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A GEOGRAFIA DO MARAVILHOSO E O REINO DO PRESTE JOÃO

NO IMAGINÁRIO MEDIEVAL

ME. DEYSE CRISTINA BRITO FABRÍCIO 1


PROF. DR. ANTONIO CARLOS VITTE2

RESUMO
A partir de meados do século XII, as mitologias e relatos orais em torno do Reino do Preste João
reverberaram no imaginário medieval, com o suposto envio de uma missiva ao líder bizantino Manuel I
Comneno. O referido documento histórico, forjado por membro(s) da Cristandade, foi considerado de
autoria do próprio Rei e Sacerdote Preste João, representando esperanças de um reino maravilhoso
cristão, localizado no Extremo Oriente. O presente artigo tem como objetivo o estudo desse universo
imagético a partir do testemunho da cartografia, articulado às descrições geográficas e fabulosas
envolvendo o Reino do Preste João. Um dos pontos centrais do trabalho é o papel mobilizador dos
lugares lendários, como proposto pelo estudioso Umberto Eco, bem como a influência das construções
do imaginário sobre o Oriente pela ótica da Europa medieval. Este texto realiza reflexões sobre o papel
dos lugares imaginados na geografia, que repercutem no recorte temporal envolvendo a carta do Preste
João, com abordagens do cenário imagético presente na literatura e na cartografia do Medievo. O
arcabouço imaginário envolvendo a figura do Preste João também pode ser identificado em viagens do
período, resultando em relatos acerca do Oriente, imersos em projeções delineadas pelos anseios e
sonhos dos próprios cristãos. A análise aborda, também, diferentes interpretações sobre a localização
daquele Reino durante a Idade Média, que se manifestam de forma oscilante, a título de itinerância,
correspondendo às tênues fronteiras do maravilhoso. Primeiramente esteve associado ao Oriente
onírico e, no contexto do século XIV, o Preste João passa a figurar na misteriosa África,
especificamente em representações que abarcam a Etiópia, afirmando o parentesco do Soberano com
um dos Reis Magos. Em âmbito religioso, a crença no Preste João significava esperanças de haver
cristãos ao Oriente, como possíveis aliados na luta contra as conquistas territoriais dos povos árabes.
Em sentido alegórico, o Reino é retratado de forma a abranger todo o ecúmeno, pois os setenta e dois
líderes, a saber, todos os reis terra, prestavam e pagavam tributos ao Preste. Além de dominar o
mundo, este soberano correspondia aos anseios da Cristandade medieval em abarcar a ecúmena sob
o signo da cruz. Exprimindo não somente concepções políticas, como o apelo à Segunda Cruzada e
as disputas territoriais e ideológicas em relação ao Islam, a carta do Preste João também se refere ao
imaginário do período, com seus sonhos de abundância alimentar e rejuvenescimento, num Reino de
características próximas ao Paraíso Terrestre, com riquezas e maravilhas. Conclui-se que a crença no
Rei e Sacerdote governando os confins do Oriente, tão próximos ao Paraíso Terrestre, abre
possibilidades de estudos do maravilhoso geográfico e suas repercussões na cartografia.
Palavras-chave: 1. História da Geografia 2. Imaginário medieval 3. Lugares lendários

1 Acadêmica do programa de pós-graduação em Ensino e História de Ciências da Terra.


Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Geociências. Bolsista de Pós-Graduação – CNPq .
E-mail de contato: deysecbf@gmail.com.

2 Docente do departamento de Geografia. Universidade Estadual de Campinas – Instituto de


Geociências. E-mail de contato: acarlosvitte@gmail.com.
WONDERFUL GEOGRAPHIES AND THE KINGDOM OF PRESTER
JOHN IN THE MEDIEVAL IMAGINARY

ABSTRACT
From the mid-twelfth century, mythologies and oral reports about Kingdom of Prester John reverberate
in the medieval imaginary, with the supposed missive addressed to Byzantine leader Manuel I
Comneno. Such historical document, forged by Christianity member(s), was considered by the King
Prester John himself, representing hopes of a wonderful Christian kingdom, located in the Far East. The
objective of this article is studying this imaginary universe by cartographic testimony, articulated to the
fabulous and geographical descriptions involving the Kingdom of Prester John. One central point is the
mobilizing role of legendary places, as proposed by the scholar Umberto Eco, as well as the influence
of imaginary constructions about the East from Medieval Europe perspective. This text presents
reflections on the role of imagined places in geography that impact on the temporal clipping involving
the Prester John's letter, with approaches of imaginary scenery in Middle Ages literature and
cartography. The imaginary framework involving the figure of Prester John can also be recognized on
medieval period travels, resulting in reports about the East, immersed in projections delineated by the
yearnings and dreams of Christians themselves. The analysis also addresses different interpretations
of the Kingdom’s location during Middle Ages, in an oscillating way, by way of itinerancy, corresponding
to the tenuous boundaries of marvelous. Firstly, it was associated with the dreamy Orient, and in the
context of fourteenth century, Prester John became part of mysterious Africa, specifically in
representations covering Ethiopia, highlighting the Sovereign’s relationship with the Magi. In the
religious sphere, the belief in Prester John meant hopes of finding Christians to the East as possible
allies in the struggle against the territorial achievements of Arab peoples. In an allegorical sense, the
Kingdom is portrayed in such a way to encompass the whole ecumene, inasmuch as the seventy-two
leaders, all the earth kings, lent and paid tribute to the Prester. In addition to dominating the world, this
sovereign answered to the medieval Christianity longings in encompassing the ecumena under the sign
of the cross. Expressing not only political conceptions, such as the appeal to the Second Crusade and
the territorial and ideological disputes over Islam, Prester John's letter also refers to the medieval
imaginary, with its dreams of food abundance and rejuvenation, in a Kingdom with similar features to
Earthly Paradise, with riches and wonders. It is concluded that the belief in the King and Priest governing
the confines of the East, so close to the Earthly Paradise, opens perspectives on geographical studies
of marvels and its effects in cartography.
Key-words: 1. History of Geography 2. Medieval imaginary 3. Legendary places

1 - Introdução

A visão equivocada da Idade Média como “Idade das Trevas” tem repercutido
em questionamentos por parte de historiadores quanto aos limites para o alcance do
real, o trato com a documentação, a questão da autoria e o papel do imaginário. Esse
movimento faz parte de críticas à tradição historiográfica que se configurou
principalmente no século XIX, com seus ditames em abordar a verdade histórica de
forma puramente objetiva e linear. Por outro lado, seguindo outros vieses, são as
“elaborações linguísticas” que, na atualidade, permitem uma aproximação com
documentos históricos, incluindo as fontes medievais (FRANÇA, 2007, p.15). Isso
desloca as fronteiras entre real e imaginário para limites mais tênues, sendo que suas
manifestações na Idade Média são ainda mais acentuadas. “No universo de
possibilidades que se apresentavam aos autores medievais, não estava a da posse
individual de determinada verdade histórica” (FRANÇA, 2007, p.17).

França (2007) apresenta o relato de uma viagem, considerada por muitos


estudiosos como totalmente imaginária, levando em conta as especulações em torno
de sua biografia: as viagens de Jean de Mandeville. O autor é conhecido pela
apropriação de outros relatos e temários geográficos, recorrentes durante a Idade
Média, bem como por seu detalhamento quanto às narrativas de lugares lendários.
Longe de colocar em dúvida a veracidade de sua viagem, esse tipo de apropriação
constituiu prática recorrente no período (FRANÇA, 2007, p.17). Como outros
exemplares, o relato de Mandeville é capaz de levantar inquietações sobre o
imaginário medieval do século XIV, indicando a recorrente pergunta no campo
historiográfico: “Como uma viagem, provavelmente imaginária, ou pelo menos
imaginária em sua maior parte, pôde ter tocado tão profundamente os homens
trecentistas, quatrocentistas e até quinhentistas?” (FRANÇA, 2007, p.15).

No trigésimo capítulo das Viagens de Jean Mandeville há a descrição de um


reino de esplendor e riquezas incomensuráveis, sob o cetro do lendário Preste João.
Este personagem é digno de notas, pois foi amplamente citado nas fontes históricas
medievais ou mesmo renascentistas, seja em escritos, imagens e/ou mapas. A
notoriedade do Reino do Preste João constitui, igualmente, um exemplo de narrativa
questionada quanto à sua autoria, mas que, segundo a historiografia contemporânea,
interessa em grande medida para a compreensão do que era considerado realidade
à época. Como indaga o historiador Hilário Franco Júnior (1992, p.39), referindo-se
aos registros sobre o Preste João, “[…] que elementos utópicos tornavam aquele texto
tão atraente?”

Interessante ressaltar que o Reino do Preste João se enquadra nos lugares


lendários e, segundo os critérios do estudioso Umberto Eco (2013, p.8), os mesmos
apresentam papel mobilizador. Nesse sentido, são capazes de suscitar “fluxos de
crenças” por meio das “realidades destas ilusões”, alocadas no imaginário coletivo.
Num período em que os limites entre as diversas ciências não estavam postulados,
os lugares imaginados adquiriram projeções significativas e merecem ser estudados
com maior nível de detalhamento. No âmbito da História da Geografia, carecem de
abordagens aprofundadas, levando em conta que as manifestações das utopias,
como lugares inexistentes, são por vezes abordadas de forma pejorativa.
Ressaltamos, porém, que as utopias se expressam em considerável medida
nas representações e descrições geográficas, situadas em períodos anteriores à
sistematização das ciências. Para Carvalho (2006, p.9), ainda, podemos associar às
utopias medievais o termo “maravilhoso geográfico” para delinear esses espaços
imaginados, a partir de determinadas categorias de análise, nas quais estão incluídas
as “terras sobrenaturais” e “maravilhosas”. Podemos citar diversos exemplos que
merecem destaque ao moverem o imaginário para além dos horizontes dados, lugares
estes em que consta o já mencionado Reino do Preste João, o soberano que constitui
“um dos personagens mais notáveis das lendas populares contemporâneas”
(BROOKE-HITCHING, 2017, p.194, tradução livre).

Desse modo, faremos uma exposição geral da carta do Preste João,


prosseguindo com análise específica dos trechos que mais dialogam com as
concepções de lugares imaginados do período medieval, com suas implicâncias em
relatos de viagens. Apresentaremos três mapas do século XVI, discutindo o modo
como o Preste passou a figurar crescentemente na África e não mais no Oriente
maravilhoso da Idade Média, embora essas fronteiras se apresentassem bastante
tênues. Por fim, nossas conclusões são direcionadas aos lugares imaginados na
Geografia e ao papel do Reino do Preste, congregando elementos do imaginário
medieval, vinculados à cartografia.

2 - Contexto da Carta do Preste João

O Reino do Preste João foi primeiramente divulgado através de relatos orais,


que mencionavam a existência de um rei cristão muito poderoso, com extensos
domínios ao Oriente. A primeira narrativa registrada consta na Crônica de Otto de
Freising, em meados do século XII. Esse historiador era tio do Imperador Frederico I
Barba Ruiva e seus escritos podem ser lidos a partir de diversas questões políticas
que reverberavam à época. Há indicações de que o governante Preste professaria a
herética fé cristã nestoriana, apresentando-se como potencial aliado na luta contra os
sarracenos, que avançavam nas conquistas territoriais pelo Oriente. É o momento de
convocação à Segunda Cruzada, lidando com a esperança de que um Rei misterioso
e rico viria em auxílio da cristandade e dominaria Jerusalém (ECO, 2013, p.101).

Ainda no século XII foi divulgada a Carta que se tornaria famosa ao delinear o
imaginário medieval do Medievo. Numa época de indefinições quanto ao papel dos
Impérios seculares e do papado, o chefe bizantino Manuel I Comneno recebeu a
suposta missiva, indicando um reino de maravilhas, cujo alcance extraordinário
abarcava o extremo Oriente, associado às mais diversas especulações sobre as
bordas do ecúmeno (BROOKE-HITCHING, 2017, p.194). O Rei e Sacerdote Preste
João, descendente de um dos Reis Magos bíblicos, validava o poder do Império e de
Frederico I ao atestar a presença do governante que seria muito mais poderoso do
que o Imperador Bizantino, em acirradas disputas territoriais com o Sacro Império
Romano Germânico. A Carta, considerada autêntica à época, não passou de um
engodo, um documento falsificado. Sua autoria foi posteriormente atribuída a
membros da corte de Frederico I (FRANCO JÚNIOR, 2010, p.143). Entretanto,
podemos abordar o documento por outro viés, pois tratava-se da apresentação de
uma utopia que extrapolava seus interesses políticos imediatos, rica ao configurar
escritos e mapas no que concerne aos lugares imaginados.

3 - Descrições geográficas da Carta

Serão enfatizados, neste texto, os aspectos mais relevantes da versão latina


da Carta do Preste João, conforme o critério das descrições de lugares lendários. De
maneira geral, o personagem Preste se apresenta a Manuel I Conmeno como o
Senhor dos Senhores, cujo título fora recebido do próprio Jesus Cristo. A narrativa da
carta enumera os motivos e esplendores de seu Reino, bem como o poder do próprio
Preste sobre o ecúmeno e suas maravilhas. Com relação ao alcance do reinado, há
marcada abrangência, pois setenta e dois reis da terra lhe pagam tributos, incluindo
animais, unguentos, pedras preciosas e outras riquezas. Por atingir as fronteiras do
ecúmeno, existem animais fantásticos, como o grifo e os sátiros, além de
monstruosidades, a exemplo dos homens com cabeça de cães (cinocéfalos).

A narrativa do Preste João realiza de maneira incessante alusões ao elementos


do maravilhoso geográfico medieval. Também há referências diretas à confissão cristã
do Soberano e alusões à Bíblia em alguns trechos, afirmando que no Reino emanam
leite e mel. A amplidão dos domínios do Soberano inclui as três Índias, conforme
descrito na Carta, abarcando os confins do Oriente e os lugares mais próximos ao
Paraíso, a julgar pelas águas do rio Indo a banhar as terras do Preste (ECO, 2013,
p132). Nesses limites do ecúmeno existe uma ilha em que chove o maná, alimento
bíblico milagroso dado aos filhos de Israel em sua estadia pelo deserto, capaz de
fornecer extraordinária longevidade aos habitantes próximos. Também cabe destacar
as referências à Fonte da Juventude, situada nos confins da terra, conferindo
igualmente longevidade ao Preste através de rituais que formam como um “tempo
suspenso”, um presente praticamente eterno, próximo ao ideal dos deleites perpétuos
do Paraíso terrestre (FRANCO JÚNIOR, 2010).

Seguem duas citações da Carta, que enfatizam o exposto, como a extensão


dos domínios do Preste sobre o ecúmeno, bem como sua soberania, poder e o
deparar de maravilhas:

Eu, Preste João, sou Senhor dos Senhores e supero em cada riqueza que
existe sob o céu, em virtude e em poder todos os reis da terra. Setenta e dois
reis nos pagam tributos. […] Nossa soberania se estende até as três Índias
[…]. Em nossos domínios nascem e vivem elefantes, dromedários […] grifos,
tigres […] faunos, sátiros, […] cinoféfalos, […] ciclopes, uma ave chamada
fênix e quase todo tipo de animal que vive sob a abóbada celeste. […] A nossa
terra destila mel e abunda em leite […]. Em uma de nossas províncias, onde
vivem os pagãos, escorre um rio chamado Indo. Esse rio, que brota no
Paraíso, estende seus meandros em muitos braços por toda a província e
nele se encontram pedras naturais, esmeraldas, safiras […] (Versão latina da
Carta do Preste João, apud ECO, 2013, p.132)3.

3 Dadas as dificuldades de acesso às fontes e às referências bibliográficas da Carta,


principalmente pelas várias versões e fragmentos existentes, optamos por utilizar a tradução
inserida no livro de Umberto Eco (2013). O leitor encontrará as versões em língua espanhola na
obra de Lalanda (2004), que cita, ainda, as edições em outros idiomas, ressaltando a popularidade
do documento durante a Idade Média.
Neste ensejo, não poderemos falar tudo o que deveríamos sobre nossa glória
e nossa potência. Mas quando vieres até nós, verás que realmente somos o
Senhor dos Senhores de toda a terra. Por hora, basta que saibas que nossos
domínios se estendem de um lado, na largura, por cerca de quatro meses de
viagem, e sobre o outro, ninguém na verdade pode dizer para onde vai.
Se pudesses contar as estrelas do céu e a areia do mar, então poderias medir
nossos domínios e o nosso poder (Versão latina da Carta do Preste João,
apud ECO, 2013, p.135).

Um século mais tarde, no contexto da popularidade dos viajantes ao Oriente,


com a ascensão do Império Mongol, há relatos de viagens que mencionam a fama
incorporada à Carta. O famoso aventureiro Marco Polo também relata a existência do
Reino do Preste João no século XIII, associando as relações e tributos dos tártaros
concedidos ao Soberano. A narrativa, ainda, afirma que quando Gêngis Cã se tornou
rei dos tártaros, em 1187, o domínio do Preste João fora desfiado (ECO, 2013, p.138).
Semelhante aspecto pode ser identificado no relato de Jean Mandeville. De autoria
duvidosa, como já aludido, há referências à grandeza do Reino do Preste João,
inserindo nuances que contemplam as dificuldades em alcançá-lo, seja por mar ou
deserto. Porém, mesmo relatado por suas riquezas, o Reino é minimizado em
grandeza se comparado aos domínios do soberano mongol.

Sob o poder do preste João estão muitos reis, muitas ilhas e muitos povos
diferentes. A terra é muito boa e rica, porém, não tão rica como a do Grande
Cã, pois os mercadores não vão tão frequentemente até lá para comprar
mercancias como vão à terra do Grande Cã, porque a viagem é muito longa
[…] (MANDEVILLE, p.229).
Na terra deste [Preste João] há grande diversidade de coisas e muitas pedras
preciosas, tão grandes e grossas que com elas fazem recipientes: pratos,
tigelas, taças e muitas outras maravilhas que seria demorado colocar
inteiramente por escrito (MANDEVILLE, 2007, p.230).

4 - Imagens e representações cartográficas

A iconografia da Baixa Idade Média explora a temática do Preste João em


iluminuras e manuscritos, que demonstram o esplendor dos domínios do Soberano.
Mestre Boucicault ilustra o Livro das Maravilhas de Marco Polo, no século XV,
inserindo a figura de Gêngis Cã ao pedir a mão da filha do Preste em casamento
(Figura 1) (ECO, 2013, p. 103). Esse episódio também é narrado em Mandeville (2007,
p.230): “O imperador preste João sempre toma como esposa a filha do Grande Cã, e
o Grande Cã faz o mesmo com a filha do preste João”.

Figura 01 - O mensageiro de Gêngis Cã pede ao Preste João a mão de sua filha. De mestre
de Boucicault, Livre des Merveilles, século XV, Paris, Bibliothèque Nationale de France.
Fonte: Eco (2013, p.103).

Figura 02 - O Preste João. Diogo Homem (1558). Fonte: https://pin.it/ddyfflwlherevy, acesso


em 11 de junho de 2019.

Na história da cartografia, o genovês Angelino Dulcert (século XIV) foi


responsável pela “geografização do maravilhoso” ao inserir o Reino do Preste João
em portulanos (COSTA, 2001, p.60). Os artefatos de maior destaque datam do século
XVI, com detalhes do referido Reino na África, nos mapas de Diogo Homem (1558)
(Figura 2), Sebastian Munster (1544) (Figura 3) e Abraham Ortelius, na famosa obra
Theatrum Orbis Terrarum (1573) (Figura 4). Munster e Ortelius esboçam o rio Nilo,
com seus mistérios quanto à localização da nascente nas Montanhas da Lua. Munster
inclui a terra dos ciclopes (monoculi), seres descritos na Carta; Ortelius, por sua vez,
insere figuras de elefantes, indicando a fauna maravilhosa.
Figura 03 - Detalhe do Mapa da África. O Reino do Preste João: Sebastian Münster.
Cosmographia (1544). Fonte: Brooke-Hitching (2017, p.195).

Figura 04 - Mapa de Abraham Ortelius (1573). O Reino do Preste João.


Fonte: Brooke-Hitching (2017, p.194).

5 - Discussão

O Reino do Preste João é narrado em toda sua grandiosidade na Carta, com


referências ao “maravilhoso geográfico”, que confere um tom utópico praticamente
paradisíaco. Elementos do imaginário abundam, como as riquezas, as
monstruosidades e os elementos maravilhosos; a fonte da juventude e suas
características paradisíacas. Por sua vez, nos relatos de viagens a partir de Marco
Polo, há uma quebra nesse exagero de grandiosidade do Reino do Preste João e sua
localização ao Oriente. No relato de Mandeville, no século XIV, percebe-se que o
Preste não é relatado como o Soberano dos Soberanos, já que o Grande Cã, outro
governante envolto em narrativas das maravilhas orientais, é retratado como mais
poderoso em riquezas. Esses relatos de viagem que demonstram um conhecimento
mais detalhado dos reinos da Ásia, convergem para a tendência ao deslocamento dos
domínios do Preste à África, que também fazia parte das Índias no âmbito do
imaginário (LE GOFF, 1980, p.281). Nesse momento é apontada a “transferência
geográfica do mito” (COSTA, 2001, p.59), já que a Etiópia era lugar igualmente onírico,
um “paraíso etéreo” (BROOKE-HITCHING, 2017, p.197), correspondendo aos
anseios dos cristãos pelo Paraíso terreal.

Devido aos repetidos insucessos das tentativas nesse sentido, a localização


daqueles territórios [do Preste] oscilara na geografia entre Ásia e Etiópia. Esta
passara a ser preferida em fins da Idade Média, devido ao melhor
conhecimento sobre terras asiáticas, à proximidade da Etiópia com o Nilo,
considerado um dos rios paradisíacos, e à velha tradição, registrada já por
Heródoto, de que naquela região africana havia a Fonte da Juventude […]. A
necessidade maior continuava sendo sempre a de sonhar (FRANCO
JÚNIOR, 1992, p.41).

Os três mapas apresentados, situados no século XVI, fazem parte de outro


contexto de confecção cartográfica, que se distancia paulatinamente dos artefatos
medievais. As referências à utopia do Preste João permanecem em alguma medida
e, no mapa de Abraham Ortelius, especificamente, o renomado cartógrafo não realiza
apenas alusões ao Reino, mas confere a este o próprio título e temática da
representação, com descrições da linhagem do Preste e sua grandiosidade
(BROOKE-HITCHING, 2017, p.197). Diogo Homem e Sebastian Munster também
fazem parte do contexto desse alargamento dos horizontes geográficos, por meio das
navegações, expoentes da recorrência dos lugares imaginados também nas
representações do século XVI.

6 - Conclusões

A partir do exposto neste texto, podemos concluir que os lugares imaginados,


sob o prisma do maravilhoso geográfico, exerceram influente papel nas
representações e na literatura do Medievo, ou mesmo em períodos posteriores, sendo
verificado pela análise das descrições do ecúmeno e suas fronteiras na carta do
Preste João. Como personagem lendário medieval, o Rei inspirador mobilizou
viajantes ao seu encontro, vinculando anseios políticos a elementos do maravilhoso
geográfico, como a similitude com o Paraíso terrestre e a localização nos confins do
Oriente. Situados no complexo contexto histórico da Cristandade, um aspecto a
ressaltar é que os atualmente considerados “lugares lendários” medievais fizeram
parte de realidades imaginárias localizados em âmbito terrenal, ou seja, constituíram
realidades geográficas mobilizadoras, como ocorreu com a crença no Paraíso e sua
proximidade com o Rei e Sacerdote, supostamente autor da Carta. O Reino do Preste
João, em particular, foi recorrente até o século XVII e constitui um exemplo de ficções
que motivaram explorações a ampliar as fronteiras do nosso conhecimento
(BROOKE-HITCHING, 2017, p.197).

7 - Referências Bibliográficas

BROOKE-HITCHING, Edward. El Atlas Fantasma: grandes mitos, mentiras y errores


de los mapas. Barcelona: BLUME, 2017.
CARVALHO, Márcia S. de. A geografia desconhecida. Londrina: EDUEL, 2006.
COSTA, Ricardo da. Por uma geografia mitológica: a lenda medieval do Preste João,
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ECO, Umberto. História das terras e lugares lendários. Rio de Janeiro: Record, 2013.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval.
São Paulo: Edusp, 2010.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992.
FRANÇA, Susani S. L. Introdução. In: MANDEVILLE, Jean. Viagens de Jean
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LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito da Idade Média: tempo, trabalho e cultura
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MANDEVILLE, Jean. Viagens de Jean Mandeville. FRANÇA, Susani Silveira Lemos
(Org.). São Paulo: EDUSC, 2007.

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