil anos medievais foram muito ricos em relação à produção humana,
artística e tecnológica.
A afirmação pode soar estranha, mas as pesquisas acadêmicas sobre a Idade
Média, desenvolvidas aqui no país e também no exterior, mostram exatamente essa
riqueza e essa diversidade que os especialistas apontam. Aliás, os estudos brasileiros
foram ganhando qualidade e relevância à medida que foram estabelecendo intercâmbios
e se afinando com grupos tradicionais de estudos medievais da Europa, sediados na
França e em Portugal, por exemplo. Curiosamente, a ebulição que sacode a academia
não é encontrada nas escolas de ensino fundamental e médio, períodos nos quais a Idade
Média é apresentada aos estudantes.
Nogueira atribui essa distância a um intervalo natural que se observa entre a
produção acadêmica e a aplicação nas escolas, um fenômeno bem comum e não
reduzido à História. O professor da USP sugere ainda que as editoras que movimentam
o mercado de livros escolares e didáticos não demonstram tanto interesse na Era
Medieval quanto aquele revelado pela História do Brasil.
Miriam ressalta que é justamente a História do Brasil a área mais bem trabalhada
no que diz respeito ao tempo que leva para as inovações nascidas na Universidade
chegarem aos colégios; à riqueza de detalhes e reflexões; à presença de bons livros e
outras obras de referência para apoiar os estudos. Para ela, a Idade Média não seduz
tanto quanto poderia os livreiros, os professores e alunos, não apenas porque o Brasil
não a atravessou da maneira mais conhecida, com os castelos, os camponeses, os
cavaleiros e a Igreja, mas principalmente “porque se pensa o período como um intervalo
entre o Feudalismo e o Capitalismo, ou seja, o importante é sair de uma fase e passar
para a outra, mas para isso, há que se passar pela Idade Média”, provoca.
Longa e Rica
Os prejuízos para o entendimento do mundo medieval e até do mundo atual
quando se sobrevoa superficialmente o período que vai do fim do Império Romano à
chegada ao Capitalismo são vários. A professora da UniRio, que já havia comentado
que a sociedade medieval era bem mais complexa que a redução mais clássica entre
padres, cavaleiros e camponeses, destaca também a questão das cidades. Ao contrário
do que se costuma estudar, as cidades também existiam na Era Medieval. Eram
assentamentos rurais, diferente das cidades modernas que conhecemos hoje, mas
existiam de forma independente dos castelos. “Tradicionalmente se relaciona o
surgimento das cidades com o nascimento do próprio Capitalismo. E não é bem assim.
Nem todo mundo vivia no castelo, existia uma economia, uma vida social e de trabalho
nas cidades”.
E esse não é um detalhe descartável. Mais adiante, quando os professores
apresentarem suas propostas para as aulas de Idade Média ficarem mais atraentes, as
cidades e o trabalho terão um lugar significativo. Nogueira vai adiante. “Me preocupa o
reducionismo com a Idade Média, porque as pessoas deixam de saber, por exemplo, que
parte da inspiração fascista e de Hitler – com a figura do herói, do povo que sai para a
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conquista, da nobreza dos ideais de guerra, etc. – estão na Idade Média”. Ele lembra
que, nesse período, a Europa conseguiu feitos incríveis, como construir as primeiras
máquinas movidas à energia não humana, como o moinho d’água; com pensamento e
tecnologia avançados para a época, os europeus medievais conseguiram também
dominar a alimentação e possibilitaram que o continente ficasse mais dinâmico e
pudesse conquistar os outros continentes. “Ou seja, até a corrida dos Descobrimentos do
século XVI e o Neocolonialismo do século XIX têm, como origem, a Idade Média. Não
dá para continuar achando que era um tempo sombrio em que o homem não se
desenvolveu”, pontua o professor da USP.
Tudo isso vem temperado com o requinte da longevidade. Em tempos de
produtos, valores e culturas descartáveis, as heranças que vêm da Idade Média ainda
manifestam forte relevância no mundo atual. A primeira que merece atenção é a duração
física do que foi construído entre os séculos V e XV. Pontes, castelos, igrejas, muros,
universidades e cidades inteiras seguem firmes, de pé, desafiando o tempo e a
intempérie.
De natureza mais sutil, a representação do feminino ideal também tem o berço
naquela fase. “A figura da mulher perfeita, espelhada em Maria – o chamado modelo
mariano –, devotada ao marido, submissa, que aguenta as dores sem fazer alarde, nasceu
lá na Idade Média. A gente precisa se perguntar por que a Igreja tentou impor com tanta
força esse modelo e demonizar as mulheres que desgarrassem dele”, provoca Miriam.
Nasceram na Idade Média também, e perduram até hoje, ideais de
comportamentos e de posturas frente a vida e a sociedade. O certo e o errado em relação
à sexualidade, ao aborto, ao casamento e às relações entre homens e mulheres seguem
pautados pelo que a igreja já dizia em tempos medievais. O assunto, lembra Miriam, é
tão atual que virou pano de fundo na última eleição presidencial. Se a isso o professor
somar que muitos dos estudantes em breve serão – ou já são – eleitores, o período
medieval fica inegavelmente atual.
Na prática
Não existe um caminho certo para convidar os alunos a conhecer essa nova
Idade Média, carregada de detalhes intrigantes. Para Miriam, o professor precisa estar
bem preparado e disposto a desbravar o terreno junto com os jovens. Uma possibilidade
é retomar os contos de fadas e histórias infantis. É sabido que essa forma narrativa se
inspira na Idade Média, ou no que foi romantizado nos séculos seguintes.
Como boa parcela das crianças tem contato com Bela Adormecida, Rapunzel,
Branca de Neve, Rei Arthur e tantos outros, não é difícil propor conexões. O risco,
como os especialistas já alertaram, é reduzir toda uma Era a um sonho dourado, com
princesas, príncipes encantados, cavaleiros errantes (que Miriam garante: nunca
existiram!) e dragões cuspidores de fogo. Essas histórias podem abrir o repertório,
ajudar a fugir da falácia da Era das Trevas, mas não se pode parar por aí. Conhecer as
cidades pode ser muito rico também, na opinião da historiadora. “Sabendo a realidade
do estudante, dá para traçar estratégias diferentes. Se ele é de classe média ou alta,
talvez ele, ou os pais, tenham visitado as cidades medievais que ainda existem na
Europa e essa pode ser uma ponte. Se for de classe um pouco mais baixa, certamente já
viu, ou ouviu falar, das cidades que – ainda hoje – são construídas ao redor de uma
igreja. São Paulo, por exemplo. Essa é uma referência medieval”, propõe. Alinhar o
conteúdo às artes também pode dar bons resultados: os vitrais medievais, as pinturas
bizantinas e a música da Alta e da Baixa Idade Média – seja a religiosa, seja a popular –
costumam atrair os alunos. Assim como ser uma tarefa produtiva pedir que eles mesmos
representem as corporações de ofício, entidades de trabalho manual, artesanal, mas
profundamente hierarquizadas.
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Se é verdade que os livros didáticos ou desfiguram, ou não dão a devida
importância à Idade Média, Nogueira sugere que o professor leia e se inspire em obras
não didáticas, como a biografia Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo,
de Georges Duby (Ed. Graal), que conta a vida do paladino Guilherme, que trabalhou
junto a três reis – entre eles o famoso Ricardo Coração de Leão –, ou O outono da Idade
Media, de Johan Huizinga (Ed. Cosac Naify). Dependendo da idade e do grau de
envolvimento dos estudantes, é possível ainda sugerir que eles mesmos leiam os títulos
e, dessa forma, construam noções mais profundas sobre a relação entre as pessoas, a
relação com o trabalho, o cotidiano nas cidades e nos castelos, as cruzadas etc.
Para quem quiser se arriscar nas produções audiovisuais, os dois entrevistados
são unânimes: O incrível exército de Brancaleone (de Mario Moricelli) – porque, entre
uma trapalhada e outra, é possível conhecer o cotidiano, as relações entre as pessoas e a
mentalidade da época. Miriam recomenda ainda Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco
Zefirelli (que dá até para alavancar uma conversa sobre como a época em que o filme é
feito se reflete na época retratada e, nesse caso, mostra Francisco e Clara como
pequenos hippies, próprios dos anos 1970, segundo a professora da UniRio). Já
Nogueira sugere Monty Phyton: em busca do cálice sagrado (de Terry Gilliam e Terry
Jones) e Robin e Marian, de Richard Lester. Todos eles, de acordo com o professor da
USP, reconstituem mais fielmente o que foi a Idade Média e convidam alunos e
professores a conhecer melhor essa fase muito mais rica e diversa do que se costuma
conhecer.
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FRANCO JR, Hilário. A IDADE MÉDIA – Nascimento do Ocidente. São Paulo:
Brasiliense, 2001. Disponível em:
https://rhistoriadora.files.wordpress.com/2015/04/hilario-franco-jr-a-idade-media-
pdf.pdf
Introdução O (pré)conceito de Idade Média
Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade
Média”, eles não teriam ideia do que estaríamos falando. Como todos os homens de
todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos
em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da
necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de
Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito,
pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados
entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento
da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de
criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um
hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média. P. 9 (...)
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bens, que tornava desinteressante a cessão de uma mercadoria sem se saber se outra
poderia ser proximamente obtida. Por fim, ela é instrumento de reserva de valor, já que
sem perder as funções anteriores pode ser guardada para a qualquer momento satisfazer
certas necessidades. Este papel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à
pequena disponibilidade de bens: “É a exiguidade da produção que determina a
exiguidade da circulação monetária e a imobilização do metal precioso” (42: 325). Em
suma, a moeda era rara porque os bens eram raros. P. 45 (...)
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Rodrigo Díaz de Vivar (Burgos, Espanha, 1043 - Valência, 10 de julho de 1099)
morreu com 56 anos, chamado El Cid (do mourisco sidi, "senhor") e
de Campeador (Campidoctor, Campeão), foi um nobre guerreiro castelhano que viveu
no século XI, época em que a Hispânia estava dividida entre reinos rivais
de cristãos e mouros (muçulmanos). Sua vida e feitos se tornaram, com as cores da
lenda, sobretudo devido a uma canção de gesta (a Canción de Mio Cid), datada de 1207,
transcrita no século XIV pelo copista Pedro Abád, cujo manuscrito se encontra
na Biblioteca Nacional da Espanha, um referencial para os cavaleiros da idade média. A
imagem que emerge desse manuscrito é a do cavaleiro medieval idealizado: forte,
valente, leal, justo e piedoso. Mas há outras fontes que lhe pintam um retrato bem
menos favorável.
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Carlos Magno (em latim: Carolus Magnus, alemão: Karl der
Große, francês: Charlemagne; 2 de abril de 742 — Aachen, 28 de janeirode 814) foi o
primeiro Imperador dos Romanos de 800 até sua morte, além de Rei dos Lombardos a
partir de 774 e Rei dos Francos começando em 768. A denominação dinastia Carolíngia,
que pelos sete séculos seguintes dominaram a Europa, no que veio a ser posteriormente
chamado Sacro Império Romano-Germânico deriva do seu nome em latim "Carolus".
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Os idiomas vernáculos apareciam, e com eles o princípio do nacionalismo, isto
é, certa consciência dos indivíduos de um grupo humano de terem uma origem e um
destino comuns. Esse sentimento passou, desde o século XI e mais claramente desde o
XII, a se identificar com todo um reino e a ser mesmo reconhecido como legítimo pela
Igreja. P. 79 (...)
Por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, Carlos Magno
ajudou a definir a Europa Ocidental e a Idade Média na Europa. Carlos reinou primeiro
em conjunto com seu irmão Carlomano, sendo a relação entre os dois o tema de um
caloroso debate entre os cronistas contemporâneos e os historiadores.
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Frederico I (1122 – 10 de junho de 1190), também conhecido como Frederico
Barbarossa (ou "Barba Ruiva"), foi o Imperador Romano-Germânico de 1155 até sua
morte. Ele foi eleito Rei da Alemanha em Frankfurt em 4 de março de 1152 e coroado
em Aachen cinco dias depois. Ele se tornou o Rei da Itália em 1155 e foi formalmente
coroado como o monarca supremo do Império Romano-Germânico pelo Papa
Alexandre IV em 18 de junho de 1155. Dois anos mais tarde, o
termo sacrum ("sagrado", ou "sacro") foi utilizado pela primeira vez para se referir ao
império. Ele foi também coroado Rei da Borgonha, na cidade de Arles, em 30 de junho
de 1178. Frederico recebeu o nome de Barbarossa das cidades italianas que tentou
governar: Barbarossa significa "Barba Ruiva" em italiano; em alemão ele era conhecido
como Kaiser Rotbart ("Imperador Barba Ruiva").
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Frederico II (Jesi, 26 de dezembro de 1194 – Torremaggiore, 13 de
dezembro de 1250) foi Imperador Romano-Germânico e Rei da Itália de 1220 até sua
morte, além de Rei da Sicília a partir de 1198 e Rei de Jerusalém entre 1225 e 1228 em
direito de sua esposa a rainha Isabel II. Esteve em luta quase constante com os Estados
Papais e, apesar de excomungado duas vezes, tomou parte na Sexta Cruzada, que
conduziu como diplomata e não como guerreiro. Inocêncio IV destituiu-o no Concílio
de Lyon. O papa Gregório IX chegou a chamá-lo de Anticristo e, provavelmente por
isto, quando morreu, surgiu a ideia de que ele voltaria a reinar de novo em mil anos.
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Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 – Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578),
apelidado de "o Desejado" e "o Adormecido", foi o Rei de Portugal e Algarves de 1557
até sua morte. Ele ascendeu ao trono aos três anos após a morte de seu avô o rei João
III, com uma regência sendo instaurada durante sua minoridade, liderada primeiro por
sua avó a rainha Catarina da Áustria e depois por seu tio-avô o cardeal Henrique de
Portugal. Sebastião assumiu o governo aos catorze anos de idade em 1568,
manifestando grande fervor religioso e militar. Solicitado a cessar as ameaças às costas
portuguesas e motivado a reviver as glórias da chamada Reconquista, decidiu montar
um esforço militar em Marrocos, planeando uma cruzada, após Mulei Mohammed ter
solicitado a sua ajuda para recuperar o trono. A derrota na Batalha de Alcácer-
Quibir em 1578 levou ao desaparecimento de Sebastião em combate e da nata da
nobreza, iniciando a crise dinástica de 1580 que levou à perda da independência para
a Espanha e ao nascimento do mito do Sebastianismo.
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é que sairia a Idade Média. Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos
poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se
com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A Igreja
passava a ser a herdeira natural do Império Romano. Pp. 90-91 (...)
9
Representação de suserano e seu vassalo
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Oficial de casa nobre durante a Idade Média.
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dos bens do marido. No sul europeu, aceitava-se mesmo sua participação na vida
política. O desempenho social das mulheres ganhava peso crescente: na Paris de fins do
século XIII, havia cinco ofícios exercidos exclusivamente por elas, que ainda estavam
presentes em quase todos os outros. Detalhe revelador: no aristocrático jogo de xadrez,
substituía-se em fins do século XIII uma peça masculina chamada fierce (espécie de
senescal) pela figura da rainha. Peça de limitada atuação no tabuleiro até ganhar em
meados do século XV um papel central. Era o jogo de salão imitando o jogo social. P.
132 (...)
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isto é, manuais, próprias de escravos. Na primeira parte, ou trivium, estudava-se
Gramática (ou seja, latim e literatura), Retórica (estilística, textos históricos) e Dialética
(iniciação filosófica). Na segunda, ou quadrivium, passava-se para Aritmética,
Geometria (que incluía a geografia), Astronomia (astrologia, física) e Música.
Cumpridas essas duas etapas, de duração variável conforme as condições pessoais e
locais, passava-se para o estudo da Teologia, o saber essencial da Idade Média, ao qual
os clérigos se dedicariam por toda a vida. Pp. 142-143
Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía ao conhecimento,
as ciências viam-se limitadas no seu desenvolvimento. Predominava a concepção de que
a meta do homem era o Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas
Sagradas Escrituras. Dessa forma, não se observava a natureza para deduzir explicações
ou levantar hipóteses, mas para ver os símbolos dos desígnios divinos. Diante disso, a
Matemática parecia abstrata, a preocupação quantitativa quase não existia e os números
valiam mais pelo seu simbolismo do que pelo seu eventual caráter prático, utilitário. A
Botânica e a Mineralogia reduziam-se a tratados descrevendo plantas e pedras, quase
sempre vistas como dotadas de aspectos mágicos. A Medicina estava limitada pela ideia
de que o doente é um pecador cuja cura residia na atuação da Igreja (orações,
sacramentos, exorcismos etc). P. 143 (...)
A lírica trovadoresca, nascida em princípios do século XII, talvez seja o melhor
exemplo de produto da cultura intermediária. De um lado, exaltava o amor no seu
aspecto espiritual, introvertendo o erotismo. Tal impossibilidade de concretização física
do amor funcionava como uma penitência. A submissão do poeta à sua “senhora”
transferia para o campo amoroso a relação vassálica e tinha claro paralelismo com o
culto a “Nossa Senhora”, quer dizer, a Virgem, que então se desenvolvia. De outro lado,
o trovador era um nobre feudal (que compunha música e letra para a interpretação do
jogral), daí conceber o amor como variante da vassalagem, sem com isso chegar à
espiritualização completa do amor. Pelo contrário, o caráter sensual, às vezes
declaradamente erótico, aparece com frequência naquela poesia. Sua faceta
antimatrimonial colocava-se na perspectiva de oposição à Igreja, que instituía o
sacramento do matrimônio objetivando reforçar sua capacidade de controle sobre a
sociedade laica. P. 156 (…)
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Capítulo 7 As estruturas cotidianas
(...) O tempo
Os medievais tinham uma experiência da passagem do tempo bastante diferente
da nossa. A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme quantificação do
tempo. Como na Antiguidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também,
independentemente da época do ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram
simplesmente ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios (horas)
contabilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, relógios d'água, observação do
Sol. P. 169
Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um controle maior sobre
as horas, contando-as precariamente de três em três a partir da meia-noite (matinas,
laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas). Maior precisão apareceu
somente no século XIV, com o relógio mecânico, que porém tinha apenas o ponteiro
das horas. Essa forma de relação com o tempo não decorria, como já se pensou, de
deficiências técnicas. Calculava-se imprecisamente o tempo porque não havia
necessidade de fazer de outro modo. P. 169 (...)
Sexo
Assim, apenas ao longo do século XII a Igreja pôde, com dificuldade, completar
a definição da única modalidade aceitável de vida sexual cristã — o matrimônio,
tornado um dos sacramentos. Ou seja, em primeiro lugar, uma relação heterossexual.
Combatia-se, assim, a prática da bestialidade (sexo entre humano e animal), frequente
no mundo antigo e no campesinato medieval. Uma tradição mítica interpretava o
versículo bíblico no qual Adão, ao ver Eva, diz “desta vez é osso dos meus ossos e
carne da minha carne” (Gênesis 2,23) como prova de que ele anteriormente fazia sexo
com animais, as únicas companhias que tivera até então no Éden. O casamento cristão
combatia especialmente a homossexualidade, o pior pecado sexual possível, por visar
apenas ao prazer e não à procriação, como Deus determinara ao primeiro casal: “Sejam
fecundos e multipliquem-se” (Gênesis 1,28). Outra passagem bíblica, muito citada pelo
clero medieval, comprovava o horror ao homossexualismo, difundido em Sodoma e
Gomorra, cidades por essa razão destruídas por Deus com enxofre e fogo (Gênesis 18,
20-21; 19, 1-29). P. 174 (...)
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Na vida política, a duplicidade de um poder central teoricamente forte e a
realidade dos poderes locais atuantes permanece. O ponto de partida, que deixou fundas
raízes, foi o sistema de capitanias. Isto é, o sistema usado pelas comunas italianas
medievais nas suas colônias do Oriente Médio e das ilhas mediterrâneas, mais
especificamente por Gênova, que nos séculos XIV-XV mantinha estreitas relações com
Portugal. As primeiras capitanias portuguesas, nas Ilhas Canárias, foram entregues em
1370 a um “capitão” genovês. O funcionamento do sistema foi o mesmo na Idade
Média e nos séculos XVI-XVII: cada donatário tinha o usufruto das terras e nelas
poderes regalianos [de rei] como arrecadar impostos, aplicar justiça, convocar milícias.
Intermediária privilegiada entre o poder monárquico e os colonos, a figura do donatário
gerou no Brasil o personalismo típico das relações medievais, responsável pela fraqueza
das instituições políticas brasileiras dos séculos seguintes. P. 233
Na vida social, por muito tempo, e ainda hoje em certas regiões, prevaleceu a
família patriarcal, que dificulta a transformação do indivíduo em cidadão, dos interesses
particulares em interesses gerais e, por consequência, a consolidação do Estado. O
patriarca — termo correspondente linguística e funcionalmente ao senior (“o mais
velho”) feudal — constituía em suas amplas terras uma espécie de micro-Estado que
produzia quase todo o necessário para a vida de sua população. O patriarca detinha ali
poder de vida e morte sobre seus familiares. Dependentes das riquezas e da proteção
fornecidas pelo patriarca, os demais habitantes daquela terra também estavam
submetidos ao seu poder. Essa organização colonial e imperial transferiu-se para a
República, por longo tempo dominada por aquelas aristocracias regionais. Mesmo a
democratização recente do país não eliminou ainda o clientelismo e seu pressuposto, a
prática do “dando é que se recebe”. P. 234
No plano jurídico, as normas formalmente derivadas do Direito Romano não
escondem a força de um direito consuetudinário informal, paralelo, de um conjunto de
ilegalidades socialmente aceitas. Estas quase sempre são praticadas em detrimento do
Estado, cotidianamente assaltado nas suas prerrogativas, muitas vezes por dentro, por
parte de altos funcionários e dos próprios governantes. Como na época feudal, o Estado
brasileiro não é uma “coisa pública” (res publica), é propriedade dos mais fortes e
espertos. Ao longo de nossa história pouco se distinguiram as noções de público e
privado, da mesma forma que ocorria na sociedade feudal, na qual tudo é privado e ao
mesmo tempo tudo se torna público (...). p. 234
No plano econômico, a situação brasileira, fundamentalmente agrária até
meados do século XX, denuncia o passado medieval transplantado pelos portugueses e
prolongado pelo sistema colonial mercantilista e pelo neocolonialismo industrial. Da
mesma forma que o sistema de valores medieval exaltava a aventura do cavaleiro
andante, o destemor religioso do cruzado, o espírito de risco do mercador que partia
para locais distantes, por muito se desprezou no Brasil o trabalho cotidiano e rotineiro.
A ocupação do solo e a exploração das riquezas naturais deram-se, no Brasil “moderno”
e “contemporâneo”, de forma predatória semelhante à praticada na Europa “medieval”.
Associada ao caráter agrário da sociedade, a urbanização europeia fora fraca até o
século XI, a brasileira até fins do século XIX. P. 234-235
No plano cultural, apesar da globalização neste início de milênio, alguns
elementos medievais ainda são visíveis. Artur e Carlos Magno estão presentes com
frequência na literatura nordestina de cordel, cujo espírito, temática, transmissão e
recepção essencialmente orais prolongam a poesia europeia da Idade Média no Brasil do
século XX. Mesmo certas criações eruditas do Nordeste, como os textos de Ariano
Suassuna e as músicas de Elomar, bebem fundamentalmente de fontes medievais. O
calendário brasileiro atual tem 14 feriados oficiais, dos quais 11 são de origem
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medieval. Festas como o Carnaval, no Rio de Janeiro e no Nordeste, o Bumba-meu-boi,
em São Luís do Maranhão, a Procissão do Círio, em Belém do Pará, têm inegáveis
raízes medievais. P. 235
A religiosidade nacional, sincrética, exacerbada, informal, traz em si diversos
traços medievais: as irmandades, o culto a santos não canonizados (caso de Padinho, o
padre Cícero), a visão mágica de sacramentos (roubar hóstias consagradas para fazer
amuletos foi comum na Europa medieval e no Brasil colonial), o sentimento messiânico
milenarista (como mostram o sebastianismo, Canudos, certos eventos políticos
recentes), várias superstições (espelho quebrado, saliva cura e mata, pé direito etc). O
processo de formação do catolicismo brasileiro também lembra o fenômeno na Idade
Média. Nesta ocorreu uma cristianização do paganismo e uma paganização do
cristianismo, no Brasil uma cristianização do culto africano e uma africanização do
cristianismo. A sensibilidade coletiva brasileira é de forte instabilidade emocional,
oscilando do pessimismo mais negro ao otimismo mais eufórico, semelhante ao
constatado por Marc Bloch na Europa feudal (...). p. 235
GLOSSÁRIO
Adubamento: cerimônia que se difunde a partir de meados do século XI, pela qual um
indivíduo era armado cavaleiro. Rito de iniciação destinado a dar acesso à ordem dos
bellatores, ele tinha pontos de contato com a entrada na ordem dos oratores. Nos dois
casos, o caráter algo mágico da função era transmitido por um gesto ritualizado, um tapa
(o termo francês adoubement deriva do antigo germânico “bater”). A cerimônia
implicava ainda a bênção da espada e, mais raramente, um banho purificador e uma
noite de velada das armas.
Claustro: literalmente “fechado”, esta palavra indica o espaço central — geográfica
e/ou simbolicamente — de um mosteiro. Trata-se de um jardim quadrado, imagem do
Paraíso terreno, cercado por galerias cobertas. Ao caminhar por estas, os monges
realizam uma peregrinação simbólica e uma reflexão estimulada pelas cenas
frequentemente esculpidas nas colunas que sustentam tais galerias.
Cristandade: inicialmente sinônimo de cristianismo, passou depois, com o papa João
VIII (872-882), a designar o conjunto dos territórios cristãos do Ocidente europeu. O
termo tornou-se usual desde fins do século XI. Os medievais falavam indiferentemente
em Christianitas ou Respublica Christiana, conceitos civilizacionais que não se
confundiam com o de Europa. Essa tomada de consciência da identidade coletiva
ocidental veio a partir dos contatos crescentemente tensos com referenciais externos, o
mundo muçulmano desde princípios do século VIII, o mundo bizantino sobretudo desde
o século IX.
Cultura intermediária: nível cultural comum a clérigos e leigos, por reunir elementos
provenientes tanto da cultura erudita quanto da cultura vulgar.
Escatologia: doutrina relativa ao destino último do homem e do universo. Para a
mentalidade medieval, o tempo escatológico era o da Parusia, que poria fim às coisas
terrenas e, portanto, à História. As expectativas e especulações sobre esse fato explicam
a imensa atenção medieval dada ao livro bíblico do Apocalipse (literalmente
“revelação”), que profeticamente descreve aquele momento.
Feudo: a palavra deriva do germânico fehu, “gado”, com o sentido de “um bem dado
em troca de algo”. Inicialmente, fins do século IX, o feudo era cedido pelo poder
público (rei, conde) em troca de serviços públicos (guerra, administração). A partir de
fins do século XI, ligado estreitamente à vassalagem, o feudo tornou-se um bem privado
concedido em troca de serviços privados. Essa concessão (terra, dinheiro, direitos
15
diversos) era feita por um nobre, intitulado “senhor”, a outro nobre, chamado “vassalo”,
em troca essencialmente de serviço militar.
Hagiografia: narrativa da vida de um santo. Tipo de literatura muito difundido na Idade
Média e uma das principais fontes para se conhecer a mentalidade da época. Ela era um
dos mais importantes pontos de encontro da cultura erudita com a cultura vulgar, como
se vê na mais célebre coletânea hagiográfica medieval, a Legenda Aurea, de meados do
século XIII.
Heresia: literalmente “escolha”, quer dizer, interpretações e práticas religiosas
contrárias àquelas oficialmente adotadas pela Igreja Católica. Devido ao grande poder e
riqueza do segmento eclesiástico naquela época, as heresias medievais funcionaram
muitas vezes como uma transferência de aspirações socioeconômicas para o plano
espiritual.
Parusia: do grego “presença”, “chegada”, designa a Segunda Vinda de Cristo, que abre
o Milênio, período de felicidade terrena durante o qual Satanás fica preso. A Parusia
implica a derrota do Anticristo e a instalação do Reino de Deus na Terra.
Peregrinação: viagem feita com objetivos religiosos, tendo como meta um santuário
cheio de relíquias que transmitem parte de sua sacralidade ao viajante. Era, assim, para
o homem medieval, um importante instrumento de penitência e de salvação. Os
principais centros peregrinatórios foram Roma na Alta Idade Média, Jerusalém nos
séculos XI-XII, Compostela nos séculos XI-XIII.
Reconquista Cristã: expressão que designa o fenômeno militar colonizador
empreendido pelos cristãos ibéricos, auxiliados sobretudo por franceses, alemães e
ingleses, para recuperação das terras peninsulares ocupadas pelos muçulmanos em 711 e
completa e definitivamente reincorporadas à Cristandade ocidental em 1492.
Senhorio: “esta palavra resume todos os meios de que dispõe um senhor (dominus ou
senior) para se apropriar do rendimento do trabalho realizado pelos homens sob o seu
domínio. Esses meios são complexos; uns têm origem na posse do solo, outros no
exercício de um poder coercivo (ban). Daí deriva a dupla natureza do senhorio:
fundiário e banal” (BONNASSIE: 184).
Vassalagem: laço contratual que unia dois homens livres, o senhor (dominus, recebedor
de fidelidade e serviços nobres, isto é, não produtivos, não servis) e o vassalo (vassalus,
termo derivado do céltico gwas, “homem”, aquele que recebe sustento de outro). Nos
séculos VIII-IX prevalecia o vínculo pessoal: alguém recebia uma terra porque era
vassalo. A partir do século XI prevaleceu o elemento real: alguém se fazia vassalo para
receber um feudo.
16
Cavaleiro Medieval - Ilustração
[DATASHOW]
17
A POESIA MEDIEVAL – PROVENÇA
18
EXEMPLO DE CANTIGA DE AMOR PROVENÇAL
Fonte: SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. SP: Edusp, 1996, pp. 108-109.
De lai don plus m'es bon e bel Dali onde está o que para mim existe de
non vei mesager ni sagel, melhor e mais belo, não vejo [vir]
per que mos cors non dorm ni ri, mensagem nem carta; por isso não
ni no m'aus traire adenan, durmo nem rio, tampouco me atrevo a
tro que sacha ben de la fi prosseguir, enquanto não venha a saber
s'el es aissi com eu deman. se tudo haverá de resultar como desejo.
La nostr' amor vai enaissi Com nosso amor acontece como à rama
com la branca de l'albespi do branco-espinho – que fica tremendo
qu'esta sobre l'arbre tremblan, na árvore, durante a noite, à mercê da
la nuoit, a la ploia ez al gel, chuva e do gelo, até que o sol, no dia
tro l'endeman, que.l sols s'espan seguinte, venha espalhar-se pelas folhas
per la fuella vert e.l ramel. e pela ramagem.
Qu'eu non ai soing de lor lati Não receio que estranha linguagem me
que.m parta de mon Bon Vezi, afaste de meu Bom Vizinho, pois bem
qu'eu sai de paraulas com van, sei o efeito das palavras que se
ab un breu sermon que s'espel, espalham num breve discurso;
que tal se van d'amor gaban, envaideçam-se os outros do amor que
nos n'avem la pessa e.l coutel. possuem: a nós não falta o necessário.
19
–, só lhe resta agora morrer honradamente ao pé dos seus amigos a trilhar o caminho
que o conduz ao Senhor.
Além da invocação primaveril, outro tópico que Guilherme IX põe a circular
pela poesia trovadoresca refere-se à sintomatologia passional, possivelmente uma
derivação ovidiana: não durmo nem rio, que penetrou terras galego-portuguesas, como
se pode ver nesta cantiga d’amor de D. Afonso Sanchez, filho do rei D. Dinis:
Martin Codax:
Bom Vezi (Bom Vizinho), pseudônimo (senhal) com que o trovador oculta o nome da
mulher, um dos cânones do amor cortês, ligado ao segredo com que essas relações
sentimentais se realizavam.
Reis glorios, verais lums e clartatz, (a) Rei glorioso, verdadeira luz e claridade;
Deus poderos, Senher, si a vos platz, (a) Deus poderoso, Senhor, se voz apraz,
Al meu companh siatz fizels aiuda! (b) sede fiel ajuda ao meu companheiro,
Qu'eu no lo vi, pos la nochs fo venguda, (b) pois não o vejo desde que a noite
Et ades sera l'alba (C) chegou e “logo será cedo”!
20
Bel companho, en chantan vos apel! Bom companheiro, cantando vos chamo;
No dormatz plus, qu'eu auch chantar l'auzel não deveis dormir mais, pois ouço cantar o
Que vai queren lo jorn per lo boschatge pássaro que vai pela floresta à procura do
Et ai paor que.l gilos vos assatge dia e tenho medo que o ciumento (marido)
Et ades sera l'alba vos surpreenda, “e logo será cedo”!
Bel companho, la foras als peiros Bom companheiro, ali fora na escada
Me preiavatz qu'eu no fos dormilhos, me advertíeis, que eu não fosse
Enans velhes tota noch tro al dia. dorminhoco, senão que velasse a noite
Era no.us platz mos chans ni ma paria inteira até o amanhecer. E agora não vos
Et ades sera l'alba agradam meus cantos nem minha
companhia, “e logo será cedo”!
Bel dous companh, tan sui en ric sojorn Doce e bom companheiro, estou numa
Qu'eu no volgra mais fos l'alba ni jorn, morada tão rica (num lugar tão
Car la gensor que anc nasques de maire paradisíaco), que eu desejava não
Tenc et abras, per qu'eu non prezi gaire houvesse alvorada nem dia, pois a mais
Lo fol gilos ni l'alba. gentil que já nasceu de mãe, possuo e
abraço, e por isso pouco me importam a
madrugada e o louco ciumento.
21
nesta espécie poética. Seis são os exemplares desta modalidade de Alba sacra, em que a
noite é símbolo do pecado, e o amanhecer o símbolo da glória celestial ou da graça
virginal de Maria.
O conceito que aparece na última estrofe surge também numa Alba de autoria
duvidosa (Gaucelm Faidit ou Bertrand d’Alamano):
Doussa res, s’esser podia
que ia mais alba ni dia
no fos...
(Doce amiga, oxalá não existissem mais nem alba nem dia...)
7
“’Las leys d’amors’ constituyen el mas extenso de nuestros tratados, de gran riqueza en sus partes
gramaticales, retóricas, estilísticas y versificatorias, que si en algo pecan es por el exceso de noticias
nimias y por el afán en clasificar y pormenorizar, pero que reúnen un auténtico tesoro de referencias”.
(RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001, Tomo
I. Colección Letras y Ideas, p. 33-34). E, ainda, quanto ao uso das sílabas poéticas: “El cómputo de
sílabas en principio siempre es exacto en la poesía trovadoresca, como es lógico en textos compuestos
para ser cantados con una melodía culta y refinada.” (Ibidem, p. 36).
8
In: RIQUER, idem, ibidem, p. 35-36. A tradução encontrada em Elisa Garrido Gómez é a seguinte: Hace
un año que canto y voy considerando, y disponiendo, rimando, limando, alabando (y) amando los
22
Girona não foi feliz apenas na disposição de sua canção, mas também na
melodia, o que é tautológico, já que os poemas à época eram para ser cantados. Realiza-
se a intenção pontual de evidenciar as terminações em “an", cuja musicalidade não só
pode ter agradado a audiência como uniu forma e fundo: coloca no seu poema a
definição de poeta, que é dispor, rimar, limar, louvar e amar. Para Martín de Riquer,
Cerveri cultivou, assim como Arnaut Daniel, o “trobar ric”, em que “alcanza a veces
momentos muy logrados9 e “aunque por este camino llega a la extravagancia de
componer una canción con versos de una y dos sílabas10”.
Já um outro trovador provençal, considerado um dos mais criativos, por difícil e
obscuro, registra “el hápax, la voz popular no registrada en léxicos ni usada por otros
escritores y el modismo cuyo sentido no alcanzamos11”. O trovador é Marcabru
(...1130-1149...) que, no poema que segue, desenvolve um tipo de poesia visual, o qual
comprova tanto a originalidade e individualidade desse provençal, quanto as definições
a ele impingidas. A dificuldade e obscurantismo, segundo Martín de Riquer, não se
apresentam apenas na parte filológica do trabalho de Marcabru, mas também no “juego
de ingenio, el doble sentido de una palabra, el valor preciso de los conceptos abstractos
y su mutua relación, la incertidumbre ante la dicción que no se sabe si es grave o
irónica12”. A essas dificuldades quer-se demonstrar que, utilizando-se do conceito de
Maneirismo proposto por Ernst Robert Curtius, a intenção do poeta maneirista é
sobressair-se, e, assim fazendo, torna-se, ante seu público, um artista inventivo, desde
que, é claro, seja original e não se utilize desses maneirismos apenas como
artificialidade. O poema de Marcabru assim se apresenta na edição de Martín de Riquer:
Estornel, cueill ta volada
Estornel, cueill ta volada:
deman, ab la matinada,
iras m’en un’encontrada,
on cugei aver amia;
trobaras
e veiras,
per que vas
comtar l’as;
e.ill diras
en ei pas
per que’er trasalhia.13
Já pela disposição gráfica, nota-se o vínculo forma-fundo: os quatro primeiros
versos em redondilhos maiores assemelham-se às asas abertas para o voo, seguidos de
seis versos trissilábicos, assemelhando-se ao corpo do pássaro. O último verso em
mandatos de afectos sin gozo. A autora inclui mais uma parte à poesia de Cerveri: “Ni a Sobrepetz, / Ne
Is Cartz, / ne I Rey”, que traduz por “En este canto no puedo incluir de ningún modo a Sobrepetz, a los
Cardos ni al Rey”. (In: Los juegos poéticos de Los Trovadores. Universidad de Sevilla, Junio 2002.
Disponível em <http://boek861.com/juego_poetico.htm>. Acesso em 26.set.2005).
9
RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001,
Tomo III. Colección Letras y Ideas, p. 1563.
10
Idem, ibidem, p. 1563.
11
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
12
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
13
“I. Estornino, emprende el vuelo: mañana, con el amanecer, irás de mi parte a una comarca donde me
imaginé tener amiga. La encontrarás, la verás y le contarás por qué vás; y le preguntarás en seguida por
qué se há comportado mal” (RIQUER, op. cit., I, p. 211-212).
23
redondilha menor conota, parece, os pés da ave. No poema, pede o “eu-lírico” que o
estornino vá, pela manhã, à procura da amada, diga-lhe o motivo da ida e repreenda-a
por ter-se comportado mal. Se, nessa mostra da poesia de Marcabru, o obscurantismo
semelha estar ausente – dada a simplicidade do enunciado – vale assinalar seu gosto
pela construção composicional aliada à motivação do tema.
Ainda dos trovadores provençais, observe-se uma das canções mais conhecidas e
difíceis. Arnaut Daniel (...1180-1195...), um trovador sempre preocupado com o fazer
poético, tendo criado, por exemplo, a sextina14, compôs, nas palavras de Martín de
Riquer, um “verdadero laberinto de rimas caras en breves unidades (a veces de una sola
sílaba), lo que implica una expresión elíptica y retorcida que hace posibles varias
interpretaciones”15. A ele se refere Petrarca como possuidor de um “dir strano e bello”,
pois cultivou um vocabulário rebuscado e original16; usou uma singularidade poética,
mesclando palavras que provocam surpresa com rimas raras17. Segue a canção, como
editada por Riquer:
L’Aur’amara fa.ls bruels brancutz
L’aur’amara fa.ls bruels brancutz
clarzir, que.l dous’espeys’ab fuelhs,
e.ls letz becx dels auzels ramencx
te balbs e mutz, pars e non-pars.
Per qu’ieu m’esfortz de far e dir plazers
a manhs? Per ley qui m’a virat bas d’aut,
don tem morir, si.ls afans no.m asoma.18
Martín de Riquer comenta que se nota nas criações do provençal uma esmerada
preocupação formal, tanto com relação à posição das palavras-rimas quanto pela escolha
daquela que siga um caminho “difícil y bello”19. O poeta iria se destacar pela
engenhosidade na escolha das rimas, principalmente porque as usa de forma diversa da
de seus camaradas trovadores, além de usar vocábulos considerados apoéticos. Adverte,
contudo, que é esse um meio de Daniel demonstrar seu desespero e fastio de forma
surpreendente. Assim, coloca na forma a própria expressão de seu sentimento “strano”,
14
Baseia-se a sextina na aparição combinada de palavras no final do verso, com reiteração de vocábulos-
chave, cuja maestria composicional repercutiu com êxito no Renascimento. (Cf. RIQUER, op. cit., II, p.
610).
15
RIQUER, op. cit., II, p. 624.
16
O rebuscamento e originalidade são próprios de qualquer poeta amaneirado, pois “o poema maneirista
mantinha um elo forte com o petrarquismo. Muitos de seus representantes eram seguidores declarados de
Petrarca, a cuja tradição aderiram. Usavam suas formas e expressavam-se com o auxílio de sua
linguagem, que se tornara artificial e impessoal.” (HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença
e o surgimento da Arte Moderna. 2 ed. Trad. J. Guinsburg e M. França. São Paulo: Perspectiva, 1994. p.
397). Percebe-se, com essas assertivas, que Petrarca foi beber em Arnaut Daniel e tornar-se referência aos
poetas que nele mesmo beberam.
17
RIQUER, op. cit., II, p. 610.
18
“I. El aura amarga hace aclarar los bosquecillos ramosos, que la dulce espesó con hojas, y mantiene
balbucientes y mudos los alegres picos de los pájaros de las ramas, aparejados y no aparejados. ¿Por qué
yo me esfuerzo en hacer y decir cosas agradables a muchos? Por aquella que me há vuelto de arriba abajo,
de lo que temo morir si no me da fin a los afanes” (Idem, ibidem, p. 624-625). Percebe-se nesta poesia a
expressão montada de palavras “laura” e ela remete a inúmeras poesias de Petrarca escondendo o nome
de sua amada Laura, homenagem explícita a Daniel e louvação daquela a quem servia: “L’aura serena che
fra verdi fronde” (CXCVI), “L’aura celeste che ‘n quel verde lauro” (CXCVII), “L’aura soave al sole
spiega et vibra / l’auro ch’Amor di sua man fila et tesse” (CXCVIII); estas, entre outras, estão presentes
no seu Canzoniere (Torino: Einaudi, 1992. (Classici, 104). Registre-se ainda que há uma tradução desta
poesia de Arnaut Daniel em POUND, Ezra, op. cit., p. 182, elaborada por Haroldo de Campos.
19
RIQUER, op. cit., II, p. 610-624.
24
que passa a “dir bello”, como entendeu Petrarca. Ressalve-se que uma leitura afinca de
seus poemas leva a antever preocupações conceptistas pelo deslocamento da metáfora e
da combinação de sons20.
Ao se escolher três trovadores21 que primaram, pela recolha do crítico espanhol,
no aperfeiçoamento do trobar clus, objetivou-se trazer exemplos que contribuem para a
discussão da proposta que aqui se dispôs delinear: a de analisar as formas de evidenciar
a inventividade naqueles poetas cuja individualidade aflora e, por isso, são expressão de
futuras estéticas. Sabe-se que os trovadores provençais forneceram a seus sucessores os
meios e artifícios para a criação poética própria de cada região europeia. Na Galiza, os
trovadores galego-portugueses foram beber naqueles antepassados para criarem o tipo
de poesia que seria característico da Península. À parte as cantigas de amigo,
consideradas pelos estudiosos como autóctones, pois revelariam o espírito, a alma do
lado ocidental peninsular, a maioria das cantigas de amor e as de maldizer e de escárnio
seria a continuação da produção provençal.
(...)
´
20
Idem, ibidem, p. 609-611.
21
Outros poderiam ser incluídos nesse rol: Raimbaut D’Aurenga, Raimbaut de Vaqueiras, Guilhem de
Montanhagol, Sordel e Peire Cardenal, entre os mais conhecidos.
25
- jogral= canta e recita as composições. Papel de divulgador da cultura popular e
vernácula, atingindo desde as camadas mais baixas da população até os castelos reais e
senhoriais
- segrel= trovador que percorre a cavalo as terras, cantando nas diversas cortes e casas
ricas. Alugando a sua arte, mas não sendo um mero jogral, o segrel constitui um
elemento perturbador da ordem hierárquica trovadoresca.
- menestrel = (séc.XIII). Músico-poeta. Às vezes, confundido com o jogral, só que
vivia sob a proteção de um nobre e andava de corte em corte.
- soldadeira ou jogralesca= cantadeira ou dançarina, a soldo, que acompanhava o
jogral. Era de moral duvidosa, muitas vezes.
26
materna, os trabalhos do mar, ora podemos ainda ouvir a celebração da felicidade do
amor correspondido. Conteúdo semântico mais variado que as de amor. Subespécies=
cantiga de romaria (a amiga convida as confidentes para a ermida a fim de encontrar o
amigo, ou para bailar na frente da igreja, à vista dos amigos, enquanto as mães acendem
velas no santuário); a barcarola ou marinha (confidente é o mar, com barcos, guerra, o
amigo que partiu no navio do rei, a esperança de regresso, os perigos do mar etc.),
alba= gênero provençal que a lírica galego-portuguesa teria adaptado, de tal forma que
se fala de alba quando o tema do amanhecer se relaciona de alguma forma ao amoroso.
Pastorela= original da França, o tema é o debate amoroso entre o cavaleiro e a pastora
(problema= participantes do discurso poético, pois é difícil saber se de amor se de
amigo). Na Arte de Trovar, o problema é resolvido dizendo que se determina pelo que
primeiro fala, ele ou ela.
Possíveis origens das cantigas de amigo=
a) tese arábica (superioridade dessa cultura e a facilidade como ela teria se comunicado
com a cultura cristã. Talvez as carjas moçárabes sejam a origem das cantigas de amigo.
b) tese popular= porque a poesia popular é espontânea, anônima e primitiva, por ser
objetiva, natural e independente da cultura dominante. Ligadas a festividades pagãs
românicas (festas de maio, as maias, p. ex.)
c) litúrgica= não existiria algo puramente popular, mas sim uma estilização de formas
da cultura dominante.
27
EXEMPLO EM JOAM ZORRO
Per ribeira do rio
Vi remar o navio
E sabor hei da ribeira (refrão) hei= tenho
Vi remar o navio
I vai o meu amigo, I= aí
E sabor hei da ribeira (refrão)
Vi remar o barco
I vai o meu amado
E sabor hei da ribeira (refrão)
E pode continuar:
Função do refrão= mnemônica; relacionado à musica; eram cantados por dois coros,
seguidas por uma parte cantada em comum. O paralelismo, no entanto, não é
exclusividade das cantigas de amigo. Algumas destas não o usam e algumas de escárnio
e maldizer o usam, mas isso é incidente.
28
Como vivo coitada, madre, por meu amado,
5 ca m'enviou mandado que se vai no fossado: serviço militar
e por el vivo coitada!
Como se observa, os versos 2 e 5 (os segundos das duas primeiras estrofes) repetem-se
como primeiros da 3ª e 4ª estrofes, respectivamente.
Finda/fiinda – remate de uma cantiga, constituído por um, dois ou três versos finais
(em casos raros, quatro). As cantigas podem ainda ter duas ou mais findas.
Ver exemplo na página 46
Cobras doblas – estrofes com séries de rimas que se repetem a cada duas estrofes.
Cobras uníssonas – estrofes com uma única série de rimas, que se repetem em todas as
estrofes (ou seja, além do esquema rimático, as terminações vocálicas dos versos são as
mesmas em todas as estrofes – abbaccca/abbaccca/abbccca).
Dobre – processo pelo qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos que são
fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na 1ª estrofe se repete a mesma
palavra em dois pontos, nas estrofes seguintes deverá repetir-se outra palavra na mesma
30
posição). Também pode ser a repetição de uma única palavra em todos os versos.
Exemplo:
Outro exemplo:
Palavra perduda – verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro (mas
podendo ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes).
Ver exemplos nas páginas 35, 54
31
en jograria; ca, u for pedir, (pois), (onde)
algun verá o vilão seer
trist’e [no]joso e torp’e sen saber,
e aver-s’á de nós e d’el rir (Martin Soárez e Paai Soárez; CBN 144) É
32
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
As coisas ficaram mal para mim,
E vós, filha de Dom Paio
Moniz, tendes a impressão de
Que eu possuo roupa luxuosa para vós,
Pois, eu, minha senhora, de presente
Nunca tive de vós nem terei
O mimo de uma correia.
Eno sagrado, en Vigo, (adro da ermida; na Idade Média, apenas uma pequena povoação)
bailava corpo velido : (belo)
amor ei! (tenho)
Padrão 1
Estrofe 1 linha 1 Eno sagrado, en Vigo
Estrofe 2 linha 1 En Vigo, (e) no sagrado,
Estrofe 4 linha 2 no sagrado, en Vigo
Estrofe 5 linha 2 en Vigo no sagrado,
Padrão 2a:
Estrofe 1 linha 2 bailava corpo velido
Estrofe 2 linha 2 bailava corpo delgado
Estrofe 3 linha 1 bailava corpo delgado
Padrão 2b:
Estrofe 3 linha 2 que nunca ouver’ amado
Estrofe 4 linha 1 que nunca ouver’ amigo
Estrofe 5 linha 1 que nunca ouver’ amado
33
Padrão 3
Estrofe 4 linha 2 ergas no sagrad’, en Vigo:
Estrofe 5 linha 2 ergue’en Vigo, no sagrado (...)
35
E cercarom-mi as ondas do alto mar, paralelismo
nom ei [i] barqueiro, nem sei remar. Leixa-pren
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!
Nom ei [i] barqueiro, nem remador, leixa-pren
morrerei eu fremosa no mar maior:
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!
Esta é uma cantiga de amigo, mais precisamente uma barcarola, onde a jovem
que narra afirma estar na capela de Sam Simion. Apesar da presença do tema religioso,
o poema se volta muito mais para o mar, onde a jovem espera seu namorado que
demora a chegar, diz ela que morrerá nas ondas do mar.
Podemos pensar nestas ondas a tomá-la como a falta de seu namorado que saiu
nas navegações, e ela o espera na igreja, onde talvez tenham firmado algum
compromisso. Por isso ela se sente sufocada pelo mar. Ela afirma ainda que morrerá no
alto mar, podemos julgar esta afirmação como se ela ameaçasse se lançar ao mar em
busca do namorado, e morreria pois não tem barqueiro, nem sabe remar.
O refrão se repete duas vezes “Eu atendend'o meu amigo!/Eu atendend'o meu
amigo!” esta repetição pode indicar que há muito ela o espera, e que a espera já se torna
cansativa.
Esta cantiga é formada por seis estrofes de quatro versos. É paralelística e de
refrão. Composta de versos decassílabos, e o refrão de versos de oito sílabas métricas.
Todo o texto é paralelístico verificando-se principalmente a existência de leixa-pren,
por exemplo, no segundo verso da terceira estrofe: “non ei [i] barqueiro nem remador”
este verso é retomado na quinta estrofe, e este é apenas um exemplo, o fenômeno ocorre
em todo o texto.
O segundo verso da terceira estrofe caracteriza uma palavra-perduda, visto que
não rima com o outro verso da estrofe: “e cercarom-mi as ondas que grandes som, / nom
ei [i] barqueiro nem remador.”
Se eu pudesse desamar
a quem me sempre desamou,
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
Se eu podesse coita dar, (sofrimento)
A quem me sempre coita deu.
37
U lh’eu dizi: “con graça, mia senhor”! (quando lhe disse: “com licença, senhora”)
catou-me um pouqu’ e teve-mi en desden; (olhou-me, ponderou)
e porque me non disso mal nen ben,
fiquei coitad(o), e con tan gran pavor
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
E sei mui ben, u me d’ela quitei
e m’end’eu fui, e non me quis falar, (dali me fui)
ca, pois ali non morri con pesar,
nunca jamais con pesar morrerei:
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
Cantiga de refrão, 3 cobras singulares. a10 b10, b10, a10 C10 C10 (160:141)
“Morrer mil vezes” é coita preferível à indiferença e à ausência da amada: no
refrão concentra-se o modo hiperbólico de formular não só dor da partida, mas,
principalmente, os efeitos do desden da senhor, tão mais notório porquanto contraposta
ao pesar dele.
Como o refrão se inicia por uma conjunção consecutiva, que, os quatro versos da
estrofe, amarrados por rimas uniformes abba, oferecem minuciosa descriptio das causas
do infortúnio, superlativizadas pelos advérbios de intensidade tan (vv. 4 e 10), bem
como pelo pleonasmo nunca jamais (v. 16), dispostos com simetria e semanticamente
complementares às mil vezes em que a morte assoma como solução. Daí o pavor (v. 10)
para que evolui o estado de espírito inicial.
Ainda garantida a coesão entre refrães e estrofes está a derivatio etimológica
[mordobre] coita / coitado, criando estreita relação, em termos de causalidade, entre
sofrimento e morte. Note-se que o destaque dado a fiquei coitad(o) (v. 10) se deve à
estrutura anastrófica do período, antepondo a oração subordinada (porque me non disso
mal nen ben, v. 9) à principal, em início de verso.
A fala do amante em discurso direto, no v. 7, confere vivacidade à cena de
aproximação frustrada.
EU DIGO MAL, COM’OME FADIMALHO – DE ESCÁRNIO
Pero da Ponte
Fonte: Os Homens entre si: os fodidos e seus maridos nas cantigas de Pero da Ponte, séc. XIII. Paulo
Roberto Sodré. In: LOPES, Denílson. Imagem e diversidade sexual. [s.l.]: Nojosa Ed., 2004, p. 252...
39
MARIA PÉREZ SE MAENFESTOU – DE MALDIZER
Fernão Velho
Fonte: MONGELLI, Lênia M. Fremosos Cantares... SP: Martins Fontes, 2009, pp. 247-248
Esta é outra das numerosas sátiras contra a soldadeira Maria Pérez, a Balteira,
tendo por tema seu arrependimento – assim o sugere a confissão (vv. 1-3) – agora na
velhice, pela vida desregrada que levou. A singularidade irreverente da cantiga está no
pacto que Maria mantém com o Demônio e no fato de colocar-se entre ele e Deus,
relação autorizada pelo paralelismo em que a Idade Média costuma conceber as duas
entidades ou o sagrado e o profano.
Por essa óptica, o texto mantém lado a lado dois campos semânticos, cujo jogo
de proximidade, entrecruzamento e recuo cria a equivocatio própria da burla: 1)
maenfestou, pecador, pormeteu a nostro Senhor, rogador foy a Deus, gran pavor de as
mort[e], gran sabor d’ esmolnar, hun clérigo filhou, afam por Deus – são todas
expressões que culminam na penitência a que a Balteira parece disposta a se entregar
para purificação das culpas; 2) o demo lhi faz fazer, com que x’ ela sempr’ andou, Ca o
40
que aguardou [o demo], o grand’ amor antr’ ela e o demo mayor, ouvi-a perder o demo
– são referências ao Demônio com quem a Balteira se dá muito bem (sempre, v. 14) e a
quem atribui as reincidências no vício. Entre os dois, Deus e o Diabo, e a interseccioná-
los, está a figura ambígua do clérigo, filhado para garantia de proteção contra as
tentações (vv. 13-14); contudo, os vv. 18-20 revelam outra realidade: deu-lh’ a cama en
que sol jazer, o que suscita o comentário sarcástico do trovador (v. 21). Desse ângulo, a
estrofe IV, cheia de subentendidos na gradatio do poema, opõe demo mayor a demo,
duas personalidades fundidas no gosto resistente da Balteira por pecar.
As cobras uníssonas, de rimas oxítonas, colaboram para manter a harmonia da
polaridade, e os dobres utilizam verbos de ambos espaços sêmicos: andou / aguardou /
filhou e, na última estrofe, confessou.
41
Ca tantos son os bēes de Santa Maria, (bens)
que lingua dizer todos nonos poderia, (não nos)
nen se fosse de ferro e noite e dia
non calasse, que ante non fosse falida. Verbo falir
Tant’é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
42
D. DINIS
Sexto rei de Portugal (1279-1325), nascido em Lisboa, conhecido como o Rei Trovador
ou o Rei Lavrador. Filho de Afonso III e de sua segunda mulher, Beatriz, e neto de
Afonso X de Castela, casou-se com Isabel de Aragão, chamada a Rainha Santa. Desde
cedo foi preparado para ser rei pelo seu pai e quando subiu ao trono português,
aclamado em Lisboa (1279), impôs sua autoridade e consolidou a unificação
administrativa e cultural da nação. Quando subiu ao trono português o país encontrava-
se em conflito com a Igreja Católica e imediatamente procurou normalizar a situação
jurando ao Papa Nicolau III proteger os interesses de Roma em Portugal e criando a
Ordem de Cristo ligada à Ordem dos Templários.
Foi essencialmente um rei administrador e não guerreiro, pois embora tenha se
envolvido na guerra com Castela (1295), desistiu dela em troca das vilas de Serpa e
Moura. Pelo Tratado de Alcanises (1297) firmou a Paz com Castela, definindo-se nesse
tratado as fronteiras atuais entre os dois países ibéricos. Para estimular a agricultura,
distribuiu terras a colonos, mandou construir canais e secar pântanos e limitou os
privilégios territoriais da igreja e, por isso, foi cognominado O Lavrador ou O Rei-
Agricultor. Durante seu longo reinado, o comércio também prosperou, com o aumento
da extração de metais, a proteção às feiras e a reorganização da Marinha. Beneficiou a
literatura e mandou traduzir livros latinos e árabes, inclusive a Geografia de Razis.
Adotou o vernáculo nos documentos oficiais e fundou a primeira universidade do país,
que funcionou entre Lisboa e Coimbra, até se fixar nesta última cidade. Poeta e protetor
de trovadores e jograis, também foi apelidado de O Rei-Poeta ou O Rei-Trovador pelas
cantigas que compôs e pelo desenvolvimento da poesia trovadoresca a que se assistiu no
seu reinado. Compôs também cerca de 140 cantigas líricas e satíricas, e permaneceu no
poder até sua morte, em Santarém, e está sepultado no Convento de São Dinis, em
Odivelas. Os últimos anos do seu reinado foram marcados por conflitos internos quando
o herdeiro, futuro D. Afonso IV, achou que o rei favorecesse seu filho bastardo, Afonso
Sanches, entrou em conflito com o pai, mas não chegou a haver guerra civil. Foi o
primeiro rei português a assinar os seus documentos com o nome completo e por isso
presume-se que tenha sido o primeiro rei português não analfabeto.
Fonte: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/
PRIMEIROS EXEMPLOS
Fonte: Leticia Eirín García. A visión do amor no cancioneiro de Don Denis. Santiago de Compostela:
Laiovento, 2015.
(3)
Nunca Deus fez tal coita qual eu hei (tenho)
con a ren do mundo que máis amei, (coisa)
des que a vi, e am’e amarei:
noutro dia, quando a fui veer,
o demo lev’a ren que lh’eu falei
de quanto lh’ante cuidaara dizer.
43
MÉTRICA
Cantiga de amor, do tipo de mestria. Consta de duas estrofas unissonans de seis
decassílabos agudos, polo que toda a composición presenta unha rima longa ou
masculina.
Rítmica: trátase dunha composición bastante irregular do punto de vista rítmico,
probablemente debido á coita sufrida pólo suxeito poético e ao desconcerto que lle
produce a imposibilidade de falar perante a súa dama.
Esquema métrico:
2 (10a 10a 10a 10b 10a 10b)
I ei er
II
COMENTARIO
O trobador afirma que Deus nunca ocasionou unha coita tan grande como a que
el sente pola muller que amou, ama e amará desde que a viu; e engade (acrescenta) que
dias atrás, cando a foi ver, o demo se apoderou das palabras que previamente pensara
dicirlle (I). Mais en canto se afastou dela lembrou sen falla todo o que trazara no seu
pensamento, e cando novamente quixo voltar a vela para llo dicir, a pesar dos seus
esforzos, non foi capaz de o facer (II).
44
detecta un desenvolvemento narrativo marcado non só por este tipo de referencias
temporais, senón tamén por unha acumulación de formas verbais – fronte á case total
ausencia de adxectivos –, frecuentemente colocadas en posición de rima. A segunda
estrofa da cantiga tamén presenta unha perfecta trabazón (travamento) delimitada pola
estrtutura anafórica dos versos 7 e 10 (Mais...) que, segundo a nosa proposta estrutural,
encabeza respectivamente as partes terceira e cuarta da composición. Para alén disto,é
facilmente detectábel nesta última agrupación estrófica unha tendencia para o hipérbato,
condicionada probabelmente por esa acumulación e colocación das formas verbais a que
acabamos de aludir.
Noutra orde de cousas, o desregramento dos sentidos do poeta, ou metus
praecludit vocem (Spína), non se limita aquí unicamente á impossibilidade da fala,
senón que tamén implica a “obliteração da razão, esquecimento da mensagem amorosa”
(Spina), segundo evidencian os versos Mais, tanto que me d’ant’ela quitei, / do que ante
cuidava me nembrei (vv. 7-8); isto é, unha vez que se afasta da senhor restabelécese o
seu entendemento e recupera da memoria aquilo que lle queria decir. Así, o namorado
atoparíase no paso previo á perda da razón, á loucura de amor.
Tampouco podemos obviar un aspecto realmente chamativo como é o feito de
non aparecer ningunha ocasión ao longo da cantiga o vocábulo senhor, de maneira que
as referencias á dama veñen dadas polo pronome persoal ou ben a través da perífrase a
ren do mundo que máis amei (v. 2), realmente insólita no corpus profano galego-
portugués. No cancioneiro de amor é habitual atoparmos enunciados do tipo que vos
amei sempre máis d’outra ren (B 404/V 15), Sempre vos eu d’outra ren máis amei (B
409/ V 20) ou que amei sempre máis ca outra ren (A 137/B 258), perífrases en que se
produce unha comparación de superioridade non reversíbel, pois o poeta quere á dama
máis do que a calquera ou cousa (ren) no mundo. Mais neste caso Don Denis introduce
unha variación, de maneira que por sinécdoque, o segundo termo da comparación, a ren,
pasa a se converter no termo absoluto, nun intento por parte do trobador de amplificar
até ao punto máximo o amor que sente pola dama a ren do mundo que máis amei.
Ainda a respecto deste termo, vemos que se produce unha reiteración de ren con
referentes diversos nos versos 2 e 5. O primeiro dos casos, que acaba de ser comentado,
alude á dama, em canto o segundo forma parte da expresión o demo lev’a ren, non moi
común na lírica profana, mais que tamén se documenta noutra cantiga – neste caso de
amigo – do rei Don Denis, Ca demo lev’essa ren (B 561/V164, v. 7). O enunciado
posúe un ton certamente negativo, estabelecéndose así o equívoco e o confronto entre
ambos os exemplos aparecidos no texto. Neste sentido, cómpre reparar en que o termo
demo aparece com certa frecuencia nas cantigas de escarnio e maldizer, mais non é en
absoluto habitual na cantiga de amigo nin na de amor, onde unicamente se rexistran seis
casos, incluindo o presente. Deborah González Martínez (...) di a respecto da presenza
deste vocábulo na composición do rei-trobador que “Deus pode aparecer como artífice
da coita e da dor, sendo a referencia ao demo parte dunha fórmula expresiva achegada á
maldición”, circunstancia que exemplifica á perfección a primeira cobra deste texto (vv.
1-6).
Por último, tamén a voz ante aparece reiterada en tres versos consecutivos (vv.
6-7-8), mais en dous casos funciona como adverbio co sentido de ‘antes, anteriormente’,
e noutro como proposición, vindo a significar ‘diante de, en presenza da senhor’.
(pp. 83-87)
45
(25)
Senhor fremosa, pois no coraçon
nunca posestes de mi fazer ben
nen mi dar grado do mal que mi ven (grau)
por vós, siquer teede por razon, (tens)
senhor fremosa, de vos pesar
de vos veer se mi-o Deus [a]guisar (permitir)
MÉTRICA
Cantiga de amor, do tipo de refrán. Consta de tres cobras singulars de
decasílabos agudos refrán de dous versos da mesma medida e carácter. A composición
presenta unha fiinda formada tamén por dous versos decasílabos agudos que riman co
refrán. A rima de todo o texto é, pois, longa ou masculina.
Rítmica: para alén do acento estrófico, algúns versos presentan un outro acento
na cuarta sílaba (decasílabo común ou a minore), mais este non se produce de xeito
sistemático ao longo do texto.
Esquema métrico:
3 (10a 10b 10b 10a 10C 10C) + 10c 10c
I on ɛn at
II ou al
III i ei
COMENTARIO
O trobador diríxese á dama e dille que posto que ela nunca tivo a intención de lle
facer ben nin de lle agradecer o mal que sofre por ela, pídelle que polo menos considere
a idea de que el a poida ver, se Deus así o dispón (I). E debido a que a dama nunca tivo
vontade doutra cousa que non fose facerlle mal ao poeta, nin el agrada xa nada máis
dela, solicítalle polo menos poder vela (II). Engade (acrescenta) o namorado que debido
a que a muller nunca tive dó del, e sabe todo o que sufriu por ela e o mal que soporta e
soportou, pídelle que non lle pese que el a poida ver, sempre e cando Deus o aprobe
46
(III). A cantiga finaliza coa declaración do suxeito poético de que así o poderá vixiar
sen ela sentirse mal ou incómoda (IV).
47
Por último, desexamos tamén reparar no coraçon, un dos elementos axentes
máis relevantes no proceso amoroso, xa que é neste órgano onde asenta o amor. O
elemento novidoso nesta cantiga é que non estamos a tratar do corazón da propia dama,
do cal brota o mal que ten como destinatario o poeta-namorado.
(pp. 217-221)
SEGUNDOS EXEMPLOS
Fonte: MENDES, Ana Luíza. A Imagem da Dama: O elogio à Senhor nas Cantigas de Amor de Dom
Dinis. ANAIS DO XI EIEM, DA ABREM, 2015
Nesta cantiga, Dom Dinis (1261-1325), reconhece a qualidade do trovar dos provençais,
porém, questiona se esse trovar provém de um sentimento sincero. Diante disso
podemos deduzir que o rei-trovador considera que o trovar se relaciona intimamente
com a sinceridade amorosa que intenta transmitir. Segundo o rei português, os
provençais amam somente no tempo da frol, ou seja, na primavera, o que significa dizer
48
que não amam verdadeiramente, pois o amor não tem estação, não é determinado por
ela.
(...)
No tocante ao elogio à dama, que no contexto ibérico será a senhor, uma vez que não
havia o signo feminino desta palavra, ela será, assim como as diretrizes do amor cortês,
a mais fremosa de todas as mulheres. E é justamente por esse motivo que o trovador lhe
rende o seu amor e declara a sua coita por não ter esse amor correspondido. A senhor
também será amada por ter mesura, ou seja, delicadeza, cortesia. Tal característica é
cobrada, no amor cortês, ao amante. Ele deve tratar a dama com mesura. Instigante
pensar que em uma de suas cantigas, Dom Dinis reconhece o mesmo em sua senhor:
22
Esse termo foi utilizado para designar, no século XIII, o jogral que além de executar também compunha
as cantigas, porém, não foi nesta acepção que o termo foi empregado pelos investigadores do assunto.
Além desses personagens do movimento trovadoresco também existiam as soldadeiras, dançarinas ou
cantoras que acompanhavam os jograis. Sobre esse assunto vide: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.
49
(…) Nesta cantiga, Dom Dinis confessa sofrer pela sua senhor e pergunta a quem
poderá contar sobre esse sofrimento. Segundo as regras da mesura ele não deve contar a
ninguém, pois ninguém deve saber a quem devota o seu amor. Assim, ele canta o seu
pesar na cantiga, para a sua amada. Dinis joga com os lugares-comuns do amor cortês,
afirmando que não há como se ter mesura sem um indício de desmesura (NOBRE,
2001: 56). É nessa perspectiva que também podemos analisar outra cantiga:
À senhor, mesurada e de bom prez, ou seja, de boas qualidades e, portanto, digna de ser
amada, Dinis pede por um bem. Ele reclama que nunca, desde o momento em que viu
sua senhor, momento a partir do qual passa a amá-la, ela quis lhe fazer o bem. Este bem
é uma recompensa pelo seu amor. A recompensa poderia ser um presente, poderia ser
um olhar, uma correspondência ao amor do trovador. Ou algo mais. Sim, pois o amor
cortês pregava certa continência, não a castidade. O amor cortês, com todos os seus
artifícios, dialoga com um sensualismo que pulsa sob a cobertura do amor idealizado.
(BARROS, 2007: 89)
A senhor de Dom Dinis é, assim como a dama dos provençais, idealizada, sem
correspondência na realidade. Talvez uma cantiga possa dizer o contrário:
A senhor aqui cantada, assim como a das demais cantigas, não se compara a nenhuma
outra no mundo. Deus a fez sem par, tanto no julgamento quanto no falar. Porém, nesta
cantiga acrescenta-se mais uma característica extremamente interessante. A senhor é tão
perfeita que erades bõa pera rei. Ou seja, ela era perfeita para um rei. Que senhor seria
perfeita para o rei Dom Dinis? Sim, rei. Nesta cantiga não é somente a voz do trovador
que aparece. Dom Dinis não tira a coroa ao trovar. E, se a dama do amor cortês é
superior ao trovador, quem seria a dama superior ao trovador que é superior a todos?
Para alguns estudiosos esta cantiga foi inspirada em Isabel de Aragão (1270-1336),
esposa de Dom Dinis, rainha culta e santa. Pode-se dizer que Isabel foi escolhida a
dedo. Um enlace com a filha do rei de Aragão traria inúmeras vantagens políticas. Ela,
de fato, tinha muitos pretendentes, e o escolhido foi Dom Dinis, também um excelente
partido. Dessa forma, o casamento de Dinis e Isabel foi um bom negócio. Como deveria
ser um casamento no período medieval. Isabel era culta e uma rainha extremamente
ativa, auxiliando o reinado de Dom Dinis com suas habilidades diplomáticas com
Aragão e com seu próprio filho que se insurge contra o pai e com suas atividades de
caridade e assistência. É possível afirmar, então, que Isabel foi uma excelente rainha.
Além disso, cumpriu seu papel de mulher: deu um herdeiro a Dom Dinis, o futuro
Afonso IV, além de uma filha, Constança, que seria rainha de Castela.
Então, diante disso, poderíamos afirmar que a cantiga foi destinada a Isabel. Podemos
dizer que é possível. Isabel, de fato, era boa para rei. Era boa para ser rainha, como o
foi. Porém não há como comprovar. Além do mais, devemos lembrar que Dom Dinis
tinha amantes, ou barregãs para nos atermos ao termo da época. Os nomes de algumas
delas eram conhecidos e constam no Livro de Linhagens do conde Pedro de Barcelos,
um dos filhos bastardos do rei. Inclusive, um destes bastardos teria sido o motivo pelo
qual Afonso, o filho legítimo, se insurge contra o pai, por conta do poder que o irmão,
Afonso Sanches, estaria recebendo no comando do reino. Uma luta gerada por ciúme.
Mas um ciúme político. Afonso não fez nada mais que assegurar o seu trono.
Diante disso, fica a questão: quem era boa para rei? As regras do amor cortês impedem
Dinis de dizer. Ele nunca diria, pois ele é um trovador, de fato. E não o é simplesmente
por ter sido o mais profícuo trovador português, com 137 composições, mas também
pela sua qualidade e por promover “uma condensação, recapitulação e síntese da
tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto
criativo com os textos que ‘cita’ ou aos quais ‘alude’” (PIZARRO, 2008: 321).
Assim, ao fazer o elogio à senhor Dom Dinis faz um elogio ao trovadorismo galego-
português, a si e ao seu reino. Tanto ele quanto os provençais irão afirmar a perfeição do
51
seu fazer poético e cada qual quer que o seu seja o mais sincero. Através do elogio à
senhor que se mantém nos moldes do amor cortês e da pretensa vontade de querer
trovar como os provençais, como sugere a cantiga Quer’eu em maneyra de proençal, o
rei-trovador, na verdade faz um elogio ao seu reino. Utilizando-se da emulação, que é
um tipo de imitação, mas que se pretende diferente porque sua meta é superar os
provençais. E, para tanto, atualiza a recepção de forma consciente (GUIMARÃES,
2014: 58), ou seja, imitando ou se utilizando das técnicas provençais de trovar ele
estabelece o público em uma tradição poética que passa, então, a ser compartilhada e
transformada numa expressão de identidade.
23
Essa cantiga-descordo de Nuneannes Cerzeo também aparece no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
(Org.) Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado. Lisboa: Edição da Revista de Portugal, 1949, vol. I,
p. 192-195.
24
O descordo já era conhecido pelos trovadores provençais e “se caracteriza, como su nombre indica, por
ser una composición en la que cada una de las estrofas tienen una fórmula métrica distinta, y por lo tanto
también una melodía individual, lo que va en contra del rígido princípio de isometría a que obedecen los
demás géneros. Ello supone una gran variedad y riqueza de metros, rimas y melodías.” (RIQUER, op. cit.,
I, p. 49).
52
E ben digades, pois m’én vou, verdade, ] (E bem digo a verdade a Deus, pois me vou daqui)
se eu das gentes algun sabor avia, (gosto)
ou das terras en que eu guarecia. (salvar-se)
Por aquest’era tod’, e non por al; (era apenas por isso e mais nada)
mais ora ja nunca me será mal
por me partir d’elas e m’ir mia via. (ir-me embora)
Ca sei de mi
quanto sofri
e encobri
en esta terra de pesar.
Como perdi
e despendi, (gastei)
vivend’aqui,
meus dias, posso-m’én queixar. (disso)
E cuidarei,
e pensarei
quant’aguardei
o ben que nunca pud’achar.
E[s]forçar-m’ei,
e prenderei]
como guarrei]
conselh’agor’, a meu cuidar.] (e saberei o que fazer agora, creio, para me salvar)
Pesar
d’achar
logar
provar
quer’eu, veer se poderei.
O sen
d’alguen,
ou ren
de ben
me valha, se o en mi ei!
(Entenda-se: Quero eu ver se poderei tentar pensar em achar um outro lugar. O bom
senso de alguém, ou um pouco de bem que em mim tenha, me valha).
Valer
poder,
saber
dizer
ben me possa, que eu d’ir ei.
D’aver
poder,
prazer
prender
poss’eu, pois esto cobrarei.
(Entenda-se: Poder saber dizer me possa bem valer, que tenho de ir-me; de ter poder
para tomar prazer possa eu, pois isso recuperarei)
53
Assi querrei (quererei)
buscar palavra perduda
viver palavra perduda
outra vida que provarei, (tentar)
e meu descord’acabarei.25
O que chama a atenção nessa peça é a desigualdade com que se montam e se
distribuem as estrofes e as rimas (...) Essa dissimetria, diga-se de passagem, não é
novidade. Vimos nos exemplos anteriores – com os provençais – que esse artifício,
apesar de raro, existiu e foi resultado de uma releitura que todos os poetas “antenados”
promoveram ao remontarem ao passado. (...)
Feito para o canto, o descordo de Cerzeo traz, também, um ritmo diferenciado
que deve ter causado estranhamento e, ao mesmo tempo, deleite aos ouvintes. No
subcapítulo precedente, observou-se que Marcabru havia composto uma canção cuja
visualidade evidente lembra as formas de um pássaro. Apesar de uma forma alargada
nos primeiros versos, aquela canção afunilava nos últimos, mantendo, entretanto, certa
regularidade dentro das redondilhas (as maiores, na forma alongada, e as menores, na
adelgaçada). No descordo de Nuneannes, há identidade de forma
(alargamento/afunilamento) com a de Marcabru, contudo, há maior extensão de número
de versos, destacando-se a irregularidade. No conteúdo, há igualmente certa identidade
de fundo: ambos aludem à partida: uma em busca da amada, outra, em fuga da terra
querida. Acrescente-se que, além da irregularidade própria deste subgênero poético,
essa partida é condensada no último verso que fecha com a palavra “descordo”,
denominação do tipo de poesia que criou para expressar seu sentimento. Se esse tema –
o da partida – não é novo, aliás, é recorrente na literatura medieval26, o exemplo desse
poema serve para destacar como, numa forma assimétrica em estrutura e ritmo, um
espírito poético inquietante se serve de recursos diferenciadores para destacar sua
individualidade poética.
Também Dom Dinis, num poema encontrado no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional, compõe uma interessante peça, a de número 496, “Assi me Trax coytado”. O
uso de enjambements (ATAFINDA) parecia ser do agrado do monarca, haja vista a
proficuidade de seu emprego em diversas peças, o que demonstra, parece, destreza e
visão lúdica do poetar próprios de Dom Dinis. Nessa, entretanto, o procedimento
conjuga-se com a visualidade, se se tomar como parâmetro a lição dos organizadores.
Veja-se a transcrição do poema, como editado nesse último Cancioneiro:
25
In: Cancioneiro da Ajuda. [s.l.]: INCM, 1990. v. I, p. 764-767.
26
O tema não é evocado somente na literatura medieval, é óbvio; mas é no medievo mais intensamente
explorado.
54
Que non pode mayor
Se mi non ual a que en for
Te ponto ui, ca ia da mor (em desgraçada hora)
T ey prax[er] e nenhum pauor.
NOVELAS DE CAVALARIA
Fonte: MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008.
A DAMA PÉ DE CABRA
Dom Diego Lopez era mui bõo monteiro e, estando üu dia en sa armada e
atendendo quando vêrria o porco, ouviu cantar muito alta voz üu molher en cima deüu
56
pena e el foi pêra lá e viu-a seer mui fermosa e mui ben vistida e namorou-se logo dela
mui fortemente e préguntou-lhe quen era e ela lhe disse que era üu molher de muito alto
linhagen, e el lhe disse que, pois era molher d’alto linhagen, que casaria con ela, se ela
quisesse, ca el era senhor daquela terra toda, e ela lhe disse que o faria, se lhe
prometesse que nunca se santificasse, e ele lho outorgou e ela foi-se logo con ele. E esta
dona era mui fermosa e mui ben feita en todo seu corpo, salvando que avia un pee
forcado, como pee de cabra. E viveron gran tempo e ouveron dous filhos e un ouve
nome Enheguez Guerra e a outra foi molher e ouve nome dona…
E, quando comian de suun don Diego Lopez e sa molher, asseentava el apar de si
o filho e ela asseentava apar de si a filha, da outra parte. E üu dia foi ele a seu monte e
matou un porco mui grande e trouxe-o pera sa casa e pose-o ante si, u sia comendo con
sa molher e con seus filhos, e lançaron un osso da mesa e vëeron a pelejar üu alão e üa
podenga sobr’ele, en tal maneira que a podenga travou ao alão ena garganta e matou-o.
E don Diego Lopez, quando esto viu, teve-o por milagre sinou-se e disse:
— Santa Maria, vai! quen viu nunca tal cousa. E sa molher, quando o viu
assisinar, lança mão na filha e no filho, e don Diego Lopez travo do filho e non lho quis
leixar filhar, e ela recudi con a filha por üu fresta do paaço e foi-se pera a montanha en
guisa que a non viron mais nen a filha.
Depois, a cabo de tempo, foi este don Diego Lopez a fazer mal aos mouros e
prenderon-no e levaran-no para Toledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesava
muito de sa prison e vêo falar con os da terra, per que maneira o poderia aver fora da
prison. E eles disseron que non sabian maneira por que o podesse aver, salvando se
fosse aas montanhas e achasse sa madre e que ela lhe diria como o tirasse. E el foi alá
soo, en cima de seu cavalo, e achou-a en cima de üu pena, e ela lhe disse:
— Filho Enheguez Guerra, ven a min, ca ben sei eu ao que veens.
E el foi pera ela e ela lhe disse:
— Veens a preguntar como tirarás teu padre da prison.
Enton chamou o cavalo que andava solto pelo monte, que avia nome Pardalo, e
chamou-o per seu nome, e ela meteu üu freo ao cavalo que tiinha e disse-lhe que non
fezesse força polo desselar nen polo desenfrear, nen por lhe dar de comer nen de bever,
nen de ferrar, e disse-lhe que este cavalo lhe duraria en toda sa vida e que nunca entraria
en lide que non vencesse dele. E disse-lhe que cavaigasse en ele e que o poria en
Toledo, ante a porta a jazia seu padre logo en esse dia e que, ante a porta u o cavalo o
posesse, que ali decesse, e que achairia seu padre estar en üu curral e que o ficasse pela
mão e fezesse que queria falar con ele, que o fosse tirando contra a porta u estava o
cavalo e que, des que ali fosse, que cavalgasse eno cavalo e que posesse seu padre ante
si e que ante noite seria en sa terra con seu padre e assi foi. E depois, a cabo de tempo,
morreu dou Diego Lopez e ficou a terra a seu filho don Enheguez Guerra.
(LANG, 2011: 130)
Fonte: http://www.consciencia.org/a-dama-pe-de-cabra-conto-popular-medieval-portugues
ATIVIDADE - TROVADORISMO
PARTE I
57
PARTE II
59
d) Qual é a métrica da cantiga?
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) A cantiga é de refrão ou de mestria?
g) Como se chama a última estrofe de um só verso?
h) Distinga os refrães dos paralelismos.
i) Indique as atafindas na cantiga.
j) Interprete o conteúdo da cantiga.
60
Vós me perguntades pólo voss’ amado .....
e eu bem vos digo que é vivo e sano .....
ai deus, e u é ? = refrão
61