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O CORPO NA

CAVE
Uma comédia suburbana por
Alex Broun
2005

1
Personagens
Max
Eileen
Homem de Negro/Soldado
Mulher

Cenário
A sala de jantar de Max e Eileen bem apresentada em estilo vintage, nos subúrbios
distantes de Sidney. Uma porta leva diretamente à cozinha e o corredor na esquerda vai
até à porta principal.
Também há uma porta na parede de trás entre as fotos ricamente emolduradas. Iremos
descobrir depois que esta porta nos leva até à cave.
O centro de mesa, a mesa e as cadeiras têm uma aparência bem cuidada.

Tempo
Fim de tarde de quinta. O presente.

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AS LUZES ACENDEM SOBRE EILEEN QUE ESTÁ A DAR OS ÚLTIMOS RETOQUES AO
PÔR A MESA COM UM EXPLENDOROSO SERVIÇO DE LOIÇA ESPANHOLA. ELA VAI
CANTAROLANDO ENQUANTO FAZ A TAREFA.

ELA SAI PARA A COZINHA E VOLTA MOMENTOS DEPOIS COM UM BOUQUET DE


ROSAS VERMELHAS FRESCAS QUE ELA COLOCA NUMA JARRA QUE PÕE NO MEIO
DA MESA.

MOMENTOS DEPOIS OUVIMOS A PORTA A ABRIR. EILEEN LEVANTA


REPENTINAMENTE A CABEÇA.

EILEEN – Espera só um segundo.

MAX – (Em off) Cheguei.

EILEEN – Eu ouvi espera só um bocadinho.

MAX – E então?

EILEEN – Ainda não estou pronta.

PAUSA.

MAX – (Excitado) Oh.

EILEEN ACABA DE COLOCAR AS ROSAS NA JARRA.


ELA COLOCA-SE RAPIDAMENTE NO CENTRO DA SALA E ASSUME A POSIÇÃO –
BRAÇOS CRUZADOS, CABEÇA LEVANTADA, OLHOS SEDUTORES.

EILEEN – Pronta!

ELA COLOCA A ROSA NA BOCA E MORDE-A.


MAX ENTRA LEVANDO CONSIGO O CASACO E A PASTA. ELE PÁRA DE REPENTE
QUANDO VÊ A EILEEN.

MAX – Minha nossa.

EILEEN – Estás pronto?

MAX – Devemos – antes do jantar?

EILEEN – Sim!

MAX – Mas eu ainda não bebi nada. Sabes que eu não sou muito bom nisto sem bebida.

EILEEN – Eu não me importo. Tem de ser agora.

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EILEEN LEVANTA DRAMATICAMENTE O SEU BRAÇO E APONTA PARA O OUTRO
LADO DA SALA.

MAX – Mas...

EILEEN – Já!

MAX – (Excitado pela firmeza da Eileen) Se tu insistes.

O MAX DIRIGE-SE A UM GRAMOFONE NO CANTO. COLOCA A AGULHA NO DISCO.


O MAX CORRE DE VOLTA PARA EILEEN E ASSUME A SUA POSIÇÃO, FICANDO POR
DE TRÁS DELA COM OS BRAÇOS EM VOLTA DA CINTURA.

DE REPENTE A MÚSICA COMEÇA E PERFEITAMENTE EM UNÍSSONO, AS CABEÇAS


DE MAX E EILEEN VIRAM PARA TRÁS, E DEPOIS PARA A FRENTE E COMEÇAM A
DANÇAR O TANGO – COM MUITO RIGOR.

AS LONGAS NOITES DE LIÇÕES DE TANGO COMPESSARAM E ELES DANÇAM


FERVOROSAMENTE, APAIXONADAMENTE E HABILMENTE.

HÁ VOLTAS E RODOPIOS, MERGULHOS E REDOPIOS, VOLTAS E MAIS VOLTAS – O


MAIS FANTÁSTICO ESPETÁCULO DE TANGO.

A DANÇA ACABA. NO CLÍMAX MUSICAL COM O MAX A ARRANCAR A ROSA DOS


DENTES DE EILEEN E A CUSPI-LA PARA O CHÃO.

ELE BAIXA-A E BEIJA-A APAIXONADAMENTE NOS LÁBIOS ANTES DA CABEÇA DELE


IR PARA TRÁS E OS BRAÇOS DELA CAIREM ATÉ AO CHÃO, DE NOVO, EM PERFEITA
SINTONIA, ATÉ QUE A MÚSICA DÊ O SEU ÚLTIMO AOCRDE.

HÁ UMA PAUSA DRAMÁTICA, DEPOIS:

MAX – Isto foi muito bom.

EILEEN – Foi fantástico.

MAX – Eu acho que te pisei os pés.

EILEEN – Nem dei por isso.

MAX – Mas eu tenho a certeza, duas vezes.

EILEEN – Cala-te.

MAX – Foi quando eu...

EILEEN – Por favor. Pára. Sabes que eu não suporto isso.

MAX – Desculpa. (Tapa a boca) Ups.

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EILEEN – Tu não te aguentas.

MAX – Desculpa, quer dizer não estou a pedir desculpa. Eu quero dizer desculpa por ter
pedido desculpa. Mas eu não estou arrependido de ter pedido desculpa. Desculpa.

EILEEN – És uma desgraça.

MAX – Desculpa. (Tapa a boca) Disse outra vez.

EILEEN – Porque é que não podes ser sempre como és quando dançamos? Forte,
másculo, calado. (Tapa-lhe a boca) Não o digas. Porque é que tens sempre de estragar
tudo?

O MAX TENTA FALAR PELO MEIO DA MÃO DE EILEEN.

EILEEN – Quando abres a boca. Odeio.

O MAX TENTA FALAR PELO MEIO DA MÃO DE EILEEN.

EILEEN – (Retira a mão) O facto de seres alguém que está sempre a pedir desculpa. A
pessoa que és quando dançamos nunca pensaria sequer em dizer essa palavra.

MAX – Nem mesmo se ele te trincasse os pés.

EILEEN – Nunca.

MAX – Nem mesmo se ele o fizesse duas vezes? (Eileen abana a cabeça negativamente)
três vezes? (Eileen abana a cabeça negativamente) Cinco vezes? (Eileen abana a cabeça
negativamente) Dez vezes?

EILEEN – Nem sequer se ele me esmagasse os pés até eles sangrarem por todo lado
como um gaspacho andaluz.

MAX – Nem assim? Louvado.

EILEEN – Debil, patetico, desesperado.

MAX – Desculpa? Quero dizer – Pardón?

EILEEN – Tu percebeste: Debil, patetico, desesperado.

MAX – Isso é o nome de uma música?

EILEEN – Fraco, patético -

MAX - Essa eu percebi.

EILEEN – Desesperado.

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MAX – Não estás a ser lá muito carinhosa.

EILEEN – Fuerte, de gran alcance, masculino.

MAX – Isso também não soa lá muito bem.

EILEEN – Isso é o que tu devias ser. Fuerte, de gran alcance, masculino. Forte, poderoso,
másculo.

MAX – A tua pronúncia está realmente a melhorar, não está?

EILEEN – Mas em vez disso tu és debil, patetico, desesperado. Diz. Anda lá – diz. Debil.

MAX – De-bil.

EILEEN – Não. Debil.

MAX – Debil.

EILEEN – Boa. Patetico.

MAX – Patetico.

EILEEN – Demasiado fácil. Desesperado.

MAX – Desesperado.

EILEEN – Excelente. Desesperado. Desesperado. Absolutamente desesperado.

MAX – Estás me aqui a dar umas informações cruzadas, não estás?

EILEEN – Desemerda-te.

EILEEN CHEGA-SE A MAX A PROVOCÁ-LO.

MAX – Se tu o dizes amor.

EILEEN – Não me chames amor.

MAX – Como queiras a...(corrige-se) – morzinho.

EILEEN SOLTA UM GRITO EXASPERADO.

MAX – O que é o jantar?

EILEEN – Tu não mereces jantar.

MAX – Mas eu dancei bem.

EILEEN – Mas depois tu estragaste a...

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MAX – ao dizer aquela palavra?

EILEEN – Não. Tu estragaste tudo ao ser...

MAX – Ao ser o quê?

EILEEN – Tu.

MAX – Muito bem. Eu vou tentar não fazer isso da próxima vez.

EILEEN – Muito boa ideia. Devias tentar tentar ser menos “tu” com mais frequência.
MAX – Tá percebido.

EILEEN – Desculpa ser tão seca.

MAX – Estás a usar a palavra.

EILEEN – Mas eu estou... arrependida.

MAX – Não faz mal ser seca. Desde que o sejas num clima carinhoso.

EILEEN – Sabes que eu te ofereço sempre isso.

MAX – Dá próxima vez que eu te trincar os pés – eu não vou querer saber.

AS LUZES MUDAM PARA UM VERMELHO SANGUE DRAMÁTICO.

EILEEN – Isso.

MAX – E eu vou trincar, e trincar e trinar. Como se eu fosse um Matador num anillo de
toros.

EILEEN – Fuerte.

MAX – Eu vou trincar os teus dedinhos como se eles fossem pequenas laranjas, prestes a
rebentar. E mesmo que grites de dor, eu não vou parar.

EILEEN – Masculino.

MAX – (A bater os pés como um matador) Vou trincar, e trincar e trincar, enquanto eles
rebentam, e rebentam e rebentam.

EILEEN – De gran alcance.

MAX – E no final, quando estiveres ali deitada a esvair-te em sangue...

EILEEN – Sim?

MAX – Como o sangue que escorre do manto de S. José na pintura do grande Diego

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Velásquez -

EILEEN – O que é que vais fazer?

MAX – Eu vou olhar para ti enquanto desvaneces no chão -

EILEEN – Como uma rosa a murchar.

MAX – Os meus lábios levemente abertos -

EILEEN – Lábios vermelhos e cheios -

MAX – Olhar sedutor

EILEEN – Olhos negros e escuros -

MAX – O cabelo a esvoaçar ao vento indomável -

EILEEN – Cachos longos e escuros.

MAX – E eu vou dizer -

EILEEN – Sim, meu amor

MAX – Eu vou dizer -

EILEEN – Sussura-me, meu amor.

MAX – Eu vou dizer – nada.

EILEEN – (Arrebatada) Ah.

MAX – Eu vou esmagar as tuas mãos – duas vezes – cada uma – e sair da villa de
rompante, batendo com a porta.

EILEEN – Estoy en éxtasis erótico.

MAX – E isto não melhor do que pedir desculpa?

EILEEN – Oh sim, meu matador sensual!

MAX – Agora -

AS LUZES VOLTAM AO NORMAL

MAX – (A voz regressa ao normal) o que é o jantar?

EILEEN ESTÁ ROSADA E SEM AR, ELA PRECISA DE UM MOMENTO PARA


RECUPERAR.

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EILEEN – Espera um segundo.

LENTAMENTE, ELA PÕE-SE DE PÉ.

EILEEN – Eu vou só ver o pernil. Quero dizer, Jamon Serrano.

ELA SAI PARA A COZINHA.


O MAX SENTA-SE À MESA. ELE VOLTA A COLOCAR A ROSA COM JEITINHO NA
JARRA E ENDIREITA OS TALHERES E A LOIÇA LEVEMENTE, PARA APERFEIÇOA-
LOS.
OUVE-SE PANELAS E TACHOS A FAZER BARULHOS QUE CONTINUAM DURANTE
AS PRÓXIMAS FALAS.

MAX – (debaixo do barulho das panelas) como é que correu o ténis?

EILEEN – (debaixo do barulho das panelas) O que é?


MAX - (debaixo do barulho das panelas) eu perguntei como é que correu o ténis.

EILEEN – (debaixo do barulho das panelas) Não te ouço.

O BARULHO DAS PANELAS PÁRA DE REPENTE.

MAX – Estava só a indagar como tinha corrido o ténis hoje?

EILEEN – Bem.

MAX – Quem ganhou?

EILEEN – Nem me lembro.

EILEEN REGRESSA COM UM TABULEIRO CHEIO DE TACINHAS. ELA COLOCA-AS NA


MESA.

MAX – Ah as Tapas. Uma maneira perfeita de começar la cena – el menu del dia más
grande. Jantar – a melhor refeição do dia.

EILEEN – (pousando as tacinhas) Devo dizer que a tua pronúncia também está excelente.

MAX – Está tudo nos “c's” e nos “u's”. La cena. El menu.

EILEEN – Impressionante.

MAX – Finalmente uma coisa que eu faço bem.

EILEEN – Duas.

MAX – (orgulhosamennte) E o que seria a segunda, amor?

EILEEN – Dançar – claro.

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MAX – (cabisbaixo) oh claro.

EILEEN – Exceto quando dizes aquela palavra.

MAX – Sim. Agora – o que temos aqui?

EILEEN – Não te vou dizer. Quero que adivinhas.

MAX – Ah, que giro – que jogo apetitoso. (Pega numa tacinha) Ok, o primeiro é fácil.
Pequenos cubos de batata – cortados profissionalmente, devo dizer -

EILEEN – Obrigada – cheira.

MAX – (cheirando) com tomate e especiarias. São patatas bravas.

EILEEN – Correto. (Dando-lhe outra taça) E agora -

MAX – Isso são camarões.

EILEEN – Mas de que tipo?

MAX – Parecem -

EILEEN – Cheira.

MAX – (Ele cheira) Alho. Gambas al ajillo – ou como lhe chamamos – gambas ao alho.

EILEEN – Mais uma certa. - São gambas frescas.

MAX – Quase que sinto o cheiro a mar.

EILEEN – (Dá-lhe outra taça) Não fiques convencido, vai ficar mais difícil.

MAX – Que iguaria.

EILEEN – Oh pois é.

MAX – É uma omelete.

EILEEN – De que tipo?

MAX – Com batata e...

EILEEN – Fecha os olhos.

MAX – (Fecha os olhos e cheira) Cebola.

EILEEN – Acertaste.

MAX – Tortilla de patata.

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EILEEN – Oh esta era fácil.

MAX – Não, eu é que sou bom.

EILEEN – Pára Max. Tens é a mania. (Entrega-lhe uma taça) Agora esta.

MAX – Almôndegas espanholas.

EILEEN – Em...

MAX – Molho de tomate picante.

EILEEN – Ou seja?

MAX - Albondigas. Nem precisei de cheirar esse.

EILEEN – É muito esperto, mas é para o que lhe interessa. (Dá-lhe outra taça) Agora a
última.

MAX – Para o troféu. (Olha para a taça) Este é muito parecido.

EILEEN – Mas não é igual.

MAX – Ok. (Fecha os olhos, cheira) Leva tomate, alho e carne.

EILEEN – Que tipo de carne?

MAX – É vaca. Não, galinnha.

EILEEN – Tens a certeza?

MAX – É coelho! Ensopado de coelho!

EILEEN – Ou seja...

MAX – Estofado de conejo.

EILEEN – É essa a tua resposta final?

MAX – Sim.

EILEEN – Não! Errado, errado, errado. Ah ah apanhei-te. Pus-te a jeito e caíste na


esparrela. Tal como a cabra da Renee hoje no ténis.

MAX – Eu acertei quatro.

EILEEN – Ela achava que tinha o jogo ganho. Mas eu – eu dei-lhe uma coça. Aquela
obesa, condutora de BMW e ruiva falsa. Devias ter visto ela a tentar chegar ao meu
serviço com efeito. Como uma baleia. Uma baleia encalhada com pequenas barbatanas.

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A cara vermelha como um tomate, tal como o cabelo. As mamas quase a sair fora
daquele estúpido vestido branco. Ela de branco – pois sim, a esbracejar aquelas
barbatanas nojentas. (Faz barulho de baleia)

MAX – Eileen.

EILEEN – Sabes, eu ouvi que ela tem um caso com o rapaz que lhe veio consertar o
forno. Ele consertou mais que isso. O rapaz do forno. Ainda por cima era libanês! Ugh!

MAX - (alto) Querida!

EILEEN FICA EM SILÊNCIO

MAX - Fico feliz pro reviveres o grande triunfo de hoje, mas eu preciso mesmo de saber-
(segura a taça) o que é isto?

EILEEN – Oh, carne de vaca salteada, galinha e chouriço com um leve molho de tomate
adocicado.

MAX – Ropa vieja.

EILEEN – Demasiado tarde lingrinhas. O coelho fugiu da toca.

MAX – Da próxima já sei.

EILEEN – A próxima vez é para falhados – que é o que tu és! Ahaha!

EILEEN ESTÁ DE NOVO A POUCOS CENTÍMETROS DA CARA DO MAX.

MAX – Uh, querida?

EILEEN – Sim querido.

MAX – Tu pareces...

EILEEN – Sim.

MAX – Excitada, esta noite.

EILEEN – Deve ter sido do tango quente e forte. Fiquei toda entusiasmada. Então o que
vais fazer em relação a isso?

MAX – O jantar está na mesa.

EILEEN DEITA-SE EM CIMA DA MESA, ESPREMENDO-SE PELO MEIO DA TAÇAS.

EILEEN – E depois?

EILEEN ENFIA UMA MÃO DENTRO DE UMA DAS TAÇAS E TIRA-A CHEIA DE MOLHO

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DE TOMATE QUE ESCORRE PELO DEDO ABAIXO. ELA LEVANTA O DEDO EM
FRENTE À CARA DO MAX E COMEÇA A LAMBER O DEDO.

EILEEN – O que se passa? Não tens fome?

DE REPENTE TOCA O TELEFONE.

EILEEN – Deixa.

MAX COMEÇA-SE A LEVANTAR

EILEEN – ( agarra-o) Eu disse- deixa tocar. Estamos ocupados.

TELEFONE TOCA DE NOVO.

MAX - (Estrabucha para de soltar) Pode ser importante.

EILEEN DEIXA ESCAPAR UM BERRO FRUSTRADO. MAX ATENDE O TELEFONE.

MAX – (Atende) Sim./ Oh olá Yazz.

EILEEN FRENETICAMENTE FAZ SINAIS PARA O MAX NÃO DIZER QUE ELA ESTÁ EM
CASA.

MAX – Só a jantar./ Sim ela está aqui. Queres falar com ela?

EILEEN CONTINUA A FAZER SINAIS QUE NÃO QUER FALAR.

MAX – Querida é a Yasmine.

AINDA MAIS SINAIS DA EILEEN.

MAX – (para o telefone) Espera um pouco, Yazz. A tua mãe está a tentar dizer-me alguma
coisa. (Para Eileen) O que é querida?

EILEEN – Deixa lá.

EILEEN RELUTANTEMENTE AVANÇA E PEGA NO TELEFONE.

EILEEN – Olá querida. O que te disse sobre nos ligares a esta hora?/ Estamos a meio do
jantar. E se tivéssemos convidados? Muito constrangedor. Já te pedimos para teres mais
consideração./ Quando é que partimos? Na próxima terça. Porquê?/ Tu e o Rodney
querem vir connosco, que ideia adorável. Mas infelizmente não vai ser possível querida.
Completamente cheio./ Não, completamente. Outra pessoa tentou reservar o mês
passado e disseram-lhe (a gritar.) “Vai te lixar”./ Não querida, não podem fazer nada. Eles
apenas têm um certo número de lugares e por isso é que disseram a este casal (a gritar.)
“Desamparem-me a loja”./ Sim vai ser maravilhoso. Não te preocupes. Enviamos-te um
postal./ Porque não tentas Bali? Ouvi que ficou muito barato desde que aquelas pessoas
foram pelos ares./ (Faz sons de foguete a rebentar.) O que foi querida? Desculpa não te
consigo ouvir. Eu acho que a paella está a botar por fora. (Mais sons de foguete a

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rebentar.) Tenho de ir. Beijinhos ao Rodney. (Mais um foguete a rebentar) Adeusinho.

EILEEN DESLIGA O TELEFONE. ELA FITA O MAX.

MAX – Desss -

EILEEN – Não te atrevas a dizê-lo.

MAX – Sabes que eu tenho muita dificuldade a mentir.

EILEEN – Quem és tu? A Madre Teresa.

MAX – E nós falamos tão pouco com ela.

EILEEN – Quer dizer – tu. Ela liga-me três vezes ao dia. Todos os dias.

MAX – O que é que ela queria?

EILEEN – Oh nada.

MAX – Parecia ser alguma coisa.

EILEEN – Não era. Agora come – A tua tortilla está a ficar fria.

MAX – Querida, por favor – Eu quero saber o que ela disse.

EILEEN – (Sarcástica) Oh, adoro quando ficas agressivo. Ela queria vir na viagem.

MAX – A sério? Que maravilha.

EILEEN – Estás a gozar? Não a quero atrás de nós a fazer birras para baixo e para cima
em Benidorm.

MAX – Porque não?

EILEEN – Porque esta viagem é para mim. Quero dizer – Para nós. Para que tenhamos
algum tempo de qualidade – sozinhos. Sem stresses e sem dramas.

MAX - São só dez dias.

EILEEN – Dez dias de inferno com ela de arrasto.

MAX – É só porque eu podia vê-la -

EILEEN – Como disseste, são só dez dias.

MAX – Não podemos reconsiderar?

EILEEN – Não! N-ã-o. Se queres que eles vão podes ir sozinho. Eu fico atrás.

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PAUSA.

MAX – Eu achei que podia ser bom.

EILEEN – Bem, pensaste mal. Agora cala-te e coe as tuas almôndegas picantes.

MAX COMEÇA A COMER. PAUSA.

MAX – Acho que tens razão. Além disso, onde é que foram o dinheiro de repente?

EILEEN – O quê?

MAX - Para pagar a viagem? Muito repentino, não achas?

EILEEN – Oh, o Rodney tem sempre dinheiro.

MAX – Sim mas onde é que ele vai ao dinheiro?

EILEEN – Bem, ele trabalha bastante.

MAX – A fazer o quê?

EILEEN – Sei lá. Pergunta à Yasmine. A fazer entregas.

MAX – Sim, mas a entregar o quê? E a quem?

EILEEN – O que estás a insinuar, criatura?

MAX – Não estou a insinuar nada.

EILEEN – Não, eu conheço esse tom de voz. Estás definitivamente a insinuar.

MAX – Estou só a indagar se conheces algum “estafeta” que consegue repentinamente


meter as mãos em vinte mil dólares para uma viagem ao estrangeiro?

EILEEN – Talvez ele tenha poupado.

MAX – Desde quando? Foram a Byron Bay o mês passado. À Golden Coast no mês
antes desse.

EILEEN – Ele tem claramente um bom contrato.

MAX – Sim – mas com quem? Ou talvez essas viagens não fossem para férias. Talvez
estivesse a fazer alguma entrega internacional.

EILEEN – Nas férias? Não me parece que isso funcione assim.

MAX – Não? Transportar algum pacote castanho e pequeno para outro país?

SILÊNCIO. EILEEN OLHA PARA O MAX COM UM OLHAR GÉLIDO.

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EILEEN – Apenas recentemente comecei a reparar em como pequeno e cruel te tornas-
te. Pequeno e cruel.

MAX – É a única coisa que faz sentido.

EILEEN – Na tua mente pequena e pathetica. Pathetica.

MAX – Não tens simplesmente esse tipo de dinheiro por aí à mão de semear.

EILEEN – Débil.

MAX – A não ser – Tu própria disseste uma vez que a tua cabeleireira achava que o
Rodney -

EILEEN – Desesperado.

MAX – Pensa nisso!

EILEEN – Eu penso nisso se quiseres? Penso que o homem com que a nossa única filha
vive pode ser um traficante de droga. Penso que ela vive às custas dos seus ganhos
sujos. Penso que ela pode ter de sair do seu apartamento multimilionário com vista para a
praia de Bondi. Penso que ela pode ter de voltar a viver connosco!

PAUSA

MAX – Tens razão. Ele trabalha apenas para uma companhia fantástica.

EILEEN – Excelente companhia.

MAX – O ordenado aumenta todos os meses.

EILEEN – E férias!

MAX – Bónus chorudos.

EILEEN – Muito chorudos.

MAX – Sortudo do Rodney

EILEEN – Em ter patrões tão generosos.

MAX – Sortuda da Yasmine.

EILEEN – Sortudos somos nós. Mais sangria amor?

MAX – Pode ser. Deixa-me congratular-te novamente por esta excelente Ropa Vieja.
Verdadeiramente deliciosa.

EILEEN – Obrigada amor. Significa muito para mim ouvir-te dizer isso.

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MAX – O prazer é todo meu.

EILEEN – Não, não. É todo meu. Todo meu.

MAX – Talvez possamos rever o nosso itinerário novamente mais tarde?

EILEEN – Bela ideia.

MAX – Temos a hipótese de uma ida a Toledo ou a La Mancha no quinto dia.

EILEEN – Escolha difícil.

MAX – Muito.

EILEEN – Vamos pesar as duas hipóteses.

MAX – Bem Toledo tem a requintada Catedral e a igreja de San Tome, casa da obra-
prima de El Greco's “El Entierro del Conde de Orgaz”.

EILEEN - “Orgaz”. Parece imperdível.

MAX – Mas depois se apanharmos o comboio para La Mancha – Que é, claro, o famoso
local do romance épico de Cervantes - “Don Quixote”.

EILEEN – Esse é o que tem – (GESTICULA)

MAX – O cavaleiro velho que dá em doido.

EILEEN – Sim e os … (GESTICULA)

MAX – Moinhos.
EILEEN – E o … (GESTICULA DE NOVO)

MAX – O burrinho.

EILEEN – Escolha difícil.

MAX – Muito.
.
EILEEN – Não é bom que apesar das nossas pequenas diferenças de opinião -

MAX – Que são várias.

EILEEN – O laço que nos une ainda é forte e profundo.

MAX – Sim.

EILEEN – Um ódio absoluto pela nossa prole.

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MAX – Digamos antes um desejo para que eles se tornem independentes.

EILEEN – Que cortem o cordão umbilical.

MAX – Encontrem o seu próprio caminho.

EILEEN – E que não voltem para casa.

MAX – Sob nenhum motivo.

EILEEN – Amo-te fofo.

MAX – E eu a ti amor.

EILEEN – Tchim tchim.

BRIDAM E BEBEM.

MAX – Esta Tortilla é deliciosa. Ma-ra-vi-lho-sa.

EILEEN – Bota abaixo. Há mais na cozinha.

MAX – Não entendo como tens tempo de cozinhar um banquete destes. Com o ténis e -

EILEEN – Tennis.

MAX – E -

EILEEN – Tennis. Tu sabes eu arranjo um tempinho. E diz-me uma coisa amor, como foi o
teu dia?

MAX – Ocupado, ocupado.

EILEEN – E produtivo?

MAX – Muito, tenho praticado com umas pessoas no comboio.

EILEEN – Praticado?

MAX – A minha pronúncia.

EILEEN – A sério?

MAX – Sim.

EILEEN – Isso não é um pouco esquisito?

MAX – De todo. O castelhano é uma língua muito popular. Ficarias surpresa com a
quantidade de pessoas que sabem algumas palavras.

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EILEEN – Portanto, como é que tu fazes?

MAX – Bem, eu apenas escolho uma pessoa que aparente saber falar um pouco.

EILEEN – De castelhano?

MAX – Exatamente.

EILEEN – Onde?

MAX – No comboio.

EILEEN – Mas há alguém?

MAX – Normalmente.

EILEEN – Como... nos tornamos multiculturais.

MAX – Então eu colo-me a eles digo algumas palavras e já está.

EILEEN – Agora deixa-me ver se eu percebi. Tu simplesmente escolhes um pobre de


cristo no comboio que pareça vagamente -

MAX – Europeu.

EILEEN – E tu simplesmente te aproximas deles -

MAX ACENA COM A CABEÇA

EILEEN – E depois sussurras umas frases no seu ouvido mais próximo?

MAX – Surpreendentemente funciona bem.

EILEEN – Admira-me que não leves um soco na cabeça.

MAX – Os europeus são muito amigáveis. Sociáveis. Estão acostumados a isso.

EILEEN – Quer dizer que as pessoas apenas iniciam conversas com eles – nos
comboios?

MAX – Sim.

EILEEN – C'um caneco.

MAX - C'um caneco! Tive as mais fascinantes trocas de palavras. Ainda hoje estive a falar
com um português -

EILEEN – Português?

MAX – Muito parecido com o castelhano. É logo na porta ao lado. E nós tivemos a

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conversa mais extraordinária sobre o aniversário.

EILEEN – Aniversário?

MAX – Sim. Foi hoje – em Madrid.

EILEEN – O aniversário de quê? Independência, a guerra civil.

MAX – Não muito mais atual. A explosão. O país inteiro parou em comemoração solene -

EILEEN (chocada) – A quê?!

MAX – Explosão. no comboio. Em Madrid. Faz hoje dezanove anos.

EILEEN – Quão grande foi... Essa explosão?

MAX – Oh muito grande. Terrível de facto. Mais de cem pessoas morreram.

EILEEN – Na explosão?

MAX – No comboio. Só espero que não estivessem a caminho de La Mancha.

O MAX DÁ UMA GARGALHADA. PAUSA.

EILEEN – Eheh. Eu não acredito que ninguém me avisou disto antes.

MAX – Foram grandes notícias na altura. Em todos os jornais.

EILEEN – Tu sabes que eu não leio jornais. Demasiado deprimente.

MAX – E na televisão.

EILEEN – Tu sabes que eu não vejo televisão. Gosto de me manter na ignorância.

MAX – E na rádio.

EILEEN – Eu também não ouço rádio.

MAX – Tu ouves o Sidónio todas as manhãs.

EILEEN – Isso não conta, é o Sidónio Bettencourt.

MAX – Acho que este incidente não foi mencionado pelo Sidónio.

EILEEN – Ele sabe o que nós gostamos de ouvir.

MAX – Não querem ouvir falar de grandes eventos mundiais como este.

EILEEN – Completamente.

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MAX – Estraga-te a ida para o ténnis.

EILEEN – Completamente.

MAX – Tira-te o apetite.

EILEEN – Se tira.

MAX – Dá cabo do teu dia.

EILEEN – Ele sabe o que não deve dizer.

MAX – Tal como a bomba deu cabo do dia às pessoas que iam no comboio.

EILEEN – Não te armes em espertinho. Não te fica bem. (PAUSA) Eu não acredito que
não me contaste, quando é que me ias dizer este pequeno detalhe? Quando tivéssemos
a entrar no comboio – para Madrid.

MAX – Eu realmente achei que sabias.

EILEEN – Bem mas não. E da próxima vez agradecia que não ocultasses detalhes
históricos tão importantes.

MAX – Como uma atualização sobre a segunda guerra mundial?

EILEEN – Sobre isso já ouvi obrigada.

MAX – Acho que também houve uma primeira guerra mundial.

EILEEN – Pára de ser tão evasivo. Eu apenas tenho de saber sobre coisas que mexam
com a minha segurança. Especialmente em países onde as pessoas são detonadas em
comboios. (Levanta-se) Pergunto-me se é demasiado tarde para mudar a nossa viagem.
Acho que eles têm uma aventura de sete dias nos Alpes Suíços que me soa bem. Algum
comboio explodiu lá recentemente?

MAX – Eileen isso não mexe com a tua segurança.

EILEEN – Não foi o que os passageiros do comboio disseram à medida que os assentos
foram desaparecendo debaixo dos seus rabos.

MAX – Foi apenas uma bomba num comboio. E foi só porque um grupo terrorista queria
que Espanha retira-se as suas tropas do Iraque, o que acabou por acontecer quando o
governo mudou, por isso por agora não devem haver mais bombas nos comboios.

PAUSA. EILEEN OLHA PARA MAX.

EILEEN – Okay – nessa frase – da qual eu não percebi metade – mas o que eu percebi –
foi que nela existiam uma série de palavras emotivas. Essas palavras foram – terrorista,
Iraque, bombas, comboios, Espanha. Eu mencionei os terroristas? Pensei que ia para a
Costa Brava para uma fiesta seguida por uma siesta numa Villa na sonolenta, suculenta

21
Espanha – e agora descubro que estou a caminho de um dos maiores “focos mundiais”
para arriscar a minha vida num passeio emocionante num comboio armadilhado com
terroristas do Iraque.

MAX – Os terroristas não são do Iraque amor. São de Espanha.

EILEEN – Melhor ainda. O facto de não ser o Osama Bin Laden que rebentará comigo. É
o seu irmão – Sanchez. Vou certificar-me que me lembro disso enquanto a minha cabeça
é separada das minhas omoplatas.

MAX – Por favor amor, estás mesmo a exagerar.

EILEEN – Como é que eu estou a exagerar? Em oito dias estarei sentada num assento
que alguns dias antes foi enviado numa viagem só de ida para a lua – Juntamente com o
traseiro do seu antigo passageiro. Eu não estou a exagerar!

MAX – Por favor, acalma-te. Vem cá e senta-te. Anda.

MAX CONDUZ EILEEN A SENTAR-SE.

MAX – Bebe uma sangria.

EILEEN – Não, mais sangria não. Chianti (vinho italiano), apenas Chianti.

MAX – Então come umas tapas.

EILEEN – Não, não quero tapas. Um donut. Um belo e suculento donut.

MAX – Um pouco de pão.

EILEEN – Não – é pão de forma espanhol.

MAX – Água mineral?

EILEEN – É de Sevilha.

MAX – Laranja?

EILEEN – Valência.

MAX – Manteiga?

EILEEN – Não sejas estúpido. Não posso comer manteiga. Pensa no meu colesterol.

MAX – Okay então – Não comas nada. Senta-te e ouve-me. Com muita atenção. Agora tu
sabes – Eu digo sempre a verdade. Sempre. Eu acho muito difícil mentir.

EILEEN – Pois achas.

MAX – Uma mentira é uma coisa que eu não consigo proferir.

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EILEEN – Max honesto.

MAX – Por isso, vou-te explicar honestamente a questão da segurança em Espanha e se


ainda tiveres dúvidas – quaisquer receios – aí cancelamos a viagem – com muito custo
devo dizer – e vamos a Itália.

EILEEN – Não. Itália está muito perto de Espanha. Suécia. Eu quero ir à Suécia.
Agradável e fria. Demasiado fria para os terroristas suecos. Muita neve.

MAX – Mas ouve-me primeiro!

EILEEN – Não precisas de gritar.

MAX – Okay – eu não estou a gritar. Eu estou a falar com uma voz muito calma e racional
e estou a explicar o porque é que é suficientemente seguro irmos a Espanha. (PAUSA)
Ora bem, há muitos anos havia um governo conservador em Espanha -

EILEEN – Boa escolha, muito sensato.

MAX – Que apoiavam a guerra no Iraque -

EILEEN – Fizeram eles muito bem – muito boa ideia. Saddam Hussein era um louco.

MAX – Bem, eles apoiavam a guerra e enviaram tropas.

EILEEN – Tal como nós. Os nossos homens corajosos. A dar luta.

MAX – Exatamente – mas haviam algumas pessoas em Espanha -

EILEEN – Terroristas?

MAX – Terroristas espanhóis que não apoiavam a guerra no Iraque.

EILEEN – Porque não?

MAX – Não tenho bem a certeza – não acreditavam na guerra, ou pensavam que a guerra
era só por causa do petróleo, ou então achavam que a Espanha não tinha de se meter.

EILEEN – Fracotes.

MAX – Então eles – rebentaram com o comboio.

EILEEN – Bem, isso faz sentido. Não acreditas em violência então rebentas com um
comboio.

MAX – Bem, eles são -

EILEEN – Terroristas.

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MAX – De qualquer forma, esse atentado abalou muito as pessoas -

EILEEN – Tal como as mulheres que estavam a preparar um bom jantar para os seus
maridos e, de repente, descobrem que estes não voltarão para casa por as cabeças estão
em Madrid e as pernas estão em Córdoba.

MAX – E estava a aproximar-se as eleições e as pessoas começaram a culpar o Governo.

EILEEN – Não foi culpa deles.

MAX – Eles acharam que depois a investigação foi mal gerida. Haviam rumores de
encobrimento.

EILEEN – Quem é que liga a rumores? A não ser, claro, que sejam sobre a Renee, que no
caso dela provavelmente são verdade.

MAX – Por isso nas eleições elegeram um novo Governo.

EILEEN – Qual Governo?

MAX – Não tenho a certeza – acho que são socialistas.

EILEEN – Socialistas?

MAX – E devido a pressão pública eles retiraram as suas tropas do Iraque, o que deixou
os terroristas felizes, acho eu – ou talvez os tenham prendido – portanto, acabaram-se as
bombas. Nos comboios. Nunca mais.

EILEEN OLHA PARA MAX. PAUSA.

EILEEN – E tu queres que eu – vá para esse... país – de férias? Não só são governados
por socialistas como têm terroristas a vaguear pelas ruas – para não falar nos comboios –
mas depois cedem a esses terroristas, e retiram as suas tropas de países maus como o
Iraque, para que malucos como Saddam Hussein e Osama bin Laden possam sair ilesos
e consegam que mais terroristas cheguem a países bons como o nosso, e rebentem com
mais comboios, para que mais maridos não voltem a casa para o jantar, que elas
passaram uma hora e cinquenta e seis minutos a fazer. Já chega. Dá-me o telefone –
vamos trocar pela Suécia.

OUVE-SE UM BARULHO DE REMEXER DEBAIXO DELES, EILEEN VIRA A CABEÇA DE


REPENTE PARA A PAREDE DE FUNDO.

EILEEN – O que é foi isto?

MAX – O quê?

EILEEN – Este barulho. Ouvi qualquer coisa a mexer.

OUVE-SE NOVAMENTE.

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EILEEN – Lá está outra vez.

MAX – Eu não ouvi nada.

EILEEN – Sim. É um som diferente.

MAX – Ainda não o consigo ouvir.

EILEEN – Também estás a ficar surdo? Precisamos de ir ver esses ouvidos.

OUVE-SE O BARULHO MAIS FORTE.

EILEEN – C'um caraças! Este foi forte. Acho que vem da cave.

MAX – Eu nem sabia que tínhamos uma cave.

EILEEN – Bem, nós temos – e está alguma coisa lá em baixo. Alguma coisa que remexe.

MAX – Que engraçado, eu não sabia dessa cave. Onde é?

EILEEN – Idiota. É uma cave. Onde achas que é? É na cave.

NOVAMENTE UM SOM FORTE DE ALGO A REMEXER.

EILEEN – Parem. Parem com isso aí em baixo. Parem com esses barulhos.

MAX – Não, eu quero saber como chego lá? Já estiveste lá em baixo?

EILEEN – Estás a gozar? É uma cave. Eu não vou à cave. É fria e húmida e há coisas a
crescer lá em baixo.

MAX -Tenho pena de não ter sabido antes dessa cave. Podia tê-la transformado numa
bela adega. Em vez de ter colocado aquelas garrafeiras todas no antigo quarto do
Jeremy.

EILEEN – (Sussurrando) Cala-te. Pára de falar. O barulho pode ouvir-nos.

MAX – E depois?

EILEEN – Pode subir e atacar-nos.

MAX – Bem, e o que é que queres que eu faça?

EILEEN – O que achas? Quero que vás lá baixo e o mates.

MAX – Mas como? Se nunca estiveste lá em baixo e eu nem sequer sabia que tínhamos
uma – como é que eu entro lá?

EILEEN – (Apontando para a porta na parede de fundo) Não sejas tão estúpido. Por
aquela porta. No meio das pinturas do António Pedroso.

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MAX – Como é que sabes isso?

EILEEN – O eletricista veio outro dia verificar o contador e entrou por aquela porta. Agora
que penso nisso, eu não me lembro de ele ter voltado. Se calhar ainda está lá em baixo.
(Chama) Hei, tu – sai daí para fora. Acho que já tiveste tempo suficiente para verificar o
contador.

MAIS BARULHOS SUBTERRÂNEOS. NOVAMENTE MAIS FORTES.

EILEEN – Woah! Ouve este barulho. Agora tirámo-lo do sério. De certeza que nos vem
atacar.

MAX – Continuo sem o ouvir.

EILEEN – Tens de ter ouvido aquilo.

MAX – Provavelmente é só uma aranha.

EILEEN – Uma aranha bem grande.

MAX – Bem, acho que é melhor dar uma vista de olhos. (Saindo) Volto já.

EILEEN – Pára. Onde é que vais?

MAX – Vou precisar de uma tocha. Como disseste – está escuro lá em baixo. Há uma na
garagem.

EILEEN – Vais para a garagem e deixas-me aqui sozinha com aquela – coisa –
barulhenta.

MAX – De que adianta descer até lá baixo se nem vou conseguir ver o que é quando a
encontrar?

EILEEN DIRIGE-SE À MESA E ACENDE UMA VELA.

EILEEN – Aqui – leva isto.

MAX – Não era bem isto que eu tinha em mente.

EILEEN – Pega.

MAX PEGA NA VELA.

EILEEN – (Pega numa faca de manteiga) E nisto.

MAX – Que estás a fazer?

EILEEN – Não vais lá baixo desarmado.

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MAX – Como é que me posso armar se eu nem sei o que vou combater?

EILEEN – Pega nisto. Tudo o que sabemos é que é uma coisa que remexe. As facas são
boas contra coisas que remexem.

MAX – (Pega na faca) Especialmente se eu lhe quiser fazer uma sandes.

EILEEN – E agora pára de malandrar e vai lá e mata-o.

MAX – Pode ser um morganho ou um gato.

EILEEN – Então mata-o na mesma. E o que quer que seja – certifica-te de que não teve
bebés.

MAX – E se tiver tido?

EILEEN – Então mata-os também. Não quero uma infestação.

MAX – És muito cruel.

EILEEN – Estou a aprender.

MAX – (Engole em seco) Ok. Estou a ir.

ELE NÃO SE MEXE

EILEEN – Então vai.

MAX – Sim. Estou a ir. (Continua sem se mexer) Talvez me possas dar um
empurrãozinho.

EILEEN EMPURRA O MAX EM DIREÇÃO À PORTA.

ELES CHEGAM À PORTA E EILEEN RECUA. PAUSA.

MAX – Engraçado. Nunca sequer tinha reparado que esta porta estava aqui.

EILEEN – Pára de malandrar.

MAX – (Ainda não se mexe) Ok – cá vou eu. Estou a abrir a porta.

EILEEN – Então abre.

A TREMER O MAX ESTICA O BRAÇO E ABRE A PORTA. A PORTA RANGE AO ABRIR.

MAX – Tenho de arranjar um pouco de óleo para isto.

EILEEN – Pára de falar! Mexe esse cú por aí abaixo.

LENTAMENTE MAX ENTRA NA ESCURIDÃO PELA PORTA DENTRO.

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EILEEN – Não te esqueças de fechar a porta.
MAX – Tem mesmo de ser?

EILEEN – Queres que isso venha a remexer por aí acima?

MAX – (Apavorado) Suponho que tenhas razão.

LENTAMENTE MAX FECHA A PORTA ATRÁS DE SI.

EILEEN DÁ UM ENORME SUSPIRO DE ALÍVIO. VAI-SE SENTAR.

ELA OLHA PARA UMA DAS TIJELAS. LENTAMENTE AGARRA UMA. OLHA PARA A
COMIDA NO SEU INTERIOR E CHEIRA.

ELA GOSTA DO CHEIRO E PEGA NUM GARFO. ELA PROVA A COMIDA. SOLTA UM
PEQUENO SUSPIRO DE PRAZER E COMEÇA A DEVORAR A COMIDA.

RAPIDAMENTE ESVAZIA A TAÇA E AGARRA NOUTRA.

DE REPENTE A PORTA RANGE E ABRE LEVEMENTE.

EILEEN – De volta tão cedo?

A PORTA PÁRA DE ABRIR. EILEEN CONGELA ATERRORIZADA.

EILEEN – Max - És tu? (silêncio. Eileen engole em seco) Max?

A PORTA ABRE-SE REVELANDO MAX PARADO NA PORTA COM A FALA AINDA NA


MÃO MAS SEM VELA.

ELE PARALISA POR UM MOMENTO. DE SEGUIDA ENTRA DE FORMA LENTA E


PESADA NA SALA.

EILEEN – Fecha a porta! Fecha a porta!

MAX VIRA-SE LENTAMENTE E FECHA A PORTA.

EILEEN – Então mataste-o?

MAX NÃO RESPONDE.

EILEEN – Max – não há nada na tua faca. Esmagaste-o com os pés? Mostra-me as tuas
solas.

MAX CONTINUA SEM RESPONDER.

EILEEN – Max, amor. Fala comigo. O que é?

MAX – Há algo lá em baixo.

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EILEEN – Não brinques. O que é?

MAX – Não tenho a certeza.


EILEEN – Queres dizer que fizeste caminho todo até lá baixo e não descobriste o que é?

MAX – É algum tipo de animal – acho eu.

EILEEN – Como é que sabes isso?

MAX – Eu cheguei até meio das escadas e ouvi um...

EILEEN – Um remexer.

MAX – Não. Ouvi um...

EILEEN – Um quê? (Agarra a faca e segura-a contra a garganta dele) Pelo amor de Deus
diz-me o que ouviste!

MAX – Hummm... um gemido. Fiquei quem tão surpreendido que deixei cair a vela.

EILEEN – Deixaste cair a vela? Agora vamos ficar estorricados como um frango de
churrasco.

MAX – Rolou pelas escadas e apagou-se. Estava tão escuro que não conseguia ver nada
– então decidi voltar para trás.

EILEEN – Missão não cumprida.

MAX – Dá-me um segundo e volto a descer.

EILEEN – O que é que geme? Gatos, cães? As aranhas gemem?

MAX – Não me parece.

EILEEN – Se calhar aquelas muito grandes. Se calhar é uma muito grande a gemer
porque não come ninguém há mais de uma semana.

MAX – Acho que não é uma aranha. Soava...

EILEEN – Como um animal, já disseste isso.

MAX – Não, soava... soava -

EILEEN – (Pega outra vez na faca) Desembucha.

MAX – Humano.

EILEEN – Eu disse-te que era o eletricista.

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MAX – Eu acho que não é o eletricista.

EILEEN – Então não é humano. Mais ninguém foi lá abaixo.

MAX – Mas não é o eletricista.

EILEEN – Como podes ter tanta certeza?

MAX - Porque – eu tenho mesmo que voltar lá abaixo?

EILEEN – Numa palavra – sim. E não olhes para mim assim. Se tivesses feito tudo como
deve de ser da primeira vez, eu não precisava de te mandar de volta para o território
inimigo.

MAX – Fazes com que isto pareça uma missão ultra secreta.

EILEEN – E é. Uma missão ultra secreta na nossa cave, onde nenhum homem antes se
atreveu a ir. Exceto o eletricista.

MAX – E eu.

EILEEN – Exatamente. Vais deixar a missão por cumprir. Não? Volta lá para baixo!

MAX – (breve pausa) Posso comer um pouco da omelete antes de voltar a descer?

EILEEN - Ups! Desculpa- comi tudo. Ainda há algumas gambas ao alho.

MAX – Só um pouco de água.

EILLEN DÁ UM COPO DE ÁGUA AO MAX. MAX BEBE.

MAX – Obrigado. Vela.

EILEEN ACENDE OUTRA VELA E DÁ A MAX.

EILEEN – Confere. Faca?

MAX – (pegando na faca) Confere.

EILEEN – Agora. Vai te a ele grandalhão.

MAX CAMINHA COM DIFICULDADE LENTAMENTE EM DIIREÇÃO À PORTA. ASSIM


QUE A ALCANÇA TRANSFERE A FACA E A VELA PARA A MESMA MÃO E ABRE A
PORTA.

A PORTA ABRE LENTAMENTE CHIANDO.

O MAX ATRAVESSA A PORTA E OLHA PARA EILEEN.

EILEEN – Boa sorte. E não deixes cair a vela desta vez. É a última.

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MAX FECHA A PORTA ATRÁS DE SI.

EILEEN BRINCA COM A TIGELA DAS GAMBAS COM ALHO. ELA COLOCA UM NA
BOCA.

EILEEN – Ehhh. Demasiado gorduroso.

ELA POUSA A TAÇA. COMEÇA A CANTAROLAR A MÚSICA QUE DANÇARAM


ANTERIORMENTE.

LENTAMENTE LEVANTA-SE E COMEÇA A REVER OS PASSES DO TANGO,


CANTAROLANDO.

PÁRA DE REPENTE, COMO SE OUVISSE ALGO.

ELA VAI EM BICOS DE PÉS ATÉ À PORTA E ENCOSTA A ORELHA. OUVE


INTENSAMENTE, MOVE A ORELHA PELA PORTA COMO SE SEGUISSE OS SONS.

O MAX ENTRA DA COZINHA, DE NOVO SEM VELA MAS A SEGURAR A FACA.

ELE OBSERVA EILEEN POR ALGUM TEMPO E DEPOIS:

MAX – Voltei.

EILEEN GIRA DE REPENTE E AO FAZÊ-LO DESIQUILIBRA-SE E CAI NO CHÃO.

MAX CHEGA AO PÉ DELA E AJUDA-A.

EILEEN – Então?

MAX NÃO RESPONDE, VAI ATÉ À MESA E SENTA-SE. SERVE-SE DE UM COPO DE


ÁGUA.

EILEEN – Encontraste alguma coisa?

MAX ACENA AFIRMATIVAMENTE COM A CABEÇA.

EILEEN – (A rebentar de ansiedade) que coisa é que é?

MAX – Não é uma “coisa”.

EILEEN – Bem, então o que é?

MAX – É uma ela.

EILEEN – Eu sabia. Uma gata vadia daqui de roda - no cio - rastejou para dentro da
nossa cave para parir os seus pequenos roedores.

MAX – Não é uma gata.

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EILEEN – Então uma cadela rafeira dos arredores. Já disse à Câmara para os juntar
todos e abatê-los.

MAX – Não.

EILEEN – Não é uma ratazana pois não? Uma ratazana cinzenta e imunda a despejar a
sua prole maligna.

MAX – Receio que não.

EILEEN – Então que diabo é? Um hipopótamo pigmeu que rastejou para fora do esgoto.

MAX – É uma mulher.

EILEEN ESTÁ CHOCADA. RECUA LENTAMENTE E SENTA-SE NUMA CADEIRA.

EILEEN – U... u... uma. Mu-...mu...lher?

MAX – Sim.

EILEEN – Quem é ela e como é que entrou na cave?

MAX – Não sei. Ela não falou. Acho que estava demasiado assustada.

EILEEN – Eu também estaria assustada se estivesse lá em baixo. Bem, como é que ela
era?

MAX – Difícil de dizer. Só lhe consegui ver a cara. Parecia bastante nova, com trinta e
poucos anos, mas os olhos pareciam velhos – como se tivesse uma grande mágoa.

EILEEN – Estar fechado na nossa cave provocaria a qualquer um uma grande mágoa.
Mas o que é que achas? É alguma mendiga daqui? De qualquer modo devo dizer que
nunca pensei que fossem tão comuns por estes lados. É uma drogada? Um segredo
sombrio de um dos vizinhos, a filha perdida que saiu dos eixos. Não descartaria nehuma
hipótese. (DE REPENTE) Jesus! Ela não é... não é...

MAX – Não é o quê?

EILEEN – É tão assustadoramente assustador que eu nem consigo dizer a palavra.


(Sussura) Uma terrorista?

MAX – Não me parece.

EILEEN – Sim, mas como é que sabes. Como pode qualquer um de nós saber? Aqueles
socialistas no comboio em Espanha sabiam? Ela pode ter uma (SUSSURRA) bomba.

MAX – Uma quê?

EILEEN – (GRITA) Bomba! Se ela tem uma bomba diz-lhe que este é o lugar errado. A

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estação de comboios é dois quarteirões à esquerda mais abaixo. Ou diz-lhe para ir
rebentar a casa da Renee. Eu dou-lhe a morada. (AGARRA UM LÁPIS) Na verdade, até
lhe desenho um mapa.

MAX – Não acho que ela seja uma terrorista e não acho que tenha uma bomba.

EILEEN – Sim, mas como é que sabes?

MAX – Foi a sensação que tive quando estive lá em baixo – perto dela.

EILEEN – Quão perto?

MAX – Perto o suficente. Eu não acho que ela nos queira magoar.

EILEEN – Pois, mas como é que tu sabes – com certeza? Estás armado em maricas
agora Max? Sabes o que acontece quando ficas assim? As pessoas aproveitam-se. És
usado, abusado e depois assassinado. Ou rebentam-te em niscas com a bomba dela.

MAX – Foi só uma sensação.

EILEEN – E desde quando é que tens “sensações”? Então o que lhe disseste para fazer?
“Põe-te a andar.” “Some-te da minha frente”.

MAX – Não disse nada. Não tenho a certeza se ela fala a mesma língua.

EILEEN – Ela é estrangeira. Então está resolvido – é definitivamente uma terrorista.

MAX – Podes parar de dizer isso? Ela não é uma terrorista.

EILEEN – Dizes tu.

MAX – É apenas uma mulher muito aterrorizada a precisar de ajuda. Eu desci as escadas
lentamente, desta vez, certificando-me que não deixava cair a vela. Cheguei lá abaixo e
olhei em volta. Levantei a vela para tentar iluminar a cave. É um espaço bastante grande.
Deve ocupar o tamanho todo da casa. Espanta-me nunca ter percebido que aquela
divisão estava ali.

EILEEN – Sim, sim, estavas a levantar a vela.

MAX - Foi então que a vi – no canto. Um grande objeto escuro, a remoer.

EILEEN – Hã, hã. Remexer. Eu disse-te que era remexer.

MAX – No início eu achei que poderia ser um cão ou uma ratazana.

EILEEN – Uma ratazana?

MAX – Eu não estava a pensar direito, o meu coração estava a bater demasiado
depressa, pensei que ia morrer.

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EILEEN – (À PARTE) Não tenho dessas sortes.

MAX – O quê?

EILEEN – (VOLTA-SE SORRINDO) Continua amor.

MAX – Mas fosse o que fosse eu sabia que tinha de descobrir. Não podia voltar cá para
cima sem saber o que era, podia?

EILEEN – Certinho, senão eu tinha-te matado.

MAX – Então eu persisti, passos pequenos – um a seguir ao outro – em direção ao canto.


Então à medida que me aproximava ouvi um som. Ao início pareceu-me um guinchar de
um cão -
EILEEN – Queres dizer, ratazana?

MAX – Estava em sofrimento. Fiquei petrificado mas continuei -

EILEEN – Tão corajoso.

MAX – Foi então que percebi que o som não era um guincho. Era uma voz – uma voz
humana – a sussurrar – numa língua que não percebi.

EILEEN – Vês! É uma terrorista.

MAX – Então percebi que o sussuro não era um sussurro – era uma oração. Ela estava a
rezar.

EILEEN – A Santanás! Há provavelmente um alçapão para o inferno lá em baixo.

MAX – De repente, apercebi-me que ainda estava a segurar a faca. Estúpido. Se ela a
visse, o que iria pensar? Iria assustá-la ainda mais. Então pousei a faca.

EILEEN – Mesmo quando ainda nem sabias se era uma mulher, podia ser o própria
Sanchez Bin Laden.

MAX – Portanto, pousei a faca e levantei a vela até à minha cara para que ela pudesse
ver os meus olhos. É a forma que comunicas quando não consegues usar palavras. É
através do olhar.

EILEEN – Podia ter só segurado um sinal - “Terrorista – Vai para casa!”

MAX – Foi então que aconteceu. À vela em frente à minha cara a iluminar os meus olhos.
Ela deve ter sentido alguma coisa em relação a mim – alguma coisa pacífica -

EILEEN – Debil.

MAX – E de repente ela levantou a cabeça e olhou para mim. Os nossos olhares
cruzaram-se – e nesse momento a comunicação fluiu entre nós – muito mais do que as
palavras poderiam dizer.

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EILEEN – Até parece que gostas dela.

MAX - “Não tenhas medo, não te vou magoar”. Foi que os meus olhos disseram. “Estou
assustada, preciso de ajuda” foi o que olhos dela responderam.

EILEEN – O que estás praí a dizer toleirão?

MAX – Os nossos olhos. Estávamos a falar através do olhar. “Eu sou um amigo. Eu vou
ajudar-te.”

EILEEN – Nunca ouvi tanta tolice.

MAX – Tudo comunicado naquele milésimo de segundo de encontro de olhares.

EILEEN – Tu gostas mesmo dela.

MAX – Depois, não havia mais nada a dizer. Já tínhamos dito o suficiente. Ela entendeu-
me e eu entendi-a. Então pousei a vela no chão para a deixar ca om alguma luz.

EILEEN – E com alguma coisa para largar lume à casa.

MAX – E voltei cá para cima.

EILEEN – Tal como o mariquinhas merdoso que tu és.

MAX - O que mais havia de fazer?

EILEEN – Ser um Homem. Fuerte, de gran alcance, maculino. Agarra-la por uma orelha e
atira-la para o meio da rua.

MAX – Mas porquê? O que ela fez?

EILEEN – Está na nossa cave – e não deveria estar.

MAX – (COMEÇA A DESPEJAR AS TAÇAS PARA UM PRATO) Ela está assustada e


vulnerável.

EILEEN – Perfeita para arrumares com ela.

MAX – Ela precisa de comida e abrigo. Um toque de bondade humana.

EILEEN – Fraco, fraco, fraco. Dá-lhe um pontapé no cú.

MAX – Não lhe vou dar um pontapé no cú, ou em qualquer outra parte do corpo.

EILEEN – Que estás a fazer?

MAX – Vou lhe levar comida e água.

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EILEEN – Não vais não. (AGARRA A FACA) Se não és homem suficiente para te livrares
dela – então vou eu.

MAX – Não a vou expulsar – e tu também não.

EILEEN – Vou sim. A esgravatar na nossa cave – temos de nos livrar dela. Tem de ser
feito e sou eu que o vou fazer.

MAX – Eileen – por favor!

EILEEN – Tenta impedir-me.

DE REPENTE BATEM COM FORÇA NA PORTA DA FRENTE.

EILEEN – Estás à espera de alguém?

MAX – Não.

EILEEN – Talvez seja o seu ajudante terrorista a fazer um ataque frontal.

MAX – Não sejas ridícula. Aqui no interior?

EILEEN – Primeiro infiltra-se pela nossa cave para nos dar uma falsa sensação de
segurança e depois tentam surpreender-nos pela porta da frente.

MAX – Se nos querem surpreender porque estão a bater à porta?

EILEEN – Faz tudo parte do seu plano astuto e maléfico.

BATEM OUTRA VEZ.

MAX – Eu vou lá.

EILEEN – Deixa bater. Astuto e maléfico.

MAX – Escuta, ela não é uma terrorista. Nem quem quer que esteja a bater à nossa
porta.

EILEEN – Como podes ter a certeza?

MAX – Como podes tu? Sê racional.

EILEEN – Estes são tempos irracionais e perigosos.

MAX – Então pensa nas hipóteses. A hipótese de ser alguém que conheças – como a
Renne ou o senhor Reed, o vizinho do lado ou até o Jeremy -

EILEEN – O que é que ele vinha fazer aqui?

MAX – Ele é nosso filho.

36
EILEEN – Nós expulsámo-lo - há 6 meses atrás. Aquele malandro vadio.

MAX – Bem, talvez ele tenha aparecido para jantar.

EILEEN - Mais uma razão para não abrir a porta.

MAX – Ok. Provavelmente não é o Jeremy.

EILEEN – Então estamos de acordo – São terroristas.

MAX – Ok – não vamos abrir a porta.

EILEEN – Exatamente. Vamos apenas sentar-nos aqui, calma e tranquilamente, e esperar


que se vão embora. E depois a gente vai lá abaixo e corta o pescoço daquela cabra.

BATEM OUTRA VEZ.

MAX CAMINHA NA TENTATIVA DE IR ABRIR A PORTA, E A EILEEN BLOQUEIA-LHE O


CAMINHO. MAX DESVIA-SE E VAI PELO OUTRO LADO. EILEEN MOVE-SE
RAPIDAMENTE E BLOQUEIA-LHE O CAMINHO NOVAMENTE.

MAX VOLTA A TENTAR CONTORNÁ-LA PELO OUTRO LADO NOVAMENTE. EILEEN


MOVE-SE NOVAMENTE E EM SIMULTÂNEO O MAX SALTA PARA O OUTRO LADO E
CORRE PARA A PORTA.

EILEEN É DEMASIADO RÁPIDA PARA ELE E BLOQUEIA-O. MAX TENTA ESCAPAR


DELA E EILEEN ATIRA-SE A ELE COM UMA FACA.

MAX AFASTA O BRAÇO DELA E A EILEEN ATIRA-SE A ELE OUTRA VEZ. DESTA VEZ
MAX AGARRA O BRAÇO DELA E TORCE-O PARA TRÁS DAS COSTAS E TIRA-LHE A
FACA DA MÃO.

DEPOIS ELE ATIRA-A PARA O CHÃO.

EILEEN – Wow! Essas aulas de defesa pessoal estão dar frutos.

MAX (HUMILDEMENTE) Obrigado.

MAX VAI ATÉ À PORTA.

ANTES DE MAX CHEGAR À SAÍDA, O HOMEM DE NEGRO ENTRA. COMO O SEU


NOME SUGERE, ELE ESTÁ VESTIDO COMPLETAMENTE DE PRETO.

BOTAS PRETAS BRILHANTES, CALÇAS, CAMISOLA DE LICRA DE GOLA ALTA JUSTA,


LUVAS E CARREGA UMA BOLSA PRETA. CABELO PENTEADO PARA TRÁS E TINTA
PRETA DE CAMUFLAGEM NA CARA.

MAN IN BLACK - Desculpem. Estava farto de esperar e por isso meti a porta dentro.
Espero que não se importem.

37
MAX – Quem és tu?

HOMEM DE NEGRO – Eu sou o Homem de Negro.

EILEEN – Pois, não podias ser o homem verde alface, pois não?

HOMEM DE NEGRO – O meu nome não é importante. A vossa situação sim.

EILEEN – Ouviste falar da nossa situação?

HOMEM DE NEGRO – Vocês deviam ter chamado imediatamente.

EILEEN – Agora é que soubemos.

HOMEM DE NEGRO – Não há desculpa – mas não tenham medo. Eu estou aqui.

EILEEN – Porque é que estás vestido de tartaruga ninja?

HOMEM DE NEGRO – (ORGULHOSO) Isto é a minha farda de intervenção.

EILEEN – Onde é o motim?


HOMEM DE NEGRO – Na vossa cave, aprentemente.

MAX – Peço desculpa, mas...

EILEEN – E voltou a fazê-lo. Alguém arromba a tua porta e pedes-lhe desculpa. Patetico.

MAX – Eu não disse “desculpa” em termos de “desculpa”. Eu disse no sentido de


“perdão”.

EILEEN – Então se queres dizer “perdão”, diz só “perdão”.

HOMEM DE NEGRO – Desculpem mas nós não temos tempo para esta briga doméstica
insignificante -

EILEEN – Dizes tu.

HOMEM DE NEGRO – Vocês têm uma situação – e eu estou aqui para a resolver.

MAX – Peço perdão -

EILEEN – Está melhor.

MAX – como é que te chamas?

HOMEM DE NEGRO – Os nomes não são importantes – Eu sou o homem que veio
resolver a vossa situação. Chamem-me “Homem Resolvedor de Situações”.

MAX – E qual seria exatamente essa situação?

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HOMEM DE NEGRO - Não quero saber de brincadeiras. Sabes muito bem qual é a
situação. Tiveste um contacto com uma M.N.I. Nós acreditamos que ela possa ser uma
P.T.

MAX – M.N.I.? P.T.?

HOMEM DE NEGRO – Mulher Não Identificada. Potencial Terrorista.

EILEEN – Vês. Eu disse-te. (PARA O HOMEM DE NEGRO) Eu disse-lhe.

MAX – Mas como é que sabes que ela é uma P.T.?

HOMEM DE NEGRO – Senhor, nestes tempos irracionais e perigosos-

EILEEN – Ei, foi também o que eu disse.

HOMEM DE NEGRO – Toda a gente pode ser terrorista. Devemos permanecer atentos e
alerta.

EILEEN – Eu achava que devíamos estar relaxados e confortáveis.

HOMEM DE NEGRO – Exceto quando estás atento e alerta.

MAX – Pára com isso! Se toda a gente pode ser terrorista, então deves assumir que nós
também podemos ser terroristas.

EILEEN – Max. O que é que estás a dizer?

MAX – Ou, já agora – podes ser um terrorista.

HOMEM DE NEGRO – Deixe-me avisá-lo senhor, você está a ser anti-patriotico.

EILEEN – (CHOCADA) Anti-patriotico!

MAX – Eu sou tão anti-patriotico como tu.

HOMEM DE NEGRO – Ha há! Então admite?

MAX – Admito o quê?

HOMEM DE NEGRO – Que tem participado em atividades anti-patrioticas?

MAX – Tipo o quê?

HOMEM DE NEGRO – Como conspirar com a P.T. na sua cave.

MAX – Não conspirei nada.

HOMEM DE NEGRO – Ou dedicou-se a outras atividades subversivas?

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MAX – Não me dediquei a nada.

EILEEN – Bem, eu comi três gambas ao alho.

MAX – Cala-te Eileen. Estou apenas a seguir a tua lógica.

HOMEM DE NEGRO – Senhor, vivemos numa monarquia constitucional. Não há lógica.


Só há uma questão – você é terrorista?

MAX – Não.

HOMEM DE NEGRO – (VAI EM DIREÇÃO DE EILEEN) E quanto a esta M.N.I.? Ela é


terrorista?

EILEEN – (UM POUCO ENTUSIASMADA) Depende de quem está a perguntar.

MAX – Essa é a minha mulher.

HOMEM DE NEGRO – Tem a certeza de que ela não é uma terrorista? Ela tem os olhos
sensuais e a pele bronzeada de uma tentadora terrorista.

EILEEN – Obrigada – Eu jogo muito terrorista. Quero dizer – tenis.

HOMEM DE NEGRO – Ela poderia estar a trabalhar à paisana para subsurgentes


inversivos. Quero dizer insurgentes subversivos.

EILEEN – Não, é só ténis.

HOMEM DE NEGRO – Calou!

EILEEN – Ai Jesus, isso foi demasiado agressivo. De gran alcance.

HOMEM DE NEGRO – Que língua é essa? Isso parece espanhol.

EILEEN – Não é espanhol. Eu odeio espanhol. Eu nunca falaria espanhol.

ELA COMEÇA A CUSPIR COMO SE LIVRASSE A BOCA DAS PALAVRAS.

HOMEM DE NEGRO – Eu posso precisar de levar esta M.N.I. para interrogatório.

MAX – Qual interrogatório?

HOMEM DE NEGRO – Não se preocupe. (SORRINDO) É só umprocedimento.

MAX – Olha, esta é a minha mulher Eileen Bortam. Eu sou Max Bortam – o seu marido e
esta é a nossa casa. E ela não é uma M.N.I. A M.N.I. está na nossa cave.

HOMEM DE NEGRO – Ah ah! Então você tem uma M.N.I. em casa?

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MAX – Sim, mas ela só é uma M.N.I. porque ainda não sabemos quem ela é.

HOMEM DE NEGRO – Tem a certeza de que ela não é uma P.T.?

MAX – Sim.

HOMEM DE NEGRO – Quanta certeza?

MAX – Muita certeza.

HOMEM DE NEGRO – Cem por cento de certeza?

MAX – Cem por cento.

HOMEM DE NEGRO – Cem por cento – cem por cento?

MAX – Não, claro que não é cem por cento – cem por cento. Mas é muito pouco provável.

HOMEM DE NEGRO – Para mim é suficiente.

O HOMEM DE NEGRO POUSA O SACO E ABRE O FECHO. COMEÇA A RETIRAR


ALGUNS OBJETOS.

MAX – O que estás a fazer agora?

HOMEM DE NEGRO – A preparar o meu equipamento. A preparar-me para um pequeno


ataque de “Choque e Terror”.

O HOMEM DE NEGRO TIRA UM TACO DE CRIQUETE.

MAX – É um taco de criquete.

HOMEM DE NEGRO – É um E.T.

EILEEN – E.T.?

HOMEM DE NEGRO – Exterminador de Terroristas.

MAX -(APONTA PARA UM CABIDE) E então e isto?

HOMEM DE NEGRO – I.I.?

EILEEN – Sou toda ouvidos.

HOMEM DE NEGRO – Identificador de Insurgentes.

MAX – Não, não é. É só um cabide.

HOMEM DE NEGRO – Não se deixe enganar, seu tonto.

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EILEEN – É isso, chega-lhe!

O HOMEM DE NEGRO TIRA DO SACO UMA ESPÁTULA DE COZINHA.

MAX – Oh vá lá, isso é só uma espátula.

HOMEM DE NEGRO – Isto – seu canalha lambe sanitas, é um M.M.S. patenteado.

MAX – M.M.S.? Mais tralha...

EILEEN- (DOCEMENTE) Não lhe ligues. O que significa?

HOMEM DE NEGRO – Mata-Moscas para Subversivos.

MAX – Agora estás só a ser tolo.

HOMEM DE NEGRO – Posso assegurar-lhe senhor. Estou tão longe de se tolo quanto um
tolo pode ser. Agora – ao trabalho.

O HOMEM DE NEGRO PEGA NA ESPÁTULA, NO CABIDE E NO TACO DE CRIQUETE.

HOMEM DE NEGRO – Onde se encontra M.N.I.?

EILEEN APONTA PRONTAMENTE PARA A PORTA DA CAVE.

HOMEM DE NEGRO – Obrigado senhora. Vou desfrutar mais da sua companhia no meu
regresso.

EILEEN – (Ronrona) – Estou ansiosa por isso.

MAX CORRE PARA A PORTA E BLOQUEIA O CAMINHO DO HOMEM DE NEGRO.

MAX – Não. Não vou deixar que uses essas coisas nela. Ela não fez nada.

EILEEN – Ignora-o. Ele tem um fraquinho por ela.

HOMEM DE NEGRO – Senhor, está a agir de uma forma incendiária e obstrutiva.

EILEEN – Não está, ele perdeu as duas velas.

MAX – E qual é a utilidade de lhe bater com um taco de criquete?

HOMEM DE NEGRO – Senhor, você não está a conseguir compreender as complexas


subtilezas desta situação.

MAX – Que são?

HOMEM DE NEGRO – Usando a forma mais intrincada de subterfúgio, esta M.N.I.


insinuou-se a si no referido local (ou seja, a sua cave), e aproveitou-se do seu fraco
estado emocional para tirar proveito da sua natureza humana gentil, embora ingénua.

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EILEEN – Bem dito.

MAX – O que quer dizer?

HOMEM DE NEGRO – Sai da minha frente que eu vou matar a cabra.

EILEEN – Tem imenso jeito com as palavras.

MAX – (BARRANDO A PORTA) Não. Eu não vou deixar.

HOMEM DE NEGRO – Senhor, asseguro-lhe que se me continua a impedir de atingir o


meu objetivo, não hesitarei em utilizar este E.T. em si primeiro.

EILEEN – Ele quer dizer o taco de criquete.

MAX – Eu sei o que ele quer dizer.

PAUSA. MAX AFASTA-SE RELUTANTEMENTE.

HOMEM DE NEGRO – Obrigado.

EILEEN – Boa sorte nosso bravo herói. Estaremos a rezar por ti.

O HOMEM DE NEGRO ATRAVESSA A PORTA E FECHA.


EILEEN CORRE PARA A PORTA PARA OUVIR.

DESTA VEZ OUVIMOS A BOTAS PESADAS DO HOMEM DE NEGRO A DESCER AS


ESCADAS. DEPOIS HÁ UM MOMENTO DE SILÊNCIO.

DE SEGUIDA OUVE-SE O HOMEM DE NEGRO A GRITAR AO INICIAR O SEU ATAQUE.


OUVIMOS O TACO A BATER NO CRÂNIO, OSSOS E PELE, INTERCALADO COM
CHAPADAS DA ESPÁTULA E O SOM DO CABIDE – TUDO A ALTA VELOCIDADE.

MAX – Ele está a matá-la.

MAX CORRE PARA A PORTA E TENTA ABRI-LA.

MAX – Ele trancou-a. (PARA EILEEN) Ajuda-me.

EILEEN – Cala-te. Estou a tentar ouvir.

DE REPENTE HÁ UM ALTO BERRO FINAL DO HOMEM DE NEGRO E O SOM DE UMA


ATERRORIZANTE CROCÂNCIA.

EILEEN – Ooooohhh – Isso deve doer.

SILÊNCIO

MAX – Acabou.

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EILEEN – Bem – aquilo serviu de lição.

MAX CAMBALEIA PARA LONGE DA PORTA.

A PORTA PARA A CAVE ABRE COMPLETAMENTE PARA TRÁS E MOSTRA O HOMEM


DE NEGRO – EMBORA AGORA SEJA MAIS HOMEM DE VERMELHO E PRETO.

A ROUPA E A CARA ESTÃO AGORA SALPICADAS COM SANGUE VERMELHO VIVO.


ESCORRE TAMBÉM SANGUE DO TACO DE CRIQUETE E DO CABIDE NAS SUAS
MÃOS. A ESPÁULA ESTÁ ENFIADA NO CINTO.

EILEEN – (DERRETIDA) O herói conquistador regressa!

MAX – O que foste fazer?

MAX PASSA E EMPURRA O HOMEM DE NEGRO E VAI PARA CAVE.

EILEEN – (MOVENDO-SE EM DIREÇÃO À MESA) Deseja alguns aperitivos pós-batalha?

HOMEM DE NEGRO VAI ATÉ À MESA. SENTA-SE.

EILEEN OFECE-LHE O PRATO DE TAPAS E UM GRANDE COPO DE SANGRIA.

O HOMEM DE NEGRO METE A COMIDA NA BOCA COM AS MÃOS, DEPOIS BEBE UM


GRANDE GOLO DE SANGRIA.

EILEEN – OoooH, estás todo suado e... o que é essa coisa vermelha?

HOMEM DE NEGRO – (ORGULHOSAMENTE) Sangue.

EILEEN – Sangue e suor. Tão valente.

O HOMEM DE NEGRO ENGOLE MAIS COMIDA. SORRI LASCIVAMENTE PARA


EILEEN. EILEEN DÁ RISINHOS E PENDURA-SE NO OMBRO DELE. PASSANDO OS
DEDOS PELO SANGUE QUE ELE TEM NA CARA.

EILEEN – Forte, maculino, silencioso. (OFERECE FRUTAS) Aqui, experimenta estes


melões acabados de cortar. E este figo maduro.

MAX REAPARECE NA PORTA ABERTA DA CAVE. ELE CAMBALEIA DE VOLTA À SALA.


SILÊNCIO, EXCEPTO O BARULHO QUE O HOMEM DE NEGRO FAZ A COMER A
EMBORCAR.

MAX – (EVENTUALMENTE) Ela está morta.

EILEEN – Uh querido. Que estavas à espera? Que ele fosse lá abaixo fazer-lhe uma
surpresa.

MAX – O que lhe vai acontecer agora?

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EILEEN – O que é que isso interessa?

MAX – Não podemos simplesmente deixá-la lá em baixo, temos de a enterrar.

O HOMEM DE NEGRO OLHA PARA CIMA.

HOMEM DE NEGRO – Max, não nos vais falhar agora, vais?

EILEEN – Eu disse a mesma coisa. (VERIFICAR ONDE ELA DISSE ISTO)

HOMEM DE NEGRO – Estes são tempos complexos, MAX. Tempos complexos. O que é
necessário é cabeça de pedra e coração frio.

MAX – Não queres antes dizer cabeça fria e coração de pedra?

HOMEM DE NEGRO – Ou isso. O que não precisamos agora é que a pessoas comecem
a falhar.

MAX – Mas há uma mulher morta na minha cave.

HOMEM DE NEGRO – Isso – como dizem – não é problema meu. Obrigada pela
jantarada. Vou bazar.

O HOMEM DE NEGRO LEVANTA-SE SUBITAMENTE. EILEEN, QUE ESTAVA


PENDURADA NELE, ESCORREGA PARA O CHÃO.

HOMEM DE NEGRO – Vou bazar. Obrigado pela jantarada.

EILEEN – Não. Não vás. Nós ainda não... te mostrámos o quão gratos estamos.

HOMEM DE NEGRO – Não é necessário gratidão. (PARA O MAX) Que lhe sirva de lição.

MAX – Uma lição de quê?

HOMEM DE NEGRO – Isso é para tu saberes e eu descobrir.


EILEEN – Para mim foi um prazer, para nós uma honra.

O HOMEM DE NEGRO VAI PARA A PORTA. PÁRA.

HOMEM DE NEGRO – Mais uma coisa.

ELE VAI ATÉ AO GRAMOFONE E BAIXA A AGULHA.

O HOMEM DE NEGRO COLOCA A ESPÁTULA DA COZINHA ENTRE OS DENTES


COMO SE FOSSE UMA ROSA, E ESTALA OS DEDOS PARA EILEEN.

EILEEN VOA ATÉ ELE, A MÚSICA COMEÇA E ELES DANÇAM O TANGO.

ESTE É MAIS SEXY E APAIXONADO DO QUE OS ESFORÇOS ANTERIORES DA

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EILEEN E DO MAX. UMA DANÇA DE LUXÚRIA E CALOR.

EILEEN APROVEITA TODAS AS OPORTUNIDADES DE ESFREGAR O CORPO E AS


MÃOS NO HOMEM DE NEGRO DE MODO A QUE FIQUE TAMBÉM COBERTA DE
SANGUE.

A DANÇA ACABA COM O HOMEM DE NEGRO A MERGULHAR EILEEN. ELE TIRA A


ESPÁTULA DA BOCA.

HOMEM DE NEGRO – Deixo isto contigo.

ELE ENFIA A ESPÁTULA NA BOCA DELA.

HOMEM DE NEGRO – Pelo sim, pelo não.

O HOMEM DE NEGRO DÁ-LHE AGORA UM LONGO BEIJO.

MAX – Isso é a minha mulher!

HOMEM DE NEGRO – É um homem de sorte.

O HOMEM DE NEGRO LEVANTA EILEEN E GIRA-A PELA SALA. ELA PÁRA,


ESTENDIDA CONTRA A PAREDE COM RESPIRAÇÃO OFEGANTE.

HOMEM DE NEGRO – Agora – vão à merda.

O HOMEM DE NEGRO PISCA-LHE O OLHO E SAI.

EILEEN LENTAMENTE ESCORREGA PELA PAREDE, CORADA E OFEGANTE.

MAX – Gostaste?

EILEEN – Sem dúvida.

MAX – Assim que isso te passar. Chega aqui e dá-me uma mão. Vamos enterrá-la no
jardim.

EILEEN - Eu não vou tocar naquela cabra nojenta.

MAX – Diz o roto ao nú.

EILEEN – O que queres dizer com isso?

MAX – Esquece.

MAX MOVE-SE EM DIREÇÃO À PORTA DA CAVE. HÁ UM SOM DISTANTE E FRACO


DE GUERRA.

MAX – (PÁRA) O que é isto?

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EILEEN – Desculpa, são as minhas coxas a tremer.

MAX – Não, ouve, parece...

OS SONS DE GUERRA AUMENTAM.

EILEEN – Não ouço nada.

MAX – Então cala-te e ouve.

DE REPENTE A PAREDE DA CAVE CAI PARA A FRENTE.

OS SONS DE GUERRA INTENSIFICAM – TIROS.

FOGO DE ARTILHARIA, CHORO DE FERIDOS, EXPLOSÕES.

O FUMO CAI SOBRE O PALCO ONDE ESTAVA A PAREDE, FILTRANDO A LUZ VERDE
FRACA.

ATRAVÉS DO FUMO PODEMOS VER OS RESTOS CARBONIZADOS DE UM CAMPO


DE BATALHA – ÁRVORES, TRINCHEIRAS, CORPOS E MAQUINARIA.

EILEEN – (POR CIMA DOS SONS DE GUERRA) O que aconteceu à cave?

MAX AVANÇA E ESPREITA PELA LUZ VERDE OBSCURA.

MAX – Não sei.

EILEEN - E o que é aquilo no jardim.

MAX – Parece uma praia e uma colina rochosa.

EILEEN – E o que aconteceu ao coreto??

MAX – Não sei.

EILEEN – Achas que o nosso seguro cobre isto? Pergunto-me se eles classificariam isto
como um ato de Deus - “campo de batalha aparece repentinamente na sala de estar”.
(TOSSE) E esta fumarada toda? Cheira a...

MAX – Pólvora.

EILEEN – Eu ia dizer carne queimada.

MAX - Sshhhhh! Vem aí alguém.

EILEEN – Ou talvez pólvora misturada com carne queimada.

MAX – Cala-te! Acho que é...

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UMA FIGURA EMERGE ATRAVÉS DO CAMPO DE BATALHA FUMENGANTE EM
DIREÇÃO A ELES.

MAX – Olha é... é...

A FIGURA ESTÁ AGORA A APROXIMAR-SE. PODEMOS AGORA VER QUE É O


HOMEM DE NEGRO MAS AGORA VESTIDO COMO UM JOVEM SOLDADO.

ESTÁ VESTIDO COM O UNIFORME DA ANZAC DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E


USA UM CAPACETE DE LATA.

ELE MANCA DE UMA PERNA, A OUTRA PERNA ESTÁ PRETA E ENSAGUENTADA


DEVIDO A UMA FERIDA NO JOELHO. ESTÁ PENDURADA DE MANEIRA FROUXA. ELE
USA A ESPINGARDA COMO MOLETA PARA SE SEGURAR.

ELE DÁ UM PONTA-PÉ NOS ESCOMBROS DA PAREDE E ENTRA DENTRO DA SALA


DE ESTAR.

OS SONS DE GUERRA DESVANECEM.

O SOLDADO OLHA EM REDOR. RETIRA O CAPACETE E OLHA PARA O MAX.

MAX – Jeremy?

O SOLDADO POUSA A ESPINGARDA, VAI ATÉ AO MAX E ABRAÇA-O.

SOLDADO - Pai.

EILEEN – Quando é que o Jeremy se alistou?

O SOLDADO DEIXA O MAX E VAI ATÉ A EILEEN.

MAX – Da última vez que o vi estava a trabalhar numa loja ao pé da estação.

O SOLDADO ABRAÇA EILEEN.

SOLDADO – Mãe.

EILEEN – Eu não sabia que ele trabalhava lá.

MAX – Ele pediu-me para não te dizer.

EILEEN – Porque não?

MAX – Ele achava que ias pensar que ele era um fracasso.

EILEEN – Eu já pensava que ele era um fracasso.

MAX – Ele achou que ias pensar que ele era um fracasso ainda maior.

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EILEEN – Isso seria muito difícil.

SOLDADO – Estão todos mortos.

MAX – O que é que disseste filho?

SOLDADO – Todos eles. Mortos.

O SOLDADO SENTA-SE NO CHÃO. ELE PEGA NUM CANTIL E ABRE-O.

EILEEN – (A referir-se ao cantil) Não bebas disso. Uma central de doenças. Deixa me
arranjar-te um copo.

EILEEN VAI ATÉ A MESA E SERVE UM COPO DE ÁGUA AO SOLDADO.

MAX – Quem é que está morto filho?

SOLDADO – Jimmy, Terry, Pete comprido.

EILEEN – Quem são esses?

MAX – Devem ser amigos da escola.

EILEEN – Ou drogadinhos lá da loja.

EILEEN OFRECE ÁGUA AO SOLDADO. ELE DERRUBA O COPO DA MÃO DELA PARA
O CHÃO.

SOLDADO – (A derrubar o copo) Fomos vítimas de uma emboscada.

MAX – Quem fez a emboscada?

SOLDADO – Baixa-te!

O SOLDADO AGARRA MAX E METEU NO CHÃO

SOLDADO – Eles sabiam que vinha-mos, estou vos a dizer. Eles sabiam! Nojentos.
Montaram-nos uma emboscada.

EILEEN – Talvez ele tenha jogado demasiados video jogos. Eles dizem que o halo2 é
bastante imersivo.

MAX – (PARA EILEEN) Sssh! (PARA O SOLDADO) Continua filho.

SOLDADO – O Johnny Turco estava na colina, a nossa espera.

EILEEN – Ele disse turcos? Eu pensei que eles viviam na Turquia.

SOLDADOS – Nós eramos como patos. A sair dos barcos, a tropeçar uns nos outros, a
cair na areia. Caçaram-nos um a um. Eu vi-os a morrer, todos eles. Fui atingido abaixo do

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joelho. Não sinto a perna. Achas que a vão cortar? Ouvi dizer que cortavam se não a
sentisse.

EILEEN – A Turquia está do lado do Saddam?

MAX – Podes estar calada? Continua Jeremy.

SOLDADO – Mas eu continuei em frente. Rastejei pela praia, arrastando a minha perna
morta atrás de mim. Mantive a cabeça baixa. As balas rebentavam à minha volta. Passei
por cadáveres. Gajos com as pernas arrebentadas. Cabeças abertas. Sangue e miolos
por todo o lado. Depois as balas diminuíram e a artilharia ficou mais silenciosa. Então as
balas pararam. Pus- me de joelhos e olhei para traz – A praia estava cheia de cadáveres.
Os meus camaradas. Rebentados pelos ares. Eu não ia voltar atrás, estás me a ouvir? Eu
não ia voltar atrás!

SOLDADO É DOMINADO PELAS LÁGRIMAS. ELE ENCOSTA-SE AO MAX.

EILEEN – Acho que vi essa batalha na CNN.

MAX – Não vais estar calada?

SOLDADO – Então continuei a rastejar até sair da praia. Nunca olhei para trás. Continuei
a avançar lentamente, até que, finalmente, era noite e eu estava muito longe daquele
lugar.

MAX – Jeremy, tu desertas-te?

EILEEN – Eu disse que ele não prestava.

SOLDADO – Não lhe podes chamar isso. Eles estavam mortos. Não percebes? Todos
eles. Se eu continuasse também estaria morto. Apenas mais um morto com a cara
enfiada na areia. O que havia bom nisso?

MAX – Ouve filho, eu sei que é difícil mas quando te alistaste – independentemente do
porquê de te teres alistado – prometeste servir o teu país – venha o que vier. Nos altos e
baixos, nos bons e maus momentos.

EILEEN – Tal e qual como no casamento.

MAX – Não podes simplesmente abandonar as coisas quando elas ficam difíceis.

EILEEN – Bem dito Max! (PARA O SOLDADO) e tu ouve-o merdinhas ou eu uso o


exterminador de terroristas em ti.

MAX FAZ GESTOS PARA EILEEN SE CALAR.

SOLDADO – Não me obriguem a voltar. Vocês não podem me obrigar!

MAX – Filho, o que tu fizeste chama-se desertar. Se eles te encontram -

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EILEEN – E eles vão porque nós vamos dizer onde é que tu estas.

MAX – Eles podem levar-te a concelho de guerra e até executar- te. É assim que queres
ser lembrado?

EILEEN – Pensa na minha reputação e na do teu pai. Nunca mais vamos poder erguer a
cabeça no bingo.

SOLDADO – Vocês não me podem obrigar a voltar. Eu mato-vos se me obrigarem a


voltar.

O SOLDADO AGARRA A ESPINGARDA E APONTA-A PARA MAX, ENCOSTANDO-SE À


PAREDE.

MAX – Credo, ouve-me.

SOLDADO – Não pai. Eu juro. Eu amo-te mas, não me podes obrigar a voltar.

EILEEN – Então e eu? Tu não me amas. Por isso mexe esse rabo daqui para fora.

SOLDADO – Tu também mãe. Eu amo-te, mas mato-te se tiver que ser.

EILEEN – Ele disse que me amava. Mata-o. Não é o Jeremy. É um impostor.

MAX – (INDO EM DIREÇÃO AO SOLDADO) Baixa a arma. Tu não nos vais matar.

SOLDADO – Afasta-te de mim.

EILEEN – (EMPUNHANDO A ESPATULA DE COZINHA) Talvez devesse usar o mata-


moscas nele.

MAX – (PARA EILEEN) Arruma isso. Tudo bem filho. Nós compreendemos.

EILEEN – Não, não compreendemos coisíssima nenhuma. O menino faz o favor de voltar
para a guerra! Ou então, eu não sei como esta coisa funciona mas assim que descobrir
eu – eu dou-te uma cacetada.

MAX – Eileen, cala-te. Nós compreendemos. (APROXIMANDO-SE DO SOLDADO) Agora


baixa só a...

EILEEN – (PARA O MAX) Oh estou a entender (APROXIMANDP-SE DO SOLDADO) Isso


mesmo querido. Nós compreendemos. É como o teu primeiro dia de escola. A tua primeira
grande batalha. Muito assustadora.

SOLDADO – Afastem-se.

MAX PARA MAS EILEEN CONTINUA.

EILEEN – Nós compreendemos filho. Nós não te iríamos obrigar a voltar para que
fizesses um dói-dói. Vamos manter-te aqui, seguro e quentinho. Vamos fazer-te uns

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ovinhos mexidos e uns feijõezinhos guisados. Tu sempre gostaste disso. E umas gomas
de soldadinho – tal como tu.

EILEEN ALCANÇA O SOLDADO E COMEÇA A ACARICIAR A CARA E O CABELO DO


SOLDADO, ACALMANDO-O.

EILEEN – Pronto, pronto. Estás com a mamã agora. Seguro e quentinho. Aquele nojento
Johnny Turco já não te vai fazer mal. AH HA!

EILEEN DE REPENTE TIRA A ARMA AO SOLDADO E APONTA-A A ELE, MAS ELA


APONTA A CORONHA PARA O SOLDADO E A PONTA PARA SI.

EILEEN – Agora volta para a guerra malandro!

MAX – Eileen não puxes o gatilho.

EILEEN – Onde é que é isso?

MAX – Está quieta um segundo.

EILEEN FICA MUITO QUIETA. O MAX VAI ATÉ ELA E TIRA-LHE A ESPINGARDA. ELE
VIRA A ESPINGARDA E VOLTA A COLOCAR NAS MÃOS DELA, AGORA A APPONTAR
PARA O LUGAR CERTO.

EILEEN – Ok- agora já posso disparar?

MAX – Bem, ele é nosso filho.

EILEEN – Talvez. Sempre quis disparar em alguém – Só para sentir como seria. Tal como
aquela música daquele gajo.

MAX – Qual gajo?

EILEEN – Johnny...

SOLDADO – Turco? Estás a conspirar com ele.

EILEEN – Não tolo, não é o Johnny Turco. Johnny... alguma coisa a ver com dinheiro. Um
homem velho, mas com o cabelo ainda preto. Deve pintá-lo.

MAX – Cash.

EILEEN – Johnny Cash, é isso. (A CANTAR) “I shot a man in Reno, just to watch him die.”
Ou, no meu caso “I shot my son in a living room, just to see how it feels”. O que é que te
parece?

DE REPENTE, DÁ-SE UMA PANCADA FORTE DEBAIXO DO PALCO.

EILEEN – Que merda foi esta?

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SOLDADO – Eles encontraram-me. Tu disseste-lhes onde eu estava.

MAX – Isto não me parece artilharia.

UM SOM DE PANCADA AINDA MAIS FORTE DEBAIXO DO PALCO.

EILEEN – Parece que vem da cave.

MAX – Mas nós já não temos uma cave.

O BARULHO DE NOVO, MAIS FORTE AINDA.

SOLDADO – Abriguem-se!

O SOLDADO RASTEJA PELO CHÃO E ESCONDE-SE DEBAIXO DA MESA.

EILEEN – Parece que alguém está a subir as escadas.

MAX – Sim, mas quem?

BARULHO NOVAMENTE, CONTINUA FORTE.

EILEEN – Talvez ela não...

MAX – Não, ela estava, definitivamente... o seu corpo estava naquele canto, a sua cabeça
estava no outro, e as pernas estavam (APONTA PARA CIMA)...

EILEEN – Dispenso pormenores.

BARULHO NOVAMENTE, MAIS FORTE.

SOLDADO – Não me apanham, sacanas. Eu não vou morrer por aqueles traidores.

O SOLDADO COMEÇA A CANTAR “WALTZING MATILDA” CALMAMENTE PARA SI.

EILEEN – O que quer que seja, está cada vez mais perto.

BARULHO DE NOVO, AGORA MUITO PRÓXIMO. A MOLDURA DA PORTA PARA A


CAVE COMEÇA A ESTREMECER.

MAX – Talvez ela não estivesse...

EILEEN – Esperemos que estivesse, ou ela vai estar muito, muito, lixada...

BARULHO DE NOVO, MUITO FORTE E PERTO, A MOLDURA ESTREMECE


NOVAMENTE.

MAX – Está quase aqui.

EILEEN – Não te preocupes, já a topei.

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EILEEN APONTA A ARMA PARA A PORTA.
EILEEN – (CANTA) “I shot a black bitch in the iving room, just to see how she bleeds.”

UMA PANCADA FINAL ESTRONDOSA. TODO O PALCO PARECE TREMER.

SILÊNCIO, EXCETO PELO CANTO DO SOLDADO.

A MULHER APARECE NA OMBREIRA DA PORTA. É INDÍGENA AUSTRALIANA NA


CASA DOS TRINTA, MAS USA UM CHADOR PRETO, DA CABEÇA AOS PÉS.

A ÚNICA PELE QUE VEMOS É O ROSTO, QUE ESTÁ COBERTO DE SANGUE, QUE
ESCORRE DE UMA FERIDA NO TOPO DO CRÂNIO.

SOLDADO – (A GRITAR) Jesus Cristo, salva-nos.

EILEEN – Ora porra, esta cabra estúpida ainda está para as curvas.

MAX – Como? Eu via...

EILEEN – É evidente que não.

A MULHER VIRA A CABEÇA LENTAMENTE, EXAMINANDO A SALA.

EILEEN – (APONTA A ARMA) Pára a, querida. Agora volta para o buraco de onde vieste.

A MULHER DÁ UM PASSO EM DIREÇÃO AO CENTRO DA SALA.

EILEEN – Estou-te a avisar. Nem mais um passo. Esta espingarda vem de longe e eu sei
usá-la – agora.

A MULHER DÁ OUTRO PASSO.

MAX – Ah querida, ela deu mais um passo.

EILEEN – Eu sei, eu sei. (PARA A MULHER) Esta é a tua última oportunidade. Volta lá
para baixo.

A MULHER DÁ OUTRO PASSO.

MAX – Talvez ela -

EILEEN – Cala-te – estou ocupada! (PARA A MULHER) Esta é a última vez que te aviso.

A MULHER DÁ OUTRO PASSO

EILEEN – Okay - mas não te esqueças – tu é que pediste. Aguenta a minha mão Johnny!

A EILEEN FECHA OS OLHOS E PUXA O GATILHO. A ARMA DISPARA E ACERTA NA


MULHER.

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O SOLDADO TAPA OS OUVIDOS, ENCOLHIDO DEBAIXO DA MESA, TRAUMATIZADO
PELO TIRO.
A MULHER PARECE NÃO SER AFETADA. ELA DÁ MAIS UM PASSO.

EILEEN – O que aconteceu?

MAX – Eu acho que falhaste.

EILEEN – Eu não falhei.

MAX – Talvez ela já esteja morta.

EILEEN – Como assim?

MAX – Não a podes matar se ela já estiver morta.

EILEEN – Se ela já está morta, o que é que está a fazer na nossa sala?

A MULHER DÁ OUTRO PASSO.

EILEEN – Docinho! Ela está a aproximar-se. (ELA PUXA O GATILHO DE NOVO. NADA
ACONTECE) Porque é que não está a funcionar?

MAX – Tens de recarregar.

EILEEN – E como raio é que eu faço isso?

MAX – Puxa a coisinha para trás.

EILEEN – O quê??

MAX – A coisinha!

EILEEN – Que se dane isto tudo. (LARGA A ARMA E EMPUNHA A ESPÁTULA) Vou usar
o mata-moscas.

A MULHER AGORA LEVANTA OS BRAÇOS, COM AS PALMAS VIRADAS PARA O CÉU.

EILEEN – O que é que ela está a fazer agora?

MAX – Não sei.

EILEEN – Oh querida, pareces um estendal foleiro.

AGORA A MULHER COMEÇA A GIRAR EM CÍRCULO, LENTAMENTE. ELA COMEÇA A


CANTAR UMA MÚSICA SUAVEMENTE – A LÍNGUA É DIFÍCIL DE IDENTIFICAR. PODE
SER EM ÁRABE OU UMA LÍNGUA INDÍGENA.

EILEEN – Que diabo está ela a fazer agora?

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MAX – A cantar. Acho eu.

EILEEN – Que música de merda. (DÁ UM GRITO) Pára com isso, estás-me a ouvir?
Estás a tornar o nosso serão desagradável!

MAX – Cala-te.

OUTRA PAUSA.

EILEEN – Não senhora, não ficar aqui a ouvi este blá-blá-blá terrorista. Vou sacar da
artilharia pesada, que me deu o Homem de Negro em pessoa –

EILEEN SEGURA A ESPÁTULA FIRMEMENTE COM AS MÃOS.

MAX – O que estás a fazer? Ela vai reparar.

EILEEN – Quem não arrisca não petisca.

DE REPENTE, EILEEN SOLTA UM GRITO DE GUERRA E CORRE EM DIREÇÃO À


MULHER.

ELA ALCANÇA A MULHER E GRITA NOVAMENTE, DEPOIS ESPANCA-A NAS COSTAS,


E NOS LADOS COM A ESPÁTULA, VÁRIAS VEZES.

MAX – Bem, não serve de nada.

A MULHER PÁRA DE CANTAR E BAIXA OS BRAÇOS.

MAX – Uuups! Ela parou de cantar. Isto não vem coisa boa.

A MULHER VIRA-SE LENTAMENTE E ENFRENTA A EILEEN.

A EILEEN ATIRA COM A ESPÁTULA.

EILEEN – (APONTA PARA O MAX) Foi ele. Foi ele!

O SOLDADO PÕE-SE DE PÉ DURANTE ISTO E CHAMA A MULHER. NOVAMENTE, A


LÍNGUA É DIFÍCIL DE COMPREENDER.

SOLDADO – Esposa. Amante. Irmã.

EILEEN – Agora Jeremy, não te metas nisto.

A MULHER VIRA-SE PARA O SOLDADO. ELA RESPONDE NA MESMA LÍNGUA.

MULHER – Eu sonhei contigo, e agora regressaste.

SOLDADO – A tua memória manteve-me vivo.

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EILEEN – Oi? Que diabo de língua é essa?

O SOLDADO VAI ATÉ À MULHER, ABRAÇA-A E BEIJA-A APAIXONADAMENTE.

EILEEN – (A VER) Ugh... Eu não acho isso muito saudável. Sabes quantos tipos
diferentes de doenças é que ela tem?

O BEIJO TERMINA E O SOLDADO E A MULHER VIRAM-SE.


MULHER – Vem irmão, eu te guiarei.

SOLDADO – Eu te seguirei.

A MULHER SEGURA-O E JUNTOS SAIEM LENTAMENTE PELO CAMPO DE BATALHA.

EILEEN E MAX VÊEM-NOS A PARTIR. APÓS ALGUM TEMPO:

EILEEN – (A CHAMAR POR ELES) Não se esqueçam do preservativo.

A MULHER E O SOLDADO DESAPARECEM NO FUMO DO CAMPO DE BATALHA.

EILEEN E MAX FICAM QUIETOS DURANTE ALGUM TEMPO.

MAX – Bem, está feito.

EILEEN – Yup. Está feito.

MAX – E pelo menos encontrou uma boa rapariga.

EILEEN – Yeah, ela pode estar morta, ser uma terrorista e falar uma língua esquisita –
mas hey, ninguém é perfeito.

LENTAMENTE VIRAM-SE PARA O PÚBLICO, LEVANTAM AS CADEIRAS E SENTAM-SE


À MESA.

EILEEN – Sangria?

MAX – Sim.

EILEEN SERVE DOIS COPOS DE SANGRIA, DÁ UM A MAX, LEVANTAM OS COPOS E


BRINDAM.

EILEEN E MAX – Tchim-tchim.

ELES BEBEM.

MAX – Então, o que achas?

EILEEN – Sobre?

MAX – A viagem do quinto dia? Toledo ou La Mancha?

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EILEEN – Hey, espera um segundo. Olha lá para fora. Através do jardim. As rochas, a
praia.

MAX – O que é que tem?

EILEEN – Cancela a fiesta espanhola e chama o agente imobiliário. O nosso preço


acabou de duplicar, temos vista para o mar!

MÚSICA DE TANGO, MAX E EILEEN INICIAM A POSE DE TANGO.


MAX – Eu amo-te Eileen.

EILEEN – E eu amo-te Max.

ELES BEIJAM-SE E FRISAM. AS LUZES E APAGAM-SE LENTAMENTE.

ATRÁS DELES O CAMPO DE BATALHA ENEVOADO BRILHA COM UM VERDE


FANTASMAGÓRICO, ACOMPANHADO PELA MÚSICA DE TANGO.

AS LUZES DO CAMPO DE BATALHA APAGAM-SE LENTAMENTE.

BLACKOUT

FIM DA PEÇA

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