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Tântrica Santina Forjada em Sangue a Sorte Imaculada e Um


Homem Morto.

Por

Thor Vaz Almada Eustáquio

Consultoria de Dir. de Fotografia de Leopoldo Vaz Eustáquio

thorvaz.tv@gmail.com
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FILME EM 3 ATOS

NOTA 1: Exceto em cenas especificas explicitadas no


roteiro, todo filme é gravado em 30 FPS.

NOTA 2: Quase toda a obra é gravada em múltiplos takes,


com fotografias diversas e simultaneas em locações
diferentes, no mesmo momento do texto. Para efeitos de
edição, sempre que possível, é interessante fazer um take
em que a fotografia da cena da locação anterior termina
exatamente como se iniciará a fotografia na próxima
locação. Mesmo ângulo e distanciamento. Não
obrigatoriamente esta será a proposta em todas as cenas,
mas é importante ter um take como este para escolha
posterior.

Cenas simultaneas são gravadas na integra em cenarios


diferentes para posterior montagem. São identificadas
como 1, 1.2, 1.3, por exemplo.

ATO 1 - A MULHER LOUCA E SEUS IDEAIS


ROMÂNTICOS NUMA SOCIEDADE ANTAGÔNICA.

CENA 1 - EXT./ MANHÃ NASCENTE/ PRAIA DESERTA, ITAPUÃ.

LENS FLARE.
CÂMERA EM CLOSE, PERFIL. SE EXTENDE PELO INÍCIO DO TEXTO.
EVOLUI PARA:
CÂMERA NA NUCA, PEGANDO O COQUEIRAL AO FUNDO.
EVOLUI PARA:
CÂMERA NA NUCA, PEGANDO O MAR AO FUNDO.
EVOLUI PARA:
CÂMERA NA NUCA PEGA MÃOS DA ATRIZ E PAISAGEM NO
HORIZONTE.

CENA 1.2 - EXT./ MANHÃ NASCENTE/ PRAIA DESERTA, ITAPUÃ.

Atriz distante dança na areia. Atriz à média e longa


distância entra no mar. Atriz entra no mar lentamente,
até que a água atinge seus ombros.

CENA 1.3 - INT. VISTA DA JANELA.

CÂMERA EM CLOSE, PERFIL COM FUNDO. LENS FLARE.

Atriz hora olha a floresta, hora olha o céu. Ás vezes põe


as mãos para fora da janela e às olha.

Serenata é coisa que só se tem em


poucas ocasiões, presente divino,
de significado amoroso e honra
infinita. Serenata é bem
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precioso, sinto eu o coração


esvanecer devagar quando a
lembrança revê os momentos de
magia que vivi quando alguém de
minha estima, como alguém a quem
se precisa, com esse bem me
presenteou. E este alguém de tão
amado parecia estar ao meu lado,
mesmo estando tão longe, embaixo
da janela, cantava tão alegre e
forte que sua voz encantada
alcançava meu peito palpitante
quando na estrofe mais abençoada,
seu canto cansava e de emoção
desafinava por um instante.
Queria eu revê-lo e escutá-lo.
Queria eu novamente deitar a
cabeça sob o lençol quente com o
ouvido a zumbir uma música de
acalanto.

Se Deitando na areia (CENAS 1 E 1.2) e no assoalho de


madeira (CENA 1.3) e usando como travesseiro ...

Queria eu agora estar deitada no


seu colo, ao invés deitada no
travesseiro molhado com meu
pranto:

(cantando)

Querer deveras queria, E nem sei


se saberia lidar, Com aquilo que
a cabeça imagina Um dia o peito
alcançar Um sentimento tão
concreto Seguro de ser real Ao
passo de ser tão puro Que parece
desmanchar Parece mágico, por não
haver outro igual Querer deveras
queria

(Fechando os olhos
levemente)

E quando fecho meus olhos espero


A face eu refresco de leve Com
água e sal do meu pranto E lembro
que sonho é tão pouco Quando se
viveu o sonho um tanto E não me
atrevo Apenas escrevo em poesia

CAM. EM CLOSE NOS OLHOS - ATRIZ ABRE OS OLHOS NUM


ROMPANTE

Mas querer deveras queria.


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CENA 2 - INT/DIA. ASSOALHO DE MADEIRA

CENA 2.2 - EXT/DIA. PORTAIS DA FLORESTA

CENA 2.3 - EXT./LUSCO FUSCO/ PÉS DE ABÓBORA/CASEBRE AO


FUNDO

Tive vários gatos em casa,


brancos, ruivos e negros,
saltitavam pelos móveis, corriam
pelos bosques e passavam pelas
frestas. Tive vários gatos, hoje
não crio animais, tive muitos e
hoje não tenho mais ânimo. Pois
que gatos são como filhos e nem
em toda fase da vida se tem tempo
e desejo de ser mãe. Nunca tive,
nem tenho, nem antes e muito
menos agora. Bem como não quis
ser mulher. Tive gatos, bichos
que me fizeram companhia quando
fui precisada de afeto, quando
estive perto do lado escuro da
minha alma.

ATRIZ CAMINHA PELOS PÉS DE ABÓBORA SE AFASTANDO DA


CÂMERA. ELA VAI EM DIREÇÃO AO CASEBRE AO FUNDO.

CENA 3 - INT/LUSCO-FUSCO. CASA DE ENTULHOS

CÂMERA SAI DAS COSTAS DA ATRIZ E A MOSTRA INDO EM DIREÇÃO


À PORTA. CORTE PARA CLOSE NO ROSTO. ATRIZ NÃO OLHA PARA A
CÂMERA. CÂMERA FAZ UM GIRO NO SENTIDO HORÁRIO ATÉ FOCAR A
NUCA DA ATRIZ NA DIREÇÃO EM QUE ESTARIA O SEU
INTERLOCUTOR IMAGINÁRIO AO FUNDO.

(batem na porta)

Calma, senhor Adalberto, és


homem, talvez seja santo, mas não
por isso teria esse direito de
bater em meus aposentos a essa
hora. Falta de delicadeza, ainda
que tenha seus atributos divinos.
Nunca me viu prostrada em altares
após o escurecer, muito menos na
aurora invertida tenebrosa e
sinistra da madrugada de Sertina.
Estou certa que não poderia me
ausentar por mais de uma semana e
muito menos fugir sem ser vista,
mal posso comprar utensílios
domésticos sem ser oportunada por
esses incrédulos todos, homens
sem fé podem ser vistos em
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qualquer lugar.

CÂMERA VOLTA A GIRAR EM TORNO DA ATRIZ.

Quisera eu poder comprar meu


azarão de pura raça e pular
obstáculos, cavalgar por riachos
e penhascos, refrescar-me em
cataratas, ouvir o canto dos
pássaros, os Ibirtis e louros-
cantantes da minha mata atlântica
vasta, quisera eu sentir
novamente a emoção de cavalgar e
ter o corpo arremessado contra o
vento frio do sereno. Quero eu
ouvir uma última serenata!

CORTA PARA...

CENA 4 - EXT. AMANHECER/PRAIA DE ITAPUÃ


ATRIZ ENTRANDO NO MAR.

(toca uma campainha)

CENA 5 - INT. PAREDE DE CRISTO

Cale-se Tobias, canalha


estupefato que morde minhas
orelhas como um demônio! Cale
essa sua tumba dantesca, essa
sanfona desafinada que me
atormenta toda madrugada, a
madrugada é sagrada Tobias!

CORTA PARA...

CENA 6 - INT. CASEBRE DE ENTULHOS

A madrugada é sagrada Adalberto!


A madrugada é sagrada multidão
desenganada, desenfreada,

CORTA PARA...

CENA 7 - EXT. DIA ALVORECER. PAREDE DE ENTULHOS

LENS FLARE PREENCHE O QUADRO.

na balaustrada do muro de Berlim,

CENA 8 - EXT. DIA ALVORECER. TEIAS DE ÁRVORE.

LENS FLARE PREENCHE O QUADRO.

no meu lustre de madre pérolas


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incandescente,

CENA 9 - EXT. ALVORECER E CREPÚSCULO. PLANTAÇAO DE


ABOBORAS/CASEBRE AO FUNDO

LENS FLARE PREENCHE O QUADRO.

ATRIZ INTERAGE FORTEMENTE COM A LOCAÇÃO. CORRE E PULA POR


TODOS OS LADOS. CÂMERA REGISTRA DE LONGE, ESTÁTICA. EM
NOVA TOMADA, A CÂMERA SEGUE DE PERTO.

eu estou louca pra comer um


tantão de espinafre!
(gargalha)

Eu sou uma heroína, uma amazona


tresloucada pelas matas e morros,
as matas e morros, as matas e
morros, me matas e morro por ti!

CENA 10 - EXT. ALVORECER, PRAIA DE ITAPUÃ.


CENA 10.2 - EXT. ALVORECER, PLANTAÇÃO DE ABÓBORAS.

CENA 10.3 - INT. LUSCO-FUSCO, ASSOALHO DE MADEIRA.

(canta em extremo agudo)

Salve-me, salve minha alma,


salve-me Corte-me punhos e dobras
de amassos Salve-me laços com o
céu Salve minhas tranças Salve e
alcance-me Inalcançável que sou.

FIM DA PARTE 1

ATO 2
O EGO DA MULHER LOUCA EM DIREÇÃO AOS "HOMEMONSTROS".
TODAS AS CARTAS ENVIADAS.

CENA 11 - INT. TEMPO INDEFINIDO. CASA DE ENTULHOS/PAREDE


DE CRISTO

LENTE GRANDISSIMA ANGULAR OLHO DE PEIXE. CENA COM TEXTURA


EXAGERADA, COMO SE TUDO CHAMASSE ATENÇÅO AO MESMO TEMPO.
ILUMINAÇÅO POR ZONA.

Tudo em extremo decoro, um bordel


imundo, um couro encardido e
fedido á mijo de rato. Porque
tive a má sorte de encontrar
roupas e fotos jogadas pelo
tapete do quarto? Todos os meus
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quadros, e jóias caras que


guardei de antigos amantes
insatisfeitos, fiz que pude para
escondê-las, elas que nem sempre
tão caras sempre me foram mui
caras de afeto, sempre tive-as
como tenho meus gatos, eu que sou
mãe de minhas crias e meus
pertences a quem pertenço de
corpo e alma, porque agora tenho
a má sorte de ver revirada a
minha casa como vejo dia após dia
o meu corpo virado, vidrado, o
vigário me disse que sou mulher
em fogo incessante, disse-me o
pároco que sou devassa e o doutor
julgou-me insana, eu afirmo e
contradigo, sou eu mulher santa e
por isso dou-me em fava com
Adalberto, homem santo que
curou-me as chagas e beijou-me em
doses, durante 12 anos. As
lembranças eu apago e cozinho em
fogo brando. O frio só se percebe

CENA 12 - EXT. LUSCO-FUSCO. PLANTAÇÃO DE ABÓBORAS/CASA AO


FUNDO

LENTE GRANDE-ANGULAR.

quando se sai pela rua afora, ou


quando se encosta na fresta da
porta, quando se abre a janela e
quando se abre a alma.

CENA 13 - INT. CASA DE ENTULHOS/PAREDE DE CRISTO

LENTE GRANDISSIMA ANGULAR OLHO DE PEIXE. CENA COM TEXTURA


EXAGERADA, COMO SE TUDO CHAMASSE ATENÇÅO AO MESMO TEMPO.
ILUMINAÇÅO POR ZONA.

O santo tocou-me o corpo e


salivou dentro de mim, então
disse a ele que era mulher santa
e fui abençoada com sua
descrença, como fez o padre, o
pároco, o doutor. Cantem um pouco
pra mim, cantem que sou sereia,
pintem um retrato bem bonito da
minha vida regressa antes que eu
mesmo esqueça e nunca volte pra
onde estou, antes que me vá pra
onde nunca estarei, antes que
minha cabeça viva sem mim sem se
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dar conta. Cantem-me, cantem-me,


cantem-me em ciranda, cantem-me
em ciranda fresca das crianças
anjas, arcanjas, amenas das
cidades interioranas onde as
crianças ainda são puras e rezam
novenas, as velhas guiadas pelo
pastor da diocese. Cantem e que a
cantoria nunca cesse, quero ouvir
seus cantos, quero estar ao
centro, meu cetro abençoando os
homens santos e as velhas
rezadeiras, carpideiras,
cospideiras intermitentes, quero
ser feliz apenas. Cantem ao meu
louvor, cantem suas vozes belas,
cantem!

CORTA PARA...

CENA 14 - INT. MANHÃ. VISTA DA JANELA

CÂMERA DISTANTE, MODO PAISAGEM, PLANO ABERTO. A ATRIZ


ESTA LA EMBAIXO, JUNTO A ARVORE.

(coro eclesiástico)

Cantem mais minhas crianças,


cubram-me de coro, cubram-me com
seus corpos-mantos, cubram-me por
momentos vastos, pouco castos,
lastros tamanhos de laços
intactos. Cubram-me, cubram-me,
cubram-me com seus cantos!

(coro eclesiástico mais


forte)

CENA 15 - EXT. MANHÃ. PRAIA DE ITAPUÃ

LENS FLARE. CÂMERA EM CLOSE NA ATRIZ, FRONTAL. ELA NÃO


OLHA PARA A CÂMERA. ATRIZ SAI DO ENQUADRAMENTO E CAMINHA
EM DIREÇÃO AO MAR. CÂMERA REENQUADRA A ATRIZ DISTANTE E
SÓ DEPOIS DE 7 SEGUNDOS À SEGUE E VOLTA A SE APROXIMAR O
QUANTO FOR POSSÍVEL.

Sou tonta, pomba branca em céu


azul, cante meu sonho deixe que
eu deite em berço imenso e úmido
de cantos, banhos afrodisíacos
tomei, toquei em chifres e dentes
de monstros pré-históricos, sou
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mulher das cavernas, Atenas


abençoou-meus dentes sábios!

(coro ainda mais forte)

CENA 16 - EXT. MANHÃ. PRAIA DE ITAPUÃ

LENS FLARE. GRANDE ANGULAR, ALTA PROFUNDIDADE DE CAMPO.A


CÂMERA O MAIS PRÓXIMO QUANTO SEJA POSSÍVEL DA ÁGUA.

CENA 16.2 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

TELEOBJETIVA, 60-120 FPS. A CÂMERA O MAIS PRÓXIMO QUANTO


SEJA POSSÍVEL DA ÁGUA. A ATRIZ ESTÁ EMBAIXO DO CHUVEIRO
LIGADO.

Levem meu corpo!


(cai no chão desmaiada,
chuva dourada cai no palco)
(ainda no chão)

Lavem meu corpo. Lavem meu corpo.


Lavem meu corpo. Lavem meu corpo.
Lavem meu corpo. Lavem meu corpo.
Lavem meu corpo. Lavem meu corpo.
Lavem meu corpo. Lavem meu corpo.
(toca um trombone)

CENA 17 - INT. PAREDE DE CRISTO

TELEOBJETIVA, 60-120 FPS.

ATRIZ MOLHADA.

Tobias, querido, livre-me da dor.


Sinto algo forte me comprimir o
peito, como uma doença
traiçoeira, livre-me disso. Eu
sinto algo como uma pontada, como
se uma lâmina afiada me rompesse
a alma frágil, como se eu caísse
ajoelhada frente o inimigo
impiedoso. Você já sentiu seus
olhos fecharem de repente,
lacrimejando pimenta. Fechando de
repente, comprimem a cabeça, as
veias saltam, o rosto molhado de
pranto não sentimental, arde como
pimenta. Tobias! Tobias! São
apenas 2 tostões, nada que seja
estrondoso, abusivo, e palpável,
posso pagar dois tostões. Pagaria
mais se tivesse certeza que isso
me traria a paz que eu necessito.
Ultimamente vivo correndo para o
lado oposto á imagem que preguei
na parede, até ando de costas
quando me sinto ameaçada, ou
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cansada de andar

CENA 18 - EXT. PRAIA DE ITAPUÃ

CENA 18.2 - EXT. PLANTAÇÃO DE ABÓBORA/CASA AO FUNDO

CENA 18.3 - INT. PAREDE DE CRISTO

no mesmo rumo dia após dia, dia


após dia, dia pós dia, dia após
dia, dia após dia, dia após dia,
dia após dia,

CENA 19 - INT. PAREDE DE CRISTO

TELEOBJETIVA, 60-120 FPS.

ATRIZ MOLHADA.

até uma santa cansa. Suei os dois


litros de vinho que bebi em sua
companhia, meus poros estão
obstruídos por álcool. E sou
impura por sua conta e risco.
Quase me esqueci,

CENA 20 - INT. CASA DE ENTULHOS

LENTE GRANDISSIMA ANGULAR OLHO DE PEIXE. CENA COM TEXTURA


EXAGERADA, COMO SE TUDO CHAMASSE ATENÇÅO AO MESMO TEMPO.
ILUMINAÇÅO POR ZONA.

risque meu nome de seus papéis


imundos, estes papéis que
encontra em qualquer taberna
poluída pelos fumos dos
forasteiros, estas tabernas de
tísicos e prostitutas que
frequentas com tanto esmero e
dedicação, tabernas dantescas,
sinistras, encobertas de musgos,
ao lado de cemitérios, as odeio!
Por favor, retire meu nome de
suas cartas depravadas, de seus
poemas sem nexo, de suas prosas
disléxicas, não sou musa de poeta
bêbado. Esqueça meu sobrenome,

CENA 21 - INT. MESA DE MADEIRA/CORTINA VERMELHA

Atriz assina diversos papéis em branco em cima da mesa o


mais rápido possível

A CÂMERA ESTÁ DE PERFIL EM PLONGEE, EM UM ÂNGULO SUPERIOR


Á ATRIZ.

desde os quinze anos não assino


com meu nome de família, rompi
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meus laços, todos. As amarguras


permanecem instaladas, guardadas
nas lembranças que eu não ousaria
expor,

CENA 22 - EXT. AURORA- PAREDE DE ENTULHOS

CENA 22.2 - EXT. AURORA - ÁRVORE CENTENÁRIA

LENS FLARE, GRANDE ANGULAR, TEXTURAS BEM DEFINIDAS.

ATRIZ FRENTE A FRENTE COM A ARVORE. CAMERA ENQUADRA AS


COSTAS DA ATRIZ A ESQUERDA.

lembranças devem ser esquecidas.


Sou mulher feita, feito minha
avó. De resto nada sei,

CENA 23 - INT. CASA DE ENTULHOS

apenas retire as citações


indevidas, cujas não teve
autorização minha, nem agrado,
nada. Não me sinto grata, apenas
cansada de meu nome ter sido
tantas vezes citado em vão.
Retire, não seja um porco.
(Aplausos, ela faz sinal de
silêncio. Uma coruja
canta.)

Há dois dias eu escuto corujas.


Mau presságio. Mau presságio. Mau
presságio. Mau presságio.

CENA 24 - EXT. AURORA - MECANISMO DE RODAR

3 MODOS: CÂMERA RODA JUNTO COM ATRIZ, CÂMERA ESTÁTICA


FILMA A ATRIZ RODANDO E CÂMERA RODA SOZINHA PEGANDO A
ATRIZ ESTÁTICA FORA. ESTES MOVIMENTOS ESTÃO DESCRITOS NO
DOCUMENTO 1 DISPONIBILIZADO NO GRUPO DO TELEGRAM. O
MECANISMO DE RODA NÃO DEVE SER ENQUADRADO, DANDO
PREFERÊNCIA ÀS ÁRVORES, CÉU, E TUDO O QUE NÃO DENUNCIAR
UM TEMPO MODERNO. LENTE TELEOBJETIVA.

Como da vez que pressenti a


tragédia com Antonia e Antonieta.
E como quando estive á beira da
morte. E quando vi na minha
frente o espírito encarnado de
Elizabeth, a quem ainda devo
desculpas. E quando senti o vento
frio do desengano, quando estive
longe de quem respeitava meus
desenganos. Agora sim, me sinto
desenganada.
(chora)
(um telefone toca)
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CENA 25 - INT. CASA DE ENTULHOS

CAMERA GRAVA A ATRIZ PELO REFLEXO DE UM ESPELHO QUEBRADO.

Um telefone toca. Eu devo secar


meu pranto.

CENA 26 - INT. MESA DE MADEIRA

ATRIZ OLHA DIRETAMENTE PARA A CÂMERA PELA PRIMEIRA VEZ. A


CÂMERA ESTÁ DE PERFIL EM PLONGEE, EM UM ÂNGULO SUPERIOR Á
ATRIZ.

Por favor, alguém me ceda um


guardanapo. Estou quase
desesperada agora.
(O telefone permanece
tocando durante toda a
cena. Ela parece não dar
ouvidos.)
CENA 27 - INT. PAREDE DE CRISTO

LENTE GRANDE ANGULAR

Ah santo Cristo, compadeça.


Compadeça. Santo Cristo compadeça
enquanto padeço solitária.
Escreverei cartas sem destino,
mais uma vez.
(apanha uma pena e um
papel)

CENA 28 - INT. MESA DE MADEIRA

Atriz escreve a carta utilizando diversos papéis


espalhados pela mesa, como se em cada um ela escrevesse
um trecho e para decifrar a carta fosse necessário ler na
ordem correta. A mesa tem muitos papéis e está em
completa desordem. A atriz escreve o mais rápido
possível.

A CÂMERA ESTÁ EM UM ÂNGULO SUPERIOR Á ATRIZ. PERFIL EM


PLONGEE.

Minha Querida, Peço que perdoe


meus atos impensados, sou tola.
Não quis cobrar-lhe os meus
erros, você, quase tão bem quanto
eu, sabe que não se sabe bem o
que é viver quando se tem 16
anos. E ainda assim se vive.
Lembra-se de tudo não? Como uma
cicatriz ou um desenho feito sob
a pele com agulha quente em
definitivo, daqueles que não se
apagam nem na hora da morte, e
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chegam a ficar cravados na


própria alma. Desejo sorte a
você, que sempre me protegeu, e
quero reconciliar-me com seus
filhos. Recordo daquele tempo que
demorou tanto a passar quando
vivido, mas que agora
ultrapassado me parece ultra
veloz. Os Ultrajes não esqueci,
sou ressentida e magoada ainda.
Mas finjo ser repleta de
qualidades cristãs. E finjo bem.
Perdoe-me os vícios de linguagem,
estou ficando cada vez mais
caquética como prevíamos na
juventude. Hoje em dia só escuto
meus próprios pensamentos e minha
própria ladainha, como sabe, ou
talvez nem saiba, me livrei dos
gatos. Com amor, sua amada.

CENA 29 - INT. MESA DE MADEIRA


CENA 29.2 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

Atriz se levanta da mesa, abre a cortina vermelha e se


lança no assoalho de madeira.

SAINDO DO PLONGEE, EM PLANO-SEQUENCIA CÂMERA A SEGUE DE


PERTO.

Contei 5 baratas correndo o


assoalho. Existem espiões de
todos os tipos, sangue frio. O
que elas querem aqui, não
percebem que estou cada vez mais
decadente? Talvez seja isso mesmo
o que procurem, dessa forma se
aproveitam de minhas pequenas
posses, de meu grande corpo
estranho.

CENA 30 - INT. CASA DE ENTULHOS

Ainda há castanhas no armário


inferior? As castanholas eu ainda
conservo em minha cabeceira? De
repente a memória se revela
traiçoeira, uma lástima.

CENA 31 - EXT. ANOITECER. PORTAIS DA FLORESTA

CENA 31.2 - EXT. ANOITECER. CAMINHOS DA FLORESTA

CENA 31.3 - EXT. ANOITECER. PÉS DE ABÓBORA/CASA AO FUNDO

ATRIZ À MÉDIA DISTÂNCIA. PLANOS EM QUE SE ALTERNAM GRANDE


ANGULAR E TELEOBJETIVA.
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Passeava por becos tenebrosos, de


energia sinistra, isso quando era
jovem e sem consciência de
perigo. Hoje sou outra, não tenho
tempo para perder minha vida,
pouco me resta. E o restante é
lixo.

CENA 32 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

CAMERA FILMA DEBAIXO DE UMA COMODA. DEPOIS QUE O TELEFONE


CESSA A CAMERA SE MOVE EM PLANO SEQUENCIA ATE O CLOSE.

Onde estão as jóias que guardei


embaixo da cômoda?
(o telefone finalmente
cessa)

Este silêncio quase me


enlouquece. Na janela alguém
assobia meu nome. Por hora quase
esqueço a razão da minha
existência,

CAMINHA EM DIREÇÃO À ...

CENA 33 - INT. VISTA DA JANELA

LENTE GRANDE ANGULAR.

quisera eu ter um memorando sobre


meus feitos. Estaria pra sempre
empalhada na memória de outrem,
os transeuntes psicóticos que
anseiam por qualquer lembrança da
mulher santa.

CENA 34 - INT. CASA DE ENTULHOS

LENTE GRANDE ANGULAR.

Pedem-me bijuterias e colares de


estirpe, pulseiras douradas de
gosto duvidoso eu digo refinada:
Larguem minha saia! Larguem a
barra de minha saia! Os homens
depravados tentam beijar meus
lábios, enquanto minhas mãos
castas guardam o tesouro nunca
antes visto. Mentira cínica esta,
depravada a mente crente de nada,
cantem,

CENA 35 - INT. VISTA DA JANELA

CLOSE, ATRIZ EM PERFIL. LENTE GRANDE ANGULAR.

cantem minhas flores mortas na


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janela, cantem meus brincos de


porcelana chinesa, cantem minhas
unhas feitas, cantem meu destino
lacro.
(Uma luz pisca)
Trovoadas!
(piscam duas luzes)
Tormento, trovoadas!
(tudo escurece)

CENA 36 - EXT. MADRUGADA. CAMINHOS DA FLORESTA

CÂMERA NAS COSTAS DA ATRIZ ACOMPANHA O SEU CAMINHAR. ELA


ANDA COMO O "HOMEMONSTRO". PERMANECE SEMPRE À MESMA
DISTÂNCIA DA ATRIZ E MESMA FOTOGRAFIA DE SUA SILHUETA
MASCULINIZADA. TELEOBJETIVA POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO.

Virá do breu o "homemonstro"


irrequieto de hálito quente e
picante, costas largas e
alargadores nos lábios. Virá do
breu,
CENA 37 - EXT. MADRUGADA.PÉS DE ABÓBORA/CASA AO FUNDO

CÂMERA NAS COSTAS DA ATRIZ ACOMPANHA O SEU CAMINHAR. ELA


ANDA COMO O "HOMEMONSTRO". PERMANECE SEMPRE À MESMA
DISTÂNCIA DA ATRIZ E MESMA FOTOGRAFIA DE SUA SILHUETA
MASCULINIZADA. TELEOBJETIVA POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO.

do mistério da escuridão rumo á


glória da depravação profana e
quem se auto julga santa
imaculada frente/rente os pecados
mundanos imundos, o homem insano
deplorável, esdrúxulo homem barro
virá do escuro,

CENA 38 - INT. CASA DE ENTULHOS

CÂMERA NAS COSTAS DA ATRIZ ACOMPANHA O SEU CAMINHAR. ELA


ANDA COMO O "HOMEMONSTRO". PERMANECE SEMPRE À MESMA
DISTÂNCIA DA ATRIZ E MESMA FOTOGRAFIA DE SUA SILHUETA
MASCULINIZADA. TELEOBJETIVA POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO.

o homem imutável o qual não se vê


feição ou emoção ou desgostos, o
qual não se percebe em meio a
multidão, virá mostrando os
dentes e as armas, sua armadura
grotesca, dantesca,

CENA 39 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

CÂMERA NAS COSTAS DA ATRIZ ACOMPANHA O SEU CAMINHAR. ELA


ANDA COMO O "HOMEMONSTRO". PERMANECE SEMPRE À MESMA
DISTÂNCIA DA ATRIZ E MESMA FOTOGRAFIA DE SUA SILHUETA
MASCULINIZADA. TELEOBJETIVA POUCA PROFUNDIDADE DE CAMPO.
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suja de lama e sangue dos


inimigos mortos no campanal
descampado,

O CHUVEIRO LIGA FORA DO ENQUADRAMENTO, APENAS OUVIMOS O


SOM, E A ATRIZ SE ENCAMINHA NOVAMENTE PARA BAIXO DO
CHUVEIRO, ACOMPANHADA PELA CÂMERA. A FOTOGRAFIA É SIMILAR
A DA CENA ANTERIOR NO MESMO CHUVEIRO.

soem o raios, soem tambores de


trovões e relâmpagos escureçam o
céu pela cegueira causada á quem
repara nas estrelas, a cegueira
causada a quem bebe o néctar dos
sonhos. És tântrico, és tântrico,

CENA 40 - INT. VISTA DA JANELA

LENTE GRANDE ANGULAR COM INTENSA PROFUNDIDADE DE CAMPO.

és tântrico!
FIM DO ATO 2

ATO 3 - JUSTIÇA E ABSOLVIÇÃO. DE QUAIS CADEIAS A MULHER


LOUCA PODE SE LIBERTAR?

CENA 41 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

PLANO ZENITAL.

A luz volta, ela está deitada no


chão.

De repente, novamente esvaneço no


assoalho, manchando o cenário de
um vermelho

CENA 42 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

PLANOS DETALHES DE SUPER TELEOBJETIVA. FOTOGRAFAM MÃOS,


PÉS, RUGAS DO ROSTO E DETALHES DO AMBIENTE.

morto mal cheiroso, aquele velho


ar

CENA 43 - INT. CASA DE ENTULHOS

PLANOS DETALHES DE SUPER TELEOBJETIVA. FOTOGRAFAM MÃOS,


PÉS, RUGAS DO ROSTO E DETALHES DO AMBIENTE.

de mofo dos porões das casas


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antigas, cujas rugas guardam


também feridas dos antigos móveis
inquilinos

CENA 44 - INT. PAREDE DE CRISTO

PLANOS DETALHES DE SUPER TELEOBJETIVA. FOTOGRAFAM MÃOS,


PÉS, RUGAS DO ROSTO E DETALHES DO AMBIENTE.

e seus fantasmas brancos cinzas


espantosos, seus sinistros
armários cheirando também a mofo,
e as frutas passadas esquecidas
na fruteira floral.

CENA 45 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

PLANO ZENITAL.

Meu corpo desvanece quase morto,


inerte ao vento frio e ás batidas
na porta,

CENA 46 - INT. CASA DE ENTULHOS

PLANOS DETALHES DE SUPER TELEOBJETIVA. FOTOGRAFAM MÃOS,


PÉS, RUGAS DO ROSTO E DETALHES DO AMBIENTE.

desvio o olhar do corredor escuro


e tento ver em minha volta, os
animais empalhados dentro do
armário, os tapetes sujos, a
cadeira de perna quebrada.

CENA 47 - EXT. LUSCO-FUSCO. ÁRVORE CENTENÁRIA

CÂMERA FOTOGRAFA AS COSTAS DA ATRIZ EM FRENTE À ÁRVORE EM


MÉDIA, LONGA E LONGUISSIMA DISTÂNCIA. É POSSÍVEL PEQUENOS
MOVIMENTOS ESPIRITUAIS.

Tento ver dentro de minha alma e


suplico que ela volte antes eu me
perca. Antes que eu vá e ela não
esteja, ou que ela vá e não me
encontre, ou que ela de vez me
perca para nunca mais.

CENA 48 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

CÂMERA FRONTAL FOTOGRAFA A ATRIZ EM FRENTE AO CHUVEIRO EM


MÉDIA E LONGA DISTÂNCIA. É POSSÍVEL PEQUENOS MOVIMENTOS
ESPIRITUAIS.
17

Tento subir pelas paredes até o


teto a fim de me esconder no
lustre de vitrais, as luzes
machucam os meus olhos e eu caio
novamente, quase morta, ferida
pela claridade que propus. Sou
torta, agora vejo claro.

CENA 49 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

MODO 1: ZENITAL. CÂMERA FOTOGRAFA A ATRIZ DE CIMA, QUASE


O HOMEM VITRUVIANO.
MODO 2: CÂMERA EM CLOSE, TELEOBJETIVA, FOCA HORA BOCA,
HORA OLHOS, PES E MÃOS.

Pés em ponta, dedos


eqüidistantes, distantes, a palma
estufa e aponta o inferno, braços
tesos e pernas esticadas, o
abdômen completamente tensionado
e os olhos assustados, a boca
totalmente aberta, sobrancelhas
arqueadas, o sopro. O suspiro. O
magma da terra o inverno, as
gotas de lágrimas tocando o
orvalho, o tempo ruim me toca. E
alguém bate na porta.

(batidas na porta)

CENA 50 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

ATRIZ EXATAMENTE NO MESMO ESTADO LATENTE DA CENA


ANTERIOR. CÂMERA FECHADA NOS OLHOS VAI ABRINDO AOS POUCOS
E DESVELANDO O NOVO CENÁRIO, DEPOIS VOLTA A SE FECHAR.
SUPER TELEOBJETIVA, CENÁRIO DO FUNDO É POUQUISSIMO VISTO.

Não, senhor, não volte a me


habitar. Não volte a tomar-me
sua, devolva-me. Corte-me os
cabelos apenas as pontas e
devolva-me tudo o que for resto
de vida ou principio de.

(batidas mais fortes)

CENA 51 - INT. PAREDE DE CRISTO

ATRIZ EXATAMENTE NO MESMO ESTADO LATENTE DA CENA


ANTERIOR. CÂMERA FECHADA NOS OLHOS VAI ABRINDO AOS POUCOS
E DESVELANDO O NOVO CENÁRIO, DEPOIS VOLTA A SE FECHAR.
SUPER TELEOBJETIVA, CENÁRIO DO FUNDO É POUQUISSIMO VISTO.

Troque a fechadura o seu rosto


gélido e seus olhos brancos me
cortam a garganta seca, e meu
18

urro mal se escuta por quem passa


do outro lado da ponte, mas
grito:

CENA 52 - INT. CREPÚSCULO. VISTA DA JANELA

PERFIL EM PRIMEIRO PLANO. GRANDE ANGULAR.

- ASAS!!! - ASAS!!! AGORA EU


POSSO VER O SANGUE.

CENA 53 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

DOLLY ZOOM, EFEITO VERTIGO.

(batidas ainda mais fortes)


Toca trombeta!
(a trombeta toca)
E me expulsa!

(TOCA UMA ORQUESTRA)

CENA 54 - EXT. CREPÚSCULO. TEIAS DE ÁRVORE

A ATRIZ GIRA EM TORNO DAS TEIAS E A CÂMERA A ACOMPANHA DE


PERTO FOCANDO SEMPRE SEU ROSTO. SUPER TELEOBJETIVA.
PEQUENOS PEDAÇOS DE PAPEL BRANCO E ISOPOR CHOVEM NA
CABEÇA DA ATRIZ EM GRANDE QUANTIDADE DURANTE TODA A CENA.

Foi quando fui sequestrada pelos


urubus malignos, aqueles
sinistros bichos negros imensos
esganiçados, com sua plumagem
brutal e encardida, com seus
bicolineos afiados dantescos,
eles sim me levaram ao abismo e
arremessaram minhas malas, minhas
rupas sagradas profanando meu
futuro túmulo com roupas íntimas
sujas, mantos brancos e minhas
coroas de cristal quebradas ao
confronto com as pedras. Estes
são as panteras dos céus, os
carniceiros sem lei, estes são os
orientais desumanos vindos de
seus reinos distantes onde não há
sinal de civilização. Eles então
sobrevoaram meu crânio e do alto
lançaram seu feitiço macabro
digno de abutres do inferno,
enviados do demônio que com o
puro objetivo de cobrar-me divida
19

imposta pelo destino. Cobrem


dele, o dono do tempo! Deixem-me
sóbria e sombria lá com minhas
lembranças, estas sim devem
permanecer mortas! Vieram e
levaram consigo todo o resto de
pureza de minha alma indefesa e
quieta, agora atormentada por um
vulto ultrapassado, ultrapassado,
ultra passado. Como se eu fosse
de isopor me apanharam pelos
braços, com tamanha crueldade,
feriram minha epiderme casta e
alva tornado-a maculada e com sua
ferina ruindade largaram-me rumo
á queda. Jogaram-me sem pena,
eles, aves pretas, jogaram-me sem
pena alguma, apenas gargalharam
na trajetória de volta ao
inferno. Eu que antes ensaiava
que subindo ao alto chegaria ao
céu.
(toca a campainha)

CENA 55 - INT. PAREDE DE CRISTO

SUPER TELEOBJETIVA. CHOVE INTENSAMENTE NA CABEÇA DA


ATRIZ.

Por sua culpa, sua exclusiva


culpa, facínora sanguinário,
incapaz de cantar-me uma
serenata!
(batem na porta)
CENA 56 - INT. CASA DE ENTULHOS

SUPER TELEOBJETIVA. CHOVE INTENSAMENTE NA CABEÇA DA


ATRIZ.

E sua total imperícia em


camuflar-se, esconder-se, ser
discreto como convinha a um
amante, eu não sabia ser vitima
de um cão de sua laia!
(o canto da coruja)
CENA 57 - EXT. AURORA. TEIAS DE ÁRVORE

CENA 57.2 - EXT. LUSCO-FUSCO. TEIAS DE ÁRVORE

SUPER TELEOBJETIVA. CHOVE INTENSAMENTE NA CABEÇA DA


ATRIZ. LUZ ESPECIFICA ILUMINA A CHUVA.

A minha saia agora roda rente ao


chão, ainda antes fingia levitar
ao vento quente de minhas ancas,
agora parece esmorecer ao vento
frio que habita toda a extensão
do meu corpo. O vestido fora tão
20

mais belo com a bainha


enfeitiçada! Tanto como eram meus
cabelos, negros também brilhantes
e dançantes, cujas pontas mal
tocavam meus ombros e nem minhas
costas curvas, e como uma medusa
bela eu também enfeitiçava os
transeuntes doentes e bêbados. Eu
me pintava inteira, carmim cor de
amor e pequena sombra púrpura
translúcida para corar faces
angelicais, quase sempre
envergonhadas. Hoje apenas corro
contra os uivos dilacerantes,
apenas atendo ao chamado do meu
nome pela boca mais sorrateira,
cujo suspiro e sussurro me atraem
como a uma raposa ao ver carne
fresca, como ao pescador ao som
da sereia aborígene. Tendo ao
lapso, vez por outra, mas me ergo
como ergui um dia a faca!
(gritos)

CENA 58 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

LENS FLARE DE VERMELHO INTENSO.

E ergueria quanto preciso fosse


para que eu me reerguesse em
seguida!
(batida na porta )

CENA 59 - INT. CASA DE ENTULHOS

CENA 59.2 - INT. PAREDE DE CRISTO

LENS FLARE DE AZUL INTENSO EM FORTE LUZ DE CONTRA, SÓ


VEMOS A SUA SILHUETA. FUNDO NÍTIDO, ILUMINADO
SEPARADAMENTE.

(Ela dança um rito


indecifrável, acende velas
e incensos, abre alçapões,
cadeados, ela parece em
transe.)
(enquanto dança)

Lacaios e subalternos me renderam


honras e homenagens Neste intuito
também me visitou figura honrada
e Mademoiselle Quando o sino da
igreja não apontava nem 11 horas
da noite E a lua mal ocupara
posto no infinito reluzente Me
trouxe imagens de antigos
imperadores mortos por
envenenamento E outras, como eu
21

viúvas, chorando prostradas aos


túmulos destes soberanos Ainda
outras seguravam a barra de seus
vestidos caros E mais outros
apoiavam guarda-sóis aos ombros
para lhes proteger da tormenta
Homens santos rezavam em memória
destes coitados defuntos E aves
coloridas alimentavam suas crias
em ninhos bifurcados Disse-me
Mademoiselle que eu também fora
coitada temente Eu também fora
depressiva proponente e cuidadora
dos infernos E agora, também eu,
merecia meu descanso sob o leito
sagrado Meu leite seria
derramado, meu suor benzido como
fora a água E no futuro minha
lágrima seria reconhecidamente
casta Clamou em meus pés,
beijou-os, e ao levantar-se
sussurrou em meus ouvidos
Palavras de boa ventura e
gratidão A emoção de sua face me
tocou o peito latente Eu era
descrente e hoje acredito Eu era
atenta, hoje sou complacente
Perene que sou, tudo o que era é
ultra passado Por fim, me rendo
(a coruja canta)

CENA 60 - EXT. LUSCO-FUSCO. TEIAS DE ÁRVORE

SUPER TELEOBJETIVA. CHOVE INTENSAMENTE NA CABEÇA DA


ATRIZ. LUZ ESPECIFICA ILUMINA A CHUVA.

A ave ainda gorjeia no infinito.


Minha retina abre, sou quem
ordena, abre insensata!

CENA 61 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

PLANO ZENITAL.

Eram murais sinistros aquilo que


eu via. Eram corvos, agora lembro
seus nomes. Eram abutres e
criavam cães. Mal consigo falar
sobre esta lembrança. É mau
passado.

CENA 62 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

LENS FLARE DE VERMELHO INTENSO EM FORTE LUZ DE CONTRA, SÓ


VEMOS A SUA SILHUETA. CHUVA COMEÇA FORTE E VAI CESSANDO
AOS POUCOS. LUZ VAI PARA O SÉPIA GRADUALMENTE NO FIM DA
CENA.
22

Tanto estive estou a tanto tempo


quanto tenho estado torto morto
solto ao vento fraco quieto tento
entanto e sento calo o canto um
pouco e rouco rezo atento ao fato
de estar cansado penso quase
sempre um nada posto tal desgosto
dado outrora o fado desconsolo e
a mão afaga o rosto choro triste
e louco falo grito e rio e paro
olho vidrado no retrato branco e
fosco sujo e mal cheiroso de
guardado peço e quando lembro
tenho como um pressentimento
tosco de um algo perigoso que vá
dá errado juro como jura um
mentiroso e grosso esconjuro o
mundo todo e desmorono a face
como estou atordoado e como fácil
fosse prendo e o pescoço estica
quando estica a haste e como é a
arte e como belo fosse vôo livre
como se asa visse quando triste
morto ainda corto o punho e de
roxo grito odiado o rito
terminado limpo o que é passado e
como trem desenfreado passo

CENA 63 - EXT. AURORA. TEIAS DE ÁRVORE

LENS FLARE.

Já é domingo amanhecido. Penso eu


que preciso repousar.
(o som de alguém sem ar)

CENA 64 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

LENS FLARE INTENSO AMARELO. VALSA. CAI SOBRE A CABEÇA DA


ATRIZ PAPEL CELOFONE AMARELO. PLANOS DETALHES NA MÍMESE
DA ATRIZ.

Sobre como matei meu marido e meu


amante: Curti um pouco de açafrão
misturado ao alho, azeite pouco,
comprei cuminho vindo da Europa e
canela da mulher negra, adociquei
com mel e esquentei á fogo
brando. Ao vir a galinha caipira,
já assada, besuntei e colori como
cobertura de bolo, novamente foi
ao forno,

CENA 65 - INT. MESA DE MADEIRA

Atriz come vorazmente um pequeno banquete de temperos e


porções grandes de alface, rúcula e espinafre. São
coloríficos, azeites e óleos, dispostos em recipientes de
23

madeira. A mesma voracidade com que escrevia as cartas,

A CÂMERA TAMBÉM BUSCA A MESMA FOTOGRAFIA. PLANOS DETALHES


DE TELEOBJETIVA NOS INGREDIENTES.

não comi e soube que estava


apetitosa.

CENA 66 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

Me tranquei no lavabo e pude


gargalhar em paz.

CHUVEIRO LIGA FORA DA CÂMERA. ATRIZ VAI SE ENCAMINHANDO


PARA ELE E A CÂMERA A SEGUE. CAI SOBRE A CABEÇA DA ATRIZ
PAPEL CELOFONE AMARELO.

Quanto ao cavalo garanhão, ao


homem másculo pouco discreto que
esbanjava coices ás mulheres da
ladeira baixa, aquelas cujos
decotes insinuavam seu âmago,
também foi merecedor de meu
tempero e meu desespero
atormentou meu...

CENA 67 - INT. PAREDE DE CRISTO

CÂMERA GIRA EM TORNO DA ATRIZ. GRANDE ANGULAR.

Não largue meu braço nunca mais


Tobias. Nunca mais toque meus
lábios. Não quero mais te ver em
meu horizonte. Nunca mais
Adalberto,

CENA 68 - INT. CASA DE ENTULHOS

CÂMERA GIRA EM TORNO DA ATRIZ. GRANDE ANGULAR.

quisera poder ter te enforcado


com meu manto escuro, aquele que
em noite de núpcias acariciou as
maçãs de teu rosto sujo de briga
em tabacaria. Quis beijar-lhe
também e guardar gosto da
juventude na minha boca, mas só
consegui arrancar-te parte da
boca e gosto de sangue nunca mais
sumiu de meu paladar. Arrancaste
meus brincos, certa feita, te
lembra?
(recebe um tapa no rosto e
se ajoelha)

CAMERA INVERTE LADO QUEBRANDO O EIXO.


24

Também fui vitima de tua


intransigência, teu espírito
mesquinho, teu hálito faminto eu
quis também te magoar e quase
pensei não poder por ser mulher,
mas veja só, coisa dantesca, eu
pude!

NOTA PARA EDIÇÅO: MOSTRA IMAGEM DA VISTA DA JANELA.

CENA 69 - EXT. PÉS DE ABÓBORA.CASA AO FUNDO

A ATRIZ ESTÁ NA PORTA DA CASA, OLHANDO O MOVIMENTO DO


LADO DE FORA. A CÂMERA EM DOLLY ZOOM, EFEITO VERTIGO.
TELEOBJETIVA.

Eis que agora chegam teus


comparsas, teus mandantes
cabruncos enraivados querendo
tomar parte da briga dos
cônjuges, nada de dedos e mãos no
meu rosto, eu não sou como
aquelas ratazanas da ladeira
empinada cujos bustos insinuam os
seios, sou mulher santa segundo o
testemunho do pároco.

CENA 70 - INT. PAREDE DE CRISTO

Atriz caminha em direção ao banheiro enquanto fala.

DOLLY ZOOM INVERTIDO.

Nada tenho a dizer sobre as


injúrias dispensadas a mim em meu
leito de morte, me seria útil que
o céu fosse despejado feito
trovoadas em todas as cabeças
destampadas e que todos os
arcanjos desavisados também
caíssem juntamente com o clarão
de águas, machucando as mães
zelosas que ainda choram, e as
tias solteiras que ainda rezam,

CHEGA EM...

CENA 71 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

DOLLY ZOOM INVERTIDO SEGUINDO A ATRIZ.

Atriz abre a tampa do vaso sanitário e aperta a descarga.

e os homens da casa que nunca


limparam o aposento que defecam.

O chuveiro novamente se abre e ela caminha novamente em


direção ao chuveiro.
25

Quero estar só quando o dia


esperado bater em minha porta me
cobrando fiança para o sossego
infinito.

CENA 72 - EXT. AMANHECER. TEIAS DE ÁRVORES

TELEOBJETIVA COM LENS FLARE INTENSO. ATRIZ GIRA EM TORNO


DA ÁRVORE E A CÂMERA A ACOMPANHA. PEQUENOS PEDAÇOS DE
PAPEL BRANCO E ISOPOR CHOVEM NA CABEÇA DA ATRIZ EM GRANDE
QUANTIDADE DURANTE TODA A CENA.

Quero ser cega e não ver que no


meu ombro tocam harpas de
desassossego, mãos doentes afagam
meus cabelos e minhas faces são
beijadas por leprosos profetas do
fim. Quero ser surda quando
vierem os trompetes e os avisos
sonoros diversos tocando meus
tímpanos e pedindo acolhida,
quando quiserem de forma ou de
outra me encontrar por conta dos
desenganos, me acusando de
facínora e sinistra como fiz com
tantos bedéis e juízes, como
cuspi no rosto de ciganos e cães
de baixa estatura. Quero ser
muda.
(a boca permanece falando
sem se ouvir som)

ATRIZ PÁRA E A CÂMERA DÁ UM CLOSE EM SEU ROSTO FOCANDO OS


OLHOS.

CENA 73 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

ATRIZ EMBAIXO DO CHUVEIRO E A CÂMERA DÁ UM CLOSE EM SEU


ROSTO FOCANDO OS OLHOS E BOCA. SUPER TELEOBJETIVA.

V.O. Quando chegarem os


promotores amargos pedindo
explicações sobre o torto olhar
do criminoso, sobre o sangue que
escorreu e eu vi, sobre as
suplicas de perdão que fingi não
ver.

CENA 74 - INT. ASSOALHO DE MADEIRA

ATRIZ EM PLANO BAIXO, NO CHÃO, A CÂMERA A FOTOGRAFA POR


CIMA, ZENITAL, E ELA CONVERSA COM SEU INTERLOCUTOR
IMAGINÁRIO TAMBÉM NO ALTO.

atriz soterrada de folhas secas até o pescoço.

(volta a falar com som, a


orquestra toca)
26

(O corpo teso, como se ela


quisesse se libertar do
próprio corpo através dos
olhos, como se ela quisesse
sair pelos olhos.)

Já me aconselhei com o meu pai.


Não vou voltar palavra dada, nem
ato consumado, está desfeito
alma, nunca me rezaram missa,
nunca me colheram flor, eu não
arredo a decisão inscrita em
ferro e fogo em carne e brasa a
cicatriz está exposta em meu
próprio rosto e o deus
carnificina tomará partido do
desordenado a partir do meu ato
extravagante imenso inalado em
fumaça de desinfetante e amônia
que é o perfume dos xantês.

CENA 75 - EXT. AMANHECER.PÉS DE ABÓBORA/ CASA AO FUNDO


ATRIZ PARADA NA PORTA, FALANDO PARA QUEM ESTÁ FORA.
CÂMERA À FOTOGRAFA DE LONGE E VAI SE APROXIMANDO AOS
POUCOS ATÉ O CLOSE.

Dantes foram homens, hoje macacos


mordem uns aos outros em busca do
tesouro inalcançável. Venham
moços reluzentes de branco,
venham á cavalo ou em carros
manicômios,

ATRIZ SAI CORRENDO EM DIREÇÃO À ÁRVORE CENTENÁRIA, A


CÂMERA A PERSEGUE EM VELOCIDADE NUM PLANO SEQUÊNCIA,
FOCANDO A BARRA DE SEU VESTIDO E SEUS PÉS DESCALÇOS.
TELEOBJETIVA, 120 FPS.

venham em seus novos automóveis


movidos a álcool e ambição,
venham tomar-me o espírito, pois
já estou mesmo perdida em meio a
tanta profanação de mim mesma, eu
mesma já não me encontro mais,
desativei-me e nunca, nunca me
escreveram carta e nem dataram
meus pedidos de socorro, nem
sequer

CORTA PARA...

CENA 76 - INT. BANHEIRO DE CASEBRE

Atriz embaixo do chuveiro enterrada por folhas secas.

tomaram conhecimento dos crimes


praticados nesta casa, dos quais
27

eu fui vitima solista e agora


pago eu também por estes
desatinos do destino.

CENA 77 - EXT. AMANHECER. ÁRVORE CENTENÁRIA

CENA 77.2 - EXT. ANOITECER. ÁRVORE CENTENÁRIA

Atriz em frente a árvore, conversa com a árvore muito


próxima. Estica o pescoço e fica em ponta de pés tentando
olhar o alto da árvore.

CÂMERA FOCA A ATRIZ POR UM TEMPO E DEPOIS COMEÇA A DAR


VOLTAS EM TORNO DA ÁRVORE, HORA FOCANDO A ATRIZ E HORA A
PERDENDO E FOCANDO APENAS A ÁRVORE. FOLHAS SECAS CAEM
ACIMA DA CAMERA ATÉ CESSAR GRADUALMENTE AO FIM DO TEXTO.

Sou eu santa e profanada, antes


doida hoje devedora e presa ao
que é liberdade. Temo ainda o dia
que não chegue e a luz que não
clareie, temo é eternidade e o
ponto que nunca se dá, temo o
descortinar que não se apresenta
e os aplausos que não findam e o
eco que não cala e não esqueço
não esqueço não esqueço do que
volta vira e mexe e já foi a
tanto que já sou outra nada e
puro carma e puro poluição que me
restou. É meu temor primeiro e
único não mais saber do fim que
já foi dado e esperar um
sempre/nunca vindouro adeus do
que já foi por mais vezes adiado
e a despedida acompanhada de um
abraço e a despedida acompanhada
de um abraço e a despedida
acompanhada de um abraço e a
despedida acompanhada de um
abraço e a despedida acompanhada
de um abraço e a despedida
acompanhada de um abraço e um
peito sereno, um ato
descompromissado de afeto e
consolo, um acalanto tão estimado
e esperado por alguém necessitada
um tanto de um tento um doce,
afaga a mente e quente reluz um
sorriso como quando ouve serenata
inesperada. Por quanto...

Cena final, cena múltipla

CENA 78 - INT. AMANHECER. VISTA DA JANELA

CÂMERA FOCA A ATRIZ OLHANDO PARA ÁRVORE CENTENÁRIA LÁ


28

EMBAIXO ONDE A MESMA ATRIZ SIMULTANEAMENTE CONVERSA COM A


ÁRVORE CENTENÁRIA. A CÂMERA DEVE FAZER DOIS TAKES,
ESTÁTICA, COM EXATAMENTE A MESMA FOTOGRAFIA DA VISTA. EM
UM TAKE A ATRIZ OBSERVA DA JANELA, E NO OUTRO ELA ESTÁ LÁ
EMBAIXO, EM FRENTE A ÁRVORE.

CENA 78.2 - EXT. AMANHECER. PRAIA DE ITAPUA

ATRIZ NA PRAIA DANÇA LEVE, PERTO DO MAR, A CÂMERA


DISTANTE. NO CÉU UM ARCO-ÍRIS.

Serenata é coisa que só se tem em


poucas ocasiões, presente divino,
de significado amoroso e honra
infinita. Serenata é bem
precioso, sinto eu o coração
esvanecer devagar quando a
lembrança revê os momentos de
magia que vivi quando alguém de
minha estima, como alguém a quem
se precisa, com esse bem me
presenteou. E este alguém de tão
amado parecia estar ao meu lado,
mesmo estando tão longe, embaixo
da janela, cantava tão alegre e
forte que sua voz encantada
alcançava meu peito palpitante
quando na estrofe mais abençoada,
seu canto cansava e de emoção
desafinava por um instante.
Queria eu revê-lo e escutá-lo.
Queria eu novamente deitar a
cabeça sob o lençol quente com o
ouvido a zumbir uma música de
acalanto. Queria eu agora estar
deitada no seu colo, ao invés
deitada no travesseiro molhado
com meu pranto.

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