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A ESCRITA DA HISTÓRIA

UNIDADE 2
NA ERA PRÉ-INDUSTRIAL:
NA ANTIGUIDADE,
NA IDADE MÉDIA
E NO RENASCIMENTO

Objetivo
• Estudar os princípios fundamentais que nortearam o
processo de escrita da História, destacando seus métodos
e relações com o tempo em que foram produzidos, ao
longo dos seguintes períodos: Antiguidade Clássica
(Grécia e Roma), Idade Média no Ocidente europeu e
Renascimento europeu entre os séculos 15 e 16.

Conteúdos
• A Escrita da História na Antiguidade.

• A Clio cristã: a historiografia na era medieval.

• A História Renascentista: o Humanismo em marcha.


UNIDADE 2
Licenciatura em História

ATENÇÃO!

1
Lembre-se de que a organização
de um horário de estudo é útil
para estabelecer hábitos e,
INTRODUÇÃO
assim, possibilitar que você
utilize o máximo de seu tempo e Na unidade anterior, vimos alguns conceitos gerais sobre a metodologia da
de sua energia. Pense nisso...
Não se esqueça de consultar as História e algumas implicações envolvidas na produção da memória de uma época, ou
informações contidas no Guia seja, os cuidados que devem ser tomados ao se rememorar e reconstituir o passado.
de disciplina e na página inicial
desta disciplina.
Nesta unidade, discutiremos como foi escrita a História ao longo da Antiguidade
Clássica (Grécia e em Roma), na Idade Média (Europa Ocidental) e, por fim, no período
da Renascença europeia.

Nosso objetivo será, portanto, perceber como, durante um período tão extenso,
a escrita da História foi se transformando e qual papel exerceu no contexto cultural do
período em estudo.

2 ESCRITA DA HISTÓRIA NA ANTIGUIDADE


É quase consenso entre os estudiosos da escrita da História que esta teria
nascido na Grécia Antiga, entre os séculos 6º e 5º a.C. Assim se manifesta Carbonell
(1987, p. 15), importante historiador e pesquisador do tema: “é na segunda metade
do século 5º a.C., no pequeno mundo egeu onde tinha desabrochado a arte dos poetas
trágicos e despertava a especulação dos filósofos, que nasce a história”.

No mesmo sentido, seguindo as afirmações do historiador Fontana (1998, p.


17), podemos dizer que a historiografia surgiu com os chamados “logógrafos”1 da Ásia
Menor, “que tinham recolhido a informação dos manuais em que os marinheiros anotavam
(1) Logógrafos: segundo o
dicionário Aurélio, é a designação os portos e povos das costas mediterrâneas, com observações sobre seus costumes e
comum aos primeiros escritores sobre a história local”.
gregos, ou, ainda, refere-se a
autores de um glossário.
Observando a origem do termo “História”, completa o historiador Fontana (1998,
p. 17), percebemos que ela “deriva de um verbo que significa ‘explorar, descobrir’, o que
viria a corresponder ao fato de que a primitiva historiografia grega era, antes de tudo, uma
exposição de ‘descobrimentos’ sobre terras e povos estranhos”. De acordo com o mesmo
autor, entre os logógrafos, destaca-se “Hecateu de Mileto (c. 500 a.C.), cujas obras se
referem à descrição da terra e à história, e de quem se destaca a vontade expressa de
analisar racionalmente os mitos do passado” (FONTANA, 1998, p. 17).

Acredita-se que o avanço da escrita da História guarde relações diretas com as


transformações da sociedade grega entre meados do século 6º e 5º a.C.

Nesse momento, iniciou-se uma difusão da atividade econômica no interior de


algumas cidades-Estado, o que acabou promovendo certo desequilíbrio entre a aristocracia
vinculada à posse da terra e os grupos que faziam as atividades mercantis.

Esse desequilíbrio entre a aristocracia e os grupos mercantis resultou em


mudanças na estrutura de poder das sociedades helênicas, derrubando reis e ascendendo
grupos que apoiavam os chamados tiranos.

Posteriormente, foram esses tiranos que abriram espaço para a ascensão de


regimes ditos democráticos, controlados por uma nova elite, talvez mais mercantil e
menos rural.

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O caso clássico dessas transformações na sociedade grega ocorreu em Atenas,


ao redor do ano de 600 a.C. O historiador Anderson (1994, p. 30) descreve essa mudança
da seguinte forma:

A ruptura dessa ordem geral ocorreu no último século da era arcaica,


com o advento dos tiranos (c. 650-510 a.C.). Estes autocratas romperam
a dominação das aristocracias ancestrais sobre as cidades: eles
representavam proprietários de terras mais novos e riqueza mais recente,
e estendiam seu poder a uma região muito maior graças a concessões
à massa sem proprietários dos habitantes das cidades. As tiranias do
século 6 realmente constituíam a transição crucial para a pólis clássica. Foi
durante seu período geral de predominância que as fundações militares e
econômicas da Grécia clássica foram lançadas. INFORMAÇÃO:
O termo “antropomorfismo”
origina-se da junção de duas
Além disso, mudanças da ordem religiosa manifestaram-se também, palavras gregas: anthropos
especialmente a tendência de revisar criticamente os mitos gregos (algo que Hecateu de (homem) e morphe (forma).
Portanto, um antropomorfismo
Mileto procurou realizar) e a característica antropomórfica da sua religião. se dá quando os deuses se
manifestam em forma humana
Nesse contexto de transformações, um novo modelo de análise do passado ou são atribuídos feições,
sentimentos, atos e paixões do
deveria surgir, pois aquele dos mitos que glorificavam os grupos no poder não servia mais homem a divindades. Assim, para
para justificar a nova realidade. a civilização da Grécia Antiga, os
deuses eram antropomórficos.

Logo, é nesse contexto e com esse papel que surge a História. Segundo Fontana
(1998, p. 18), “da fusão de revolução política e mudanças religiosas surgiu a interpretação
histórica da idade clássica: uma interpretação aristocrática, porém favorável à democracia
e hostil aos velhos mitos em que se assentava a sociedade da realeza e da oligarquia” .

Os “pais” da História

Depois de Hecateu de Mileto e os logógrafos, o grande salto da História grega,


rumo a seu auge, ocorreu com dois homens que tinham características distintas, mas
foram igualmente importantes: Heródoto e Tucídides.

A grande tensão que permitiu o desabrochar da História foi o rompimento


com o gênero literário, em busca da verdade. Heródoto encarna em sua obra
justamente essa tensão entre ficção e realidade.

Heródoto de Halicarnasso (c. 485 – c. 424 a.C.) era um historiador por intenção.
Isso ele deixa claro já na inauguração de sua obra sobre as Guerras Médicas (490-479),
em que diz que escrevia para “impedir que caíssem no esquecimento as grandes façanhas
realizadas pelos Gregos e os Bárbaros” (CARBONELL, 19987, p. 16).

O método de investigação de Heródoto era acreditar somente naquilo que


observava e ouvia dizer; essas eram suas fontes. O autor em questão defendia que
qualquer coisa fora do alcance de sua visão ou do relato claro e objetivo de alguém que
houvesse presenciado o fato estava fora do terreno da História. No entanto, ele utilizava-
se dos mitos para preencher as lacunas que as fontes não podiam clarificar.

(2) Um aedo (em grego


Dessa forma, Heródoto simboliza uma era de transição, em que a História tenta clássico ἀοιδός/aoidos, do
deixar de ser um gênero literário, mas não rompe totalmente com ele. verbo ᾄδω/aidô, “cantar”) era,
na Grécia antiga, um artista
que cantava as epopeias
Esse rompimento apenas parcial com o gênero literário pode ser a explicação acompanhado de um instrumento
de as obras de Heródoto terem sido escritas para serem lidas em público pelos aedos2, musical, o forminx. Distingue-
se do rapsodo, mais tardio, por
como na velha tradição literária da Grécia. Talvez isso justifique por que, para Heródoto, a
compor as próprias obras. Por
verdade se situa no lado do oral ou do observado, em detrimento do escrito. esse fato, era o equivalente a um
bardo celta.

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Por manter elementos literários em suas histórias, Heródoto é considerado, em


determinado momento, como, por exemplo, no século 19, um farsante, um mentiroso.

Contudo, no período renascentista e na atualidade, ele volta ao altar de pai


da História. Isso revela, como bem destaca Dosse (2002, p. 21), uma “ambivalência do
discurso histórico, sempre tensionado entre o real e a ficção”.

Outro homem grego importante para a História é Tucídides (c. 460 – c. 400 a.C.),
que se estabelece como historiador fazendo justamente uma crítica radical a Heródoto.

Para Tucídides, Heródoto era um mitólogo e, portanto, um mentiroso. Tucídides


quer buscar a verdade e, para isso, precisava romper com o método de seu antecessor.

Figura 1 Busto de Tucídides. Afirma Carbonell (1987, p. 17) que: “com a História da Guerra do Peloponeso,
de Tucídides, nascem simultaneamente o método e a inteligência do historiador: a crítica
das fontes e a procura racional do encadeamento causal”.

Assim, Tucídides estabeleceu um método extremamente rigoroso para a coleta


de fontes. Segundo Dosse (2002, p. 21), “delimitando o campo de investigação ao que ele
poderia observar, Tucídides reduziu a operação historiográfica a uma restituição do tempo
presente, resultando em um ocultamento do narrador, que se retira para deixar falar os
fatos”.

Já que as fontes seriam apenas o que pudesse ser observado, era tirada do
historiador qualquer possibilidade de analisar aquilo que estivesse distante de seu tempo
de vida. O saber histórico em Tucídides é, exclusivamente, o observado.

(3) Políbio buscava as causas Os “novos” historiadores da Antiguidade


da conquista romana sobre todo
o mundo grego e oriental. Seu
Neste tópico, veremos um outro momento significativo na busca pela produção
método histórico era a “procura
das causalidades”. No início da História.
de sua Histórias, pergunta:
“Que homem será tão néscio
ou negligente que não queira Políbio3 (c.208 – c.122 a.C.) é o historiador que surge após o aparecimento
conhecer como e mediante que das obras de Platão e Aristóteles, no século 4º a.C. Envolvida pelo cenário de discussão
tipo de organização política
filosófica sobre democracia e aristocracia, a obra de Políbio é uma recusa da História
quase todo o mundo habitado,
dominado em cinqüenta e três trágica ou mesmo da pura erudição livresca.
anos não-completos, caiu sob
domínio de um único império,
o dos romanos?” (FONTANA, Segundo Fontana (1998, p. 24-25), Políbio, “devolvendo à História seu velho
1998, p. 25). propósito generalizador, queria que não só fosse investigação sobre o passado, como
também, e sobretudo, um meio de formação política”.

Políbio é fruto do mundo em transição da Grécia para Roma, como centro


articulador da vida econômico-social e cultural da Antiguidade europeia. É evidente que,
num contexto como esse, um homem exilado da Grécia para Roma, que viveu e presenciou
os dois contextos, é uma figura privilegiada na busca das causas dessas transformações.

A historiografia propriamente romano-latina é de difícil apreensão, pois


seus autores eram muito mais entusiastas dos governos e imperadores romanos do
que propriamente historiadores. De qualquer forma, observe a síntese produzida pelo
historiador Fontana (1998, p. 26):

Figura 2 Estátua de Tito Lívio


Políbio.

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Quando passamos dos historiadores gregos aos romanos, a dificuldade


para interpretar o pensamento que anima as suas obras aumenta. Temos,
em primeiro lugar, o problema dos proêmios: seguindo um costume que
deriva dos retóricos gregos, os historiadores latinos fazem preceder suas
obras de exposições filosóficas, onde se insiste em sua preocupação pela
imparcialidade e em seu propósito moralizador, exposições que pouco ou
nada têm a ver com a obra em si. Pelo que se refere à imparcialidade,
é difícil admitir encontrá-la nos grandes historiadores da etapa final da
República e do primeiro século do Império, cujos vínculos com a política
eram claros. É difícil atribuir objetividade e propósitos moralizadores a
Salústio (87-35 a.C.), político turbulento, acusado de crimes e abusos; a
um Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.), a quem se considerava como um defensor
do regime implantado por Augusto, ou a um Tácito (c.58 – c.120 d.C.),
que expressava o rancor da classe senatorial, reduzida a um papel político
secundário pelos imperadores, o que explica que nos tenha deixado uma
imagem hostil e deformadora dos reinados de Tibério, Cláudio e Nero. PARA VOCÊ REFLETIR:
Você acha que hoje a História
continua sendo utilizada para
Ao final do Império, os romanos manifestavam seu pessimismo em relação justificar a realidade social em
que vivemos?
ao futuro, que contrastava com seu orgulho sobre a grandeza do passado romano.
Como afirma Carbonell (1987, p. 38-39), “lúcidos e patriotas, os historiadores romanos
escreveram durante seis séculos uma obra coletiva sobre a grandeza e decadência de
Roma”; evidentemente, “uma história assim não podia deixar de ser épica, guerreira, INFORMAÇÃO:
Clio, de origem grega, significa
fanaticamente chauvinista. E mortal”. “glória” ou “fama”. Filha de
Zeus e Mnemósine, a memória,
foi uma das nove musas da
mitologia grega. Com suas oito

3
irmãs, chamadas “as cantoras
CLIO CRISTÃ: HISTORIOGRAFIA NA ERA MEDIEVAL divinas”, habitava o monte
Hélicon.
Segundo a mitologia, reunindo-
O conturbado fim do Império Romano do Ocidente e o crescimento cada vez maior se sob a assistência de Apolo,
junto à fonte Hipocrene, as
da igreja cristã é o cenário da emergência de um novo tipo de escrita da História. musas presidem as artes e
as ciências. Clio tem o dom
Fontana (1998, p. 28) afirma a existência de “uma historiografia cristã que, de inspirar os governantes
e restabelecer a paz entre
ainda que escrita em latim, não surge da romana clássica por um processo de evolução ou os homens, e a essa função
degeneração, mas antes responde a uma nova concepção da sociedade – à necessidade é especialmente devotada.
Além disso, ela é a musa da
de justificar um novo sistema de relações entre os homens”. História e da criatividade, aquela
que divulgava e celebrava
Esse novo sistema de relações entre os homens se dará em vista dos seguintes realizações. Ela preside a
eloquência, sendo a fiadora das
fatores: relações políticas entre homens
e nações. É representada
• Crise generalizada do fim do Império Romano do Ocidente. como uma jovem coroada de
louros, trazendo, na mão direita,
• Processo de invasões dos povos germânicos do norte da Europa. uma trombeta e, na esquerda,
um livro intitulado Thucydide.
• Ruralização profunda pela qual passou o Ocidente europeu entre os séculos Outras representações suas
3º e 8º da era cristã. apresentam-na segurando
um rolo de pergaminho e uma
pena, atributos que, às vezes,
Nesse cenário, houve uma instituição que veio se consolidando no período final
também acompanham Calíope.
do Império Romano, a qual sobreviveu à crise e conseguiu tornar-se o centro fundamental Clio é considerada a inventora
das referências culturais da sociedade europeia ocidental. Essa instituição é a Igreja da guitarra, de forma que, em
algumas de suas estátuas, ela
(ANDERSON, 1994). traz esse instrumento em uma
das mãos e, na outra, um plectro
(palheta).
Dentro da Igreja, começaram a emergir os pensadores, inclusive historiadores,
que passaram a justificar o novo modelo social que surgiu como resultado dessa lenta
transição da chamada Antiguidade Clássica para a denominada Idade Média.
ATENÇÃO!
Assim, um novo sistema social, o feudalismo, apareceu como a solução para Portanto, podemos concluir
dessa afirmação que mudanças
a intensa ruralização que a sociedade da Europa ocidental sofreu ao longo da crise de na sociedade serão refletidas no
transição. Surge, dessa forma, a historiografia cristã. modo como a História é escrita.

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Segundo Fontana (1998, p. 28-29), o que distingue a historiografia cristã da


greco-romana é:

o fato de que a greco-romana buscava a explicação dos fenômenos históricos no


interior da própria sociedade, fazendo uso de uma causalidade fundamentalmente
terrena, enquanto que a cristã supõe que existe um esquema determinado
vindo de fora da sociedade humana, por designo divino, que marca o curso
inelutável da evolução histórica.

Essa forma de observar a História surge com Santo Agostinho, que, no século
5º, estabelece uma filosofia da História fundamentada na visão cristã.

De acordo com o que afirma Carbonell (1998, p. 41), Santo Agostinho, em


“sua Cidade de Deus, escrita nos anos 420, define a história como a realização do plano
formado por Deus para a salvação dos homens”. Para Santo Agostinho, havia a cidade de
Deus e a cidade dos homens, mas “as duas cidades estão entrelaçadas uma na outra e
Figura 3 Pintura representando
Santo Agostinho. intimamente mescladas, de tal modo que é impossível separá-las, até o dia em que o juízo
as separe”. Vários historiadores, em geral vinculados à Igreja, escreveram suas obras
interpretando o passado baseados na perspectiva de Santo Agostinho sobre a existência
de uma cidade de Deus e de uma cidade dos homens. A primeira representa a pureza, e
a segunda, o pecaminoso.

Nesse caminho estava, por exemplo, o discípulo de Agostinho, Paulo Osório,


que escreveu uma nova História do mundo baseando-se na teoria agostiniana. Assim,
segundo Osório apud Fontana (1998, p. 32), o ataque dos germânicos a Roma teria sido
algo permitido por Deus “para a correção da cidade soberba, lasciva e blasfema”.

No entanto, temos de entender um pouco mais sobre as origens e a estrutura do


feudalismo para que possamos compreender sua produção histórica.

A desarticulação dos impérios bárbaros, que emergiram do fim do Império


Romano ocidental, fortaleceu os grupos rurais e permitiu a ascensão de um novo sistema
social, o feudalismo. Sobre ele, assim se manifesta o historiador inglês Anderson (1994,
p. 143):

Foi um modo de produção regido pela terra e por uma economia natural, na
qual nem o trabalho nem os produtos do trabalho eram bens. O produtor
imediato – o camponês – estava unido ao meio de produção – o solo – por
uma específica relação social. A fórmula literal deste relacionamento era
proporcionada pela definição legal de servidão: os servos juridicamente
tinham mobilidade restrita. Os camponeses que ocupavam e cultivavam a
terra não eram seus proprietários. A propriedade agrícola era controlada
privadamente por uma classe de senhores feudais, que extraía um
excedente de produção dos camponeses através de uma relação político-
legal de coação.

Essa nova realidade social, que aparece em torno do século 9º no Ocidente


europeu, passou a predominar socialmente e, portanto, a necessitar de uma justificativa
histórica para sua existência.

Dessa forma, a Igreja, que, segundo Fontana (1998), sem essa justificativa
histórica teria sua posição social colocada em perigo, veio em socorro do sistema feudal,
criando a chamada “teoria das três ordens”, de maneira que a mais famosa é a do bispo
Adalberon de Laon, realizada provavelmente entre 1025 e 1027. Segundo esse bispo:

[...] o domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana


impõe duas condições: o nobre e o servo não estão submetidos ao mesmo
regime. Os guerreiros são protetores das igrejas. Eles defendem os poderosos
e os fracos, protegem todo mundo, inclusive a si próprios. Os servos, por sua

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vez, têm outra condição. Esta raça de infelizes não tem nada sem sofrimento.
Fornecer a todos alimentos e vestimenta: eis a função do servos. A casa de
Deus, que parece uma, é portanto tripla: uns rezam, outros combatem e outros
trabalham. Todos os três formam um conjunto e não se separam: a obra de uns
permite o trabalho dos outros dois e cada qual por sua vez presta seu apoio aos
outros (JUNIOR, 1986, p. 72).

Surgia, então, a teoria das três ordens: o clero, a nobreza feudal guerreira e
os servos camponeses. Nesse sentido, Fontana (1998, p. 34) lembra que “a Igreja reagia
assim contra sua marginalização na nova ordem feudal, oferecendo-lhe uma legitimação,
ao mesmo tempo que a defendia e se defendia contra um inimigo comum: a heresia
popular igualitária”.

É importante ressaltar que o grande historiador dessa fase foi Joaquim de Fiori
(c.1132-1202).

Abade da Calábria, Joaquim de Fiori articulou em seus textos a visão das três
ordens com alguns discursos proféticos, algo que lhe causou reprovações no Concílio de
Latrão, apesar do tom geral de elogios a sua obra. As mesmas críticas sofreu a obra de
Frei Dolcino, que levou a discussão profética para a construção de uma sociedade mais
justa, influenciando, decisivamente, os movimentos de reforma dentro da Igreja e as
heresias populares.

Já no século 14, a Idade Média assistia à decadência do modelo das três ordens
com o chamado renascimento comercial e das cidades. Nesse período, uma grave crise
atingiu em cheio o mundo feudal. As revoltas camponesas, a peste e a fome espalharam-
se pela Europa ocidental, ocasionando transformações cada vez mais radicais no sistema.
Novamente, Fontana (1998, p. 38) esclarece as relações entre as transformações sociais
e a escrita da História:

As mudanças sociais destes séculos da baixa Idade Média preparariam a


transformação do tipo de História que servia de suporte à economia política
do feudalismo. Na mesma medida em que a Igreja foi perdendo uma parte
essencial da sua função organizadora da sociedade, que passou aos novos
Estados que agora se constituíam [...]. Abandonou-se progressivamente a
velha História universal cristã, com sua identificação de ‘a Igreja do povo’, à
maneira de Gregório de Tours ou de Beda, para dar lugar à crônica cavaleiresca,
de Villehardouin a Muntaner, justificadora de uma classe social e de seu
predomínio, e surgiram, junto com ela, outros tipos de crônica laica que, se
faziam uso da teoria das três ordens, em boa medida a secularizavam.

Podemos, neste momento, estabelecer uma conclusão importante: com a queda


do sistema feudal, cai por terra, também, o modo de escrever História que o justificava.

Assim, paulatinamente, a sociedade medieval foi dando espaço para o surgimento


de um novo modelo, radicalmente transformador das estruturas sociais: o capitalismo.

A escrita da História deveria acompanhar essas transformações, fazendo, muitas


vezes, o papel de justificação da estrutura social, outras tantas na tentativa de questioná-la.

Essa capacidade da História de justificar ou questionar um sistema ocorreu


durante toda a Idade Média, no conflito entre o discurso oficial da Igreja em choque com
os movimentos heréticos de elite ou populares.

Com o fim do feudalismo, a História voltou a secularizar-se, ou seja, a deixar


o universo do sagrado e a procurar entender as relações sociais humanas. É assim que PARA VOCÊ REFLETIR:
termina a Idade Média: dando espaço para o surgimento de caminhos, digamos, menos Qual a relação entre as
místicos para a escrita da História. Como afirma Carbonell (1987, p. 66): “a Europa da fé transformações sociais e de
que maneira se dá a escrita da
é sucedida pela dos sábios, do Estado e, por fim, da Razão”. História ao longo do tempo?

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4 HISTÓRIA RENASCENTISTA: O HUMANISMO EM MARCHA


Entre os séculos 13 e 15, intensas transformações na vida social, econômica,
cultural e política ocorreram na Europa ocidental.

Segundo o historiador Sevcenko (1994, p. 5), “entre os séculos 11 e 14,


caracterizado como a Baixa Idade Média, o Ocidente europeu assistiu a um processo de
ressurgimento do comércio e das cidades”. Esse acontecimento está ligado à expansão
europeia ocorrida a partir das Cruzadas contra o Oriente não-cristão.

Afirma ainda Sevcenko (1994, p. 5) que

a criação desse eixo comercial, reforçado pelo crescimento demográfico,


pelo desenvolvimento da tecnologia agrícola e pelo aumento da produção
nos campos europeus, dava origem a novas condições que tendiam a,
progressivamente, em conjunto com outros fatores estruturais internos,
dissolver o sistema feudal que prevalecera até então.

Entretanto, no século 14, esse processo de crescimento e expansão entrou em


colapso. Os fatores fundamentais disso foram:

• A Peste Negra, que dizimou cerca de um terço da população europeia.


• A Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que opunha a Inglaterra à França.
• As revoltas camponesas, ocasionando crise no campo e problemas de
abastecimento alimentar no Ocidente europeu.

Nesse sentido, de acordo com Sevcenko (1994, p. 7):

essa crise do século 14 tem sido denominada também crise do feudalismo,


pois acarretou transformações drásticas na sociedade, economia e vida
política da Europa, que praticamente diluiu as últimas estruturas feudais
ainda predominantes e reforçou, de forma irreversível, o desenvolvimento do
comércio e da burguesia.

Essa nova classe social emergente, a burguesia comercial, necessitava de um


novo discurso ideológico que justificasse seu poder econômico. A História, como ramo
PARA VOCÊ REFLETIR:
Você consegue enxergar em do saber que serve muitas vezes como legitimação do poder dominante, não poderia ser
seu cotidiano como o mundo diferente. Ela sofreu transformações importantes .
das ideias está relacionado com
a realidade concreta, com as
questões sociais? O século 15 assiste a três mudanças decisivas que vão promover o rompimento
da forma como se escrevia a História. Carbonell (1987, p. 77) descreve quais são essas
transformações:

Por volta de 1440, em Estrasburgo, Gutenberg põe a funcionar a imprensa de


caracteres móveis; na mesma época, em Roma, Lorenzo Valla demonstra a
falsidade do ato conhecido pelo nome de Doação de Constantino; em 1453,
Bizâncio sucumbe aos assaltos otomanos: acelera-se então a diáspora dos
copistas e gramáticos gregos através da Europa. Novas técnicas de difusão,
novo método de análise, novas fontes... Nova curiosidade também, dado que
a Renascença e a Reforma foram, cada qual à sua maneira, peregrinação às
fontes. Clio parece repudiar um milênio de tutela teológica e escolástica para,
por sua vez, reencontrar a sua infância pagã e entrar na idade da razão.

No Renascimento, portanto, os três ramos mais importantes do trabalho histórico


foram transformados radicalmente no século 15:

• A crítica documental.
• A chegada de novos instrumentos de pesquisa.
• A difusão das produções em texto escrito.

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Valla (1407-1457) operou uma ruptura importante na produção histórica ao


tornar como prática comum a crítica documental com a elaboração que fez sobre a
famosa “Doação de Constantino”, documento que a Igreja preservava como prova de
que o imperador romano Constantino teria dado ao papa Silvestre e seus sucessores a
autoridade sobre a cidade de Roma e toda a parte ocidental do Império Romano.

De acordo com Fontana (1998, p. 43):

Ainda que a suspeita de que se tratava de uma fraude havia sido já exposta
por diversos autores, foi o humanista Lorenzo Valla, a serviço de Alfonso,
o Magnânimo, de Nápoles, e obrigado a defender o seu soberano contra as
pretensões políticas do papado, quem fez uma crítica demolidora do documento
e pôs em evidência os anacronismos, erros de linguagem e inexatidões de toda
a ordem que continha.

Essa crítica documental só foi possível em virtude do desejo dos humanistas


em pesquisar para conhecer profundamente as sociedades da Antiguidade Clássica
(Grécia e Roma). Esse desejo estava relacionado à negação do período conhecido como
Idade Média (passou a ser chamado assim justamente no Renascimento), considerado
um hiato de obscurantismo e decadência do pensamento humano, entregue aos ditames
religiosos.

O afresco a seguir, intitulado Escola de Atenas, pintado por Rafael Sanzio em


1511, retrata exatamente essa vontade de os renascentistas buscarem suas influências
filosóficas, culturais, políticas e sociais no passado greco-romano, caracterizando, portanto,
a necessidade de reconstruir esse período de maneira mais significativa. Assim, a História
é vital para o movimento renascentista.

Figura 4 A Escola de Atenas, afresco de Rafael (Raffaelo Sanzio). Roma, Stanza della Segnatura,
Palácio do Vaticano.

Depois de Valla, outros pesquisadores passaram a utilizar esse tipo de crítica


documental, embora já estivessem armados por um arsenal de novos ramos do
conhecimento, entre eles a arqueologia.

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No século 16, o florentino Maquiavel (1469-1527) defendeu a utilização política


da História como ferramenta importante para o exercício racional do governo.

O também florentino Guicciardini (1483-1540) acreditava, diferentemente de


Maquiavel, que a História não poderia nos dar lições, pois, segundo ele, uma interpretação
global do passado era impossível. Ele defendia, ainda, que os fatos pitorescos eram muito
importantes para serem desprezados em favor de uma visão global do passado (FONTANA,
1998).

No final do século 16, surgem na França os defensores de uma “História perfeita”.


Seus expoentes foram Pasquier, La Popelinière e Bodin.

Para Pasquier, o historiador deveria fazer uma crítica profunda às fontes e definir
rumos em que pudesse explicar, logicamente, a sociedade com não menos eficácia do que
as equações matemáticas.

Já La Popelinière propunha uma História geral, que abarcaria todos os aspectos


da vida humana e mostraria as razões dos acontecimentos e não apenas os narraria.

Por fim, Bodin, que divide a História em três ramos: o natural, o sagrado e o
humano, defende que o historiador deve se ocupar do ramo humano, buscando construir
uma ciência que dê conta de explicar racionalmente a ascensão e queda dos impérios e
civilizações (CARBONELL, 1987).

No século 17, contudo, essa corrente histórica foi varrida da França para o
surgimento de outra que defendia a Igreja e o Absolutismo, uma espécie de Renascimento
da História Cristã medieval, mas com características da sua época, destacando-se a defesa
do absolutismo.

Segundo Fontana (1998, p. 49):

a historiografia francesa do século 17 verá, por exemplo, o triunfo


do irracionalismo teológico, culminando no Discurso sobre a História
Universal (1681) de Bossuet, onde se faz tudo depender diretamente
do desígnio divino. Não há lugar nem para uma causalidade em termos
humanos, nem sequer para o acaso. Toda a possibilidade de uma
História que analise racionalmente a evolução humana acaba assim
negada.

Portanto, entre os séculos 15 e 18, o conteúdo da produção histórica na Europa


ocidental envolve desde magia e religião até a política e a ideia de ciência histórica.

Dessa forma, não é possível construir uma ponte imediata entre o Renascimento
italiano e a Ilustração francesa ou o liberalismo inglês (temas da próxima unidade). Fica
claro, pois, que o período do século 15 ao 18, trata-se de uma fase de transição, em
que estruturas da antiga sociedade feudal coexistem com estruturas da nova sociedade
capitalista. Esse fenômeno manifesta-se na produção histórica, impossibilitando a
elaboração de uma síntese da forma em que se escreveu a História na chamada Idade
Moderna.

5 CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, procuramos analisar o surgimento do pensamento histórico,
desde a Antiguidade até o período da modernidade.

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24 Claretiano – Batatais
UNIDADE 2 Licenciatura em História

Inicialmente, demonstramos como a História surgiu na Grécia e de que maneira


ela se desenvolveu ao longo do período antigo.

Em seguida, analisamos a História e sua relação com a religião na Idade Média,


demonstrando o quanto o pensamento historiográfico estava contaminado pelo forte
contexto cristão da era medieval.

Por fim, procuramos explicar o processo de transição da História cristã para a


História humanística que se desenvolveu entre os séculos 15 e 17, demonstrando o papel
central exercido pelo pensamento renascentista nesse processo.

6 E-REFERÊNCIAS

Chamada numérica

2 Aedo: disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Aedo>. Acesso em: 26 mar. 2008.

Lista de figuras

Figura 1 – Busto de Tucídides: disponível em:

<http://www.uc3m.es/uc3m/inst/LS/apolo/tucidides.html>. Acesso em: 25 out. 2008.

Figura 2 – Estátua de Tito Lívio Políbio: disponível em: <http:// www.enciclopedia.


com.pt/readarticle.php?artic...>. Acesso em: 25 out. 2008.

Figura 3 – Pintura representando Santo Agostinho: disponível em: <http://www.


heroideareia.blogspot.com/2008/08/leitura-aos...>. Acesso em: 25 out. 2008.

Figura 4 – A Escola de Atenas, afresco de Rafael (Raffaelo Sanzio). Roma, Stanza


della Segnatura, Palácio do Vaticano: disponível em: <www.joaodorio.com/.../o-
prazer-de-socrates.html>. Acesso em: 4 jul. 2009.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, P. Passagens da Antigüidade ao Feudalismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994.

CARBONELL, C. O. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.

DOSSE, F. A História. Bauru: Edusc, 2002.

FONTANA, J. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,


1986.

SEVCENKO, N. O Renascimento. 26. ed. São Paulo: Atual, 1994.

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25
Batatais – Claretiano
Anotações

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