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CONTA-ME ENTRE AS MEDUSAS

EMANUEL MADALENA
MARIA (a irmã mais nova)
JOÃO (a irmã do meio)
ALEX (o irmão mais velho)
A MÃE
MARIA MAIS NOVA
JOÃO MAIS NOVA
JÚLIA
DALILA
VELHO

O género não é destino, pelo que também o destas personagens pode ser alterado ou omitido,
com os devidos ajustes (exceto o d'A MÃE). Já as idades das personagens foram deixadas
intencionalmente vagas, admitindo também eventuais adaptações, e pode usar-se qualquer versão
da canção que ecoa para lá dos auscultadores de MARIA.
MARIA MAIS NOVA e DALILA aparecem com auscultadores semelhantes aos de MARIA,
assim como JOÃO MAIS NOVA e JÚLIA aparecem com o cabelo da mesma cor garrida e
artificial do cabelo de JOÃO. O penteado pode ser diferente.
O traço no final de uma fala sugere uma interrupção pela seguinte. A ênfase é indicada pelo
sublinhado, enquanto o itálico assinala as citações presentes no texto (de Chico Buarque, Luiza
Neto Jorge, Andreia C. Faria, Rui Lage, Virgílio Ferreira, William Faulkner e Luljeta Lleshanaku),
mas não as paráfrases (a começar pelo título, que altera um verso de Yvette K. Centeno).

-1-
A enseada tornou-se excêntrica – pela primeira
vez em anos, hoje as medusas
pululam no mar, avançam calma e gentilmente, pertencem à mesma
companhia: AURELIA, vagueiam sem rumo
como flores depois de um enterro no mar, se as tirares da água a sua forma inteira
desaparece, como quando
uma verdade indescritível é arrancada ao silêncio e expressa em gelatina morta,
sim, elas são
intraduzíveis, devem permanecer no seu próprio elemento.

Tomas Tranströmer – Baltics


(excerto)

Mas o que é que eu sei,


o que sabe um sobrevivente sobre a arte de viver,
quando são necessários novos instintos, novos músculos
e outros tipos de válvulas cardíacas?

Luljeta Lleshanaku – Homo Antarcticus (excerto)

-2-
Uma praia ao anoitecer. O mar ronrona, calmo. Inúmeras medusas deram à costa, pequenas e luminescentes.
Algumas estão espalhadas pela discreta ondulação, outras vertidas no começo da areia. MARIA ouve música com
uns auscultadores e olha o céu, ora a olho nu, ora curvada perante um telescópio, que vai tentando regular, sem
sucesso. Parece desistir do céu e do telescópio e olha agora o mar. Começa a assobiar a melodia da canção que está
a ouvir: "João e Maria", de Chico Buarque e Sivuca. Volta a mexer no telescópio, apontando-o para o mar. Não
se apercebe que, atrás de si, ALEX abre a porta de uma velha casa, rodeada por alguns sacos de areia, como os
que se usam para mitigar os efeitos das inundações. Ouvem-se vozes exaltadas, indistintas. ALEX sai da casa e
fecha a porta, repondo a quietude. MARIA não pára de olhar pelo telescópio.
ALEX (Aproximando-se.) Então, mana, estás a contar alforrecas?
MARIA apercebe-se, endireita-se do telescópio para olhar para ALEX e leva a mão aos auscultadores,
afastando-os apenas dos ouvidos. A música torna-se distante.
MARIA Hã? O que foi?
ALEX Olá para ti também, que simpática... Perguntei se estavas a contar alforrecas.
A música pára quando MARIA carrega num botão dos auscultadores. Deixa-os à volta do pescoço.
MARIA (Sarcástica.) Ah, giro... E tu, estás a fugir das responsabilidades?
ALEX Vinha ver como estavas. Já sabes que a mãe fica aflita quando vens para aqui sozinha...
MARIA Conheço esta praia melhor que ninguém.
ALEX Oh, tu sabes que ela, desde que a João–
MARIA Eu sei, eu sei... Mas eu não sou a João. Não precisam de se preocupar com isso.
ALEX Às vezes, pareces.
MARIA Mas quê, tu também? Tens a tua mulher a parir lá dentro e estás preocupado comigo?
ALEX Ninguém precisa de mim, lá dentro.
MARIA Ninguém precisa de ti cá fora, também.
ALEX Ufa! Ótimo, ninguém precisa de mim em lado nenhum, perfeito...
ALEX curva-se e olha pelo telescópio.
MARIA O que é que vais fazer da tua vida, agora que já ninguém precisa de ti?
ALEX Vou ficar aqui a contar alforrecas, claro. Super útil! É um trabalho difícil, mas alguém–
MARIA dá um calduço a ALEX, que reage, endireitando-se.
ALEX Ai!
MARIA Vê lá mas é se não vais contar os teus dentes espalhados na areia.
ALEX Malcriada.
ALEX senta-se na rocha, amuado.
MARIA E são medusas!
ALEX Qual é a diferença? Para mim são alforrecas.
MARIA Que teimoso!
Pausa. MARIA senta-se também na rocha.

-3-
MARIA Mas, eh pá, tens razão, desculpa.
ALEX (Olhando para MARIA, incrédulo.) Tenho razão?
MARIA Sim, não te devia ter batido.
ALEX Hã?–
MARIA Ainda por cima na cabeça.
ALEX Oh, lá estás tu–
MARIA A criança não merece que fiques ainda mais estúpido.
ALEX olha com desdém para MARIA, que põe um ar satisfeito.
ALEX Foi uma ótima ideia, vir ter contigo...
MARIA Sempre às ordens.
ALEX Pelo menos sirvo para te divertires.
MARIA Vês? Bem bom! Como é que se costuma dizer? Ter um filho, plantar uma árvore...
Como é que era a outra?
ALEX Escrever um livro–
MARIA Escrever um filho?
ALEX Um livro!
MARIA Um livro? Ná, a terceira coisa é divertir a irmã, claro! E, aliás, com todos os calduços
que te dei… Devia ser um belo livro, devia...
ALEX Uma obra-prima, de certeza! O problema é que não ias percebê-lo, com todos os
calduços que eu te dei.
MARIA Bom, sempre é mais fácil ter um filho, não é?
Olham os dois na direção da casa.
ALEX É mais fácil fazê-lo, sim, sem dúvida–
MARIA É, espero que sejas devidamente recompensado pelo teu importantíssimo contributo!
(Levanta-se e bate continência a ALEX.) Muito obrigada pelo seu serviço, general! O seu
empenho foi decisivo para mais esta vitória–
ALEX O empenho vem agora. Acho que vou passar tantas noites sem dormir que ainda me
ponho mesmo a escrever um livro...
MARIA Sobre quê?
ALEX Sei lá... Sobre o desespero de passar noites sem dormir?
MARIA Ná, tu és demasiado otimista... Até nisso conseguias dar a volta. Ia ser um livro de
autoajuda, com dicas e truques para adormecer bebés... Bebés e pais.
ALEX Eu cá não preciso de truques. Desde que não haja bebés a chorar, durmo que nem um...
MARIA Bebé?
ALEX Que nem uma alforreca.
MARIA Medusa! E as medusas não dormem.
ALEX Aposto que algumas dormem.
MARIA Enfim... Se nem sequer têm cérebro, como é que dormem?

-4-
ALEX As alforrecas não têm cérebro?
MARIA Claro que não.
ALEX Mas... (Levanta-se e pondera por um instante, olhando para as medusas.) Se não dormem,
podemos dizer que estão acordadas?
MARIA Eh pá, pensando melhor... Deve ser mais fácil dormir assim, sem cérebro, como tu.
ALEX Oh–
MARIA Estás demasiado calmo. Eu estaria aterrorizada, se estivesse quase a ter um filho...
ALEX Aterrorizada? Mas porquê? Vai tudo correr bem–
MARIA Ah, sim, está tudo a correr maravilhosamente... (Apontando para a casa.) Quando é que
aquilo vai levado pelo mar? Já está marcado na agenda? É que não falta muito, pois não? E
porque é que construíram na praia, se já toda a gente sabia que, mais cedo ou mais tarde...
Pois, foi mais cedo, é sempre tudo mais cedo quando se acredita que vai correr tudo bem...
Mas nunca faltou muito, pois não? Uma casa que já nasceu afogada, e nós com ela, presas
nela, presas a um mundo que já não existe, a voltarmos sempre que o mar acalma... Mas para
quê? A mãe é que acredita que vai ficar tudo bem e agora andamos nisto, até acabar a casa, o
mundo, ou a mãe... E falta muito? Já está marcado na agenda? E essa saudinha, hã? E esses
ossos? Venham de lá esses ossos, rapaz! (Abraça-o agressivamente.) E a saudinha da mãe? Vai
mal? É pena. Mas o importante agora é que vai ficar tudo bem. Ainda temos um telhado
para que o céu não nos caia na cabeça. Ainda temos mãe. Ainda temos comida que nos
chega sabe-se lá como e de onde. Enquanto durar, claro. Enquanto durar a comida, o como,
e o onde. E depois? Depois vai ficar tudo na mesma, só que pior, não é? Tudo bem, mas
pior. Tudo bem pior. Mas, ei!, por enquanto ainda respiramos. Ainda temos ar para nos
queimar os pulmões, até nos nascer um par de guelras... Ainda há água para beber até
esquecermos de ter sede. Ainda há gente, ainda há bichos, ainda há bebés, ainda há estrelas,
está tudo bem.
ALEX suspira e vira a cara, com uma expressão de enfado.
ALEX Mas isso serve para quê? O que é que sugeres? Que fiquemos todos de braços cruzados,
a chorar pelos cantos, sem fazer nada, porque já nada vale a pena, mesmo que isso seja
verdade? Julgas que és muito original? Sabes há quanto tempo existem pessoas que acham
que a sua geração será a última a caminhar sobre a terra? Se calhar, desde sempre. Tu sabes
muito bem onde é que eu cresci, quando cresci, como cresci... Fui eu que vos mostrei o
mundo como ele é, não a mãe, muito menos o pai. Lembras-te de como estávamos há cinco
anos, quando eu tinha a tua idade, certo? Lembras-te de como eu era?
MARIA Eras como eu.
ALEX Não era, não, lamento. Era muito pior. E tudo bem, até posso admitir que foi o meu
pessimismo da altura que nos salvou, mas sabes que mais? Ainda cá estamos, tivemos sorte...
Porque eu nunca acreditei quando nos disseram que ia ser só um bocadinho mais difícil, e
assim é mais fácil aceitar que o mar leva a casa, mas não nos leva a nós... Que quase não há
hospitais, mas há saúde. Que já não há restaurantes, mas há comida. Que podemos desistir,

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mas seguimos em frente. Que voltaremos ao desamparo e à nudez, enquanto o mundo não
se consegue livrar de nós... E é isso que nos assombra. Nós já não somos atormentados por
termos a certeza de que somos a última geração, mas por termos a certeza de que não
seremos os últimos, porque o mundo continua, não pára de acabar... Agora, se isto é
pessimista ou otimista, depende da perspetiva, mas só assim aprenderemos a viver no fim do
mundo, à espera de um novo, que já não será nosso, nem sequer do meu filho.
MARIA Então escolheste ser otimista, foi?
ALEX É como te digo, não tive alternativa.
MARIA (Pondera por um instante.) Se calhar, afinal és tão pessimista, tão pessimista, que deu a
volta.
ALEX Sim, e tu tão otimista, tão otimista, que também deu a volta.
MARIA Ah, claro...
ALEX A sério, mana. Não há nada mais otimista do que esse teu desespero, do que essa
vontade de que o mundo fosse diferente. Essa revolta, essa energia, quem me dera... Isso
também não é uma forma de otimismo?
MARIA (Pondera de novo.) Hum, acho que não, Alex. Eu queria que o mundo fosse diferente,
mas não melhor... Apenas suficiente, já hoje, com o que temos hoje, não amanhã. E sim,
ficar de braços cruzados, sem fazer nada por amanhã. Queria que o desejo morresse e
renascesse a cada dia, habituado apenas à nossa altura, esticados em bicos de pés para
apanhar a fruta da árvore... Para comer e repartir, em vez de guardar para amanhã, em vez de
imaginar o futuro, de continuar neste vício de adiar a satisfação, agora que deixámos de
poder adiar o sacrifício.
ALEX Ou seja, querias que o mundo fosse como tu achas que seria melhor, mesmo que não
pareça...
MARIA E não achas que seria?
ALEX Não sei se é assim tão simples, mas faz sentido... Até porque foi isso que estragou tudo:
só sabermos desejar na promessa, no futuro, mesmo depois de o perdermos... O futuro era o
firmamento, não este descampado coberto pelo halo metropolitano, desde que deixámos de conseguir
imaginá-lo. Acho que foi nessa altura que o mundo acabou, mas ninguém se apercebeu.
MARIA Já éramos póstumos.
ALEX Já estávamos extintos.
MARIA Então porque é que ainda adiamos, prometemos, continuamos?
ALEX Acho que nós já sabemos parar, finalmente.
MARIA Sabemos? Mas tu vais ser pai! Que sentido é que isso tem? É essa a diferença. Nem
me passa pela cabeça, ter filhos...
ALEX Ainda és muito nova.
MARIA E tu também! Tu e a Júlia! Parece que estamos a voltar ao tempo das cavernas, credo...
E mesmo que já não fossem assim tão novos... A sério, Alex, eu nunca vou querer ter filhos.
Dê por onde der. Nunca vou impor ninguém a este mundo, e nem sequer imagino como é
que alguém pode querer tal coisa.

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Silêncio.
MARIA Desculpa, Alex.
ALEX Não faz mal, eu não disse que queria ter filhos... Mas agora, paciência, nada a fazer.
(Pausa.) Acho que me vês como otimista porque estás frustrada, desesperada, sem ver uma
saída. E não aceitas a saída que eu te mostro, que é apenas continuar, apenas outra forma de
desistir... Mostro-te um fim que não acaba o mundo, e isso é assustador até para mim.
(Pausa.) Mas é isso, sou otimista porque desisti, porque já estou cansado, mortiço como
aquelas alforrecas, a deixar-me levar pelas marés... Mas tu não, tu és o oposto. Pareces
pessimista, mas ainda te preocupas.
MARIA Hum, não sei. Às vezes também quero deixar-me levar pela maré, mas não como tu.
ALEX Ó, Maria, não digas isso, a sério! Depois não queres que fiquemos preocupados! A João
nem sequer conseguia pensar nas coisas nestes termos... Se calhar nem pensava nisto, de
todo. Tinha os seus próprios problemas antes disso, e por isso fez o que fez... Queres ir pelo
mesmo caminho, é? Ir pelo mar adentro como ela? Isso resolve alguma coisa? Tens é de
aprender a dar valor às coisas, às coisas boas que continuam, porque há sempre algo que vale
a pena no meio de tanta–
MARIA Por favor, Alex, poupa-me! Já sabia que essa conversa havia de aparecer, mais cedo ou
mais tarde... Dar graças, é? A quem? Podes parecer otimista, mas burro não és, não precisas
de vir com essa conversa das coisas boas, porque acabaste de me dizer que não acreditas
nisso...
ALEX E não acredito, tens razão, desculpa.
MARIA De que é que tens mais medo? Que eu me ponha a ir mar adentro como a João, ou
que te contamine com a minha miséria?
ALEX permanece em silêncio e vai sentar-se na rocha.
MARIA Mas parabéns. Parabéns pelo bebé.
Silêncio. MARIA senta-se de novo ao lado de ALEX. Entra o VELHO, que vai caminhando lentamente pela
praia, enquanto MARIA e ALEX continuam a conversa seguinte. Repetindo as vezes que forem necessárias, o
VELHO dá alguns passos, pára e tira do bolso um pequeno tubo de bolas de sabão. Desenrosca a tampa, sopra
e fica a ver as bolas de sabão, que acabam por cair. Volta a enroscar a tampa e põe o tubo no bolso. Dá mais
alguns passos e vai repetindo a ação, até ao momento assinalado para sair de cena.
ALEX Eu sei que tu não és a João. Desculpa. Não queria irritar-te. (Pausa.) Quero que
possamos sempre falar sobre o que quer que seja. Podes ser pessimista comigo à vontade.
Podes atormentar-me o juízo com o fim do mundo, até ao fim do mundo. Só não quero que
fiques revoltada com o meu suposto otimismo, por favor, e eu vou tentar fazer o mesmo
contigo.
MARIA Eu sei, desculpa–
ALEX Não temos culpa de vermos as coisas de maneira diferente.
MARIA Ná, se calhar tenhas razão... Se calhar não somos assim tão diferentes.

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ALEX Eu sei que tu e eu olhamos para o mundo e vemos o mesmo... Mas olhamos de um
sítio diferente, um bocadinho ao lado. Apenas isso.
MARIA pousa a cabeça no ombro de ALEX.
ALEX O que foi?
MARIA Estou a tentar olhar mais perto do teu ponto de vista.
ALEX E então?
MARIA É bonito.
MARIA levanta a cabeça quando repara no VELHO e tenta perceber o que ele está a fazer.
ALEX Tu achas isto mais bonito do que eu, acredita–
MARIA Olha, aquele senhor... Está a soprar bolas de sabão?
ALEX Sim... Eu conheço-o. Ele costumava passear sempre de manhã, bem cedo... Por isso é
que nunca o viste!
MARIA (Sarcástica.) Ah, giro...
ALEX Mas não nos temos cruzado, ultimamente.
MARIA Bom, se calhar agora passeia sempre à noite, e por isso é que tu nunca mais o viste!
ALEX Oh, sim, como se fosse muito tarde–
MARIA Mas porque é que ele está a soprar bolas de sabão? Está a brincar com o vento?
(Pausa.) OK, o vento também merece–
ALEX Ele tinha um cão... Andava sempre com ele.
MARIA Ah! (Entristece.) Deixa-me adivinhar, também nunca mais viste o cão...
ALEX Lembro-me de ver o cão todo feliz a correr pela areia, a molhar as patas... Mas devias
vê-lo a apanhar as bolas de sabão!
Olham para o VELHO a soprar bolas de sabão, por uns segundos, como se imaginassem o cão.
ALEX E agora ele saltava, vês? E abocanhava uma, e mais uma... E depois com as patas,
quando as bolas estão quase a pousar na areia... Como agora, vês?
MARIA (Sorri.) Vejo. (Pausa.) Mas já o tinhas visto a soprar bolas de sabão sozinho?
ALEX Talvez não esteja assim tão sozinho.
MARIA Ná... Eu diria que é difícil, senão impossível, estar mais sozinho do que ele.
ALEX Oh, lá estás tu–
MARIA Mas percebo o que dizes. (Pausa.) Achas que ele anda sempre com o tubo no bolso?
ALEX Acho.
MARIA Eu também.
Entreolham-se e sorriem.
ALEX Finalmente de acordo!
MARIA Sim, mas isso significa que estamos os dois otimistas ou pessimistas?
ALEX Boa pergunta.
MARIA Enfim, não interessa... Já devíamos saber que estes binarismos nunca nos levam a lado

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nenhum.
Silêncio. Veem o VELHO sair de cena.
ALEX (Levantando-se.) Bom, acho que é melhor ir ver como é que elas estão.
MARIA É melhor, é.
ALEX Também vens?
MARIA Ná, tenho de acabar de contar as medusas, não te esqueças.
ALEX Então boa sorte.
MARIA Para ti também.
ALEX E obrigado, já agora.
MARIA Porquê?
ALEX Pelos parabéns.
MARIA (Levanta-se e bate continência.) Sempre às ordens!
ALEX volta para casa. Durante os breves segundos em que a porta está aberta, ouvem-se de novo vozes
indistintas, agora ainda mais exaltadas. No silêncio que se segue, MARIA volta para o telescópio apontado ao
mar. Volta a colocar os auscultadores. Carrega no botão e recomeça a canção "João e Maria". Pouco depois,
MARIA começa a assobiar, como no início. Vindo do mar, começa a ouvir-se outro assobio para a mesma
melodia, crescendo em volume. MARIA pára de assobiar, levanta a cabeça do telescópio e olha para o mar,
franzindo o sobrolho. Fica estupefacta quando repara que JOÃO aparece no mar, caminhando em direção à
praia.
MARIA João?
O assobio aproxima-se. MARIA dá uns passos na direção de JOÃO, baixando os auscultadores. Não carrega
no botão, pelo que ainda se consegue ouvir a música, mais distante e roufenha.
JOÃO (Dito apenas com gestos.) Oh, põe os auscultadores!
MARIA volta a pôr os auscultadores na cabeça e a música cresce de novo. Quase a chegar à praia, JOÃO pára
de assobiar e começa a mover-se como quem se prepara para dançar. Sorridente, JOÃO acena a MARIA.
JOÃO (Apenas com gestos.) Anda, junta-te a mim!
JOÃO capricha agora numa dança ora elegante, ora exagerada.
MARIA (Idem.) Eu? Nem penses!
JOÃO (Idem.) Vá lá, não sejas assim! Olha isto!
JOÃO exagera ainda mais os movimentos.
MARIA (Idem.) Deixa lá isso.
MARIA baixa definitivamente os auscultadores da cabeça, deixando-os de novo nos ombros, rodeando o pescoço.
O volume da música reage em consequência e JOÃO faz com que os seus movimentos se desmontem como um robô
fica sem bateria, desmanchando a postura. MARIA carrega no botão e a música pára.

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JOÃO Então, mana, estás a contar estrelas?
MARIA (Olha fixamente para JOÃO.) Hã?
JOÃO Aposto que não esperavas esta sereia. (Espera por uma resposta, que não chega.) Existem
sereios? Se calhar, preferia... (Pondera por um instante.) Mas espera aí, não deviam ser as sereias
a atrair os humanos? (Espera novamente por uma resposta. MARIA desvia o olhar.) E não devia ser
a assobiar, mas a cantar, não é? Enfim, está tudo errado... (Pausa.) E então? Não dizes nada?
MARIA Eu? Essa é boa… Tu é que nunca mais disseste nada, não é? Tu é que desapareceste
sem explicações, sem despedidas… E agora apareces assim, toda feliz, como se nada fosse?
O que é que estás aqui a fazer?
JOÃO Não faço ideia. Acho que tens de perguntar isso a ti mesma.
MARIA O que é que eu estou aqui a fazer?
JOÃO Oh, tu é que me chamaste!
MARIA (Confusa.) Eu?
JOÃO Mas ainda bem que pensas em mim assim, toda feliz… Quem diria…
MARIA Já chega, João, vai-te embora–
JOÃO E tu, és toda feliz?
MARIA Eh pá, a sério? Se sou feliz? (Sarcástica.) Então não? Felicíssima! E obrigada pela ajuda,
já agora. Fizeste maravilhas pela minha felicidade…
JOÃO Se me imaginas toda feliz, porque é que não fazes de conta que também és? Fechas os
olhos, dizes “agora eu era feliz!” e vemos o que acontece.
MARIA Já sou velha demais para brincar ao faz de conta…
JOÃO (Analisando o aspeto de MARIA.) Realmente… Pelo menos, pareces… Não! Estás
mesmo mais velha! Que estranho… Olha para ti!
MARIA É, eu sei… Mais velha do que tu, aliás.
JOÃO Hã? Ai é? (Pondera por um instante.) Então agora eu era ainda mais nova, pronto.
MARIA Mais nova? Mas que lógica é que isso–
MARIA interrompe a frase quando se apercebe que JOÃO MAIS NOVA entra em cena, vinda do mar, com
o cabelo da mesma cor garrida do de JOÃO. MARIA fica incrédula. JOÃO parece orgulhosa. As irmãs
continuarão em cena, assistindo (e reagindo) ao que fazem acontecer na praia.
MARIA (Para JOÃO.) Mas quem é esta? És tu?
JOÃO MAIS NOVA Claro! Sou eu mais nova!
MARIA (Para JOÃO MAIS NOVA.) Mas que idade tens? (Para JOÃO.) Não se parece nada
contigo.
JOÃO Não? Se calhar já não me lembro bem como era...
MARIA (Para JOÃO MAIS NOVA.) E já pintavas o cabelo? Enfim.
JOÃO MAIS NOVA Não, mas faz de conta.
MARIA Tudo bem, não importa. Desisto.
Pausa.

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JOÃO MAIS NOVA Então, e agora?
MARIA E agora o quê?
JOÃO MAIS NOVA O que é que eu faço?
MARIA (Revira os olhos.) OK, está bem... Então agora eu também era mais nova, pronto.
Entra MARIA MAIS NOVA, vinda do mar. Como MARIA, traz uns auscultadores iguais em volta do
pescoço.
AS DUAS JOÃO (Em uníssono.) Copiona.
MARIA Mas não queres, é?
JOÃO Não, deixa estar, é perfeito.
JOÃO MAIS NOVA (Entusiasmada.) Fogo, é igualzinha a ti!
MARIA MAIS NOVA Eu? (Apontando para MARIA.) Igual a ela? Nada a ver...
JOÃO MAIS NOVA Mas não foste tu a imaginar-te?
MARIA MAIS NOVA Pois, olha, não sei o que se passa.
JOÃO MAIS NOVA Que idade tens?
MARIA MAIS NOVA Sei lá... A mesma que tu.
JOÃO MAIS NOVA Oh, não pode ser! Tens de ser mais nova do que–
MARIA MAIS NOVA Tudo bem, sou mais nova do que tu. Quem me dera ser mesmo, aliás...
JOÃO MAIS NOVA Mas não gostas de crescer?
MARIA MAIS NOVA Não sei se gosto... Mas quero.
JOÃO MAIS NOVA Então qual é o problema?
MARIA MAIS NOVA Esquece... (Subitamente entusiasmada, para mudar de assunto.) Mas olha,
nem vais acreditar: o Alex vai ser pai!
JOÃO MAIS NOVA O quê? O Alex? Mas ele ainda é um garoto!
MARIA MAIS NOVA Bom, agora também está um pouco mais velho, mas sim, ainda é um
garoto...
JOÃO MAIS NOVA E a Margarida também! Tão nova!
MARIA MAIS NOVA Não, já não é a Margarida! Agora é a Júlia.
JOÃO MAIS NOVA Fogo, já não sei de nada...
MARIA MAIS NOVA Então eu conto-te a melhor: acho que foi um acidente!
JOÃO MAIS NOVA Oh, claro! Que sentido tinha? Filhos de propósito, enfim.
MARIA MAIS NOVA Ainda bem que concordas comigo...
JOÃO MAIS NOVA E tão novos!
MARIA MAIS NOVA (Sarcástica.) É, a humanidade foi um acidente e continua por acidente.
Que sorte.
JOÃO MAIS NOVA Mas quando é que nasce?
MARIA MAIS NOVA Hoje!
JOÃO MAIS NOVA Hã? Hoje?
MARIA MAIS NOVA É, apareceste logo no dia certo, com tudo em alvoroço.
JOÃO MAIS NOVA Mas... (Olha em volta e faz um gesto na direção da casa.) Estão lá dentro, não

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estão?
MARIA MAIS NOVA Estão.
JOÃO MAIS NOVA E tu estás cá fora.
MARIA MAIS NOVA Certo.
JOÃO MAIS NOVA E se precisarem de ti?
MARIA MAIS NOVA Não precisam de mim.
JOÃO MAIS NOVA Como é que sabes?
MARIA MAIS NOVA Imagino.
JOÃO MAIS NOVA Ai é? Então agora eu era a Júlia e precisava de ti!
AS DUAS MARIA (Em uníssono e com o mesmo gesto exasperado.) Oh, não...
Entra JÚLIA, muito grávida, pelo mar. Tem o cabelo colorido como JOÃO, e caminha com dificuldade.
JOÃO MAIS NOVA Fogo, parece mesmo novinha!
MARIA MAIS NOVA Mais vale imaginá-la assim, realmente... Uma rapariguinha assustada,
cheia de dores, a fazer-se passar por adulta.
JOÃO MAIS NOVA Pois, se calhar é sempre assim... Se calhar, os adultos, no fundo, estão
sempre a fazer de conta que são adultos.
MARIA MAIS NOVA Se calhar... No fundo...
JÚLIA (Aproximando-se delas.) Dalila? Dalila? Au!
AS DUAS JOÃO (Em uníssono.) Quem é a Dalila?
AS DUAS MARIA (Idem.) É a parteira.
MARIA MAIS NOVA (Para JÚLIA.) A Dalila está lá dentro, contigo... Quer dizer...
JÚLIA Ai! Por favor, preciso de ajuda! Vai nascer!
JOÃO MAIS NOVA (Aflita.) O que é que fazemos?
MARIA MAIS NOVA OK, então agora eu era a Dalila e ajudava-te.
Entra DALILA, pelo mar, esbaforida, com os mesmos auscultadores de MARIA ao pescoço. Chega
rapidamente ao pé delas.
DALILA Estou aqui, Júlia!
JÚLIA Ai, ajude-me...
DALILA Tenha calma, menina. (Dá-lhe a mão e dirige-a para a rocha.) Vamos só... (Para MARIA e
JOÃO.) Dão-me um jeitinho?
MARIA e JOÃO desviam-se do caminho e respondem ao mesmo tempo.
MARIA Ah, claro, desculpem.
JOÃO Com certeza, venham.
DALILA (Para elas.) Obrigada. (Para JÚLIA.) Vá, encoste-se aqui.
DALILA ajuda JÚLIA a sentar-se na areia e reclinar-se para trás, encostada à rocha. DALILA fica
ajoelhada, a cuidar de JÚLIA.
JÚLIA Ai, Dalila, ajude-me!

-12-
DALILA Tenha calma, menina. Faça força!
JÚLIA Ai! Uf, uf, uf...
DALILA Isso, respire! Está quase!
As quatro “João” e “Maria” ficam de pé, em linha.
JÚLIA Uf, uf, uf, uf...
JOÃO MAIS NOVA (Disfarçando, para MARIA MAIS NOVA.) A parteira parece ainda mais
nova do que ela!
MARIA MAIS NOVA (Idem, para JOÃO MAIS NOVA.) Chiu!
JÚLIA Vai correr tudo bem, não vai?
DALILA Claro que sim, menina, não se preocupe!–
AS DUAS MARIAS (Quase em uníssono com DALILA, sarcásticas, como aparte.) Então não vai...
JÚLIA Ai!
DALILA Já fiz nascer muitas medusas, menina! Vai correr bem.
JÚLIA (Olha para DALILA, assustada.) O quê? Medusas?
DALILA (Enquanto despe a camisola e a coloca entre as pernas de JÚLIA.) Está quase! Faça força!
JÚLIA (Desesperada.) Uf, uf, mas eu não quero! Aaau! Uf, uf, uf. Mas eu quero um bebé!
DALILA (Com entusiasmo, quase a gritar.) Força, menina!
JÚLIA (Grita e atira a cabeça para trás, com a dor.) Aaaaah!
DALILA Isso! Isso! Muito bem!
O bebé nasce e JÚLIA acalma-se, prostrada, ofegante. Ouve-se apenas o choro do bebé, que DALILA embru-
lhou hábil e rapidamente na camisola. DALILA pega-o ao colo e olha-o de perto, com o rosto iluminado pelo
brilho que vem do bebé, sempre ocultado pela camisola. É um brilho semelhante ao das medusas, mas mais forte.
DALILA (Orgulhosa.) É uma menina–
AS DUAS JOÃO (Em uníssono, como aparte.) Irrelevante!–
DALILA E toda perfeitinha! (Quer passá-la a JÚLIA, que começa a recuar pelo chão.) Olhe lá como
é bonita! Sai à mãe!
JÚLIA (Ainda aos tropeções pelo chão, sem conseguir levantar-se completamente, afastando-se de DALILA,
que a segue com os braços estendidos, para lhe passar o bebé.) Não quero! O que é isto?
DALILA Não fuja, menina! Vá, porte-se bem.
JÚLIA consegue levantar-se e vai fugindo pelo mar, caminhando a custo, com as mãos ainda na barriga, ainda a
segurar a dor. DALILA continua a persegui-la e a tentar passar-lhe o bebé, até saírem ambas. As quatro
“João” e “Maria” assistem a tudo em silêncio, estupefactas.
JOÃO MAIS NOVA (Para MARIA MAIS NOVA.) Que raio foi isto?
JOÃO (Para MARIA, num tom de desilusão.) És doente, sabias?
MARIA Não querias fazer de conta? Senta-te, mas é.
Apenas JOÃO e MARIA se sentam na rocha.
JOÃO MAIS NOVA Fogo... Obrigada pela ajuda...

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MARIA MAIS NOVA (Bate continência a JOÃO MAIS NOVA.) Sempre às ordens!
JOÃO MAIS NOVA Então e agora?
MARIA MAIS NOVA Sei lá, eu queria ajudar... Tu é que fugiste.
JOÃO MAIS NOVA (Amuando.) Oh, e tu já não sabes brincar...
MARIA MAIS NOVA (Sarcástica.) Tão sensível, a menina... Vais amuar, é?
JOÃO MAIS NOVA (Despeitada.) Não, nem penses! Vamos continuar!
MARIA MAIS NOVA revira os olhos. JOÃO MAIS NOVA pensa por uns segundos.
MARIA (Para JOÃO, enquanto JOÃO MAIS NOVA pondera.) Mas queres continuar?
JOÃO Deixa ver.
JOÃO MAIS NOVA Hã, então, ora bem, deixa ver...
MARIA MAIS NOVA Estou à espera.
JOÃO MAIS NOVA Hum, não sei... Pronto, então agora eu era o bebé.
MARIA MAIS NOVA Não podes.
JOÃO MAIS NOVA Porquê?
MARIA MAIS NOVA A bebé não era uma medusa? Só podes ser pessoas!
JOÃO MAIS NOVA Quem disse? É só preciso fingir... Eu finjo que existo e tu finges que
acreditas.
MARIA MAIS NOVA Mas consegues imaginar como é ser medusa?
JOÃO MAIS NOVA Talvez... Deve ser bom, ser assim uma espécie de cometa... Ser quase
líquida, quase mar.
MARIA MAIS NOVA Quase gelatina.
JOÃO MAIS NOVA Não ter ossos, nem vísceras, nem rosto–
MARIA MAIS NOVA Difusa–
JOÃO MAIS NOVA Apenas aquele azul nebuloso dentro de nós.
MARIA MAIS NOVA OK, convenceste-me. Agora és uma medusa. (Pausa. Olha de alto a baixo
para JOÃO MAIS NOVA.) E então?
JOÃO MAIS NOVA Já estou a brilhar?
MARIA MAIS NOVA Estás na mesma.
JOÃO MAIS NOVA abraça-a, enrolando bem os braços em volta de MARIA MAIS NOVA, que não se
mexe.
JOÃO MAIS NOVA Vês? Toda molenga...
MARIA MAIS NOVA Credo, abraço de lula.
JOÃO MAIS NOVA Queres ser uma medusa, também?
MARIA MAIS NOVA Bom, se podemos não ser gente, pode ser.
JOÃO MAIS NOVA E que bela medusa! Estás a brilhar tanto!
MARIA MAIS NOVA (Com vaidade exagerada.) Ah, muito obrigada! Saio à minha irmã.
JOÃO MAIS NOVA Mas afinal agora a tua irmã era uma estrela, enganou-te.
MARIA MAIS NOVA Hã? Uma estrela-do-mar?

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JOÃO MAIS NOVA Não, uma estrela do céu. É melhor.
MARIA MAIS NOVA Melhor do que ser medusa? A sério?
JOÃO MAIS NOVA Claro, mas só porque quero que brilhes mais do que eu.
MARIA MAIS NOVA Ai sim? (Pondera. De novo com vaidade.) OK, uma estrela cheia de inveja
do meu brilho, faz sentido.
JOÃO MAIS NOVA É, eu também brilhava muito, mas o céu... O meu céu foi-se inundando
de luz, cada vez mais luz, até que deixei de ter noite. E as estrelas precisam de muita noite
para viver, claro.
MARIA MAIS NOVA Hum, OK... Mas porque é que não estás no céu? (Exageradamente
enfática.) Diz-me, pequena estrela, és da tarde ou da manhã? És gigante ou supernova? Anã
ou nebulosa? De onde vieste? De que braço da galáxia, de que ventre, de que pó? Diz-me,
pequena estrela, porque te descolaste do céu… E logo para vires cair nesta miséria.
JOÃO MAIS NOVA Vim à tua procura. Já não tinha noite, já não tinha brilho, por isso decidi
começar a cair.
MARIA MAIS NOVA (Desanimada.) Agora eras uma estrela cadente?
JOÃO MAIS NOVA Uma estrela já caída.
MARIA (Desviando o olhar, um pouco aflita.) Oh, João, por favor–
JOÃO MAIS NOVA E vim perguntar se podia vir viver convosco.
AS DUAS MARIA (Em uníssono.) Connosco?
MARIA MAIS NOVA Ah, com as medusas...
JOÃO MAIS NOVA Sim. Talvez pudesse aprender a brilhar outra vez... Uma estrela que recua
ao nascimento para voltar a ser pólipo no leito do mar. Para voltar a ser medusa.
MARIA MAIS NOVA Oh, João...
Silêncio. MARIA MAIS NOVA disfarça a tristeza.
MARIA MAIS NOVA Tenho tantas saudades tuas.
JOÃO MAIS NOVA Oh, vá lá, vamos continuar! Não está a ser divertido?
MARIA MAIS NOVA Era assim que eu queria lembrar-me sempre de ti, sabes? Só assim, de
quando brincávamos as duas, quando dançávamos, quando inventávamos parvoíces e tu eras
sempre tão alegre... Sempre com tanta energia, tanto entusiasmo. Parecias sempre mais feliz
do que eu.
JOÃO MAIS NOVA (Amuada.) Oh!
MARIA MAIS NOVA E sempre mais infeliz do que eu.
JOÃO MAIS NOVA (Com desdém.) Sim, as duas coisas ao mesmo tempo, faz todo o sentido...
MARIA MAIS NOVA À vez, claro. Mas contigo era sempre tudo mais intenso, tudo em
dobro. Nunca vi ninguém tão alegre nem tão triste como tu.
JOÃO MAIS NOVA Vantagens e desvantagens.
MARIA MAIS NOVA Pelo menos sentias. Tudo. (Pausa.) Eu só sinto esta dormência, este
aperto, este sufoco... E tantas saudades...
JOÃO MAIS NOVA Pelo menos não sentes tudo em dobro. Isso é bom.

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MARIA MAIS NOVA Bom?
JOÃO MAIS NOVA Enfim, depende da perspetiva.
MARIA MAIS NOVA Como assim?
JOÃO MAIS NOVA A consciência é apenas a história que nos contamos para darmos sentido
ao mundo, não é?
MARIA MAIS NOVA Sim, para que os nossos sentidos façam sentido, como dizias sempre.
Mesmo que seja uma história sem enredo…
JOÃO MAIS NOVA Então aí tens: se mudarmos a perspetiva, talvez possamos mudar
também a história.
MARIA MAIS NOVA E quê? O que é que isso tem que ver com sentir em dobro ou pela
metade?
JOÃO MAIS NOVA É que eu acho que são apenas duas versões da mesma história... É
melhor ser dormente e viver como uma medusa–
MARIA MAIS NOVA Ou ser excessiva e cair como uma estrela?
JOÃO MAIS NOVA Por exemplo...
MARIA MAIS NOVA Mas é possível mudar assim de perspetiva? Era bom, era...
JOÃO MAIS NOVA Acho que sim, mas não me parece que dependa da nossa vontade.
Apenas acontece.
MARIA MAIS NOVA Mas tentaste?
JOÃO MAIS NOVA Tentei, sim, mas não consegui… Se calhar, no fim de contas, a vida é
apenas uma questão de habilidade narrativa. Não te lembras do livro dos salmões?
MARIA MAIS NOVA Hum... Não interessa! (Põe-se exageradamente atenta.) Faz de conta que
não me lembro.
JOÃO MAIS NOVA Então... Havia uns salmões que se metiam rio adentro, no Alasca, para
desovar no mesmo sítio onde nasceram. Mas eles vivem para aí uns três anos no mar... Para
um salmão é como se fosse a vida inteira! Até que lhes passa qualquer coisa pela cabeça e
põem-se a nadar centenas de quilómetros para voltar ao tal rio, guiados pelo campo
magnético da terra, ou assim… E conseguiam... Sei lá, reconhecer o cheiro na água–
MARIA MAIS NOVA O cheiro na água, imagina!
JOÃO MAIS NOVA Mas depois é que são elas! Ainda têm de nadar mais uns duzentos
quilómetros rio acima, só para desovarem lá só sitiozinho especial deles, que nem sequer tem
nada de especial.
MARIA MAIS NOVA São uns salmões muito nostálgicos... Querem que os filhos nasçam no
mesmo sítio, fofo.
JOÃO MAIS NOVA Fofo? Eles nem sequer chegam a ver os filhos!
MARIA MAIS NOVA Hã?
JOÃO MAIS NOVA Eles morrem quando lá chegam.
MARIA MAIS NOVA A sério?
JOÃO MAIS NOVA Sim. Quando chegam ao rio, páram de comer e usam toda a energia que
têm para subir a porcaria do rio cheio de correntes... No livro, era tudo muito heroico,

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claro... E até era engraçado, porque passado umas semanas eles mudam de cor, ficam todos
vermelhões, e cresce uma espécie de bico aos machos...
MARIA MAIS NOVA Para quê?
JOÃO MAIS NOVA Eh pá, sei lá, isso é lá com eles! (Espera por uma reação.) Enfim, já não me
lembro bem. Acho que é só nos machos, para lutarem pelas fêmeas, ou assim...
MARIA MAIS NOVA Até isso, que horror...
JOÃO MAIS NOVA Bom, lá está, depende da perspetiva. O livro esforçava-se para ser
bonitinho, para disfarçar bem a estucha de aprender sobre o raio dos salmões... A história
acompanhava um salmão e uma salmona, se bem me lembro, e no fim–
MARIA MAIS NOVA Tens a certeza de que era um livro infantil?
JOÃO MAIS NOVA Pelo menos era essa a intenção.
MARIA MAIS NOVA (Sarcástica.) Deixa lá, pelo menos aprendeste coisas sobre salmões, hã?
Bem bom!
JOÃO MAIS NOVA É, realmente nunca mais deixei de pensar nos desgraçados dos salmões...
Imagina! Semanas sem comer, a lutar contra a corrente, a fugir de ursos, a marrar uns com os
outros, para acasalarem uma vez num lago qualquer, já todos estropiados, e depois
desovar… E depois morrer.
MARIA MAIS NOVA Mas qual era a moral da história?
JOÃO MAIS NOVA Sei lá! Era uma treta qualquer sobre o sacrifício pelos filhos, porque
depois os salmõezinhos alimentam-se dos seus cadáveres e tudo. Perfeito!
MARIA MAIS NOVA Credo... Como é que contavam isso?
JOÃO MAIS NOVA Oh, dá sempre para virar o prego à história. São as maravilhas do
"pensamento positivo"... E que maravilhas nos trouxe!
MARIA MAIS NOVA OK, depende sempre de como se conta a história...
JOÃO MAIS NOVA Ou de quem a conta. (Pausa.) Mas sim, claro que fui logo aprender mais
sobre os salmões, depois de ter lido o livro, porque era óbvio que aquela história trazia água
no bico...
MARIA MAIS NOVA Isso foi um trocadilho?–
JOÃO MAIS NOVA Mas acho que, na verdade, o que eu queria era confirmar aquela versão
da história, apenas isso... Queria que a vida daquelas criaturas fosse mesmo tão bonita e
heroica como parecia no livro, mesmo que não acreditasse. E talvez algo me tivesse
escapado... Talvez não fosse assim tão absurdo... Mas a realidade nunca deixa. A realidade
confirma sempre o absurdo.
MARIA MAIS NOVA Mas a "realidade" também não é sempre a nossa perspetiva sobre ela?
JOÃO MAIS NOVA Boa pergunta.
MARIA (Para JOÃO.) Boa pergunta, a sério? Nem imagino a quantidade de pessoas que já
devem ter tido esta conversa.
JOÃO E quê? Se calhar, é suposto toda a gente ter esta conversa, nalgum momento da vida.
Ou, pelo menos, pensar nisto, sei lá...
JOÃO MAIS NOVA Bom, o que eu sei é que a realidade não resolveu o meu problema. O

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maravilhoso heroísmo dos salmões era mesmo apenas isso, um impulso absurdo, um
capricho da natureza sem sentido nenhum.
MARIA MAIS NOVA E tão pouco eficiente–
JOÃO MAIS NOVA A suposta realidade formatada em histórias, aqui as tens, são estas,
apenas estas, aqui estão. (Numa voz irritante, com sarcasmo.) Vês como são bonitas? Como tudo,
no fim de contas, acaba bem? Vês como tudo faz sentido? Tu também és um salmão,
pequenina! Vai, cumpre o teu destino, luta contra a corrente, tão nobre, tão heroica, não te
importes com as mazelas, com a fome, com a dor, com o teu corpo a mudar, deixa lá, é o
sentido da vida! Da tua vida! É um grande sacrifício, não é? Mas vale tanto a pena! Essa
coragem, esse amor, essa beleza, tudo! Não te esqueças disso, pequenina! Acima de tudo,
confia em mim, confia nas histórias, confia que tudo tem um sentido e vale tanto a pena!
(Regressa à sua voz, num tom de desprezo.) Pois bem, conseguiram. Deixei de acreditar nas
histórias que se contam, tanto às crianças como aos adultos. Deixei de reconhecer o mundo
nas suas histórias, e de me reconhecer a mim, nas minhas.
MARIA MAIS NOVA Talvez isso aconteça sempre um pouco, quando crescemos.
JOÃO MAIS NOVA Mas porque é que os livros para crianças não contam essa versão da
história? Porque é que são sempre felizes? Tudo se resolve, tudo acaba bem... (Pausa.) Mas
nada acaba bem. Nunca fica tudo bem–
MARIA MAIS NOVA É normal. Há coisas que não são para crianças.
JOÃO (Para MARIA.) Como o quê? Como esta conversa?
MARIA Sim, olha para nós! (Aponta para MARIA MAIS NOVA e JOÃO MAIS NOVA.) Já
não somos crianças.
JOÃO MAIS NOVA Eu era, quando li o livro. Por isso, diz-me, o que é que não é para
crianças?
MARIA MAIS NOVA Sei lá, certos assuntos...
JOÃO MAIS NOVA Salmões estropiados? A morte? O absurdo? Que mais? A guerra? O fim
do mundo? Há muitos assuntos que não existiam nos livros para crianças, mas passaram a
existir... E aqueles livros muito antigos que falavam sobre divórcio, sobre adoção, sobre
género, sexualidade, deficiência, racismo, clima, desigualdade, como se fosse a primeira vez
que isso era explicado às crianças na história da humanidade? E agora já ninguém liga, já
parece óbvio a toda a gente que é apropriado.
MARIA MAIS NOVA E então, é tudo apropriado?
JOÃO MAIS NOVA Por princípio, acho que sim, sei lá... Desde que seja justificado, honesto...
MARIA (Para JOÃO.) Agora és tu que estás a ser demasiado séria, vês? Não há como escapar.
Já não somos crianças.
JOÃO Oh! (Levanta-se e aproxima-se das outras.) Agora éramos, quase... Agora estávamos perto.
MARIA Então porque é que éramos adolescentes na mesma, mas a brincar como crianças?
(Levanta-se também.) Já é mais fácil imaginarmo-nos como medusas do que como crianças?
JOÃO MAIS NOVA E quê, brincar tem prazo de validade? É como os livros infantis?
MARIA MAIS NOVA Mas tu é que queres acabar com os livros, João! Queres torná-los

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irremediavelmente adultos, com todas essas conversas muito sérias, as únicas que realmente
valem a pena, para ti.
JOÃO MAIS NOVA Eu só queria que fossem mais honestos. Que não prometessem tanta
desilusão.
MARIA MAIS NOVA Mas também precisamos de aprender com ela, ou não? Não percebes
que tanta honestidade também nos tiraria uma parte importante do mundo? Talvez seja esse
o limite, aliás... Há coisas importantes, essenciais, que tens sempre de aprender por ti mesma,
sozinha.
JOÃO Nada do que importa está escrito. Nisso estamos de acordo.
MARIA E mesmo que passe a estar! Há coisas que não podemos compreender assim, em
segunda mão, e o absurdo da vida é uma delas... Não cabe na vida de uma criança, não pode
caber... A morte, sim. A guerra, tudo isso que falaste. Mas o absurdo? A falta de sentido?
JOÃO MAIS NOVA Pelo menos não era preciso disfarçar tanto, como no livro dos salmões.
MARIA MAIS NOVA Se calhar, se o disfarce não tivesse de ser tão óbvio, tão falso, não terias
ficado tão desconfiada. Terias aceitado aquela versão da história, aquele final feliz.
JOÃO MAIS NOVA Hum, talvez. (Pondera por um instante.) Então, pronto, talvez seja tudo
apropriado para crianças desde que faça parte das suas vidas. Melhor assim?
MARIA MAIS NOVA Sim, os adultos é que têm de entrar no mundo das crianças, não o
contrário.
JOÃO Eh pá, deviam era ser as crianças a escrever os livros infantis, imagina!
MARIA Eu já me contentava se fossem escritos por adultos que não esqueceram esse mundo
da sua infância.
JOÃO MAIS NOVA Como tu? Tu esqueceste! O teu mundo, o nosso... Um mundo de
absurdos, mas nunca absurdo, nunca sem sentido.
MARIA (Sorrindo.) E tu, não? Achas que falavas assim com esta idade?
JOÃO Já só sabemos falar a sério, é? Já não sabemos brincar, imaginar, fazer de conta?
MARIA Tu sabes.
JOÃO MAIS NOVA E tu, não?
MARIA MAIS NOVA Claro que sei. Mas, se calhar, já não quero.
MARIA Sim, já chega.
MARIA MAIS NOVA começa a caminhar, decidida, para o mar, e JOÃO MAIS NOVA vai atrás.
JOÃO MAIS NOVA Ei, onde é que vais? (Pausa.) Porque é que estás a estragar isto? (Pausa.)
Desculpa, vá lá, não vás.
Saem ambas pelo mar. Silêncio.
JOÃO (Amuada.) Enfim, pelo menos espero que tu nunca te ponhas a escrever livros para
crianças...
MARIA (Idem.) Eu? Tu é que lhes queres dar cabo da infância.
JOÃO Caramba, Maria, a sério? Não quero, não. Queria enriquecê-la. Queremos partilhar as

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nossas histórias com as crianças, mas só lhes contamos uma versão? Quem me dera que a
nossa infância tivesse sido mais rica dessa forma. A nossa e a de todas as crianças que vieram
antes de nós.
MARIA Os nossos adultos–
JOÃO Sim, e os adultos deles, e antes deles, e antes deles... É que nós já crescemos com livros
diferentes dos nossos pais, que por sua vez já cresceram com livros diferentes, e por aí fora,
até aos filhos sem pais, desses que cresceram com livros nenhuns.
MARIA E então?
JOÃO Então... É que não chega. Se tivesse chegado há cem anos, talvez ainda nos salvássemos
agora, mas não, é seguir em frente com esta mesmice, é arrastar o lastro connosco até ao fim,
é assumir os papéis mais maniqueístas–
MARIA Mais quê?
JOÃO –dos nossos heróis, formatando-nos consciências, personalidades, possibilidades... É
confiar na justiça imediata e na bondade absoluta e gratuita das histórias para dormir. É
confiar no final feliz, sim, sempre feliz. (Pausa.) Nós não vivemos felizes para sempre, mas
ainda assim somos essas personagens truncadas, sem futuro, sem sentido... (Pausa.) Isso é
que já ninguém consegue imaginar, nem tu. Especialmente tu.
MARIA Eu? Eu já acabei de imaginar, há muito. Nisso estamos de acordo... (Pausa.) Mas
quando é que as nossas histórias perderam o sentido? Foi quando deixámos de ser crianças?
JOÃO Talvez seja assim que deixamos de ser crianças.
MARIA (Pondera por um instante.) Ainda assim. Quando parece que nada faz sentido... Às vezes
esse absurdo começa a fazer sentido para mim. Às vezes acho que te compreendo.
JOÃO Oh, nem sequer eu me compreendo...
MARIA Às vezes também eu não sei se vale a pena. Se ainda vale a pena.
JOÃO Porquê? Porque nem nós valíamos a pena? (Espera por uma resposta.) Enfim, se achas que
havia um sentido para a minha vida, mesmo entre todo o meu absurdo, então também
haverá sempre um sentido para a tua.
MARIA Mas tu ficaste tão triste, tão vazia... Acreditas mesmo nisso?
JOÃO Esta versão da João acredita, sim.
MARIA (Desiludida.) Ah, claro, já me esquecia. (Pausa.) Agora tu eras um fantasma que me
vinha assombrar com aquilo que eu já tenho dentro da cabeça...
JOÃO (Atenta, à espera que um fantasma entre em cena.) Eras? (Percebe que MARIA se refere a ela.
Entristece.) Ah, estou a ver... (Pausa.) Enfim, é o que se pode arranjar.
MARIA Quem me dera poder falar mesmo contigo. Quem me dera compreender-te mesmo.
JOÃO Ainda bem que não compreendes. É melhor assim.
MARIA (Resignada.) Ok, tudo bem. Tem de servir. (Pausa.) Então e agora, eras o quê?
JOÃO A João. Mesmo a João.
MARIA Sim. Mesmo a João...
Pausa.

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JOÃO Vá, e agora tu.
MARIA E agora... (Pondera.) E agora eu era a louca a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim.
JOÃO Hã?
MARIA Anda.
MARIA pega nos seus auscultadores e põe-nos na cabeça de JOÃO, ajustando-os.
JOÃO (Expectante.) Sim?
MARIA Ah, espera!
MARIA carrega num botão dos auscultadores e JOÃO reage ao repente do som. JOÃO sorri e leva as mãos aos
auscultadores, ajustando-os, expressando satisfação com o que ouve. Continuará a fazê-lo até sair de cena,
meneando a cabeça e fechando os olhos por momentos.
JOÃO (Cantarolando sempre, da canção "João e Maria".) Não, não fuja não... Finja que agora eu era o seu
brinquedo... Eu era o seu pião... O seu bicho preferido... Vem, me dê a mão...
MARIA dá a mão a JOÃO.
JOÃO A gente agora já não tinha medo... No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido...
Ainda de mãos dadas, MARIA faz com que ambas comecem a dirigir-se para o mar, num passo tão calmo
quanto determinado.
JOÃO Agora era fatal... Que o faz-de-conta terminasse assim... P'ra lá desse quintal... Era uma noite que
não tem mais fim...
Entretanto, MARIA vai ficando um pouco para trás, até parar. JOÃO continua sempre ao mesmo ritmo.
MARIA larga a mão de JOÃO e fica a vê-lo regressar ao mar, por onde veio.
JOÃO Pois você... Sumiu no mundo sem me avisar... E agora eu era um louco a perguntar... O que é que a
vida vai fazer de mim?
JOÃO continua a canção, assobiando de novo a melodia, cada vez mais longe e ténue. JOÃO desaparece, mas o
assobio ainda é percetível durante mais alguns segundos. MARIA olha o mar em silêncio. A porta da casa abre.
Ouvem-se dores de parto e vozes exaltadas, indistintas. MARIA repara, olhando para trás. ALEX sai de casa
e fecha a porta atrás de si, repondo a quietude. Vai ao encontro de MARIA.
MARIA Está tudo bem?
ALEX Acho que sim. Está mesmo a acontecer… E tu, estás bem? (MARIA ia responder, mas
ALEX continua, sem pausa.) Posso ficar aqui contigo?
MARIA Hum… E ajudas-me a acabar de contar as medusas?
ALEX Claro, começo por onde?
MARIA Mas não serias mais útil lá dentro?
ALEX Eh pá, fui escorraçado, só estou a atrapalhar...
MARIA Ah, então é agora que foges de vez? Deixa-me adivinhar: vais sair para comprar
tabaco e já não voltas!
ALEX Claro. E tenho muito trabalho na empresa.

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MARIA Não te esqueças daquela viagem de negócios!
ALEX Já te disse que tenho um jantar com clientes? É capaz de acabar tarde.
MARIA E tens de ir pôr o lixo ao contentor.
ALEX Tenho de ir pôr gasolina.
MARIA Tens de ir apagar um incêndio.
ALEX Tenho de ir apanhar um ladrão.
MARIA Tens de ir para a prisão.
ALEX Tenho de ir para a guerra.
MARIA Tens de ir para o mar.
Entreolham-se em silêncio.
ALEX Mas não, ninguém aqui vai fugir para lado nenhum. (Pausa. Começa a apontar para as
medusas.) Ora bem, uma, duas, três–
MARIA Podemos fugir uns dias para Marte, pelo menos...
ALEX Não fica um pouco fora de mão?
MARIA Tens algum compromisso, é?
ALEX Tenho de conhecer uma pessoa, daqui a pouco.
MARIA Eh pá, bem visto, também eu! Mas, olha, caramba, afinal já cá estamos!
ALEX Chegámos a Marte?
MARIA Claro! (Apontando para as medusas.) Então não vês estes marcianos todos?
ALEX Só vejo estrelas.
MARIA É, caíram ao mar...
Pausa.
ALEX Alguma vez viste o céu cheio de estrelas?
MARIA Só nos filmes.
ALEX Aqui ainda se via alguma coisa, às vezes. Ainda era escuro... Mas quando íamos a casa
da avó era uma maravilha. Passava o verão a olhar para as estrelas... Deitava-me no chão e
parecia um lago afundado no reverso das montanhas, um lago escuro e espesso que me–
MARIA (Melancólica.) Nasci tarde demais para tudo, não é justo... Até para ter um telescópio.
(Entusiasma-se com uma ideia.) Podíamos era ir lá outra vez, não? Nem que fosse só para ver as
estrelas–
ALEX À terra da avó? Já sabes que não é fácil...
MARIA Podíamos tentar, não?
ALEX Até duvido que ainda se veja alguma coisa.
MARIA A sério?
ALEX Sim, não sei. Fugiu tanta gente para lá... Já deve estar tudo iluminado.
MARIA Fugiram de onde? Se calhar, temos é de ir a um sítio desses.
ALEX Se calhar. (Pausa.) Mas pronto, não te preocupes, que um dia eu levo-te a ver as estrelas.
MARIA (Estende-lhe a mão.) Prometes?

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ALEX (Aperta-lhe a mão.) Prometo.
MARIA (Entusiasmada.) Ui, agora estás tramado! Vou chatear-te até irmos... E não venhas com
a desculpa do bebé!
ALEX Não te preocupes, mana. Vou andar mais ocupado, claro, mas espero que saibas que
nunca vou deixar de ter tempo para ti.
MARIA sorri e pousa a cabeça no ombro de ALEX.
MARIA Obrigada, Alex... Enquanto espero, vou treinando com as medusas.
ALEX Com o telescópio?
MARIA Estou a tentar descobrir as constelações.
ALEX Nesta papa de alforrecas? Boa sorte...
MARIA Lá estás tu... (Pausa.) Mas não achas bonito? Este brilho... É tão... Pacífico, não sei.
Tão zen. (ALEX olha apreensivo para MARIA.) Apenas estão. Por aí, a flutuar, a brilhar só
porque sim... Não é bonito?
ALEX Eu bem disse... Tu achas isto mais bonito do que eu.
MARIA Mas qual é o problema?
ALEX O problema, mana, é que o mar está morto.
MARIA Hã? Eu sei que está, mas não parece... E a culpa não é das medusas.
ALEX Pois não, mas elas obrigam-me sempre a pensar nisso.
MARIA Sempre? Porquê?
ALEX A mãe diz que no tempo dela havia menos alforrecas, e antes disso ainda menos, e
antes disso eram raras. Começaram a aparecer mais, aos poucos, como todos os sinais
daquela altura. É o canário na mina e a alforreca no mar... Mas ninguém quis saber, claro.
Era só mais um contratempo, mais uma chatice a resolver... Como as algas, como este cheiro
a peixe podre quando já nem sequer há peixe... Como as alforrecas que não se importam
com latitudes, com fronteiras, com desejos: se o mar asfixia, vão-se os predadores e elas
prosperam. Se o mar envenena, reproduzem-se mais e prosperam. Se o mar aquece, crescem
mais rápido, aumentam o seu território, e prosperam.
MARIA Mas agora já nem há algas... Foi rápido, não?
ALEX Não foi tão rápido como parece. Acho que o mar vai morrendo por camadas... Mas já
nessa altura havia marés de alforrecas, noutros sítios. Já havia zonas mortas. E agora, olha,
era preciso que o mar nascesse de novo. Só assim.
MARIA Pelo menos com as estrelas... Com o céu será mais fácil.
ALEX É... E o último a sair que apague a luz.
A porta abre-se e aparece A MÃE. Do interior da casa ouve-se o choro longínquo de um bebé. ALEX apercebe-
se primeiro do som e olha na sua direção, rapidamente imitado por MARIA. Entreolham-se, tão entusiasmados
quanto aliviados. A MÃE sai de casa, em direção à praia, e fecha a porta atrás de si.
ALEX Já está? Boa, afinal foi rápido!
ALEX começa a caminhar para casa, impetuosamente, mas MARIA vai imediatamente atrás dele e agarra-o.

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ALEX Que foi? Deixa-me ir!
MARIA Não sei se já podemos…
ALEX Como assim, não podemos? Quero ver o meu filho!
MARIA Se calhar ainda vais atrapalhar… Espera pela mãe.
ALEX Oh, não vou nada! (Começa de novo a caminhar, mas MARIA agarra-o outra vez.) Ai,
deslarga-me!
MARIA Não, esperamos pela mãe. Sê responsável, rapaz, que já és pai–
ALEX Oh, deixa-me ir, mas é!–
MARIA E muitos parabéns, já agora!
A MÃE chega ao pé deles.
ALEX (Para A MÃE.) Então, vamos?
MARIA Correu tudo bem?
Silêncio.
MARIA Enfim, acho que a mãe precisa de arejar um pouco.
ALEX Mas podemos ir, ou não? É menino ou menina?
MARIA Então, mãe, não dizes nada? Vá lá, o que é que–
A MÃE Não tenho palavras... Estou tão feliz! Parabéns, filho!
ALEX abraça A MÃE. MARIA aproxima-se e abraça esse abraço.
MARIA Foi a segunda vez que te vi sem palavras, mãe.
Pausa. O entusiasmo esmorece.
ALEX Vamos lá, então!
A MÃE Espera um pouco, filho. Dá-lhes um pouco de privacidade.
MARIA (Para ALEX com uma rápida expressão de escárnio, antes de lhe mostrar a língua.) Vês?
ALEX (Revirando os olhos.) Malcriada… (Para A MÃE.) Mas correu tudo bem?
A MÃE Sim, não te preocupes. Está tudo certo, tudo perfeito. Mas, antes de irmos… Eu
queria, talvez agora, que o bebé nasceu… Queria falar convosco.
ALEX Aconteceu alguma coisa?
A MÃE Não, filho, está tudo bem. É sobre a casa…
ALEX A casa?
A MÃE É que dizem que este ano as ondas podem engolir a restinga de vez.
MARIA (Com ALEX, ao mesmo tempo.) E novidades?
ALEX (Com MARIA, ao mesmo tempo.) Nós sabemos, mãe.
A MÃE Este ano, podemos ser obrigados a evacuar logo, ao mínimo sinal de mau tempo...
Está tudo por um fio.
ALEX Já está tudo por um fio desde que me lembro.
MARIA É, as ondas podem engolir a restinga, claro... Como se ainda houvesse algum resto
para engolir…

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A MÃE Desculpem, filhos, mas com o bebé, com a João–
ALEX O bebé? É um menino?–
MARIA revira os olhos.
A MÃE Enfim, não queria estar a preocupar-vos antes do tempo.
MARIA Ná, só tu é que te preocupas com isso.
A MÃE A João preocupava-se. (Pausa.) Às vezes, tenho medo de que fiques tão triste como ela.
ALEX E quê? A João preocupava-se e a Maria preocupa-se ainda mais… O que importa é que
já está preparada para sair daqui há anos!
MARIA Lá isso é verdade. Até acho que já nasci preparada...
ALEX E eu já não estou preparado é para voltar, para voltar sempre aqui, todos os anos, a
toda a hora, sempre que o mar acalma, sempre na bonança, como se o temporal fosse a
exceção e o céu se importasse connosco.
A MÃE Isso nem parecem coisas tuas, filho.
ALEX A sério, mãe? Já começo a odiar tanta bonança, tanta beleza, tanto mar, tanto tempo! É
sempre provisório, sempre uma alegria provisória, sempre ameaçada. Já só vivemos por
nostalgia, é? Por sabermos que isto já é uma ruína? Temos de nos mudar de vez, mãe. Temos
de avançar, seguir com a vida.
A MÃE (Preocupada.) E o bebé? Coitado do bebé, no meio das mudanças...
ALEX (Zangado.) Mas que mudanças? Já passamos metade do ano na outra casa! Já nem é
preciso temporal nenhum para que a casa seja engolida, mãe. Engolir a restinga? As ondas já
cá estão há muito.
A MÃE Custa-me deixar tantas memórias.
ALEX Então porque é que nos moeste a cabeça para que o bebé nascesse aqui? Queres deixar
ainda mais memórias, é?
A MÃE baixa a cabeça. ALEX vira-se para o mar.
MARIA (Para ALEX.) Calma, deixa lá… (Para A MÃE.) Todos temos muitas memórias aqui,
mãe... E não faz mal, mudamo-nos também com elas.
ALEX olha desconfiado para MARIA.
ALEX Sim, claro, com elas... (Pausa. Conciliador.) Mas não interessa. Não estamos a deixar
ninguém para trás. E vocês sabem disso.
MARIA Sabemos, sim. (Procura o olhar cabisbaixo d'A MÃE.) Não sabemos, mãe?
A MÃE abraça MARIA. ALEX hesita brevemente, mas também se junta ao abraço.
A MÃE Estou a ficar sem boas desculpas para continuarmos aqui.
O abraço termina já com os gestos de ALEX e d'A MÃE a assinalar o regresso a casa, consequência natural de
um desenlace. MARIA vira-se para o mar.
ALEX Vamos lá ver a miúda, mas é! (Para A MÃE.) É uma menina?

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MARIA (Sem tirar os olhos do mar.) A João já te estaria a esganar, e com razão.
ALEX Ui, pois… (Para A MÃE.) Então não digas, pronto, não interessa.
A MÃE Está bem, anda.
Começam a ir, mas apercebem-se de que MARIA permanece imóvel, olhando o mar.
ALEX (Para MARIA.) Então, não vens?
MARIA (Não olha para trás.) Já vou.
A MÃE Anda, filha. Sem desculpas.
MARIA OK, deem-me só um minuto. Já vos apanho.
ALEX e A MÃE entreolham-se.
A MÃE Tudo bem, Maria, vem quando quiseres.
Começam ambos a voltar para casa. Não voltam a olhar para trás.
ALEX Ai, estou tão nervoso!
A MÃE Só agora?
ALEX Agora estou mais… Enfim, agora que já acabou…
A MÃE Não, filho. Acabou de começar.
ALEX (Sarcástico.) Oh, isso faz-me sentir muito melhor! Obrigadinho!
ALEX abre a porta de casa, mas agora não se ouve qualquer som vindo do interior. A MÃE e ALEX entram
em casa, deixando a porta aberta. MARIA desvia o olhar do mar e fita a porta por uns segundos, por cima do
ombro, como se reparasse que ficou aberta, como se reparasse no silêncio. A luz que vem do interior da casa é
acolhedora, e mais forte do que o brilho das medusas. MARIA volta a olhar em direção ao mar.
MARIA Estás aí? Ouviste a mãe? (Espera por uma resposta.) Vamos embora de vez, finalmente.
(Pausa.) Aposto que a mãe ainda vai tentar empalear, mas agora já não dá para voltar atrás.
Agora isto acaba mesmo. Acaba de vez. (Pausa.) E agora a gente era obrigada a ser feliz,
apesar de tudo. (Aparece de novo o VELHO, mas desta vez vai-se aproximando de MARIA, que não
o vê.) E quem sabe? Talvez a bebé me ensine de novo tudo aquilo que fui esquecendo...
Talvez me ensine a brincar como dantes, ou talvez eu tenha de aprender primeiro a brincar
sozinha... A dançar sozinha. (Imita uma pirueta da dança de JOÃO.) E em troca conto-lhe o
mundo, conto-lhe histórias, conto-te a ti... (Pausa.) Já não estás aí, pois não?
VELHO Ainda cá está, menina?
MARIA assusta-se, mas tenta disfarçar, recompondo-se.
VELHO Desculpe, não queria assustá-la. Está à espera de alguém?
MARIA Hum, agora já não.
VELHO Ótimo, não espere por ninguém.
MARIA E o senhor, ainda por aqui? O meu irmão falou-me de si.
VELHO Também me falou de si. Por isso é que vim cumprimentá-la. Vi que ainda cá estava e
quis cumprimentar a resistente, como eu, sem pressa de voltar para casa.

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MARIA Viu-me a falar sozinha?
VELHO E a menina, viu-me a soprar bolhas de sabão? Cada um tem a sua forma de falar
sozinho.
MARIA Mas a sua é melhor, em silêncio… Estou farta de tanto barulho aqui dentro. (Bate com
o indicador na testa.)
VELHO Está farta do barulho, ou das palavras?
MARIA Quem me dera poder esquecer palavras, só por um dia. Esquecer a história, calar a
consciência… Mas o que temos para lá das palavras?
VELHO Bom, eu amei e fui amado de volta por uma criatura que nem sequer falava... O que
são as palavras perante isso?
MARIA Falava à sua maneira.
VELHO Sim, sem precisar dessas luvas que pomos para mexer no mundo, dessa película em
que embrulhamos tudo, até acabarmos também embrulhados nela. (Pausa.) Podemos gostar
de as ver a brilhar... Podemos precisar de algo que nos guie pela noite... Mas as palavras são
vazias e absurdas, como as medusas. Dizem-me que estamos condenados a pensar com palavras, a
sentir em palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. São
medusas. São bolas de sabão. O que nelas vive é apenas o espírito que por elas passa. Apenas um
pedaço de mar... Um sopro frágil, provisório.
MARIA Mas qual é a alternativa?
VELHO A alternativa é desembrulhar primeiro o mundo, antes de o pensarmos. É aprender a
tocar no mundo sem luvas. É entrar no mar em silêncio, para senti-lo inteiro.
MARIA (Olha para o mar.) Como a minha irmã. (Pausa. O VELHO também olha para o mar.) Eu
sei que as palavras são apenas um pedaço do que ficou dela, mas tenho medo do silêncio...
Medo de me calar.
VELHO Aprenderá a falar de outras formas, não se preocupe. (Pausa.) O mar não acaba com
as medusas... E o silêncio não acaba o mun–
MARIA O mar acaba é connosco. E o silêncio acaba comigo.
VELHO Eu sei. Morre-nos alguém e acaba tudo. Acaba a fome, a guerra, a peste, tudo menos
o mundo. O mar pára de subir e as medusas de brilhar, mas o mundo não arde, o sol não
gela, o céu não cai…
MARIA Quem me dera.
VELHO Que o mundo acabasse? Ainda estou para encontrar alguém que nunca desejou, nem
uma vez, que tudo acabasse. Que tudo estoirasse num pó fino e baço… Apenas um breve
sobressalto na garganta de um deus qualquer. Um gatilho sem atrito. Uma explosão surda.
Uma falha microscópica. Uma pausa breve, instantânea, no cruel desprezo do cosmos...
MARIA Hum, sim... Até o meu irmão pensa nisso, pelos vistos... Logo ele, tão otimista.
VELHO Claro, até os otimistas têm dias maus. Um dia acorda-se e o abismo é berço. Abre-se-nos
um apocalipse na cabeça, calculamos o alento da extinção e, de repente, já não somos quem
éramos... De repente somos todos iguais... Queremos todos inventar o nosso purgatório. Queremos
inventar a culpa, para não nos perdoarmos.

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MARIA Mas porque é que temos de nos sentir culpados por continuarmos a viver?
MARIA tenta disfarçar a tristeza.
VELHO Olhe, eu sinto-o até com um cão, imagine... E não porque era a única família que
ainda tinha, ou a única criatura que ainda precisava de mim. Não. É apenas porque era o meu
cão e estava vivo. Apenas porque nunca é justo continuarmos, mesmo que o façamos
sempre... Mesmo que não haja alternativa.
MARIA Mas para quê? Para quê as partes boas, se depois há tantas partes más? Para quê a
alegria de ter um cão, se depois teremos o desgosto de o ver morrer? É tudo um desgosto
adiado. Uma alegria provisória.
VELHO Tem razão. Mas eu faria tudo de novo, apesar do desgosto. O meu cão foi uma
alegria provisória, mas absoluta.
MARIA Mas dói. Dói muito. (Pausa.) E agora a minha família já só se importa com a bebé, não
falam de outra coisa... Só a ideia de trazer um bebé a este mundo–
VELHO Agora sou eu que pergunto: mas qual é a alternativa?
MARIA Não ter bebés? Sei lá... Acabar tudo de vez.
VELHO Escolher o fim em vez da dor?
MARIA Não sei… Há mais opções?
VELHO Às vezes, não. Às vezes, temos mesmo de escolher entre a dor e o nada, mesmo que
nos contem a história por outras palavras… A prisão ou o veneno, a tristeza ou o mar, a
saudade ou o silêncio... São tudo versões da mesma história–
MARIA Outras perspetivas, como diria a minha irmã.
VELHO Sim, para o mesmo enredo, para a mesma escolha…
MARIA Então e o senhor… Escolhe a dor?
VELHO (Dito apenas com a expressão facial e um lento encolher de ombros.) Que remédio…
MARIA E se eu preferir o nada?
VELHO Se preferir o nada, está a escolher a dor para as outras pessoas, para aqueles que a
amam.
Pausa. Olham os dois para o mar.
VELHO Tente perdoar.
MARIA A minha irmã?
VELHO Todos. Incluindo a menina. (Pausa.) Sentir culpa por continuar a viver é como ter
vergonha por estar a falar sozinha... Isso sim, não vale mesmo a pena.
MARIA Assim até parece fácil. Era só escolhermos perdoar, a nós e aos outros... Mas a dor
não é assim tão simples, pois não?
VELHO Não, mas talvez seja possível acreditarmos, pelo menos, que a dor nunca é só dor.
Que o mundo não acabou, apesar de tudo. Que a escolha, na verdade, é entre o nada e tudo
o resto, ainda que tudo o resto seja pequeno e triste. Ainda que a dor nos pareça tudo.
(Pausa.) Talvez seja possível acreditarmos que, mesmo perdidos na escuridão de um mar

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infinito, haverá sempre algo para nos mostrar o caminho de volta, mesmo que seja apenas o
brilho de uma medusa frágil, provisória...
Pausa, enquanto reparam ambos no som repentino que vem da casa: o choro de um bebé.
MARIA Até para nascermos é preciso que alguém escolha a dor, em vez do nada.
VELHO Depende da perspetiva…
MARIA Pois, a perspetiva… Acha que podemos mudar a nossa história? Mudar essa história
que somos e contamos a nós mesmos, se mudarmos de perspetiva?
VELHO Talvez, se mudarmos também de palavras… Mas já tentou?
MARIA Tentei, sim, mas não consegui.
VELHO E foi além das palavras?
MARIA Isso não sei... Mas tento procurar sempre as minhas próprias palavras, pelo menos.
Podia ser pior.
VELHO Sim, o pior é ficarmos satisfeitos apenas com as palavras e as histórias dos outros,
sem sentirmos primeiro o mundo, sem luvas, antes de o pensarmos... (Pausa.) Por isso, olhe,
espero que esqueça esta conversa ou que a torne sua. Assim mesmo, sem meio termo.
MARIA (Sorri.) Combinado! Foi um prazer falar consigo.
VELHO E eu consigo, apesar das palavras… Até à próxima.
MARIA Adeus, até à próxima! (Bate continência, casualmente.) Espero por si na próxima maré, se
houver medusas.
VELHO (Pousa brevemente a mão no ombro dela.) Não vale a pena. Não espere por ninguém.
O VELHO segue caminho, até desaparecer. MARIA fica em silêncio, a olhar o mar, até que decide voltar para
casa. Pega no telescópio e no tripé e, enquanto caminha de volta, começa a ouvir-se um assobio ténue, vindo do mar.
Quando se aproxima da porta, ainda aberta, MARIA repara no assobio e olha uma última vez para o mar,
brevemente, em dúvida. Ouve-se o coaxar de um recém-nascido, vindo do interior da casa. MARIA sorri e abana
brevemente a cabeça, desfazendo a dúvida, e entra em casa. A porta fecha. O mar ronrona, calmo. O assobio vai
ficando cada vez mais silencioso, até deixar de se ouvir.

FIM

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