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A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA: A


ROMANIZAÇÃO DA PAISAGEM URBANA DE LEPCIS MAGNA (SÉCS. I A.C.-II
D.C.)

Belchior Monteiro Lima Neto

Introdução

Durante boa parte do século XX, o conceito de romanização foi identificado com uma
perspectiva historiográfica eurocêntrica, vinculada a um grupo de antiquistas comprometidos,
em alguma medida, com o expansionismo imperialista europeu. Em autores como Haverfield
(1906), Boissier (1901) e Cagnat (1909; 1913), o termo romanização é compreendido como o
processo de aculturação das populações autóctones, que assumiam os padrões estéticos, a língua
e os valores romanos. Pressupunha-se a existência de um desnível civilizacional que legava às
populações conquistadas pelo poderio romano uma posição de passividade frente ao que era
considerado culturalmente superior. Romanização, grosso modo, constituía um processo em
que o outro se civilizava na medida em que se transformava em romano (MENDES, 2007, p.
38-39).
A partir da década de 1970, como consequência dos movimentos de descolonização, a
produção historiográfica tomou um novo rumo. As pesquisas, destacadamente as de Bénabou
(1978), pautaram-se em temas que valorizavam a resistência dos povos autóctones ao domínio
romano, resgatando e enfatizando os elementos nativos em contraposição ao precedente
conceito de romanização. Contudo, apesar dos avanços advindos com esta perspectiva, tais
estudos não se afastaram de um viés dicotômico, invertendo, em muitas ocasiões, o enfoque da
superioridade romana pelo da preeminência nativa (MATTINGLY, 2011, p. 59-60; LIMA
NETO, 2016, p. 118).
Nas últimas décadas, influenciados por autores como Woolf (1998), Huskinson (2000),
Revell (2011), Hingley (2010) e Mattingly (1994; 2011), os investigadores dedicados à
realidade provincial romana começaram a criticar a dicotomia dos estudos históricos até então
em voga, que ora tendiam à valorização das tradições latinas, ora enfatizavam a resistência e a


Texto publicado originalmente como capítulo pertencente à Coletânea intitulada Formas e Imagens da cidade
antiga. Professor de História da África do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo,
Coordenador Adjunto e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas (Ufes). Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, seção Espírito Santo (Leir/ES),
tendo pesquisa financiada pelos Editais Universais do CNPq e Fapes.
2

beligerância nativa à usurpação estrangeira. Delineou-se, por conseguinte, uma nova


compreensão acerca das relações do Império Romano com as populações autóctones,
atualizando-se o conceito de romanização como um termo guarda-chuva que abarca os
múltiplos processos de mudança sociocultural, multifacetados em termos de significados e de
mecanismos, que tiveram início com o relacionamento entre os padrões culturais greco-
romanos e a diversidade provincial (WOOLF, 1998, p. 7).
Tendo em vista as mais recentes orientações historiográficas, a relação dialógica entre
romanos e autóctones foi evidenciada de inúmeras formas, manifestando-se na adoção do
bilinguismo e do latim como língua franca, na construção de identidades locais em negociação
com a romana e na assimilação de deidades nativas com divindades greco-romanas. Entretanto,
um aspecto fundamental da vida cotidiana dos indivíduos, raramente lembrado nas
investigações, foi decisivamente influenciado pelo advento do Império Romano: a cultura
material. A reorganização dos ambientes citadinos, com um novo ordenamento das habitações,
dos edifícios e monumentos públicos, é marca visível nas cidades provinciais. Elas
romanizaram-se e transformaram sua paisagem por meio da construção de novos balizadores
urbanos, como termas, arcos, teatros, anfiteatros, fóruns, cúrias e basílicas.
No tocante ao Norte da África, estas transformações urbanas, ocorridas em época
imperial, são perceptíveis em várias cidades de origem púnica, númida e líbia, especialmente
nas mais importantes, tais como Cartago, Cirta e Lepcis Magna.1 Nesse sentido, percebendo a
construção do espaço, para além de suas dimensões físicas e arquitetônicas, como um ato
culturalmente orientado e eivado de significado, que, em alguma medida, oferece sentido às
ações dos indivíduos que nele se movimentam e dele se apropriam, gostaríamos de evidenciar
as modificações urbanas ocorridas entre os séculos I a.C. e II d.C. no sítio citadino de Lepcis
Magna (BARROS, 2017; NAVARRO, 2007, p. 12-13). Para tanto, recorreremos às fontes
epigráficas e arqueológicas advindas dos relatórios de escavação realizados na cidade, que nos
apresentam as diferentes etapas do reordenamento de seu espaço urbano, assim como o
aproveitamento político local de sua emergência na hierarquia cívica imperial (HAYNES,
1956; Inscriptions of Roman Triopolitania; Iscrizioni Puniche della Tripolitania).2

1
Utilizaremos o termo Lepcis Magna, sempre que nos referirmos à cidade à época imperial romana, para a
diferenciar de sua homônima localizada na África Proconsular, na atual Tunísia. A distinção era também feita na
Antiguidade, como atesta a epigrafia local de final do século I d.C., que oferece a primeira menção ao adjetivo
Magna para denominar a cidade (Inscriptions of Roman Tripolitania, 302, 352).
2
No decorrer do texto, usaremos, como referência aos catálogos de inscrições epigráficas provenientes da
Tripolitânia, as seguintes siglas: para Iscrizioni Puniche della Tripolitania (IPT), para Inscriptions of Roman
Tripolitania (IRT).
3

A documentação arqueológica e epigráfica evidencia-nos como o processo de


romanização da paisagem urbana de Lepcis Magna foi um fenômeno que esteve intimamente
associado com as problemáticas políticas identificadas com a inserção das aristocracias locais
na sociedade romana imperial. Observa-se que a transformação espacial e monumental da
cidade ocorre concomitantemente e se alia com a própria ascensão social de suas mais
importantes gentes, que, num intervalo de cerca de dois séculos, emergem ao ápice das ordens
de elite imperiais, tendo, inclusive, um de seus membros alcançado a posição de Princeps.

De emporia a território romano

Lepcis localiza-se na região conhecida na Antiguidade como Tripolitânia, que


compreendia uma ampla extensão territorial, correspondendo às terras entre a cidade de
Tacapae, a leste de Cartago, e a Cirenaica, a oeste do Egito. Ao norte, a Tripolitânia era banhada
pelo Mar Mediterrâneo; ao sul, fazia fronteira com o deserto do Saara, onde se localizava o
limes tripolitanus.3 O denominação da região advinha da existência de uma tríade de cidades
prósperas, Lepcis, Oea e Sabrata. Tais cidades tinham sido originalmente colônias fenícias, e
sua fundação remonta ao século VI a.C. Antes de ser agregada ao Império Romano, no século
I a.C., a região era conhecida como Emporia, sendo um importante entreposto comercial
cartaginês com o Egito e o Oriente (BIRLEY, 1988, p. 1-8).4
A colonização fenícia em Lepcis foi inicialmente uma resposta à fundação de colônias
gregas na Cirenaica, em meados do século VI a.C.5 Segundo o relato de Heródoto (Historia, 5,
43), os fenícios, em aliança com tribos líbias locais, genericamente denominadas de Macae,
teriam impedido uma tentativa de ocupação grega, em 520-517 a.C., no local onde mais tarde
se fundaria a cidade de Lepcis, sendo essa a época provável do início da ocupação fenícia na
Tripolitânia.
Lepcis se desenvolveu como um importante entreposto comercial, aproveitando-se de
sua posição estratégica no Mediterrâneo ocidental. Por seu porto natural transitavam os

3
Tal fronteira não constituía uma linha ininterrupta de separação entre o mundo romano e o “bárbaro” exterior,
mas, ao invés disso, se caracterizava como uma região de contato entre diferentes culturas. Era formada por uma
linha descontínua de fortes e estradas que dificilmente se poderia interpretar como um limes de defesa contra as
ameaças externas. Correspondia, na realidade, a uma rede complexa de controle, administração e taxação dos
movimentos dos grupos seminômades que habitavam a região meridional e que sazonalmente atravessavam a
fronteira à procura de pastos que fossem suficientemente abundantes aos seus rebanhos (CHERRY, 2005, p. 24-
74).
4
Cartago foi fundada por colonizadores fenícios vindos da cidade de Tiro por volta de meados do século IX a.C.,
tornando-se, entre os séculos VI e II a.C., a capital de um império marítimo muito poderoso, que criou colônias e
entrepostos comerciais na Sicília, na Sardenha, na Espanha e na Tripolitânia (RAVEN, 1993, p. 17-32).
5
As colônias de Cirene, Apolônia, Tauquira, Hespérides e Balagrae.
4

principais produtos comercializados por Cartago com o Egito e o Oriente. A cidade, ademais,
era um importante ponto de comercialização de toda uma gama de produtos advindos das
caravanas subsaarianas, que atravessavam o deserto e aportavam às margens do Mediterrâneo
trazendo marfim, ouro e escravos. Esses fatores explicariam a prosperidade de Lepcis no
período de domínio cartaginês (HAYNES, 1956, p. 28-30).
Apesar de tal projeção, pouco se sabe acerca da história da cidade antes da época
romana. Não se dispõe de dados seguros sobre a forma como se deu a colonização fenícia nem
tampouco acerca do modo como foi efetuado o contato com as tribos líbias locais. O que se
supõe, a partir do vocábulo líbio que identifica a cidade – Lepcis advêm do termo Lpqy –, é que
a presença cultural líbia deve ter se mantido forte por todo esse período,6 contribuindo para a
formação de uma cultura híbrida, denominada pela historiografia, em termos genéricos, como
libiofenícia (BRETT; FENTRESS, 1996; MATTINGLY, 1994, p. 50-51; BIRLEY, 1988, p. 1-
8).
O domínio cartaginês em Lepcis começou a arrefecer com o advento dos conflitos entre
Cartago e Roma, a partir de meados do século III a.C., nos episódios conhecidos como Guerras
Púnicas.7 Como resultado desses conflitos, em 161 a.C., a cidade foi anexada como parte do
Reino da Numídia, à época um Estado aliado à Roma, no Norte da África. Tal fato aumentou
consideravelmente a prosperidade e a independência das principais cidades da Tripolitânia, haja
vista o fim da submissão comercial local à metrópole cartaginesa e a distância que separava a
região dos principais centros decisórios do reino númida, tais como Cirta, Tebessa e Lambessa
(MATTINGLY, 1994, p. 50-51).
Pode-se medir o grau de liberdade gozado por Lepcis, no período de domínio númida,
por alguns eventos relacionados à Guerra de Jugurta (111-109 a.C.),8 conflito que opôs Roma
ao Reino da Numídia. Mesmo submetida aos númidas, Lepcis estabeleceu um tratado de aliança
com Roma. De acordo com Salústio (Bellum Iugurthinum, 77, 1-3), no ano de 111 a.C., uma

6
Ao nos referirmos à cultura líbia, estamos falando da presença de uma cultura autóctone local, formada por
diversas tribos seminômades, genericamente denominadas de líbias, que habitavam a Tripolitânia. Acerca destes
diversos grupos étnicos líbios, ver Brett; Fentress (1996) e Mattingly (1994, p. 17-50).
7
As Guerras Púnicas consistiram numa série de três guerras que colocaram Roma em conflito direto com Cartago,
cidade-Estado fenícia que dominava territórios no norte da África, Espanha e Sicília. Entre os anos de 264 a.C. e
146 a.C., as duas potências se enfrentaram no intuito de conseguirem para si uma hegemonia duradoura no
Mediterrâneo ocidental. Ao fim das Guerras Púnicas, Cartago capitulou frente às forças romanas e foi totalmente
destruída. Como resultado do conflito, Roma pôde se apoderar das regiões antes subjugadas pelo poderio
cartaginês, o que incluía o norte da África (RAVEN, 1993, p. 33-48).
8
A Guerra de Jugurta ou Guerra Jugurtina foi um conflito que opôs Roma, liderada pelo cônsul Quinto Cecílio
Metelo, ao Reino da Numídia, governado por Jugurta. A guerra durou dois anos, iniciando-se em 111 a.C. e se
encerrando com a derrota dos númidas em 109 a.C. (RAVEN, 1993, p. 51-52).
5

embaixada composta por cidadãos de Lepcis negociou secretamente a paz com Roma e
autorizou a instalação de uma guarnição militar na região.
Lepcis foi oficialmente anexada ao Império Romano em de 46 a.C., como consequência
direta do término da guerra civil (49-46 a.C.) que pôs em lados contrários os partidários de
César e os de Pompeu.9 Nesse conflito, o rei Juba I, soberano do Reino da Numídia, apoiou
militarmente a facção conservadora liderada por Pompeu, o que proporcionou, após a vitória
de César, a dissolução e a agregação do reino númida e de suas possessões – entre elas as
cidades tripolitanas – ao território diretamente administrado por Roma. A partir daí, a Africa
Proconsularis ficaria dividida em Africa Vetus – formada pelo antigo território conquistado aos
cartagineses – e Africa Nova – cujas terras incluíam o antigo Reino da Numídia e a Tripolitânia
(RAVEN, 1993, p. 51-52; BIRLEY, 1988, p. 8).
Inicialmente, as principais cidades da Tripolitânia – Lepcis, Oea e Sabrata – foram
integradas ao Império Romano como civitates libertae, isto é, cidades livres que, mesmo
submetidas ao poder romano, continuavam a ter uma grande margem de autonomia, com a
manutenção de suas leis, suas instituições e seus costumes locais (Estrabão, Geographia, XVII,
24; FRIJA, 2012, p. 96-103).10 O status de civitas liberta pode ser observado tendo em vista a
autorização de emissão de moedas que lhes foi concedida. A partir do final do século I a.C.,
cunhou-se um grande volume de numerário, no qual se exaltava a vinculação das cidades da
Tripolitânia ao Império – com efígies que enalteciam a figura do imperador e/ou da família
imperial –, ao mesmo tempo em que se reforçava a posição independente das civitates frente ao
governo central, enfatizando-se o nome da cidade – escrito em alfabeto púnico – responsável
pela emissão das moedas (Numismatique de L’Ancienne Afrique, 1-64).
O domínio romano sobre a Tripolitânia, como regra geral para a maioria das regiões do
orbis Romanorum, se baseava em um bem consolidado relacionamento entre o governo central,
com sede em Roma, e as diversas elites citadinas locais. O pilar de sustentação do Império
Romano era constituído mediante uma rede de alianças entre um centro acumulador de riqueza
e de poder e uma aristocracia municipal periférica enriquecida, que se perpetuava em seus
privilégios e status por meio das benesses imperiais.

9
A Guerra Civil Cesariana, também conhecida como Segunda Guerra Civil da República de Roma, foi um conflito
militar ocorrido entre 49 e 46 a.C. Foi o confronto de Júlio César contra a facção conservadora do Senado, liderada
militarmente por Pompeu. A guerra terminou com a ascensão definitiva de César como ditador romano (GRIMAL,
1993, p. 27-32).
10
Sobre as civitates libertae no Norte da África, afirma Estrabão (Geographia, XVII, 24): “Algumas cidades são
livres, pois estabeleceram aliança de amizade com Roma, e outras por demonstração de consideração. Há
governantes, tribunos e sacerdotes que vivem em tais cidades [...] de acordo com seus códigos legais ancestrais”.
6

Roma mantinha com as diversas civitates que integravam o seu imperium uma relação
de poder de tipo patronal, que se exprimia numa variedade de estatutos político-jurídicos
concedidos às cidades.11 Tal sistema de concessões regulava as relações entre o centro
governante e sua periferia, perpetuando um forte mecanismo de regulação social por meio de
seu teor altamente promocional, fator determinante para o equilíbrio social no Império e que
compensava, de certa forma, as insuficiências das estruturas administrativas do sistema político
imperial (MENDES, 2007, p. 36-37).
Em suma, o Estado romano mantinha a cooperação e a lealdade das elites locais por
intermédio de concessões de diferentes status de cidadania às civitates e às suas aristocracias
citadinas. De acordo com a dinâmica política do sistema imperial, a cidadania foi um
instrumento poderoso para contrabalançar e compensar as obrigações deixadas a cargo das
elites municipais, responsáveis pela manutenção das cidades – por meio do evergetismo – e
pelas prestações dos encargos fiscais devidos ao governo central.12
As civitates, grosso modo, poderiam ser diferenciadas em quatro categorias
fundamentais, que expressariam os níveis de hierarquia e de relacionamento da elite local com
o poder central: oppidum stipendiarium, municipium Latinum, municipium civium Romanorum
e colonia.13
Os oppida stipendiaria seriam civitates regidas por suas próprias leis nativas, por isso
também chamadas de cidades peregrinas ou estrangeiras. Nessa categoria ainda poderiam ser
incluídas as civitates libertae, como fora Lepcis no decorrer do século I d.C. Os habitantes
dessas cidades não tinham direito à cidadania romana, estando, além disso, sujeitos a uma
tributação exercida pelo governo central. Em termos hierárquicos, tais civitates se localizavam
no nível mais baixo de relacionamento frente ao poder imperial (MENDES, 2007, p. 37).

11
O imperium Romanum designava não só o espaço no interior do qual Roma exercia o seu poder, como este
mesmo poder. A palavra imperium representava a força transcendente, simultaneamente criativa e reguladora,
capaz de agir sobre o mundo, de submetê-lo à sua vontade. A etimologia da palavra continha a ideia de ordenação,
de preparativos feitos em vista de um fim, concebidos pelo espírito de quem comanda (GRIMAL, 1993, p. 9-12).
12
O termo evergetismo refere-se às obrigações que os membros das ordens mais abastadas das cidades tinham em
relação às suas civitates. Esses notáveis é que organizavam os espetáculos e os banquetes coletivos, é que
construíam os prédios públicos, é que contribuíam com recursos próprios para o abastecimento do erário citadino.
Em troca, garantiam para si os benefícios e as honrarias de serem os patronos da cidade (VEYNE, 1994, p. 114-
117).
13
Entre o final do segundo e o início do terceiro século havia na Tripolitânia, segundo dados retirados de duas
fontes valiosas para o conhecimento das regiões provinciais do Império, o Itinerarium Antonini e a Tabula
Peutingeriana, quatro cidades que ostentavam o status de colônia romana: Tacapae, Lepcis Magna, Sabrata e Oea.
Somavam-se a elas mais seis cidades com o título de municipium Latinum: Telmine, Gigthis, Zitha, Pisidia,
Thubactis e Digdida. Também podem ser citadas mais uma dezena de pequenas civitates, cujo status é pouco
conhecido, mas que provavelmente se caracterizavam como oppida stipendiaria, tais como Cidamus, Sugolin,
Sutututttu, Mesphe, entre outras (MATTINGLY, 1994, p. 139).
7

O municipium civium Romanorum e o municipium Latinum eram cidades cujos


magistrados recebiam, respectivamente, o ius civitatis Romanae – cidadania romana completa,
com direitos políticos – e o ius Latii – que dava acesso ao ius connubii, direito de constituir
família romana no sentido estrito, e ao ius commercium, direito de possuir bens. Mesmo com a
concessão da cidadania romana a uma parte da elite citadina local, essas cidades mantinham as
suas leis e os seus costumes tradicionais, com órgãos judiciais próprios e autonomia perante o
governo provincial.
As colônias romanas eram normalmente de dois tipos: havia as fundações novas, cidades
formadas tendo como modelo Roma, muitas vezes constituídas por uma população de
imigrantes e/ou soldados veteranos oriundos da Península Itálica; havia também as cidades já
existentes antes do domínio romano, às quais era concedido o status de colônia após galgarem
as etapas necessárias na hierarquia imperial. Os habitantes de tais colônias recebiam a cidadania
romana plena e sua administração reproduzia as bases da organização institucional de Roma,
com um conselho local (curia), dois magistrados superiores colegiados (duumviri) e os
correspondentes colégios sacerdotais (pontífices e flâmines).
As etapas da hierarquia urbana – de cidade peregrina à colônia – foram trilhadas por
Lepcis Magna entre os séculos I a.C. e II d.C. Em termos gerais, as transformações de seu sítio
urbano, com a edificação de monumentos típicos das civitates romanas, foram fundamentais
para que a cidade alcançasse status superiores nas honrarias cívicas, aproximando sua
aristocracia citadina de um modus vivendi imperial.14 Este fenômeno, em grande medida, é
tributário do próprio enriquecimento de suas elites, que se beneficiaram economicamente da
abertura de novos mercados à produção do azeite local, possibilitando-lhes custear a ereção de
edificações fulcrais em sua estratégia política de inserção na sociedade romana imperial
(MATTINGLY, 1994, p. 138-144).

As transformações na paisagem urbana de Lepcis Magna

A primeira inscrição latina encontrada em Lepcis Magna remonta ao ano 8 a.C. e celebra
a remodelação de seu antigo mercado, transformado em um macellum romano equipado com

14
Utilizamos o termo modus vivendi imperial em consonância como a perspectiva delineada por Janet Huskinson
(2000), que observa a existência, entre os séculos I a.C. e II d.C., de um common ground de elementos culturais
compartilhados pelas diversas elites que compunha o Império Romano, como o domínio do latim e/ou do grego, a
educação nos moldes da paideia greco-romana, a posse da cidadania romana, a participação nos cargos e ritos
públicos, o gozo das benesses urbanas nos teatros, anfiteatros e termas. Tais elementos, que comporiam uma
espécie de cultura imperial, em sentido lato, eram diversamente experimentados, assimilados e apropriados nas
diferentes regiões do Império.
8

dois quiosques centrais (n. 5, do Mapa 1) (IRT, 319).15 O edifício foi erigido em honra de Otávio
Augusto e do procônsul da África, Crassus Frugi, sendo a dedicatória a importantes
personagens um estratagema comumente utilizado pelas elites provinciais, conquistando, por
meio deste expediente, a simpatia de patronos essenciais no processo de elevação do status
cívico de suas cidades.16 A obra foi custeada por Annobal Tapapius Rufus, no período em que
Muttun, filho de Anno, era sufeta – isto é, a mais importante magistratura púnica – e Iddibal,
filho de Arish, e Bodmelqart, filho de Annobal, eram flamines.
À época, Lepcis Magna era uma cidade peregrina, gozando do status de civitas liberta,
o que pode ser observado pela presença de sufetas, pela nomeação púnica de seus mais
eminentes cidadãos – Annobal, Muttun, Anno, Iddibal, Arish, Bodmelqart –, assim como pela
inscrição latina possuir uma versão neopúnica, demonstrando que o latim era um idioma ainda
não dominado por grande parte da população.17 Percebe-se, contudo, uma embrionária tentativa
da aristocracia local de apropriação de elementos romanos, verificada na própria ereção de um
macellum, mas também na latinização da alcunha gentílica e do cognome de Annobal, como
Tapapius Rufus, e na existência na cidade de flamines ocupados com o culto imperial, meio
privilegiado de exibir fidelidade ao imperador e ao Estado romano, com a celebração de ritos
em honra do gênio da família reinante (MENDES; OTERO, 2005, p. 205-206).
Também fora Annobal Tapapius Rufus o responsável pela construção do teatro citadino,
novamente dedicado a Otávio Augusto em uma inscrição bilíngue (IRT, 321, 322, 323;
Iscrizioni Puniche della Tripolitania, 24).18 A ereção do edifício pode ser datada para o ano 1
d.C., no período em que Annobal ocupava a magistratura de sufeta e de flamine, exibindo,
ademais, os epítetos de ornator patriae e amator concordiae, provavelmente a transcrição latina
de honrarias púnicas tradicionais (BIRLEY, 1988, p. 9).19 Outro evergeta local de destaque no
início do século I d.C. é Iddibal Caphada Aemilius, que, em 11, custeou a construção do

15
Poucos são os dados arqueológicos descobertos acerca da Lepcis púnica, além do mercado e do fórum, que
provavelmente foram remodelados em época romana, há a existência de um antigo cemitério, remetendo ao século
VI a.C., encontrado sob o teatro citadino (MATTINGLY, 1994, p. 117-119).
16
O Procônsul da África Proconsular era a mais alta autoridade judiciária da província, sendo o juiz supremo nas
ações criminais e civis. Ele se caracterizava como um funcionário de posição elevada, escolhido entre os dois mais
antigos ex-cônsules de Roma. Ao procônsul eram concedidos poderes para supervisionar as autoridades
municipais, recolher o imposto devido ao fisco imperial e comandar a III Legião Augusta, destacamento do
exército responsável pela manutenção da ordem pública e da paz nas regiões fronteiriças da África Proconsular
(MAHJOUBI, 1985, p. 506-507).
17
A transcrição neopúnica da epigrafia latina do mercado de Lepcis Magna é encontrada somente no quiosque
ocidental do edifício (QUINN, 2010, p. 53; Iscrizioni Puniche della Tripolitania, 21).
18
Além da construção do teatro de Lepcis Magna em honra de Otávio Augusto, há também no edifício a dedicatória
de uma estátua ao imperador, feita pelos Fulvii (IRT, 320, 328).
19
Em 36 d.C., o teatro ainda recebeu a inclusão de um pequeno santuário no topo de sua cávea, dedicado a Ceres
Augusta por Suphunibal, esposa de Annobal Ruso, provavelmente com algum grau de parentesco com Annobal
Tapapius Rufus (IRT, 269).
9

calchidicum – espécie de mercado ornado com colunatas – e das vias que lhe davam acesso (n.
2, Mapa 1) (IRT, 324). Como Annobal, Iddibal também fez uso da estratégia política de
tradução de seu cognome familiar, latinizando Himili como Aemilius, fato que demonstra uma
tentativa de aproximação de seu ramo gentílico a uma identidade romana (QUINN, 2010, p.
56).
Como percebido no Mapa 1 (n. 5, 2), o teatro, o mercado e o calchidicum
caracterizavam-se como um espaço monumental de comércio e de entretenimento em Lepcis
Magna, erigido, em menos de duas décadas, às expensas de uma aristocracia ávida por inserção
na sociedade romana, constatação corroborada pela dedicação de tais prédios públicos a
principes e procônsules, pela latinização dos nomes das mais eminentes famílias locais e pela
prática ritual do culto imperial. Este centro econômico e de sociabilidade conectava-se, por
meio de um decumanus maximus pavimentado pelo procônsul Rubellius Blandus, em 35 (IRT,
330, 331), com o fórum, a basílica, a cúria e os templos na região costeira (respectivamente n.
10, 12, 11, 8, 9, Mapa 1), área que se constituía no principal núcleo administrativo, político e
religioso de Lepcis Magna até o início do século III.

Mapa 1 – Principais marcos monumentais de Lepcis Magna

Fonte: Loyola University Chicago Digital Special Collections. Acessado em: 30 jul. 2019. Disponível
em: http://www.lib.luc.edu/specialcollections/items/show/757.
10

Infelizmente, os dados epigráficos e arqueológicos referentes à região que circunda o


antigo fórum possuem lacunas insolúveis, não sendo de fácil datação. Para Haynes (1956, p.
84-85), a cronologia de fundação destes edifícios pode ser estipulada para o início do século I
d.C., em analogia com o período em que outras áreas da cidade, a exemplo do mercado, do
teatro e do calchidicum, eram remodeladas ou criadas às expensas da elite local. Sabe-se,
entretanto, que, em 53, em honra de Tibério e do procônsul Marcus Pompeius Silvanus, Gaius,
filho de Anno Macer, mandou prover o fórum de Lepcis Magna de colunas e pavimento novos
(IRT, 338). Neste espaço monumental também se destacam o templo dedicado a Roma e
Augusto (n. 9, Mapa 1), provavelmente onde os flamines executavam os ritos relacionados ao
culto imperial, e o dedicado ao deus Líber Pater (n. 8, Mapa 1), interpretatio da tradicional
divindade púnica protetora de Lepcis Magna, Shadrapa (IPT, 22; IRT, 275). Como argumenta
Quinn (2010, p. 56-58), a localização de tais templos, no centro administrativo, político e
religioso da cidade e um ao lado do outro, é significativo e nos sugere que a romanização de
Lepcis Magna tem que ser observada como um processo multifacetado, em que uma nova
identificação romana não obliterava a tradicional vinculação ancestral.
Corroborando com o caráter multifacetado da romanização de Lepcis Magna, pode-se
também elencar os dados funerários relativos à cidade, nos quais percebe-se a manutenção de
tradicionais cerimônias púnicas em hipogeus que reuniam centenas de mortos, cremados em
vasos fúnebres individuais. Tal ritual, de acordo com Fontana (2001, p. 169), associava-se às
reminiscências da organização clânica das principais gentes locais, chegando alguns hipogeus
a reunir os restos mortais de até 136 pessoas. Outra evidência incontestável da importância da
identidade ancestral em Lepcis Magna é a descoberta, em tumbas de meados do século II, de
inscrições epigráficas que ressaltam agnomes autóctones para designar a filiação de eminentes
cidadãos romanos da cidade, a exemplo de Quintus Domitius Camillus Nysim (IRT, 692),
Quintus Caecilius Ceriallis Phischon (IRT, 673), Gaius Calpurnius Tracachalus Dosiedes
(IRT, 677) e Gaius Marius Boccius Zurgen (IRT, 729).
A despeito da força da herança púnica em Lepcis Magna, percebe-se, por intermédio de
sua nova organização espacial e monumental, um processo inequívoco de romanização. As
elites locais, dentro de sua estratégia política de inserção na sociedade romana, supervisionaram
uma série de construções e remodelaram a feição da paisagem urbana da cidade, dotando-a de
marcadores arquitetônicos que a identificavam com o centro do poder imperial. A partir do final
do século I a.C., a então civitas liberta foi paulatinamente transformada, com a ereção do
mercado, teatro, calchidicum, decumani, cardi, fórum, cúria, basílica e templos. Como
11

consequência, em grande medida, deste reordenamento espacial, em 77, Lepcis Magna ascende
à categoria de município, como comprova a seguinte inscrição epigráfica que menciona o
Procônsul da África e seu legado como patroni municipii:

Ao imperador César Vespasiano Augusto, sumo sacerdote, detentor do poder


tribunício pela [nona vez, aclamado vitorioso] dezenove vezes, pai da pátria,
cônsul oito vezes, (e) Tito César Vespasiano, filho do Augusto, sacerdote,
[vencedor aclamado? vezes], cônsul [seis vezes]; Caius Paccius Africanus,
pontifex, [consul], procônsul da África, patrono, [mediante] Cnaeus Domitius
Ponticus, pretor, legado com poder propretoriano, patrono do município,
dedicada (IRT, 342).

Como explicitado acima na inscrição epigráfica, há uma relação direta entre a elevação
de Lepcis Magna dentro do status cívico imperial e a consecução de distintos patronos. Vê-se,
desde o final do século I a.C., a execução de uma estratégia política de aproximação da cidade
e de seus cidadãos de eminentes personagens da sociedade romana, com destaque para os
governadores da Província da África Proconsular, bastante atuantes como beneméritos de
inúmeras obras públicas. Pode-se, neste caso, elencar os exemplos de Rubellius Blandus,
procônsul que proveu, em 35, a pavimentação do decumanus maximus, e de Servius Cornelius
Orfitus, que financiou, em 62, a construção dos pórticos e da colunata do porto citadino (n. 20,
Mapa 1) (IRT, 341, 330, 331). As diversas menções a procônsules e legados imperiais nas
dedicatórias das edificações públicas celebram a aliança da aristocracia local com importantes
indivíduos da ordem senatorial e equestre, denominados nas inscrições como patroni de Lepcis
Magna, tais como Crassus Frugi, Caninius Gallus, Rubellius Blandus, Servius Cornelius
Orfitus, entre outros (IRT, 273, 329, 269, 321, 330, 341, 330).
A emergência de Lepcis Magna ao status de municipium – não se sabe se romanorum
ou latinum – ocorre, além disso, concomitantemente a um aprofundamento da latinização dos
nomes próprios da aristocracia local. Em 72, na inscrição que marca a edificação de um pequeno
templo de Magna Mater no fórum, observa-se a última aparição de nomes púnicos associados
a eminentes indivíduos, como os de Iddibal, filho de Balsillac, neto de Annobal, bisneto de
Asmun, que custeou a construção do edifício (IRT, 300). Em poucos anos, os Annobals, Iddibals
e Himilis desapareceram da epigrafia, dando lugar aos Claudii, Flavii e Marcii (BIRLEY, 1988,
p. 17). A partir de então, o sistema romano de tria nomina já estava plenamente estabelecido,
indicando a proliferação da cidadania romana entre os membros da elite citadina. Tal fato pode
ser averiguado, em 92, numa inscrição encontrada na orchestra do teatro (IRT, 347), que
sentencia que “Tiberius Claudius Sestius, da tribo romana Quirina, flamen [...], sufeta, [...] foi
12

o primeiro [cidadão] a quem a cúria e o povo deram permissão para usar uma ampla faixa roxa
em todos os momentos, por causa de seus méritos e de seus antepassados”.
A extensão da concessão da cidadania romana aos membros da aristocracia local, a
consecução de distintos patroni, influentes na corte imperial, e a romanização de sua paisagem
urbana provavelmente habilitaram Lepcis Magna a rapidamente ascender a status superiores na
hierarquia cívica imperial. Esse projeto político, encabeçado pelas elites citadinas e manifestado
na reorganização espacial e monumental de Lepcis Magna, é coroado com a sua elevação à
categoria de colônia romana, dignidade que concedia à cidade a honra de ser a extensão
territorial da própria Roma. A mudança de estatuto é celebrada na construção do Arco do
Triunfo dedicado a Trajano, em 110 (n. 3, Mapa 1), onde primeiro se explicita seu novo epíteto
de Colonia Ulpia Traiana Fidelis Lepcis (IRT, 353, 523, 537).
Os arcos do triunfo construídos em diversas partes do Império, utilizando-se da palavra
(por meio de inscrições epigráficas) e da imagem (como elementos arquitetônicos monumentais
de destaque na paisagem urbana), eram testemunhos emblemáticos da aliança das civitates com
Roma, localizando-se, na maioria das vezes, na área central das urbes. No caso de Lepcis
Magna, a ereção do Arco do Triunfo em honra de Trajano se fixava em pleno decumanus
maximus, na via que integrava os principais monumentos públicos da cidade, sendo construído
com o consenso do “populus et ordo [decuriorum] coloniae” (IRT, 353; GONÇALVES, 2005,
p. 61).
Após a concessão do status de colônia romana, a aristocracia de Lepcis Magna não
conteve o ímpeto construtor. No ano de 120, observa-se a ereção das Termas de Adriano (n. 19,
do Mapa 1), obra que dá início a um novo eixo viário na cidade, ligando a seção sul do centro
monumental de comércio e de entretenimento, representado pelo teatro, mercado e calchidicum,
ao porto citadino. O edifício foi custeado por Quintus Servilius Candidus, que na oportunidade
também afirma que ordenara a construção de um aqueduto para suprir as necessidades de
abastecimento de água da cidade (IRT, 361, 357, 358, 359). Candidus, ademais, é um bom
exemplo de como o processo de romanização de Lepcis Magna é plural e multifacetado,
expressando formas locais de apropriação e de inserção na sociedade imperial, que, na maioria
das vezes, não obliteravam uma identidade ancestral. Vê-se, por conseguinte, que, ao mesmo
tempo em que ele se vangloriava como evergeta das termas e do aqueduto de uma renomada
colônia romana, exibia publicamente epítetos púnicos tradicionais, como amator patriae,
amator civium e amator concordiae, numa inscrição votiva encontrada no Templo de Líber
13

Pater (n. 8, do Mapa 1), interpretatio de Shadrapa, isto é, a antiga divindade protetora de Lepcis
Magna (IRT, 275).20
A região onde foram erigidas as Termas de Adriano recebeu, em época severiana, a
partir de fins do século II, uma série de intervenções destinadas à construção de um novo fórum
e basílica, de uma palestra anexa às termas e de um Nymphaeum, assim como a consecução de
uma via das colunatas que se conectava ao porto (n. 13, 14, 15, 17, 18, Mapa 1; Mapa 2). Foi,
em última instância, o programa de ereção de monumentos públicos patrocinado pela casa
imperial que proporcionou a concessão da dignidade de ius italicum a Lepcis Magna, o que
corrobora diretamente nossas conjecturas acerca das mudanças de status jurídico da cidade
caminharem pari passu com as estratégias políticas da aristocracia local. Possuir o ius italicum
representava para Lepcis Magna, à época cidade natal do Princeps, o privilégio de possuir a
isenção de qualquer taxa cobrada sobre os rendimentos da cidade e a igualava às urbes da
Península Itálica (MATTINGLY, 1994, p. 54).

Mapa 2 – Fórum, basílica e via das colunatas do período Severiano

Fonte: Mattingly (1994, p. 121)

20
No tocante às Termas construídas às expensas de Quintus Servilius Candidus, também foi descoberta uma
inscrição que se utilizava do alfabeto latino para expressar o idioma púnico. Num determinado azulejo das termas
está escrito a seguinte frase: felioth iadem sy-Rogate ymmanai, traduzido por Levi Della Vida (1927, p. 108) como
“feito nas oficinas de Rogate Ymmannai”.
14

A transformação da paisagem urbana de Lepcis Magna, ocorrida no decorrer dos séculos


I a.C. e I e II d.C., é tributária da riqueza de sua aristocracia, beneficiada com a venda do azeite
local aos mercados das diferentes regiões do Império Romano.21 Analisando o corpus
epigráfico encontrado na cidade, Mattingly (1994, p. 120) e Duncan-Jones (1963) demonstram
os elevados gastos patrocinados pela elite citadina nas construções dos monumentos públicos e
nas doações oferecidas aos seus concidadãos. Observa-se, por exemplo, que a edificação do
templo de Magna Mater no fórum consumiu a soma de 200.000 sestércios, a do Arco de Marco
Aurélio, construído em 174, mais 120.000, 272.000 foram despendidos na ereção de um
santuário ao deus Apolo, assim como cerca de 1 milhão de sestércios foram gastos com a doação
de 16 estátuas de deuses e imperadores à cidade.
A fortuna da aristocracia de Lepcis Magna a habilitava, ademais, a requerer sua ascensão
às ordens de elite romanas,22 fenômeno verificado principalmente após a emergência da cidade
à categoria de colônia.23 Em vista dos gastos despendidos em Lepcis Magna por suas mais
distintas gentes, o senso equestre e o senatorial, respectivamente de 400.000 e 1 milhão de
sestércios, não deveriam ser empecilhos. Contudo, o Princeps era o único apto a admitir novos
membros às ordens superiores, daí a imprescindível consecução do patronato de personagens
importantes da sociedade imperial e com acesso privilegiado à corte, fato que reforça nossa
apreensão da existência de uma homologia entre a transformação da paisagem urbana de Lepcis
Magna, constituída por uma série de monumentos dedicados a eminentes patroni,
especialmente procônsules, e as estratégias de ascensão social de sua elite citadina (ALFÖLDY,
1996, p. 152-153; ÁLVAREZ MELERO, 2013, p. 415).
A promoção social das elites de Lepcis Magna é bem exemplificada na emergência dos
Septimii ao ordo senatorius. Como estabelece Birley (1988, p. 18), baseando-se em
informações retiradas de História Augusta (Sev., 1, 1), Septímio Severo possuía laços de
parentesco inequívocos com os Macer (Figura 1), isto é, família de origem púnica que esteve
deste o final do século I a.C. associada com o projeto político de transformação da paisagem
urbana de Lepcis Magna, expediente utilizado como estratagema de inserção das elites locais

21
O azeite era produto vital no Mundo Antigo, utilizado na alimentação, como combustível e base para a fabricação
de numerosos medicamentos, perfumes e cosméticos. Segundo dados apresentados por David Mattingly (1994, p.
138-140), no interior da Tripolitânia existiam inúmeras propriedades agrícolas aprovisionadas com todo tipo de
equipamentos imprescindíveis à fabricação do azeite de oliva, sendo tais propriedades as responsáveis pelo
enriquecimento das elites citadinas regionais.
22
Grosso modo, havia três ordens de elite na sociedade romana alto-imperial, hierarquicamente representada pelo
ordo senatorius, equester e decuriorum, sendo este último destinado aos membros da aristocracia das cidades
provinciais (SALLER, 2008, p. 817-818).
23
Acerca da elevação das elites norte-africanas às ordens equestre e senatorial, ver Salcedo de Prado (2012; 2013),
Corbier (2005) e Birley (1988).
15

na sociedade romana imperial. Não por acaso, Anno (Macer) é mencionado tanto na dedicatória
da construção do macellum, em 8 a.C., quanto na reforma das colunatas e na pavimentação do
fórum, obras levadas a cabo às expensas de seu filho Gaius (Phelyssam), em 54 (IRT, 338, 319,
615).

Figura 1 – Árvore genealógica dos Septimii em Lepcis Magna

Fonte: Birley (1988, p. 216-217)

Não sabemos, ao certo, como se deu o processo de mudança da denominação gentílica


Macer, latinizando-se como Septimii (Figura 1).24 As inscrições epigráficas de Lepcis Magna
rememoram a primeira menção a um Septimii em 138, quando Caius Claudius Septimius Aper
ofereceu aos seus concidadãos uma estátua de Cupido, localizada no calchidicum e dedicada
em hora de Antonino Pio (IRT, 316). Vê-se, aqui, uma estratégia comum na aristocracia local,
a de buscar uma aproximação tácita com importantes beneméritos. Em outra inscrição, esta
mais tardia, de 202, observa-se que Lucius Septimius Severus, avô homônimo do Principes,
fora sufeta, duumvir, flâmine perpétuo e um dos primeiros cidadãos romanos da cidade (IRT,
412). É provável que ele tenha atuado ativamente na própria elevação do status citadino de
Lepcis Magna, uma vez que exerceu, em diferentes momentos de sua carreira política, a função

24
Havia dois principais modos de latinização dos nomes de origem púnica na região da Tripolitânia: um ao acaso,
adotando nomes relacionados aos imperadores reinantes ou de importantes patronos da cidade; o outro a partir de
uma tentativa de tradução dos nomes antigos para similares latinos, usando associações etimológicas ou fonéticas
(MATTINGLY, 1994, p. 58).
16

de sufeta e de duumvir – principal magistratura cívica de uma colônia romana. Além disso,
como flâmine perpétuo e responsável pelo culto imperial, Septimius Severus possivelmente
estabeleceu redes de aliança com personagens chave, tais como procônsules e legados
imperiais, representantes do imperador e do Estado romano nas Províncias. Pode-se, por
conseguinte, conjecturar que as relações de amicitia construídas pelos Septimii provavelmente
foram fundamentais na ascensão de membros da gens ao ordo senatorius.25
Sabe-se, por intermédio da História Augusta (Sev., 1, 2), que os Septimii alcançaram o
status senatorial em 153, quando P. Septimius Aper é eleito para o consulado, sendo seguido
por seu irmão, C. Septimius Severus, em 160 (Figura 1). O próprio cursus honorum de Publius
Septimius Geta, irmão de Septímio Severo, demonstra a importância da família na sociedade
romana de fins do século II, uma vez que ele é mencionado numa inscrição epigráfica
encontrada no teatro de Lepcis Magna e datada para o ano de 195 como tribuno senatorial da II
Legião Augusta, propretor na Lusitânia e procônsul na Sicília (IRT, 541).
A ascensão dos Septimii representa bem a estratégia política executada pela elite
citadina de Lepcis Magna. Na percepção da inevitável dominação romana sobre a cidade, a
aristocracia local empreendeu, a partir de finais do século I a.C., um estratagema de admissão
na sociedade imperial. Sem obliterar sua ancestralidade púnica, buscou-se, paulatinamente,
apropriar-se de um modus vivendi romano como forma de ascender às ordens de elite. Neste
processo, no qual se verificou a emergência do status cívico de Lepcis Magna, de civitas liberta
à colônia, teve importância fulcral sua reordenação segundo padrões urbanísticos greco-
romanos, ou seja, sua paisagem citadina foi remodelada por novos marcadores arquitetônicos
monumentais identificados com o Império Romano, a exemplo da edificação, às expensas das
mais eminentes gentes da cidade, do macellum, do teatro, do calchidicum, do fórum, da basílica,
da cúria, dos templos, das termas, do aqueduto, dos arcos e da via das colunatas conectando o
centro monumental de época severiana ao porto. Tal fenômeno demonstra-nos que não se deve
desvincular o processo de romanização ocorrido em Lepcis Magna da própria reconstrução de
seu espaço urbano como estratégia política da elite local, evidência que coloca em primeiro
plano os estudos relativos à cultura material como meio privilegiado de compreender a agência
política dos provinciais no intuito se inserirem, de acordo com seus interesses e intenções, na
sociedade romana imperial.

25
O termo amicus designava, na sociedade romana imperial, a relação de “amizade” entre indivíduos das ordens
superiores, mas nem sempre com posições sociais equivalentes. A amicitia, em muitas ocasiões, se encaixava
numa relação protegido/patrono, assim como definido por Saller (1989, p. 61): “um homem sob os cuidados e a
proteção de uma pessoa influente (um patrocinador, instrutor ou patrono), que promoveria a sua carreira”, isto é,
sua ascensão social.
17

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