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NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL
RESUMO
A partir de meados do século XII, as mitologias e relatos orais em torno do Reino do Preste João
reverberaram no imaginário medieval, com o suposto envio de uma missiva ao líder bizantino Manuel I
Comneno. O referido documento histórico, forjado por membro(s) da Cristandade, foi considerado de
autoria do próprio Rei e Sacerdote Preste João, representando esperanças de um reino maravilhoso
cristão, localizado no Extremo Oriente. O presente artigo tem como objetivo o estudo desse universo
imagético a partir do testemunho da cartografia, articulado às descrições geográficas e fabulosas
envolvendo o Reino do Preste João. Um dos pontos centrais do trabalho é o papel mobilizador dos
lugares lendários, como proposto pelo estudioso Umberto Eco, bem como a influência das construções
do imaginário sobre o Oriente pela ótica da Europa medieval. Este texto realiza reflexões sobre o papel
dos lugares imaginados na geografia, que repercutem no recorte temporal envolvendo a carta do Preste
João, com abordagens do cenário imagético presente na literatura e na cartografia do Medievo. O
arcabouço imaginário envolvendo a figura do Preste João também pode ser identificado em viagens do
período, resultando em relatos acerca do Oriente, imersos em projeções delineadas pelos anseios e
sonhos dos próprios cristãos. A análise aborda, também, diferentes interpretações sobre a localização
daquele Reino durante a Idade Média, que se manifestam de forma oscilante, a título de itinerância,
correspondendo às tênues fronteiras do maravilhoso. Primeiramente esteve associado ao Oriente
onírico e, no contexto do século XIV, o Preste João passa a figurar na misteriosa África,
especificamente em representações que abarcam a Etiópia, afirmando o parentesco do Soberano com
um dos Reis Magos. Em âmbito religioso, a crença no Preste João significava esperanças de haver
cristãos ao Oriente, como possíveis aliados na luta contra as conquistas territoriais dos povos árabes.
Em sentido alegórico, o Reino é retratado de forma a abranger todo o ecúmeno, pois os setenta e dois
líderes, a saber, todos os reis terra, prestavam e pagavam tributos ao Preste. Além de dominar o
mundo, este soberano correspondia aos anseios da Cristandade medieval em abarcar a ecúmena sob
o signo da cruz. Exprimindo não somente concepções políticas, como o apelo à Segunda Cruzada e
as disputas territoriais e ideológicas em relação ao Islam, a carta do Preste João também se refere ao
imaginário do período, com seus sonhos de abundância alimentar e rejuvenescimento, num Reino de
características próximas ao Paraíso Terrestre, com riquezas e maravilhas. Conclui-se que a crença no
Rei e Sacerdote governando os confins do Oriente, tão próximos ao Paraíso Terrestre, abre
possibilidades de estudos do maravilhoso geográfico e suas repercussões na cartografia.
Palavras-chave: 1. História da Geografia 2. Imaginário medieval 3. Lugares lendários
ABSTRACT
From the mid-twelfth century, mythologies and oral reports about Kingdom of Prester John reverberate
in the medieval imaginary, with the supposed missive addressed to Byzantine leader Manuel I
Comneno. Such historical document, forged by Christianity member(s), was considered by the King
Prester John himself, representing hopes of a wonderful Christian kingdom, located in the Far East. The
objective of this article is studying this imaginary universe by cartographic testimony, articulated to the
fabulous and geographical descriptions involving the Kingdom of Prester John. One central point is the
mobilizing role of legendary places, as proposed by the scholar Umberto Eco, as well as the influence
of imaginary constructions about the East from Medieval Europe perspective. This text presents
reflections on the role of imagined places in geography that impact on the temporal clipping involving
the Prester John's letter, with approaches of imaginary scenery in Middle Ages literature and
cartography. The imaginary framework involving the figure of Prester John can also be recognized on
medieval period travels, resulting in reports about the East, immersed in projections delineated by the
yearnings and dreams of Christians themselves. The analysis also addresses different interpretations
of the Kingdom’s location during Middle Ages, in an oscillating way, by way of itinerancy, corresponding
to the tenuous boundaries of marvelous. Firstly, it was associated with the dreamy Orient, and in the
context of fourteenth century, Prester John became part of mysterious Africa, specifically in
representations covering Ethiopia, highlighting the Sovereign’s relationship with the Magi. In the
religious sphere, the belief in Prester John meant hopes of finding Christians to the East as possible
allies in the struggle against the territorial achievements of Arab peoples. In an allegorical sense, the
Kingdom is portrayed in such a way to encompass the whole ecumene, inasmuch as the seventy-two
leaders, all the earth kings, lent and paid tribute to the Prester. In addition to dominating the world, this
sovereign answered to the medieval Christianity longings in encompassing the ecumena under the sign
of the cross. Expressing not only political conceptions, such as the appeal to the Second Crusade and
the territorial and ideological disputes over Islam, Prester John's letter also refers to the medieval
imaginary, with its dreams of food abundance and rejuvenation, in a Kingdom with similar features to
Earthly Paradise, with riches and wonders. It is concluded that the belief in the King and Priest governing
the confines of the East, so close to the Earthly Paradise, opens perspectives on geographical studies
of marvels and its effects in cartography.
Key-words: 1. History of Geography 2. Medieval imaginary 3. Legendary places
1 - Introdução
A visão equivocada da Idade Média como “Idade das Trevas” tem repercutido
em questionamentos por parte de historiadores quanto aos limites para o alcance do
real, o trato com a documentação, a questão da autoria e o papel do imaginário. Esse
movimento faz parte de críticas à tradição historiográfica que se configurou
principalmente no século XIX, com seus ditames em abordar a verdade histórica de
forma puramente objetiva e linear. Por outro lado, seguindo outros vieses, são as
“elaborações linguísticas” que, na atualidade, permitem uma aproximação com
documentos históricos, incluindo as fontes medievais (FRANÇA, 2007, p.15). Isso
desloca as fronteiras entre real e imaginário para limites mais tênues, sendo que suas
manifestações na Idade Média são ainda mais acentuadas. “No universo de
possibilidades que se apresentavam aos autores medievais, não estava a da posse
individual de determinada verdade histórica” (FRANÇA, 2007, p.17).
Ainda no século XII foi divulgada a Carta que se tornaria famosa ao delinear o
imaginário medieval do Medievo. Numa época de indefinições quanto ao papel dos
Impérios seculares e do papado, o chefe bizantino Manuel I Comneno recebeu a
suposta missiva, indicando um reino de maravilhas, cujo alcance extraordinário
abarcava o extremo Oriente, associado às mais diversas especulações sobre as
bordas do ecúmeno (BROOKE-HITCHING, 2017, p.194). O Rei e Sacerdote Preste
João, descendente de um dos Reis Magos bíblicos, validava o poder do Império e de
Frederico I ao atestar a presença do governante que seria muito mais poderoso do
que o Imperador Bizantino, em acirradas disputas territoriais com o Sacro Império
Romano Germânico. A Carta, considerada autêntica à época, não passou de um
engodo, um documento falsificado. Sua autoria foi posteriormente atribuída a
membros da corte de Frederico I (FRANCO JÚNIOR, 2010, p.143). Entretanto,
podemos abordar o documento por outro viés, pois tratava-se da apresentação de
uma utopia que extrapolava seus interesses políticos imediatos, rica ao configurar
escritos e mapas no que concerne aos lugares imaginados.
Eu, Preste João, sou Senhor dos Senhores e supero em cada riqueza que
existe sob o céu, em virtude e em poder todos os reis da terra. Setenta e dois
reis nos pagam tributos. […] Nossa soberania se estende até as três Índias
[…]. Em nossos domínios nascem e vivem elefantes, dromedários […] grifos,
tigres […] faunos, sátiros, […] cinoféfalos, […] ciclopes, uma ave chamada
fênix e quase todo tipo de animal que vive sob a abóbada celeste. […] A nossa
terra destila mel e abunda em leite […]. Em uma de nossas províncias, onde
vivem os pagãos, escorre um rio chamado Indo. Esse rio, que brota no
Paraíso, estende seus meandros em muitos braços por toda a província e
nele se encontram pedras naturais, esmeraldas, safiras […] (Versão latina da
Carta do Preste João, apud ECO, 2013, p.132)3.
Sob o poder do preste João estão muitos reis, muitas ilhas e muitos povos
diferentes. A terra é muito boa e rica, porém, não tão rica como a do Grande
Cã, pois os mercadores não vão tão frequentemente até lá para comprar
mercancias como vão à terra do Grande Cã, porque a viagem é muito longa
[…] (MANDEVILLE, p.229).
Na terra deste [Preste João] há grande diversidade de coisas e muitas pedras
preciosas, tão grandes e grossas que com elas fazem recipientes: pratos,
tigelas, taças e muitas outras maravilhas que seria demorado colocar
inteiramente por escrito (MANDEVILLE, 2007, p.230).
Figura 01 - O mensageiro de Gêngis Cã pede ao Preste João a mão de sua filha. De mestre
de Boucicault, Livre des Merveilles, século XV, Paris, Bibliothèque Nationale de France.
Fonte: Eco (2013, p.103).
5 - Discussão
6 - Conclusões
7 - Referências Bibliográficas