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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Marília Hernandes Jardim

O CORSET NA MODA OCIDENTAL: UM ESTUDO SOCIOSSEMIÓTICO SOBRE A


CONSTRIÇÃO DO TORSO FEMININO DO SÉCULO XVIII AO XXI

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP

Marília Hernandes Jardim

O CORSET NA MODA OCIDENTAL: UM ESTUDO SOCIOSSEMIÓTICO SOBRE A


CONSTRIÇÃO DO TORSO FEMININO DO SÉCULO XVIII AO XXI

Dissertação apresentada à banca examinadora


como exigência parcial na obtenção do título
de Mestre em Comunicação e Semiótica (Área
de concentração: Signo e Significação nas
Mídias. Linha de Pesquisa: Análise das
Mídias) pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob orientação da Professora
Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO

2014
Banca Examinadora

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________
Agradecimentos

À Professora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, pela


excepcional orientação e dedicação a esta pesquisa.

A Karin Thrall, pela parceria no trabalho sobre a Cidade de


São Paulo, no qual tanto aprendi.

Ao meu pai, Antonio Gomes Jardim Jr., por todo o apoio.

A todos xs colegas do PEPGCOS (sobretudo na disciplina


Semiótica Discursiva) e CPS, pela troca.

Ao CAPES e à PUC São Paulo, pelo fomento à pesquisa.


RESUMO

Esta pesquisa investiga a constrição do torso feminino praticada pelo uso do corset, que
apresenta um papel fundamental na conformação do corpo feminino e uma marcada função na
transformação da lógica social, uma vez que as configurações de corpo por ele realizadas
alteram significativamente a interação entre os corpos constritos e os demais sujeitos
formadores deste entorno social. É possível postular que o corset pode ser abordado como um
sujeito da interação, cujo papel aparece como parte da formação das lógicas sociais, e não
como um reflexo destes contextos. A partir daí, o problema abordado é a identificação da
relação entre a conformação da silhueta e uma consequente determinação da interação social,
advinda dos modos de apreensão que emergem da plástica conferida ao corpo pelo traje.
Longe de constituir uma problemática pertinente ao estudo da moda de época, o uso de
lingeries constritoras apresenta-se como um temário extremamente atual, sobretudo no
Ocidente, onde grandes esforços são empregados pela indústria na produção de objetos
constritivos, difundidos entre mulheres de todas as etnias e classes sociais. Para entender os
sentidos que emergem desta complexa e arriscada interação entre corset e corpo, se faz
necessária a busca das origens deste fenômeno na moda ocidental do século XVIII, quando
consolidou-se o uso do corset como roupa interior. A partir deste uso, buscamos identificar
momentos emblemáticos desta prática, bem como as rupturas em sua continuidade, com o
objetivo de localizar nestas fraturas os papéis específicos assumidos, nas interações, pelo
corset e pelo corpo, para categorizar, a partir deles, os trânsitos entre continuidade e
descontinuidade do uso do corset. Para tal, este estudo recorre a um extenso corpus de
pesquisa, formado por imagens de corsets, crinolinas e trajes colhidas de acervos de museus,
bem como fotografias de lingeries comercializadas em lojas virtuais, além de imagens que
auxiliam na recontrução das tendências de corpo estudadas, como publicidades e reproduções
de pinturas. À luz da sociossemiótica de Landowski, da teoria semiótica de Greimas e da
semiótica visual de Floch e Oliveira, conduzimos uma investigação destes usos e
configurações vestimentares, que nos possibilitou isolar as relações de complementaridade
entre os papéis dos atores corset e corpo na narrativa vestimentar, que embasam a dominância
do primeiro como destinador do corpo, além das demais relações entre estes dois papéis,
reveladoras de um maior protagonismo do corpo, importante formador das passagens da moda
e do entorno social que a engloba.

Palavras-chave: corset, corpo feminino, modelagem, sociossemiótica, semiótica visual.


ABSTRACT

This study investigates the feminine torso constriction obtained through the corset use, which
presents a fundamental role on the feminine body conformation, and a pronounced function of
transforming the social logic. Also, the silhouette configurations by him realized significantly
alter the interaction between constricted bodies and other subjects. It is possible to postulate
thus that the corset is an interactive subject, whose role is part of the social logic shaping, and
not its reflex. From this point, the studied problem is the identification of the relation between
the conformation of the silhouette and a consequent social interaction determination, arisen
from the apprehension modes that surface from the body plastic endowed by the garment. Far
from constituting a historical fashion problem, the use of constrictive lingerie present as a
hodiernal topic, especially on the West, where significant efforts are devoted on the
development of shaping objects, consumed by women from all ethnicities and social
backgrounds. In order to understand the meanings that emerge from this complex and risky
interaction between corset and body, it is necessary to seek the phenomenon origins on 18th-
century western fashion, when the corset use as an undergarment began. From this use, we
purpose the identification of emblematic moments of such practice, as well as the ruptures on
its continuity, designing to recognize, in those fractures, the specific roles assumed by corset
and body, to categorize the transits between corset use continuity and discontinuity. For such,
the study call on an extensive research corpus, formed by corset, crinoline and gown images
collected from museum collections, as well as virtual stores lingerie photographs and images
that can help on reconstructing the studied body tendencies, as advertising and painting
reproductions. In the light of Landowski's socio-semiotic, Greimas's semiotic theory and
Floch's and Oliveira's visual semiotics, we investigated the uses and apparel configurations,
isolating the relations of complementarity between the roles played by the actors corset and
body, which underlies the dominance of the first as body's addresser, as well as other relations
between those two roles, which reveal a body leadership, important former of fashion and
social surroundings passages.

Keywords: corset, feminine body, shaping, socio-semiotics, visual semiotics


SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................................8

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................11

I. A CONSTRUÇÃO DO CORSET COMO SUJEITO...................................................................19


I.1. A anatomia do corset enquanto torso sobre o torso....................................................................24
I.2. O fazer do corset.........................................................................................................................32
I.3. As interações entre corset e corpo...............................................................................................36

II. O PAPEL TEMÁTICO DO CORSET...........................................................................................40


II.1. O traje à francesa.......................................................................................................................43
II.1.1. A roupa de baixo do século XVIII.....................................................................................48
II.2. A moda de 1880.........................................................................................................................55
II.2.1. A roupa de baixo de 1880..................................................................................................60
II.3. O início do século XX................................................................................................................70
II.3.1. Straight Front ou S-bend: O Corset Saudável....................................................................73
II.3.2. Underbust...........................................................................................................................77
II.4. Amarração..................................................................................................................................80

III. O CORSET COMO DESTINADOR DO CORPO.....................................................................85


III.1. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit...........................................................................90
III.2. Agent Provocateur Corset.........................................................................................................96
III.3. TC Fine Intimates Slip............................................................................................................103
III.4. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day..............................................................107
III.5. Amarração...............................................................................................................................111

IV. CONTATO ENTRE CORSET E CORPO.................................................................................118


IV.1. The Little X Girdle..................................................................................................................121
IV.2. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit..........................................................................129
IV.3. Stays (1795)............................................................................................................................134
IV.4. Corset (1820)..........................................................................................................................141
IV.5. Amarração...............................................................................................................................145

V. CO-INCIDÊNCIAS ENTRE CORSET E CORPO...................................................................150


V.1. The Freedom Trash Can...........................................................................................................155
V.2. A moda e o estilo de Chanel.....................................................................................................162
V.3. Extreme Tight Lacing...............................................................................................................167
V.4. O punk dos anos 1970 e Madonna...........................................................................................177
V.5. Amarração................................................................................................................................184

VI. AMARRAÇÃO: DO PONTO DE VISTA DO CORPO...........................................................188


VI.1. As programações do corpo....................................................................................................193
VI.2. O corpo manipulado/manipulador..........................................................................................197
VI.3. Os corpos sensíveis................................................................................................................200
VI.4. O corpo como destinador (mítico) do corset..........................................................................203

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................207

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................212

GLOSSÁRIO.......................................................................................................................................219
LISTA DE FIGURAS

Figura 1. The Glove-Fitting Corset, 1868.................................................................................24

Figura 2. Dois desenhos da anatomia feminina, atribuídos a Adriaan van Spiegel, extraídos do
livro “De humani corporis fabrica libri decem”, 1600-1631....................................................29

Figura 3. Comparação anatômica entre o corpo feminino com ou sem o uso do corset...........31

Figura 4. Quadrado dos Regimes de Interação e de Sentido proposto por Landowski em “Les
Interactions Risquées”..............................................................................................................38

Figura 5. Sackback gown, vestido de 1775...............................................................................43

Figura 6. Detalhe do bordado do vestido de 1775....................................................................46

Figura 7. Roupa de baixo do século XVIII, formada por stays e hoopskirt..............................48

Figura 8. Detalhe da crinolina, 1778.........................................................................................50

Figura 9. Stays, 1780.................................................................................................................51

Figura 10. Vestido de 1885.......................................................................................................55

Figura 11. Roupa de baixo de 1880..........................................................................................60

Figura 12. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884..................................................................62

Figura 13. Panorama do desenvolvimento das crinolinas ao longo do século XIX..................64

Figura 14. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883......................................................................65

Figura 15. Panorama do desenvolvimento dos corsets do final do século XVIII ao início do
século XX..................................................................................................................................67

Figura 16. Spoon busk..............................................................................................................67

Figura 17. House of Rouff Tea Gown, 1900.............................................................................70

Figura 18. Corset Straight Front ou S-bend, 1900....................................................................73

Figura 19. Anúncio do corset Foster Hose Supporter, 1902.....................................................75

Figura 20. Silk Ribbon Corset, 1906........................................................................................77

Figura 21. Quadrado dos usos tradicionais do corset...............................................................83

Figura 22. La Perla Shape Couture (Underwire Bodysuit), 2011.............................................90

8
Figura 23. La Perla Shape Couture, detalhe da costura central e abertura higiênica................92

Figura 24. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit.........................................................93

Figura 25. Agent Provocateur Corset, 1990..............................................................................96

Figura 26. Desenho técnico: Agent Provocateur Corset...........................................................97

Figura 27. Comparativo: Corset, 1890 e Agent Provocateur Corset.........................................98

Figura 28. Performance de Pink, Lil’ Kim, Mya e Christina Aguilera no 2000 MTV Movie
Awards.....................................................................................................................................100

Figura 29. TC Fine Intimates Slip, 2013.................................................................................103

Figura 30. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Evey Day, 2008.....................................107

Figura 31. Diagrama dos cortes bovinos.................................................................................109

Figura 32. Detalhe da costura da Bermuda Slim Everyday....................................................109

Figura 33. Quadrado dos corsets elásticos..............................................................................115

Figura 34. The ‘Little X’ Girdle, 1960....................................................................................121

Figura 35. Comparativo: Wrap-around girdel (1930) e The ‘Little X’ Girdle........................122

Figura 36. Anúncio: “Peter Pan Little X”, 1957.....................................................................124

Figura 37. Anúncio: Corset-Gaine, 1906................................................................................125

Figura 38. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, 1965..............................................129

Figura 39. Desenho técnico: Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit............................129

Figura 40. Stays, 1795............................................................................................................135

Figura 41. Vestido, 1800.........................................................................................................138

Figura 42. Corset, 1820...........................................................................................................141

Figura 43. Georges Rouget, “As srtas. Mollien”, 1811..........................................................142

Figura 44. Detalhe: Corset, 1820............................................................................................144

Figura 45. Quadrado dos corsets reformulados......................................................................148

Figura 46. Freedom Trash Can, 1968. Foto do protesto durante o concurso Miss America
1969.........................................................................................................................................155

Figura 47. Gabrielle Chanel....................................................................................................162


9
Figura 48. Fakir Musafar.........................................................................................................167

Figura 49. Mr. Pearl (Mark Pullin).........................................................................................168

Figura 50. Dita Von Teese (Heather Renée Sweet).................................................................169

Figura 51. Cathie Jung............................................................................................................170

Figura 52. Cherie Currie (The Runaways), 1977....................................................................177

Figura 53. Madonna em corset desenhado por Jean-Paul Gaultier, 1990...............................178

Figura 54. The CHerie Currie Curset Tee...............................................................................179

Figura 55. Madonna em “The Confessions Tour”, 2006, e “MDNA Tour”, 2012..................184

Figura 56. Quadrado dos usos excepcionais do corset, regidos pelo regime do acidente......186

Figura 57. Elipse das lógicas dos regimes de interação e de sentido......................................188

Figura 58. Elipse do corpus reorganizado a partir das quatro lógicas do sentido...................190

Figura 59. Quadrado das conformidades entre o uso do corset e o sentido produzido no
corpo.......................................................................................................................................191

Figura 60. Elipse das passagens entre quatro categorias de uso do corset identificadas a partir
da análise do corpus................................................................................................................192

Figura 61. Elipse dos usos do corset nos quais predominam uma programação do corpo.....194

Figura 62. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de manipulação............198

Figura 63. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de ajustamento.............201

Figura 64. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime do acidente..................204

10
Introdução

“Cego é o homem que não percebe que a forma


do corset explica os padrões da sociedade.1”
(La vie parisienne, 1868)

A epígrafe escolhida para iniciar este trabalho inicia também o capítulo “Control and
Constrict” do livro “Underwear Fashion in Detail”, dedicado a contar a história da constrição
na moda ocidental (LYNN, 2010). Contudo, há uma diferença sutil, porém fundamental, entre
os escritos de Eleri Lynn e a presente pesquisa: ao utilizar-se da diacronia como suporte para
sua exposição, Lynn admite, apesar desta epígrafe, que é o momento histórico-social que
molda os padrões do trajar identificados na moda ocidental. Neste trabalho, no entanto,
partiremos da hipótese oposta, de que não é o social o formador da moda, mas a própria
manifestação da moda é o social. Acreditamos, portanto, que o momento histórico aparecerá a
partir do corpo, modelado e vestido, como sua concretização manifesta.
Estes modos do vestir são formadores das interações entre os sujeitos em um contexto
social, e começam muito antes da roupa exterior, aquela que se dá a ver ao outro. Sua
manifestação inicia-se em um arranjo muito mais complexo, aquele da roupa de baixo, que
desde meados do século XVII é modeladora da silhueta feminina e, por meio da formação
deste eidos e topologia de uma silhueta que modela um parecer do corpo, é formadora do
papel feminino e de sua presença no social. É sobretudo desta complexa relação que esta
pesquisa busca dar conta.
Nosso objeto de estudo, no entanto, não é a compressão da cintura, realizada por meio
de quaisquer objetos, como cintos, faixas ou ataduras, mas uma forma específica da
constrição do torso, que começa aproximadamente no século XVII, com o uso dos stays, ou
corps à baleine. Trata-se da primeira peça vestimentar elaborada exclusivamente para a
função de constrição desta região do corpo – ao contrário, por exemplo, dos cintos utilizados
na antiguidade, que possuíam antes desta outras funções no traje masculino ou feminino,
como a fixação das vestes na região da cintura, ou mesmo seu embelezamento. Entendemos
que existe uma separação fundamental, no que toca a intencionalidade da modelagem do

1 “Blind is the man who cannot see that the form of the corset explains the pattern of social custom.” (apud.
LYNN, 2010, trad. nossa)
11
corpo, que distingue o uso de um cinto ou faixa de tecido para reduzir a cintura, e o uso de um
objeto construído especialmente para esta função, cuja ação sobre o corpo além de reduzir a
cintura é capaz de modelá-la, transformando-a em sua forma.
Por este motivo, nosso panorama da constrição da cintura por meio do uso específico
do corset inicia-se no século XVIII. O traje de então aparece como consolidação de uma
tendência iniciada em meados do século XVII, momento histórico em que os stays deixam de
ser corpetes para tornarem-se roupas de baixo (HART & NORTH, 1998). Nosso objeto,
portanto, encontra-se delimitado à prática da constrição do torso realizada por meio da
lingerie, e não de objetos exteriores ao traje.
O início deste estudo na moda do século XVIII pode igualmente ser justificado a partir
de um viés histórico, que nos sugere que, a partir deste século, consolidou-se a tendência de
moda da maneira que a conhecemos atualmente, como alternâncias entre diferentes discursos
vestimentares. No final desse século, encontramos a primeira ruptura, após um período de
quase dois séculos de vigência de uma mesma configuração de traje, manifestada pela queda
da crinolina (hoop skirt) e dos stays tradicionais, iniciando a moda “neoclássica”. A partir
deste ponto, a moda ocidental mudou em ritmo cada vez mais acelerado, ao longo do século
XIX e XX, até as frenéticas passagens apreendidas em nossa década.
Ao lado destas mudanças, existe uma transformação fundamental, que é aquela da
silhueta. O corset, em diferentes formas e materialidades, aparece como um dos grandes
protagonistas desta mudança, adaptando-se ao corpo e aos tempos, mas também os tempos e
os corpos, além do próprio traje, parecem sujeitos à ação deste poderoso actante da
indumentária feminina, a lingerie constritiva. Em La Mode en 1830, Greimas (2000) escreve
que o vestido tornou-se eternamente limitado à forma do corset, o que nos revela uma
importante pista acerca do papel do corset de destinador do corpo e da silhueta. É possível ler,
portanto, que a manifestação do corpo constrito, no traje, é resultado de uma relação entre
dois sujeitos, no qual um pratica o ato que transforma outro sujeito: o corset, e aquele que
sofre a ação: o corpo.
Mais do que uma catalogação e descrição de trajes e lingeries de diversos períodos,
este trabalho intenciona focalizar a complexa relação contida nesta interação, que se dá entre
dois sujeitos, o corset e o corpo, a partir de diferentes regimes de sentido e de risco. Tal estudo
demanda, primeiramente, um exame do corpo e do corset enquanto sujeitos separados, ambos
dotados de arranjos plásticos, de figuratividades. Em seguida, propomos uma reflexão acerca
12
do corset enquanto sujeito do fazer, realizador de uma performance, cujo principal objetivo é
a transformação do sujeito corpo em uma nova configuração de silhueta, para que, a partir
dela, o próprio corpo possa realizar sua performance no social. Este estudo também delimita-
se ao uso do corset pelo corpo da mulher, apesar de reconhecermos que o uso do corset na
moda ocidental não é um fenômeno exclusivamente feminino, e mencionaremos, ao longo do
trabalho, alguns casos em que também o masculino incorpora o uso desta peça de vestuário.
Mas de que maneira se dá a ação deste sujeito modelador sobre o outro sujeito, que é
modelado? Sabemos instintivamente que o corset possui um fazer constritivo sobre o corpo,
ou seja, a lingerie modeladora proporciona uma resistência sobre determinada área do corpo,
reduzindo-a, o que proporciona uma transformação da configuração desta área que afeta
igualmente as demais áreas ao redor dela, resultando em uma nova manifestação visual. Em
termos semióticos, devemos elaborar este fazer como a atribuição de um novo arranjo plástico
ao corpo, que ocorre a partir da modificação constritiva e contensora de seu arranjo plástico
original. O corpo nu é dotado de formantes plásticos (FLOCH, 1985; OLIVEIRA, 2004),
eidéticos, cromáticos, matéricos, distribuídos em sua superfície a partir de uma topologia. A
ação do corset consiste no recobrir este conjunto de formantes, denominado “corpo”, com o
seu próprio conjunto de formantes – uma vez que também o corset é dotado de forma, cor,
matéria e topologia próprias – promovendo, a partir desta relação entre dois arranjos plásticos,
a criação de uma nova configuração: a silhueta (re)modelada.
O corset, portanto, além de formar o corpo, recobre-o com uma outra matéria, que
possui uma topologia que atua sobre a topologia original do corpo, exagerando-a. Este
exagero da diminuição ou do aumento pode ser lido como um investimento de valores:
concentrar sua ação sobre uma certa região do corpo é, em outras palavras, atribuir uma maior
importância visual, no traje, a esta região. Este privilégio de lugares em detrimento de outros
foi abordado por Manar Hammad no conceito de topohierarquia (2005), pertencente ao
escopo da semiótica do espaço. Trata-se da valorização tímica de espaços dentro de um
espaço maior, derivada de um sistema de valores sociais ou culturais. Entendemos que este
conceito pode ser reoperado na análise do corpo, quando optamos por tratá-lo como objeto
topológico: o maior investimento de valores na região do torso – peito, seios, tórax, cintura e
quadril – confere a esta região uma topohierarquia dentro do desenho do corpo, atribuindo a
ela um maior destaque visual e uma consequente importância no traje.

13
Este destaque da cintura, ainda que derivado de um dado sistema cultural ou social de
valores, não pertence a uma lógica do acaso: da mesma maneira que, no espaço, locais
topohierarquizados encontram-se investidos de diferentes papéis actanciais, também o
destaque de um lugar do corpo vem diretamente ligado à manifestação de um papel feminino,
da isotopia de comportamentos apreendidos deste sujeito (GREIMAS & COURTÉS, 2012)
em sua interação social, ou seu papel temático. Na análise dos objetos, portanto, nos
perguntaremos o que esta transformação do corpo, obtida a partir do destaque ou da
obliteração de suas partes, faz ver do feminino. Em outras palavras: quais são os conteúdos
apreendidos de cada uma destas expressões da forma da mulher?
Um traje feminino, portanto, é uma manifestação arranjada em diversas camadas de
sentido, obtidas a partir de sua plástica, formada por figuras da expressão que podem ser
homologadas a figuras do conteúdo (FLOCH, 1985), permitindo-nos a apreensão destes
corpos como sistemas semi-simbólicos (FLOCH, 1985; LANDOWSKI, 2012). Esta leitura
nos permite elaborar, ao mesmo tempo, quais são os valores profundos, fundamentais,
inscritos nestas manifestações: tipologias dos modos do feminino que contêm em si, lado a
lado às manifestações vestimentares, pistas para a reconstrução dos contextos sociais nos
quais inscrevem-se estas mulheres, competencializadas com corpos constritos.
Ao longo de sua trajetória, do século XVII-XVIII ao XXI, o corset não se manteve o
mesmo. Seu complexo arranjo eidético, matérico e topológico sofreu substanciais
transformações ao longo dos cinco séculos que buscaremos analisar neste trabalho, não
apenas com as mudanças da forma da silhueta – que passam de figuras extremamente
geométricas, de linhas duras e marcadas, a corpos mais arredondados e, finalmente, a corpos
quase atléticos nos dias atuais – mas também na adesão a novos materiais, primeiramente
mais macios e estésicos e, finalmente, ao emprego da matéria elástica a partir de meados do
século XX. Estas passagens por diferentes silhuetas, produzidas a partir de diferentes formas e
matérias, foram apreendidas ao longo da pesquisa como alterações na inter-ação entre corset e
corpo, produtoras de sentidos que igualmente transformam-se, em conjunto com a
transformação ocorrida no corset.
A partir destas considerações iniciais, nos perguntamos: seria possível afirmar que tais
passagens do corpo, produzidas pelo uso do corset, podem ser lidas como formadoras do
próprio contexto social que as engloba? Diferente do que se tem produzido em termos de
pesquisa histórica da moda ocidental (Cf. BRAGA, 2004; BAUDOT, 2002; BOUCHER,
14
2010; HART & NORTH, 1998; JOHNSTON, 2005; KÖHLER, 2005; LYNN, 2010; STEELE,
2001), a tese por trás desta pesquisa apoia-se nesta pergunta. Nosso objetivo, portanto, é
aquele de identificar em que medida esta relação de formação do social a partir do corpo pode
ser reconhecida, a começar pela apreensão do sentido produzido, no corpo, pelos objetos
constritivos, os corsets e seus usos, que compõem nosso corpus.
Nossa hipótese, portanto, é justamente que, na passagem por estas silhuetas, que
podem ser regidas por diferentes regimes de interação e de sentido, é possível apreender a
formação das passagem identificadas no contexto social, con-formadas a partir da constrição
do corpo. Em Da Imperfeição, Greimas (2002) questiona se os modos de se vestir, enquanto
modos de vida, seguem ou precedem as gerações das outras manifestações culturais. Uma
segunda hipótese que desenvolvemos é que, nos casos analisados, será possível identificar que
a moda, muitas vezes, precede as revoluções do papel feminino no social, ou em outras
palavras, que as rupturas promovidas pelas revoluções no papel feminino podem ser
rastreadas em até anos ou décadas anteriores a elas, e identificadas já nos modos do
constringir (ou não constringir) o torso feminino.
Tal análise demanda uma metodologia considerada por vezes, no meio acadêmico da
moda, como heterodoxa. Primeiramente, partimos dos critérios estabelecidos por Greimas em
Semantique structuale (1966) para a seleção do corpus. Segundo o autor, o corpus deve
atender a três condições: ser representativo, exaustivo e homogêneo (GREIMAS, 1966).
Por representatividade, entende-se a relação metonímica, mantida por cada um dos
emblemas selecionados, com a totalidade do discurso que buscamos analisar – a prática da
constrição da cintura realizada a partir, especificamente, do objeto corset. Os objetos
selecionados não foram, assim, sorteados ao acaso, mas apreendidos como representativos –
ou metonímicos – de um certo momento histórico. Esta constatação advém da observação de
um corpus muito maior de trajes e lingeries constritoras, a partir do qual foi possível
identificar traços comuns – ou isotopias – que permitiram a construção de emblemas que, por
sua vez, reenviam às demais unidades estudadas anteriormente.
Este primeiro critério relaciona-se diretamente ao segundo, da exaustividade. Greimas
conclui que a análise deve começar por um modelo “provisório”, analisando primeiramente o
segmento do corpus considerado como representativo, para que depois a análise possa ser
verificada no restante do corpus (GREIMAS, 1966).

15
A homogeneidade, finalmente, está ligada “[...] ao conjunto de condições não
linguísticas, de um parâmetro de situação relativo às variações apreensíveis seja no nível dos
locutores, seja no nível do volume da comunicação” (GREIMAS, 1966, trad. nossa, grifo do
autor). Nesta pesquisa, tal critério encontra-se relacionado à busca pelo entendimento do
parecer do corpo quando transformado pela lingerie constritora. Ainda que sua semântica
estrutural tenha sido postulada a partir do estudo das línguas naturais, entendemos que este
critério aplica-se igualmente à apreensão e análise das manifestações da moda, que podem ser
lidas de maneira semelhante àquelas da língua – e que são, inclusive, retomadas pelo próprio
Greimas, em Da Imperfeição, como partes de um mesmo sistema, do qual fazem parte o
vestimentar, os modos de falar, de pensar, de amar e de sentir (GREIMAS, 2002).
O corpus de análise é composto por imagens de sete corsets tradicionais, duas
crinolinas, quatro trajes, além de cinco cintas, shapers ou modeladores. Nos apoiaremos,
igualmente, em literaturas específicas acerca da moda – como os livros produzidos pela
instituição Victoria & Albert, historiadores da moda e do traje (Cf. BAUDOT, 2002;
BOUCHER, 2010; BRAGA, 2004; CHURCH GIBSON, 2012; HART & NORTH, 1998;
JOHNSTON, 2005; KÖHLER, 2005) estudiosos do corset (Cf. DOYLE, 1997; KUNZLE,
2003; LYNN, 2010; SALEN, 2008; SELESHANKO, 2012; STEELE, 2001; WAUGH, 1954),
e mesmo autoras feministas, que dedicaram-se a estudar a condição da mulher ao longo da
história da sociedade ocidental (Cf. BEAUVOIR, 1976; ESTES, 1994), ou em seu próprio
momento histórico (DENSMORE, 1998; EPSTEIN, 1998; FIRESTONE, 1965; HANISCH,
1998). Por vezes, o estudo demandará o recurso às reproduções de pinturas e anúncios
publicitários dos períodos, bem como de filmes e obras literárias que ilustram as épocas
estudadas – tais obras serão devidamente citadas ao longo do trabalho.
Após esclarecermos e fundamentarmos a pertinência do corpus selecionado, podemos
expor a metodologia adotada, que é baseada nos postulados da Semiótica Visual de Floch
(1985). Partiremos da análise dos formantes estabelecidos pelo autor – eidéticos, cromáticos e
topológicos – e por Oliveira – formante matérico (OLIVEIRA, 2004) – a partir dos quais
trabalharemos com homologações entre o plano da expressão e o plano do conteúdo,
constituindo assim a apreensão do sentido destes objetos enquanto sistemas semi-simbólicos
(FLOCH, 1985; LANDOWSKI, 2012; OLIVEIRA, 2004).
Na prática, o estudo será realizado a partir das imagens fotográficas coletadas de
acervos de museus e lojas virtuais de lingeries, a partir das quais analisaremos a plástica dos
16
corsets e crinolinas, quando seu uso for apresentado, com o objetivo de apreender quais são os
valores profundos manifestados por esta silhueta. A partir deste primeiro exame, buscaremos
identificar quais são os papéis actanciais assumidos pelo corset e pelo corpo, com a finalidade
de apreender, a partir destes papéis, quais são os regimes de interação e de sentido presentes
na relação estabelecida entre os dois sujeitos, o constritor e o constrito, corset e corpo.
Seguindo a hipótese elaborada, acreditamos que nesta relação poderemos identificar não
apenas os papéis do feminino, assumidos a partir deste ou daquele objeto constritor, mas
também em que medida este papel feminino é determinador de seus arredores sociais, de sua
própria interação com os outros sujeitos que compõem seu contexto.
A demanda por tantas fontes bibliográficas, mediáticas e mesmo filmográficas reforça
a importância do presente estudo de inserir-se em uma lógica do social, em lugar de abreviar-
se em uma usual catalogação de vestidos de época. A vontade de desmembrar tais
manifestações, expondo os valores profundos nelas inscritos, vem principalmente de um
argumento muito presente nos livros de moda existentes atualmente: aquele que marca o
“abandono” do corset pontualmente, em algum momento dos anos 1920 (BRAGA, 2004;
BOUCHER, 2010; LYNN, 2010), como se todos os objetos constritivos que vieram depois
dele, todas as cintas, bermudas, bodies e shapers não fossem, ao menos, “primos de segundo
grau” do corset tradicional. Um dos objetivos desta pesquisa foi aquele de demonstrar que
não apenas os semantismos investidos nos modeladores atuais lembram muito aqueles do
século XVIII e XIX, como acarretam manipulações muito mais sofisticadas, no sentido de um
fazer-crer no abandono da prática da constrição, mas promovendo uma transformação do
corpo muito semelhante, por meio de um objeto um pouco diferente.
Por outro lado, nosso mercado atual possui um foco muito definido no problema da
modelagem da silhueta, sendo difícil encontrar uma marca de lingerie que não comercialize
peças constritoras de ao menos dois a três tipos. Algumas comercializam dezenas – como é o
caso de La Perla, da qual analisaremos um modelo ao tratarmos da constrição no século XXI
– e outras, ainda, especializaram-se neste tipo de lingerie. A necessidade de buscar as raízes
desta obsessão pela constrição, nos objetos que de fato fundaram sua prática, impõe-se, e
perguntamos: é possível persistir na afirmação de um abandono definitivo do corset, quando
sua presença – até mesmo na forma do corset tradicional – é ainda tão marcada em nossa
sociedade?

17
Tal problema nos leva a uma constatação de forte pertinência: longe de ser uma prática
interrompida na primeira década do século XX, a constrição do torso feminino é atualíssima –
e, com ela, o tema da formação de um papel feminino a partir do parecer de seu corpo, obtido
pelo uso de objetos modeladores de sua silhueta. Prova disso é que, pela primeira vez na
história temos acesso a todas as formas de constrição já inventadas, e podemos escolher, no
nosso dia a dia, que faceta de nossas identidades, qual regime de interação, de sentido, ou
mesmo de risco, vestiremos hoje.
Em meio às análises dos mais diversos, e por vezes curiosos, objetos de constrição do
torso, os quais nomearemos todos com o termo corset, que consideramos como representativo
desta prática, este trabalho pretende explicitar que o sentido apreendido dos corpos constritos
é importantíssimo, no que tange a interação destes sujeitos em sociedade. Do século XVIII ao
XXI, buscamos mostrar como a apreensão de um corpo pode fazer toda a diferença na
construção da imagem do feminino, da mulher de ontem ou de hoje, às possibilidades de
transformação do feminino do amanhã.

18
I. A construção do corset como sujeito

espartilho1 s.m. colête [sic.] com barbas de baleia ou lâminas de aço


que se veste sôbre [sic.] a camisa para conchegar e afeiçoar as formas
do corpo [...]. Varinha de junco, que faz parte do colête [sic.] de
mulher.
espartilho2 s.m. planta gramínea (Setaria geniculata P. Beauv),
outrossim capim-rabo-de-raposa, esparto-pequeno, panasco-de-
tabuleiro, bambuzinho.2

espartilho s.m. (1713) 1 VEST cinta longa e de corte anatômico, que


vai dos quadris até abaixo dos seios, feita de tecido resistente e
provida de barbatanas de baleia ou lâminas de aço para que não
enrugue e com ilhoses de cima a baixo, por onde se passam longos
cadarços, puxados para apertar ao máximo o abdome e a cintura,
modelando o tronco; colete 2 ANGIOS m.q. capim-rabo-de-raposa
(Setaria geniculata) ETIM esparto + ilho. 3

corset n. m. I Gaine baleinée serrant la taille et le ventre des femmes.


2 Appareil orthopédique pour le tronc.4

corset n. a tightly fitting garment worn under the outer garments to


shape the body, or to support it in case of injury.5

Proveniente da língua inglesa, com a pronúncia (‘kɔːsɪt), e da língua francesa, (kɔʀsɛ) em


forma escrita idêntica, a palavra corset originou as definições de outras línguas europeias

2 Caudas Aulete Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguêsa.

3 Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

4 “Cinta com barbatanas de baleia que constringe o talhe e o ventre das mulheres. 2 Aparelho ortopédico para o
tronco.” Le Robert de poche 2009, Édition Mise à jour, trad. nossa.

5 “vestimenta de ajuste apertado vestida por baixo da vestimenta exterior para esculpir o corpo, ou prover
suporte em caso de lesão.” Oxford Advanced Learner’s Dictionary, trad. nossa.
19
ocidentais – corsé, no espanhol, corsetto, no italiano, korsett, no alemão – e apenas na língua
portuguesa a definição adotada foi espartilho. Como exposto nas definições de dois
conceituados dicionários, o Caudas Aulete e o Houaiss, apesar de o vocábulo conter uma
descrição dos espartilhos tal e qual os corsets são definidos, existe uma ambiguidade no
significado da palavra: trata-se de uma definição metonímica, que significa primariamente o
tipo de “barbatana”, as varinhas de junco, esparto ou bambuzinho, mais popularmente
utilizadas no mundo ibérico do que no restante da Europa. Esta definição aproxima-se, por
sua vez, de uma outra definição igualmente descartada como representativa, aquela de “stays”
– nomeação atribuída aos corsets do século XVIII, cujo significado é aquele de “estruturas”
ou “suportes”, no plural, indicando que o nome da peça manifesta sua construção por meio da
repetição deste material.
“Espartilho”, tal e qual “Stays”, é portanto o nome do uso da matéria – o corte do
esparto, ou capim-rabo-de-raposa (setaria geniculata), em tiras finas, que serviam à mesma
finalidade das barbatanas de baleia – que passa a dar nome às peças que têm o espartilho
como um dos componentes.
Diferentemente, nos dicionários Oxford e Le Robert, encontramos uma definição não
ambígua, que contém apenas o objeto corset, que buscamos aqui abordar, como significante:
uma espécie de “cinto” que “cinge” o tronco e a cintura das mulheres, confeccionado com
barbatanas de baleia – “baleinée” – o material tradicional empregado até meados do século
XIX (LYNN, 2010), que deve ser vestido por dentro da roupa, cujo ajuste deve ser apertado –
“tightly fitting” – e que tem a função de moldar o corpo, provendo-lhe suporte.
Ambas as definições também englobam um outro significado para corset, que é aquele
de ordem ortopédica: o uso de um aparelho rígido ao redor do torso, com a função de proteger
e sustentar o corpo ferido, lesado. Este uso atravessa todo o desenvolvimento do corset, desde
o século XVII – alguns deles, inclusive, construídos em puro metal (LYNN, 2010) – até a
atualidade, quando algumas cintas rígidas dividem suas funções entre usos estéticos e
cirúrgicos, utilizadas para comprimir o corpo no pós-operatório, principalmente naquele da
lipoaspiração, ou no pós-parto. Reconhecemos que tais usos constituem um aspecto
importante do papel do corset; a abordagem destas funções, contudo, não compõe o objetivo
de nosso trabalho.
Continuando, na união das duas raízes da palavra, as definições francesa e inglesa,
encontramos uma definição completa do termo que buscamos aqui analisar: em ambas as
20
definições, encontramos a descrição do que o corset é, e do que ele faz, ou sua função. Em
conjunto, estes dois significados formam o que será abordado por Eric Landowski como nom
d’usage, “o nome do uso”, que geralmente coincide com o nome do objeto (LANDOWSKI,
2009). Para o autor, o nome pelo qual chamamos uma coisa, muito mais do que simplesmente
defini-la, possui o poder de evocar consigo o conjunto de funções e de usos atribuídos a tal
objeto (LANDOWSKI, 2009). Nosso objetivo, no entanto, não é aquele de aprofundarmo-nos
na análise dos diversos aspectos da palavra, mas justificar o uso, ao longo deste trabalho, do
vocábulo anglo-francês, corset, no lugar do termo disponível no português, espartilho: para os
fins desta análise, a ambiguidade entre os significados “peça de roupa” e “matéria utilizada
em sua confecção” não nos permite a exploração da totalidade do corpus – que abrange desde
os stays do século XVIII até as sofisticadas cintas e shapers do século XXI – o que nos leva a
optar pelo uso da palavra corset, que abarca de forma clara os emblemas dos corsets e de seus
usos, dos quais procuramos dar conta. Esclarecidas estas primeiras considerações, nos
permitiremos adotar, daqui em diante, a grafia “corset” sem o uso do itálico, que definimos
como:

corset s.m. peça de roupa de baixo construída em material constritivo reforçado, que pode ser
plano ou elástico, com ou sem estruturas rígidas, que recobre o torso total ou parcialmente,
cuja função é a modelagem da cintura, tórax, glúteos, quadris e até mesmo das pernas e
braços durante seu uso, ao longo do qual o desenho da silhueta é transformado.

Não basta, no entanto, totalizar a análise nas definições lexicais, uma vez que, segundo
Landowski, o sentido de um objeto emerge de seu uso (LANDOWSKI, 2009). Desta forma, é
impossível – e porque não dizer, inútil – estudar apenas o aspecto do corset enquanto objeto-
coisa, sem tocar no emprego desta peça em uma determinada função. Na abordagem do uso
de uma peça de roupa, a atualização de um sentido ocorre no vestir, ou no recobrir o corpo.
Para Ana Claudia de Oliveira, “[...] o sentido de uma roupa só se completa ao vestir um corpo,
quando, o que determinamos por um sintagma composto, o corpo vestido assume a sua plena
competência para atuar.” (OLIVEIRA, 2008, grifo da autora).
O nom d’usage “corset”, portanto, não possui sentido na peça guardada em uma caixa,
pendurada em um cabide ou estendida em uma superfície. Talvez por esta razão, instituições
que se dedicam à coleção e exposição de objetos que se prestam às funções de um corset
21
procuram expô-los e fotografá-los, sempre que permitido pelas condições de conservação da
peça, recobrindo manequins especialmente desenvolvidos para aparentar o corpo que
almejava-se construir por meio de seu uso. A partir desta recuperação de uma silhueta, é
possível expor a peça de roupa atuando, realizando sua performance de recobrir e transformar
o corpo.
É impossível recriar os mesmos efeitos de sentido contidos em um traje de uma época
sem a recriação dos volumes que outrora os habitaram, e da mesma maneira, seria impossível
analisar os valores inscritos em um traje que não fosse ocupado por um “corpo”, ainda que
trate-se de um corpo (re)construído em matérias artificiais, como o plástico, o tecido e a
espuma. Por esta razão, grande parte das imagens analisadas ao longo deste trabalho foram
colhidas do acervo fotográfico da instituição Victoria & Albert, que atesta um compromisso
exemplar na reconstituição dos corpos emblemáticos de cada período (Cf. HART & NORTH,
2009; JOHNSTON, 2005; LYNN, 2010; VICTORIA & ALBERT COLLECTION, s.d.),
permitindo-nos um vislumbre do que seria a presença de um sujeito contida na silhueta de
cada um dos usos que analisaremos. Em outros casos, dos corsets mais atuais, foi possível
coletar imagens dos websites dos fabricantes ou de lojas virtuais, permitindo expor o corset
recobrindo um corpo de uma modelo, em lugar do manequim.
A importância do corpo vestido, destacada por Oliveira (2008), reenvia por sua vez a
uma outra significativa questão acerca do uso de um objeto como o traje. Conhecer seu nom
d’usage, ou algumas das possibilidades de utilização deste objeto, não basta para entender
como realizar este uso. O emprego correto de um objeto – sobretudo aquele do âmbito
vestimentar, tal e qual o corset e, como veremos adiante, também a crinolina ou próprio
vestido – está intimamente ligado, segundo Landowski, às regras da norma cultural, ou aos
programas dos quais emerge esta norma (LANDOWSKI, 2009).
Como qualquer outro objeto, o corset deve ser usado de acordo com um conjunto de
normas sociais e culturais que delimitam, por sua vez, o formato “correto”, ou esperado, de
uma silhueta em uma determinada época. Assim, o rigor deste uso está inrinsecamente ligado
ao “quanto” uma cintura deve (ou pode) ser constrita. Trata-se de uma linha tênue, que
circunscreve o formato e o tamanho da cintura considerado “atraente” – ou, para utilizar as
categorias tímicas, eufórico (GREIMAS & COURTÉS, 2012) – para outros sujeitos,
geralmente do sexo oposto. A cintura pouco constrita, por um lado, não é capaz de detacar os
quadris produzindo uma silhueta correspondente àquela considerada ideal, e pode ser
22
interpretada pelos demais sujeitos como negligência com a própria toilette. A constrição
excessiva, por outro lado, relaciona-se ao cultivo extremado da aparência, considerada pelos
vitorianos como “anti-higiênico” (KUNZLE, 2004), ou mesmo repulsivo, perturbante, e
associado ao fetichismo da usuária (KUNZLE, 2004; STEELE, 2001).
Tais normas não se encontram estáticas, e são próprias de períodos específicos. Como
veremos adiante, da mesma maneira que as alterações no formato do corset podem ser
identificadas ao longo do panorama de seu desenvolvimento na moda ocidental, também o
tamanho ideal de cintura (e de mulher) transforma-se ao longo da história. Estas modificações
na transformação esperada do corpo adquirem, por vezes, o valor de ruptura com um certo
padrão, que manifesta a passagem a um outro padrão de corpo. Quando assimilado, este novo
padrão cristaliza-se em um novo ideal que será, em seguida, novamente rompido, e assim
sucessivamente.
Ainda que transforme-se o corpo, o corset permanece essencialmente o mesmo no que
toca sua função, de sujeito modificador da silhueta. As variações, portanto, ocorrem nos
formantes plásticos (FLOCH, 1985; OLIVEIRA, 2004) de corsets de períodos específicos: as
cores e matérias escolhidas, bem como a forma – mais arredondada, ou mais retangular –
conferida à silhueta. Existe, no entanto, uma espécie de arranjo genérico, que pode ser
apreendido na grande maioria dos corsets, uma anatomia que se repete de maneira mais ou
menos recorrente ao longo do corpus escolhido, da qual buscaremos uma breve reflexão a
seguir.

23
I.1. A anatomia do corset enquanto torso sobre o torso

Figura 1. “The Glove-Fitting Corset”, fabricado por Thomson and Co., 1868. Desenho de um corset típico de
meados do século XIX, utilizado como publicidade do produto. Ao pesquisar a palavra “corset” em ferramentas
de websearch, há uma forte recorrência deste tipo de ilustração, ao mesmo tempo em que, de fato, o corset do
século XIX é o mais conhecido pelo público leigo, de maneira que a imagem acima, certamente, manifesta a
forma do corset que habita o imaginário da maioria das pessoas. Imagem: Vintage Ephemera.

Em diferentes momentos de sua presença na moda ocidental, o corset manifesta arranjos


plásticos diversos, no que toca a técnica de modelagem empregada – o número de recortes,
painéis, a ausência ou presença de modelagem para o busto, a extensão da peça sobre o torso
– a origem de materiais específicos – tecidos e estruturas naturais ou sintéticos – e as cores
24
que marcaram cada época. Nestas variações, no entanto, é possível identificar a permanência
de uma isotopia do arranjo das matérias para a formação de um corset. Primeiramente, sempre
há a presença de uma matéria tecida, que pode ser elástica, mas tradicionalmente é plana6 e
firme. Este tecido é normalmente sobreposto em duas ou mais camadas, e repetido ao longo
do corset, em tiras ou painéis de reforço na vertical, horizontal ou oblíqua, principalmente ao
redor da cintura, como pode ser visto na figura 1. Da mesma maneira, os corsets geralmente
possuem algum tipo de estrutura rígida, que pode ser feita de matéria natural ou sintética. Por
fim, estes elementos devem ser unidos por meio da costura, realizada em fios resistentes,
geralmente de fibras naturais, e amarrados, convencionalmente pelas costas, com fios que
apresentem maleabilidade e força, combinados em cordas estreitas, porém firmes, duráveis.
Estes elementos seriam constituintes da “anatomia” da lingerie constritora: o arranjo
das matérias para a formação de um corset sugere uma combinação de elementos que se
assemelham à própria constituição do torso humano, parte do corpo à qual destina-se a ação
desta peça de roupa. Como o torso, o corset possui uma pele – cuja resistência também
equivale àquela dos músculos e da carne – que são as múltiplas camadas de tecido; uma
ossatura7 , sua estrutura rígida, que pode ser metálica, de barbatanas ou vegetal; e finalmente,
tecidos conectivos, as linhas e as amarrações que, como os tendões do corpo, servem à função
de manter a coesão e o alinhamento de todos os elementos.
Começando pela “pele” do corset, os tecidos comumente utilizados são o linho, no
século XVIII, e o coutil ou uma espécie de sarja, no século XIX. O traço comum entre estas
matérias é a presença de uma trama resistente, obtida por meio do entrelaçamento, no tear, de
fibras de origem vegetal. O resultado do tecido pode ser uma trama em “V”, como é o caso do
coutil, ou em tela, como o linho (ou ainda em malha, como é o caso dos tecidos elásticos),
dotada simultaneamente de resistência, firmeza, e maleabilidade.
À distância, porém, o entrelaçamento dos fios não é perceptível ao olhar, de maneira
semelhante ao entrelaçamento das fibras que formam o tecido epitelial da pele humana.
Ambos – matéria tecida e pele humana – apresentam um aspecto liso, uniforme, mas revelam,
ao aproximar o olhar, a complexa trama que os forma. De maneira semelhante, tecido e pele

6 Distingue-se aqui a característica de “tecido plano”, ou seja, confeccionado com trama e urdume, que garantem
que o tecido não se estique a não ser quando cortado em viés (pela diagonal), daqueles tecidos definidos em
português como “tecido em malha”, formados por laçadas, que proporcionam o efeito de esticamento.

7 De fato, a palavra em inglês que designa “barbatana” (de baleia) é “bone” (ou “whalebone”), que também
significa osso – por isso a corriqueira confusão de que os corsets antigos eram confeccionados com “ossos de
baleia”, quando na verdade as barbatanas são derivadas da cartilagem do mesmo animal.
25
não são composições completamente fechadas, mas ambos possuem espaços abertos em seu
desenho, pequenos orifícios – o espaço entre os fios do tecido ou, na pele, os poros – por onde
passam o ar e o suor.
Assim como nossa pele é composta de diversas camadas, para uma modelagem
eficiente, também o corset deve ser construído em no mínimo duas camadas sobrepostas de
tecido. Esta repetição da mesma matéria confere resistência, mas sem que seja perdida a
maleabilidade, e uma elasticidade mínima – não na vertical ou na horizontal, direções firmes,
mas na diagonal, onde são construídas as curvas, do corpo e do corset. Mesmo nos casos em
que o corset apresenta uma pele elástica, não se trata de uma elasticidade total, frouxa, mas de
uma elasticidade parcial, que ainda oferece firmeza vertical e horizontal. Este traço plástico
de firmeza aliada à elasticidade parcial, obtida pelo entrelaçamento de fibras, pode ser
identificado também nos músculoso do corpo. A combinação destas duas propriedades da
matéria tecida, de invólucro (pele) e de força e resistência (músculos) produz a competência
modeladora, investida na matéria a partir da qual o corset é confeccionado.
Seguindo para a estrutura, a relação entre essa e os ossos é mais evidente: ambos
assumem formas estruturais, duras, mas que surgem em um momento posterior ao
aparecimento da pele. Na geração do ser humano no útero, o primeiro elemento que aparece é
mais próximo da pele (ainda que não se trate de uma pele definitiva), enquanto que os ossos, a
estrutura do corpo, são formados em seguida. No processo de confecção do corset, a estrutura
é o último elemento a ser aplicado, quando a “pele”, a matéria tecida, encontra-se já cortada,
unida, costurada. No método de confecção tradicional, antes da colocação das barbatanas, que
em princípio eram, tal como os ossos, de origem animal, o corset não passa de uma espécie de
blusa, que não possui por si só o poder de modelar o torso. Após a aplicação da estrutura nos
locais previstos, o corset torna-se competencializado para constringir o corpo, conferindo a
ele uma nova forma. Igualmente, sem nossa estrutura óssea, não seríamos capazes de
apresentarmo-nos enquanto corpo, mas esta estrutura só aparece em nós quando nossos
demais tecidos encontram-se já organizados o suficiente para receber esta matéria rígida,
acomodando-a nos locais onde é necessária.
Finalmente, o conjunto corset não pode ser realizado sem a utilização das matérias
conectivas, a linha e a amarração, que unem a matéria pele e a matéria ossos em um único
arranjo. A linha perpassa todas as camadas de tecido, criando traçados verticais ou oblíquos
no desenho interior e exterior do corset, que as mantém unidas por meio de um fio que as
26
atravessa. A mesma linha pode ser utilizada em uma espécie de bordado, chamado “flossing”,
que reforça o tecido no início e no final das barbatanas, áreas de maior fragilidade do corset.
Como os tendões do corpo, a linha utilizada na confecção dos corsets – geralmente produzida
a partir da seda, matéria também de origem animal – deve ser fina, mas resistente o suficiente
para manter as camadas de tecido unidas, ainda que constantemente exposta à pressão dos
tecidos do corpo que, quando constritos, respondem com igual força, o que pode ocasionar a
ruptura da peça. A linha também deve resistir ao atrito com os tecidos da roupa exterior e
interior, sem romper-se: a quebra da costura, assim como o rompimento de um tendão do
corpo, comprometeria a totalidade do conjunto, inutilizando-o.
A mesma função é identificada na amarração: os cadarços trançados nas costas, onde
um espaço de cerca de dez centímetros é geralmente deixado, em um zigue zague de linhas
diagonais que cruzam-se em vários “X”, e que possuem a dupla função de ajustar a
intensidade da constrição – e por meio dela, o diâmetro da silhueta – e de fechar a peça,
mantendo o conjunto atado ao redor do torso. Para a realização de tal performance, é
fundamental que as cordas utilizadas sejam de boa qualidade, oferecendo resistência
suficiente para sustentar um estado constrito do corpo, ao longo de muitas horas, sem romper-
se.
O rompimento de uma costura em algum ponto do corset pode ser relacionada a uma
espécie de “ferida” na peça de roupa, cuja progressão gradual pode ocasionar um dano
permanente à lingerie, à roupa exterior, e até mesmo machucar o corpo da usuária, caso
alguma das barbatanas escape pelo tecido. A quebra da corda de amarração, por sua vez, seria
produtora de uma abertura repentina e total do corset, delegando toda a pressão por ele
exercida ao vestido, que não é competencializado para conter o corpo desta maneira, e
poderia, igualmente, romper-se. Por este motivo, um grande esforço no desenvolvimento de
cordas de boa qualidade foi dedicado a esta importante parte do corset, geralmente
confeccionada, assim como o tecido, pelo entrelaçamento de fios de algodão, diminuindo o
risco de uma ruptura completa e abrupta da amarração.
Como mencionamos no início, ao longo de diferentes épocas, outros elementos foram
adicionados a esta tríade de componentes essenciais, como aparece na própria figura
escolhida como representativa do corset (figura 1): tratam-se de laços, fitas, rendas, e até
mesmo camadas de tecidos exteriores, geralmente nobres e coloridos, como a seda ou o cetim
(LYNN, 2010; SELESHANKO, 2012; WAUGH, 1954). Tais elementos, no entanto, não
27
aparecem como formadores da anatomia do corset, mas como acessórios, ou mesmo roupas
que revestem a pele rústica e pouco estética do corset, conferindo a ele um maior valor
decorativo. Este aperfeiçoamento estético é inclusive associado ao investimento de um valor ,
no corset, de objeto de desejo, ou mesmo de fetiche, como é o caso do eterno corset de cetim
(STEELE, 2001). Tais artifícios, no entanto, não produzem uma expressiva alteração na ação
material do corset sobre o corpo, e sua presença ou ausência não influi no resultado prático do
conjunto.
Este primeiro exame daria conta do formante matérico (OLIVEIRA, 2004) da
semiótica plástica, referente às propriedades materiais dos objetos analisados: sua textura,
densidade, firmeza ou maleabilidade. A matéria, no entanto, precisa de um formante eidético,
capaz de conferir a ela uma forma. No caso do corset trata-se, antes de mais nada, da forma de
um corpo, sobre o qual a lingerie modeladora atua: mais precisamente uma parte do corpo
humano, feminino, o tronco.
Com algumas variações, a ação do corset pode se estender dos ombros – localizados
na linha do pescoço – aos quadris e, por vezes, às pernas. Englobados pelas fronteiras de
atuação do modelador, encontram-se a coluna toráxica, lombar e o sacro, as costelas, a bacia;
o tórax, o abdome e o quadril; os seios, a barriga, os glúteos e o sexo (além dos demais órgãos
vitais, localizados na caixa toráxica e no ventre).

28
Figura 2. Desenhos da anatomia feminina atribuídos a Adriaan van Spiegel, extraídos do livro “De humani
corporis fabrica libri decem” (1600-1631). À esquerda, uma das raras pranchas que retratam a anatomia
feminina fora do período de gestação, mas ainda assim, dando ênfase ao aparelho reprodutor (diferente da
anatomia do torso masculino, cujas ilustrações normalmente retratam os demais órgãos vitais). À direita,
imagem recorrente nas anatomias do século XVI e XVII, a gestação é retratada de maneira poética, com as
camadas de pele do ventre abrindo-se como uma flor em torno do feto. O recurso a esta metáfora é isotópico, não
apenas nos trabalhos de van Spiegel, e é o primeiro indicativo da mentalidade produtora de um papel feminino
voltado quase que exclusivamente para a procriação: os estudos anatômicos, em sua grande maioria, não
dissociam a fêmea da espécie humana do estado de gestação. Imagem: nlm.nih.gov

A escolha das figuras acima, produzidas no contexto dos estudos anatômicos da Renascença,
tem como fundamento a exposição de um corpo anterior ao uso do primeiro objeto que será
abordado adiante, os stays do século XVII-XVIII. Igualmente, estas ilustrações não
manifestam os corpos hiper-tonificados presentes nos atlas atuais de anatomia, nos quais um
grande destaque é dado ao caráter muscular do corpo. As duas figuras atribuídas a van
Spiegel, portanto, nos servem como um contraponto, seja à figura constrita pelo uso do corset,
seja aos corpos extremamente magros, atualmente idealizados.

29
Na figura da esquerda, cujo desenho retrata uma anatomia feminina fora do período de
gestação, é possível perceber o desenho arredondado do corpo feminino, que estreita-se
levemente, de maneira quase imperceptível, na altura da cintura. Os seios retratados são
pequenos e separados, os quadris discretamente mais largos que a cintura. Há ainda uma
proporção entre o ponto mais largo dos ombros e o ponto mais largo dos quadris, produzindo
uma silhueta quase que retangular, com um leve afunilamento na cintura.
Observando o ventre retratado na figura feminina, é possível perceber que este
afunilamento exterior coincide, no interior, com a localização do diafragma, e um espaço
teoricamente “vazio” ao redor dele. Palpando a própria cintura nesta região, é possível
perceber que este espaço “livre” do corpo não possui estrutura óssea: trata-se de um pequeno
vão entre o último par de costelas e o início da crista ilíaca.
Na figura gestante, à direita, é possível perceber que há um realce, no desenho, deste
desnível que chamamos de “cintura”. Este destaque, por sua vez, é produtor de um efeito de
aumento e arredondamento dos quadris, que parecem mais curvilíneos. Em termos de silhueta
lateral, a ação esperada do corset aproxima-se mais do corpo retratado no estado de gestação,
do que em seu estado normal. Retomando a figura 1, o desenho do Glove-Fitting Corset,
percebemos imediatamente que a forma do corset promove um realce do leve desnível na área
da cintura, naturalmente presente no desenho do torso feminino, acentuando-o.
O leve afunilamento natural da cintura aparece exagerado pelo desenho do corset,
conferindo ao torso um desenho de ampulheta (ou de “8”, elíptico), a partir do qual o peito e o
quadril são aumentados. Trata-se tanto de um efeito visual – ao reduzir a cintura, por
comparação, os quadris e o peito parecem aumentados – quanto de um efeito material, uma
vez que é possível que o uso prolongado do corset, ao longo dos anos, provoque um
deslocamento dos órgãos, dos músculos, da gordura e até mesmo dos ossos, como ilustra a
imagem abaixo.

30
Figura 3. À esquerda, posição dos ossos e órgãos no tronco feminino livre. À direita, com a cintura afinada, os
órgãos são supostamente rearranjados, pressionados para baixo, aumentando o volume do baixo ventre. Tais
ilustrações, no entanto, devem ser observadas com cautela, uma vez que muitas delas foram produzidas de
maneira tendenciosa, por médicos e demais profissionais da saúde que possuíam uma posição explicitamente
contrária ao uso do corset. Imagem: Stem Ingenious.

Nesta simulação dos efeitos da constrição da cintura sobre os órgãos, é possível notar
de maneira mais clara a ação do corset sobre a anatomia feminina “natural”: o exagero da
cintura aparece como produtor da impressão de um peito mais alto, ombros mais baixos, além
do quadril curvilíneo e volumoso.
A forma do corset, portanto, não imita o corpo feminino, mas mantém uma relação
com sua topologia natural. No torso original, existe uma alternância entre volumes convexos
– seios e quadris – e volumes côncavos – o sutil afinamento na altura da cintura. Ao recobrir o
corpo, o corset aproveita-se desta organização espacial, produzindo um aumento do efeito
visual desta topologia. Observando novamente a figura 3, é possível perceber, contudo, que o
exagero do volume côncavo, ou a constrição, é maior do que aquele do volume convexo, o
que pode ser lido como uma maior preocupação com a modelagem da cintura. Localizada no

31
centro anatômico do torso, a cintura recebe, por meio desta constrição, um maior investimento
de valor, uma vez que a ação do corset é mais marcada neste ponto preciso do corpo.
O arranjo matérico analisado – muito semelhante àquele do arranjo matérico do
próprio torso – em uma forma curva, que recobre o torso feminino exagerando sua topologia,
principalmente pelo realce da cintura, é formador da manifestação plástica do corset, ou seu
plano da expressão. Quando lidos enquanto conjunto, estes formantes manifestam alguns
conteúdos, como o caráter corporal do corset, organizado de maneira semelhante ao torso –
com estrutura óssea, pele, músculos e ligamentos – e que ao mesmo tempo transforma o
desenho deste torso, conferindo a ele formas mais arredondadas e aumentadas.
Como evidenciado pela figura 3, há uma clara oposição entre o corpo “original”, não
modelado pelo uso do corset, e o corpo transformado, recompetencializado com uma cintura
mais fina, que produz o efeito visual principal de aumento do quadril. A relação de
conformidade entre as duas imagens, no entanto, é evidente: não se trata de uma modelagem
que transforma o corpo em uma figura oposta a ele – como seria, por exemplo, a constrição
dos seios e do quadril e a aplicação de um volume construído na região da cintura – mas de
um re-desenho do corpo original, que exagera algumas de suas características já manifestadas,
ainda que de maneira sutil. Os sentidos mais profundos contidos neste re-desenho da silhueta
serão melhor explorados nos capítulos a seguir. Por enquanto, continuaremos a análise nos
aprofundando na ação identificada nesta transformação do corpo por meio de um objeto
externo a ele, mas que, como nos revela o exame realizado até então, possui propriedades e
características semelhantes àquelas do torso feminino.

I.2. O fazer do corset

As particularidades do arranjo descrito até então são os pilares que garantem a eficácia de um
ato de modelagem: sem a presença simultânea dos elementos matéricos examinados, que por
sua vez devem ser combinados e arranjados de maneira correta – o que envolve a ação de
outro sujeito competente, o corsetier ou a corsetière – um corset não pode receber este nom
d’usage, uma vez que uma falha em quaisquer partes do processo de confecção prejudicaria a
performance desta peça, que é aquela de distribuir a matéria e a forma do tronco a partir da
constrição da cintura, para dar a ver uma silhueta em que o realce do estreitamento da cintura
intensifica o desnível entre ela, os seios e os quadris.
32
A partir deste primeiro exame, portanto, é possível identificar que o corset possui um
fazer, uma ação, que provoca uma transformação do estado do corpo. Semioticamente, um
termo que faz, ou seja, que pratica uma ação, pode ser definido como actante ou como sujeito.
Para Greimas e Courtés (2012), o sujeito é aquele que é “[...] suscetível não apenas de possuir
qualidades, mas igualmente de efetuar atos”. Os dois semioticistas ainda afirmam que o
sujeito é um actante, que igualmente “[...] pode ser concebido como aquele que realiza ou que
sofre o ato [...]” (GREIMAS & COURTÉS, 2012). Se considerarmos o ato de constrição
como o uso pressuposto de um corset, é possível dizer que tal uso carrega em si a ação, a
performance: o corset age sobre o corpo, e é através desta ação, de seu fazer-fazer a forma e a
matéria do corpo, para fazer-ser uma silhueta, que a almejada modificação é realizada.
Após estas constatações, se mostra incoerente a atribuição do estatuto semiótico de
objeto ao corset na relação com o corpo: o corset é dotado de competências que cabem aos
sujeitos, e é modalizado cognitiva e pragmaticamente (GREIMAS, 1983). O corset não
apenas realiza uma modificação sobre o corpo que o veste, mas ele conhece este corpo de tal
maneira que lhe é permitido saber como modificá-lo, diminuindo certas regiões do corpo para
aumentar outras, criando complexos jogos de visibilidade e invisibilidade de suas diferentes
partes.
Transformar uma silhueta é uma performance que demanda competências similares
àquelas do próprio corpo: é preciso envolver o torso com um novo torso, dotado de pele,
músculos, ossos e conectivos, para que estas matérias confrontem-se com seus
correspondentes, a pele, os músculos e ossos do corpo, permitindo um rearranjo das matérias
dentro da configuração almejada. Tal fazer do corset perpassa igualmente a necessidade de
contenção do corpo original, uma vez que ao constringir uma área, os tecidos ali presentes
tendem a deslocar-se, migrando para outras áreas do corpo, abaixo ou acima do local onde a
constrição é aplicada. Quanto maior a força empregada na constrição, maior o deslocamento
de gordura, pele e músculos. Algumas modelagens, como aquela do século XIX,
presentificada pela ilustração do Thomson’s Glove-Fitting (figura 1), até mesmo almejam esta
transferência: há um espaço vazio previsto na área dos quadris, que deverá ser preenchido
com os tecidos provenientes da cintura (Cf. SALEN, 2008; WAUGH, 1954), e tal ação da
peça é garantida pela direção da modelagem lateral, em forma de triângulo invertido,
descendente, que empurra os tecidos da região abdominal para baixo. O aumento dos quadris,
consequência da diminuição da cintura, reforça a ilusão de que a cintura é ainda menor. Para
33
Valerie Steele, esta impressão de cintura menor que o quadril era justamente o efeito mais
importante, mais almejado pelas mulheres do que uma diminuição real, em centímetros ou
polegadas, da circunferência da cintura (Cf. STEELE, 2001).
Os deslocamentos de tecidos do corpo dos quais falamos até então relacionam-se
diretamente a um problema do formante topológico (FLOCH, 1985), aquele referente à
distribuição dos demais formantes plásticos – formas, cores e matérias – em uma superfície. O
fazer do corset concentra-se no aumentar e diminuir lugares do corpo, conferindo destaque a
certas regiões e velando outras, com o objetivo de produzir, a partir da constrição e do
aumento, uma silhueta almejada. Ao sobrepor-se à silhueta original do corpo nu, atribuindo a
ela um novo desenho, a ação do corset sobre esta silhueta pode ser lida como um
reinvestimento de valores, que alteram o sentido de cada uma destas partes do torso e, por
comparação, também do restante do corpo. Pode-se interpretar, portanto, que a transformação
da silhueta pela diminuição e pelo aumento é produtora de novas hierarquias do corpo
feminino, ou ao menos do realce de hierarquias já existentes.
Em sua obra, Manar Hammad desenvolve o conceito de topohierarquia, ou a “[...]
organização hierárquica do espaço [...] em que as localizações das coisas servem para marcar
suas relações hierárquicas mútuas.” (HAMMAD, 2005). Trata-se de uma valorização de um
lugar, em um dado espaço, que é considerado como superior em relação a outro ponto. Esta
hierarquização, geralmente extraída de um conjunto de valores sociais ou culturais
previamente dados (HAMMAD, 2005), é delimitadora da lógica de ocupação destes espaços,
regendo, pela prescrição, o que deve (ou não deve) ser posicionado em cada um destes
espaços – no caso analisado, os espaços do corpo.
Ao mesmo tempo, a topohierarquia do corpo está intimamente ligada à questão do
ponto de vista, ou seja, com o posicionamento do outro, o enunciatário, no momento da
apreensão visual do traje. Desta maneira, o conjunto de sentidos presentes no formante
topológico do corset abriga em si tanto os valores investidos nos diferentes lugares do corpo –
identificados por meio da localização da constrição e do aumento, que podem ser
homologadas aos valores profundos aos quais cada um destes sujeitos busca estar conjunto – e
ao mesmo tempo, o direcionamento do olhar do sujeito exterior ao traje, aquele que apreende
o parecer do sujeito que porta o corset que prescreve, mais do que um querer ser visto, a
maneira como este corpo quer ser visto.

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Trata-se, portanto, de uma construção semiótica da valorização de um dado lugar, de
acordo com uma dada tradição, que pode ser apreendida desde a manifestação da silhueta
formada pelo traje. Os valores inscritos nestes pareceres do corpo, por sua vez, encontram-se
ligados aos níveis profundos do sentido, que abrigam em si as diferentes formas de interação
entre os sujeitos em um dado contexto social, que podem ser lidas como formadoras deste
próprio contexto.
Um traço comum que unirá todos os corsets analisados neste corpus é, sem dúvida,
uma topohierarquização da cintura feminina e seus “arredores” – por vezes o quadril, por
vezes os seios – que, como nos mostra a história, aparece pela primeira vez nas culturas
ocidentais europeias, desde a antiguidade, quando algum tipo de constrição já era aplicada
nesta parte do torso (Cf. BOUCHER, 2010; KUNZLE, 2004; STEELE, 2001).
Contudo, no que toca esta tendência de moda específica, do uso do corset para a
constrição da cintura – e não da constrição praticada a partir de algum outro objeto, como
cintos, ataduras, ou corpetes menos estruturados – é possível afirmar que França e Inglaterra
foram as duas grandes referências para o restante da Europa (BOUCHER, 2010) e, a
posteriori, também para a América, Oceania, e até mesmo para o Oriente. Não por acaso,
estes dois países foram justamente os primeiros a definir a palavra corset como nome deste
objeto, investido de um papel de sujeito, bem como sua disseminação pelos outros países da
Europa Ocidental, com os nomes corsetto, corsé, korsett, que carregam em si a raíz
etimológica da qual são derivadas.
Segundo Greimas, cada palavra traz em si uma mitologia (GREIMAS, 1970). É
impossível, portanto, ignorar que a adesão ao uso da palavra corset, ou uma outra dela
derivada, seja plena de sentido e carregue consigo todo um sistema de valores nela investido.
Da mesma maneira, a adesão a uma tendência de moda tão específica é capaz de presentificar
a adesão ao mesmo sistema de valores, contido seja na palavra, seja no objeto material corset.
Estas duas adesões ligam-se, por sua vez, à adesão dos próprios idiomas, o francês e o inglês,
cujo uso em outros países, até mesmo na Europa Oriental, era associado à distinção social, da
qual a ocidentalização dos modos encontrava-se igualmente investida.
Assim, é possível perceber que o adotar “comportamentos ocidentais” – e no caso do
século XIX, isto significava principalmente “modos franceses” ou “modos ingleses” – não
perpassa um único aspecto do social, mas um conjunto de valores, composto (ao menos) pela
língua, pela interação social e pelo traje. Estes três aspectos, por sua vez, encontram-se
35
presentificados pela palavra corset, que traz em sua manifestação verbal escrita a união destes
dois sistemas de valores, ingleses e franceses, que constituem um emblema que mantém uma
relação metonímica com a totalidade “Ocidente” – que, por sua vez, é investida de outros
valores da ordem do simbólico, como o desenvolvimento cultural, o “berço da civilização”, a
força de suas ciências, a beleza de sua arquitetura, ou mesmo a conquista, colonização e
soberania sobre outras nações, europeias ou não.
Estes mesmos valores, por sua vez, serão reencontrados no próprio Ocidente pós-
Revolução Francesa, quando a volta do uso do corset (e da crinolina) será reconhecido como
retomada dos valores da nobreza do século XVIII (STEELE, 2001), e voltará à moda como
um objeto que marca a distinção social da burguesia ascendente. Com a recuperação destes
itens da moda e o retorno ao seu uso, produzindo versões mais exageradas do corset e da
crinolina, há uma recuperação das tradições da nobreza às quais os burgueses buscam
identificar-se, marcando, por meio delas, sua distinção das demais classes ascendentes, de
forma semelhante à nobreza russa, que utilizava as maneiras e línguas ocidentais como forma
de separar-se do restante do povo (Cf. TOSLTÓI, 2005, 2011), ou mesmo na China, na Hong
Kong britânica ou no Japão do final do século XIX, onde vestir o traje típico destes países era
identificado ao atraso oriental, em oposição ao avanço trazido pela ocidentalização –
presentificado, entre outros itens, pelo vestido acinturado, pelo corset e pela crinolina.
O uso destes itens de vestuário, além de presentificar o sistema de valores ocidentais,
confere à silhueta que os porta uma diversidade de sentidos da ordem da própria interação
entre sujeitos. Esta interação, no entanto, apoia-se nos diversos papéis assumidos pelos
sujeitos que a compõem, o corset e o corpo. No trânsito dos papéis actanciais, é possível
perceber de que maneiras a transformação do papel do corset é necessariamente uma
transformação do estatuto do corpo, que com o passar dos anos, assume uma autonomia cada
vez maior, passando de um sujeito de estado a um sujeito do querer.

I.3. As interações entre corset e corpo

Até aqui, desenvolvemos um primeiro exame dos dois sujeitos que compõem a interação da
qual este trabalho busca dar conta, aquela entre corpo e corset, bem como o reflexo do sentido
deste diálogo nas interações destes corpos constritos com os outros sujeitos que compõem seu
entorno social. A partir disto, se faz necessário estudar estas interações a partir da análise de
36
objetos específicos, emblemas de tendências da moda ocidental de diferentes períodos, para
explorar não apenas como se dá a interação do corset com o corpo, mas quais os sentidos
produzidos por diferentes silhuetas, frutos destas complexas relações.
Em “Les interactions risquées”, Landowski explora um modelo constituído a partir de
quatro regimes de interação, fundados em diferentes papéis actanciais e produtores de
diferentes regimes de sentido: as interações por programação, manipulação, ajustamento e
acidente (LANDOWSKI, 2005). Ao iniciar um primeiro estudo de nosso corpus – formado
por quatro vestidos, sete corsets tradicionais, duas crinolinas, cinco modeladores, e quatro
tendências de corpo consideradas como revolucionárias – percebemos que que os objetos
selecionados poderiam ser reagrupados, a partir dos modos de interação inscritos em sua
materialidade.
A divisão do corpus, portanto, não foi realizada de maneira cronológica, ou diacrônica,
mas levando em consideração o papel actancial assumido pelo corset na interação. Este papel
assumido pelas lingeries mostrou-se intrinsecamente relacionado ao seu formante matérico,
uma vez que, tratando-se de uma peça de roupa que recobre o corpo, a observação dos
sentidos tatéis produzidos no corpo, bem como a timia apreendida nestas relações, é de
extrema importância. Observamos, desta maneira, que conforme o arranjo matérico dos
corsets afasta-se da anatomia que examinamos no item I.1., o corset distancia-se do papel
temático presentificado por seu nom d’usage, produzindo sentidos cada vez mais inovadores,
e por isso, investidos de um maior risco interacional.
Assim, seguindo os postulados de Landowski, organizamos o corpus de acordo com o
arranjo matérico dos objetos selecionados, agrupando-os de acordo com os papéis actanciais
que pareceram, à primeira vista, predominantes. Começando pelos corsets mais tradicionais,
geralmente acompanhados do uso da crinolina, os identificamos como mais próximos ao
papel temático analisado no item I.1., produtores de interações programadas. Seguindo a
ordem proposta pelo autor, passamos à interação por manipulação, na qual localizamos os
modeladores mais atuais, que apresentam uma transformação em sua nomeação, deixando de
apresentar-se como “corsets”, para tornarem-se conhecidos como “cinta” (girdle),
“modelador” (shaper), entre outros. Ao regime do ajustamento, marcado pela competência
sensível dos sujeitos, associamos algumas estéticas de transição entre uma tendência de moda
e outra, em cujos corsets é marcado o investimento de valores de maior liberdade do corpo, de
uma maior interação sensível entre corset e corpo. Finalmente, à não materialidade do corset,
37
ou seja, sua ausência no guarda-roupas feminino, associamos a interação pelo regime do
acidente. Da mesma maneira, entendemos que as voltas do corset à moda, com sentidos
transformados e distintos daqueles apreendidos no uso aproximado do papel temático,
também são investidas de uma lógica do acaso, igualmente identificada ao regime do
acidente.

Figura 4. Quadrado proposto por Eric Landowski em “Les Interactions Risquées”, no qual são manifestadas as
passagens entre acidente (accident), manipulação (manipulation), programação (programmation) e ajustamento
(ajustement), bem como os diferentes papéis actanciais, regimes de sentido e regimes de risco relacionados a
cada modo de interação. Imagem: Les Interactions Risquées.
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Partindo da análise do nível discursivo de diferentes corsets ou de suas manifestações,
que apresentaremos nos capítulos que se seguem, almejamos um aprofundamento destes
papéis actanciais, narrativos, investidos em cada uma das categorias de corsets que
desenvolveremos nas análises. Igualmente, nosso objetivo é aquele de homologar as
diferentes categorias aos diferentes regimes de sentido e de risco, a partir dos quais,
acreditamos, será possível também apreender os papéis assumidos, na interação, pelo sujeito
corpo.

39
II. O papel temático do corset

Segundo o Dicionário de Semiótica, o papel temático é uma manifestação isotópica


(GREIMAS & COURTÉS, 2012), ou seja, uma recorrência de ações de um mesmo sujeito ao
longo de seu percurso narrativo. A mesma definição será abordada por Landowski a partir da
ideia de “algorítimo de comportamento”, ou a “[...] totalidade de comportamentos que se pode
esperar por parte dos atores (humanos ou não)[...]” (LANDOWSKI, 2005, trad. nossa).
Quando buscamos definir a “anatomia do corset” no item I.1., definíamos, em realidade, qual
é este papel temático do corset, presente desde seu nom d’usage: o corset constringe, modela,
cinge, dá suporte ao corpo e à silhueta, e esta isotopia de funções a ele atribuídas constitui o
comportamento que dele esperamos nas narrativas do corpo.
Para Landowski (2005), o domínio do papel temático encontra-se no regime da
programação que o autor, por sua vez, remete ao procedimento de operação da semiótica
standard: entende-se “[...] por operação a transformação lógico-semântica da ação do homem
sobre as coisas [...]” (GREIMAS & COURTÉS, 2012). Tal ação se dá de forma programada,
e no caso do corset, ela segue uma isotopia de ações esperadas de seu agir sobre o corpo. Para
que estas ações possam se repetir, é necessário que o fazer do corsetier, o uso das matérias, o
arranjo da modelagem e, evidentemente, o seu uso vestindo o corpo, sigam programas
igualmente isotópicos e pré-estabelecidos.
Esta isotopia de um fazer localiza-se em um recorte temporal preciso, que vai de
meados do século XVII ao início do século XX: era de ouro do uso do corset, ao longo da
qual, salvas algumas rupturas, este fazer programado manteve-se de forma mais ou menos
homogênea, com algumas alterações do formante eidético observado em cada época, bem
como das tendências mais decorativas destas peças, mencionadas anteriormente. Trata-se de
um fazer tradicional por parte do corsetier, que é perpetuado pelo uso, tornando-se um fazer
tradicional e isotópico da própria mulher que utiliza o corset. Este conjunto de fazeres
tradicionais é produtor de uma interação programada entre os diversos atores do traje: o
corset, a crinolina – seu sujeito aduvjante, ou aquele que auxilia sua performance (GREIMAS
& COURTÉS, 2012) – o corpo, e o próprio traje, todos aparecem investidos de papéis
temáticos na narrativa do social.
A crinolina tradicional, assim como o corset, possui propriedades semelhantes àquelas
do corpo que ela busca modificar, não pela constrição, mas pela construção, pelo aumento.
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Assim como o corset, a crinolina tradicional (o panier do século XVII e XVIII) possui uma
pele, ligames e ossos, que propiciam a construção de um novo quadril sobre o quadril,
compondo um prolongamento desta região do corpo. Esta performance de aumento é
adjuvante da performance de redução da cintura, própria do sujeito corset, a partir da qual este
conjunto realiza a performance de transformação de uma silhueta, idealizada para um certo
formato de vestido. A performance do vestido, por sua vez, depende da performance destes
dois sujeitos, uma vez que sem a silhueta por eles construída, o conjunto “traje” é privado do
formante eidético por e para ele pretendido.
A união destas três performances – do corset, da crinolina e do vestido – é a condição
primeira para a realização de uma segunda performance, aquela do corpo, construído, vestido
e ornamentado, que faz-ser o sujeito que o porta, a mulher. O conjunto corpo, corset, crinolina
e vestido é formador de um novo papel temático, desta vez do sujeito feminino, a partir do
qual se desenrolará a interação no contexto social, no encontro com outros papéis temáticos,
dos demais atores da sociedade na qual este corpo e este traje encontram-se inscritos.
Este uso do corset – em conjunto com a crinolina e com o vestido – pode ser lido
como um uso programado, uma vez que vai de encontro ao seu uso pressuposto, localizando
esta forma de interação em uma posição de menor risco. Além de produzir hierarquias
extremamente marcadas no corpo, esta forma do uso da lingerie constritora está ligada às
hierarquias da interação, próprias do papel temático. Investidos desta forma de papel
actancial, os sujeitos limitam-se à ação dentro dos comportamentos esperados, que garantem a
segurança das interações em um dado contexto.
Por outro lado, estas formas mais tradicionais do corset são geralmente produtoras da
constrição e da modificação corporal mais marcada, mais perceptível, como o próprio corset é
evidente no desenho da silhueta. O corset não se dissimula por baixo da roupa: dependendo da
densidade do tecido utilizado no vestido, é possível entrever o desenho das barbatanas, ou ao
menos o aspecto duro conferido à silhueta. Ao sentar e ao caminhar, os objetos formadores da
silhueta colocam-se em presença, apresentando-se como uma espécie de exoesqueleto
feminino, que muito difere dos modeladores atuais, cujo uso é da ordem da ludibriação, da
ilusão que não mostra o segredo por trás do truque.
Este aparentar-se por baixo do traje é outra marca do papel temático feminino: no
contexto do uso tradicional do corset, faz parte do comportamento esperado do ator feminino
a utilização de todos estes objetos, o que elimina a necessidade de ocultá-los. Esta
41
necessidade começará a aparecer com o gradual desaparecimento do corset tradicional da
moda, marcando a diluição de seu papel temático em outros papéis actanciais, produtores de
diferentes interações, seja com o corpo, seja no social.

42
II.1. O traje à francesa

Figura 5. Sackback gown, 1775. Vestido de corte típico de meados do século XVIII, confeccionado em seda e
decorado com relevos do próprio tecido e franjas. Fonte: Victoria & Albert Collection, V&A T.2-1947.

Começar uma trajetória da moda ocidental a partir do século XVIII pode parecer um recorte
reduzido, tardio, e que desconsidera outras configurações de corpo anteriores. Tais impressões
são verdadeiras quando contrapostas a um objetivo de abordar a História da Moda Ocidental,
que não constitui, como exposto na introdução, o foco deste trabalho. Ao contrário, buscamos
uma abordagem analítica da tendência da constrição da cintura, marcada pelo uso do corset.
Esta tendência, construída a partir do uso deste objeto específico, data de meados do século
XVII (HART & NORTH, 1998), cujo traje não difere tanto da tendência que possui o vestido
acima como emblema.
De um corpus mais numeroso de vestidos deste grande período, do século XVII ao
final do século XVIII, optamos por analisar o momento que melhor presentifica a plástica
pretendida por esta tendência para o corpo feminino: aquela da década de 1770, muito
próxima da própria diluição desta configuração de corpo. Ao mesmo tempo, este momento em
que a tecnologia de confecção e de materiais atingiu seu ápice, permite contemplar neste traje
43
uma de suas realizações mais inspiradoras, que revelam o domínio e maestria do modelo por
parte dos alfaiates.
Começando pela forma, muito conhecida e imediatamente identificada como
pertencendo ao século XVIII, percebemos uma oposição entre a diminuição da cintura e o
aumento do quadril, proporcionados a partir do uso de dois objetos de transformação da
silhueta: o corset e a crinolina. As linhas que formam o traje são retas, duras, e facilmente
identificadas a formas geométricas simples: o triângulo no torso, o trapézio na metade inferior
do traje, os cilindros das mangas. As mesmas formas geométricas serão reiteradas na traseira
do traje que, no entanto, é completamente vazia de adornos – em oposição à frente, que traz
uma profusão de decorações.
Este primeiro exame do formante eidético permite concluir alguns pontos chave para a
reconstrução do sentido deste traje. Primeiramente, nota-se a existência de uma
topohierarquia do baixo – onde há um aumento da silhueta – sobre o alto, e da frente – onde
concentram-se todos os adornos do traje – sobre as costas. Esta hierarquização da frente,
onde, por sua vez, há uma maior concentração de adornos no centro longitudinal, nos permite
interpretar que o melhor ângulo para apreender este vestido é na frontalidade direta, a uma
certa distância do “objeto”, que permita uma fruição do conjunto completo, mas não tão
distante, que ainda permita ao olhar capturar os detalhes dos volumes do bordado.
Ao encontrar o olhar do observador, as duas metades do traje assumem diferentes
papéis, relacionados aos regimes de visibilidade, postulados por Landowski em A Sociedade
Refletida (1992). A frente, repleta de decorações, assume uma posição de ostentação, ou um
querer ser visto, enquanto que as costas, sem nenhum adorno, colocam-se em uma posição de
modéstia, ou de não querer ser visto. Tais posições, quando transpostas para o sujeito que
veste-se, podem ser traduzidas em “querer ser visto” em sua frontalidade, combinado ao “não
querer ser visto” a partir das costas.
Outra importante oposição, desta vez topológica, se dá entre o alto e o baixo do
vestido, sobretudo em sua frontalidade: considerando a linha do quadril como divisão entre
estas duas regiões do traje – passagem do domínio da constrição, marcado pelo uso do corset,
àquele da construção, a partir da crinolina – é nítido que uma maior importância foi atribuída
à metade inferior, onde uma maior profusão de adornos é encontrada. É possível testar o
próprio olhar retornando à imagem acima (figura 5), e perceber que o olhar é imediatamente
atraído para o centro inferior do vestido e, a partir dele, nosso olhar descreve uma trajetória do
44
baixo para o alto, sempre pelo centro, até atingir a linha do decote, onde o mesmo trabalho
que inicia nossa apreensão do traje, na bainha, é encontrado.
Combinando as duas oposições topológicas, entre frente e costas, e entre baixo e alto,
é possível dividir o vestido em quatro quadrantes – traseiro-superior, traseiro-inferior, frontal-
superior, frontal-inferior – e concluir que o local mais hierarquizado do traje é o quadrante
frontal-inferior, onde a maior profusão de adornos é encontrada. Em “segundo lugar”,
encontra-se o quadrante frontal-superior, seguido do quadrante traseiro-superior e, na base da
hierarquia, o quadrante traseiro-inferior.
Neste último ponto, o menos hierarquizado do traje, encontramos uma barreira física à
interação com o outro: a capa, que escorre até o chão e delimita um território de algumas
dezenas de centímetros, coloca-se como um impedimento material, uma fronteira que não
permite a aproximação de outro sujeito a partir deste ponto. Em oposição, no centro do
quadrante frontal-inferior, o vestido é ligeiramente suspenso do chão, gerando um vazio que
convida ao preenchimento – talvez pelos pés do parceiro, em um passo de dança? – e inicia o
caminho da fruição dos detalhes do vestido. Este vazio, por sua vez, está em correspondência
direta com o outro vazio, do decote, no quadrante frontal-superior: as duas linhas ligeiramente
côncavas delimitam, ao lado das linhas da silhueta e da sobressaia, um espaço central em
forma de ampulheta, onde o corpo nu encontra-se inscrito. Para além da sobressaia, encontra-
se o corpo construído pela crinolina, o corpo “falso”. Os dois vazios, o da bainha e o do
decote, servem a guiar o observador pela separação entre o corpo realizado, o corpo nu, e o
não-corpo, atualizado pelos objetos que constrigem/constroem a silhueta.
Esta delimitação é novamente marcada por relações de hierarquia espacial: ao
observar o quadrante frontal do vestido, é possível apreender uma maior concentração de
bordados no centro, a partir do qual o trabalho vai tornando-se menor, até transformar-se em
tecido liso, nas fronteiras laterais frontais da saia. Esta hierarquia da centralidade é reiterada
pelo desenho da capa, no quadrante traseiro, onde as pregas do tecido recobrem a região do
vestido ocupada pelo corpo realizado, deixando o corpo construído recoberto apenas por uma
camada de tecido liso, sem adornos ou volumes adicionais.
Somando a centralidade às oposições já identificadas, o quadrante mais hierarquizado
deste vestido seria, portanto, o frontal-inferior-central. Este lugar encontra-se, contudo,
metade preenchido pelo trabalho mais chamativo – a metade inferior – e metade vazio, em sua

45
porção superior, delimitado nas laterais pela linha da sobressaia, ao sul pelo trabalho do tecido
e, ao norte, pelo bico do corpete.
Este “vazio”, inscrito no centro dos dois outros vazios – a linha do decote e a bainha
suspensa do vestido – abriga em seu interior a região genital, a linha dos quadris anatômicos.
Longe de sinalizar uma inferioridade hierárquica, esta centralidade do sexo da mulher, vazia
de adornos, encontra-se em um lugar de visibilidade privilegiada, cercado por todos os lados
pelo trabalho nobre do bordado. Ocupante do quadrante mais hierarquizado topologicamente,
esta região ainda conta com o auxílio de linhas diagonais – as linhas da sobressaia, no baixo, e
as linhas da própria silhueta do torso, no alto – que inscrevem esta região em um grande “X”
central, que vai dos ombros aos pés, concentrando o movimento do olhar neste ponto central,
onde o bico do corpete encontra as linhas da sobressaia, na diagonal, e a linha do quadril
construído, na horizontal. A estas linhas combinam-se as verticais, do fechamento do corpete,
no alto, e do centro do bordado, no baixo. Também esta linha vertical que começa no baixo é
interrompida no centro, reiterando a necessidade do vazio central.

Figura 6. Detalhe da execução do bordado, utilizando volumes construídos a partir do próprio tecido e franjas,
que contornam os relevos realçando-os. Fonte: Victoria & Albert Collection.

Ao mesmo tempo, a forma como o bordado é executado (figura 6), com o próprio tecido
criando volumes, produz uma oposição topológica entre côncavo e convexo: os volumes da
sobreposição da sobressaia e do trabalho com o tecido e com as franjas criam diferentes níveis

46
que extrapolam o aspecto plano do tecido liso, estendendo a oposição entre pleno e vazio para
um nível tridimensional, no qual o centro frontal parece levemente côncavo, ou negativo, em
oposição ao bordado que é convexo, positivo em relação ao tecido plano das laterais. Este
efeito de sentido de cavidade é reiterado pelos jogos cromáticos e matéricos de luz e sombra,
no qual a matéria monocromática seda é trabalhada ora lisa, ora dobrada, produzindo
oposições entre brilho e opacidade, contribuindo para que os volumes criados tornem-se mais
exacerbados – e consequentemente, fazendo o centro parecer mais vazio, mais receptivo,
como um orifício a ser preenchido.
Enquanto traje de corte, notamos que o complexo trabalho manifestado neste vestido
contém em si todo o sentido da interação social do baile: promover a relação frontal, face a
face, entre indivíduos do sexo oposto, exaltando os atributos da mulher enquanto parceira
potencial. No alto, o limite do decote emoldura o colo – que provavelmente receberá jóias
para complementar o arranjo – e a cabeça; no baixo, a suspensão do vestido convida à
interação por meio da dança; e, finalmente, no centro, região mais importante do vestido, é
manifestado o vazio – do sexo, do útero – que precisa ser preenchido pelo parceiro, na união
através do casamento e, em seguida, na consequente concepção de herdeiros.
Mais do que um simples detalhe de design, é neste vazio central – topohierarquizado
no traje, e que pode ser homologado a uma topohierarquia do corpo feminino, na qual o útero
é presentificador do papel mais importante da mulher naquela sociedade – que são projetadas
todas as expectativas em relação à união entre pares do sexo oposto. O “querer ser visto”
expresso neste ponto do traje une-se a um “querer ver” do outro, compondo um regime de
visibilidade de “interesse mútuo” (LANDOWSKI, 1992), no qual os pares reconhecem-se na
interação visual: assim como a mulher que porta este traje quer ser vista como
competencializada para preencher este papel temático de parceira fértil e procriadora, o
segundo sujeito da interação, o homem que busca-se atrair, igualmente quer ver a mulher
enquanto capaz de preencher este papel manifestado na topologia do traje.
É inevitável relembrarmos, neste ponto, a representação da anatomia feminina
gestante, elaborada por van Spiegel (figura 2): assim como pode-se dizer que o ponto mais
hierarquizado do desenho é o ventre prenhe, que aparece decorado com uma flor formada
pelas próprias camadas de músculos e pele dissecadas, o local do traje homologado à gestação
aparece decorado com o próprio tecido (seda), em um desenho arredondado que pode
igualmente remeter aos ovários ou aos lábios vaginais. O vazio central do vestido presentifica
47
uma ausência, aquela do feto, que manifesta a disponibilidade da parceira (que não está
grávida), e sua fertilidade (ou a possibilidade de gravidez).
Em termos semióticos, o traje propõe um contrato fiduciário e veridictório
(GREIMAS, 1983): a organização topológica reclama um dizer verdadeiro acerca da
fertilidade daquela que o porta – um saber-poder gerar – que pode ou não ser aceito pelo
outro, o pretendente. Nesta lógica, a operação de sanção (GREIMAS, 1983; GREIMAS &
COURTÉS, 2012) do traje poderia ser identificada na adesão (ou não) do pretendente a estes
contratos, através da proposta de casamento. Em seguida, existe ainda a necessidade de
sancioná-lo novamente, desta vez quanto às competências de fertilidade, igualmente presentes
no enunciado do traje, o que ocorrerá na concepção (ou não) do almejado herdeiro.

II.1.1. A roupa de baixo do século XVIII

Figura 7. Conjunto de roupa de baixo do século XVIII, formado por stays e crinolinas chamadas de hoopskirt,
na língua inglesa, e panier, na língua francesa. Esta peça específica, de 1778, é confeccionada em linho e
estrutura de madeira envergada, mas outros materiais, como a lã e a crina – da qual o nome crinoline (crinolina)
é derivado – eram utilizados em sua fabricação. Imagem: Victoria & Albert Collection, V&A:T.120-1969.

48
A forma exterior do vestido é dada essencialmente pela forma da roupa de baixo: a ampliação
dos quadris na horizontal, bem como o formato constrito e triangular do tronco, são criados
pela ação de duas peças de roupa de baixo, o corset e a crinolina. O vestido, portanto, é
praticamente disforme: ele aparece como um apanhado de tecidos que cai sobre a lingerie,
assumindo as formas do conjunto da roupa de baixo como suas próprias formas.
Dada a matéria na qual o vestido é confeccionado, a seda, um tecido ao mesmo tempo
pesado e dotado de caimento, bem como a quantidade de camadas de tecido e decorações
aplicadas sobre ela, fica evidente a necessária competência de força e resistência presente
nesta crinolina, cuja estrutura deve formar e, ao mesmo tempo, sustentar a amplitude dos
quadris sob o peso do traje. Pensando neste aspecto mais técnico, se poderia desenvolver a
hipótese de que a profusão de adornos na parte central e inferior do vestido – e não em suas
laterais e no alto – pode estar relacionada a uma característica necessária, fruto da limitação
da roupa de baixo, e não uma escolha de design. Do ponto de vista semiótico, no entanto, a
existência desta limitação não anula os sentidos que podem ser lidos nesta configuração de
corpo – ou sequer pode esta limitação ser aceita como uma explicação definitiva para o
desenho do traje, a qual desqualificaria a pertinência dos valores apreendidos no vestido –
uma vez que, independente da razão pela qual o desenho do traje é este e não outro, o sentido
encontra-se manifestado e pode ser lido, apreendido. Nas palavras de Greimas, “que a isotopia
complexa do discurso seja provocada pela intenção consciente do locutor, ou que ela se
encontre instalada involuntariamente, [isto] não muda nada na própria estrutura de sua
manifestação.” (GREIMAS, 1966) 8

8 “Que l’isotopie complexe du discours soit provoquée par l’intention consciente du locuteur, ou qu’elle s’y
trouve installée à son insu, ne change rien à la structure même de sa manifestation.” (GREIMAS, 1966, trad.
nossa)
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Figura 8. Detalhe da estrutura e reforço lateral da crinolina de 1778. Imagem: Victoria & Albert Collection.

V&A:T.120-1969

No vestido, a composição das camadas de tecido e do caminho traçado pelos bordados cria
uma direção mais delicada da apreensão dos valores manifestados, que podem ser fruídos de
maneira quase poética, revelando-se de maneira gradual. No conjunto da roupa de baixo, esta
trajetória aparece mais didaticamente, simplificada pela ausência das decorações. O olhar é
imediatamente capturado pela “prótese” do quadril, que cria um volume desproporcional nas
laterais, construído por um objeto que possui duas fileiras de estruturas, uma de menor
amplitude, no alto, descrevendo um “V” aberto ao redor da cintura, e uma segunda, mais larga
e contínua, logo abaixo. A partir deste segundo arco, o tecido rígido e armado continua por
50
alguns centímetros, mantendo uma linha reta vertical, que desenha um trapézio que recobre o
corpo até o início das coxas.

Figura 9. Stays, 1780, confeccionados em linho enrijecido com cola, aplicação de fitas de seda e tiras de
camurça, costurado à mão com linha de linho e estruturado com barbatanas de baleia, medindo 62 cm na cintura,
quando completamente fechado. O primeiro nome dos corsets, “stays” ou “corps à baleine”, referem-se mais
diretamente ao caráter estrutural da peça. Na língua francesa, a tradução literal seria “corpo ou tronco de
barbatanas”, enquanto que, no inglês, a palavra “stay”, um sinônimo de “barbatana” ou “estrutura”, aparece
empregada no plural, sinalizando que esta peça é um conjunto de estais ou barbatanas. Imagem: Victoria &
Albert Collection. V&A:T.172-1914.

Por fora da crinolina, encaixa-se o corset, que imediatamente nos manifesta o formato de
triângulo conferido ao torso, que é reiterado diversas vezes nas costuras e nas fitas de reforço.
Seja no desenho destas fitas, no bico central do corset, ou no próprio desenho do corpo, há
uma isotopia da figura triangular, que pode ser lida como uma seta que aponta para baixo:
para o imenso quadril construído, ou para o que encontra-se ali, logo após o bico do corset: o
púbis, o sexo. Esta seta é reverberada pelo “V” da primeira estrutura da crinolina, criando
uma unidade enunciativa do conjunto que busca conferir visibilidade a este ponto do corpo
feminino.
51
Em uma leitura de cunho mais simbólico, é possível interpretar este aumento
excessivo do quadril como uma exaltação mais literal da fertilidade. Em diversas culturas
ditas ancestrais, como abordado pela psicóloga e autora Clarissa Pinkola Estes, o quadril é
relacionado à verdadeira força do feminino selvagem, que é aquela do parto (ESTES, 1994).
Há uma combinação deste sentido simbólico, da ampliação do quadril – e, logo, desta
competência da maternidade – com um outro, de natureza semi-simbólica, do sentido
apreendido em ato, que é dado pelo direcionamento do olhar, por meio das formas e linhas,
para o útero e para o sexo.
A maternidade e a fertilidade, neste traje, aparecem presentificadas principalmente
pelo quadril e pelo sexo, uma vez que tanto no vestido quanto na roupa de baixo, os seios
aparecem como ausência, no corte reto do corset e do corpete do vestido. Trata-se de um traje
de corte, no entanto, e sabe-se que a amamentação dos próprios filhos não era bem vista no
ambiente da nobreza europeia até o final do século XVIII, o que sugere, em partes, a
dissociação do seio ao ato da maternidade. O papel da mãe manifestado neste traje, portanto,
resume-se àquele da concepção, da geração e do nascimento.
Após o exame do vestido e da roupa de baixo, é possível interpretar que estas peças
não existem senão enquanto conjunto: a ação de uma complementa a ação da outra,
realçando-a, e na ausência de uma destas peças, o arranjo de corpo pretendido não pode ser
realizado. A divisão da roupa de baixo em duas peças, por sua vez, sinaliza uma divisão do
corpo: no plano baixo, onde concentra-se a ação da crinolina, há a direção de dentro para fora,
ou de aumento; no alto, local onde age o corset, a direção é contrária, de fora para dentro, de
pressão ou constrição.
A linha que separa estes dois lugares da ação dos modeladores da silhueta é justamente
aquela da cintura anatômica, local de maior tensão do traje. A área ocupada pelo vestido pode
ser dividida em três, na vertical, na qual um terço (superior) é ocupado pelo tronco constrito,
o segundo terço é ocupado metade pela crinolina e metade pela camisole, e finalmente a
terceira parte é ocupada apenas pelas pernas, sem nenhuma lingerie. Neste desenho,
novamente, o centro geométrico do traje (no caso da roupa de baixo) é hierarquizado pelo
aumento conferido aos quadris.
Esta linha de aumento, por sua vez, encontra-se imediatamente abaixo da cintura
anatômica, realçada pelo corset. Neste ponto, em oposição ao desenho arredondado e
contínuo do decote superior, o corset é construído em “picotes”, chamados de tabs, termo que
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significa “ponta” ou “lingueta”. Esta quebra das linhas do corset está em correspondência com
o franzido da crinolina, por meio do qual é feito o ajuste da mesma na altura da cintura. Na
união destas duas linhas descontínuas, fraturadas, as duas peças encontram-se, combinam-se.
O desenho em zigue zague, que faz pensar em “dentes”, talvez, manifesta um sentido de
plugue, de encaixe, que combina-se ao desenho correspondente do franzido da crinolina,
permitindo que as duas peças, de direções e ações opostas, tornem-se um único combinado
completo, como duas peças de um complexo quebra-cabeças.
O uso correto deste conjunto demanda que o corset seja vestido por fora da crinolina:
as tabs ou linguetas servem justamente à função de abrir o desenho constrito do corset,
conferindo a amplitude necessária para a linha alargada que se formará logo abaixo delas. Ao
mesmo tempo, a matéria mais enrijecida do corset provoca uma pressão sobre a crinolina,
impedindo que a mesma mova-se em direção ao alto por conta do movimento das pernas. Esta
imobilidade conferida pelas tabs garante que a crinolina não perca seu posicionamento
correto, que comprometeria a forma do vestido, repuxando-o, caso a crinolina subisse em
direção ao tórax, ou perdendo a altura correta do quadril, caso ela se abrisse e caísse da
cintura.
Se na forma e na topologia as peças apresentam-se em direções opostas, centrífuga-
centrípeta, aumentada-constrita, a materialidade e a anatomia das peças justifica sua união:
ambas construídas em linho, enrijecidas com estruturas que correspondem-se às próprias
estruturas do corpo, alternanto matérias maleáveis (tecidos) e rígidas (ossatura) na construção
de um corpo sobre o corpo, que constrói sobre a silhueta um novo formato, dotado de
diminuições e prolongamentos que formarão a base para o arranjo de corpo esperado pelo
vestido, que completará perfeitamente o conjunto de competencializadores da mulher para a
realização de sua performance na sociedade.
O forte entrelaçamento entre os papéis desempenhados por todas as peças, na relação
com o corpo, nos leva diretamente à definição de papel temático exposta no início deste
capítulo. Não apenas os comportamentos apresentados por todos os atores – inclusive o corpo
– podem ser lidos como isotópicos, como a interação entre estes diversos sujeitos se dá de
acordo com um programa esperado, previsível.
A partir da ação programada do traje, do corset e da crinolina, cria-se uma
configuração programada de silhueta, do formato e da topologia esperados de um corpo
feminino (com quadris aumentados, cintura constrita, além de um vestido que manifesta-se
53
enquanto instrução calculada de uma interação com este corpo). A partir da apreensão destas
isotopias de comportamentos e interações programadas, é possível extrair que a relação
prevista entre este corpo e os demais sujeitos remete ao investimento de um papel temático,
igualmente previsível – e portanto, da ordem do regime da segurança – no sujeito feminino. O
conjunto do traje assegura, assim, que a interação feminina em sociedade atenha-se ao
programa para ela previsto.
Em outras palavras, o conjunto corset-crinolina-vestido manifesta uma sintaxe da
falta, presentificada principalmente pelo vazio central, localizado em uma posição
privilegiada de visibilidade dentro do traje. Esta falta – o útero virgem, desabitado –
relaciona-se a um feminino que busca o cumprimento de seu papel temático – o
preenchimento de seu útero. Desta maneira, o traje aparece como realçador de uma silhueta,
que é a expressão do conteúdo “desejo de procriar” – o que pode ser realizado legitimamente,
no contexto social deste traje, apenas por meio do casamento. Semioticamente, o que o vazio
presentifica, portanto, é a necessidade de conjunção com o valor carregado pelo outro, o
sujeito do sexo oposto. Por meio desta junção, é possível realizar os valores de fertilidade, do
poder gerar.
Se o traje manifesta estas competências e modalidades sobretudo deônticas
(GREIMAS, 1983), da ordem do dever, que ligam-se ao papel temático feminino –
apreendido desde os desenhos anatômicos de van Spiegel (figura 2) – é possível postular que
existe uma relação de complementaridade entre o papel temático do corpo feminino, formado
pelos papéis do vestido e da roupa de baixo, e o papel temático da mulher.
O papel do vestido e da roupa de baixo em conjunto, portanto, pode igualmente ser
lido enquanto um papel temático, na medida em que a ação esperada deste traje completo é
aquela de “formar uma silhueta eufórica para o sexo oposto”. Em uma lógica da corte, é
esperado do ator traje que ele aja da maneira descrita até então: fazendo ver (ou não ver)
determinadas regiões do corpo para, por meio disso, fazer fazer (ou não fazer) os outros
sujeitos. Trata-se de um papel do traje que concentra-se em criar uma silhueta atraente para o
sexo oposto – e este valor eufórico da atração, por sua vez, encontra-se intimamente ligado,
no plano do conteúdo, ao valor “fertilidade” – e encorajar a interação com este corpo vestido.

54
II.2. A moda de 1880

Figura 10. Vestido de 1885, confeccionado em algodão azul impresso em tons de vermelho e terracota,
construído em três peças: corpete, anágua e saia. Um dos destaques deste modelo é certamente o volume traseiro
da saia, que proporciona a impressão de ausência da crinolina (sobretudo na lateral, rente ao corpo), mas é
sustentado por uma peça denominada “bustle” ou “bustle frame”, cujo significado relaciona-se, no inglês, ao
mover-se apressadamente, de maneira dinâmica. No francês, a peça era denominada “tournure”, que também
significa um acento ou expressão conferido ao modo de falar. Em ambas as línguas, portanto, a nomeação
escolhida para a peça transita entre características conferidas ao corpo durante seu uso, seja uma mobilidade
maior, quando comparada às crinolinas mais amplas, seja um “acento” apenas na traseira do vestido, e não um
destaque completo da linha do quadril e do glúteo. A peça é conhecida na língua portuguesa como “anquinha”,
em referência ao local do corpo que ela recobre e destaca. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.
7&A-1926.

A partir de 1850, a crinolina ampla voltou à moda, mas desta vez em uma versão redonda, em
forma de sino ou gaiola, e em desenho cada vez mais amplo e exagerado. Valerie Steele
identifica esta volta da cinolina a uma vontade da burguesia ascendente de marcar sua

55
distinção das demais classes sociais, por meio da assimilação de valores típicos da nobreza do
século XVIII (STEELE, 2001) – a mesma que fora destituída do poder por meio de uma
revolução burguesa.
Esta moda recuperada dos salões de baile dos 1750, no entanto, não condizia com a
vida na cidade, a realidade de grande parte dos burgueses europeus de meados do século XIX.
Aos poucos, a tradicional crinolina de gaiola (cage crinoline) começa a diminuir, tornando-se
primeiro uma versão mais estreita, até chegar ao desenho do vestido acima, última moda
ocidental a incluir a crinolina como item do vestuário feminino.
Em oposição ao traje à francesa, este vestido é dotado de uma horizontalidade muito
menor quando apreendido em sua frontalidade: o desenho dos quadris é reto, rente ao corpo, e
o vestido abre-se ligeiramente na base, por conta das fileiras de babados. No quadrante
frontal, o alto adquire uma quase invisibilidade, que difere da progressiva decoração da saia,
que começa com um drapeado redondo, que é reverberado em cinco fileiras iguais de babados
que unem-se ao babado da anágua, criando uma ilusão de continuidade entre as duas peças.
Ao observar o vestido em seus demais ângulos, no entanto, é perceptível que a real
astúcia do traje encontra-se não em sua frontalidade, mas nas costas e, de maneira semelhante
ao traje do século XVIII, no quadrante central. No alto, o corpete é liso e sem nenhuma
decoração até a altura da cintura, onde o duro desenho de sua cauda, em quatro setas quase
que horizontais, recobre o igualmente rígido drapeado da saia.
Na visão traseira direta, no entanto, não é possível fruir a totalidade deste detalhe: para
apreender corretamente o elaborado desenho do corpete, o observador deve posicionar-se em
ângulo indireto, como no centro da figura 10, posição que permite visualizar o volume criado
pela crinolina, que serve para sustentar o drapeado e conferir visibilidade às setas que o
recobrem.
Em relação ao traje à francesa, este vestido delimita um espaço pessoal muito menor: a
ausência da capa com cauda, bem como o não aumento lateral do quadril, inscrevem a usuária
deste vestido em uma área constrita, quando comparada àquela produzida pelo traje do século
XVIII. Da mesma maneira, a bainha suspensa indica não apenas a ausência de limites físicos
para a interação pelas costas, como a possibilidade de que este vestido não seja idealizado
para uma interação indoor, como o é, nitidamente, o traje à francesa. Se a cauda que escorre
pelo chão nos fala de um ambiente limpo, seja ele o interior do salão, sejam os bucólicos
jardins dos palácios e propriedades rurais, um vestido com bainha suspensa revela um não
56
querer tocar o chão – o que torna inevitável a relação com os pisos imundos das cidades
industriais do final do século XIX.
Unindo estes dois traços plásticos – o estreitamento horizontal e a suspensão do chão –
encontramos manifestados conteúdos que reenviam à possibilidade de um corpo que não
encontra-se confinado, no interior das residências ou salões de baile, mas de um corpo mais
dinâmico. A bainha que não toca o chão, por sua vez, contém em si o desejo de
distanciamento do ambiente pelo qual este corpo transita, que pode ser aquele da cidade.
Trata-se, assim, de um feminino mais arrojado, ativo, que ganha o espaço público e por ele
transita, com um traje que atende às demandas práticas solicitadas por estes lugares.
Seguindo esta lógica, os demais elementos do traje ganham sentido, pouco a pouco. A
ausência de decote e as mangas compridas, por exemplo, são traços marcados que remetem a
uma não-ostentação do corpo, muito diferente do decote cavado e pronunciado do traje à
francesa, complementado pelas mangas acima dos cotovelos. No vestido do século XVIII, não
apenas uma maior quantidade de pele encontrava-se à mostra, como estas partes nuas do
corpo – colo, pescoço e braços – certamente clamavam por jóias, como pulseiras e colares,
como complemento do look. Em um vestido completamente fechado como este, no entanto,
existe um espaço muito limitado para o uso de acessórios, provavelmente apenas brincos e
anéis – e estes últimos, ainda, possivelmente recobertos por luvas.
Em oposição à ostentação do século XVIII – do corpo, dos atributos sexuais, das jóias
– encontramos neste vestido um regime de visibilidade definido por Landowski como
“pudor”, ou querer não ser visto (LANDOWSKI, 1992). Não apenas o corpo se cobre,
deixando menos pele à mostra e, consequentemente, menos espaço para o uso de jóias, como
a própria forma do corpo torna-se mais estreita, reduzindo o destaque dos quadris – e, como
vimos, da competência da fertilidade que eles manifestam.
Ao mesmo tempo, as linhas do formante eidético, delimitadoras de um menor espaço
pessoal, revelam a possibilidade de uma interação em maior proximidade. Tal manifestação,
contudo, é produtora de uma contradição, no que toca os regimes de visibilidade apreendidos
neste traje. Por um lado, a mesma topohierarquia do baixo sobre o alto, apreendida no traje à
francesa, encontra-se presente neste vestido. No entanto, na proximidade permitida por seu
desenho, tudo o que o observador pode apreender é o corpete completamente liso, de linhas
duras e até mesmo masculinas, militares. O corpo permite a proximidade, mas não dá a ver ao
enunciatário, o outro sujeito, o que ele espera ver – a competência da fertilidade. Ao delimitar
57
uma distância na qual o baixo não pode ser visto, o corpo vestido neste traje coloca o outro
sujeito em posição de voyeurismo, ou da contradição entre querer ver e querer não ser visto
(LANDOWSKI, 1992).
Este regime de visibilidade certamente opõe-se ao interesse mútuo (LANDOWSKI,
1992), identificado na apreensão correta do traje à francesa, na qual o corpo vestido quer ser
visto da maneira como o enunciatário quer vê-lo, produzindo a complementaridade nas
relações de visibilidade. No traje de 1880, duas leituras são possíveis. Do ponto de vista da
competência da fertilidade, o sujeito quer não ser visto na proximidade – o delicadíssimo
destaque do baixo ventre, conferido pelo drapeado arredondado, é melhor apreendido à
distância. Quando posicionado na proximidade espacial permitida pelo traje, o corpo quer não
ser visto como sexo oposto, e dá a ver a silhueta masculina/militar do corpete reto, liso e
fechado. Em ambos os casos, para que seja permitido ao enunciatário fruir as características
por ele procurada – a feminilidade, a competência da fertilidade – se faz necessário tomar
novamente a distância.
O destaque para a fertilidade, no entanto, não manifesta-se como prioridade nas
relações de visibilidade criadas pelas linhas deste vestido. Não apenas pelo aumento, mas
também pela profusão de decorações, o ponto que coloca-se como o mais importante do traje
é, sem dúvida, o quadrante central traseiro, onde localiza-se a crinolina, a decoração em forma
de setas do corpete, e a cintura constrita. Em oposição à frente praticamente reta, a curvatura
da lombar encontra-se em destaque pelo prolongamento dos glúteos, promovidos pela
crinolina e pelo desenho do corpete, que a ultrapassa. O próprio drapeado traseiro da saia
assume o formato de duas setas ascendentes, que carregam o olhar do baixo ao alto até este
local privilegiado.
Neste ponto, no entanto, as setas encontram-se quase na horizontal, e seu aspecto duro,
rígido, confere a elas o efeito de sentido de facas ou lanças, lâminas afiadas que guardam o
único ponto do traje onde um espaço pessoal que ultrapassa o corpo nu é delimitado. O ponto
mais hierarquizado do traje, portanto, é justamente aquele onde não se pode tocar o corpo,
seja pela distância por ele delimitada, seja pelas “armas” que o protegem.
A combinação dos traços do notável formante eidético deste traje pode ser lida como
uma maior independência feminina, que em lugar de entregar-se como um prêmio ao parceiro
pretendido, oculta suas competências relacionadas ao papel temático, ao mesmo tempo em
que desvia a atenção do enunciatário deste ponto, concentrando seu olhar em outra direção.
58
Este traço é reiterado pelo próprio formante matérico do vestido, confeccionado em algodão.
Ao contrário do caimento quase que passivo e inerte da seda, que limita-se a recobrir a
crinolina, o algodão possui a capacidade de sustentar uma forma independente da modelagem
oferecida pela crinolina. A capacidade do vestido de sustentar parcialmente os próprios
volumes confere a ele, igualmente, uma maior autonomia, ou uma relativa emancipação da
roupa de baixo.
No papel manifestado pelo traje à francesa, encontrava-se presentificado o caráter
dependente da mulher – reiteração da dependência do vestido, em relação à roupa de baixo –
que necessita da junção com o outro para a realização de seu papel. No vestido dotado de
maior autonomia, o próprio feminino diminui a manifestação da falta, apresentando-se
enquanto corpo fechado, armado e protegido.
Para David Kunzle, uma relação direta entre esta moda e a diminuição substancial da
família europeia do período pode ser traçada (2004). De fato, o final do século XIX é marcado
por um emprego melhor disseminado da contracepção, que passa a ser aceita principalmente
por conta das crises econômicas em diversas classes sociais – relevante obstáculo para o
cumprimento do papel temático. Este traje marca, portanto, uma queda da valorização da
fertilidade feminina, que perpassa sobretudo uma relação de visibilidade do centro frontal do
corpo, local da concepção e da gestação, para uma valorização do centro traseiro,
topologicamente oposto.
A oposição topológica entre os dois trajes será ainda reiterada pelo cromatismo deste
vestido específico, cuja cor azul do algodão é praticamente imperceptível sob a profusão do
padrão vermelho, rosa e terracota. Trata-se de uma tenologia do período – a impressão –
sobrepondo-se à outra, do período anterior – a descoberta dos corantes artificiais,
principalmente o azul (BOUCHER, 2010) – quase apagando-a completamente. Da mesma
maneira, a cor escolhida abriga uma oposição da ordem do simbólico, aquela entre azul e
vermelho, que são correspondentes aos conteúdos opostos, bem vs. mal. No sentido
apreendido em ato, no entanto, o vermelho reenvia a outros valores extremamente marcados
do século XIX, como a guerra e o desenvolvimento da indústria.
Uma das principais matérias a contribuir com o avanço industrial é o aço, cuja
manifestação natural possui uma tonalidade semelhante àquelas utilizadas na paleta do
desenho impresso no tecido. Ao mesmo tempo, é inegável a associação ao sangue, que, por
sua vez, reenvia aos conteúdos de morte associados à interrupção das gestações – seja pela
59
contracepção, pelo aborto, infanticídio ou abandono de crianças, muito comuns no período –
marca de uma disforia investida na procriação. Tais valores certamente opõem-se ao
bucolismo azul do século XVIII que, apesar de igualmente marcado por guerras, é retratado
em sua arte em cores mais suaves, claras – o século das luzes, em oposição ao sturm und
drang do século XIX.

II.2.1. A roupa de baixo de 1880

Figura 11. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883: corset confeccionado em cetim, couro, barbatanas de baleia e
spoon busk em aço. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884, crinolina confeccionada em aço e fitas de algodão.
Imagem: Victoria & Albert Collection. V&AT.84&A-1980 e T.131C-1919.

Para formar o corpo pressuposto pelo vestido acima analisado, se fazia necessário o uso de
duas peças modeladoras: o corset e a crinolina. Em comparação ao conjunto do século XVIII,

60
contudo, trata-se de uma roupa de baixo menos limitante dos movimentos, bem como de uma
já mencionada redução do espaço pessoal delimitado pela roupa: no lugar dos volumes
exagerados, criados especialmente para o traje à francesa, este conjunto constringe a cintura e
confere apenas um “acento” – ou tournure, como nos lembra a nomeação francesa deste tipo
de crinolina – do volume dos glúteos e, por meio deste, da curva da cintura lombar.
Ao contrário da roupa de baixo necessária para formar o traje à francesa, na qual uma
imediata visualização do conjunto completo se faz possível, neste traje não fica tão evidente
qual será o desenho final da roupa. Isso nos lembra que, neste período, também o vestido é
dotado de uma certa autonomia em sua própria formação: a crinolina aparece como um
adjuvante, que confere sustentação em um ponto (no centro traseiro, na altura dos glúteos), a
partir do qual o vestido constrói-se a si mesmo. Se no traje à francesa o vestido aparece como
algo que recobre o conjunto corset-crinolina e depende totalmente da performance destes dois
actantes, neste traje ao menos o papel da crinolina aparece como enfraquecido.
A ênfase na parte inferior do corpo, no entanto, continua presente, ainda que com
traços suavizados, quando comparados àqueles conferidos ao corpo pela lingerie do século
XVIII. Neste traje, porém, em lugar dos marcados sólidos – trapézio, triângulo – encontramos
uma forma mais orgânica, arredondada, que lembra um “8”, ou uma voluta. Este desenho é
conferido ao corpo primeiramente pelo corset, que torna-se mais arredondado tanto na lateral
quanto na frente e nas costas, conferindo ao ventre um volume no baixo abdome, e reforçado
pelo volume da crinolina, apenas nas costas.
Na roupa de baixo, portanto, é reiterado o ponto de vista do enunciatário estabelecido
pelo vestido: o melhor ângulo para apreender o desenho desta roupa de baixo não é aquele da
frontalidade, e tampouco a visão traseira direta, mas o ângulo indireto, levemente oblíquo.
Neste ângulo, no qual o manequim da imagem acima (figura 11) encontra-se posicionado, é
possível perceber que o posicionamento da crinolina sugere a continuidade de seu
movimento, um prolongamento de suas linhas, que será dado pela “cascata” de drapeados do
vestido. Igualmente, o desenho arredondado do baixo ventre, marcado inclusive pelo bico da
frente do corset, será retomado no discreto drapeado frontal e na fileira de babados da saia,
que aparecerão como reverberações desta curva conferida ao abdome.
No vestido, é marcada uma cisão entre a frente e as costas, sobretudo em sua porção
inferior, no conjunto saia e anágua. Esta cisão é certamente fruto da organização da roupa de
baixo, na qual a frente é modelada apenas pelo uso do corset e, nas costas, há a adição de um
61
volume pontual, apenas sobre o glúteo – justamente, a parte de maior destaque do vestido. Tal
cisão tem como fruto um desequilíbrio do traje, que opõe-se à simetria quase bidimensional
do traje à francesa. Este desequilíbrio é produtor de diversos sentidos, um deles, talvez o
principal, a necessidade de deslocamento do enunciatário para a apreensão do corpo que se
apresenta construído desta maneira. Esta necessidade de deslocamento, por sua vez, é
produtora do recorrente sentido de mobilidade, que muito difere da possibilidade de uma
apreensão estática, presente nas linhas do traje à francesa.

Figura 12. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884. Crinolina confeccionada em arames de aço e fitas de algodão
perfuradas. O nome comercial da peça, “O Novo Fantasma” em tradução livre, confere um sentido interessante
que remete tanto à ausência de tecido recobrindo a estrutura, reforçanto o caráter de esqueleto descarnado,
quando a sutil ação da peça na traseira do vestido, como uma “aparição” que possui ação visível, mas não se
mostra aos olhos daquele que admira o traje formado por ela. Fonte: Victoria & Albert Collection. V&A T.
131C-1919

Estes dois aspectos do traje ajudam a construir os valores apreendidos no vestido: a


dinamicidade do deslocamento no ambiente da cidade (em oposição à estaticidade da
62
interação indoor, dos salões de baile do século XVIII), que pode ser lida como uma maior
independência da figura feminina em sociedade. Esta autonomia aparece mais claramente pela
própria diminuição do volume do traje, que permite um deslocamento mais livre, mais leve.
A independência expressa na possibilidade de mobilidade é, por sua vez, combinada ao
sentido de “arma” conferido ao próprio vestido, sobretudo pelo detalhe traseiro, em forma de
setas rígidas que apontam violentamente para o outro, para o olhar do enunciatário, quando
dirigido a este local.
Neste ponto do traje, as orientações espaciais do vestido e da crinolina separam-se,
colocando-se em oposição. No exterior, há a nítida direção para fora, enquanto que o
movimento sugerido pela crinolina, a continuidade de suas linhas de voluta, apontam para
dentro, de volta para o sujeito que a utiliza. Se uma contrariedade é manifestada, pelo vestido,
nas relações de visibilidade criadas no corpo, esta mesma contrariedade é reiterada na relação
entre roupa de baixo e vestido, desta vez nas direções, centrífuga e centrípeta, assumidas
pelos dois conjuntos.
Em um primeiro olhar, esta crinolina se revela como uma peça incompleta, inacabada,
na qual falta o tecido recobrindo a estrutura metálica aparente. Nomeada por seu fabricante
como “fantasma”, “aparição” ou ainda “espectro” – todos possíveis traduções do vocábulo
phantom – esta peça certamente continua a isotopia de “morte” presente neste ponto do
vestido. A morte, dada pela cor vermelha e pelas flechas presentes nos bicos do corpete,
aparece no interior como o resultado da morte, ou seja, o “espírito”, ou a “alma penada”.
Ao contrário da crinolina do traje à francesa, revestida em toda a sua extensão por um
tecido que ocultava sua estrutura, nesta peça não apenas não existe um revestimento, como o
único tecido utilizado – a fita de algodão – aparece perfurado, ferido pela força da própria
matéria metálica. Esta penetração aparece tanto nos arames, que perpassam a fita de algodão
em “ferimentos” de entrada e de saída, como nos rebites, igualmente de aço, que unem a
matéria tecida atravessando-a. No lugar do corpo “vivo” da crinolina do século XVIII, dotado
de pele, ossatura e ligamentos, esta crinolina possui ossos ainda fortes e aparentes, mas sua
pele e sua carne encontram-se já deterioradas, um elemento quase ausente.
Última crinolina a ser criada e utilizada no contexto da moda ocidental, o paralelo
entre esta peça e o desaparecimento deste acessório é inevitável: sua última “aparição” na
moda é investida de valores de decomposição, do desaparecimento gradual após a morte. Em
uma linha do tempo da existência das crinolinas, esta decomposição, ou descontrução, é
63
visível de forma gradual através dos modelos do século XIX, nos quais cada vez mais
estrutura passou a ser exposta, começando pela exposição da forma da estrutura, mas com
arames ainda revestidos, até a exposição total do aço, e, finalmente, neste modelo, o
desaparecimento quase que completo da matéria tecida. Esta ausência, por sua vez, está
intimamente ligada à diminuição da crinolina: primeiramente, na direção horizontal, com a
diminuição da circunferência e, sem seguida, a diminuição na direção vertical.

Figura 13. Panorama do desenvolvimento das crinolinas ao longo do século XIX, que se completa com o bustle,
última versão desta peça antes de seu desaparecimento da moda ocidental. À esquerda, o modelo de 1860
(V&A:T.16-1979), confeccionado em estrutura vegetal, apresenta um desenho completamente recoberto pelo
tecido. No centro, modelo de 1867 (V&A:Circ.87-1951), confeccionado em crina, algodão e aço, apresenta a
estrutura parcialmente exposta. Finalmente, à direita, no modelo de 1868 (V&A:T.195-1984) há uma total
ausência do formante “pele” da crinolina, confeccionada apenas em arames de aço e fitas de linho, que assumem
a função de estrutura vertical. Fotografias: Victoria & Albert Collection.

A circunferência da ampla “gaiola” de meados do século XIX encontra-se, no entanto,


presentificada, ainda que de maneira sugestiva. Construída em 1/4 de esfera, formado por seis
arames em semicírculo e unidos por um sétimo arame horizontal – o eixo em torno do qual
esta parte poderia girar, formando por meio do movimento a totalidade – seu posicionamento
sugere os outros 3/4: metade deles formados pelo próprio ventre, construído em desenho
arredondado pelo corset, e o outro 1/4, nas costas, enquanto prolongamento deste hiper-glúteo
almejado. Em uma outra possível leitura, ao invés de esfera ao redor do baixo ventre, um
prolongamento desta crinolina pode ser desenhado em forma de voluta, uma espiral crescente,

64
que constrói em torno do sujeito uma espécie de concha – localizada, como no caracol, nas
costas – englobando o corpo em uma linha imaginária traçada a partir do próprio glúteo.

Figura 14. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883, confeccionado em cetim, couro, bico de renda de máquina,
barbatanas de baleia e spoon busk em aço, medindo 56 centímetros na cintura quando completamente fechado.
Anunciado pelo fabricante como um corset próprio para a prática de esportes, a linha de corsets ‘Dermathistic’
possuía como principal diferencial a cobertura do busk e das barbatanas com couro (LYNN, 2010). Esta
particularidade ajudava a proteger o corset de eventuais rupturas, ocasionadas pelo movimento exigido na
atividade física, impedindo que as barbatanas rasgassem o tecido do corset e, consequentemente, aquele do traje
exterior. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&AT.84&A-1980

O grande diferencial que marca a passagem do século XVIII para o XIX é, sem dúvida, a
introdução da abertura frontal nos corsets. Tal abertura é permitida por uma tecnologia
denominada “front busk”, patenteada em 1829 pelo corsetier Jean-Julien Josselin (LYNN,
2010). Trata-se de um aviamento que consiste em um par de chapas de aço, nas quais são
rebitados pinos, no lado esquerdo, e ganchos, no lado direito que, quando encaixados, mantêm
a peça seguramente fechada.
O split busk aparece como facilitador do vestir e despir o corset, uma vez que permite
que esta atividade seja realizada sem o auxílio de outra pessoa, ao contrário do que ocorre nos

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antigos stays, amarrados somente pelas costas, demandando que a realização de tal tarefa
fosse auxiliada por outra pessoa. Pode-se afirmar, portanto, que o uso do split busk traz
consigo uma espécie de democratização do corset, que combina perfeitamente com a
preocupação mercantil, marcada no século XIX.
No sentido da anatomia do corset, contudo, o split busk aparece como transgressão do
desenho pressuposto do corset. Isto ocorre quando a matéria metálica, marcadamente
estrutural, aparece extrapolando o lugar da ossatura, no interior do corset, e se faz ver no
exterior, nos ganchos e pinos. É importante ressaltar que, além de promover o abrir e fechar
do corset pela frente, o split busk também possui a função de estruturar e reforçar a frente do
corset, modelando o abdome e o baixo ventre.
Da mesma maneira, no âmbito da confecção, a inserção do busk no corset adquire um
caráter de ferida: para a sua colocação, do lado dos ganchos, é preciso deixar aberturas na
costura por onde eles possam ser inseridos, enquanto que, do lado dos pinos, é preciso
perfurar todas as camadas do corset com um vazador, e então empurrar os pinos de maneira
que atravessem completamente estes orifícios. Para impedir que o aviamento se mova e avarie
o tecido, a inserção é finalizada com a costura aparente, rente à chapa de aço (visível na figura
14) e, como no caso deste corset, reforçada com uma camada extra de tecido.
Da mesma maneira que o arranjo da crinolina, também o conjunto plástico do corset
reitera a isotopia do ferimento, do corte, da perfuração. A estrutura propositalmente aparente,
semelhante àquela da crinolina, aparece como uma ferida em seu arranjo, em sua anatomia,
que expõe seu interior no exterior. O conjunto machucado formado por estas duas peças
justifica, no exterior, a necessidade de “defesa” do corpo, manifestada pelo desenho do
vestido. Ainda que menos ferido do que a crinolina, o corset também preparava-se para seu
segundo desaparecimento da moda, considerado por alguns autores como definitivo, em
meados dos anos 1910.

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Figura 15. Panorama do desenvolvimento do corset, dos stays de 1780 (V&A:T.172-1914) às alternativas
consideradas mais saudáveis, como o corset confeccionado em tela de algodão, de 1890 (V&A:T.234-1968) ou o
ribbon corset, de 1900 (V&A:T.18-1958), composto apenas por fitas de seda acetinada. Da mesma maneira que
nos mostra o panorama da crinolina, também o corset apresenta uma diminuição gradual de sua pele, que torna-
se cada vez mais aberta. Fotografias: Victoria & Albert Collection e “Underwear Fashion in Detail”.

Figura 16. Spoon busk contemporâneo, confeccionado em chapas, ganchos e pinos de aço inoxidável e, ao lado,
barbatana flat metálica. Destaque para a curvatura da porção inferior do busk, responsável pelo desnível e realce
do baixo abdominal. Imagem: Wikimedia Commons.

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O nome spoon busk, ou busk colher, refere-se à forma da chapa, em voga no século XIX, que
lembra uma colher tanto em sua frontalidade – mais estreito no alto, e abrindo-se em forma de
gota no baixo ventre – quando no ângulo oblíquo/indireto – a curvatura longitudinal da chapa
recobre o baixo ventre, como se estivesse, de fato, colocando-o em uma colher. Além de
reiterar o ponto de vista indireto, já exaustivamente mencionado neste item, na visão frontal
direta, o spoon busk aparece como metonímia do traço plástico conferido ao corpo: mais
estreito no alto, mais aberto e arredondado a partir de abaixo da cinutra.
Na visão indireta do corset, é possível igualmente apreender que o desenho do busk
contribui para formar a frente mais lisa, manifestada na parte superior do vestido. A pressão
exercida pelo corset na cintura – em 360o, e não apenas lateralmente, como observado nos
stays – cria um desnível ao longo de toda a linha da cintura, enfatizando tanto a curva da
lombar – que por sua vez será realçada pela crinolina – quanto aquela do baixo ventre. Estes
dois pontos serão, por sua vez, realçados no vestido: a traseira, com mais força, pelas setas do
corpete e pelo evidente drapeado, e na frente, pelos babados da saia e da anágua.
A ação do corset, portanto, encontra-se igualmente inscrita em um uso pressuposto de
formar um corpo para um vestido. Neste caso, o desenho de corpo demandado é aquele de
uma ênfase na parte inferior, no baixo ventre e principalmente na lombar, garantida pela
constrição de toda a circunferência da cintura, e igualmente pela modelagem mais longa, que
confere um desenho arredondado ao quadril. No alto, o corset de corte midbust, ou até o meio
do busto, interrompe sua modelagem na altura dos mamilos. Sobre este decote, os seios
“caem”, preenchendo o espaço do corset, sem constringí-los para que fiquem retos. A
impressão de frente “plana” é garantida, por sua vez, pelo desnível da bacia, visível na figura
11: esta forma de modelagem, conhecida como “vitoriana”, empurra a cintura para trás,
promovendo uma báscula da bacia, que projeta-se levemente para a frente, criando a
impressão de que toda a parte superior encontra-se projetada para trás.
Desta maneira, seria possível interpretar que a necessidade do volume traseiro, pelo
uso da crinolina, aparece como um ponto de equilíbrio: com a bacia projetada para a frente,
um volume “negativo” é criado nas costas, e precisa ser preenchido por outro objeto, no caso
a crinolina. Retornando assim ao conjunto completo, notamos que a crinolina aparece como
preenchimento de uma ausência do corpo, criada pela modelagem do corset. O corset coloca-
se, assim, como “regente” do conjunto, e a necessidade da crinolina é criada por sua própria
ação.
68
No que toca a forma conferida ao corpo feminino, no entanto, é possível ler a báscula
da bacia para a frente, complementada pelo volume protuberante e arredondado nas costas,
como a criação de uma silhueta inversa àquela retratada pelo desenho de van Spiegel (figura
2), que delineia a anatomia do corpo feminino gestante. Ao invés de realçar as características
admiradas e consideradas eufóricas, justamente por sua ligação ao corpo prenhe, esta roupa de
baixo inverte o desenho do corpo feminino em gestação, negando o investimento destes
valores em seu arranjo plástico.
O conjunto corset, crinolina e vestido é unido por diversas isotopias, dentre as quais a
mais forte é aquela da morte: a sugestão do ferimento por perfuração perpassa todos os
componentes deste traje, seja nas setas do corpete, nos arames da crinolina que perpassam as
fitas de algodão ou nas fendas e nos vazados requeridos para a aplicação do busk. Da mesma
forma, a cor vermelha perpassa todas as peças, seja no uso das matérias tecidas, seja no uso
do aço, cuja cor, na natureza, é avermelhada.
Por outro lado, na própria nomeação da crinolina, encontra-se o caráter sobrenatural
da ação deste tipo de roupa de baixo – a sustentação de volumes não realistas por meio de
estruturas “invisíveis”, guardadas no interior da roupa. A mesma nomeação, ao mesmo tempo,
traz em seu significado o processo gradual de morte, atravessado pelas crinolinas desde seu
auge, em meados do século XIX, que é igualmente o processo gradual de morte do corset
tradicional, que intensifica-se a partir da invenção do split busk, que provoca uma cisão do
corset em dois, a partir da qual sua estrutura passa a ser aparente, como uma espécie de
fratura exposta. Após esta intervenção, o corset se transformou com tamanha intensidade e
rapidez, que a vigência das tendências de silhueta dentro da moda tornou-se cada vez mais
curta: uma ferida inicial no arranjo uno e impenetrável dos stays, em voga por mais de dois
séculos, que permitiu uma aceleração do desenvolvimento do mercado da constrição do corpo
na velocidade de décadas, a partir de meados do século XIX.
Esta ferida é reiterada no sentido completo do traje, enquanto uma primeira ferida no
papel temático feminino centrado na procriação e na fertilidade. Em lugar de realçar as
características plásticas que homologam-se a tais valores, no plano do conteúdo, a roupa de
baixo e o vestido invertem as hierarquias tradicionais do corpo, conferindo à silhueta novas
relações de visibilidade, indicando uma transformação da expressão e do conteúdo do
feminino, que passa a ser revestido de novos valores, da ordem da independência e da
emancipação.
69
II.3. O início século XX

Figura 17. House of Rouff Tea Gown, 1900. Vestido construído em peça única, confeccionado em adamascado
bordado com vidro, linha metálica e contas, com renda e tule bordados. O nome tea gown, em tradução livre,
significa “vestido para o chá”, originalmente idealizado, na década de 1890, para o convívio íntimo. A partir do
início do século XX, contudo, este mesmo modelo foi tornando-se mais sofisticado, como é o caso desta unidade
específica, e tornou-se uma tendência de moda também voltada para ocasiões mais formais do que um encontro
para o chá. Imagem: Victoria&Albert Collection. V&A:T.87-1991.

70
A configuração de corpo do início do século XX começa a delinear-se em torno de dois
importantes valores: o conforto e a saúde. É neste cenário que este vestido nomeado tea gown,
vestido para o chá, aparece: primeiramente, no final do século XIX, como uma vestimenta
doméstica, própria para encontros apenas com os mais íntimos e, em seguida, desenvolvendo-
se em versões cada vez mais elaboradas, apropriadas não apenas para a sociabilidade no lar,
mas para aparições em eventos mais formais.
Este traje, portanto, surge como uma saída confortável, que distancia-se do visual
hiperproduzido e construído do final do século XIX, mas é rapidamente assimilado como
tendência de moda. O vestido escolhido como emblema desta década (figura 17), presentifica
de forma exemplar a união destas duas fases deste traje: suas linhas, bem como o aspecto de
lingerie, conferido pelos babados e pela transparência, homologam-se ao valor do conforto,
ao passo que a nobreza dos tecidos, aliada ao esmero do bordado em pedrarias, bem
presentifica seu uso enquanto traje de festa, destinado a ser visto em sociedade, e não apenas
no aconchego dos amigos mais íntimos, familiares.
À primeira vista, o arranjo plástico retoma a frontalidade central do traje à francesa: a
profusão de bordados executados em materiais nobres (contas de vidro e fios metálicos),
aliados ao emolduramento deste painel central pela renda bordada e adornada com babados,
podem ser lidos como uma topohierarquização deste quadrante do traje. Igualmente, ele
retoma a capa com cauda, que delimita um afastamento dos sujeitos que aproximam-se pelas
costas.
Ao mesmo tempo, no entanto, este tea gown não apresenta os mesmos vazios por onde
os outros sujeitos são convidados a penetrar, a inter-agir: o decote é alto, e a mesma moldura
de babados, que confere visibilidade ao painel bordado, refecha o pescoço e a cabeça,
prolongando-se e saltando do desenho do vestido como um relevo armado, que proteje a parte
superior do colo. A bainha tampouco é suspensa, como o era no traje à francesa, interditando a
entrada de outro corpo a partir deste espaço.
No entanto, estes limites, a cauda e a gola, são transparentes, ao contrário das sólidas e
opacas fronteiras da capa do traje à francesa, ou da gola e das mangas do vestido de 1880.
Existe um limite, uma interdição, mas que não é formada por linhas duras e rígidas, e sim por
um cromatismo e materialidade que manifestam-se por meio da gradação. O mesmo ocorre
nas mangas: a matéria rendada aparece primeiramente num franzido, fechado e volumoso,

71
mas que abre-se, a partir dos cotovelos, em pontas que escorrem, criando um efeito de sentido
de continuidade com os braços.
Tal traje, portanto, coloca-se como uma espécie de termo neutro (GREIMAS &
COURTÉS, 2012), nem traje à francesa, nem vestido de 1880. Apesar de reiterar traços
plásticos de ambos, estes aparecem com sentidos reescritos, que não reenviam mais aos
regimes de visibilidade do querer ser visto ou querer não ser visto, muito marcados nos
vestidos de 1775 e 1880.
A partir da profusão de babados no alto, em torno do pescoço, que dilui-se em direção
ao baixo, é possível apreender que uma maior importância é conferida à parte superior:
diferente dos vestidos de 1775 e 1880, a visibilidade mais privilegiada é aquela conferida ao
alto do torso, ao peito, e não mais ao baixo. Seguindo a faixa bordada, que atravessa o corpo
do alto do colo ao chão, não há nenhum desenho que construa um vazio na região sexual. Pelo
contrário: as linhas da renda bordada, recortada em bicos, formam triângulos que levam o
olhar para o alto, apontando para as mangas e para os babados. Ao mesmo tempo, a aplicação
da faixa bordada, em lugar de conferir ao quadrante frontal central o efeito de vazio ou
cavidade, atribui a este ponto uma topologia convexa, positiva, que se ostenta, se sobressai em
relação ao tecido leve que o emoldura.
A falta manifestada de maneira evidente no traje à francesa e negada (e portanto
enunciada, ainda que negativamente) no traje de 1880, torna-se um elemento ausente: a
mulher que traja este vestido não está em busca de algo que preencha um vazio, mas sim quer
ser vista no alto, do busto para cima. O foco da topohierarquia é deslocado do baixo, outrora
construído pelas crinolinas, para o alto, enfatizado pela tendência de corpo construída pelos
corsets de frente reta, que conferem ao tronco um desenho que pende para a frente, abrindo o
peito e o abdome, que tornam-se mais pronunciados.
A interação proposta neste traje, portanto, distancia-se daquelas expressas pela sintaxe
da falta, para manifestar um feminino que já encontra-se conjunto aos seus objetos de valor.
Ou, ao menos, os objetos de valor manifestados nos outros trajes – a necessidade do encontro
com aquele que preencherá um vazio, por meio do casamento e da concepção – não
encontram-se presentes nesta configuração, revelando que a sociabilidade proposta por este
vestido não é da ordem da busca por um parceiro, mas de outras formas de interação social.
Este deslocamento da atenção para o alto também é emblemática do deslocamento da
atenção da procriação num contexto social maior. Se no século XVIII o único papel da mulher
72
na sociedade era aquele de procriar, no início do século XX as mulheres encontram-se em um
momento de maior emancipação, inclusive financeira. O acesso à educação é maior, e as
mulheres pouco a pouco ganham um espaço no mercado de trabalho, em profissões outrora
reservadas aos homens, como o direito e a medicina. Nas classes menos abastadas, as
mulheres igualmente trabalham em diversos setores, como nas fábricas, sobretudo na
indústria têxtil. Algumas, da mesma maneira, concentram-se na política, e abarcam a primeira
onda feminista do século XX, que foi responsável pela luta pela igualdade de direitos civis
(BEAUVOIR, 1976), como o direito ao voto.

II.3.1. Straight Front ou S-bend: O Corset Saudável

Figura 18. Corset, 1900. Confeccionado em seda, barbatanas de baleia e split busk de aço, com cintura medindo
62 centímetros, quando completamente fechado. Este corset apresenta uma modelagem típica do início do século
XX, conhecida como Straight Front ou S-bend, devido, respectivamente, à modelagem reta conferida ao abdome
(diferente do desenho arredondado atribuído ao ventre pelo spook busk) e à curva em forma de “S”
proporcionada à coluna, como consequência do achatamento da parte frontal do torso. A invenção deste modelo
é creditada à corsetière francesa Ignès Gaches-Sarraute, que possuía formação em medicina e, por este motivo,
foi concebido como uma alternativa “saudável” ao corset do século XIX: acreditava-se, então, que a frente reta
não comprimia os órgãos (e assim evitando seu suposto deslocamento no interior do ventre, como retratado pela
figura 3), ao mesmo tempo em que facilitava a respiração. Atualmente, no entanto, é considerado igualmente
prejudicial não aos órgãos, mas à postura e à coluna, cuja lordose da lombar torna-se excessivamente
pronunciada pelo uso deste modelo. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.67-1938.

73
A silhueta do início do século XX, de frente reta, peito projetado e sem destaque para os
quadris, demandou uma grande revolução na indústria de corsets. Os produtos da década de
1900 apareciam, desta maneira, como oposições violentas à silhueta em voga, mais
arredondada, em um confronto que estabelecia-se, quase sempre, como um embate entre
passado e futuro.
Como vimos na análise do vestido, este progresso rumo à “silhueta do futuro” é
marcado pelo deslocamento da topohierarquia do baixo – lugar da reprodução, da fertilidade –
para o alto – domínio até então pertencente à esfera masculina. Esta mudança na atribuição de
valor ao corpo eliminou do vestuário feminino a já decadente crinolina, transformando o
corset em protagonista da formação de uma silhueta adequada ao vestido em voga.
Dado este contexto, não é à toa que esperava-se muito mais do que uma performance
de modelagem deste corset do início de 1900: além de seu papel já estabelecido de formador
de uma silhueta, o corset deveria promover uma constrição que não prejudicasse a saúde, que
não danificasse os tecidos do corpo, que não constringisse os movimentos. Parece um
paradoxo que os corsets deste período sejam, justamente, os mais longos da história: ainda
que com promessas de saúde e bem estar, o corpo nunca esteve tão constrito, em peças que
englobavam do alto dos seios ao início das coxas.
Igualmente, a postura conferida ao corpo pelo S-bend é uma das mais antinaturais: o
tronco extremamente projetado para a frente, com o abdome totalmente reto, compensa sua
ação conferindo uma curvatura extrema à região lombar, produtora de hiperlordose que,
certamente, provocava dores na coluna e no quadril após o uso prolongado. Ao peito aberto e
projeto, contudo, é atribuída uma maior facilidade na respiração, e o abdome plano e esticado
não produz a compressão e até mesmo deslocamento dos órgãos, tal como era acusado seu
ancestral vitoriano, o corset do século XIX.
Contradições à parte, nos primeiros anos do século XX o modelo foi um grande
sucesso e moda absoluta. As publicidades destes corsets são exageradas, mas sua complexa
modelagem é capaz de cumprir a prometida (e almejada) silhueta, com o tronco projetado
para a frente e de peito aberto, com quadris estreitos garantidos pelos reforços nas laterais
inferiores.

74
Figura 19. Publicidade: Foster Hose Supporter, 1902. O anúncio do fabricante Foster presentifica a mencionada
contraposição entre o passado, nos dizeres “Without the Foster” (sem o Foster), e o futuruo, “With the
Foster” (com o Foster). A modificação da silhueta aparece de forma exagerada na ilustração, criando uma
correspondência entre a mulher da direita, que usa o Foster e encontra-se em relação de proximidade com ele,
sua gestualidade e a posição de seu corpo preenchendo os espaços vazios da silhueta da ilustração central. A
mulher da esquerda, por sua vez, dotada da silhueta do século XIX, não encontra-se competencializada por este
poderoso corset, e o desenho de seu corpo a coloca em posição de afastamento. A escolha dos lados, esquerda e
direita, relaciona-se ainda à direção de leitura, colocando a silhueta de frente reta e tronco pronunciado para a
frente em uma posição do futuro, olhando e estendendo a mão, indicando o Foster, ou acenando para a outra
mulher, como que convidando-a a aderir à nova moda. Imagem: Bound & Determined.

Para produzir o efeito de sentido de destaque da parte superior do torso, o desenho deste
corset nos revela a necessidade de um maior trabalho na parte inferior. Quando o quadril era
modelado com o auxílio da crinolina, a ação do corset limitava-se à mesma parte superior do
corpo, enquanto que os quadris permaneciam praticamente livres, apenas recobertos pelos
objetos de aumento. O vestido mais rente à silhueta, no entanto, demanda um maior controle
desta região, que passa a ser totalmente recoberta e reforçada.

75
O não destaque da região sexual, apreendido no vestido, passa a aparecer na roupa de
baixo como um controle ou “confinamento” da região sexual: para dar a ver uma silhueta que
não confere destaque aos quadris, as mulheres passam a constringí-los e modelá-los (a partir
do “S” da coluna). A precisão demandada por esta configuração de corpo aparece enunciada
nas linhas da modelagem: ao invés dos tradicionais recortes verticais ou levemente oblíquos,
este modelo de corset é cortado em complexos moldes, cujas costuras manifestam uma
divisão mais anatômica do corpo. Há um “V” modelando e delimitando o espaço do peito,
que corresponde-se com o “V” invertido na lateral, formador da modelagem do quadril. Ainda
um outro “V” pode ser notado, na região da cintura frontal, que marca a divisão do corpo que
ocorre neste ponto, a partir do qual o tronco projeta-se para a frente. Na lateral, costuras e
pares de barbatana reforçam a modelagem do peito, forçando-o a mover-se para a frente,
contribuindo para o realce pretendido. Abaixo, tiras de tecido e costuras reforçam a direção do
quadril para dentro e para baixo, evitando o desenho arredondado da silhueta anterior.
Também a topohierarquia da frente sobre as costas é retomada no desenho do corset,
cujas linhas prolongam-se mais na frente e direcionam-se para fora, ao passo que, nas costas,
sua área é diminuida e de desenho côncavo, convergente. Aliada à curvatura em “S” da coluna
e à expansão do peito, esta modelagem proporciona a impressão de que a frente do corpo é
maior, dilatada, e de que as costas são menores, contraídas. Na visão lateral, no entanto, é
possível perceber que as duas “metades” do corpo são iguais, e que a dilatação e a contração
são frutos de um efeito visual. A roupa de baixo, portanto, manifesta um sentido ainda
virtualizado, que será atualizado no traje completo, onde os babados, as pedrarias e as mangas
completarão os volumes necessários para que a frente e o alto permaneçam em maior
destaque e ocupem um espaço maior do que os quadris e as pernas.
Existe uma complexificação do fazer transformador do corset, que demanda uma
fidelidade ao conjunto matérico analisado no item I.1.: o S-bend é construído em seda,
reforçado com barbatanas de baleia, manifestando a recorrência do uso da matéria de origem
animal, semelhante à matéria do corpo. Ao mesmo tempo, ele incorpora a inovação
introduzida no século anterior, o uso da matéria metálica do split busk, que garante a abertura
e fechamento frontal do corset. Apesar da requerida força e resistência da matéria de origem
animal, exaltada nesta modelagem um tanto prolixa e anti-natural, é importante destacar o
fundamental papel da costura na confecção deste corset. Ao invés de atuar, como nos modelos
mais antigos, apenas na vertical e na oblíqua, e sempre em co-presença com a força estrutural
76
das barbatanas, no arranjo plástico desta modelagem muitas peças de molde são unidas à
distância das barbatanas – como é o caso dos moldes em “V”, na altura dos seios e quadris – o
que requer uma maior resistência da costura, que é obrigada a atuar, em alguns pontos, sem
seu adjuvante estrutural.
Ainda que realizado a partir das matérias tradicionais, este corset apresenta um leve
distanciamento do papel temático, indicado por acordos diferenciados entre os papéis de
estrutura e conexão. O domínio do corsetier sobre estas matérias é marcado, na medida em
que seu (re)arranjo em novas configurações demonstra uma ousadia daquele que trabalha
estes materiais. Esta audácia é reiterada na própria forma do corset, e igualmente na forma
que ele confere ao corpo, ambas desafiando tanto o desenho original do corpo, quanto o
desenho social e culturalmente estabelecido pelo uso do corset no século XVIII e XIX.

II.3.2. Underbust

Figura 20. Silk Ribbon Corset, 1906. Underbust típico do início do século XX, confeccionado apenas em fitas
de seda (aspecto do qual deriva o nome ribbon, que pode significar “fita”), barbatanas e split busk, com cintura
medindo aproximadamente 60 centímetros (24”), quando completamente fechado. Com a primeira aparição em

77
meados do século XIX, o underbust – cuja nomeação significa “abaixo do busto” – entra na cena dos corsets
primeiramente como uma alternativa mais confortável, para uso doméstico ou esportivo. A partir do início do
século XX, os underbusts ganham frente reta e tornam-se corsets próprios para qualquer uso. A principal
vantagem deste modelo é a liberdade do peito, dos seios e do quadril, permitindo não apenas uma maior
mobilidade, mas um maior conforto. Imagem: Corsets and Crinolines.

Na década de 1900, o padrão até então vigente, de uma lingerie específica para um vestido
específico, encontrava-se relativamente dissolvido. Isto ocorreu devido, principalmente, ao
desenvolvimento do mercado de corsets e ao volume de novos modelos criados em um ritmo
até então inédito. Atingir a mesma configuração de corpo, a silhueta mais reta e estreita
demandada pelos vestidos mais rentes ao corpo, poderia ser tarefa para vários objetos
diferentes, capazes de criar um mesmo efeito de sentido exterior, mas investidos de valores e
competências muito diversos entre si, no interior do traje.
Neste sentido, o uso do underbust aparece investido de valores que colocam-se em
oposição àqueles manifestados pelo uso do S-bend, que conferia ao corpo uma silhueta
marcada, de tronco pronunciado, por meio de uma precisa setorização do corpo que é quase
anatômica. Sua complexidade encontra seu termo oposto neste corset simples, de dimensões
reduzidas, confeccionado apenas com as matérias mais necessárias.
Em seu cromatismo, este corset nos remete aos stays do século XVIII, confeccionados
com a matéria em sua cor natural, crua. Em ambos os casos, o tom bege rosado reenvia à cor
da própria pele caucasiana. No matérico, porém, as delicadas e macias fitas de seda deste
underbust colocam-se como negação do rústico linho enrijecido com cola. Tratam-se de duas
peles contraditórias: uma, rígida, firme e rústica, que proporciona a constrição do corpo pela
força; outra, delicada, maleável e macia, que utiliza-se apenas da estrutura arranjada de forma
eficiente, para criar uma modelagem eficaz, mas de maneira menos rude.
Na forma, o underbust mantém a frente reta em voga, marcada principalmente pelo
uso do split busk plano e pelo prolongamento dos bicos, de logo abaixo dos seios ao baixo
ventre. Esta simples configuração é suficiente para criar a almejada curvatura da lombar,
aplainando o ventre e projetando – de maneira menos pronunciada que o S-bend,
evidentemente – o peito para a frente. Suas linhas mais curtas, no entanto, além de deixar o
peito totalmente livre – e permitindo que sejam finalmente apreendidos enquanto seios – não
comprime os quadris, os glúteos e permite uma mobilidade mais livre das pernas.

78
Da mesma maneira, a matéria extremamente estésica escolhida como tecido de base
deste corset, é a primeira que poderia ser aplicada diretamente sobre a pele, sem a necessidade
do uso da camisole, que tinha como principal função proteger o corpo do algodão ou linho
rústicos empregados como tecido de base. Este uso contudo permanece, sobretudo por razões
culturais, e as mulheres continuaram a utilizar roupas de baixo entre o torso e o corset, mesmo
quando estes tornaram-se mais macios. Se não o fizessem, no entanto, esta peça com certeza
criaria um efeito de continuidade com a própria pele, fundindo-se ao corpo – sentido
semelhante àquele almejado pelos modeladores contemporâneos, que serão abordados mais
adiante neste trabalho.
No lugar de separar o corpo para modelá-lo, como ocorre no corte do S-bend, os
underbusts de fitas buscam unir-se ao corpo, deixando-o livre onde é possível, e concentrando
sua ação apenas nos pontos necessários, visando construir uma silhueta com o mínimo esforço
e desconforto. Dos quatro corsets analisados no recorte apresentado neste capítulo, este é, sem
dúvida, o mais estésico: a matéria seda, de origem animal, proporciona o toque mais suave à
pele. Dotada de resistência, ela permite a modelagem com um uso minimizado de estruturas,
ao mesmo tempo em que confere uma transformação do corpo menos marcada, menos
impositiva, respeitando a vontade dos tecidos do corpo.
Apesar de formar uma configuração semelhante de corpo para o mesmo vestido, o
underbust coloca-se em relação de oposição ao S-bend, no que toca a interação com o corpo
que cada um destes corsets promove. Por mais libertadores que os valores manifestados pelo
vestido possam ser, a sujeição do corpo a um padrão, apreendida do uso do S-bend, produz
sentidos semelhantes à própria roupa de baixo do século XVIII. Trata-se de uma sujeição
diferente, para fins que não encontram-se conformados ao papel temático feminino, mas que
fortalecem o papel temático do próprio corset. No uso do underbust, contudo, há um sentido
mais próximo àquele do vestido: ainda que ocorra a modelagem da silhueta, que não deixa de
pressupor a conformação a um ideal esperado das mulheres, esta ocorre com uma maior
liberdade do corpo, que pode ser lida como uma emancipação de alguns aspectos de seu
desenho original – seios, quadris e glúteos nem aumentados, nem constritos, apenas presentes.

79
II.4. Amarração

Optamos por iniciar nossa análise deste recorte a partir do exame dos vestidos, por entender
que este é o ponto do traje no qual todas as performances são entrelaçadas. A performance do
corset e da crinolina (quando presente) na formação de um parecer do corpo constituem a
base da performance do vestido que, por sua vez, aparece como adjuvante da performance do
corpo, a partir da qual o sujeito feminino constrói a totalidade de seu parecer vestimentar.
Tal nos auxilia a postular a pertinência deste recorte enquanto formador de uma
categoria regida pelo papel temático do corset. Se os objetos formadores da silhueta aparecem
com um claro propósito de formar um corpo para um vestido específico, cuja performance,
por sua vez, depende da formação correta deste corpo a partir destas lingeries, então sua ação
encontra-se inscrita em uma isotopia que relaciona-se ao uso pressuposto: o do corset, aquele
de modelar o tronco pela constrição, o da crinolina, o de construir um prolongamento do
quadril ou dos glúteos.
Da mesma maneira, vimos ao longo das descrições que as formas e a topologia dos
três vestidos, enquanto articuladores do cromatismo e da matéria que os compõem,
manifestam, mais que um simples parecer do corpo, um conjunto de normas, espécies de
instruções da interação dos outros sujeitos, aqueles que compõem o entorno social do
indivíduo, tais como a ordem de apreensão visual do traje, o espaço pessoal delimitado pela
espacialidade da roupa, e a topohierarquia do corpo construída pelo vestido, por meio da
valorização, através da visualidade atribuída, de áreas específicas do traje.
No plano do conteúdo, estas valorizações exaltam valores de diferentes ordens que,
por vezes, ressaltam o caráter isotópico do comportamento feminino esperado e, por outras, os
negam. Iniciando nosso percurso pelo século XVIII, constatamos que não apenas o arranjo
manifestado no traje à francesa homologa-se aos valores de “maternidade”, “fertilidade” e
“procriação” como, em suas linhas, é precisada uma forma de aproximação que permite a
proximidade frontal, e até mesmo a penetração do outro no espaço pessoal. No vestido de
1880, pelo contrário, ainda que seja possível apreender um traço plástico que reenvia a um
“vazio” na frontalidade, notamos que o vestido não encoraja a aproximação por quaisquer
direções, constituindo, apesar do espaço pessoal reduzido que ele delimita, uma interação pelo
distanciamento. No quadrante mais hierarquizado, localizado nas costas, ao invés dos valores

80
de “vida” – procriação, concepção – encontramos os valores da “morte” – as lâminas, que
parecem afiadas e apontadas para o outro, interditando sua aproximação.
Delineia-se uma oposição de base entre estes dois vestidos, que marca uma passagem
da conformidade entre o papel temático do corset e o papel temático feminino, à
contrariedade entre estes dois papéis. Por um lado, o corset permanece em seu uso
pressuposto, tal e qual a crinolina, que é aquele de construir um corpo para um vestido
específico. A performance do vestido, no entanto, deixa de manifestar os valores da busca por
um parceiro para a procriação para enunciar, ao contrário, um querer não ser visto enquanto
parceira potencial, enquanto procriadora. Existe, da mesma maneira, um significativo
fechamento do corpo, em comparação ao vestido de 1775, que é contraditório ao tamanho do
espaço delimitado por um corpo e outro. No traje à francesa, há um espaço pessoal imenso,
delimitado horizontalmente, nas laterais e nas costas, que opõe-se ao corpo que coloca-se
como aberto e vazio, clamando pelo preenchimento destes espaços pelo outro. No traje de
1880, o reduzido espaço pessoal delimitado, que permitiria uma aproximação mais efetiva,
revela um corpo encerrado em si mesmo, que permite ver apenas a cabeça, os pés e as mãos, e
que em lugar das estratégicas aberturas, traz em si instrumentos de defesa, de proteção.
Estes valores, por sua vez, são reiterados na análise do conjunto da roupa de baixo que
compõe a silhueta demandada pelo desenho do vestido. No século XVIII, a combinação de
elementos de origem vegetal e animal na confecção dos stays e da crinolina respeitam o
arranjo que discutimos no capítulo I, que é muito próximo àquele do corpo, com a estrutura
rígida abrigada no interior dos tecidos pele e músculos, presentificados pela matéria tecida do
corset. O conjunto, quando vestido, assume uma configuração que manifesta-se enquanto um
outro corpo sobre o corpo, que o constringe e aumenta nos pontos necessários.
No conjunto da roupa de baixo de 1880, no entanto, a própria anatomia do corset e da
crinolina aparece transformada, reescrita. A crinolina, com sua estrutura exposta, no lugar de
conferir rigidez a uma pele reforçando-a, perfura-a, atravessa-a. A utilização do split busk
igualmente expõe, no corset, a estrutura metálica que deveria estar confinada em seu interior,
além de cingí-lo também em sua frontalidade. Ao invés de ser aberto e fechado pelos ligames
da amarração, é a própria estrutura que passa a abrir-se e fechar-se, para marcar o momento
de início e término de sua ação sobre o corpo – o vestir e despir.
No terceiro vestido, há uma união de duas tendências de moda do mesmo período, que
é formadora de um termo neutro, composto pela combinação dos dois termos subcontrários,
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presentificados pelos dois corsets analisados. A separação entre estas duas tendências – o tea
gown idealizado para o conforto doméstico, e aquele destinado às aparições públicas – é dada
pela opção da roupa de baixo que construirá o corpo. No corset S-bend, há fortes valores que
reenviam ao contrato de manipulação, mais pertinente ao segundo uso do vestido, ao passo
que no underbust a primeira característica idealizada para o tea gown é reforçada.
Em ambos os casos, o vestido coloca-se como contraditório da oposição de base, uma
vez que combina a delimitação de um espaço pessoal ao deslocamento sua topohierarquia
para o alto, chamando a atenção do enunciatário, aquele que apreende o traje, para o
quadrante frontal superior. Ao mesmo tempo, não há nenhum resquício da valorização da
região do útero e do sexo como ponto de visibilidade privilegiada, mas a profusão de adornos
no quadrante centro-frontal aparece como prolongamento da região de visibilidade mais
marcada, que é aquela do busto.
Tal constatação, aliada ao desaparecimento da crinolina e à possibilidade de que o
mesmo corpo seja construído por lingeries diferentes, permite reconstruir o sentido de um
enfraquecimento do papel temático do corset, e da negação daquele da crinolina. O mesmo
ocorre com a mulher.
Em 1880, ainda que de forma contraditória, o papel temático feminino encontra-se
presente no vestido. A ausência de hierarquização do baixo ventre, no entanto, enuncia a
oposição a este papel. Neste vestido, uma emancipação feminina mais marcada aparece, o que
elimina do traje todos os traços que possam remeter aos valores de procriação. Se em 1880 a
mulher precisa armar-se contra este papel, manifestando a contrariedade a ele, no vestido de
1900 este algorítimo de comportamento feminino encontra-se já ausente, para permitir a
construção de um novo papel que relaciona-se mais àquele dos homens. Em lugar de
literalmente armar-se, a mulher simplesmente descontrói seu quadril e suas ancas, para
construir o peito e os ombros, por meio das mangas franzidas, da gola, e da ampla e projetada
frente dos corsets S-bend.
O compromisso do feminino com o papel temático do vestido, por sua vez, separa as
duas tendências nele unidas. O uso do S-bend, que confere ao corpo não apenas uma
transformação mais radical de seu desenho, é mais aproximado do papel temático do corset, e
consequentemente do vestido, da moda, do que o uso do underbust, reconhecido até a
atualidade como uma forma menos constritiva do corset. Neste segundo caso, a autonomia do
formato original do corpo é muito maior: do torso completamente modelado, marca do S-
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bend, o corpo que traja um underbust passa a ser constrito apenas na cintura, deixando livres
os quadris e os seios.

Figura 21. Quadrado dos usos tradicionais do corset.

Em um mesmo contexto da moda, em que os corsets e outras lingeries formadoras do corpo


aparecem investidas de papéis temáticos, é possível apreender que o feminino, ao contrário,
desenvolve-se em formas de interação outras. Os trajes – que a partir do século XIX passam a
ser desenhados cada vez mais por mulheres, diluindo a hegemonia masculina na profissão de
alfaiate e corsetier – deixam de manifestar aquilo o que os homens, sexo oposto e parceiros
em potencial, desejam ver, para manifestar valores da ordem da própria vontade de
emancipação em seu contexto social. Neste sentido, a sujeição do corpo manifestada no termo
subcontrário, pelo uso do corset S-bend, é uma sujeição que não relaciona-se ao querer fazer-
se ver como esposa em potencial, mas com a adesão a um parecer do corpo que é dado por
outros destinadores – os profissionais do traje, as tendências apreendidas nas revistas de
moda. Nestas passagens, o próprio conceito de moda é fortalecido, uma vez que deixa de
expressar uma única faceta do sujeito, aquela relacionada à procriação, para permitir uma
expressão mais livre de si e dos próprios anseios.
Por outro lado, o distanciamento do papel temático é produtor de outras interações
que, segundo Landowski (2005), abrigam em si um risco aumentado da relação entre os

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sujeitos. Em outras palavras, deixar de expressar seus atributos enquanto parceira potencial
coloca em risco a própria possibilidade do enquadrar-se neste papel feminino. Ao expressar
um maior sentido de emancipação por meio da roupa, a mulher constrói para si um parecer
que cria relações de não complementaridade entre sua manifestação plástica e o
comportamento dela esperado em seu entorno social. Tal contradição confere um risco de não
pertencimento ao próprio contexto, mas que, por outro lado, é o cerne da própria revolução:
apenas pela oposição e negação das estruturas estabelecidas é que uma mudança substancial
pode ser produzida.
Uma vez que o traje contém em si o código de conduta e interação social, não apenas é
de se esperar que tal transformação manifeste-se na roupa, como é possível apreender que, a
partir de meados do século XIX – data marcada por Valerie Steele como o início de um
movimento de emancipação financeira das mulheres (STEELE, 2001) – as transformações da
moda sejam cada vez mais velozes e progressivamente radicais. A eliminação da crinolina
aparece, assim, como um primeiro gatilho da transformação do vestuário feminino que é, por
sua vez, articulador de fortes transformações do papel da mulher na sociedade.

84
III. O corset como destinador do corpo

Como explicitado no capítulo I, optamos por manter neste trabalho o vocábulo “corset” para
referirmo-nos também a outros objetos, que não são mais chamados popularmente de corsets,
apesar de compartilharem o mesmo uso pressuposto e uma anatomia semelhante. A partir dos
anos 1920, os tecidos elásticos descobertos e patenteados por volta de 1820 (Cf. LYNN, 2010)
passaram a ser empregados na construção de lingeries chamadas de girdle (cinta), mas que
ainda possuíam estruturas rígidas em seus arranjos, promovendo uma ação semelhante àquela
do corset tradicional. Apesar de fabricadas exaustivamente nos anos 1930-50, este tipo de
lingerie não atingiu o máximo de sua eficiência antes dos anos 1990, quando houve um
grande investimento do mercado nesta direção.
Em que diferem as duas nomeações, “corset” e “girdle”? No dicionário Oxford,
encontramos a seguinte definição: “[...] a garment worn by women to improve the figure. A
girdle fits closely round the body under other clothes, and extends from the waist to the
thigh.”9 A definição não difere muito daquela do corset, analisada no início deste trabalho: a
cinta deve produzir uma constrição em torno do corpo que proporciona a transformação da
silhueta em uma versão “aperfeiçoada”, “melhorada”, marcada pelo uso do verbo improve. O
que a definição deixa de lado, no entanto, são as particularidades matéricas – o uso de
barbatanas de baleia, lâminas metálicas ou espartilhos – confirmadas pela definição de “cinta”
do dicionário Houaiss da língua portuguesa: “[...] faixa para apertar a cintura [...] roupa
íntima, ger. de tecido elástico, que cinge estreitamente quadris, ventre e cintura, para
adelgaçar ou modelar as formas [...]”. A menção dos tecidos elásticos, nesta definição,
confirma que a passagem de um vocábulo a outro enuncia os avanços tecnológicos matéricos
em torno desta peça.
A cinta, no entanto, não deixa de ser um corset: ela coloca-se igualmente como um
sujeito dotado de um fazer que transforma o corpo pela constrição, com o intuito de
conformá-lo a um ideal de corpo almejado. Esta constatação é mais evidente no que toca a
nomeação mais contemporânea da cinta, shaper, que é o nome dado à ferramenta que modela
e afia o metal ou a madeira, e é adotada na língua portuguesa também como modelador. Nesta
nomeação, a exaltação da peça de roupa enquanto sujeito competente atinge seu máximo: o

9 “[...] uma peça de roupa vestida pelas mulheres para melhorar a figura. Uma cinta ajusta-se estreitamente em
torno do corpo por baixo das roupas, e estende-se da cintura à coxa.” (trad. nossa).
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corset torna-se uma ferramenta capaz de esculpir o corpo, modelando-o no formato almejado.
O caráter objetal, “ferramenta”, entra em contradição com a ação esperada desta peça de
roupa, que é aquela do “escultor”, que não possui apenas um fazer mecânico, mas possui
gênio, é um artista.
Esta nomeação manifesta-se, no século XXI, em diferentes configurações, todas elas
elásticas, com ou sem estruturas rígidas: bermudas, bodies, macaquinhos, calças, vestidos,
saias. Ao contrário do corset tradicional, cuja performance é direcionada à transformação
principalmente da parte superior do torso, os atos de modelagem dos shapers estendem-se às
demais regiões do corpo: quadris, culotes, glúteos e até mesmo às pernas. O papel temático de
formar o corpo para o vestido não pode mais ser identificado, e dá lugar a um formar o corpo
de acordo com a vontade do sujeito, ou com a sua necessidade de constrição.
Por um lado, quando investido de um papel temático, o corset é formador de corpos
iguais, algorítimos de silhuetas formadoras de uma tendência de moda cristalizada. Estes
corsets elásticos, por outro lado, são modalizados de acordo com o sujeito corpo que buscam
manipular: para cada dever ser do corpo, existe um saber fazer do modelador.
Se a interação por programação era fundada em uma regularidade simbólica do papel
temático, na qual os comportamentos de cada sujeito – seja o corset, seja a mulher – mantêm-
se dentro do previsível, na interação por manipulação um importante aspecto é introduzido na
interação: a motivação (LANDOWSKI, 2005). Fundado em um fazer-querer, este regime
realça a inevitabilidade da mudança do nome da peça: a palavra “corset” (ou stays, ou
espartilho) vem investida de diversos valores associados ao papel temático, que vão da
constrição excessiva (e até mesmo violenta), da transformação radical aos mitos de “prisão
feminina” e “objeto de tortura”. A mudança do nome para girdle ou shaper é capaz de
manifestar a mesma ação de modelagem do corpo, no entanto livre dos valores disfóricos
contidos na mitologia da palavra “corset”. Como vimos, porém, o caráter quase objetal do
corpo – que torna-se material de trabalho de um escultor exterior a ele – é muito melhor
presentificado pela palavra “shaper”, modelador, do que pela palavra “corset”. Este estatuto,
no entanto, é almejado, e faz parte do contrato fiduciário (GREIMAS, 1983) firmado entre
corset e corpo: o sujeito corpo deseja a transformação que apenas o corset é capaz de
promover, e em nome deste objeto de valor – a silhueta ideal – o corpo aceita seu papel de
sujeito de estado, aquele que sofrerá o ato, a transformação imposta pelo outro sujeito, o
corset.
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No contexto em que se deu um segundo “abandono do corset”, que foi o abandono do
soutien e da cinta nos anos 1960, é natural que diversas mulheres resistam à adesão ao corset
tradicional, a não ser em situações de fetiche, ou da fantasia, da brincadeira erótica. A adesão
ao modelador, no entanto, é um fenômeno admitido até mesmo por celebridades no red
carpet, eternizando a pergunta “Are you wearing Spanx10 ?” nas entrevistas para tablóides e
programas de televisão especializados em fofocas.
O sucesso mercadológico destas peças pode ser atribuído, em grande parte, a esta
errônea separação entre “corset” e “modelador”, fruto de um contrato veridictório
(GREIMAS, 1983) por parte dos fabricantes, acerca da inovação destas peças. Apesar de
servirem ao mesmo propósito, ou ao mesmo uso pressuposto, estes novos corsets elásticos
apresentam-se como outra coisa. Sua ação sobre o corpo, no entanto, é a mesma, e a promessa
de um maior conforto na ação de modelagem é, por vezes, duvidosa: a substituição da matéria
natural vegetal – o linho, a seda, ou o algodão – pela matéria artificial, sintética – o elastano, o
poliéster – produz um maior aquecimento (mas que é vendido como facilitador da queima de
gorduras indesejáveis!), provocando sudorese e a diminuição da respiração da pele, que pode
provocar alteração da cor e da textura da mesma após o uso prolongado. A maleabilidade do
elástico, da mesma maneira, perde em eficiência, quando comparada à firmeza dos tecidos
planos presentes no corset tradicional. No que os modeladores ganham, porém, é na
possibilidade de dissimulação.
O uso do corset é impossível de ser disfarçado sob o traje: não apenas a forma
conferida ao corpo é única, inconfundível, como sua própria materialidade se faz notar, a não
ser quando sobreposta por diversas camadas de roupa – o que ocultaria, no entanto,
igualmente sua ação. Já os tecnológicos modeladores atuais não apenas são capazes de
fazerem-se invisíveis, como são idealizados com este propósito. Seja na cor, seja na ausência
de costuras e de estruturas rígidas, os shapers quando aplicados sobre o corpo tornam-se, de
fato, uma segunda pele que, no exterior, confunde-se com a pele natural do corpo. Sob o
vestido, estes competentes escultores ocultam-se, dando a ver um corpo “naturalmente
modelado”, sem o auxílio de nenhum adjuvante. Como no conto da Cinderella, contudo, à
meia noite o “feitiço” é quebrado, lembrando-nos que o acordo da silhueta “naturalmente
perfeita” só é válido durante a ação do poderoso destinador por trás dela.

10 “Você está vestindo Spanx?”, em referência ao maior fabricante norte-americano de lingeries modeladoras.
87
Um grande salto neste tipo de lingerie é, portanto, a presença da elasticidade aliada à
ausência da estrutura rígida, permitindo uma modelagem mais discreta, invisível sob a roupa.
Tal característica, no entanto, não elimina a “memória” do corset tradicional: ainda que a
rigidez das barbatanas seja, por vezes, um elemento ausente, os shapers normalmente
possuem recortes e costuras reforçadas semelhantes àqueles dos moldes tradicionais dos
corsets, capazes de promover um direcionamento dos tecidos. Estas características
desenvolvem de forma mais elaborada o caráter muscular do corset, atribuindo uma
importância ao desenho do corpo em um padrão mais atlético, mais anatômico do que aquele
do corset tradicional. Há uma complexificação da silhueta formada, que acompanha a
complexificação da própria relação entre o corpo e o corset. Para que esta ação mais
aprimorada sobre a silhueta possa ocorrer, é necessário que também os acordos e contratos
selados entre corpo e corset manifestem-se em camadas mais profundas do sentido.
Esta forma de ação, portanto, coloca em jogo não mais a segurança dos papéis
temáticos já estabelecidos, mas um imbricado jogo de quereres de diversos sujeitos. Estas
modalizações, por sua vez, abrem caminho para o desenrolar dos diferentes mecanismos de
manipulação – sobretudo a sedução e a tentação (LANDOWSKI, 2005) – que levam ao
estabelecimento do contrato de manipulação. A necessidade de que um contrato seja firmado,
para que as performances de ambos os sujeitos possam ocorrer, permite a apreensão do risco
envolvido nesta forma de interação: para que a performance do corset sobre o corpo possa ser
realizada, é necessária a adesão do sujeito mulher a esta forma da constrição. Ao mesmo
tempo, esta adesão depende da fidúcia na competência deste corset, por parte da mulher,
como transformador da silhueta rechaçada naquela almejada, ideal. Firmado este contrato, o
corset permanece enquanto actante “pele” que recobre a pele nua, tal e qual o corset
tradicional, recompetencializando-a com um novo eidos.
Mais do que um agir sobre o corpo, o regime de manipulação abriga uma inter-ação de
fato: para que ambos os sujeitos sigam seus programas narrativos, é necessária a ação mútua
de um sobre o outro. Esta bilateralidade da interação não ocorre apenas no contrato de compra
de um modelador (e não outro), mas igualmente no vestir a peça: o corset só é capaz de
transformar o corpo enquanto vestido sobre ele. A qualidade e a duração de sua performance
dependem, portanto, do segundo sujeito da interação, a mulher, que pode decidir não mais
usar o modelador, ou pode, ainda, vesti-lo de maneira incorreta. Estas decisões dependem,
portanto, da capacidade do corset de persuadir a usuária quanto à necessidade de seu uso. A
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mediação desta complexa interação ocorre por meio de um objeto de valor (GREIMAS, 1983;
GREIMAS & COURTÉS, 2012), que é a silhueta ideal. Desta maneira, é o estado de privação
do valor almejado, ou a disjunção da silhueta ideal, que motiva constantemente o sujeito
mulher à adesão ao corset, que coloca-se na interação como portador deste valor almejado. É
apenas por meio do corset que o estado de conjunção com esta silhueta pode ocorrer,
realizando, no corpo, a performance “transformação da silhueta” e permitindo a conjunção do
sujeito mulher ao seu objeto de valor.

89
III.1. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit

Figura 22. La Perla Shape Couture (Underwire Bodysuit), 2011. Modelador confeccionado em Lycra® e tule
elástico, com bojo sem costura e aros metálicos, comercializado em diversos tamanhos, do XS 11 ao XL. Uma das
muitas peças da linha de modeladores da marca, conhecida por suas lingeries de luxo, que inclui também
corselets, saias, bermudas e calcinhas modeladoras. Em seu website, o fabricante promete um “efeito modelador
fascinante”, realçado pela aplicação da transparência e do refinado trabalho de costura. A peça conta ainda com
abertura higiênica, que abre e fecha com colchetes, permitindo o uso diretamente sobre a pele, sem a necessidade
do uso de outras lingeries. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T58-2012.

11 Tamanho estabelecido no sistema norte americano, “extra small”, equivalente ao “PP” nacinal, cuja medida
da cintura natural é 60 centímetros.
90
Apesar da distância cronológica e histórica entre este “macaquinho”, como a peça é
popularmente conhecida no Brasil, e os conjuntos de roupa de baixo do século XVIII e XIX,
há uma forte aproximação entre elas quando consideramos o fazer deste shaper, em relação à
performance da dupla stays-hoopskirt (figura 7). Em ambos os casos, a área recoberta pela
lingerie modeladora é a mesma – do alto dos seios ao início das coxas – e, apesar de
construído em uma peça única, este bodysuit reenvia ao uso de três: o soutien, a cinta e a
calcinha/bermuda.
O domínio destas três peças de roupa, comuns à gaveta de roupas íntimas femininas
desde os anos 1940, é bem marcado pelas linhas e cortes da modelagem, e pela alternância
dos dois materiais, a Lycra® e o tule: no alto, o soutien aparece inclusive destacado, como se
fosse uma peça separada e sobreposta; no centro, com predominância da matéria transparente,
o “X” marca o local da cinta; e finalmente, embaixo, a calcinha/bermuda recobre a lateral do
quadril e o púbis, lembrando a linha de um biquíni tipo “asa delta”, misturado ao short
modelador. A união destas três peças, como ocorria no conjunto corset e crinolina do século
XVIII, é marcada por linhas descontínuas que se unem, encaixando-se: sobretudo embaixo,
este detalhe é percebido pela costura em zigue zague, e pelo próprio zigue-zague formado
pelo recorte da “calcinha”, formando um encaixe perfeito entre a Lycra® e o tule. No alto, no
entanto, a quebra das linhas mais arredondadas é menos pronunciada e não produz uma união
perfeita, marcada pelo um espaço vazio, em formato oval, entre a cinta e o soutien.
O efeito de vazio, quando apreendido em relação ao efeito de sobreposição do soutien,
confere destaque à região. O volume dos seios é valorizado por esta lingerie, primeiramente
por meio da modelagem, mas também por destacá-los do restante do conjunto, devido ao
desnível criado entre esta parte e o restante do modelador.
Este destaque do soutien, bem como o vazio que sinaliza a transição não perfeita entre
duas partes do modelador, é produtor de uma separação de dois propósitos da mesma peça: no
alto, encontra-se o domínio da modelagem por aumento, enquanto que do soutien para baixo,
concentra-se a região da modelagem por constrição. Há uma inversão do destaque conferido
pelo aumento, em comparação ao recorte do corpus de corsets analisados no capítulo anterior:
enquanto que no século XVIII e XIX o aumento do corpo concentrava-se no plano baixo, na
região dos quadris e glúteos, esta cinta manifesta a valorização dos seios pelo aumento,
opostos aos quadris constritos.

91
O centro mais privilegiado da visibilidade, no entanto, continua sendo a região da
cintura, para onde as linhas do decote, do “X” central e da calcinha, carregam nosso olhar. O
“X”, confeccionado na Lycra® mais firme, é rodeado pelo entrecruzamento de linhas que
originam-se em diversos pontos do traje, e ao mesmo tempo aparece cercado pelo chamativo
efeito de transparência. Sua porção superior, com linhas que iniciam-se no soutien, forma um
bico em direção ao umbigo, que aparece como reiteração da própria linha do decote,
conferindo ao conjunto superior um formato de “V”. Na porção inferior o mesmo pode ser
observado, mas a correspondência é com o triângulo que recobre o púbis. Ainda uma terceira
linha contribui para o destaque desta região, a costura vertical central que possui um efeito
vazado, mostrando um pouco de pele, como é possível apreender mais claramente na peça
confeccionada na cor preta.

Figura 23. La Perla Shape Couture na cor preta (uma das quatro opções de cores do modelo, que incluem dois
tons de pele rosados e um de pele negra), detalhe do efeito vazado da costura central, costuras em zigue zague
aparentes e abertura higiênica. Imagem: www.laperla.com

92
O lugar mais hierarquizado deste corset, portanto, é a área em torno do “X” central, na qual
concentra-se a maior profusão de detalhes, acabamentos e materiais, que arranjam-se em
torno do “X”, conferindo visibilidade a ele. Neste lugar, misturam-se as duas matérias, a
Lycra® que é mais rígida, e o tule que é macio e maleável. Homologando esta oposição
matérica, entre rigidez e maciez, a uma possível oposição entre constrição e liberdade, o
arranjo apreendido neste ponto do traje nos revela que o local que demanda uma modelagem
constritiva não é a cintura “lateral”, como ocorria no século XVIII e início do XIX, mas sua
região frontal, ou o abdome. As três linhas constritivas e reforçadas que cruzam-se no centro
do torso – a linha vertical e as duas linhas que foram o “X” – conferem ao corpo uma divisão
anatômica, que busca a criação de um efeito de 6 pack ou tanquinho, gírias comuns que
referem-se ao abdome magro e de músculos tonificados, aparentes.

Figura 24. Shape Couture Underwire Bodysuit em um dos tons para a pele caucasiana, visão da frente e das
costas, como anunciado na loja virtual da marca até 2013. Quando utilizado no tom de pele correto, que pode ser
escolhido entre os muitos disponibilizados pela marca, o modelador adquire um efeito de quase invisibilidade
sob a roupa, sobretudo nos locais construídos na matéria transparente. Imagem: www.laperla.com

A busca por tal efeito relaciona-se diretamente à ausência de um reforço lateral, ou qualquer
outra característica da modelagem que vise a criação de uma redução e arredondamento da
cintura, e à constrição do quadril e do culote, que encontram-se igualmente englobados pela
matéria mais constritiva. O desenho almejado por este corpo é aquele de uma silhueta reta,
93
magra e musculosa, combinada ao aumento apenas dos seios, única característica
propriamente feminina exaltada por este corset.
Nas costas, uma outra valorização do corpo nos é revelada: a valorização do glúteo.
Em lugar do “X”, formador da almejada “barriga definida”, há apenas um “V” que divide o
corpo em dois, prolongando-se até a lateral das costas – e comprimindo a gordura que
costuma acumular-se nesta região e que geralmente é visível em vestidos mais justos – e
pressionando a região da lombar, conferindo visibilidade ao glúteo, que é totalmente
englobado pela matéria mais constritiva.
Um aspecto interessante da modelagem das costas é a costura reforçada logo abaixo
do glúteo, que possui a função de empurrá-lo para cima, conferindo às costas um destaque
deste ponto, igualmente pelo aumento. O “V”, desenhado na tira reforçada, faz a ligação das
duas regiões destacadas pelo aumento, o seio e o glúteo, ambos englobados pela matéria mais
firme. O que está acima desta linha (nas costas) e abaixo dela (na frente), deve ser constrito e
diminuído, justamente para que estas duas regiões aumentadas pareçam maiores.
As linhas da modelagem deste corset, portanto, dividem o corpo e mapeiam as regiões
constritas e livres, aumentadas e diminuídas: os seios e os glúteos, englobados pela matéria
firme, devem ser aumentados; a barriga, as coxas e as laterais das costas, englobadas pela
mesma matéria, devem ser constritas, e o centro das costas, a cintura, a região acima e abaixo
do umbigo, devem ser apenas contidas pela matéria mais maleável, o tule. Nesta
configuração, chama a atenção que o púbis e o sexo, regiões que não demandam modelagem
alguma, encontrem-se englobados pela matéria mais firme e constritiva.
À excessão do aumento dos seios – e a própria maneira como o soutien desconecta-se
do conjunto da modelagem, sobrepondo-se a ele – as características enaltecidas por este
modelador são propriamente masculinas: a silhueta reta na lateral, sem quadris, mas com
músculos abdominais e glúteos pronunciados. Constrói-se no corpo modelado por este corset
uma isotopia de negação do feminino, que ocorre pela construção muscular que não é
própriamente feminina, e pela constrição de características que o são, como as linhas
arredondadas que formam a cintura, o baixo ventre e os quadris.
Recobrir o púbis e o sexo com a mesma matéria que nega todas as formas fermininas
é, portanto, uma forma mais literal de enunciar esta negação do feminino. Sobre o sexo é
aplicado um “lacre”, que adquire um sentido de bloqueio, de interdição. As condições para o
cumprimento de um papel temático feminino, facilitados e enaltecidos pelo traje à francesa
94
(figura 5), encontram-se ausentes. O ventre fecundo é transformado em abdome tonificado, e
os quadris, outro símbolo da fertilidade, são negados e reduzidos. Finalmente, o local de
manifestação da possibilidade de concepção e nascimento é refechado por uma dupla camada
do tecido firme, o mesmo que “confina” todas as outras características do corpo relacionadas
a esta função feminina.
A transferência dos centros de atenção, do quadril para o abdome tonificado e para os
seios aumentados, marca um deslocamento do papel feminino, que passa a negar a função
única, ou ao menos principal, da procriação. O corpo feminino do século XXI é
competencializado com um outro parecer, dotado de carcaterísticas mais masculinas, como a
força muscular, e que deixa de manifestar a necessidade da conjunção com o outro, único
meio de realizar o papel esperado das mulheres pela e na sociedade. A abertura destes limites
é controlada não mais pela necessidade social – constituir uma família e procriar – ou do
outro, o homem – produzir um herdeiro – mas pelas próprias necessidades, que regem o abrir
e fechar dos colchetes localizados entre as pernas.
Quando apreendido em relação ao corpo formado pelo traje à francesa, é possível
afirmar que este corpo não quer ser visto a partir do destaque de suas características sexuais –
os quadris e a visibilidade do baixo ventre. Ao contrário, no exterior do traje, o ponto mais
destacado, provavelmente, será o seio, localizado no alto, levando o olhar do enunciatário
para esta região. Ou ainda, este modelador produzirá um sentido de força muscular,
característica propriamente masculina – sobretudo quando considerado o abismo entre este
corpo, formado pelo Shape Couture, e o corpo feminino, redondo e abundante, dos desenhos
de van Spiegel (figura 2).
A mulher que opta por este tipo de modelador, portanto, aceita aderir a uma
transformação completa de sua silhueta, que altera o sentido original de seu corpo. Ao abrir
mão de suas características femininas, ela emancipa-se das obrigações sociais da maternidade
para perseguir outro papel, que atualmente perpassa sobretudo as questões da carreira, para as
quais a opção por ter filhos é geralmente colocada como um impedimento. O que este corset
manifesta, portanto, é a redução e interdição dos lugares do corpo relacionados a este papel
temático, que tem por consequência o redesenho do corpo feminino que afasta-o de seu
desenho e sentido original.
Por outro lado, não é mais possível, na década de 2010, discutir tal opção pela carreira
e pela não-maternidade como uma ruptura, um “ato revolucionário”. Muito pelo contrário,
95
uma vez que a figura da “mulher intependente”, “poderosa”, financeira e profissionalmente
emancipada, que equipara-se em tudo aos homens, aparece quase que como um novo papel
temático feminino, no sentido de uma isotopia de comportamentos atualmente esperada da
mulher: que ela priorize outros aspectos “emancipatórios” de sua vida, em detrimento do
“sonho” da maternidade, da formação de uma família.

III.2. Agent Provocateur Corset

Figura 25. Agent Provocateur Corset, final de 1990, confeccionado a partir de base e forro de algodão, tecido
exterior em cetim e viscose, decorado com rendas e laços, barbatanas espirais, split busk e ilhoses metálicos,
ligas removíveis, com cintura medindo 65 cm (quando completamente fechado nas costas). As medidas da
cintura desta peça confirmam que sua função não é aquela de constringir o torso, como nos sugere seu desenho
lateral, mais reto do que os corsets tradicionais expostos até então (figuras 1, 9, 14, 18, 19 e 20). Trata-se, antes,
de uma réplica de valor decorativo. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.12-2002

96
Figura 26. Desenho técnico do Agent Provocateur Corset, no qual é possível apreender detalhes que não foram
disponibilizados nas fotografias do acervo do museu, como a modelagem e a amarração das costas. Imagem:
Underwear Fashion in Detail.

Para o olhar de um não especialista, este corset poderia facilmente ter saído do quarto de
vestir de uma distinta dama do século XIX. Trata-se, de fato, de um corset construído com os
materiais corretos, e em cromatismo que faz referência direta à moda de cores fortes, com
detalhes contrastantes, das lingeries da época. No entanto, é possível apreender
imediatamente que, apesar da aparende rigidez e estrutura, falta algo a este modelo: a cintura
pronunciada.
O objetivo do uso deste corset, portanto, não pode ser comparado àquele das peças
analisadas no capítulo anterior, uma vez que, apesar de conter todos os elementos matéricos
necessários para uma formação constritiva da silhueta, o arranjo destas matérias não segue a
modelagem, ou a forma, capaz de realizar um fazer transformador do corpo. Existe, portanto,
apesar de uma complementaridade entre o formante matérico, topológico, e mesmo
cromático, uma importante contradição entre o formante eidético dos dois corsets.
97
Figura 27. À esqueda, modelo de 1890 (V&A:T.738-1974) confeccionado nas mesmas cores e materiais
semelhantes, mas com a medida da cintura 15 centímetros menor (50 cm, quando completamente fechado). O
desenho arredondado da cintura e do baixo ventre, típicos do final do século XIX, igualmente contrastam com a
frente reta e a cintura não marcada do modelo de 1990. Fotografias: Victoria & Albert Collection.

A tendência da confecção e comercialização de “corsets” não constritivos, mas que em tudo


parecem-se com as peças do século XIX, foi extremamente difundida no final dos anos 1990 e
início dos 2000, quando o corset foi exaustivamente enaltecido na moda, principalmente por
meio de figurinos de filmes de grande circulação. Este caminho da moda, por sua vez,
dividiu-se em dois. Um é aquele do gótico, que manifesta-se em filmes futuristas/
apocalípticos, como Matrix (1999) e Underworld (2003), nos quais as heroínas Trinity (Carrie
Anne Moss) e Selene (Kate Beckinsale) aparecem vestindo corsets de couro ou vinil em cenas
de ação. O outro caminho aparece nos filmes de moda de época ou cabaret, como Titanic
(1997) e Moulin Rouge! (2001) – por sua vez seguido pelo tardio Burlesque (2010) – que
arriscaram reconstruções de períodos históricos, como o final do século XIX e o início do
XX, trazendo elaborados corsets para o guarda-roupas das personagens vividas por Kate
Winslet e Nicole Kidman.

98
De Mouling Rouge!, nos interessa mais que o filme em si, o video clipe da trilha do
filme, “Lady Marmalade”, estrelado pelas cinco cantoras que participaram da versão
atualizada do clássico do grupo Labelle, dos anos 1970. O clipe no qual Cristina Aguilera,
Pink, Lil’ Kim e Mya aparecem como as atrações de um contemporâneo Moulin Rouge, conta
com diversos figurinos (ao menos dois para cada cantora), compostos de corsets, soutiens,
ligas e meias 7/8. O clipe conta atualmente com 98 milhões de views no youtube12, e brinca
com a mistura de gêneros musicais e das etnias “correspondentes” a cada um deles: o rock (e
a mulher branca, Pink), o pop (Christina Aguilera, latina), o r&b (Mya, afro descendente) e o
rap (a mulher negra, Lil’ Kim).
Em conjunto com a alternância de etnias – que presentificam a mistura entre o
caucasiano, o ibérico, o latino e o africano, promovida pelas colonizações do passado e as
imigrações do presente – e estilos musicais – os quatro estilos mais assíduos na música do
final dos 1990 e início dos 2000 – há uma progressão na manifestação da sexualidade
“pertinente” a cada uma destas etnias. Começando por uma insinuação mais delicada de Pink,
que desenvolve-se em uma exuberância da latina Aguilera, somos transportados ao corpo
sensual e sibilante da afrodescente, Mya, que, finalmente, termina na sexualidade
escancarada, combinada ao esbanjar do dinheiro e à ostentação de jóias, da rapper negra Lil’
Kim.
O grande tema deste clipe é o fetiche: aquele da lingerie de época, evidentemente, mas
também o da mistura das raças, tratada como tabu, sobretudo nos Estados Unidos, até meados
do século XX. A quebra desta interdição em intermináveis orgias, que misturam latinos,
brancos e negros, aparece de maneira recorrente na literatura erótica do início do século XX
(Cf. MILLER, 1985; NIN, 1978). Presentificada na imagem acima, a mistura entre a Europa e
a África é produtora das diversas miscigenações que são, por sua vez, as formadoras do
“Novo Mundo”.
A nomeação dada à protagonista da letra da música, Creole Lady Marmalade, nos
remete a este universo exótico. Transposta, nesta versão da música, para o Moulin Rouge, na
canção original Lady Marmalade é encontrada em Old New Orleans, outro ícone da
miscigenação nos Estados Unidos. Adjetivada como mocca chocolata, imaginamos uma
mulher que não é nem negra, nem branca, mas mestiça, creole, cuja definição especifica, além

12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=RQa7SvVCdZk


99
da cor da pele proveniente do encontro das duas raças, a mistura linguística criada entre a
língua materna e a do colonizador. Além da pele escura, incomum ao homem branco europeu,
Lady Marmalade certamente possuía um sotaque tão exótico quanto sua cor e suas formas.

Figura 28. Performance das cantoras no 2000 MTV Movie Awards, com os mesmos figurinos utilizados no video
clipe. Da esquerda para a direita: Pink, Lil’ Kim, Mya e Aguilera. Imagem: www.buzzworthy.mtv.com

Os corsets utilizados no figurino do clipe, no entanto, são falsos corsets, assim como o é o
próprio corset da marca Agent Provocateur. Tratam-se, em todos os casos, de peças
construídas com materiais semelhantes àqueles dos empregados no final do século XIX, mas
que não promovem um fazer transformador do corpo. Estas peças apenas recobrem a silhueta,
ajustando-se a ela, mas sem modificá-la, sem conferir um novo desenho. Seu arranjo
cromático e matérico, no entanto, reenvia ao que Valerie Steele definiu como “o fetiche do
corset de cetim” (STEELE, 2001), ou uma valorização erótica da roupa de baixo, inédita até o
século XIX.
Vários fetiches são presentificados por esta peça, produzida pelo fabricante Agent
Provocateur, que é também conhecido pelas criações de lingeries luxuosas, tal e qual a marca

100
La Perla. A mistura das cores rosa e preto, que reenviam aos corsets do século XIX, a renda
preta, a cinta liga (que pressupõe as meias 7/8 de seda, em desuso cotidiano após a invenção
da pudica meia calça) e, por último mas não com menor importância, a amarração e ajuste
pelas costas. Na era das lingeries constritivas beges e invisíveis, vestir um corset cor de rosa e
preto, amarrado pelas costas, decorado com laços, fitas, ligas e meias de seda é, certamente,
um ato capaz de transportar a mulher contemporânea para um toucador do século XIX,
cobrindo-se com a sensualidade desta mulher “de outros tempos” – e cuja roupa de baixo,
como vimos anteriormente, conferia ao corpo uma topologia que privilegiava, justamente,
este enaltecimento de suas características mais femininas.
As lingeries, no entanto, localizam-se em um domínio do que não deve ser visto, algo
que se deve ocultar. Até meados do século XIX, tal não era mostrado sequer ao parceiro, ao
marido, e uma dama se mostraria em roupas de baixo somente àquelas que participavam do
ato de vestir e despir. Com o embelezamento dos corsets, o homem começa a participar deste
ato (STEELE, 2001), e pela primeira vez um valor erótico é atribuído a estas peças. A forma
de amarrar o corset, inclusive, poderia torna-se uma espécie de “assinatura” do homem que
despiu e vestiu a mulher – como é retratado nas charges de humor do século XIX, em muitas
das quais o marido surpreende-se com um corset amarrado de maneira diversa, indicando que
sua mulher esteve com outro.
Querer ver um corset, portanto, constitui um ato de voyeurismo, ou a combinação
entre um querer ver e um querer não ser visto (LANDOWSKI, 1992), regime de visibilidade
marcado pela contrariedade entre o querer dos dois sujeitos. Esta mesma contrariedade foi
apreendida no traje de 1880 (figura 10) mas aparece, neste corset, investida de outros valores.
O querer ver lingeries torna-se, aqui, um fetiche, na medida em que tal ato constitui uma
transgressão do decoro que, por sua vez, possui altíssimo valor erótico.
O que dizer, no entanto, do querer ver uma lingerie que quer ser vista? No século XXI,
o corset tradicional não apresenta-se como uma alternativa viável de modelagem do corpo:
seu volume seria facilmente percebido por baixo das roupas justas e de tecidos leves
utilizadas atualmente, assim como, no caso desta peça em particular, suas cores se fariam ver.
O propósito deste corset, no entanto, não é aquele de modelar o corpo, como nos revela sua
forma e suas medidas. Restam duas alternativas que expliquem seu uso, e ambas distanciam-
se da ação esperada do corset tradicional.

101
A primeira é aquela da conquista: uma lingerie vestida especialmente para um
encontro, muito provavelmente minutos antes da interação sexual. Ao invés de permitir ao
parceiro “descobrir” esta lingerie, a mulher aparece já vestindo-a. O despí-la, promovendo a
descoberta do próprio corpo nu, é o que adquire o valor de jogo erótico: o “libertar” o corpo
do corset – que é vestido enquanto metáfora, uma vez que não promove uma constrição real –
permitindo a interação sexual, a partir deste desnudamento.
Esta peça, no entanto, possui ligas removíveis, que podem ser posicionadas ou não
abaixo dos laços de cetim na frente, e na lateral. Isto indica, por um lado, que este “corset”
pode ser usado com ou sem meias. Por outro, ele permite um uso desta mesma peça de uma
outra maneira, como um corpete, uma parte de cima qualquer que pode ser utilizada com uma
calça ou saia, como parte de um traje exterior, como era moda na mesma época em que este
modelo foi lançado. Foi desta maneira, aliás, que o corset nos foi apresentado como parte das
personagens Trinity e Selene: um corset vestido por fora da roupa, por cima de um conjunto
chamado catsuit, que consiste em blusa de gola alta e calça comprida combinadas em uma
peça única.
O uso misto permitido, portanto, distancia este corset de Agent Provocateur, emblema
de uma tendência dos anos 1990-2000, de todos os possíveis e previsíveis usos esperados de
um corset: tanto seu papel de modelador da silhueta, quanto sua característica de roupa de
baixo são aspectos ausentes desta réplica contemporânea do corset tradicional.

102
III.3. TC Fine Intimates Slip

Figura 29. TC Fine Intimates Slip – Strapless Bra, 2013. Vestido modelador sem costuras, confeccionado em
tecido misto de nylon, elastano, algodão e poliéster, com soutien de bojo sem costura e aros metálicos, alças
removíveis, comercializado em diversos tamanhos, do 34 ao 40 (tamanhos europeus). Acabamento superior e
inferior com a tecnologia Wonderful Edge (“bainha maravilhosa”), que consiste em uma tira de silicone aplicada
nas pontas da peça que aderem à pele, impedindo o deslocamento da lingerie durante os movimentos. Disponível
nas cores preto e pele, e em três intensidades de compressão, Just Enough® Control (“Controle Apenas o
Suficiente”), Firm Control (“Controle Firme”) e Even More® Control (“Ainda Mais Controle”). Imagem:
Bloomingdale’s.

Até o momento, é possível identificar uma oposição de base entre um corset que se diz “não
corset” (Shape Couture), o modelador do fabricante La Perla, mas que é constritivo e possui
um elaborado fazer transformador sobre o corpo; e uma segunda peça, um não-corset que se
diz corset, confeccionado com os materiais corretos do corset tradicional, mas cujo arranjo de
modelagem não é capaz de promover uma ação de modelagem da silhueta (Agent
Provocateur). Na nomeação deste terceiro item do corpus, não há a menção de suas
propriedades (a não ser do diferencial de alças removíveis, “strapless bra”) ou da ação que
devemos dele esperar: TC Fine Intimates é o nome da marca, e “slip” significa anágua ou

103
combinação, mas também pode ser um verbo, que pode ser traduzido como “escorregar”,
“deslizar”.
Ambos os aspectos do vocábulo escolhido como nomeação da peça aparecem
presentificados neste corset: ele é mais uma combinação (ou anágua) do que uma cinta, uma
vez que, dada a ausência de costuras que modelem o corpo, sua função pode ser lida, à
primeira vista, como aquela de cobrir o corpo (preparando-o para receber uma transparência,
por exemplo). Por outro lado, o tecido misto no qual este modelador é confeccionado possui
uma textura “escorregadia”, que serve tanto para facilitar o vestir a peça, quando o vestir
sobre ela, permitindo que a roupa “deslize” sobre o modelador, não apenas ao vesti-la mas ao
longo de seu uso, promovendo um movimento natural da roupa sobre o corpo que remete, por
sua vez, ao corpo nu por baixo do vestido, sem a presença de uma peça de constrição e
modelagem.
Em um primeiro cenário, portanto, há a dificuldade em reconhecer nesta peça seu
pertencimento ao “time” dos modeladores, uma vez que sua construção tubular, em uma única
matéria, sem recortes e costuras, não parece capaz de promover um rearranjo do corpo –
como o “macaquinho” de La Perla, por exemplo, manifesta em seu complicado arranjo de
modelagem. Mas as intensidades de compressão anunciadas (“apenas o suficiente”, “firme” e
“ainda mais”) conseguidas por meio do gradativo enrijecimento da matéria utilizada, aliadas à
presença do soutien de bojo, nos sugerem que, ainda que de uma forma menos “anatômica”
do que o macaquinho de La Perla, este corset é capaz de promover a compressão, de acordo
com a necessidade, que pode ser escolhida pela usuária, no ato de compra.
Entre os atributos desta peça apresentados no website Classic Shapewear, um dos
muitos que a comercializam, são mencionados “modelagem e suavização da barriga, abdome,
quadris e coxas”, “perfeito para aquelas ocasiões especiais”, “macio, aparência sem costura”,
além de uma extensiva descrição do bojo, cuja tecnologia patenteada promete um “visual
natural”. Finalmente, esta peça permite andar confortavelmente, ao mesmo tempo em que
promove um afinamento, modelagem e suavização do corpo.
Há um enorme salto entre a promessa de “efeito modelador fascinante”, como
assegura o Shape Couture, e uma “suavização da figura”, anunciada por este slip. Apenas a
gradação máxima, Even More®, é anunciada como “transformadora” da silhueta, apesar de
sua constituição ser idêntica às outras duas gradações – sem costura, com alguns painéis
“ocultos”. Portanto, ainda que seja adquirido na gradação máxima de compressão, esta peça
104
não é capaz de promover um deslocamento e reacomodação dos tecidos do corpo, como
intenciona o Shape Couture (ou o próprio corset tradicional). A constrição promovida por este
modelador gera uma diminuição da silhueta, mas sem altera-la significativamente, no toque
seu desenho, sua forma.
Ao invés de produzir uma impressão de silhueta atlética, com abdome esculpido e
glúteos levantados, este modelador provavelmente trabalhará suavizando dois sinais que
incomodam muitas mulheres: a textura da celulite e as possíveis dobras, na barriga e nas
costas, provenientes do acúmulo de gordura, provendo uma silhueta mais lisa (“suavizada”)
para o uso de um vestido justo. Ao invés de recriar o todo da silhueta, este modelor trabalha
dissimulando detalhes.
O local de maior transformação, como ocorre no Shape Couture, é o busto. Trata-se,
contudo, de um soutien muito menos tecnológico do que aquele utilizado pela marca italiana,
construído em uma peça única e com aros invisíveis. Este fato talvez explique a diferença de
preço entre as duas peças: o modelador de TC Intimates é vendido por em média $70, ao
passo que o preço deste Shape Couture é $354. De qualquer maneira, a presença de um bojo e
de aros manifesta a vontade de promover uma transformação mais elaborada no busto do que
aquela quer será conferida ao restante do corpo: tanto o aro quanto o bojo são instrumentos de
aumento e de sustentação, que colaboram para a construção de um seio mais arredondado,
desenvolvido e levantado. Este maior cuidado com o busto certamente opõe-se à constrição
“uniforme”, não setorizada, promovida no restante da silhueta.
Nas demais partes do torso e das coxas, a compressão do corpo ocorre de forma não
elaborada, e portanto, não hierarquizada: tudo o que encontra-se englobado pela combinação
será comprimido de maneira igual, de acordo com uma das três intensidades escolhidas. Não
há, assim, um direcionamento, para cima, para baixo ou para os lados, como na modelagem
do Shape Couture, mas uma direção única, de fora para dentro, que recobre toda a carne do
torso e das coxas, tornando-a uniforme.
É possível afirmar que esta maneira de constrição da silhueta é mais honesta do que
aquela promovida pelo Shape Couture: não há nem a construção de atributos que não estejam
já presentes no corpo original da usuária, bem como não se pode apreender a negação das
características femininas deste corpo. Quando recoberto pelo modelador, o que se apresenta
ao olhar do outro não é uma recriação, obtida a partir do uso do corset, mas uma versão
“melhorada” do corpo original, “afinada” ou “suavizada”.
105
Há igualmente um forte efeito de liberdade contido neste corset. Manifestado talvez
pela ausência de linhas constritivas ou reforçadas, o desenho liso certamente reenvia ao
próprio corpo, de silhueta lisa e macia, contraditória àquela seca e tonificada, produzida pelo
Shape Couture. Esta liberdade, contudo, encontra-se presentificada sobretudo pela ausência
de constrição da região genital: no formato “saia”, não há nenhum tecido que recobre de
maneira constritiva o púbis e o sexo, que encontram-se livres e abertos. Aliada à formação de
um corpo mais arredondado, e até mesmo mais feminino, quando comparado à silhueta
muscular do Shape Couture, esta ausência de obstáculos entre as pernas é criadora de um
desenho de corpo sensual, dotado de curvas, e ao mesmo tempo estésico, macio, não
enrijecido ou tonificado.
As linhas sugeridas por este corset, aliadas ao seu arranjo matérico, convidam à
interação sensual/sexual de maneira menos explícita do que o corset de Agent Provocateur.
No lugar do erótico puro e escancarado da “lingerie fetiche”, este modelador atua como um
realçador das curvas do corpo original, tornando-o mais atraente sem, no entanto, transformá-
lo, reconstruí-lo. Na possibilidade da interação, este modelador deixa o caminho aberto, sem a
necessidade do rompimento do “lacre sexual”: a sexualidade feminina não encontra-se
constrita por esta lingerie. Da mesma maneira, ao contrário do corset de Agent Provocateur –
e diferente da própria visibilidade e ênfase na sexualidade promovida pelo traje do século
XVIII – a sensualidade feminina encontra-se presente, mas sem ser amplificada, exagerada ou
ostensiva. Sua sexualidade, tal e qual os atributos que a ela relacionam-se, não querem ser
vistos a partir de sua ostentação ou do voyeurismo do outro, mas almejam apenas um realce,
uma sugestão do que está no interior – seja da roupa, seja do modelador.

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III.4. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day

Figura 30. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day, 2008. Idealizada pelo famoso Dr. 90210, o
cirurgião plástico Dr. Rey, em conjunto com o designer Bruno Schiavi, a peça é confeccionada em tecido
composto de 88% de poliamida e 12% de elastano, reforçada e costurada com fios de silicone, com modelagem
que promete barriga reta, coxas e glúteos modelados, culotes reduzidos, “pneuzinhos” e aspecto da celulite
amenizados, e tudo isso invisível sob a roupa, promovendo uma modelagem confortável ao longo de todo o dia.
Disponível nas cores preto e nude, do tamanho P ao GG. Imagem: Polishop.

Esta grande revolução, fruto da associação entre o famoso cirurgião plástico Dr. Robert Rey,
estrela do reality show de cirurgia plástica “Dr. 90210”, e o designer Bruno Schiavi, chegou
às nossas televisões em 2008. Trata-se de um modelador criado a partir da tecnologia
empregada na cirurgia plástica, permitindo uma completa transformação instantânea da
silhueta, sem a necessidade da intervenção cirúrgica.
Inicialmente, é interessantíssima a nomeação do produto, na qual a palavra “Slim” é
repetida duas vezes, no nome da linha (Slim Shapewear) e da peça (Bermuda Slim Every
Day). A palavra, da língua inglesa, significa “esbelto, esguio, elegante, delgado”, valor
reafirmado no nome da peça. Shapewear, por sua vez, refere-se ao tipo de lingerie
modeladora ao qual esta bermuda pertence, e “Every Day” significa “Todo Dia”. Uma
proposição de nome em português para esta peça (e que certamente faria muito sucesso no
mercado), seria “bermuda modeladora magra todo dia”, que é, basicamente, o conteúdo
expresso pelas imagens dos vídeo publicitários desta peça.
Anunciada no mercado brasileiro a partir do canal Polishop, atuante desde os anos
1990 e conhecido pela publicidade sensacionalista de produtos mirabolantes, esta cinta ficou

107
marcada pelas milagrosas transformações “em tempo real”, mostradas em seu programa
publicitário 13 : afinar as coxas, quadris e colute, deixar o bumbum “like a brazilian bottom
lift” (o almejado “bumbum das brasileiras”), achatar a barriga, disfarçar a gordura das costas,
afinar a cintura, reduzindo até três manequins instantaneamente.
Assim como as lingeries ditas sem costura, esta bermuda também é vendida sob o
argumento do conforto que, em realidade, é um duplo conforto: o da lingerie em si, e o de
esquivar-se de um pós-operatório (bem como de todos os cuidados necessários durante e
depois da recuperação) da cirurgia plástica completa que este modelador pretende
proporcionar, mas sem a realização da cirurgia. Antes de qualquer análise prévia, já é possível
perceber que este produto é o mais apelativo de todos, no sentido publicitário do termo.
Ao observar atentamente a bermuda, o primeiro aspecto a capturar nosso olhar é
certamente a profusão de costuras direcionadoras que formam a peça, bem como as áreas de
reforço aparentes, nos glúteos, costas, barriga e quadril. Há uma monoisotopia matérica, que
diferencia as áreas de muita constrição daquelas de maior constrição ainda, pela repetição da
mesma matéria em camadas dubladas – construção semelhante àquela do corset tradicional.
Esta diferenciação é percebida visualmente pela ligeira alteração na tonalidade, do mais
transparente ao mais opaco, marca da repetição de camadas de tecido.
Além do destaque conferido às regiões que demandam maior constrição, dado pela cor
mais opaca e pela repetição da matéria, é possível perceber que as linhas de modelagem desta
cinta homologam-se às linhas anatômicas do próprio corpo, como se mapeassem o tórax,
cintura, quadris e coxas de acordo com o desenho da distribuição dos músculos do corpo.
Quando vestida, a bermuda confere ao corpo um desenho semelhante àquele do diagrama dos
cortes da vaca, no qual é possível localizar onde, no corpo do animal, encontra-se cada uma
das carnes.
Idealizada por um cirurgião plástico, esta cinta é exatamente o que parece: um
diagrama dos cortes da mulher, segundo a visão de um homem que corta a carne das mulheres
(tal e qual o açougueiro corta a carne dos animais) e as reorganiza, de acordo com o arranjo
considerado ideal.

13 Video original em inglês disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=3tcjXXzSVCU , e versão para o


mercado brasileiro: https://www.youtube.com/watch?v=ww9Rwpj0jZc
108
Figura 31. Diagrama dos cortes bovinos que serve a guiar açougueiros e demais interessados na localização dos
cortes da carne bovina em sua anatomia. Imagem: Yakina Grass-Fed Angus.

Figura 32. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Everyday, detalhe da modelagem lateral e da costura em
zigue zague, realizada com fios de silicone. Imagem: Polishop.

Mais do que a modelagem da roupa – como as costuras verticais e diagonais de uma saia, ou
as pences de uma camisa – esta bermuda confere ao corpo o desenho das linhas de
modelagem do próprio corpo, da carne, dos músculos e da gordura. Este “diagrama dos cortes
femininos”, por sua vez, reenvia a uma outra imagem, amplamente veiculada nos famosos
realities de cirurgia plástica: as linhas pontilhadas desenhadas à caneta, no corpo ou no rosto
109
daquelas que serão operadas, e que servem de guia para que o cirurgião saiba onde cortar e
recosturar a pele. O pontilhado da caneta é reiterado nas costuras em zigue zague que fazem o
acabamento, não em linha industrial de poliéster ou algodão, mas em fios de silicone, o
mesmo material utilizado nas suturas, ou as costuras do corpo na cirurgia.
Todo o arranjo plástico desta cinta parece remeter ao universo da cirurgia e da
modificação corporal definitiva, e às diversas fases de seu processo. Iniciando no corpo
original, rechaçado por sua “proprietária” como gordo, disforme, flácido, o modelador, em um
primeiro momento, aparece enquanto promessa da transformação, no vídeo do anúncio
publicitário, reforçando a sintaxe da falta, do desejo de conjunção com um objeto de valor do
qual encontra-se privado que é, neste caso, a “silhueta perfeita”. Após a aquisição, quando
vestido, este corset mapeia o corpo, destacando os lugares onde ele deveria ser cortado, para
que sua reorganização definitiva fosse promovida. Ao mesmo tempo, por meio de sua ação, o
efeito desta cirurgia “fictícia” aparece já atualizado no corpo da usuária. Desta maneira, suas
linhas modeladas são expressão simultânea de dois conteúdos: as linhas pontilhadas do antes
da cirurgia, e as suturas siliconadas do pós operatório.
Ao contrário da cirurgia, porém, o efeito deste modelador não é permanente, e é
inclusive destacado, na descrição do produto no website Polishop, que a redução de medidas é
promovida somente durante o uso. Se o corpo almejado enquanto ideal aparece, nos modos da
existência semiótica (GREIMAS & COURTÉS, 2012), enquanto um valor virtualizado, a
reoperação definitiva do corpo, por meio da cirurgia plástica, seria a única maneira de uma
realização deste corpo. Neste sentido, o uso deste modelador aparece enquanto um termo
complexo que une o virtual (o corpo almejado) e o real (corpo reoperado) em um único termo,
mas apenas enquanto esta bermuda encontra-se vestida. Ao despí-la, o feitiço é quebrado e a
usuária retorna ao seu corpo rechaçado, à disjunção com seu objeto de valor.
Esta conjunção “temporária”, portanto, pode ser lida como uma disjunção, uma vez
que a real conjunção com o valor almejado seria possibilitada unicamente pela intervenção
cirúrgica, capaz de conferir uma conjunção completa e “eterna” com esta silhueta almejada. É
nesta delicada contradição que concentra-se o maior “trunfo” desta bermuda: anunciada como
confortável, leve e macia, e competencializada com uma abertura higiênica, esta cinta pode
ser vestida ao longo do dia todo. Uma das frases de efeito repetidas no vídeo: “é tão
confortável que você não vai perceber que está usando!”. Ou seja: em um caso extremo, seu

110
uso poderia ser prolongado ao longo de todo o dia, sem a necessidade de remoção da cinta
para ir ao toilette, ou até mesmo para fazer sexo, caso assim deseje a usuária.
Enquanto manifestação do corset como actante pele, esta bermuda leva esta
possibilidade ao extremo. Quanto mais prolongado for seu uso, maior o distanciamento da
usuária de seu corpo rechaçado – que quer não ser visto –, adiando o momento da disjunção
com o corpo ideal – aquele que, pelo contrário, busca-se ostentar –, conferido pelo corset que
coloca-se claramente como o destinador, portador de todas as competências que faltam à
mulher.
O sujeito “usuária” aparece como constantemente manipulado, por meio do
mecanismo de tentação (LANDOWSKI, 2005), no qual o sujeito aparece como destituído de
competências que são, por sua vez, investidas no “objeto” (no caso, o outro sujeito, a
bermuda), que é exaltado euforicamente. Em outras palavras, a possibilidade de realização da
performance feminina (transformação da silhueta rechaçada em silhueta ideal) é toda
investida em um saber poder fazer do corset. O que o vídeo publicitário insistentemente
enuncia, ao longo das treze imagens de “antes e depois” mostradas em um minuto e quarenta
e nove segundos, é uma fórmula simples, mas de apelo indescutível: “compre-me, vista-me e
você também poderá perder três manequins e remodelar seu corpo completa e
instantaneamente”.
Diferente dos outros objetos analisados até aqui, o corpo construído por este corset
apresenta uma espécie de topohierarquia total: o local mais importante do corpo é todo o
corpo, que deseja ser visto em 360˚ – fato este confirmado pela isotópica “voltinha”,
performada pelas usuárias nas imagens de “antes e depois” apresentadas nos vídeos – como
totalmente reconstruído, recompetencializado. As oposições entre relações de visibilidade são
transpostas para o corpo “original”, que deseja-se ocultar, e o corpo construído pelo
modelador que, ao contrário, deseja-se ostentar, ou, ainda, mostrá-lo a partir de um regime de
“não querer não ser visto” (LANDOWSKI, 1992), marca de uma satisfação com o corpo ou,
ao menos, da ausência de constrangimento pelas próprias formas.

III.5. Amarração

Como desenvolvemos na introdução deste capítulo, neste recorte do corpus o papel temático
do corset de formar um corpo exclusivamente para uma configuração de traje perde-se,
111
conforme a moda torna-se mais múltipla. O desejo de construção do corpo deixa de ter o
papel de servir ao vestido, e passa a servir mais diretamente à própria subjetividade, aos
próprios desejos e anseios acerca do que o corpo deve ser. Isto não significa, no entanto, uma
diminuição da intensidade das transformações conferidas a ele, mas sim novas possiblidades
desta transformação.
Os quatro exemplos que examinamos ao longo deste capítulo revelam que, em lugar
do “corset único para todas as ocasiões”, o século XXI nos ofere opções que vão do corset
tradicional (ou de um falso corset tradicional, mas que reenvia às peças confeccionadas no
século XIX) aos complexos modeladores, extremamente tecnológicos, que promovem uma
transformação completa, muito mais eficiente (e marcada) do que aquela promovida pelas
peças de linho e barbatana de baleia.
Mais do que reenviar a vestidos, que por sua vez pressupõem a construção do corpo
segundo um padrão que deve ser exato, os corsets analisados neste capítulo reenviam a papéis
femininos diversos, ou ainda a diversos momentos de um mesmo papel – a mulher múltipla
do século XXI.
Começando pelo modelador de La Perla (figura 22), a forte constrição sexual, que
força a construção de um parecer dotado de competências propriamente masculinas, aparece
enquanto expressão de um marcado conteúdo de emancipação feminina, desvinculada dos
papéis de maternidade e procriação que, outrora, manifestavam o todo de sua interação em
sociedade. Esta aparente revolução, no entanto, aparece como uma “nova programação” do
feminino ocidental, ou um novo papel temático: tomado enquanto algorítimo de
comportamento, como postula Landowski (2005), o papel temático inscreve-se em um dever
ser feminino. No século XXI, esta isotopia comportamental perpassa justamente os valores
apreendidos neste corset de La Perla: a força muscular, o desenho magro e definido da
silhueta, os seios aumentados, parecer este construído não com o propósito único de atrair o
“macho” para a “cópula”, mas enquanto “suporte” de exibição das próprias conquistas,
adquiridas por meio da própria emancipação financeira. Neste sentido, um modelador da
marca La Perla já constitui um destes objetos ostentatórios, uma vez que trata-se de uma
marca de lingeries de luxo, e a própria aquisição de um de seus modelos é capaz de conferir
um status de distinção à sua proprietária/usuária.
Em oposição a ele, o corset-não-corset de Agent Provocateur (figuras 25 e 26) inverte
este papel recatado (ao menos no sentido sexual do termo), trazendo um erotismo explícito,
112
até mesmo fetichista, da lingerie que não serve como modelador, mas é capaz de criar em
torno de si um universo de fantasia que reenvia ao erotismo de uma outra época. Dentro deste
recorte, esta é a única lingerie do recorte que não possui um uso prático de modelagem da
silhueta, mas é meramente estética, decorativa. Até mesmo classificá-la enquanto lingerie é
difícil, uma vez que seu uso como corpete, por fora da roupa, é permitido e socialmente
aceito. Em ambos os casos, lingerie erótica ou sofisticada parte de cima, este “corset” possui
como finalidade única a expressão de um fetiche da constrição, que não encontra-se de fato
realizado, é apenas sugerido, seja pelo cromatismo, pelas matérias utilizadas, ou pelas
amarrações.
Enquanto oposição de base, este eixo pode ser combinado na formação de um papel
feminino tradicional do século XXI: a mesma mulher que de dia dedica-se à sua carreira,
transformando-se praticamente em um homem, de linhas retas e musculosas, à noite, nos
momentos a sós com seu parceiro (fixo ou esporádico, pouco importa), busca agradá-lo com
lingeries elaboradoas, promovendo o jogo erótico por meio do uso destes preciosos objetos-
fetiche. As duas práticas são fortemente encorajadas pela mídia: trabalhe duro, ganhe
dinheiro, mas não deixe de “agradar seu homem”. A criação de lingeries cada vez mais
decorativas, cosméticas, que enunciam em seu cromatismo e materialidade uma atração
sexual que beira a pornografia, aparece como uma “tábua de salvação” da masculinização do
ambiente de trabalho, onde toda e qualquer sexualidade deve ser reprimida, constrita. Esta
contenção constante do sexo acaba por produzir um termo oposto proporcional, da libertação
extremada de todas as amarras.
Uma negação mais suave, no entanto, pode ser apreendida do modelador-combinação,
do fabricante TC Fine Intimates (figura 29). Sua compressão mais moderada e menos
impositiva, produtora de um desenho mais natural e que não nega o feminino – e, inclusive,
pressupõe o uso de um vestido ou de uma saia, uma vez que seu desenho não ajusta-se ao uso
da calça comprida – confere uma sensualidade mais suave, mas que implica no termo mais
“selvagem”, propriamente erótico, presentificado pelo uso do “corset” de Agent Provocateur.
Seu desenho não decorativo, no sempre preto ou bege, não classifica-a enquanto “lingerie
sexy”, mas o corpo que se faz ver a partir de seu uso o é, no sentido próprio do termo,
originado no inglês, que é aquele de provocar o desejo sexual. Neste caso, esta característica é
fruto das curvas do corpo que são respeitadas pelo modelador, que não impõe um outro
desenho, mas aperfeiçoa as linhas já existentes.
113
Este corpo mais natural, dotado de curvas e volumes mais femininos, é considerado
sensual justamente enquanto oposição do corpo comercial, ou über stylish, que geralmente é
dotado de linhas mais retas e magras, beirando a androginia. A distinção é da autora britânica
Pamela Church Gibson, para a qual este corpo mais sensual ou “glamouroso” constitui uma
ameaça para o padrão de beleza almejado pela moda das passarelas (CHURCH GIBSON,
2012). Isso se dá, sobretudo, porque é mais fácil para a mulher atual identificar-se com este
padrão de mais curvas e volumes, do que com a magreza impossível das modelos. Este eixo
subcontrário, portanto, definirá a presença das tendências de corpo atual.
O último modelador analisado, aquele idealizado por Dr. Rey (figura 30), aparece
desta maneira enquanto termo oposto ao corset de TC Fine Intimates, uma vez que a bermuda
destina-se às entusiastas do padrão comercial, extremamente magro e modelado, reconstruído
e reorganizado, se necessário, cirurgicamente. Enquanto negação do “corset” de Agent
Provocateur, esta bermuda manifesta a conjunção com um outro fetiche, aquele do glamour
do mundo das cirurgias, para aquelas que não possuem recursos financeiros (ou coragem)
para dele participar. Ambos constituem falsas conjunções com seus fetiches, uma vez que a
peça de Agent Provocateur insinua a constrição da cintura, mas sem promovê-la, tanto quanto
o modelador de Dr. Rey sinaliza a cirurgia, sem no entanto realizá-la.
Em busca da construção de uma categoria do Corset Elástico, regida pela interação por
manipulação, as peças escolhidas para compor este recorte possuíam como traço comum a
presença da necessidade de adesão ao acordo de manipulação, no qual o corset aparece como
sujeito destinador e a mulher como destinatária. A manipulação, como vimos, começa já nas
nomeações das peças: “Shape Couture”, que abriga o valor de escultura e modelagem do
corpo em união à “alta costura”; a simples nomeação “corset”, para uma peça que não é um
corset “real”; “Slip”, combinação, que abriga a ideia de uma lingerie não constritiva,
confortável e estésica, utilizada apenas para cobrir o corpo; e, finalmente, “Dr. Rey Slim
Shapewear Bermuda Slim Every Day”, praticamente uma declaração, mais que um título, que
reitera o valor da magreza, aliado à modelagem e uso diário. À excessão da peça chamada de
“corset” (mas que, ironicamente, não é um corset completo), todas as peças procuram
disfarçar sua relação com o corset tradicional, ao mesmo tempo em que propõem
transformações mais radicais, que englobam áreas maiores do corpo, e produzem sentidos
mais complexos do que o seguro papel temático feminino de procriadora, dependente do
marido.
114
Para criar sentidos que vão da poderosa “mulher carreira” à “gata selvagem”, “de
espartilho e cinta liga”, os corsets do século XXI precisam manipular suas destinatárias para
fazê-las fazer – neste caso, um fazer comprar. É apenas a partir deste contrato inicial que o
corset poderá realizar sua performance, a partir da vontade do sujeito mulher.
Em “Les interactions risquées”, Landowski destaca quatro possíveis mecanismos de
manipulação: sedução, tentação, provocação e intimidação (LANDOWSKI, 2005). Estes
quatro dividem-se, por sua vez, na valorização do objeto (tentação e intimidação) ou do
sujeito (sedução e provocação), que pode ser positiva, eufórica (tentação e sedução) ou
negativa, disfórica (intimidação e provocação). Salvo em raríssimos casos, as ações
publicitárias concentram-se na promoção da euforia, que costuma ser mais eficiente na
persuasão de um futuro cliente – quem, em dias tão incertos quanto os atuais, aprecia ser
ameaçado, intimidado? Nos casos analisados aqui, percebemos que as duas dêixis formadas
pelos corsets analisados também abrigam os dois mecanismos de manipulação: a tentação, ou
exaltação eufórica do objeto, na dêixis positiva (formada por La Perla e Dr. Rey), e a sedução,
ou exaltação eufórica do sujeito, na dêixis negativa (Agent Provocateur e TC Fine Intimates).

Figura 33. Quadrado dos corsets elásticos, regidos pelo regime de manipulação.

Estas tendências de construção do corpo, no entanto, não aparecem como formadoras de


posições sólidas ou estáticas, que podem ser homolagas cada qual a uma única mulher
correspondente. A simultaneidade de todas estas tendências pode presentificar, ao contrário,

115
diferentes momentos (ou humores) de uma mesma mulher. Nada impede que uma mulher
possua em seu guarda-roupas todos estes modeladores ao mesmo tempo (ou versões destes
emblemas, confeccionadas por outros fabricantes), e que seu uso seja regido pela necessidade
de momentos específicos. Um modelador como o Shape Couture pode aparecer como uma
excelente opção para o dia a dia, para a construção do corpo para as roupas de trabalho, mas
nada impede que ao utilizar um vestido de festa justo no corpo, por exemplo, a mesma mulher
prefira o invisível Slip de TC Fine Intimates, ou mesmo a radical bermuda de Dr. Rey.
Finalmente, a mesma mulher pode ainda utilizar lingeries mais eróticas, fetichistas, como o
“corset” de Agent Provocateur, para o momento da conquista, ou da sedução, no sentido
ordinário do termo.
Neste sentido, emergem os valores de “sujeição” e “emancipação”, igualmente
presentes nas duas dêixis do quadrado. Por um lado, a modelagem mais radical promovida
pelo modelador de La Perla e pela bermuda de Dr. Rey, retomam a sujeição “cega” do corpo
ao corset, que é igualmente uma sujeição às isotopias da moda. Ambos os corsets presentes
nesta dêixis promovem exaltações do corpo magro, perfeito anatomicamente, com tecidos
alocados nos lugares corretos. Para alcançar tal efeito, o modelador é capaz de retirar o tecido
de um lugar e empurrá-lo para o outro, reacomodando a carne onde ela é necessária, e
removendo-a de onde ela constitui um excesso. Trata-se, nos dois casos, de um sacrifício do
corpo em nome da moda, transformando-o no que ele deve ser, meramente para a apreciação
do outro. É um corpo que quer ser visto como magro, musculoso, modelado, delineado,
esculpido, perfeitamente reconfigurado dentro dos padrões das revistas e das celebridades,
pronto para adequar-se aos objetos de ostentação da própria emancipação financeira (e não
necessariamente para o outro do sexo oposto, o possível parceiro, mas para quaisquer outros,
formadores de um entorno social no qual o destaque e admiração são almejados).
Na dêixis oposta, estes valores possuem uma importância diminuida, uma vez que não
apenas a ação do corset é limitada, menos evidente do que aquela apreendida dos
modeladores de La Perla e Dr. Rey, mas o desenho de corpo “prometido” é muito mais
flexível, e portanto menos subordinado aos padrões em circulação. A emancipação, tal como a
sujeição, é dupla: emancipação dos padrões inalcançáveis de magreza e definição muscular, e
emancipação do corpo da necessidade de modelagem. Esta segunda marca a passagem do
corset de “escultor” a “realçador”, e finalmente para “adorno” ou “enfeite” do corpo, que não
promove uma transformação de sua forma.
116
Esta emancipação vem necessariamente investida de valores de sensualidade e
sexualidade, que só podem emergir em um corpo mais livre, dotado de mobilidade, e que traz
o sexo descoberto, despido de “obstáculos”. Esta abertura é igualmente produtora de um
sentido de recuperação do feminino, que encontra-se enfraquecido na dêixis positiva, na qual
a criação de um corpo andrógino, mais próximo do corpo dos homens, é enaltecida.
A masculinização, no entanto, constitui um valor programado na sociedade atual, na
qual feminismo é constantemente confundido com “tomar o lugar dos homens”. Este corpo
masculinizado, proporcionado pelos dois modeladores construídos como bermudas,
constituem uma configuração mais programada, da ordem da prudência (LANDOWSKI,
2005), enquanto que a maior libertação sexual, seja pela sensualidade insinuante do vestido
constritor, seja no erotismo escancarado do “corset” de Agent Provocateur, aparecem como
produtoras de interações mais arriscadas no cenário contemporâneo, pertencentes às
interações por ajustamento e acidente.
Estes valores, no entanto, não encontram-se estáticos e cristalizados. No contexto em
que nos encontramos, é permitido às mulheres transitar entre estes diversos papéis – e até,
talvez, outros não contemplados por este estudo, por não encontrarem-se vinculados ao uso de
lingeries modeladoras. Tal apenas confirma a força do contrato de manipulação que une os
quatro itens deste recorte do corpus, e propicia, ao mesmo tempo, o surgimento de muitas
outras lingeries para este propósito, cada uma avançando um passo além da anterior, na
promessa de criação de uma silhueta almejada – seja ela dura, tonificada, masculina, ou
redonda, volumosa, sensual.

117
IV. Contato entre corset e corpo

Até então, os objetos analisados pertenceream ou pertencem a blocos temporais identificados


à vigência de uma moda, ou seja, com uma continuidade (ou não-descontinuidade) de uma
tendência da constrição. Existem, porém, diversas lingeries constritoras consideradas como
“de transição”, ou seja, que encontram-se localizadas em datas nas quais a passagem de uma
tendência de corpo à outra pode ser apreendida. Se por um lado estes objetos presentificam
rupturas, por outro, encontram-se mais em uma posição de não-continuidade do que da
descontinuidade propriamente dita, afinal, não há uma descontinuidade da prática da
constrição, e sim uma significativa alteração na maneira que ela é praticada.
Sem dúvidas, contudo, estes objetos propõem a quebra dos papéis temáticos
estabelecidos em todos os níveis da interação: no corset, no corpo que o traja e até mesmo no
fazer do corsetier. Nestas transições, presentificam-se esboços das transformações do corpo
que poderão ou não tornar-se uma próxima tendência, ou quem sabe, um próximo programa
da silhueta; é também neste momento que descobertas em todos os âmbitos são realizadas:
novos materiais, novos arranjos, e até mesmo melhorias na modelagem e nos métodos de
confecção.
Quando este tipo de ajuste entre o objeto e a sua confecção ocorre, esboça-se uma
forma de corseteria que está muito mais para a prática do que para o uso, no sentido que
Landowski (2009) dá aos termos: tecidos, barbatanas, moldes, e até mesmo as ferramentas
deixam de ser usados pelo corsetier e passam a ser praticados. Nos termos de Landowski
(2009), ocorre um dépassement, ou uma espécie de superação do uso pressuposto (ou
programado) por meio de um novo uso, no qual sujeito e “objeto” praticado encontram-se em
união. Esta união, por sua vez, será reiterada também na inter-ação entre o objeto constritor, o
corset, e o próprio corpo, produzindo, em todos os sujeitos envolvidos, competências
estésicas.
O grande tema deste recorte do corpus é certamente o ajuste: se nos corsets elásticos,
identificados com o regime de manipulação, existe ainda um forte fazer-querer, neste grupo
de corsets reformulados, de transição, existe um ouvir-se mutuamente dos sujeitos corpo,
corset e corsetier. Na criação de algo novo, a “obra” em processo possui uma forte voz no
processo criativo, e deixa de ser, perante seu “mestre” ou aquele que a realiza, um mero
objeto. É o que observa-se nestes corsets de transição, derivados de modelos anteriores que
118
eram mais constritivos, e portanto mais atrelados aos papéis temáticos – do corpo, da moda,
do corset – que presentificam. Os objetos desenvolvidos a partir deles são versões
aprimoradas, no sentido de que buscam uma melhor acomodação dos tecidos do corpo, no
lugar da imposição de um formato, por meio de uma relação de ajustamento: na interação
entre corpo e objetos de transição, é possível apreender uma maior igualdade entre estes dois
sujeitos. Nela, ambos os sujeitos colocam-se em contato (e não contrato) sem a mediação de
um objeto de valor: o sentido deste regime encontra-se justamente na própria interação. Para a
abordagem desta forma de inter-agir, selecionamos os primeiros stays que possuem taças para
o suporte dos seios, no final do século XVIII, o primeiro corset romântico, cuja modelagem
igualmente prevê um espaço não-constritivo para os seios, a primeira cinta elástica em todas
as direções, e um body, primeiro corset contemporâneo a deixar as pernas livres, ambos os
últimos dos anos 1960.
Todos os papéis temáticos são aqui abalados: do corset ao corpo, há um dépassement
de todas as estruturas que permitem o uso pressuposto do corset, e até mesmo este uso é
superado. O foco da constrição muda, da cintura anatômica para a cintura alta (no século
XVIII e XIX), para o abdome ou para os quadris (nos anos 1960); os tecidos são utilizados de
maneiras diferentes, a presença de estruturas rígidas é diminuída ou suprimida. O papel
temático do próprio corsetier é diluído, obrigando-o a remanejar seu saber, suas ferramentas e
os materiais disponíveis, criando objetos inovadores, por vezes rudimentares, de um ponto de
vista estético. É na performance, no contato com o sujeito, que encontra-se investido o maior
valor desta maneira de fazer corsets.
O que pode haver em comum entre dois modeladores dos anos 1960 e dois corsets da
virada do século XIX? Além de todos os quatro tocarem na mesma questão da prática dos
materiais então disponíveis, que culmina em uma prática também da silhueta, há sem dúvida
uma passagem de um regime de junção a um regime de união (LANDOWSKI, 2005): se em
um corpus de corsets elásticos, com forte apelo publicitário, há uma fortíssima mediação da
interação por objetos de valor (no caso atributos do corpo, da silhueta, que são conferidos à
destinatária através do corset-destinador), nestes corsets reformulados a interação se dá
diretamente entre os sujeitos, marcando a transição do contrato para o contato. Em todos os
casos – e deve-se considerar, nesta afirmação, as tecnologias disponíveis em cada época, e
não uma comparação delas às tecnologias atuais – há uma busca por matérias mais agradáveis
ao corpo, mais maleáveis e macias, mais estésicas, ou que fazem sentir, bem como as formas
119
almejadas ajustam-se melhor ao corpo nu do que as formas impositivas, apreendidas nos usos
tradicionais e nos corsets elásticos. O regime de ajustamento se dá em todos os níveis da
interação: entre corsetier e corset, entre corset e corpo.
Evidentemente, o risco de tal modo de interação é aumentado, justamente pela
imprevisibilidade de tal relação. Quando dois (ou mais) sujeitos são colocados em interação
sem a mediação de objetos de valor, ou sem hierarquias entre eles, há a insegurança, no lugar
do risco limitado da manipulação ou da regularidade simbólica e causal da programação
(LANDOWSKI, 2005). Ao invés da competência modal, o regime é fundado na competência
estésica, ou seja, no fazer-sentir, em lugar do fazer-querer. Talvez estes aspectos expliquem a
pontualidade do uso de tais corsets, cujas tendências não perduraram, mas foram logo
substituídas por novas tendências mais constritivas, mais próximas da programação – e
portanto, mais seguras – tais como o retorno do corset em meados do século XIX, ou ainda
pela busca da abolição do uso de qualquer constrição, como ocorreu nas revoluções feministas
de 1968.

120
IV.1. The Little X Girdle

Figura 34. The ‘Little X’ Girdle, aproximadamente 1960. Fabricada pela empresa britânica Silhouette, a Little X,
“Pequeno X”, é a primeira cinta elástica em todas as direções – diferente dos primeiros tecidos elásticos,
desenvolvidos no início do século XIX, que consistiam na fiação mista de latex com um outro fio sem
elasticidade, promovendo que o tecido esticasse apenas em uma direção, geralmente horizontal. Confeccionada
em nylon e Lycra®, a modelagem da cinta (no “X” que dá nome a ela) permite que ela seja vestida e despida sem
a necessidade de fechos ou amarrações de qualquer tipo. A Little X era fabricada em diversas cores vibrantes –
como o azul, o rosa choque, o branco – e trabalhada com fios de lurex dourado. Tamanho da cintura: 52 cm.
Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.291-1993

Lançada em 1955, esta cinta foi uma das lingeries modeladoras mais bem sucedidas dos anos
1950-60 (LYNN, 2010), e pode ser comprada até a atualidade (apenas nas cores preto e
branco) em sites como e-bay, ou lojas especializadas em lingerie de estilo “vintage”. Com sua
tecnologia elástica em todas as direções, ela é capaz de proporcionar uma constrição da altura
do umbigo – onde o desenho marcado da cintura é formado, por meio do elástico reforçado –
até abaixo das nádegas – onde o mesmo acabamento a mantém firme e bem posicionada.
Trata-se, ainda, de uma configuração de corpo valorizada nos anos 1930-50, e que
hoje em dia é associado às pinups, um corpo arredondado, de seios, quadris e glúteos

121
pronunciados, em oposição à cintura fina, que muito lembra o corpo formado pelos corsets
tradicionais, analisados no capítulo II. O que separa a Little X deste período, portanto, não é a
forma conferida ao corpo, mas a maneira como o corset age sobre ele.

Figura 35. Wrap-around girdle, aproximadamente 1930 (V&A:T.168-1996). Cinta confeccionada em algodão,
malha elástica de rayon e acetinado sintético, com barbatanas flat de aço, fechada com colchetes (na lateral) e
ligas não-removíveis. Medida da cintura: 68 cm. À direita, a “Little X”. É perceptível como não há uma alteração
no desenho de silhueta – marcado na cintura e arredondado no quadril – entre as duas. No entanto, a Little X
possui um efeito mais leve, transparente e macio, enquanto que a peça dos anos 1930 é mais espessa, reforçada e
de trama mais fechada. Imagem: Victoria & Albert Collection.

As cintas utilizadas até meados dos anos 1950, como revela a descrição da cinta acima, são
constituídas de forma muito parecida com o corset tradicional, com tecidos firmes e fechados,
e bastante estruturadas com metal, o que certamente produzia um efeito pesado sobre o corpo,
desconfortável no andar e no sentar e, principalmente, abafado sobre a pele, uma vez que sua
constituição é quase 100% sintética.
A “Little X”, diferentemente, apesar de também confeccionada em matérias sintéticas,
possui uma trama aberta, vazada, por onde os locais nos quais o corpo deve ser livre
122
(“redondo”) respira: nas laterais do quadril e na traseira, a cinta é confeccionada em uma
única camada desta malha de nylon e Lycra®. Apenas em um ponto, o losango central,
englobante do abdome, a cinta é reforçada pela repetição do tecido, proporcionando uma
maior contenção. Este “reforço”, no entanto, não destitui a cinta de seu efeito “transparente”,
“arejado”.
A visibilidade conferida ao corpo por esta cinta retoma, em partes, aquela apreendida
do Shape Couture (figura 22), e, consequentemente, aquela do traje à fracesa (figura 5): o
cruzamento de linhas em “X” promove o deslocamento do olhar do observador para centros
de visibilidade privilegiada, indicando topohierarquias do corpo quando vestido com estas
lingeries. Neste corset, em um espaço reduzido (apenas metade do torso), há a criação de três
centros de cruzamento destas linhas: o centro do abdome, inscrito no “grande X” formado
pela sobreposição do tecido na frente da cinta, e dois “pequenos X”, que marcam o umbigo,
no alto, e o púbis, na porção inferior. Estes três centros são, por sua vez, ligados por um eixo
central, a fita brilhante que mantém a sobreposição do tecido unida.
As linhas desta cinta, portanto, formam um desenho que atribui ao corpo uma
visibilidade frontal e central, concentrada no eixo umbigo (cintura), abdome (útero) e púbis
(sexo), conferindo destaque a estes três pontos. A ênfase nestes três pontos não é
exclusividade desta configuração de corpo, e tampouco da “Little X”: como vimos nos
capítulos anteriores, a modelagem do corpo feminino geralmente perpassa a hierarquização
destes locais, que são aqueles que homologam-se com mais força aos valores de um papel
feminino tradicional em sociedade. Este destaque aparece até mesmo quando o objetivo do
traje reside em contestar este papel, como era o caso do Shape Couture: para manifestar uma
negação dos temas da maternidade e da fertilidade, é preciso igualmente chamar a atenção do
observador para estes pontos para, a partir deles, construir o questionamento e a oposição
almejada.
O tema do conforto e da mobilidade, associado às cores chamativas e brilhantes – ou
mesmo juvenis – da “Little X”, aparecem justamente como manifestação da possibilidade de
conciliar estes valores antigos, da fertilidade e da procriação, com valores atuais,
emancipatórios, muito difundidos na juventude da época. Seu arranjo une a formação de um
corpo muito tradicional, dos anos 1930-40-50 (que é semelhante, por sua vez, àquele do
século XIX), a um estado do corpo mais atual, que demandava uma quebra com a estaticidade

123
de barbatanas metálicas e emborrachados rígidos das décadas anteriores. Esta busca feminina
não poderia ser melhor enunciada do que o foi no próprio anúncio da “Little X”:

Figura 36. “Peter Pan Little X”, anúncio veiculado em 1957, na revista Seventeen. Segundo Eleri Lynn, “O
anúncio era baseado na figura de uma menina, seu corpo em silhueta contrastando com a cinta em destaque,
saltando em uma forma de ‘X’. Ele mostrava a cinta extremamente esticada, para mostrar suas qualidades
elásticas e a flexibilidade da qual ela era capaz. A campanha aparecia em cinemas e revistas e era um grande
sucesso. As vendas aumentaram muito, e a demanda foi tanta que a licença para a produção da ‘Little X’ foi
concedida a 32 países.”14 (LYNN, 2010) Imagem: Ebay.

14 “The advertisement was based upon a picture of a young girl, her body in silhouette apart from the
highlighted girdle, jumping in an ‘X’ shape. It showed the girdle streched to it’s extreme, to show its elastic
qualities and the flexibility it could afford. The campain ran in cinemas and magazines and was a great success.
Turnover was hugely increased, and demand was such that the licence to produce the ‘Little X’ was granted to 32
countries.”, tradução nossa.
124
Figura 37. Anúncio da corsetière Mme Guillot de 1906, “Chez la Reine du Corset”, do Corset-Gaine,
confeccionado em tricot flexível e sem busk frontal, anunciado como próprio para a prática esportiva. Imagem:
Bound & Determined.

O posicionamento da “modelo” da ilustração é frontal, direto, e ela parece estar executando


um salto de dança ou ginástica – seus pés estão esticados e os cabelos esvoaçando, o que
manifesta que não se trata de uma postura estática, nas pontas, mas de um movimento em
curso. A modelo também está vestida com um collant de ginástica preto, que recobre todo o
seu corpo, e o corset, a “Little X” na cor branca, é utilizado por fora da roupa, que por sua vez
serve de fundo que contrasta com a cinta, destacando-a.
Alguns pontos do anúncio despertam curiosidade. Primeiramente, a associação da
prática esportiva com o uso de um corset não é lugar comum da publicidade de lingeries,
apesar de não serem uma novidade dos anos 1960: os anúncios de roupa íntima normalmente
exaltam a pose – geralmente erótica, sensual – a estaticidade, que advém da construção de um

125
corpo que deve ser admirado em repouso, na permanência de uma impressão da silhueta. Esta
tendência combina especialmente com os sentidos contidos na palavra “shaper” que, como
examinado no capítulo III, reenvia aos papéis de “escultor e escultura”. O corpo “esculpido”
por um modelador, portanto, pertence ao âmbito da admiração inerte, paralisada, a mesma da
obra de arte.
Neste anúncio, no entanto, o corpo é modelado em mobilidade, de maneira dinâmica,
que reenvia inclusive a outros anúncios, do final do século XIX e início do XX, quando a
moda dos “corsets saudáveis” unia a exaltação da silhueta modelada à necessidade da prática
esportiva, como exemplifica o anúncio acima, da década de 1900 (figura 37).
Apesar de um anúncio reenviar ao outro, estes dois momentos da publicidade de
corsets muito se distanciam. O primeiro aspecto de divergência é aquele do uso pressuposto
do corset, presente no anúncio de 1906, mas ausente naquele de 1957. No anúncio de “Corset
Gaine” (figura 37), a modelo da ilustração aparece vestindo o corset sobre uma camisole
acompanhada de uma espécie de anágua e meias de seda. Pode não ser comum que alguém vá
às aulas de ballet vestida desta maneira, mas o corset encontra-se utilizado conforme sua
função, de roupa de baixo, e a ausência do vestido aparece como um recurso publicitário para
mostrar a peça anunciada.
No anúncio da “Little X” (figura 36), no entanto, a modelo não está praticando seu
salto em trajes íntimos, mas veste um collant de ginástica e, por cima dele, a cinta é vestida
como um acessório ou um traje exterior, por fora da roupa, aparente. Não se trata de uma
tendência de moda dos anos 1960: a cinta em questão continua sendo uma roupa de baixo,
uma lingerie. A opção de mostrá-la por fora, desta maneira, reveste o anúncio com ares de
metáfora, que opõe-se ao cambré literal do anúncio de “Corset Gaine”. Se na ilustração de
1906 a enunciação encontra-se no tempo presente – com “Corset Gaine” você pode curvar-se
desta maneira – o look inventado e fora do uso pressuposto da cinta, presente no anúncio de
“Little X”, nos diz que com esta cinta, elástica em todas as direções, você até mesmo poderia,
se desejasse, saltar desta maneira.
É um exemplo radical, portanto, da propriedade elástica da cinta, que é igualmente a
melhor maneira de colocá-la em destaque. Vestida diretamente sobre a pele, na ilustração em
preto e branco, o formato inovador da “Little X” seria facilmente confundido com as outras
cintas já existentes no mercado. Com o auxílio do destaque do fundo preto do collant, no
entanto, o “X” torna-se mais evidente, bem como a leve transparência da peça. E como não
126
notar que os braços e pernas, estirados no alegre salto, prolongam as linhas em “X” da cinta,
transformando o próprio corpo que o veste em um “X”? Não apenas esta cinta é capaz de
permitir este salto, mas seu efeito é capaz de contagiar todo o corpo, estendendo-se até as
extremidades de seus membros.
Há uma reiteração do tema da explosão, presentificado pelo salto retratado no anúncio,
mas que igualmente relaciona-se ao cromático, de cores vibrantes e brilhantes, e do
estiramento, tanto do corpo quanto das fibras elásticas que compõem o tecido. É uma
explosão, contudo, que tem como centro – seja da cinta, seja do anúncio – o ventre feminino.
A explosão, manifestada no anúncio pelo prolongamento do “X” da cinta para um “X” do
corpo, pode ser lida como uma superação do sentido outrora investido neste centro do corpo
feminino: o corpo formado pela “Little X” é o mesmo lugar do papel feminino do corpo dos
anos 1930 (e do século XIX), mas que expande-se para o que está ao seu redor.
Em uma leitura do contexto social, o início dos anos 1960 é marcado pela “revolução
sexual” (DENSMORE, 1998; EPSTEIN, 1998), o que nos permitira ler esta explosão como a
erupção da própria região do corpo – o umbigo, o baixo ventre, o púbis – da qual se passou a
falar de maneira mais livre, encorajando o ato sexual em lugar de reprimí-lo. A liberdade
manifestada pela cinta – que não bloqueia o sexo e é transparente, de trama aberta –pode ser
homologada não apenas à liberdade dos movimentos, mas à própria libertação sexual
feminina, certamente um dos principais assuntos da época.
A conformação do corpo – e mesmo sua sujeição a um “corpo da moda” – existe, mas
é uma constrição que não se coloca como excessivamente impositiva. Ela é elástica, flexível,
e, sobretudo, aberta. Pela abertura – da cinta que não recobre o sexo, ou da própria trama
vazada do tecido – há uma troca entre dois sujeitos, a cinta, portadora de uma competência de
modelagem do corpo, e o próprio corpo, portador de outras tantas. O resultado do encontro
entre estes dois sujeitos é o salto explosivo retratado no anúncio: um feminino cujo todo é
maior do que o sentido contido na parte constrita de seu torso. Juntos, estes dois sujeitos,
corpo e corset, constroem uma nova “versão” do feminino tradicional, mais ajustada,
permisiva.
Seu sucesso foi tamanho, que a “Little X” tornou-se o primeiro modelador
comercializado em trinta e dois países (LYNN, 2010). Sem dúvida, um fenômeno de massa,
ao qual diversas mulheres, sobretudo as mais jovens, aderiram. Por um lado, esta
disseminação de uma cinta investida de valores mais estésicos (e menos impositivos e
127
conformadores) aparece como um avanço, cujo sentido pode apontar para um abrandamento
do uso de lingeries constritoras que, por sua vez, presentifica um avanço no sentido da
emancipação feminina.
Por outro, ainda que investida de valores mais ajustados, e que consideram o corpo
feminino um sujeito igual na interação com o modelador, trata-se mesmo assim de uma cinta,
um corset capaz de conformar o corpo a um ideal já ultrapassado, e que exalta um arranjo
plástico ou configuração de silhueta que reenia ao papel temático feminino mais tradicional, a
mulher redonda, com curvas no quadril e na cintura, cuja manifestação, como vimos,
encontra-se completamente homologada ao papel social da procriação – ainda que ele
apareça, na “Little X”, como uma procriadora mais dinâmica, ativa.

128
IV.2. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit

Figura 38. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, 1965. ‘Body’ confeccionado em jersey com Lycra®,
abertura higiênica em colchetes e aros metálicos no busto, com cintura medindo 54 cm. À direita, outra peça da
mesma linha, a calcinha modeladora de cintura alta, confeccionada no mesmo material. Imagem: Victoria &
Albert Collection. V&A:T.443-1988.

Figura 39. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, desenho técnico no qual é possível apreender detalhes
das costas e do acabamento inferior do body, ambas não disponibilizadas pelo acervo do museu. Imagem:
Underwear Fashion in Detail.
129
Apesar das inovações matéricas trazidas pelo fabricante da “Little X”, sua “invenção”, em
realidade, não passa de um aprimoramento da cinta, em voga desde os anos 1930. O mesmo
não poderia ser dito deste modelo de lingerie modeladora, o “bodysuit” – em tradução literal
do inglês, um “conjunto para o corpo”.
Após o dito “abandono do corset”, nos anos 1920, a lingerie feminina foi tornando-se
progressivamente menor e fragmentada, até a configuração que nos é comum até hoje:
calcinha, soutien ou camisete e, quando necessário, um modelador diretamente sobre a pele
(no caso dos anos 1930-60, a cinta). Este modelo, precursor de lingeries como o Shape
Couture, é uma das primeiras peças a re-unir todas as necessidades da roupa de baixo
feminina em uma: o bodysuit é calcinha, soutien e modelador em peça única, que pode ser
vestida diretamente sobre a pele, eliminando a necessidade do uso de mais peças
simultaneamente.
Tal e qual a Little X, um dos grandes diferenciais deste corset, em relação às cintas dos
anos 1930-50, é a mobilidade. Neste caso, no entanto, não é apenas a diferença na matéria que
contribui para uma nova configuração da liberdade de movimentos, mas o próprio desenho do
body que recria o conjunto de regras da postura e da dinâmica feminina. Como a Little X, este
corset é confeccionado em um tecido que contém Lycra® em sua composição, proporcionando
uma elasticidade em todas as direções. Mas ao contrário dela, sua constituição em peça única,
aliada ao desenho fechado entre as pernas, como um maiô (ou collant de ginástica), permite
uma mobilidade total das pernas.
Traçando um paralelo hipotético, caso Mary Quant decidisse criar uma publicidade
que exaltasse o movimento permitido por este body, ao invés do salto em “X” escolhido para
a publicidade da “Little X” – que manifesta uma abertura das pernas em apenas 90˚ – a
modelo do anúncio provavelmente apareceria performando um split ou spacatto, com abertura
das pernas em 180˚. Mesmo deixando de lado as competências necessárias apenas aos
esportes mais extremos, esta diferença ainda é da maior importância no âmbito da moda, do
traje, e do contexto social que abriga estes dois modeladores.
Começando pela moda, que é provavelmente uma das maiores motivações na escolha
de um modelador ou outro, quando falamos da década de 1960, pensamos imediatamente na
minissaia, que foi a grande marca desta geração. A minissaia, por sua vez, opõe-se ao vestido
rodado e inflado com anáguas, conhecidas em inglês como petticoat, em voga na década de
130
1940-50. Neste contexto, portanto, há um desenvolvimento da importância das pernas nos
trajes, que vai do mostrar apenas as canelas – de maneira que a constrição das coxas nas
cintas não aparecia como um “problema” – ao mostrar as pernas inteiras – o que tornou o
desenho tradicional da cinta um impedimento ao uso de uma das tendências de moda mais
expressivas desta época.
As duas formas de constrição, portanto, seja a Little X, seja este bodysuit, aparecem
ligadas a duas tendências da moda do período, uma mais tradicional (ou mais “comportada”),
a outra mais revolucionária, rebelde. As duas, igualmente, são voltadas para o público jovem.
No caso da Little X, este apelo é presentificado pelas cores chamativas e brilhantes, mas neste
modelador, ele aparece já na nomeação da linha, “Youthlines”, ou “linhas da juventude”.
Tratam-se de duas “juventudes” distintas, mas coexistentes em uma mesma época.
Como analisado, a Little X é uma versão mais ajustada do corpo da década de
1930-50, mas opta por manter o mesmo desenho, além de perpetuar, pela presença das ligas, o
uso das meias de seda. Ela enuncia, portanto, que a nudez das pernas não é uma maneira
correta de apresentar-se, e igualmente delimita o comprimento de saia “permitido”, uma vez
que uma saia muito curta proporcionaria a visão da cinta e das ligas. No bodysuit, no entanto,
qualquer comprimento de roupa abaixo da linha da calcinha é permitdo, bem como o uso de
calças e bermudas, três configurações de traje que exaltam uma mobilidade feminina que em
nada difere daquela que, outrora, aparecia como exclusividade masculina.
Este body ataca, portanto, também a diferenciação entre os gêneros. Se as cintas
“condenam” as mulheres ao uso de saias, uma vez que seu desenho não permite o uso de outra
peça de roupa que separe as pernas, o bodysuit liberta as mulheres para vestirem as roupas
que desejarem, e performarem nelas os movimentos e ações que bem entenderem.
Em termos de modelagem do corpo, este corset também aparece mais como uma peça
de cobrir o corpo do que de transformá-lo, mas alguns aspectos plásticos manifestam que,
ainda que pouco, esta lingerie é capaz de modelar o corpo.
Primeiramente, há uma perceptível gradação cromática, que vai da transparência total,
nos seios, ao quase opaco, na faixa central que vai de entre os seios ao fundilho. Este degradê
é obtido por meio da repetição do material, conforme a necessidade de contenção/constrição
de cada área. Nos seios, ela é inexistente, por isso há apenas uma camada do material, que é
liso e não possui nenhuma modelagem, à exceção da pence no centro de cada taça, que visa
acomodar o desenho natural dos seios, suportados por aros metálicos reforçados. A segunda
131
gradação é a camada única de um tecido um pouco mais fechado, mas ainda transparente, que
forma as laterais (e a traseira) do body, onde uma constrição “média” é necessária.
Finalmente, na faixa central, que contorna o abdome central e abre-se, alargando-se no baixo
ventre, há a dublagem do material mais fechado, e o contorno com as costuras de refoço na
cor preta, em zigue zague.
O contorno em preto será reiterado no elástico de acabamento (visível na figura 38, à
direita), que dá a volta ao redor das pernas, e também no logo aplicado entre os seios, no qual
as pétalas da flor são contornadas com um bordado espesso, igualmente na cor preta. Este
detalhe aparece acompanhando as áreas de maior constrição, contornando-as, e é um elemento
ausente no alto, no qual as linhas das costas e do soutien são contornadas em branco, sem
nenhum detalhe de destaque.
Há, de maneira semelhante, uma gradação de espessura da linha preta: a costura, mais
fina, seguida do elástico que dá a volta nas pernas, e finalmente o bordado do logo, que é
levemente mais espesso que a parte aparente do elástico, quando a peça encontra-se vestida.
Considerando este mecanismo de destaque como atribuição de valor a cada uma destas áreas,
a ordem hierárquica de importância de cada um destes elementos seria, em primeiro lugar, a
marca “Mary Quant”, em segundo as pernas e, em terceiro, a faixa centro frontal contornada
pelo zigue e zague.
A começar pela marca, apesar das controvérsias, a minissaia é uma “invenção”
geralmente atribuída à própria Mary Quant. No contexto de um modelador cujo grande
diferencial é permitir o uso desta importante peça de roupa, é natural que a própria marca
coloque-se, no centro do peito, como sujeito que competencializa o corpo para seu uso. O
fabricante aparece como parceiro, destacando que a liberdade das pernas, importante para o
sujeito usuária (e por isso destacada no desenho do modelador), é um diferencial da marca
Mary Quant, e por isso também ela é importante, merecendo destaque no desenho do body. A
marca, no entanto, não possui uma tipografia ou um verbal manifestado, e a flor pode ser lida
igualmente como uma decoração, um detalhe de embelezamento deste corset, sugerindo que
não se trata de uma escolha fortemente investida de apelo publicitário – como o é, por
exemplo, a presença verbal de “Calvin Klein”, em cores contrastantes, nos elásticos das
calcinhas e cuecas – mas de uma presença mais sutil do fabricante em seu produto.
É possível ler tais manifestações, no plano do conteúdo, como uma isotopia da
parceria entre Mary Quant e sua usuária, para a construção de um corpo emancipado dos
132
modelos opressores do corpo feminino. O bodysuit é um tipo de corset construído em tecidos
delicados, macios, estésicos, que não proporciona uma constrição além do necessário,
cobrindo o corpo o mínimo o possível, ao mesmo tempo em que, pela liberdade das pernas,
permite à usuária uma mobilidade muito maior das pernas. Esta mobilidade, por sua vez, é
também um duplo “fazer ver” as pernas, que aparecem como ponto mais importante do corpo.
Por um lado, a ausência de ligas permite que as pernas estejam nuas, sem meias, e que sejam
exibidas em uma minissaia, sem o risco de mostrar um modelador longo demais, como a
Little X. Por outro, o bodysuit permite o uso de calças compridas que, apesar de não
mostrarem a pele das pernas, mostram seu formato, diferente dos vestidos rodados que
dissimulam as linhas das coxas.
Diversamente, é possível afirmar que este é o único caso analisado neste trabalho em
que a topohierarquia do corpo encontra-se no exterior do corset, em uma região não
englobada por ele. Ainda que exista uma modelagem do corpo – que, tradicionalmente,
concentra-se em sustentar os seios, achatar o abdome e a cintura – esta perde em importância,
quando comparada à mobilidade e visibilidade conferida às pernas, deslocando o olhar do
enunciatário para baixo, mas não para o ventre, para a região sexual, e sim para as próprias
pernas nuas.
Não menos importante, a plástica deste bodysuit também manifesta, como apreendido
no Shape Couture, um traço de constrição sexual, uma vez que o corset recobre o genital com
o material mais rígido, além de selá-lo com uma fileira de colchetes que abrem e fecham a
abertura higiênica. Este fechamento do sexo aparece, neste corset, como a condição para a
conjunção com a mobilidade das pernas, e é investido, da mesma maneira que o Shape
Couture, de um valor de negação do papel feminino. Esta negação, porém, não aparece ao
lado da sujeição do corpo a um padrão, que não passa de um novo papel programado de
feminino, mas homologa-se a uma luta por emancipação. A mobilidade das pernas combinada
ao fechamento do genital aparece investida de um valor de igualdade ao outro sexo, o
masculino, como uma reivindicação de dois importantes direitos: aquele de mover-se
livrevemente, e aquele de não procriar.
Os dois modelos identificados na década de 1960, portanto, constroem uma oposição
de base entre duas tendências de moda do mesmo período, que homolam-se a dois modelos do
feminino igualmente vigente. O primeiro deles, presentificado pelo uso da Little X, preserva
uma topohierarquia do ventre como lugar do papel feminino, centro de seu corpo e de sua
133
existência no social. No segundo, no entanto, este centro é deslocado para as pernas, que
deixam de ser constritas e cobertas, formando uma outra maneira do feminino,
competencializado com uma dinâmica semelhante àquela dos homens.
Esta parceria, na qual Mary Quant e o corpo descobrem juntos esta silhueta mais livre,
é produtora de um forte sentido de libertação feminina, manifestada por uma topohierarquia
do baixo sobre o alto. Esta valorização, no entanto, opõe-se à hierarquização por meio do
destaque desproporcional dos quadris e do aparelho reprodutor, mas aparece por meio da
atribuição de valor às pernas, protagonistas da moda de 1960. A modelagem do tronco em um
certo formado, portanto, não é o principal alvo deste corset, ainda que alguma constrição seja
exercida em pontos estratégicos. O objetivo principal não é da ordem da constrição, mas da
liberdade: a liberdade das pernas, que foi pouco a pouco construída naquele contexto, como
uma das facetas da liberdade feminina.

IV.3. Stays (1795)

Até então, nas duas peças analisadas, não é possível identificar uma interação entre corpo e
corset que localize-se em um ajustamento “puro”. Ainda que exista uma constrição mais
ajustada, apoiada em um arranjo matérico mais estésico, as configurações de corpo
produzidas pelos dois corsets analisados acima não assumem um caráter subcontrário,
localizando-se ambos em posições consolidadas como oposição de base. O primeiro termo,
presentificado pela Little X, acaba por reenviar a uma programação anterior do corpo
feminino, ao passo que o bodysuit de Mary Quant abre caminhos que apontam para a
separação dos programas narrativos do corpo e do corset, sugerindo um caminho para o
acidente.
O que observa-se, portanto, é que nos dois corsets analisados até aqui não existe uma
complementaridade entre o papel do corset e aquele assumido pelo corpo, quando vestido
com uma das peças analisadas acima. Ainda que o corset apareça investido de competências
estésicas, o corpo formado acaba por reenviar a outras possibilidades dos papéis femininos.

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Figura 40. Stays, 1795. Peça confeccionada em algodão, costurada à mão com linha de seda, reforços em fita de
seda e barbatana de baleia, forrada com linho. Medida da cintura (acima das costelas, como era a moda do
período): 57 cm, com a peça completamente fechada. Esta peça é considerada um modelo de transição, uma vez
que é possível identificar os traços dos stays de 1780 (figura 9), que foram adaptados pelo corsetier. Eleri Lynn
atribui esta necessidade de adaptação ao reaproveitamento de materiais pré-cortados, utilizados na confecção dos
stays até o final do século XVIII (LYNN, 2001), obrigando os corsetiers ao improviso, produzindo um novo
modelo que servisse à nova moda dos vestidos, mais rentes ao corpo, de cintura alta e sem crinolina, mas com os
materiais disponíveis já adquiridos, evitando assim prejuízos. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.
237-1983.

Na peça acima contudo, o par de stays de 1795, observamos a confluência da competência


estésica de dois sujeitos principais da interação, o corpo e o corset, que reverberam o “fazer
sentir” neles investido nos demais sujeitos da interação, como o corsetier, o vestido que
recobrirá o corpo formado, e consequentemente, os demais sujeitos circundantes, formadores
do contexto social deste corpo trajado.
Após analisarmos as lingeries do século XXI e dos anos 1960, retornamos ao final do
século XVIII, quando esta peça rudimentar presentificou a primeira grande ruptura com o
corset tradicional. Trata-se da passagem de uma moda que perdurou por quase dois séculos,
presentificada pelo traje à francesa, para a moda neoclássica, que durou apenas algumas
décadas, do final do século XVIII ao início do XIX. Longe de constituir um fenômeno isolado
da moda vestimentar, o período neoclássico investiu valores semelhantes também na
arquitetura, na literatura (ECO, 2004), na pintura e nas demais maneiras de viver e interagir,

135
todas elas relacionadas a um saudosismo da antiguidade clássica, exaltando um modo de vida
mais selvagem, próximo da natureza.
O primeiro “sintoma” desta moda é certamente a queda das perucas, das crinolinas,
dos tecidos pesados e até mesmo do corset, cujo uso foi combatido e desencorajado (LYNN,
2010). Uma das marcas mais pronunciadas do neoclássico é a exaltação de tudo aquilo o que
é “natural”, inclusive o próprio corpo: no lugar dos quadris exageradamente construídos, em
oposição ao busto constrito nos rígidos stays do período anterior, a silhueta do neoclássico é
mais reta, exibida em tecidos leves, esvoaçantes e transparentes, com decotes que exibem o
desenho original dos seios.
Este corpo, no entanto, era igualmente inatingível para a maioria das mulheres, como
ressalta Eleri Lynn, ao dizer que longe de constituir um padrão natural de beleza, a moda do
final do século XVIII era apropriada apenas para mulheres naturalmente magras (LYNN,
2010). Neste contexto, o abandono de qualquer lingerie constritiva não aparece como
alternativa, uma vez que uma grande parte das mulheres do século XVIII não era dotada da
silhueta almejada por esta tendência da moda.
Apesar de aparecer como negação da moda anterior, do corpo formado para o traje à
francesa por meio de corsets e crinolinas, muitos traços plásticos em comum com os stays
anteriores (figura 9) podem ser apreendidos do desenho deste corset. A direção oblíqua das
barbatanas, as alças e os picotes laterais, chamados de tabs, e até mesmo os acabamentos
utilizados – os ilhoses e as costuras feitos à mão, os reforços em fitas de seda – reenviam
imediatamente à moda do traje à francesa. Para Eleri Lynn, esta semelhança deriva do uso de
materiais pré-cortados e pré-moldados na fabricação dos stays anteriores, que obrigaram os
corsetiers a adaptarem-se à nova moda, pelo reaproveitamento da matéria prima já disponível
(LYNN, 2010), o que explicaria igualmente o aspecto rudimentar, improvisado desta peça.
Nos termos da sociossemiótica de Landowski, este improviso pode ser lido como um
ajustamento (LANDOWSKI, 2005), primeiramente, entre o corsetier e o corset. A partir de
um material pronto, destinado a tornar-se um par de stays como aquele analisado no capítulo
II – caso sua programação fosse seguida – o corsetier vê-se obrigado a adaptá-lo a uma nova
demanda de corpo. Neste contexto, todo o seu conhecimento, seus materiais e suas
ferramentas tornam-se inúteis, pois seu uso pressuposto (LANDOWSKI, 2009) é capaz de
produzir apenas uma peça de roupa cujo fazer encontrava-se já defasado por uma nova
tendência de silhueta.
136
Resta ao corsetier, portanto, adentrar o domínio da prática (LANDOWSKI, 2009), em
oposição ao uso das matérias e utensílios. Juntos, corset, corsetier, tesouras, linhas, agulhas e
tecidos encontram um novo modo de interação, fundado em um regime de sentido inseguro,
arriscado, no qual todos os sujeitos são igualmente importantes para a interação, e encontram-
se em contato, sem a mediação de objetos de valor.
A descoberta do formato do corpo presentificado pelo formante eidético deste corset,
no qual a curva é introduzida, passa necessariamente por uma descoberta do próprio corpo
feminino (figura 2), que não era contemplado no traje à francesa. Familiarizado apenas com o
corpo excessivamente constrito e reto daquela roupa de baixo (figura 7), o corsetier nos deixa
as pistas de suas dificuldades no próprio trabalho realizado, por exemplo, nas taças: em lugar
de um desenho arredondado produzido por uma pence ou por outra modelagem plana, há o
desajeitado franzido gradual do tecido, que serve igualmente à função de bojo, de suporte dos
seios. O mesmo “improviso” pode ser apreendido da desajeitada e irregular alça aplicada nas
costas, na altura da cintura, que servia tanto como apoio para a cauda do vestido, quanto para
dissimular a curva da lombar, considerada “indecente” no período (LYNN, 2010).
Ao ajustar os stays à nova demanda do corpo, o corsetier necessariamente ajusta-se ao
corpo feminino original, até então por ele desconhecido: em lugar de confeccionar uma
pesada “armadura”, um exoesqueleto que alteraria completamente o corpo feminino, o
corsetier “mutila” os stays – cortando sua frente e introduzindo nela um par de taças – para
permitir que o desenho do corpo torne-se visível por baixo da roupa. Semioticamente, é
possível ler este fenômeno como a passagem do corpo de objeto a sujeito da interação,
perante os olhos do alfaiate/corsetier.
Entre corset e corpo, o mesmo ocorre quando o primeiro deixa de oferecer constrição e
passa a oferecer suporte. O emblemático desenho do decote do neoclássico, com seios muito
baixos, arredondados e separados, só pode ser realizado por meio de uma ação do corpo: não
é o corset quem empurra os seios para baixo, mas eles caem sobre as taças. Igualmente, em
lugar de impor um desenho reto à coluna, como faziam os stays anteriores, o corset cria um
volume, por meio de uma alça de tecido, que empurra o vestido, para que o efeito almejado,
na traseira, seja construído. Da mesma maneira que o corsetier busca encontrar uma nova
configuração de modelagem em parceria com seus instrumentos de trabalho e materiais,
também corpo e corset encontram-se em um regime de união, no qual ambos são
protagonistas da produção do sentido almejado.
137
O sentido construído no corpo, por sua vez, possuirá um forte impacto na silhueta que
se manifestará no vestido. No exterior, a grande mudança será aquela apreendida no desenho
dos seios, local de maior destaque do vestido, que aparece como reiteração da importância
conferida a esta região do corpo no trabalho do corsetier.

Figura 41. Vestido, 1800. Confeccionado em múltiplas camadas de musselina bordada com linha de algodão.
Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.785&A-1913

Retomando as questões levantadas nas analises dos vestidos, no capítulo II, é possível
perceber que este traje coloca-se em posição de negação dos dois vestidos formadores da
oposição de base apreendida naquele recorte do corpus. Ainda que o tecido escorra pelo chão,
projetando-se no espaço, sua composição em múltiplas camadas transparentes e graduais não
parece delimitar um espaço pessoal, mas fundir-se ao espaço no qual encontra-se: a
sobreposição do tecido, que vai cada vez um pouco além da camada anterior, cria um arranjo

138
cromático de nuances de diferentes intensidades de transparência, produzindo um efeito de
sentido de gradação, ou progressão da abertura do limite estabelecido.
O efeito apreendido do formante cromático é, por sua vez, uma propriedade matérica
do vestido: construído em algodão, os efeitos de opacidade e transparência nada mais são que
diferentes fiações da mesma matéria: quanto mais aberta a fiação da musselina, maior o efeito
de transparência. Sua repetição, por sua vez, cria a impressão de fechamento e,
consequentemente, a opacidade da cor branca. Este efeito de sentido de abertura aparece
como reiteração do mesmo efeito apreendido no corset, na substituição da matéria enrijecida
“linho” pelo uso do algodão sem a aplicação de cola. A própria diminuição da quantidade de
barbatanas de baleia é produtora de uma abertura literal, como se a “fortaleza” de barbatanas
identificada no desenho dos stays de 1778 fosse dissolvida, substituída por uma estruturação
mais pontual, mais ajustada às necessidades.
Seja na frente, seja nas costas, o maior destaque do vestido encontra-se no alto, na
profundidade e volume do decote, ou no volume concentrado no meio das costas, de onde
pende a cauda do vestido. Mas mais importante do que quaisquer topohierarquias que possam
ser apreendidas deste traje, o aspecto mais marcante deste vestido é a proximidade demandada
por sua apreensão: seu monocromatismo, por exemplo, dificulta a apreensão do belíssimo
trabalho do bordado na mousselina. À distancia, este traje pareceria pouco elaborado, um
simples vestido branco. Na proximidade entre sujeitos, contudo, é possível perceber que trata-
se de uma composição em listras, alternando faixas lisas e bordadas com um motivo floral,
em arabescos de galhos e pequenas flores. Esta proximidade, no entanto, não é impositiva,
prescritiva, como é a bainha suspensa do traje à francesa. Pelo contrário, a gradação das
musselinas convida a uma aproximação lenta, que proporciona uma mescla entre o espaço do
enunciador e do enunciatário, promovendo igualmente uma igualdade entre eles, borrando os
limites entre um e outro.
Esta gradação encontra-se já presente no arranjo do corset, não de maneira poética,
como a sobreposição de musselinas, mas pela descontinuidade das linhas que formam os
limites entre o corpo e o corset. Seja nas tabs, seja no franzido das taças, o corset não desenha
uma linha reta, contínua, entre ele e o corpo, mas sim um apanhado de linhas quebradas, em
zigue zague. Sem a existência da crinolina, que quando combinada ao corset torna-se, com
ele, uma única peça, é com o corpo que este corset funde-se.

139
A discontinuidade das linhas aparece, da mesma maneira que na roupa de baixo do
traje à francesa, como a sinalização da necessidade da colaboração de outro sujeito – no caso
dos stays de 1780, a crinolina – para a formação da silhueta. Naquela lingerie (figura 7), a
única linha descontínua do corset concentrava-se no seu acabamento inferior (as tabs), e
combinava-se à linha descontínua do acabamento superior da crinolina (o fechamento
franzido), local onde as duas peças uniam-se. No alto do corset e na bainha da crinolina, no
entanto, as linhas eram retas e contínuas, separando o domínio do corpo construído daquele
do corpo original. Neste corset, diferentemente, as linhas descontínuas encontram-se tanto no
alto quanto no baixo, manifestando que o sujeito “adjuvante” da formação do corpo é o
próprio corpo, cujos seios e cintura devem encaixar-se no corset.
Esta mesma descontinuidade de linhas será reiterada no desenho em camadas do
vestido. No alto, as descontinuidades matérico-cromáticas permanecem convidando o corpo –
os braços e o colo – a complementar o arranjo. Na bainha, a gradação de limites convida o
outro, o sujeito com quem busca-se inter-agir – e neste caso, não trata-se apenas de sujeitos
humanos, mas do próprio sujeito ambiente, preferencialmente o ambiente natural, como pede
o período – a complementá-lo, fundindo-se a ele.
É possível apreender deste traje uma forte isotopia da união não hierarquizada: entre
corsetier e corset, entre corset e corpo, entre conjunto corset-corpo e vestido, e entre o todo
do sujeito, formado por todos os atores anteriores, com aquilo que encontra-se exterior a ele,
sejam os sujeitos humanos que o circundam ou seu próprio ambiente. Neste sentido, não
existe uma hierarquização de lugares do corpo, uma vez que a própria hierarquia – promotora,
por sua vez, da separação – deixa de ser um valor. Pode-se interpretar, finalmente, que este
arranjo formado por traje e corset é promotor de uma interação mais livre, em lugar daquela
extremamente didática promovida pelo traje à francesa.
Na ausência de maneiras constritas, marcadas pelo traje, é possível a criação de
sentidos mais livres também para o corpo e para o próprio feminino. Na abordagem de um
recorte dedicado às tendências de transição, esta certamente é aquela que melhor presentifica
a manifestação do início de uma tendência, na qual não é possível apreender seu desfecho, ou
sua consolidação em uma próxima configuração de corpo, o que talvez explique a
efemeridade desta forma de “constrição” no contexto da moda ocidental.

140
IV.4. Corset (1820)

Figura 42. Corset, 1820, confeccionado em linho com camada externa em algodão, decorado com trapunto em
linha de seda e barbatanas de baleia. Medida da cintura: 52 cm, com o corset completamente fechado.
Considerando o modelo anterior como marca da ruptura com os stays, este modelo presentifica o que pode ser
abordado como o desenvolvimento e aperfeiçoamento das tendências que aparecem de forma mais rudimentar
nos stays de 1795: o espaço para os seios aparece modelado de maneira mais eficiente, e a silhueta é alongada
até a altura dos quadris, eliminando a necessidade a improvisada alça nas costas. Imagem: Victoria & Albert
Collection. V&A:T.57-1948

Se os stays de 1795 presentificavam um sentimento legítimo de ruptura com a moda anterior,


do traje à francesa, a continuidade da moda neoclássica, até o início do século XIX,
desenvolve-se enquanto uma consolidação de um novo ideal de beleza instituído,
acompanhada dos aperfeiçoamentos necessários. Este aprimoramento manifesta-se
principalmente nas evidentes alterações do desenho do corset, que busca produzir um sentido
semelhante à silhueta de 1795. A diferença, no entanto, é apreendida no interior da roupa, tal e
qual analisamos na moda do Tea Gown, do início do século XX, no item II.3.

141
A moda levemente “rebelde” do final do século XVIII, associada à oposição ao Antigo
Regime e à monarquia vigente, sobretudo na França, tornou-se, no início do século XIX, a
nova moda vigente. O que outrora surge como busca por liberdade aparece, nesta moda, como
a reescritura deste ideal em atributos que presentificam o desenho de corpo almejado como
padrão de beleza: o desenho pronunciado dos seios, os ombros baixos, com aspecto “caído”, a
cintura alta marcada, e os quadris estreitos, sobre os quais o vestido deve cair em uma silhueta
mais afunilada, rente ao corpo.

Figura 43. Georges Rouget, “As srtas. Mollien”, 1811. O retrato de duas moças do início do século XIX
presentifica bem os traços plásticos descritos como valorizados pela moda neoclássica: os seios redondos, baixos
e separados, expondo o colo em um decote pronunciado, e o desenho descendente, “derretido” dos ombros,
assim como a cintura alta marcada e a silhueta magra, permitindo o uso do vestido leve e rente aos quadris.
Imagem: História do Vestuário no Ocidente.

O desenho do corset analisado no item anterior surge de uma união entre corsetier, corset e
corpo, da qual emerge um desenho de silhueta mais livre, ajustado. A consolidação da
tendência ali produzida, no entanto, cria o desejo de re-produzir esta configuração, não
investida do conteúdo de liberdade do corpo – cujo resultado deveria ser a exaltação de

142
quaisquer desenhos de corpo natural – mas enquanto imitação dos traços plásticos, inclusive
exagerados, enfatizados, conferidos ao corpo.
Esta busca por eficiência da modelagem fica evidente no formante eidético do corset
que, apesar de formar uma silhueta muito semelhante àquela do corset anteior, opõe-se aos
stays de 1795. As linhas descontínuas, por exemplo, são substituídas por linhas retas no limite
superior e inferior do corset, e a silhueta curta, que recobria apenas dos seios à cintura alta,
passa a recobrir o torso todo, até a linha dos quadris.
A matéria mais suave, o algodão, é mantida, bem como todas as propriedades
identificadas no corset anterior (figura 40) permanecem presentes. Trata-se de um tecido de
trama mais aberta que o linho, de toque mais macio, que promove uma maior estesia no
contato com o corpo. Contudo, ao contrário do uso identificado nos stays de 1795, aquele da
matéria lisa ou repetida pelo franzido, neste corset de 1820 ela é reforçada por meio do
trapunto, uma espécie de bordado em “ponto atrás”, com linha espessa, que atravessa e une as
duas camadas de tecido, endurecendo-as.
O uso do trapunto, por sua vez, auxilia na identificação de áreas de maior constrição,
uma vez que sua função é aquela de endurecimento da matéria macia e maleável (o algodão)
utilizada na confecção deste corset: a maior concentração de bordados encontra-se na lateral
da cintura alta, no centro dos seios, e estende-se, na frente, ao longo de todo o comprimento
do corset. As áreas englobadas pelo trabalho em trapunto, no entanto, não são as únicas áreas
constritivas desta peça, uma vez que até mesmo as alças são reforçadas, cuja função é
claramente aquela de forçar os ombros para baixo – o que explicaria a distância reduzida entre
a linha das alças e da cava, certamente produtora de um grande incômodo durante o uso.
O ponto mais importante do traje, contudo, permanece sendo o seio, que é duplamente
destacado no desenho do corset: pela constrição do tórax, local onde localizava-se a “cintura”
do período, e pela grande seta formada pelo recorte frontal, onde localizam-se costuras
oblíquas que abrigam as barbatanas, as quais atuam reforçando a frente. Este detaque é
reiterado pelo desenho do trapunto nas próprias taças, cujo desenho do bordado contorna os
seios, apontando para eles e para a linha do decote.
Se no corpo formado pelos stays de 1795 há uma desvalorização da hierarquia no
desenho do corpo, a consolidação daquela silhueta nesta tendência de moda funda-se na
valorização do colo, mais precisamente da linha formada pelos ombros e seios “caídos”, que
criam uma marcada relação de visibilidade da porção superior do torso. O olhar é atraído para
143
o alto, para o decote e o peito nu, únicas regiões do vestido que recebiam, neste período,
algum adorno. A constrição da cintura alta, portanto, atua para o destaque principalmente dos
seios, a partir dos quais o olhar é carregado para os ombros e para o colo.
O destaque tradicional dos atributos femininos relacionados à sexualidade não
encontra-se manifestado por este corset, mas a formação deste corpo a partir de uma
setorização – semelhante àquela apreendida nas linhas da bermuda de Dr. Rey (figura 30) –
remete à conformação de um corpo natural a um corpo ideal. Independentemente deste corpo
ideal ser enaltecido como muito próximo àquele “natural”.

Figura 44. Corset, 1820. Detalhe do bordado em trapunto na altura das taças, no qual o desenho progressivo em
losangos e semicírculos auxilia no endurecimento da região abaixo dos seios, conferindo suporte a eles, ao
mesmo tempo em que, quando lido como decorativo, o bordado cria linhas que colocam os seios em posição de
visibilidade privilegiada no desenho do corset. Imagem: Victoria & Albert Collection.
144
Entre dois corsets relacionados a um mesmo corte de vestido, cria-se uma oposição
subcontrária, entre a construção de um efeito de sentido de liberdade e leveza, obtido no
entanto pela modelagem constritiva do corpo, e a criação de uma condição mais livre do
corpo. A manifestação desta silhueta, no exterior, é muito semelhante: o corpo produzido por
ambos os corsets apresentará seios pronunciados, arredondados e “caídos”, com um desenho
de colo mais amplo, ombros de desenho descendente, e cintura alta (tórax) destacada. O que
separa os dois modelos, contudo, são os meios empregados na obtenção desta silhueta: em um
caso, é a voz do próprio corpo, apoiado sobre o corset, que produzirá este desenho exterior;
no período seguinte, é outra vez a voz do corset, que constringe e modela, a configurar o
corpo em um desenho novamente construído, que não pode mais manifestar um emblema de
liberdade, pois abarca, mais uma vez, a dupla sujeição, do corpo ao corset, e da silhueta a um
ideal ditado por outrém, pela moda.

IV.5. Amarração

Os quatro corsets analisados neste recorte do corpus – a inovadora cinta “Little X” (figura 34),
a primeira elástica em todas as direções; o primeiro bodysuit, desenhado por Mary Quant
(figura 38); os stays de 1795, modelo de transição para o período neoclássico (figura 40); e
finalmente, o corset de 1820 (figura 42), que traz um aperfeiçoamento dos traços plásticos
introduzidos pelos stays de 1795 – apresentam, sobretudo em seu formante matérico, traços
de uma interação mais ajustada com o corpo. Seja na utilização de matérias elásticas, mais
abertas, seja na substituição do linho reforçado com cola pelo algodão, seguido de uma
diminuição do uso das barbatanas de baleia, os quatro corsets analisados aparecem como
negação dos corsets pertencentes ao recorte do capítulo II, uma vez que seus arranjos
configuram-se como peças mais maleáveis, macias, menos rígidas e, consequentemente,
menos impositivas.
Desta maneira, considerando o papel do corset como um aspecto isolado, sua
competência sensível pode ser apreendida nas quatro relações analisadas. Começando pela
Little X, a possibilidade até então inédita de movimentação em todas as direções presentifica
uma maior subjetificação do papel do corpo na interação com a cinta. O mesmo pode ser
apreendido do bodysuit de Mary Quant, não tanto pela elasticidade da peça – que, após o
145
lançamento da inovadora Little X, já não constituía uma grande novidade no mundo da
lingerie – mas principalmente pela liberdade total conferida às pernas, fruto da diminuição do
seu comprimento, e aliada ao desenho de maiô ou collant, que une todas as roupas de baixo
necessárias em uma única, produzindo, além da mobilidade, uma maior dinâmica e
praticidade da lingerie feminina. O mesmo “respeito” ao corpo feminino, apreendido
sobretudo no formante matérico dos corsets, é reiterado nos subcontrários, onde o corpo
assume ora um papel igual ao do corset, na interação com os stays de 1795, ora um papel
hierarquizado, que muito lembra aquele do destinatário, como analisado no capítulo III, no
recorte do corpus relativo ao século XXI.
Seja nos contrários, seja nos subcontrários, a silhueta formada pelos dois termos em
relação de oposição é semelhante, senão idêntica. A linha que separa a sujeição do corpo a um
ideal – apreendida no uso da Little X e do corset de 1800 – e sua emancipação – presente no
uso do bodysuit e dos stays de 1795 – é muito tênue, e não pode mais ser apreendida no
desenho exterior do corpo, manifestado pelo traje completo. Até mesmo as matérias utilizadas
são semelhantes: os tecidos com Lycra® nos modeladores dos anos 1960, e a combinação
entre algodão e barbatanas de baleia, no eixo do final do século XVIII e início do XIX. O que
separa os modeladores nos já explorados eixos e dêixis, portanto, é o sentido conferido ao
corpo que veste o modelador, resultado da interação entre estes dois sujeitos.
Partindo da oposição de base, formada pelo uso da Little X e do bodysuit de Mary
Quant, é possível perceber que um corpo de desenho semelhante pode remeter tanto a um
corpo mais tradicionalmente feminino, aquele dos anos 1930-50 – principalmente quando
apreendido em conjunto com o uso do soutien, necessário para complementar a modelagem
do torso – quanto a uma configuração de corpo de pernas livres, extremamente
revolucionária. Ainda que exista uma mudança no estado produzido no corpo – no qual uma
maior mobilidade passa a ser aceita, permitida – a silhueta não é recriada, quando tomada em
comparação ao padrão de corpo já em circulação desde meados dos anos 1930, o que
justificaria o pertencimento destes dois corsets ao eixo dos valores tradicionais. Ainda que
ocorra uma não-continuidade do papel temático do corset, a mesma ruptura não é apreendida
no desenho de corpo resultante de sua ação.
Nos subcontrários, de maneira semelhante, encontramos a união de uma mesma
tendência de corpo, mas com sentidos diferentes no interior do traje. Nestes dois corsets –
aquele de 1820 e os stays de 1795 – ao contrário dos modeladores da década de 1960, uma
146
expressiva ruptura com os corpos em circulação pode ser apreendida. Por um lado, há uma
inversão da hierarquização difundida do corpo, com ênfase no quadril, que cede lugar a uma
valorização do busto, ou de uma não hierarquização, via constrição, de parte alguma do torso.
Este deslocamento do olhar pode igualmente ser lido como um deslocamento do papel
temático feminino, uma vez que a visão do observador, o enunciatário, deixa de ser atraída
exclusivamente para os quadris, o baixo ventre e o sexo, e passa a ser convidada a explorar os
seios, o colo e o rosto. No conexto de dois séculos ou mais de uma moda de destaque
exaustivo dos quadris, esta tendência torna-se, mais que atual, verdadeiramente inovadora, ao
produzir um desenho de corpo que inverte a lógica estabelecida de formação da silhueta e,
com ela, dos regimes de visibilidade e interação entre os sujeitos de um dado contexto.
O mesmo corpo, assim, pode ser produzido a partir da sujeição ou da emancipação,
seja na silhueta magra dos anos 1960, seja no corpo de seios abundantes e ombros caídos da
virada do século XVIII para o XIX. A diferença concentra-se sobretudo na ação que o próprio
corpo espera do corset, ele mesmo demandando ora uma maior liberdade – e portanto, uma
maior autonomia – ora uma ação mais rígida, mais próxima da ação tradicionalmente
atribuída ao corset.
Do lado da emancipação, o papel de formador do corset é diminuído, tornando-se um
parceiro do corpo, cujo papel na realização da performance – ou do contato – é igual. Em
lugar de trans-formar o corpo, o corset cria o ambiente ideal para que a potencialidade da
silhueta se desenvolva plenamente, seja criando a liberdade das pernas, nos anos 1960, seja
provendo suporte, ao invés de constrição, aos seios e à coluna, no século XVIII.
Na formação do mesmo desenho de corpo a partir da sujeição, é possível perceber que
existe um maior protagonismo do corset, que ajusta-se à vontade do corpo, que demanda a
sujeição. Trata-se, em lugar do desejo por um estado de corpo mais livre, como aquele
promovido pelos stays de 1795 ou pelo bodysuit, do desejo da assimilação de traços plásticos
particulares, que demandam, por sua vez, uma ação mais severa do corset, que é convidado a
marcar a cintura com firmeza, no caso da Little X, ou a modelar tórax e ombros com maior
rigor, no corset de 1820.
O resultado desta segunda forma de inter-agir é a imposição de traços plásticos,
outrora relacionados a uma situação de liberdade, que são atingidos, em uma relação de
contrariedade ou contradição, justamente pela constrição, pela conformação, ou pela sujeição
do corpo.
147
Figura 45. Quadrado dos corsets reformulados, regidos pelo regime de ajustamento.

Após a realização das análises que ocuparam os três últimos capítulos, é inevitável perceber
que existe uma marcada reiteração de traços plásticos, que ocuparão sempre as mesmas
posições nos quadrados desenvolvidos até então. Trata-se, em primeiro lugar, da apreensão
das linhas em “X”, sempre presentes no primeiro termo da oposição de base: o
entrecruzamento de linhas presente no traje à francesa (figura 5), que repete-se no La Perla
Shape Couture (figura 22) e na modelagem da Little X (figura 34). De maneira semelhante,
nos corsets que ocupam a posição de implicação ao termo que apresenta o “X” em seu
desenho, encontramos três corsets que trabalham os tecidos do corpo a partir de sua divisão
ou setorização anatômica – trata-se do corset S-bend (figura 18), da bermuda de Dr. Rey
(figura 30) e do corset de 1820 (figura 42). Finalmente, na posição de negação do primeiro
termo, identificamos os corsets que promovem uma maior abertura do corpo, a partir de uma
minimização de sua ação, produtora de uma maior autonomia de seu desenho natural. Os três
casos que apresentam este traço plástico recorrente: o underbust de 1906 (figura 20), o slip de
TC Fine Intimates (figura 29) e os stays de 1795 (figura 40).
A principal marca do segundo termo da oposição de base, contudo, é aquela da
imprevisibilidade, que geralmente indica um caminho de ruptura com o próprio uso da
lingerie constritora, ainda que esta fratura encontre-se até então em um modo de existência
virtualizado, ou incoativo (GREIMAS & COURTÉS, 2012), ou seja, localizado antes do
início da ação. Elaborando melhor, é possível apreender, na roupa de baixo de 1880 (figura

148
11) o indício da queda do corset e da crinolina, ainda que este fato não encontre-se ainda em
curso. No caso do corset de Agent Provocateur (figura 25 e 26), diferentemente, a ruptura
com a modelagem do corpo encontra-se já realizada, mas o corset ainda encontra-se presente
de maneira simbólica, com apenas três de seus quatro formantes plásticos tradicionais
manifestados. Finalmente, no caso do bodysuit (figura 38 e 39), a modelagem do corpo
ocorre, mas deixa de ser capaz de produzir uma hierarquia do torso, afastando-se
completamente do papel temático apreendido do corset tradicional. Estes três casos
manifestam três formas de ruptura – com a própria lingerie, com a conformação do corpo, e
finalmente, com o papel de deslocar a atenção do enunciatário para a parte constrita do torso.
Esta breve síntese das análises possui o objetivo de preparar uma base que axiliará na
compreensão dos sentidos estudados no próximo capítulo, no qual o caminho traçado pelos
três recortes do corpus expostos até então apresentará a realização das rupturas “gestadas”
pelas relações ali identificadas. Em outras palavras, os valores revolucionários que aparecem
apenas sugeridos no vestuário, desde o século XIX, tomarão vida no próximo capítulo como a
realização destes valores, responsáveis por explícitas rupturas tanto do papel do corset,
quando do papel do feminino formado a partir de seu uso, e suas consequentes reverberações
no âmbito social.
Confirmando a relação de implicação entre os valores manifestados neste recorte, e
aqueles que serão apreendidos no recorte seguinte, os mesmos quatro objetos aqui analisados
indicam, de certa maneira, o caminho para o acidente que será abordado em quatro momentos
históricos da moda e do feminino ocidental: a ruptura completa com quaisquer formas de
constrição; uma moda mais ajustada, procurando no corpo nu o suporte ideal para o vestido; a
assimilação extrema de um ideal já estabelecido; e finalmente, a assimilação de um traço
plástico emancipatório, mas traduzido na volta ao uso do corset.

149
V. Co-incidências entre corset e corpo

Um dos desafios da presente pesquisa foi aquele de postular o que seria uma descontinuidade
do uso do corset. Por um lado, a lógica remeteria ao não-uso, ou seja, ao corpo livre. Mas
seria possível, em um estudo analítico do uso da constrição, considerar a liberdade anterior ao
seu uso como o termo oposto à própria constrição? Esta dúvida delineou, portanto, que só se
poderia definir um termo de liberdade oposto ao termo constrição, considerando uma
liberdade que venha da ruptura com a constrição, ou seja, posterior à sua prática – ou uma
oposição de base entre contrição e liberdade seria formulada ao contrário, considerando a
liberdade como o primeiro termo do discurso, a partir do qual seriam definidos os demais.
Fundamentando, portanto, a ruptura com a constrição como o contrário de constrição, o
primeiro momento histórico que vem à mente é aquele das revoluções de 1968, da suposta
“queima do soutien”, da destruição de todos os objetos – e aqui empregamos o termo “objeto”
inclusive no sentido semiótico – que presentificassem a prisão, tortura e opressão feminina.
O movimento de 1968, porém, não é isolado ou sequer “repentino”: esta grande
revolução feminista foi gestada desde o século XVIII, quando as primeiras lutas por
emancipação feminina surgiram por toda a Europa, ainda que de maneira tímida, com pouca
adesão e visibilidade e, principalmente, pouco sucesso na conquista pelos direitos femininos
reivindicados (BEAUVOIR, 1976, vol. 1). Assim como estas lutas propriamente feministas
permearam o cenário histórico de todo o século XIX e XX, também a busca por um abandono
da constrição não é uma novidade dos anos 1960. O final da Belle Époque, nos anos 1910,
sofreu alterações turbulentas nas tendências da moda, primeiro pelos designs de Paul Poiret,
seguidos pela realização plena de suas proposições através do estilo de Coco Chanel
(BAUDOT, 2002), que propunham, ambos, não uma revolução violenta como aquela de 1968,
mas simplesmente um enaltecimento do corpo nu como suporte do vestido, uma
desconstrução do talhe feminino, em oposição ao corpo construído pelo corset e pela crinolina
então em voga.
Estes dois emblemas compõem, de um lado, um abandono do corset como
descontinuidade, dentro de uma tipologia do uso da constrição. Por outro, porém, é possível
analisar certas formas do uso como descontinuidade, uma vez que estes não apenas abalam os
papéis temáticos dos quais os atores encontravam-se investidos, como propõem uma
descontinuidade da regularidade simbólica dos atores corset e mulher.
150
Existe até a atualidade uma crença de que o uso do corset sempre foi excessivo e
radical, e de que todas as mulheres do século XIX possuíam cinturas menores que 50
centímetros quando, efetivamente, a cintura média dos 1850 possuía em torno de 66
centímetros (STEELE, 2001) – uma cintura entre os tamanhos 38 e 40 do padrão de medidas
brasileiro atual (Cf. FULCO & ALMEIDA SILVA, 2008). Este fato pode ser confirmado ao
retornarmos aos corsets analisados nos capítulos anteriores, percebendo que nenhum deles
apresentou uma medida inferior a 50 centímetros, mesmo quando completamente fechados
sobre o corpo – o que, como mencionamos no capítulo I, não constituía o uso comum de um
corset, que geralmente possuía uma abertura nas costas, sobre a coluna.
Isto não significa, no entanto, que a prática do tight lacing 15 não existiu: amplamente
documentada em registros históricos, cartas, revistas e inclusive fotografias do século XIX, o
extreme tight lacing existe até a atualidade e é praticado até mesmo de maneira competitiva: o
record de menor cintura do mundo é detido pela tightlacer americana Cathie Jung, cuja
cintura, ao vestir o corset, mede 15 polegadas (38.1 centímetros)16 . Mas é possível afirmar
que tal uso extremado encontra-se fora de uma programação do uso da constrição?
Os relatos acerca do tight lacing extremo nos dão diversas pistas sobre a
descontinuidade da qual esta forma do uso encontra-se investida. Primeiramente, e talvez o
mais importante, o extreme tight lacing não foi praticado exclusivamente por mulheres, mas é
praticado, inclusive até hoje, igualmente por homens (STEELE, 2001). Este uso, portanto, não
está relacionado à adequação a uma silhueta em voga, mas sim à formação de uma silhueta
outra, que não pertence ao âmbito da tendência de moda, ou mesmo a quaisquer gêneros. No
século XIX, o uso de corsets exageradamente constritivos também foi associado ao fetichismo
e a outras doenças psiquiátricas e, sobretudo, a silhueta extremamente constrita pelo corset,
seja ela de um homem ou de uma mulher, vem geralmente associada, nos relatos acerca desta
prática, ao grotesco, ao bizarro, à feiúra (STEELE, 2001). Se um uso programado do corset
vem investido da vontade de enquadrar-se em um ideal de beleza vigente, o desejo de afinar a
cintura ao máximo, parecer este tido como feio pelo mainstream de uma época, encontra-se
evidentemente à margem da moda, e igualmente da sociedade, uma vez que diversos

15 Em tradução livre, “laço apertado”, termo utilizado universalmente para definir a prática de diminuir a
circunferência da cintura além do padrão em voga, seja por homens ou mulheres, provocando uma modificação
radical do desenho do corpo. A definição “tight lacing” existe apenas na língua inglesa, o que levou David
Kunzle (2004) a precisar esta prática como uma “perversão” exclusivamente inglesa.

16 Cf. Guiness World Records, disponível em: http://www.guinnessworldrecords.com/smallest-waist-living-


person/
151
praticantes do tight lacing extremo eram (e ainda o são) tidos como freak shows, nos
despertando o interesse não pelo viés da admiração de um belo, mas pela curiosidade.
Outra questão que evidencia que tal prática beira o regime do acidente é o alto risco
envolvido nela, da qual podem decorrer diversos acidentes, no sentido ordinário do termo: a
constrição excessiva da cintura pode provocar deslocamento dos órgãos internos (como
retratado pela figura 3), enfraquecimento dos músculos abdominais (e uma consequente
dependência física do corset, ou de algum outro objeto ortopédico, para ficar sentado ou em
pé), e o afinamento, ou até mesmo o enfraquecimento e o rompimento das costelas – como
documentado por Ambroise Paré, em seus estudos de cadáveres femininos (apud. STEELE,
2001). Inclusive, acredita-se que alguns objetos do século XVII ou XVIII, os admirados stays
construídos em puro metal, eram supostamente destinados a “tratar” desvios de coluna e
enfraquecimento demasiado dos músculos abdominais (LYNN, 2010), indicando que a prática
de excessos, apesar de não ser comum, era observada desde então.
Landowski (2009) desenvolve, em seu artigo Avoir prise, donner prise, um estudo da
figura do virtuoso: aquele que leva o mecanismo de dépassement ao máximo, exaltando o
valor estético (e sublinhamos aqui que este valor não é necessariamente eufórico, ou positivo)
de sua performance ao extremo. No caso do tightlacer, há um duplo virtuosismo: do corpo e
do corset.
Ambas as performances são superadas, a do corpo, capaz de aguentar a constrição
cada vez maior de sua cintura, seguida de uma deformação igualmente pronunciada de sua
silhueta; e a do corset, capaz de produzir estas formas cada vez mais excepcionais, que beiram
o inquietante, sem ceder ou romper-se. Da mesma forma, a prática do extreme tight lacing
demandava a confecção de objetos especialmente idealizados para este fim, uma vez que os
fabricantes do século XIX dificilmente disponibilizavam modelos com medidas fora do
padrão (Cf. SELESHANKO, 2012; STEELE, 2001), conferindo também ao corsetier um
estatuto de virtuoso.
Para que tal maestria na performance seja alcançada, contudo, o autor destaca a
necessidade de uma “prática” de uma outra ordem, aquela fundada na regularidade do treino e
da disciplina, da repetição. Esta necessidade abriga em si um outro risco, desta vez do
esvaziamento de sentido da rotina (LANDOWSKI, 2009), ou de uma dessemantização
(GREIMAS & COURTÉS, 2012). Além do risco do corpo, esta prática carrega consigo o

152
risco da perda do sentido, através das repetições necessárias para atingir a admiração
almejada.
Deste modo do uso extremo varia um outro, que é igualmente destacado do contexto
programado. Trata-se do “corset obra de arte”, do corset como figurino: a lingerie modeladora
deixa de ser um sujeito do fazer, atuante na rotina, destinador de uma configuração de corpo,
para tornar-se um paradigma do guarda-roupas que pode ou não fazer parte de um look, e cujo
papel não é mais fundamental na transformação do corpo. Esta forma de uso apareceu no final
dos anos 1970, quando cantoras do punk exumaram o corset, morto e enterrado pelas
feministas radicais da década anterior, e o investiram de valores de ousadia, sensualidade e
rebelião contra padrões estabelecidos. Este uso revolucionário não ficou conhecido graças a
estas jovens roqueiras, mas através da rainha do pop, Madonna, que uniu este uso acidental,
enquanto oposição ao uso programado, aos corsets desenhado por grandes estilistas e maisons
– como Jean Paul Gaultier e Yves Saint Laurent – verdadeiras obras de arte icônicas, mas que
não são associadas à constrição tradicional, e sim a uma descontinuidade dos valores de
feminino e masculino vigentes.
O que une estas quatro formas do acidente ou do assentimento é, certamente, a co-
incidência. Ao destituir o corset de seu papel de destinador do corpo, os programas narrativos
do corpo e do corset, outrora unidos, desentrelaçam-se. Esta separação torna os dois
programas paralelos: o corpo passa a construir-se de outras formas – por meio de exercícios
ou cirurgias – e o corset torna-se uma peça histórica, pertencente à esfera das coleções e
acervos de museus. O acidente reside, portanto, no inesperado choque destes dois sujeitos, a
mulher e o corset.
Não há mais uma inter-ação entre corpo e corset, mas seu aparecimento (e
desaparecimento) passa a ser fundado no acaso. O corpo encontra aqui sua emancipação
máxima, tornando-se o destinador da sorte do corset. Probabilidade mítica e matemática
(LANDOWSKI, 2005) encontram-se nestas formas do uso: por um lado, suas idas e vindas na
moda tornaram-se imprevisíveis, mas são, ao mesmo tempo, regidas por um ciclo do tempo
cronológico que pode ser observado ao longo das décadas do século XX. Seja na destruição
do corset, seja na destruição do corpo que ele pode promover – mas somente se for
“comandado” por seu destinador – o corset encontra-se investido de um papel catastrófico
(LANDOWSKI, 2005) e o regime de risco é aquele do risco puro: risco da integridade do
corpo, ou o risco da própria extinção do corset. Por um lado, o dépassement máximo do
153
extreme tight lacing abriga o risco da dessemantização, ao mesmo tempo em que os possíveis
efeitos desta prática contribuem para a perpetuação de mitos que advogam contra seu uso,
produzindo argumentos contrários à sua própria continuidade enquanto parte da indumentária
feminina. Por outro, o enfraquecimento de seu papel de transformador coloca-o em um papel
de objeto desnecessário, supérfluo, cujo uso ou não uso é regido por uma probabilidade
matemática, que depende de um sujeito alheio, cujo programa narrativo não se encontra mais
entrelaçado àquele do corset: o sujeito corpo.

154
V.1. The Freedom Trash Can

Figura 46. Freedom Trash Can, parte do protesto que ocorreu durante o concurso Miss America 1969, no dia 7
de Setembro de 1968. O protesto foi organizado pelo movimento New York Radical Women (Mulheres Radicais
de Nova York), parte do movimento maior pela libertação das mulheres, conhecido como Women’s Liberation.
Muitos protestos, de outras células feministas e em outros estados americanos, ocorreram no período, muitas
vezes em concomitância com os protestos da esquerda estadunidense contra a Guerra do Vietnã. Este protesto,
no entanto, foi o que produziu maior visibilidade mediática – uma parte dele ocorreu no interior do concurso,
onde algumas das ativistas levantaram uma faixa que dizia “Women’s Liberation” diante das câmeras que
transmitiam o concurso – tornando-se um emblema da luta feminista. O protesto ficou eternamente conhecido
como “A queima do soutien”, que na realidade não foi permitida pelo departamento de bombeiros. Igualmente, a
“Lata de lixo da liberdade”, na qual intencionava-se queimar os soutiens, continha não apenas as lingeries, mas
muitos outros objetos da “opressão feminina”: cintas, maquiagem, meias de seda, sapatos de salto, cílios
postiços, produtos para o cabelo, esfregões, vassouras, panelas, e até mesmo revistas playboy. Foto: ABC.
Imagem: Media Myth Alert.
155
A associação da constrição do corpo com a dominação masculina não é uma novidade do
movimento pela libertação das mulheres – ou pela libertação feminina, como destaca Dana
Densmore, uma vez que “[...] ‘mulher’ é um papel construído e convencional, criado pelos
homens para a conveniência e satisfação deles.” (DENSMORE, 1998)17 Já no século XIX,
Mary E. Tillotson argumentava que, caso as mulheres deixassem de usar tais objetos,
identificadores e definidores de gênero, cujo objetivo principal era a ênfase de características
sexuais, talvez uma outra relação, de âmbito mais mental e espiritual, fosse possível entre
homens e mulheres (TILLOTSON, 1873, apud STEELE, 2001). O mesmo problema também
foi discutido por Simone de Beauvoir, em Le Deuxième Sexe, no qual a filósofa argumenta
que o traje feminino parece ser desproporcionalmente desconfortável e limitante,
manifestando que o lugar feminino não é igual, mas inferior, condenado ao sofrimento e à
imobilidade (BEAUVOIR, 1976).
Como foi possível apreender das análises expostas até então, Mary E. Tillotson não
estava errada ao enxergar no corset um instrumento de definição de gênero e de ênfase nas
características sexuais: ainda que este caráter da lingerie constritora fosse mais evidente no
final do século XIX, no qual a recuperação dos valores da moda do século XVIII era ainda
muito forte, nossa análise revela que mesmo no século XXI a ênfase nos atributos femininos,
bem como na sexualidade inerente à valorização desta construção do corpo, ainda é muito
marcada. Parecia, em 1968 (e ainda parece, nos dias atuais), impossível dissociar esta
necessidade da construção do corpo do papel feminino tradicional.

Trinta anos atrás, nenhuma mulher ‘respeitável’ pensaria em sair para o trabalho,
para a igreja, para o mercado, ou para a maioria dos lugares publicos sem uma
cobertura de seios (aqueles soutiens cortantes e normalmente irritativos, volumosos,
e até mesmo aramados), um achatador de bumbum e de barriga (melhor conhecido
como cinta), sapatos de salto alto (incapacitantes e prejudiciais à coluna),
modeladores de perna (meias de nylon caras e desconfortáveis, suspensas pelas
cintas ou cinta-ligas), cabelos corretamente enrolados ou alisados (conseguidos por
meio de químicos mal cheirosos e tóxicos e/ou enroladores de cabelo
desconfortavelmente utilizados para dormir), e, é claro, uma máscara de pó facial
(para cobrir um nariz brilhante), batom, rímel, e às vezes cílios falsos.

17 “[...] ‘woman’ was a constructed and conventional role, created by men for their convenience and
satisfaction.” (DENSMORE, 1998, p.81, trad nossa).
156
Uma mulher poderia ser despedida por “vestimenta inadequada” – e isso significava
que mulheres vestiam saias, nunca calças, não importa qual o trabalho e qual o
clima. (HANISCH, 1998)18

No texto publicado em 1998, Carol Hanisch – uma das participantes do protesto do


concurso Miss America – descreve o “modelo” de mulher contestado pelo protesto de 1968: a
necessidade da construção total de um feminino para ser visto no espaço público, que
demandava a modelagem dos seios, da barriga, dos glúteos, das pernas, dos pés, dos cabelos e
do rosto. Em sua carta sobre o protesto de 1968, a autora e ativista nos conta que esta imagem
da mulher, enaltecida pelo concurso Miss America, originou a ideia de realizar o protesto
durante o concurso. Hanisch descreve o concurso como um “ícone Americano”, que dizia
para as mulheres:

“[...] com o que parecer, o que vestir, como vesti-lo, como andar, como falar, o que
dizer (e o que não dizer) para ser considerada atraente. Resumindo: seja bonita (não
importa o custo em tempo e dinheiro), sorria (não importa o que você esteja
sentindo), e não crie polêmicas.” (HANISCH, 1998)19

Evidentemente, o protesto inscreve-se em uma oposição de base muito clara, na qual o


primeiro termo, já estabelecido e considerado como eufórico pela população mundial, é
presentificado pelo concurso Miss America, cuja vencedora (que naquele ano foi Judith Ford)
é um emblema único, escolhido a cada ano, daquela beleza “tipicamente americana”. Já o
protesto coloca-se como termo oposto, que reenvia simultaneamente a dois outros
movimentos. Um deles é a luta pela libertação feminina como um todo, uma vez que o New
York Radical Women era apenas uma das tantas células do movimento. O outro é a busca por
um novo feminino, presentificado pelo abandono de todas as construções tidas como
necessárias, prescritivas, da qual o soutien tornou-se o principal emblema.

18 “Thirdy years ago, no “respectable” woman would think of going to work, to church, to the store, or to most
other public places without a breast harness (those cutting and often scratchy, padded, and even underwired
bras), a butt binder and a tummy flattener (better known as a girdle), hobbles (crippling and spine-damaging high
heels), leg shapers (expensive and uncomfortable nylons held up by girdles or gatter belts), correctly curled or
straightened hair (achieved with smelly, toxic chemicals and/or hair curlers often slept on with great discomfort),
and, of course, a mask of face powder (to cover a shiny nose), lipstick, mascara, and sometimes fake eylashes.
One could be fired from one’s job for “inappropriate dress” – and that meant women wore skirts, not pants, no
matter what the job or what the weather.” (HANISCH, 1998, p.197, trad. nossa).

19 “[...] what to look like, what to wear, how to wear it, how to walk, how to speak, what to say (and what not to
say) to be considered attractive. In short: look beautiful (no matter the coast in time and money), smile (no
matter what you’re feeling), and don’t rock the boat.” (HANISCH, 1998, p. 198, trad. nossa).
157
Também por este protesto – mas igualmente pelo fato de o movimento, em seu início,
ser formado sobretudo por mulheres brancas, de classe média alta e com educação
universitária – uma das marcas mais fortes que ficou do movimento de 1968 foi a luta para
que as mulheres deixassem de ser tratadas como objetos sexuais, seja nos papéis pré-
estabelecidos na família nuclear, seja pela mídia. Talvez por este motivo, o feminismo não
conseguiu consolidar-se enquanto movimento uno, e outras “facções” começaram a
emancipar-se do movimento pela libertação feminina, abrigando causas mais específicas:
feministas negras, femininstas chicanas, feministas lésbicas, entre outras.
Barbata Epstein, por exemplo, relata que nunca sofreu por ser considerada como um
“objeto sexual” pelos homens. O problema exposto pela editora era exatamente o oposto:
quando uma mulher ganhava, dentro dos partidos, o status de “companheira” (comrade), o
mesmo era acompanhado por uma dessexualização (EPSTEIN, 1998). Em outras palavras,
uma mulher política deixava de ser mulher aos olhos de seus companheiros, para tornar-se um
comrade. Para Epstein, esta separação entre mulheres atraentes, possíveis objetos da atração
sexual por parte do sexo oposto, e mulheres políticas, comrades dessexualizadas (ou mesmo
assexuais) deveria ser igualmente uma das pautas do feminismo.
É frequente, da mesma forma, a associação ao feminismo dos anos 1960 à “revolução
sexual”. No entanto, muitas das células do movimento pela libertação das mulheres opunham-
se à revolução sexual, sob o argumento de que a mesma estava sendo moldada pelos homens,
de maneira que fosse vantajosa apenas para eles. Algumas células, inclusive, pregavam o
celibato como ação revolucionária (DENSMORE, 1968): privar os homens do sexo, ou
abandonar os maridos/parceiros, seria a única forma de pressão social suficientemente eficaz,
no sentido de conscientizar os homens para a situação das mulheres enquanto sexo oprimido.
O celibato como tática revolucionária nos interessa especialmente neste trabalho, uma
vez que localiza estes movimentos de 1968 enquanto um termo de oposição direta àquele
presentificado pelo traje à francesa. Se no século XVIII a principal função visual do traje era
aquela de atentar para o potencial sexual/procriador da mulher, a luta pela libertação das
mulheres vai justamente pela via oposta, não apenas negando todos os instrumentos
definidores do gênero feminino – e, consequentemente, negando um arranjo plástico do corpo
que manifesta este potencial procriador, definido pelas revolucionárias como objetificação
sexual – mas a própria sexualidade, o próprio meio pelo qual o papel feminino principal pode
ser realizado.
158
Este feminino extremamente construído, ao qual Densmore se refere como woman
idol (DENSMORE, 1998), é também aquele presentificado pela Miss America. Este ídolo, no
entanto, é o resultado de uma longa cadeia de reiterações deste parecer feminino, ou da
sujeição do corpo a um papel temático, que passa necessariamente pela construção do corpo
dentro do formato esperado – algorítmico, para utilizar o termo de Landowski – do que o
parecer da mulher deve ser. Da mesma maneira, ao invés de ditar um novo dever ser para as
mulheres – o que inscreveria o feminismo não em uma posição de oposição, mas sim da
proposição de um novo papel temático – as ativistas simplesmente limitam-se à busca de um
não parecer mulher, no sentido da manifestação tradicional presentificada pela Miss America.
Pelo abandono das lingeries constritivas (soutiens, cintas e meias), dos cosméticos (produtos
para cabelo, maquiagem), dos saltos altos, e até mesmo cortando os cabelos, o movimento
buscava o direito de não ser vista apenas por sua sexualidade, mas como um ser humano,
igual tanto em direitos quanto em deveres, independente de seu sexo ou gênero.
Este não parecer pode ser inclusive associado à “não moda”, ou à “anti-moda”, como
François Baudot descreve a moda de rua do final da década de 1960 (BAUDOT, 2002). Não
há, portanto, um parecer definido desta moda revolucionária. Pelo contrário, o abandono dos
objetos formadores do corpo reside, justamente, na busca pelo abandono dos ideais que
definiam um dever parecer feminino. Em sua origem, o movimento pela libertação das
mulheres concentrava-se justamente na libertação de todas as mulheres, por meio de uma
negação de um padrão único, promovendo a aceitação de todas as formas, cores, tamanhos,
origens e orientações sexuais.
Para Densmore, no entanto, era fundamental que o movimento se focasse em mudar as
mulheres, e não em conscientizar os homens para que eles mudassem: se a opressão feminina
advinha sobretudo de uma posição privilegiada dos homens na sociedade, era evidente que
eles não aceitariam simplesmente abrir mão de seus privilégios pelo bem das mulheres
(DENSMORE, 1998). Neste sentido, o movimento pela libertação das mulheres aparece
duplamente investido de uma quebra do papel temático feminino. Por um lado, existe a (busca
pela) quebra com o uso dos instrumentos formadores do corpo “feminino”, que desentrelaça
os programas narrativos da mulher daqueles do corset. Esta ruptura, contudo, amplia-se a uma
ruptura ainda mais pronunciada, arriscada, que é a separação dos programas narrativos dos
homens e das mulheres.

159
Neste contexto, o próprio choque entre ativistas feministas e homens presentes nos
locais, passantes ou expectadores dos protestos, adquiria um caráter catastrófico, no qual
ambos os sujeitos tornam-se anti-sujeitos dos demais. Hanisch relata, por exemplo, que em
Atlantic City, os homens presentes (sobretudo os jovens) puseram-se a gritar para as ativistas,
acenando com os punhos cerrados: “Voltem para a Rússia!”, “Vocês são um bando de
lésbicas!”, “Qual delas é a sua namorada?”, “Inimigas dos homens!” (HANISCH, 1998).
Densmore, por sua vez, expõe as constantes ameaças de violência física,
principalmente de estupro, que sofria não apenas em reuniões políticas, mas de homens
conhecidos, parte de seu círculo social (DENSMORE, 1998). Em outras palavras: na negação
da prática do ato sexual voluntário, enquanto tática de guerrilha, o próprio ato sexual torna-se
um acidente, um ato de violência na qual o cumprimento do papel temático é forçado,
aparecendo como fruto do choque de dois atores, cujos papéis temáticos não encontram-se
mais entrelaçados pelo mesmo programa narrativo.
Por esta via, delineia-se a mencionada relação de implicação entre o bodysuit de Mary
Quant e a explosão do movimento pela libertação das mulheres. No bodysuit de 1965, aparece
sugerida a cobertura (e a constrição) do sexo, cuja consequência é a libertação das pernas –
seja para o uso da minissaia, seja para uma maior mobilidade. Esta constrição sexual aliada à
liberdade das pernas desenvolve-se, um pouco mais tarde, no celibato enquanto tática
revolucionária na luta pelas “calças”, a peça de roupa empregada aqui enquanto metáfora e
metonímia dos papéis ocupados exclusivamente pelos homens.
De maneira semelhante, a relação mais evidente entre o bodysuit e o protesto de 1968
retoma o vestido de 1880, no qual apareciam manifestados os temas de “morte” do corset e da
crinolina, bem como da mulher “armada” contra seu papel temático. Estas três posições
traçam um caminho cronológico, do século XIX a 1968, do movimento pela conscientização e
libertação feminina do poderoso papel temático, definido pelo traje à francesa. As posições de
1880 e de 1965 presentificam, neste sentido, rupturas gradativas com o papel temático: a
primeira, uma ruptura com a visibilidade, manifestada pelo traje, do aparelho reprodutor; a
segunda, uma ruptura com o livre acesso a este aparelho reprodutor, cobrindo-o.
A terceira posição, ocupada pelo protesto de 1968 – mas que reenvia ao todo da luta
pela libertação das mulheres – aparece como a concretização última, ou a realização
(GREIMAS & COURTÉS, 2012) do que buscavam os trajes mencionados: libertar-se de
quaisquer formação do corpo para, por meio deste não parecer feminino, negar o papel da
160
procriação por meio do celibato. Trata-se, concluindo, de uma emancipação da própria
formação do corpo, por meio da qual acreditava-se possível obter uma real emancipação
social.

161
V.2. A moda e o estilo de Chanel

Figura 47. Gabrielle (Coco) Chanel, vestindo algumas das peças que tornaram-se marcas de seu estilo: o vestido
preto, os braceletes, o colar de pérolas, o chapéu, além dos cabelos curtos, moda absoluta dos anos 1920, e
sempre identificados ao “estilo Chanel”. Imagem: Jennifer Jewels.

No que toca o “abandono do corset”, que por sua vez vai de par em par com uma revolução
feminina (e não necessariamente feminista), sobretudo em torno da vestimenta e da relação
das mulheres no trabalho, há muito em comum entre os movimentos de 1968 e as inovações
propostas pela jovem Gabrielle Chanel, nos anos 1920. De início, os anseios de Chanel acerca
162
da moda feminina, enquanto oposição ao estilo de corpo extremamente construído da Belle
Époque, aproximam-se substancialmente do que buscavam, de maneira mais literal, as
ativistas pela libertação das mulheres: a emancipação dos instrumentos de constrição, da
necessidade de conformação de uma silhueta a uma certa forma para que esta fosse
reconhecida como “feminina”.
O que separa ambos os movimentos, no entanto, é que se em 1968 havia uma vontade
de negar a identificação a qualquer parecer, na moda de Chanel é mais marcada uma busca
por uma nova forma do feminino, em oposição àquela estabelecida. Para Jean-Marie Floch, o
total look de Chanel aparece, primeiramente, como um fenômeno de moda, apreendido em
sua figuratividade, que pode ser desdobrado em um fenômeno de estilo, quando apreendido
em sua plástica (FLOCH, 1995).
Assim como Chanel impôs os cabelos curtos como parte de seu estilo, também o
movimento pela libertação das mulheres associou o corte dos cabelos aos ideais de liberdade e
de conforto. Novamente, o que separa estes dois fenômenos da história feminina – os cabelos
cortados de 1920 e aqueles de 1968 – são os valores que cada um deles buca negar. No caso
de 1968, trata-se claramente da dominação masculina, ou seja, uma negação da identificação
com quaisquer formas do feminino, que presentificavam a identificação ao papel de oprimido.
Para Chanel, no entanto, tratava-se da negação de uma forma do feminino, aquela da Belle
Époque – na qual reinavam os complexos penteados, realizados a partir de cabelos longos e
artificialmente enrolados – na formulação de uma outra forma do parecer da mulher, mais
livre, mais confortável, mais prático.
Esta negação de um feminino vigente – que ainda utilizava o corset tradicional como
formador da silhueta, que a jovem Chanel interpretada por Anna Mouglalis aparece
graciosamente cortando com uma tesoura, no filme Coco Chanel & Igor Stravinsky – inicia-se
na exaltação da função da vestimenta enquanto função prática: em lugar de promover a
separação e diferenciação entre os gêneros, as roupas, para Chanel, deveriam servir, serem
práticas e confortáveis, permitindo uma maior dinamicidade da mulher, em lugar de vestir
mulheres inúteis, ociosas (FLOCH, 1995).
Alguns autores enfatizam que a moda de Chanel foi criada por ela, para ela mesma. Se
ela desenhava um vestido para a noite, é porque ela desejava sair; se criava trajes para o
esporte, é porque ela mesma praticava esportes (BAUDOT, 2002; FLOCH, 1995). Mesmo o
emblemático vestido preto é atribuído ao seu próprio luto, na morte de seu amante inglês, Boy
163
Capel. A própria Chanel afirmava que sua moda era criada com o intuito de derrubar aquilo o
que a desagradava. Neste sentido, seu estilo pode ser lido como um estilo para si, para seu
próprio corpo magro e andrógino, e voltado para suas próprias necessidades de mobilidade e
conforto, que não eram comtempladas pela moda de seu contexto sócio-cultural.
Em termos semióticos, Chanel aparece investida de um duplo papel actancial,
simultaneamente Destinadora e Destinatária, de si e da própria moda. Este primeiro gesto, da
construção de um estilo próprio, foi responsável por uma revolução muito maior, e em outros
âmbitos além do vestuário. Filha de camponeses miseráveis, Chanel pode ser considerada
uma self made woman dos anos 1920, conquistando riqueza através do próprio trabalho – uma
forte marca da emancipação feminina que aparece destacada em seu estilo, na incorporação de
elementos do mundo masculino – como o tweed, as calças compridas, os cabelos curtos – em
seu estilo.
Em tantos outros sentidos, o mundo particular de Chanel confunde-se com o seu
contexto social, do primeiro pós-guerra europeu. A pobreza da juventude de Chanel mescla-se
à própria pobreza da Europa no primeiro pós-guerra, razão atribuída, por alguns autores (Cf.
BAUDOT, 2002; BOUCHER, 2010; LYNN, 2010), à simplificação do traje neste período. A
escassez de materiais foi uma grande formadora do estilo de Chanel que recorre, por exemplo,
ao uso do jersey como matéria prima dos trajes, tecido este reservado até então à confecção de
roupas de baixo masculinas. Da mesma maneira, o encurtamento das saias e dos cabelos, bem
como a adesão das mulheres às calças compridas, são geralmente mencionadas como a
passagem da figura estatuesca, ideal dos anos 1900 (LYNN, 2010), à mulher mais dinâmica e
ativa, que precisou adentrar o mundo do trabalho no pós-guerra.
As revoluções vestimentares dos “anos loucos”, que geralmente são atribuídas todas
elas a Chanel (BAUDOT, 2002), mesclam-se num complexo emaranhado com outros fatores
da sociedade europeia da época que, em seu autêntico espírito revolucionário, buscava
combater os costumes da geração de seus pais. Para aqueles jovens, tudo o que era típico da
Belle Époque vinha associado aos fatores que levaram à Primeira Guerra (LYNN, 2010).
Combater estes valores, por meio da arte, da música e também (senão principalmente) da
moda, manifestava o repúdio ao cenário do início do século XX, ainda muito carregado de
valores herdados do século XIX – que na moda, manifestavam-se na silhueta fortemente
construída pelo uso do corset, nos vestidos longos e exageradamente elaborados, ou nos
cabelos longos, enrolados e arranjados em complicados penteados.
164
A desconstrução deste parecer feminino da Belle Époque – construído pelo uso do
corset o S-bend (figura 18) – perpassa uma desconstrução do corpo enquanto suporte do
vestido. Em vez de constringir o corpo com o objetivo de construir volumes ideais para um
certo desenho de vestido, o estilo de Chanel propõe um corpo nu como base da roupa. Ao
dispensar o uso do corset – formador, como vimos, de um corpo artificialmente redondo, que
serve a enaltecer os atributos femininos relacionados à fertilidade – o traje passa a recobrir um
corpo mais reto, retangular, que não traz em si marcas tão definidas, nítidas, da separação
entre os gêneros feminino e masculino. Esta não definição repousa no que gosta-se de definir
como “androginia”, ou melhor dizendo, uma confusão entre o masculino e o feminino.
Esta desconstrução do corpo é certamente herdada de Paul Poiret, cuja silhueta de
cintura alta já desencorajava as mulheres a abandonarem o corset (BAUDOT, 2002),
delegando ao próprio vestido o papel de (des)construir o corpo. Ainda para Baudot, no
entanto, as aspirações de Poiret só foram de fato concretizadas no estilo criado por Mlle.
Chanel (BAUDOT, 2002).
O limite borrado entre os gêneros, por sua vez, aparece como uma primeira
manifestação da busca pela igualdade entre eles. Uma vez que o novo chic demanda uma
mulher de cabelos curtos, de silhueta à la garçonne e de calças compridas, e que esta nova
configuração do corpo torna-se admirada pelo sexo oposto, fica nítido que os dias do marcado
papel temático feminino de procriadora, socialmente inferior, estática e ociosa, a “mulher
ídolo”, parecem estar contados.
A ruptura com a Belle Époque, portanto, aparece investida de valores de negação (ou
contradição) de um papel feminino estabelecido para a criação de uma nova feminilidade,
mais livre, mais confortável – ou mais estésica, uma vez que aos materiais utilizados por
Chanel, como o jersey, o tricot e o tweed, é atribuído um forte valor de euforia do tátil, do
sentir a matéria como agradável. Esta estesia aparece até mesmo na preocupação com a
criação de um perfume – outra tendência herdada de Poiret, que foi o primeiro costureiro a
lançar sua própria fragrância (BAUDOT, 2002) – que complementa seu total look, o no.5 –
nomeado a partir de seu número de matrícula.
O total look de Chanel manifesta-se, dessa maneira, como um texto sincrético
(GREIMAS & COURTÉS, 2012), no qual todos os sentidos são convidados à fruição do
sujeito que apresenta-se para ser apreendido pelo outro: além da evidente apreensão visual
requerida pela roupa, as matérias utilizadas por Chanel convocam uma apreciação tátil, e até
165
mesmo olfativa. O look de Chanel, portanto, vai além de uma prescrição visual da silhueta,
mas também atribui a ela qualidades matéricas, como uma diferente textura, ou uma
fragrância.
No sentido de negação do papel temático – e em posição de implicação com a
revolução de 1968 – é possível ler o estilo de Chanel como um convite a uma apreensão da
mulher que vai além de seu potencial procriativo, mas que adiciona outros elementos de
fruição ao conjunto “mulher”. A negação das topohierarquias tradicionais, utilizadas para
definir de maneira quase didática a separação entre feminino e masculino, acompanhadas de
uma não-materialidade do corset, colaboram para a criação de um feminino diferente daquele
cultivado até então pela moda ocidental. Não mais na estaticidade que demanda uma
admiração silenciosa, distante, mas de um feminino mais dinâmico, flexível e movediço.

166
V.3. Extreme Tight Lacing

Figura 48. Fakir Musafar (1930 – ), artista experimental famoso não apenas pela prática do tight lacing, mas por
outras formas de modificação corporal, como o piercing, a suspensão corporal, a escarificação e a tatuagem, bem
como pela documentação dos experimentos realizados no próprio corpo. Nesta foto de 1959, titulada “Perfect
Gentleman” (“Cavalheiro Perfeito”), Fakir exibe a cintura de 19 polegadas (aprox. 48 cm). Imagem: fakir.org

167
Figura 49. Mr. Pearl (Mark Pullin, 1962 – ), corsetier contemporâneo sul-africano. Famoso pela maestria na arte
da corseteria, Mr. Pearl já criou corsets para as maisons Christian Lacroix, John Galliano e Vivienne Westwood,
e para diversas celebridades, entre elas Victoria Beckham. Praticante do tight lacing ao longo de muitos anos,
Mr. Pearl possui atualmente a cintura masculina mais fina do mundo, medindo 46 cm. Imagem:
thegroundmag.com

168
Figura 50. Dita Von Teese (Heather Renée Sweet, 1972 –), dançarina burlesca, modelo, figurinista, empresária e
atriz, é uma das mais famosas tightlacers da atualidade (sua cintura, com corset, mede 42cm). Dita ganhou
visibilidade principalmente por seus shows burlescos, cuja marca registrada é o strip tease com um toque
vintage. Sua imagem certamente serve de inspiração para muitas mulheres que buscam recuperar este ideal de
beleza, não apenas pela prática do tight lacing (ou ao menos pelo uso de corsets), mas também pela maquiagem,
pelo estilo dos cabelos, e até mesmo a icônica manicure de meia lua, moda nas décadas de 1920-50. Imagem:
Pinterest.

169
Figura 51. Cathie Jung (1937 –), atual detentora do record mundial de menor cintura (38.1cm, contra 1,65m de
altura). Além do record obtido pela prática do tight lacing, Cathie Jung ficou conhecida pela aparição no filme
Cremaster 2, do artista plástico e performer Matthew Barney, no qual utiliza um belíssimo corset transparente no
papel de Baby Fay La Foe. Imagem: cathiejung.com

170
Um dos grandes obstáculos na abordagem da questão da constrição da cintura é, certamente, a
dificuldade em separar o que pode ser nomeado como a constrição “normal” – abordada nas
análises desenvolvidas até aqui – e a constrição extrema, erroneamente tida como o padrão
praticado pela grande maioria das mulheres. As imagens acima, no entanto, servem como
primeiro contato com o que pode ser chamado de “cinturas extremas”, que são sem dúvida
exceções e não regras, dentro do uso do corset.
Os quatro exemplos expostos acima – Fakir Musafar, Mr. Pearl, Dita Von Teese e
Cathie Jung – presentificam emblemas de muitos outros tightlacers, seja da atualidade, seja
de décadas ou séculos atrás. Eleri Lynn associa a prática do tight lacing ao surgimento dos
corsets de aço, hipoteticamente utilizados para corrigir desvios de coluna oriundos da
constrição extrema, por volta do século XVI ou XVII (LYNN, 2010). David Kunzle, por sua
vez, localiza o início da prática em meados do século XIV, considerando que o tight lacing já
ocorria por meio de outros objetos, que não o corset tradicional (KUNZLE, 2004). Ambos os
autores concordam, no entanto, que a prática não constituía o “padrão” de constrição da
cintura, e que, independente da data de seu início, o momento em que esta prática obteve mais
força entre as mulheres foi a partir de meados do século XIX (Cf. KUNZLE, 2004; STEELE,
2001).
Primeiramente é necessário esclarecer a menção, em um trabalho acerca do uso
feminino do corset, de dois homens tight lacers (Mr. Pearl e Fakir Musafar). Este é o primeiro
ponto acerca do extreme tight lacing que buscamos iluminar neste capítulo: a constrição
extrema da cintura não é uma prática “tipicamente feminina”, podendo ser identificada (seja
no século XIX, seja na atualidade) tanto em homens quanto em mulheres. Da mesma maneira,
esta forma da constrição não encontra-se investida de um desejo de construção de um parecer
“tipicamente feminino”, uma vez que os homens que o praticam não possuem a intenção de
construir um corpo feminino ou de travestir-se. O foco do tight lacing, ao menos no âmbito
corporal, é apenas um: a diminuição da cintura até o limite.
Esclarece-se a partir desta constatação o primeiro traço que delineia esta prática
enquanto termo oposto da constrição “normal”: se o uso “moderado” do corset, com a
finalidade de formar um corpo “correto”, inscreve-se em uma situação de pertencimento (ao
seu contexto social, cultural, à moda do período), o uso extremado do corset investe nele, ao
contrário, um valor de distinção. Em lugar de parecer igual, o tight lacer busca, em oposição,
parcer diferente, extra-ordinário.
171
No contexto Victoriano, abordado extensamente por Kunzle (2004) e Steele (2001), o
tight lacing extremo era considerado como bizarro, como anomalia, e constantemente
vinculado ao fetichismo e às demais doenças psiquiátricas descobertas no período, como a
histeria e a neurastenia. Da mesma maneira, as tightlacers eram acusadas de aborto e
infanticídio, em um período marcado pela diminuição das famílias, sobretudo devido à
descoberta e difusão dos métodos anticoncepcionais (KUNZLE, 2004).
Como nos revelaram as análises do capítulo II, o uso “normal” do corset servia
principalmente ao realce de características sexuais femininas, sobretudo os quadris, que
tornavam-se consequentemente destacados pela constrição da cintura, mas ainda recebiam o
aumento de sua linha pelo uso da crinolina. Este “realce”, por sua vez, ao identificar a mulher
enquanto parceira fértil (ou seja: apta para exercer o papel temático feminino), era
considerado atraente, correto, ou mesmo belo. Trata-se de um parecer programado, aceito e
esperado das mulheres.
Ao exagerar de maneira extrema a linha “correta” do corpo, é possível deduzir que o
que ocorre, ao menos no corpo feminino, é igualmente um exagero dos atributos sexuais: em
comparação à cintura extremamente constrita, quadris e peito parecem ainda maiores, mais
pronunciados. Para Kunzle, da mesma maneira, a constrição excessiva altera o estado
fisiológico do corpo, transferindo toda a respiração para o peito, o que a torna acelerada; este
estado ofegante seria capaz de conferir ao colo uma impressão de seio permanentemente
palpitante, que reenviaria à excitação sexual ou mesmo aos espasmos do corpo durante o
orgasmo (KUNZLE, 2004). Em comparação às mocinhas corretamente constritas, portanto, as
tightlacers seriam dotadas de um parecer diferenciado, no sentido sexual, cuja principal marca
é um fazer ver de maneira exacerbada suas características sexuais, bem como uma maior
sensibilidade do corpo, eternamente excitado.
A partir destes dados, é possível formular a oposição entre atração e repulsa, que
separa o corpo correto do corpo extremamente construído. No plano da expressão, o traço que
separa estas duas paixões – a euforia da atração e a disforia da repulsa – é a intensidade da
constrição da cintura. No plano do conteúdo, esta homologa-se principalmente à oposição
entre controle sexual vs. exposição sexual. Ambos os arranjos plásticos remetem à
sexualidade, mas o primeiro, o correto, revela uma sexualidade controlada, voltada para a
formação da família, enquanto que a silhueta conferida ao corpo extremamente constrito
manifesta uma sexualidade cuja única finalidade é o prazer. Esta última afirmação é embasada
172
principalmente pelas acusações de aborto e infanticídio. A constrição extrema da cintura é
considerada como prejudicial à fertilidade, ao mesmo tempo em que as tightlacers geralmente
geravam poucos filhos – não porque os estivessem assassinando, como pensava-se, mas
porque a gravidez prejudicaria o cultivo da “circunferência sagrada”.
A atração ou a repulsa, assim, homologam-se ao papel temático (maternidade) e à
oposição ou ruptura deste papel. As supostas praticantes do aborto, do infanticídio, da
contracepção, e de toda e qualquer outra ação oposta à lógica social estabelecida, eram
consideradas como párias, e todas estas práticas, por sua vez, eram associadas ao tight lacing.
Para Kunzle, as tightlacers eram uma espécie de bode expiatório da era Vitoriana, assim como
as bruxas o eram na Idade Média, e as prostitutas sempre o serão (KUNZLE, 2004).
Enquanto uma prática de oposição – à moda, aos costumes, ao papel temático
feminino – o extreme tight lacing não encontra-se tão distante dos movimentos feministas de
1968. Ambos manifestam posturas opostas às lógicas vigentes de opressão feminina – seja
uma oposição direta à procriação, seja em um âmbito mais geral, englobando outros direitos
sociais – e investem suas praticantes de valores disfóricos – sejam as acusações de aborto e
infanticídio, sejam os gritos de “lésbicas!” e “inimigas dos homens!”. O que separa as duas
revoluções, portanto, é a relação de cada uma com o corset: no extreme tight lacing, a ação
revolucionária se dá pelo uso extremo, que ultrapassa o normal; no feminismo, a via escolhida
é a negação e destruição do corset.
Esta separação homologa-se, assim, à oposição que permeou o todo desta análise,
entre a sujeição do corpo – posição ocupada pela prática do tight lacing – e sua emancipação
– busca do movimento pela libertação das mulheres. Trata-se, em ambos os casos, de uma
sujeição ou emancipação extrema. No primeiro caso, a prática excessiva pode acarretar
malefícios à saúde do corpo, bem como uma transformação total da silhueta, em parte
irreversível, que abriga em si o risco de que o corpo perca permanentemente sua conexão com
seu arranjo plástico original. No caso da emancipação extrema, o risco localiza-se no plano
social, na possibilidade da perda do estatuto feminino, bem como de toda e qualquer relação
que perpasse a interação social entre homem e mulher.
A partir disto, voltaremos a falar dos tightlacers sem a distinção entre homens e
mulheres. Pois, assim como um corpo feminino extremamente constrito deixa de reenviar ao
corpo feminino, tornando-se um corpo “outro”, o mesmo é verdadeiro no que toca a
constrição extrema praticada pelos homens. Não é possível afirmar que Mr. Pearl e Fakir
173
Musafar possuem silhuetas femininas, quando seu parecer mal pode ser identificado como
“humano”. Se no tight lacing feminino o papel temático da mulher é atacado (e até mesmo
destruído), quando praticado por ambos os sexos é o papel temático do próprio corset que
encontra-se em xeque. Em lugar de formar um parecer de corpo feminino, com características
próprias de seu papel temático ressaltadas, o corset do tightlacer é utilizado para transformar
o corpo de quaisquer sexos e gêneros, conferindo ao corpo um arranjo plástico que transcende
o parecer esperado, programado, de ambos os gêneros.
Esta “transformação pela transformação” abriga em si uma série de outros riscos, seja
do ponto de vista do corpo, seja do próprio corset. Primeiramente, atingir uma redução de
cintura ainda que moderada, como aquela cultivada por Dita Von Teese, exige anos de prática
e disciplina diária, de uso constante do corset, até mesmo para dormir. Esta prática pode ser
acompanhada de excessos de dieta e exercício e, atualmente, até mesmo da parcial remoção
cirúrgica das costelas flutuantes, que facilitam a diminuição da cintura em corpos já
definitivamente formados (ou seja: que não foram constritos desde antes da puberdade).
Em seguida, não existem garantias de que este novo parecer do corpo será aceito em
sociedade. Na era Vitoriana, por exemplo, a repulsa pelas tightlacers era produtora de uma
maior dificuldade em encontrar um marido que concordasse com a prática, o que, para
Kunzle, consistia na dificuldade em encontrar um parceiro para quem o prazer erótico fosse
mais importante do que a formação de uma família (KUNZLE, 2004). Ainda no século XIX,
além de lidar com a rejeição social, as tightlacers eram constantemente confrontadas com
suspeitas de diversas doenças psiquiátricas, o que geralmente contribuía para que a prática do
tight lacing permanecesse um segredo (STEELE, 2001).
Finalmente, em face a todos os “terrores” associados ao tight lacing, e mais
diretamente ao uso do corset – que não era separado entre “moderado”/“normal” e “extremo”
– os maiores e mais consistentes argumentos contra seu próprio uso foram produzidos. Esta
união no imaginário coletivo, entre corset e tight lacing, foi uma das grandes propulsoras do
movimento pela supressão do uso do corset no início do século XX que, por sua vez,
culminou na moda de Poiret e Chanel.
De todos os “objetos” analisados neste recorte do corpus, o extreme tight lacing
certamente abriga em si o maior grau de risco, que engloba a lógica social, o corpo, e o
próprio corset. Estes três atores são fortemente ameaçados pela prática do extreme tight
lacing: o social, pela perda do papel temático feminino; o corpo, pela destruição do parecer
174
“feminino” (ou mesmo humano); e o corset, que torna-se o “culpado” pelos danos causados
pelo tight lacing, ao corpo e à sociedade. Esta transformação extrema, no entanto, só pode ser
atingida por uma disciplina e constância que não são típicas do papel catastrófico, do
acidente, mas sim da programação. Não se trata, no entanto, de uma programação a partir de
papéis temáticos entrelaçados, mas de uma programação como aquela apreendida da figura do
virtuoso, abordada por Landowski em Avoir prise, donner prise (2009): o treino e a disciplina
extremas, única maneira de atingir uma performance invejável, abrigam em si também o risco
da dessemantização desta performance, que pode tornar-se uma mera repetição esvaziada de
sentido.
Na figura do tightlacer, tal não poderia ser mais verdadeiro. Além do risco real do
corpo e de seu parecer, é impossível atingir tal nível de transformação da figura – que pode
ser lida como um grau extremo de maestria do próprio corpo – sem voltar o todo da rotina
diária a este objetivo. Trata-se de um estado de corpo permanentemente excepcional, não-
natural, em todos os momentos do dia, até mesmo durante o sono. Esta exposição constante a
este estado certamente dessemantiza o prazer advindo da aplicação ocasional da constrição
extrema – descrita, em alguns relatos, como um extase transcendental, quase místico
(KUNZLE, 2004) – tornando-o mera repetição necessária para a realização de uma
performance de transformação da silhueta.
Apesar disso, é imprescindível destacar o caráter revolucionário desta prática, não
apenas enquanto oposição à moda vigente, mas principalmente na libertação sexual que é dela
decorrente. O ápice da prática do tight lacing feminino, nas décadas de 1870-90, certamente
pode ser relacionado a um dos períodos de maior emancipação sexual feminina do século
XIX, quando começou uma expressiva dissociação entre sexo e procriação, e o prazer
feminino foi “descoberto” (GIDDENS, 1994) e até mesmo encorajado – o que culminou na
lendária prática da masturbação feminina em consultórios psiquiátricos, bem como na
invenção do vibrador, ambos reconhecidos como uma possível cura da histeria. As tightlacers
da época, ao ostentar a exacerbação sexual de seus corpos, eram grandes desbravadoras deste
direito à sexualidade livre, desvinculada da procriação. Os homens tightlacers, por sua vez,
presentificam a quebra com a definição de gênero, investida no corset até então. Quanto aos
tightlacers atuais, como Dita Von Teese, cabe a eles o papel de oposição aos padrões da moda
atual, construindo corpos contraditórios àquele típico do século XXI.

175
“Moda e fetichismo devem sempre ser considerados como potencialmente
antagonistas, mesmo ou especialmente quando o fetichismo é um exagero do que é aceitável
pela moda [...]” (KUNZLE, 2004)20 . Estas palavras de Kunzle certamente fecham esta
reflexão sobre o extreme tight lacing enquanto oposição às tendências aceitas pela moda, e
não seu padrão. Quanto maior o exagero (neste caso, da cintura), maior a distância criada
entre o corpo construído de maneira extrema e o corpo construído para um padrão. Estes
corpos extremamente constritos, paradoxalmente, são livres: emancipados da moda e dos
padrões, bem como dos papéis investidos nos programas do parecer. Esta liberdade, no
entanto, não é atingida pelo abandono da constrição, mas pelo ultrapassar os limites do
correto, da normalidade, rumo ao cultivo excessivo do corpo, do qual advém um novo corpo,
que não é nem masculino nem feminino: é apenas tightlacer.

20 “Fashion and fetishism must always be regarded as potentially antagonistic, even or specially when the
fetishism is an exaggeration of what is fashionably acceptable [...]” (KUNZLE, 2004, loc 500, trad. nossa)
176
V.4. O punk dos anos 1970 e Madonna

Figura 52. Cherie Currie, 1977, vocalista do primeiro grupo de punk rock exclusivamente feminino, The
Runaways – do qual também participaram Lita Ford, Sandy West, Jackie Fox e Joan Jett. O grupo não fez muito
sucesso nos Estados Unidos, mas foi uma grande sensação principalmente no Japão, onde realizou-se o concerto
no qual a Cherie de apenas dezoito anos fez a emblemática aparição, vestindo apenas o corset branco, com
calcinha, cinta liga e meia arrastão21 . Mais do que por sua música, o grupo é lembrado pelo abuso de álcool e
drogas, bem como pelos escândalos, protagonizados por Cherie e Joan Jett. Imagem: Typewrite Socialite.

21 É possível assistir um trecho de uma das aparições do grupo no Japão, apresentando o maior sucesso da
banda, a música “Cherry Bomb”, no link: https://www.youtube.com/watch?v=pMDn6V7ZLhE
177
Figura 53. Madonna, em um dos concertos da Blond Ambition Tour, veste o polêmico corset desenhado por
Jean-Paul Gaultier, em 1990. O corset, que na realidade é um bodysuit, une em seu design diversos aspectos da
lingerie feminina, do corset tradicional à cinta dos anos 1990, que tornaram-se de alguma maneira fetichizados:
o soutien cônico dos anos 1930, as ligas, a calcinha cavada, e o cetim rosado. Imagem: The Times.

Após a efervescência do movimento pela Libertação das Mulheres, em 1968, a força das
células feministas foi diluindo-se e, com elas, o volume de protestos contra os objetos da
opressão feminina foi perdendo a força, até desaparecer (ao menos do destaque das grandes
mídias). Ao mesmo tempo a pacífica juventude, que protestava pela revolução sexual e contra

178
a guerra (do Vietnã), foi cedendo lugar a uma revolta mais violenta contra o sistema
manifestada, na música, pelo punk.
As bandas mais emblemáticas do movimento são propriamente masculinas, como Sex
Pistols, Ramones ou The Clash, mas a identificação da juventude com este gênero não se
limitava aos homens. Muitas garotas não apenas frequentavam concertos e casas noturnas
deste gênero musical, como também aprenderam a tocar instrumentos e arriscaram-se em
composições. Neste contexto, o produtor Kim Fowley “recrutou” as cinco garotas, formando
com elas a primeira banda de rock exclusivamente feminina, chamada The Runaways – As
Fugitivas.

Figura 54. The Cherie Currie Corset Tee, camiseta comercializada pela Blackheart Records, no valor de $25. Na
descrição do produto, encontramos “[camiseta] delineada com o infame corset vestido por Cherie Currie no The
Runaways[...]” (trad. nossa). Imagem: Blackheart Records.

O sucesso do grupo não foi grande, e a visibilidade mediática conquistada pelas adolescentes
foi sobretudo devido ao abuso de drogas, aos camarins e quartos de hotéis destruídos, e à
exacerbação sexual das roqueiras, não apenas no palco, mas na vida cotidiana. Este cenário,
179
de adesão literal ao “sexo, drogas e rock’n’roll”, foi bem recuperado por Floria Sigismondi,
em seu filme sobre o grupo. Uma das cenas que obteve especial atenção foi justamente o
concerto no Japão, em 1977, no qual Cherie, interpretada por Dakota Fanning, aparece
vestindo a lingerie no palco.
Longe de ser entendido como uma volta à opressão feminina, efusivamente combatida
em 1968, o gesto foi lido como uma libertação sexual extrema, e foi prontamente copiado por
outras cantoras de outros grupos, e mesmo pelas fãs. O sucesso do corset branco com rendas e
fitas pretas foi tamanho, que até a atualidade é possível comprar uma réplica dele em sites
especializados ou, para as menos ousadas, uma divertida camiseta, com estampa digital do
corset (figura 54).
O sentido investido na lingerie extremamente feminina – adornada, à moda do século
XIX, com rendas, passa-fitas e fitas de cetim – utilizada em um concerto de punk rock é, por
vezes, semelhante àquele manifestado pelo corpo excessivamente constrito da tightlacer.
Trata-se, antes de mais nada, de uma libertação sexual via exacerbação. A diferença é que, tal
como o “corset” comercializado pelo fabricante Agent Provocateur (figuras 25 e 26), este
modelo escolhido pela jovem cantora não produz uma modelagem expressiva do corpo. Seu
desenho, no entanto, reenvia àquele do corset tradicional, sugerindo-nos a presença de um
forte fazer crer na veracidade deste falso corset.
A diferença entre esta lingerie e um corset tradicional, talvez, passasse despercebida
puramente por uma falta de conhecimento dos espectadores acerca do mesmo, banido
definitivamente da grande moda desde 1920. Por outro lado, a força desta aparição de Cherie
não é diminuída por não tratar-se de um corset tradicional – que provavelmente a teria
impedido de cantar – sobretudo porque conta com a crença de tratar-se de um corset
“verdadeiro”. No entanto, ainda que se tratasse de uma aparição de calcinha e soutien, ou de
soutien e cinta, é possível afirmar que o gesto seria igualmente interpretado como rebeldia,
uma vez que o “choque” provocado está ligado ao uso da lingerie como figurino, e não à
procedência ou ao modelo de roupa de baixo escolhido. Das possíveis combinatórias citadas,
no entanto, é evidente que o “corset”, escolhido por Cherie, é aquele investido de maior carga
simbólica – de opressão feminina, etc. Ou seja, ao escolher realizar sua performance vestindo
um corset, no qual a cantora grita, contorce-se e requebra, expondo as pernas afastadas,
Cherie transforma o sentido até então investido no corset tradicional, apropriando-se dele
como instrumento da própria rebeldia/libertação sexual.
180
The Runaways não foi um grande sucesso – mas revelou, entre outras coisas, o talento
de Joan Jett, uma das maiores roqueiras de todos os tempos. O poderoso gesto de Cherie,
contudo, não foi em vão, e abriu espaço para que uma outra cantora, cuja carreira já dura vinte
vezes mais que aquela do The Runaways, pudesse expressar-se de maneira semelhante em
seus concertos e em sua música: a rainha do pop, Madonna.
A globalmente celebrada cantora, atualmente com 56 anos de idade, não é conhecida
como a rainha do pop à toa. Sua música esteve no topo das paradas desde sua primeira
aparição, no início dos anos 1980, com o album Madonna (1983), até a década presente, cujo
trabalho mais recente é o album MDNA (2012). Além da voz, das letras emancipatórias e da
indescutível habilidade como dançarina, Madonna conta, desde os anos 1990, com uma
importante aliança com o mundo da alta costura, seja na criação de seus figurinos, seja nas
aparições em desfiles e publicidades de diversas maisons, como Jean Paul Gaultier e Yves
Saint Laurent.
Pamela Church Gibson destaca que Madonna é um dos ícones da moda mais
duradouros de todos os tempos (CHURCH GIBSON, 2012). Queridinha dos estilistas há mais
de vinte anos, Madonna já vestiu, no palco e na vida, roupas e acessórios das maisons mais
cobiçadas do mundo. Ao longo de seus trinta e um anos de carreira, ela também foi capaz de
performar recorrentes aparições na mídia, cada vez mais espantada com a beleza, juventude e
com a figura excepcional de Madonna, cujo corpo é cultivado, principalmente, com exercícios
derivados da Yoga e do Pilates. Mais do que um ídolo musical, ou da moda, Madonna é uma
espécie de ídolo total, reverenciado e invejado simultaneamente por todas as suas qualidades e
conquistas.
No início de sua carreira, Madonna aparece investida de valores de ruptura, tanto
quanto a jovem Cherie. Amado por alguns, odiado por outros – mas nunca produtor de
opiniões “neutras”, afóricas – o pop de Madonna sempre chocou, e a cada novo álbum, este
valor de inovação aparece de alguma maneira reformulado, re-significado. Nos anos 1980, ela
de certa maneira “funda” o gênero pop. Nos 1990, sua música se torna mais próxima do
emergente gênero denominado como dance. No início dos 2000, no épico “Confessions On A
Dance Floor”, Madonna abraça os beats eletrônicos e faz uma de suas maiores tournés, na
qual inclui alguns de seus clássicos, repaginados com o toque eletrônico – como “Like a
Virgin”, “Paradise (Not For Me)” e “Ray of Light”. Nos 2010, os albuns “Hard Candy” e

181
“MDNA” aproximam-se mais do r’n’b e da black music, gêneros mais difundidos sobretudo
nos Estados Unidos.
Pouco importa, no entanto, de qual outro gênero musical seu pop se aproxima:
Madonna carrega consigo, via de regra, uma isotopia de ruptura com o socialmente aceito.
Neste sentido, de todos os corsets já utilizados por Madonna em suas tournés, aquele
desenhado por Jean-Paul Gaultier (figura 53), justamente o mais famoso, é o mais importante.
Segundo Ana Claudia de Oliveira, ao desenhar o celebrado corset, utilizado pela cantora na
Blonde Ambition Tour, Gaultier “[...] ironiza os efeitos de sentido explorados por essa peça
vetimentar ao longo de sua adoção no vestuário feminino” (OLIVEIRA, 2008b). São
diferentes momentos da lingerie modeladora feminina reunidos em um, utilizado não como
roupa de baixo, mas como figurino, por uma cantora extremamente polêmica e com uma
visibilidade já aumentada, em um contexto global. O soutien cônico, marca das décadas de
1930-50, e um dos maiores alvos da ira feminista de 1968. As ligas, que reenviam às meias de
seda 7/8, símbolo eterno da sensualidade feminina. As linhas do corset, que o mesclam ao
bodysuit dos anos 1960, e até mesmo o zíper frontal, que retoma uma conquista da autonomia
feminina no vestir-se, com a invenção do split busk. Todo o conjunto coroado pelo cinto, que
evidencia a cintura marcada, e em cetim rosado – material relacionado ao fetiche dos corsets
do século XIX (STEELE, 2001).
O famoso corset contém em si uma espécie de linha do tempo da lingerie no ocidente
europeu, contemplando em uma única peça o corset, o soutien, a cinta e a calcinha. Seu
design contém dois importantes aspectos da forma, o cone exagerado dos seios, e o “V”
pronunciado da calcinha, que manifestam um prolongamento dos mamilos e do sexo,
revestindo o corpo de Madonna de uma espécie de hiper-sexo. Ao mesmo tempo, trata-se de
uma peça desenhada e confeccionada no contexto da alta-costura, o que o investe de um valor
de objeto de desejo – surpreendentemente, tal e qual o mambembe “corset” utilizado por
Cherie – infinitamente replicado e pirateado por corsetiers, profissionais ou não, do mundo
todo.
O que une estes dois momentos de uma tendência, iniciada por Cherie e continuada
por Madonna, é uma espécie de adesão do grande público – que pode ser lida, neste contexto,
como uma sanção – às aparições das cantoras, via imitação dos figurinos (e, no caso de
Madonna, de seu estilo como um todo). Trata-se, em ambos os casos, de momentos
complexos, que constituem diferentes etapas de um mesmo programa narrativo.
182
Primeiramente, ambas lideram momentos de ruptura, seja na música, seja na moda. No caso
de Cherie, após este acidente inicial, o grupo desaparece, mas no caso de Madonna, há uma
continuidade e um crescente aumento de seu sucesso. A partir disso, há uma adesão cada vez
maior à moda lançada pela cantora, bem como à música por ela produzida. Seu papel na
própria narrativa passa a ser, então, aquele de produtora de sucessivas rupturas, mantendo-se
em um constante estado de produção destas descontinuidades.
Neste imbricado jogo de fraturas, Madonna investe-se de um forte valor de
imprevisibilidade: não há como saber o que esperar de seu próximo álbum, de seu próximo
show. Apesar da recorrente aparição do corset em seus figurinos, é igualmente impossível
prever como será o próximo (ou sequer prever se o corset estará presente na próxima tourné).
Mesmo diante de um aparente entrelaçamento entre o programa narrativo de Madonna e do
corset, a aparição ou não deste último não é uma constante programada ou algorítimica.
A relação entre corpo e corset aparece, nos dois casos, invertida, passando o sujeito,
portador do corpo, ao papel de destinador. Este papel, no entanto, aproxima-se mais do
destinador “divino”, aquele ao qual o sujeito coloca-se em relação de assentimento, a partir da
probabilidade mítica (LANDOWSKI, 2005). Em outras palavras, o destino do corset (ou seja:
seu uso ou não uso, sua existência ou não existência) passa a depender do sujeito mulher, que
escolhe utilizá-lo ou não utilizá-lo aleatoriamente. Na escala de uma figura como Madonna, a
escolha desta destinadora particular pode (ou não) determinar uma adesão coletiva, bem como
um proporcional esquecimento coletivo.
Seria possível afirmar, portanto, que não é o corset que forma Madonna, mas Madonna
quem forma o corset. O mesmo pode ser declarado, evidentemente em uma escala diminída,
acerca de qualquer mulher que utilize o corset como um mero paradigma presente em seu
guarda-roupas. O corset perde o estatuto de sine qua non da vestimenta feminina, para tornar-
se uma de muitas de suas possibilidade. Igualmente, sua distância do papel temático feminino
nunca foi tão grande: ainda que Madonna seja mãe, a associação entre os corsets por ela
vestidos e os valores de maternidade e procriação jamais seria possível. Pelo contrário: tal e
qual os tightlacers, Madonna brinca com as posições estáticas do masculino e feminino,
distorcendo-as e ressignificando-as, tornando-se, ela própria, um “outro gênero”, o gênero
Madonna.

183
Figura 55. À esquerda: “The Confessions Tour”, 2006, em corset da maison Yves Saint Laurent. Imagem: Up

Style Magazine. À direita, na “MDNA Tour”, 2012, o próprio Jean-Paul Gaultier cria um corset inspirado naquele
desenvolvido para a “Blond Ambition Tour”. Imagem: Daily Mail.

V.5. Amarração

A dificuldade em postular uma categoria do uso (ou não uso) do corset regida pelo regime do
acidente reside, justamente, na dificuldade em identificar descontinuidades em um aspecto do
social, a Moda, tão atrelado à programação, às isotopias de comportamento e à busca pelo
pertencimento. Um dos principais valores apreendidos destas quatro posições, sem sombra de
dúvida, é uma espécie de euforia do não-pertencer a um dado contexto. Esta disforia do
pertencimento se manifesta, em cada um dos quatro movimentos analisados neste recorte do
corpus, de maneiras distintas: em 1968, trata-se de um não-pertencer ao feminino; na moda de
Chanel, é um não pertencer à Belle Époque; no extreme tight lacing, uma oposição focalizada,
enquanto refutação da procriação como única forma de sexualidade; e finalmente, quando
apreendida em conjunto com a música, esta ruptura parece abrigar uma união das três
anteriores, enquanto conflito seja com a moda vigente, seja com a restrição da sexualidade, ou
com qualquer tentativa de limitação da expressão de si.

184
O arranjo dos valores apreendidos neste recorte, portanto, emerge como o mais
evidente de todos até então analisados: existe uma clara oposição de base entre o abismo da
constrição total do corpo, e a busca pela completa supressão de sua prática, presentificados
pela oposição extreme tight lacing vs. libertação feminina. Para Kunzle, no entanto, estes dois
valores não são opostos (KUNZLE, 2004), mas o termo complexo que une estas duas
posições presentifica o eixo da tradicional luta pela libertação feminina. O que separa os dois
momentos, opondo-os, é o papel investido pelos sujeitos no corset: em 1968, enquanto
opressor, e no tight lacing, como instrumento revolucionário.
Nos dois casos, portanto, há um deslocamento de papéis em relação ao restante do
corpus. Se até aqui os instrumentos de constrição eram os protagonistas da formação do
corpo, o acidente reside justamente no fato de o próprio corpo tomar, para si, este
protagonismo. Se o tight lacing e 1968 podem ser dividos em “sujeitção” e “emancipação” do
corpo em um micro-corpus, presentificado pelo recorte apresentado neste capítulo, no todo da
moda ocidental (ou ao menos no todo deste trabalho), ambos os corpos são emancipados, uma
vez que ambos encontram-se em oposição à moda. Seja a cintura tão constrita que ultrapassa
o limite do feminino, sejam os cabelos curtos e ausência de modelagem do corpo, ambos os
corpos ultrapassam, para mais ou para menos, o limiar do que pode ser considerado (e aceito)
como um corpo feminino.
Na abordagem dos subcontrários, fica igualmente evidenciado o potencial de
cooptação de tendências revolucionárias pela moda produzindo, em lugar de revoluções de
cunho político e social, tendências de vestuário extremamente difundidas. É o caso de dois
ícones atuais – para não dizer atemporais – da moda, Chanel e Madonna.
Da mesma maneira que os contrários separam-se na sujeição e emancipação do corpo,
os mesmos valores encontram-se manifestados nos subcontrários, cujas marcas mais
evidentes são aquelas da ambivalência do gênero. No caso de Chanel, há uma espécie de
“prévia” da revolução de 1968, presentificada não apenas pelos cabelos curtos e pela
incorporação de peças típicas do vestuário masculino, mas pela própria postura do sujeito de
carne e osso, Gabrielle Chanel – que, como vimos, pouco distancia-se da moda por ela criada
– no que toca a emancipação financeira e profissional, bem como a almejada e praticada
mobilidade do corpo. No caso de Madonna, a expressão livre de si e da própria sexualidade
borra os limites entre o masculino e o feminino, deslocando completamente o uso do corset de

185
sua relação com o papel temático – e aparecendo, da mesma maneira, como um estágio
anterior à marcada ruptura com o gênero feminino atingida pelos tightlacers.

Figura 56. Quadrado dos usos excepcionais do corset, regidos pelo regime do acidente.

O caráter de transição dos subcontrários, no entanto, permite uma melhor assimilação por
parte da moda. Tanto a radical transformação do corpo obtida por meio do tightlacing, quanto
a negação total dos objetos “definidores de gênero”, presentificam alterações corporais
extremas demais para serem assimiladas por um grande público – pelos evidentes prejuízos
corporais, ou mesmo sociais, decorrentes de ambas as posições. A versão Chanel da
emancipação do corpo (e, consequentemente, feminina), ou a “sujeição” do corpo praticada
por Madonna não apenas produzem valores estéticos melhor aceitos – em ambos os casos,
manifestação de uma genuína elegância e distinção – como apresentam aos seus destinatários
figuras melhor sucedidas em todos os aspectos, inclusive financeiro.
A passagem pelas diferentes posições contidas neste recorte, inclusive, são
cronológicas: iniciam-se no auge da prática do tightlacing, no final do século XIX, passando à
negação do uso do corset pela silhueta proposta pelo total look de Chanel, que desenvolveu-se
na completa negação da feminilidade no movimento pela libertação das mulheres. O resultado
desta completa negação é uma negação da negação, nos anos 1970, no retorno do “corset”
com valores redefinidos ou ressignificados, desenvolvido com maior visibilidade ao longo da
carreira de Madonna, que perdura até os dias atuais. De maneira semelhante, os quatro
movimentos analisados podem ser identificados como revolucionários até os dias atuais: o

186
corpo dos anos 1920 e a figura de Madonna são ainda hoje considerados como manifestações
atuais do feminino, almejadas e admiradas por uma grande parcela das mulheres. Quanto ao
feminismo e ao tight lacing, estas duas facetas do comportamento feminino, considerado por
muitos como “radical”, ainda podem ser apreendidas em pequenos grupos, exceções à regra,
mas que mantém-se firmes em sua postura de oposição ao papel temático, seja da moda, seja
do corpo.

187
VI. Amarração: do ponto de vista do corpo

A análise desenvolvida até aqui foi certamente guiada pelo objetivo de abordar o corset como
o sujeito que pratica a ação sobre outro sujeito, o corpo. Para embasar tal abordagem, foram
analisados quatro recortes, cada um deles composto por quatro tendências emblemáticas de
lingeries constritivas, os corsets, cada grupo compondo uma categoria na qual a interação do
corset com o corpo é regida por um dos quatro regimes de interação e de sentido
(LANDOWSKI, 2005).
No entanto, ao longo das análises, percebemos que ainda que o corset encontre-se
investido de um certo papel actancial – seja ele um papel temático, um papel de destinador,
um papel sensível ou mesmo um papel catastrófico – o efeito de sentido produzido no corpo
que o porta pode originar valores diversos, conflitantes, sugerindo a presença de um outro
modo de interação que não é complementar àquele da ação do corset. Desta maneira, é
possível aprofundar o estudo dos regimes de sentido, ao admitir que existem momentos do
percurso narrativo em que os regimes de interação combinam-se: tal possibilidade é apontada
pelo próprio idealizador do modelo, ao postular que cada passagem por um dos quatro
regimes de interação também abriga a passagem pelos demais regimes, produzindo uma
espécie de “elipses dentro da elipse”. Estas passagens são produtoras de quatro posições
definidas como lógicas: da regularidade, da intencionalidade, da sensibilidade e do acaso,
como mostra a figura abaixo, extraída do livro “Les interactions risquées” (LANDOWSKI,
2005).

Figura 57. Elipse das lógicas dos regimes de interação e de sentido.

188
Considerando tais postulações, é possível reordenar o corpus analisado em uma grande elipse,
baseada naquela exposta acima, re-combinando as análises realizadas em quatro grandes
“momentos”, ou nas quatro lógicas do uso do corset. No interior delas podem ser apreendidas
as passagens, dentro de cada recorte do corpus, pelos diferentes regimes de interação e de
sentido. Esta reorganização admite, assim, que ainda que exista programação, manipulação,
ajustamento e acidente “puros” em alguns momentos isolados do percurso do uso do corset,
em outras posições estes regimes podem ser combinados entre si, produzindo, por exemplo,
uma “programação acidental”, ou um “ajustamento manipulado”, ou, ainda, um “acidente
programado”.
O estudo das passagens que não limitam-se ao estudo das posições complementares –
ou seja, da programação programada, da manipulação manipulada, do ajustamento ajustado e
do acidente acidental – abriga a importante incumbência de expor que as interações nem
sempre (ou quase nunca) ocorrem de maneira tão dicotômica ou prática, protocolar, mas
geralmente existe conflito entre os atores de um mesmo percurso, sobretudo no campo da
moda. Na apreensão e análise destes conflitos entre diferentes maneiras de inter-agir,
encontramos um sentido mais profundo, no qual inscrevem-se as rupturas nos humores da
moda a partir do que pode ser lido como a vontade do corpo, ou da observação das mudanças
nas tendências de uma época a partir do ponto de vista do corpo como primeiro sujeito da
interação.
Observando a elipse das lógicas do uso do corset (figura 58), é possível apreender que
em apenas quatro, das dezesseis posições observadas, foi identificada a convergência dos
modos de interação do corpo e do corset, produzindo uma relação de complementaridade.
Estas quatro posições, que podem ser categorizadas como investidas da presença “pura” de
cada um dos quatro regimes, presentificam tendências de moda consolidadadas, na
constelação da prudência – como a moda de meados do século XVIII, ou a tendência atual de
corpo manifestada pelo uso do Shaper de Dr. Rey – ou as rupturas com tendências do traje
mais reconhecidas historicamente enquanto tais, formadoras da constelação da aventura – a
passagem de uma moda “rococó” para aquela “neoclássica”, e a revolução da “queima do
soutien”. Estas duas constelações, por sua vez, resumem o tom das mudanças ocorridas na
moda ao longo dos séculos estudados, que podem ser lidas como trânsitos entre movimentos
de “Sujeição do Corpo” (a prudência, caracterizada pela regularidade e pela
189
intencionalidade)e a “Emancipação do Corpo” (a aventura, caracterizada pelo acaso e pela
sensibilidade).

Figura 58. Elipse do corpus reorganizado a partir das quatro lógicas da interação e do sentido propostas por
Landowski (2005).

Contudo, caso nossa análise objetivasse caracterizar apenas as relações de complementaridade


entre ação do corpo e ação do corset, seria possível resumir o resultado obtido ao longo da
pesquisa no seguinte esquema:

190
Figura 59. Quadrado das conformidades entre o uso do corset e o sentido produzido no corpo. Quando lido a
partir do primeiro termo, presentificado pelos stays do século XVIII, as passagens podem ser lidas inclusive de
maneira cronológica, iniciando no século XVIII, seguindo para a ruptura com a constrição do torso no período
neoclássico, passando aos movimentos de 1968 e terminando, no século XXI, no uso de cintas elásticas e
tecnológicas. Finalmente, a última posição, termo de negação da Libertação das mulheres, possui uma forte
relação de implicação com o primeiro corset analisado neste trabalho, caminhando para a sujeição total do corpo,
fechando um grande ciclo do uso da constrição na moda ocidental.

Elaborando mais profundamente o esquema acima, percebemos que não apenas ele encontra-
se regido também por uma relação cronológica, diacrônica, mas igualmente, ele nos revela o
caráter não estático ou cristalizado das tendências de corpo. Por um lado, o salto de 1795 para
1968 pode parecer excessivamente amplo, porém devemos ter em mente que ambas as
tendências de corpo – a neoclássica e a feminista – constituem emblemas, categorias
representativas que reenviam a diversas outras configurações de corpo que abarcam traços
semelhantes. Tal como postulado por Greimas (1966), as isotopias apreendidas destas
categorias poderiam ser reoperadas, posteriormente, em uma análise mais completa – ou
talvez mais histórica – da moda ocidental.
Ao mesmo tempo, quanto mais atuais são os objetos analisados, maior é a percepção
de um trânsito quase que simultâneo entre diferentes valores, que passam a co-existtir de
maneira concomitante, em uma mesma época, como observamos no estudo do recorte que
compõe o capítulo III. O mesmo ocorria, contudo, no início do século XX, analisado no
capítulo II, quando o uso do corset S-bend e do corset Underbust ocorreu de maneira paralela,

191
em uma mesma sociedade e, muito possivelmente, pelas mesmas mulheres que já possuíam
mais de um corset, destinado cada um a um uso específico.
Este trânsito entre diferentes valores, apreendido tanto em um grande recorte temporal
quanto simultanemente, em um mesmo período, pode ser reformulado como um trânsito entre
diferentes modos de interação entre o corpo e o corset, produtor dos diferentes regimes de
sentido. Estas passagens pelas categorias encontram-se relacionadas às passagens cíclicas das
configurações de silhueta apreendidas da relação entre corset e corpo:

Figura 60. Elipse das passagens entre as quatro categorias de uso do corset identificadas pela análise do corpus:
uso tradicional, regido pelo regime da programação, corset reformulado, regido pelo ajustamento, uso
excepcional, regido pelo acidente e corset elástico, regido pelo regime de manipulação.

Mas de que maneira podemos ler as outras doze posições identificadas, onde há relações de
conformidade, contradição e mesmo contrariedade entre o papel investido no corset e o papel
assumido pelo corpo? Considerando a natureza dos sentidos produzidos, seria possível, talvez,
afirmar que esta relação de não complementaridade entre os papéis do corset e do corpo
manifesta uma maior autonomia do corpo – e consequentemente, do feminino – ou ao menos
a sugestão de uma busca ou luta por esta maior soberania.
Por um lado, este dado confirma a nossa hipótese inicial, de que é o corset que
determina a moda e, consequentemente, seu entorno, o contexto da interação social com este
192
corpo, formado pelas silhuetas vestidas. Não existe uma mudança substancial de sentido do
corpo vestido enquanto o corset não muda, ou seja, é difícil que o corpo produza esta
mudança por si só, e como vimos, em alguns momentos analisados – como o uso da ‘Little X’,
nos anos 1960 – mesmo quando o corset oferta uma maior liberdade para o corpo, o sujeito
mulher continua a demandar uma conformação a um ideal, de certa maneira, ultrapassado.
Por outro lado, no entanto, as passagens podem igualmente manifestar uma gradual
“revolução” do corpo, que serve de instrumento de coerção na transformação do próprio
corset. Aceitando esta direção, advinda da própria análise, é possível concluir que as quatro
grandes categorias manifestam a ação do corset como sujeito “principal” da interação, ao
passo que as doze posições de passagem, nas quais não há complementaridade entre corpo e
corset, manifestam o que pode ser chamado de um “corpo inconformado” com sua própria
conformação, em luta contra a sujeição (ou na conquista do direito de retorno a ela).

VI.1. As programações do corpo

Para dar prosseguimento à análise a partir do ponto de vista do corpo como primeiro sujeito
da interação, iniciaremos reunindo as quatro posições nas quais foi identificado um
predomínio do investimento de um papel temático na ação do ator corpo, independente do
papel assumido, na interação, pelo corset. Nestes quatro momentos do uso da lingerie
constritiva há uma prevalência do regime de sentido da programação, fundada em uma
regularidade simbólica do papel do corpo.
No esquema abaixo, retomamos a complementaridade entre os dois papéis,
identificada no uso do corset e da crinolina, no século XVIII, como manifestação última de
um papel temático feminino de procriadora, bem como da vontade do corpo de cumprí-lo, de
adequar-se a ele – por meio do aumento do quadril e da diminuição da cintura que, por sua
vez, permitiam ao vestido manifestar, no exterior, os mesmos valores cultivados no corpo pela
roupa de baixo. A prática do extreme tight lacing aparece, nesta configuração, enquanto
oposição mais clara ao papel temático, via exacerbação das características sexuais. O exagero
da cintura, oposto ao realce “normal”, aceito pela moda, aparece como produtor de um
sentido de repulsa, disfórico, oposto à euforia (atração) pelo corpo “correto”, do século XVIII.

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Figura 61. Elipse dos usos do corset nos quais predominam o regime de programação na ação do ator corpo, em
complementaridade (séc. XVIII), conformidade (La Perla), contradição (Little X) e contrariedade (Extreme Tight
Lacing) com o papel assumido pelo corset.

Como identificado por Kunzle, por meio de outras metodologias, o tight lacing é mais um
instrumento revolucionário do que de opressão (KUNZLE, 2004), e pode ser lido, nos termos
propostos ao longo deste trabalho, como uma emancipação do corpo, uma vez que a
transformação radical, que ultrapassa o corpo “correto”, liberta-o (e, conjuntamente, liberta o
sujeito) da sujeição aos ideais em circulação. Do ponto de vista do feminino, este corpo que
quer ser visto pela exacerbação de sua cintura – e consequentemente de seus seios e quadris –
está, em realidade, manifestando sua emancipação (sobretudo sexual) do papel temático de
esposa procriadora, dando lugar à busca por uma construção de um parecer livre das
obrigações sociais.
O que causaria a relatada repulsa às tightlacers (Cf. KUNZLE, 2004, STEELE, 2001),
portanto, seria a disforia da liberdade feminina, no plano do conteúdo, figurativizada pela
cintura extremamente constrita. Trata-se de uma apreensão semi-simbólica, na qual a
liberdade de constringir a cintura além do ideal aceito é homologada à prática do aborto e do
infanticídio, enquanto oposição à própria fertilidade. Esta oposição ao valor manifestado pelo
corset tradicional, por sua vez, permite entrever a contrariedade entre corpo e corset, na qual o
corpo permanece apoiando-se em uma programação, necessária à realização do corpo

194
almejado, mas cuja figuratividade pretendida transforma o sentido original do corset,
conferindo a ele um papel catastrófico.
Nesta oposição de base, ambos os usos identificados permanecem, do ponto de vista
do corpo e do corset, compondo um eixo de valores tradicionais. O tight lacing, ainda que
apareça como uma prática de afronta aos papéis estabelecidos para a mulher, apoia-se tanto no
fazer tradicional do corsetier, quanto na anatomia original do corset. O caráter de oposição do
tight lacing pode ser lido, portanto, como um hiper exagero do tradicional, tal como o sentido
conferido ao corpo é aquele de um excesso na manifestação de suas características sexuais, o
que reenvia à figura do virtuoso (LANDOWSKI, 2009), ou aquele que ultrapassa, por meio
de sua performance, os limites estabelecidos para o uso ou a prática de um objeto.
A relação de conformidade, identificada no shaper de La Perla, aparece como negação
da exacerbação sexual, por meio da masculinização das linhas da silhueta e da interdição do
próprio sexo. Esta masculinização – em realidade uma negação dos traços femininos
homologados ao valor de procriação – manifesta uma negação da sexualidade acentuada, que
é identificada com um ideal pós-libertação feminina, de igualdade entre os sexos, sobretudo
no que toca o mundo do trabalho. Contudo, em lugar de buscar a libertação feminina pelo
exagero da feminilidade (que, por vezes, transcende-a, como ocorre na figura da tightlacer), o
sujeito busca a libertação por meio da castração, identificando-se ao corpo dos homens. Trata-
se da adesão a um complexo contrato, no qual além do corset, outros destinadores sociais
encontram-se atuantes, todos contribuindo para a formação de uma imagem feminina
idealizada, na qual o sexo (e consequentemente a família, os relacionamentos, os filhos) não
ocupa um papel central. Esta aspiração feminina é substituída pelo desejo de sucesso
profissional e financeiro, que só pode ser atingido por meio da dedicação total ao trabalho.
Finalmente, a negação do papel temático pela relação de contradição, identificada na
cinta Little X dos anos 1960, aparece na permanência de uma configuração de corpo – com a
cintura marcada e quadril modelado – porém investida de outros valores, como a mobilidade,
a prática esportiva. O corset reveste-se de competências estésicas, mas o corpo permanece
vinculado ao ideal de silhueta vigente, rechaçando a iminente revolução feminista. A
contradição aparece como uma espécie de luta por um “direito à feminilidade tradicional”, em
um cenário da inevitável destruição deste modelo de mulher, que ocorreria alguns anos após o
lançamento desta cinta. O próprio corset deseja conduzir o corpo em direção a um papel mais
emancipado, todavia este recusa a mudança, mantendo-se leal ao formato conhecido. É
195
interessante a relação de implicação entre a “Little X” e o extreme tight lacing, que abriga uma
emancipação do corpo via exagero de um ideal. Pela conformação do corpo material, é
possível atingir uma libertação dos ideais em circulação, ao exagerá-los e ostentá-los na
própria figura.
Este eixo subcontrário posiciona o corpo que veste o Shape Couture e a “Little X” no
termo neutro que presentifica o valor atual, que pode ser lido de duas maneiras distintas.
Primeiramente, pela cronologia e pela própria inovação do estado conferido ao corpo: em
ambos os casos, tratam-se de corsets confeccionados em matérias que apresentam elasticidade
em sua composição, que apesar de produzirem modelagens impositivas, permitem uma
mobilidade maior do que aquela do corset tradicional, presente nos corpos do eixo tradicional.
Por outro, os dois corpos manifestados nos subcontrários são versões aperfeiçoadas de outros
corpos, propriamente tradicionais, seja o corpo masculino proposto pelo movimento de 1968,
aprimorado pelo modelador de La Perla, seja o corpo tido até hoje como hiper-feminino,
herdado dos anos 1930-50.
É importante observar que existe um forte traço plástico que atravessa os três corsets
analisados que aproximam-se mais do regime de programação – e que pode ser identificado,
de maneira extremada, também no corpo do tightlacer. Trata-se do cruzamento de linhas no
centro do corpo, na cintura, que forma um “X” central. Este traço aparece de maneira mais
literal no “X” central do La Perla Shape Couture e na modelagem da “Little X”, mas pode ser
identificado nos arranjos plásticos dos corpos vestidos formadores do eixo dos contrários, o
corpo do traje à francesa, e o corpo do tightlacer.
Reelaborando as dêixis da sujeição e emancipação, é possível retomar a oposição entre
constrição e liberdade, que vai se relativizando conforme as relações estabelecidas
consideram o ponto de vista do corpo. Além da sujeição tradicional, relacionada ao papel
temático, há a sujeição do corpo via adesão, uma sujeição do corpo para uma ilusão de
emancipação em outros níveis (profissional, financeira), que é produtora de uma sujeição total
do sujeito, uma constrição de sua presença social. A mulher manifestada pelo uso de La Perla
encontra-se constrita não apenas em sua silhueta, mas em sua agenda, em seus horários, em
seu tempo livre, em seu orçamento. Esta sujeição, no entanto, é elástica, tanto quanto o corset
que recobre o corpo do século XXI, e é vendida como um ticket para a libertação feminina.
Papel voluntário, de destinatária do corset, rumo à volta ao papel temático, que nos deixa a
questão: seria a “mulher carreira” o papel temático feminino de nossa era?
196
Do lado da liberdade, ou da emancipação, ambos os corpos apropriam-se de
características femininas tradicionais, principalmente o quadril modelado e ressaltado pela
constrição da cintura, para opor-se ao contexto social vigente. No extreme tight lacing, trata-
se da liberdade de ser extremamente modelada, mais constrita do que as outras mulheres,
produzindo um corpo único, fora do padrão. No uso da Little X, trata-se do direito de ser
feminina – e, porque não, ao modo da personagem Joan, no filme “O Sorriso da Monalisa”,
desejar ter uma família, mais do que a carreira de advogada – em um contexto de iminente
revolução feminista, apoiada na dissolução da feminilidade tradicional como única via para o
fim da opressão das mulheres.

VI.2. O corpo manipulado/manipulador

Revisitando o corpus, é possível igualmente reconhecer que um forte traço plástico une todos
os objetos identificados com a presença do regime de manipulação na ação do corpo: trata-se
de uma divisão precisa do talhe, manifestada pela modelagem do corset, que pode ser
relacionada com maior ou menor clareza à própria divisão anatômica do corpo. Esta relação
vai tornando-se menos evidente conforme o papel do corset desloca-se da constelação da
prudência (marcada pela sujeição do corpo) em direção à constelação da aventura (lugar da
emancipação), mas não deixa de ser perceptível sequer quando o corset encontra-se associado
ao papel catastrófico.
O traço da setorização do corpo beira a obviedade no Shaper de Dr. Rey, em cuja
análise, inclusive, indicamos a proximidade entre o corte da cinta e o diagrama dos cortes
bovinos: a precisão do fazer do cirurgião (ou do açougueiro...) encontra-se manifestada de
maneira clara na modelagem deste corset. Nesta diagramação do corpo, inclusive, reside a
precisão do fazer da cinta, elaborada a partir dos conhecimentos do cirurgião plástico,
transpostos para a indústria têxtil pela mediação do designer Bruno Schiavi. Uma proposição
semelhante àquela identificada no corset S-bend, cuja principal bandeira era aquela da saúde
conferida ao corpo ao longo de seu uso: os recortes, mais anatômicos do que aqueles dos stays
do século XVIII ou dos demais corsets do século XIX, serviam à criação de uma modelagem
em maior sintonia ao corpo natural, poupando os órgãos internos da compressão do corset
vitoriano e, ao mesmo tempo, facilitando a digestão e a respiração durante seu uso. A
consequência desta modelagem mais “consciente” é uma setorização do corpo muito
197
semelhante, na qual, ainda que de maneira menos precisa, a mesma separação das “carnes”
femininas é manifestada.
A relação mais evidente com esta divisão do corpo – setorizar para modelar melhor –
aproxima os dois modelos do valor de sujeição do corpo, uma vez que reforça o caráter
subjetal do corset – que é modalizado com um saber sobre os lugares do corpo, bem como
com um saber-modelar, saber-transformar – e igualmente o papel mais objetal do corpo – que
entrega-se nas mãos do “escultor” (shaper) que remodelará seus tecidos em um novo desenho,
considerado mais ideal pelos modelos de silhueta em circulação.
O traço de setorização do corpo é reiterado no corset de 1820, ainda que de uma
maneira mais poética, não por meio de painéis reforçados, mas de um gracioso e decorativo
bordado, realizado pela técnica denominada trapunto (ponto atrás), que serve à dupla função
de ornamento e de reforço/endurecimento do delicado tecido de algodão. A divisão do corpo é
dada pela intensidade do uso da linha em cada um dos locais do corset, produzindo desenhos
mais abertos ou mais fechados que adquirem uma precisão anatômica que o aproxima dos
demais, ainda que de maneira mais ajustada (e menos constritiva) do que o shaper de Dr. Rey
ou o corset S-bend.

Figura 62. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de manipulação. Além da relação de
complementaridade entre os papéis do corset (destinador) e do corpo (destinatário), identificada no uso do
Shaper Dr. Rey, há a relação de conformidade (S-bend, de 1905), contrariedade (Corset de 1820) e de
contradição (uso do corset pela cantora Madonna).

198
Finalmente, nos dois modelos de Jean-Paul Gaultier utilizados por Madonna, o original
(1990) e o modelo nele inspirado (2012), promovem uma marcada divisão do corpo da
cantora, separando-o em seios, abdome central e lateral, quadris e sexo. Não se trata, como
nos demais casos, de uma divisão do corpo para melhor modelá-lo – uma vez que a função do
uso do corset nos shows é mais estética, no sentido da decoração, do que funcional, ou de
modelagem – mas uma setorização que acentua os atributos sexuais do corpo, conferindo
destaque a eles, prolongando-os. A diferença entre o uso realizado por Madonna e aquele dos
demais modelos analisados é que, apesar de utilizar os modelos mais complexamente
construídos, o corpo de Madonna é o mais livre de todos.
Seria possível afirmar que, na relação entre destinador e destinatário, no caso do uso
(excepcional) realizado por Madonna, o corset assume o papel de destinatário, e não de
destinador. Esta inversão, inclusive, é extendida ao contexto social, uma vez que na figura de
Madonna predomina o papel de destinador – do corset, da tendência de moda e musical –
ainda que em alguns casos ela também assuma o papel de destinatária – dos estilistas de alta
costura, por exemplo. Em outras palavras, neste caso específico, talvez fosse possível falar em
uma inversão da relação de sujeição: não se trata apenas de uma emancipação do corpo de
Madonna, mas de uma sujeição do desenho do corset ao seu corpo.
A liberdade aparece presente, ainda que em menor grau, também no modelo
neoclássico, de 1820. Apesar de promover uma constritiva transformação do corpo, o modelo
é o único deste recorte que exalta um corpo que parece ser livre, herdado da virada do século
XVIII para o XIX.
Surpreende, nesta recategorização do corpus, a identificação de Madonna ao eixo
tradicional. Tal posicionamento não deixa de ser verdadeiro, se considerarmos que, apesar das
constantes rupturas manifestadas pelas figuras da cantora, nós nos acostumamos, de certa
maneira, à sua previsível imprevisibilidade. O próprio “título” conferido a ela, de “Rainha do
Pop”, coloca-a em uma posição tradicional, monárquica, constantemente utilizada como
parâmetro de comparação quando a crítica é exercida a outras divas (ou princesas...) do pop
mais atual, como Britney Spears, no início dos anos 2000, ou mais recentemente, Lady Gaga.
Madonna é, de maneira semelhante, “tradicionalmente” um ícone da moda, há mais de vinte
anos a favorita de diversas maisons (CHURCH GIBSON, 2012). Esta análise revela
superficialmente o próprio caráter contraditório da construção mediática da cantora, hora
199
tradicional, hora atual, mas transitando igualmente entre diversos polos opostos, como
masculino e feminino. Caberia, em uma ocasião futura, um estudo mais aprofundado
exclusivamente desta relação, entre Madonna e o corset, para conclusões mais satisfatórias
acerca desta polêmica figura.
No eixo ocupado pelo atual, no entanto, fica evidente que ambos os corsets
encontram-se bem colocados, seja a inovadora cinta de Dr. Rey, na qual são empregadas
tecnologias de ponta do século XXI, ou o próprio corset de 1820, inovador à sua maneira, no
contexto do século XIX, e atual na própria configuração de corpo, mais exaltadora de uma
liberdade. Esta tendência, inclusive, parece apontar um dos possíveis rumos futuros do corpo
ocidental atual, quando há, em paralelo à hiper construção do corpo, uma busca por uma
maior liberdade, ou mais precisamente, uma naturalidade do corpo, exaltada nos dias de hoje.
Esta busca por naturalidade, em oposição à busca por uma hiper construção do corpo
retoma, inclusive, o dilema exposto por Pamela Church Gibson, acerca das duas distintas
configurações de corpo coexsitentes no século XXI, uma mais próxima da moda das
passarelas, outra mais próxima da moda popular, das ruas (CHURCH GIBSON, 2012). Estas
duas maneiras da moda afastam-se, justamente, pela sujeição do corpo, pertinente à primeira,
e sua emancipação, almejada pela segunda: dilema eterno que pauta, como comprovam as
análises aqui expostas, uma separação entre o estar na moda ou fora dela, aderindo aos
programas por ela determinados, ou contestando-os.

VI.3. Os corpos sensíveis

Um dos aspectos mais interessantes das análises realizadas é, certamente, a discreta presença
do papel sensível do corpo na interação, desde o uso tradicional até as lógicas do acaso,
marcadas pelo uso excepcional do corset ou do corpo. Esta progressiva presença do
ajustamento é uma das grandes propulsoras do desenvolvimento do próprio corset, uma vez
que a busca por uma situação mais cômoda do corpo na lingerie constritora, ou de matérias
que proporcionem este conforto ao longo do uso, é um dos grandes motivadores dos avanços
na indústria têxtil voltada para a confecção deste tipo de roupa de baixo.
Começando pela relação de complementaridade, há a primeira ruptura substancial do
uso da constrição por meio do corset, como era praticada a cerca de dois séculos. O stays de
1795, como vimos no item IV.4., propunham uma revolução do formato do corpo, tornando-o
200
mais livre. Esta transformação da silhueta abrange todos os âmbitos do vestuário, do vestido à
profissão de corsetier, que é completamente modificada, começando com a experimentação
de uma nova maneira de fazer corsets a partir dos materiais e ferramentas então disponíveis.
Outras relações entre o papel do corpo e do corset, no entanto, produzem sentidos tão
surpreendentes quanto este do corpo do neoclássico. Começando pela silhueta proposta por
Chanel, na qual identificamos a relação de conformidade entre papel do corpo e o papel do
corset – que, nesta tendência de moda, é um elemento ausente do traje – ainda que a moda
iniciada pela estilista adquira um caráter de forte ruptura, trata-se de uma ruptura ajustada,
sensível, que prima pela competência estésica de todos os elementos de seu total look. Do uso
de tecidos mais macios e confortáveis à utilização do perfume como complemento da roupa, a
moda de Chanel certamente inscreve-se em um forte fazer sentir, seja a mulher que a veste,
seja o outro, aquele para quem esta mulher se veste – que pode ser, como destaca Greimas, ela
própria (GREIMAS, 2002).

Figura 63. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de ajustamento. A relação de
complementaridade foi identificada nos Stays de 1795, o primeiro corset reformulado para uma melhor
acomodação do corpo. Em seguida, a relação de conformidade foi identificada na moda de Chanel, uma das
maiores disseminadoras do corpo sem corset. A relação de contrariedade foi identificada ao uso da lingerie do
fabricante TC Fine Intimates, e a contradição aparece relacionada ao uso tradicional do underbust, de 1906.

201
Termo oposto à moda de Chanel, o uso do underbust no início do século XX estabelece com o
total look uma relação parecida com aquela identificada entre o extreme tight lacing e o
movimento pela libertação das mulheres. De um lado, Chanel procura a estesia pela negação
do uso do corset; de outro, o underbust confeccionado apenas em fitas de seda busca a mesma
sensibilidade no uso do corset, tornando sua ação mais confortável, macia e afável. Esta
divisão será, sempre, a linha que determina a separação entre a formação da silhueta por
sujeição ou por emancipação do corpo. Introduzir a competência sensível no traje exaltando,
por meio dela, a competência estésica do próprio corpo, pode ocorrer pelas duas vias. No caso
do uso do underbust, o foco encontra-se na estesia da relação corpo-corset, e perpassa tanto
sua materialidade, quanto a diminuição da área do torso recoberta pela peça de roupa. No caso
de Chanel, outras formas da sensibilidade são exploradas: na supressão do uso do corset, a
estesia emerge do contato direto do corpo com a roupa, acessórios e, claro, com o perfume.
Finalmente, até mesmo a manipulação, por parte do corset, pode ocorrer por uma via
sensível, como é o caso da lingerie vendida pela marca TC Fine Intimates. O corset,
comercializado em diferentes intensidades de constrição, permite que a própria usuária decida
o quanto de compressão é confortável (ou desejável) para o seu próprio corpo. Ainda que no
contexto do contrato de manipulação, existe um evidente ajustamento entre o corpo e o corset,
no qual ambas as vontades são relevantes. Igualmente, o TC Fine Intimates produz mais uma
contensão do corpo do que uma transformação, estendendo o ajustamento também à relação
entre corset e roupa. Em lugar de propor uma revolução na silhueta para um modelo de
vestido, este corset atua suavizando a silhueta, e permitindo que a roupa escorregue sobre ele,
sem a imposição de um novo formato, seja ao corpo, seja ao traje.
Tanto no que toca a tendência de moda, sobretudo dos anos 1920 e 1950, quanto o
caráter de ruptura do total look, Chanel é indescutivelmente tradicional. No contexto do
“abandono do corset”, sua moda manifestava uma tendência atual, mas que foi rapidamente
assimilada como um “clássico” – e que para Floch, inclusive, é indiscutível a predominância
de uma figuratividade clássica, segundo as cinco categorias de Wölfling exploradas pelo autor
em sua análise do total look (FLOCH, 1995). Esta tradição, inclusive, amplia-se quando se
trata do ideal de beleza andrógina imposto pela estilista, melhor aceito do que a androginia
propriamente revolucionária de 1968 – a sutil porém fundamental diferença entre o corte de
cabelo conhecido, justamente, como chanel, e o corte estilo pixie, que tornou-se famoso a
partir da imagem da modelo Twiggy.
202
No eixo marcado pelo valor “atual”, de maneira semelhante, conservam-se as posições
ocupadas pelas inovações tecnológicas mais pronunciadas, seja sua descoberta (stays de
1795), seja o aprimoramento têxtil necessário para produzir o mesmo modelador em
diferentes graus de constrição (TC Fine Intimates). Em ambos os casos, inclusive,
concentram-se invenções muito importantes para a indústria de lingeries como um todo, as
principais: a descoberta (e aperfeiçoamento) das taças de suporte para os seios, a possibilidade
de constrição com menor volume de estrutura rígida, e a modelagem da Lycra® tubular, sem
costuras.
De maneira semelhante, do underbust a Chanel, há uma emancipação do corpo cada
vez maior, primeiro em sujeição, ainda que minimamente, à moda de frente reta, passando por
uma tendência de corpo que procura sua libertação total (1795), mas não a concretiza, até o
“abandono do corset”, idealizado por Poiret e plenamente realizado por Chanel. A volta à
constrição, no modelador de TC Fine Intimates, denuncia novamente o forte caráter de
aprisionamento do corpo vivido pelas mulheres de nosso século, no qual os modeladores são
tão populares quanto o corset tradicional o foi em seu tempo.

VI.4. O corpo como destinador (mítico) do corset

Resta retomar a interação regida pelo regime do acidente, a partir do ponto de vista do corpo.
Nesta última elipse, organizamos as rupturas com os papéis temáticos, da moda e da mulher, a
partir do sentido produzido no corpo. Novamente, a organização do corpus na elipse produz
um efeito cronológico, diacrônico, que permite identificar, em uma espécie de linha do tempo
(elíptica) os fatos que culminaram na detonação do movimento pela Libertação das Mulheres.
A complementaridade entre papel catastrófico do corpo e do corset foi apreendida
apenas no movimento pela Libertação das Mulheres, no qual é evidente que a única via é o
desentrelaçamento total dos programas narrativos do corpo e do corset. Mais que isso, não
basta manifestar o abandono da constrição pela plástica da silhueta não constrita: é preciso
destruir, ainda que simbolicamente, todos os objetos relacionados à conformação do corpo, ou
à sua sujeição aos padrões da moda, criados e perpetuados pelos homens como instrumento da
opressão feminina. Trata-se da cinta (corset), mas igualmente do soutien, das meias, dos
saltos, e até mesmo de objetos que não atuam diretamente na modelagem do corpo, no sentido

203
da compressão e aumento de suas diferentes partes, mas que dissimulam seu desenho original
de outras maneiras, como é o caso da maquiagem, dos produtos para cabelo, etc.

Figura 64. Elipse dos usos (ou não usos) do corset nos quais predomina, no corpo, o regime do acidente. Na
relação de complementaridade encontra-se o movimento pela Libertação das Mulheres, de 1968. Seguindo, na
relação de negação, há a contradição com o corset de Agent Provocateur, utilizado apenas como lingerie sensual
(e não como modelador do corpo). Na relação de contrariedade, há a interessante roupa de baixo de 1880, na
qual aparecia figurativizado o tema da morte do corset e da crinolina. Finalmente, na relação de conformidade,
identificamos o inovador bodysuit de Mary Quant, o primeiro a libertar as pernas das mulheres permitindo,
simbolicamente, a luta por sua real libertação.

A começar pelas décadas de 1870-90, estas são descritas por Kunzle como as mais feministas
de todo o século XIX (KUNZLE, 2004), nas quais não apenas foi mais aceito o uso de
contraceptivos, como a própria relação sexual foi parcialmente desvinculada do ato de
procriação. Esta maior liberdade sexual feminina aparece manifestada, no traje completo, em
sua maior leveza e dinamicidade, mas sobretudo na alteração da topohierarquia, que deixa de
privilegiar a visibilidade do sexo para deslocar a atenção do enunciatário para as costas.
Kunzle, inclusive, divaga sobre a possibilidade de uma relação deste destaque dos glúteos a
um suposto aumento do interesse pelo sexo anal, mas o próprio autor afirma não existirem
relatos ou documentos que comprovem tal hipótese (KUNZLE, 2004). Deixadas de lado estas
distrações, é possível perceber uma clara relação entre o fim do destaque dos quadris como

204
“ponto principal” do traje e a desvinculação do papel do vestido ao papel temático feminino.
Esta dissociação, inclusive, liberta o próprio vestido de seu papel temático de manifestar a
fertilidade daquela que o porta, permitindo que outros sentidos sejam investidos, tanto na
roupa quanto na figura da mulher.
Este primeiro esforço, no sentido de não manifestar-se enquanto fêmea fértil, delineia
a relação de negação entre a moda de 1880 – que, ainda que livre simbolicamente, permanece
bastante construída, constrita – e o bodysuit de Mary Quant. Em lugar de manifestar uma
liberdade simbólica, mas permanecendo com o corpo constrito e em sujeição a um ideal,
Mary Quant permite uma liberdade completa, seja da manifestação “obrigatória” das
competências da fertilidade e da maternidade, seja uma liberdade mais literal, aquela das
pernas, que podem agora abrir-se (ou fechar-se), caminhar e correr.
O modelador que fecha-se entre as pernas, ao mesmo tempo, manifesta em si um
primeiro indício do celibato revolucionário, propostos pelas líderes de algumas células do
movimento pela Libertação das Mulheres, ou a negação do sexo, que aparece “lacrado” e
constrito no bodysuit, como instrumento da libertação – da objetificação sexual, do papel da
procriação, da situação de oprimido conferida ao sexo feminino.
Finalmente, após 1968 (e, retomando as análises apresentadas até aqui, após os atos de
Cherie Currie e, subsequentemente, Madonna) o corset tem sua entrada no guarda-roupas
novamente permitida. Desta vez, porém, ele retorna enfraquecido e destituído de suas
competências de modelagem do corpo. Trata-se de um corset sem cintura, privado de seu
tradicional formante eidético, que deixa de ser o poderoso sujeito de outrora, para tornar-se
uma espécie de brinquedo erótico, um fetiche acetinado e rendado, mas que não impõe sua
forma ao corpo. Pelo contrário, conforma-se ao corpo, ou sujeita-se a ele, apenas recobrindo-
o, reenviando aos seus “dias de glória”, mas sem o saber-poder transformar o corpo. Na busca
de identificar um papel catastrófico do corset, este encontra-se inscrito nesta peça de Agent
Provocateur de maneira quase tão pronunciada quanto na revolução de 1968: em lugar de
destruí-lo, no entanto, a mulher de 1990 opta por “castrá-lo” ou, ainda, domesticá-lo,
tornando-o conformado à sua vontade e necessidade, que deixa de ser a modelagem da
silhueta. Para esta função, ela pode servir-se de modeladores melhor formulados (e
supostamente mais confortáveis) do que o corset tradicional. À mulher do século XXI – à
exceção das tightlacers, que jamais encontrarão uma lingerie melhor – o corset só serve
enquanto símbolo, manifestado sobretudo na amarração por ilhoses, no cetim, nas rendas.
205
Os subcontrários, portanto, presentificam de maneira eficaz as tendências atuais da
constrição, atuais inclusive no sentido do século XXI: o uso de lingeries constritoras/
modeladoras que prezem pela maior liberdade de movimentos do corpo, geralmente fechadas
entre as pernas ou em forma de bermuda, e o recurso aos designs inspirados no passado para o
realce da sensualidade, da feminilidade. Não se trata do corset como fetiche de constrição, de
diminuição da cintura, mas da “atmosfera” erótica que o reveste, do burlesco, do boudoir.
Esta sexualidade feminina manifestada pela lingerie opõe-se à necessidade do celibato
revolucionário, que é perpetuado atualmente na castração da sensualidade imposta ao
ambiente de trabalho, no qual as mulheres devem ser masculinizadas para conquistar seu
espaço. Esta necessidade de constrição sexual aponta o modelador de Mary Quant como
primeiro sintoma de que a luta feminista concentrava-se neste tema, da sexualidade feminina,
que pode ser tanto marca de sua emancipação, quanto de sua sujeição.
No eixo onde encontram-se investidos os valores tradicionais, nos deparamos
novamente com o dilema proposto por Kunzle, ao afirmar que o corset (e o salto alto) não são
inimigos do feminismo (KUNZLE, 2004). Observando os dados contextos, evidentemente, é
possível afirmar que as mulheres de 1880 possuíram quase tanta autonomia sobre seus corpos
quanto as feministas. Ambas, no entanto, encontravam-se sujeitas ao risco da interação com
os homens. Este risco aparece, no traje de 1880, manifestado pela presença de “armas” nas
costas, as lâminas armadas do corpete que apontam para o outro, como que protegendo aquela
que porta este vestido. Em ambos os casos, os perigos são semelhantes, relacionados às
consequências do não cumprimento do papel temático. Em 1880, o maior perigo seria,
provavelmente, não conseguir encontrar um marido – seja pelo cultivo excessivo do corpo,
seja pelo cultivo excessivo da mente, ambos considerados repulsivos e “anti-higiênicos” na
era Vitoriana. Em 1968, o perigo era mais iminente, e de caráter mais literal: não apenas nos
insultos verbais, mas nas constantes ameaças de estupro. No contexto de oposição ao
feminismo, o estupro aparece investido de um valor “corretivo”, mais que punitivo: para
aquelas que recusam o cumprimento do papel temático tradicional, seja pelo celibato ou pela
homossexualidade, o ato sexual forçado – ou a injunção do papel temático – surge como uma
reação masculina ao desentrelaçamento do programa narrativo masculino e feminino, por
meio da qual busca-se forçar o re-entrelaçamento destes programas, ou um reestabelecimento
da programação, na qual a fêmea é dominada e o macho é dominante.

206
Considerações Finais

Será possível afirmar que o papel do corset é maior, ou mais importante do que aquele do
corpo, nesta arriscada interação, produtora de tantos sentidos, da extrema conformação –
feminina, do corpo – à total ruptura com qualquer constrição, seja ela corporal ou social?
Quando iniciamos as análises, apresentadas nos capítulos de II a V, ficou evidenciado
o papel fundamental do uso do corset – independente do nome dado a esta peça – não apenas
na (con)formação do corpo, como do consequente papel feminino. Isto se dá, sobretudo no
âmbito mais programado, na constelação da sujeição (prudência), na qual fica evidente a
imbricada relação entre corpo, corset e vestido. Neste arranjo, no qual um papel temático
depende do outro, sentidos que determinam o todo da interação social entre os indivíduos de
um contexto são produzidos, seja pelos regimes de visibilidade presentes – geralmente em
relação de complementaridade, como fica evidente no traje à francesa – seja pela delimitação
espacial, que precisam de maneira clara a proxêmica adequada para a interação,
principalmente, entre homens e mulheres.
Na análise desenvolvida no capítulo II, desta maneira, fica evidenciada que nossa
hipótese principal se confirma: é possível ler a ação do corset como determinadora do entorno
social, uma vez que ele atua, num papel protagonista, na definição das relações de
proximidade e distância entre indivíduos do sexo oposto, mediando a relação da conquista, ao
mesmo tempo em que a silhueta por ele formada manifesta, no traje completo, as
competências esperadas da mulher, bem como a ação esperada do homem sobre aquele corpo.
Esta foi, no entanto, a única posição identificada no corpus no qual há uma perfeita
complementaridade entre os papéis do vestido, do corset, da crinolina, do corpo, da mulher e,
consequentemente, do homem.
A importância do papel do corpo na interação é progressiva, conforme a moda deixa
de ser ditada exclusivamente pelos homens – e isso já ocorre no primeiro recorte do corpus,
no qual analisamos o corset S-bend, cuja idealização é atribuída a uma mulher. A presença
masculina, no entanto, é constante, seja no papel de adjuvante ou mesmo de destinador –
como na marcada persona do cirurgião Dr. Robert Rey – ou de anti-sujeito, do qual busca-se
uma emancipação – como é evidente no movimento de 1968, mas também de maneira mais
sutil, na moda de Chanel, Mary Quant, e mesmo no shaper de La Perla.

207
Igualmente, ao longo do corpus, existe uma forte recorrência de traços plásticos que
relacionam-se diretamente à identificação de pontos do corpo feminino relacionados à sua
sexualidade – seios, baixo ventre, púbis e sexo. Este destaque atravessa o corpus,
independente do papel assumido, pelo corpo ou pelo corset, e manifesta-se mesmo quando o
intuito do destaque é atentar para a negação (ou oposição) do papel temático.
Este último dado demanda nossa atenção para o fato de que, independente das fortes
revoluções ocorridas, na lógica do vestuário (Chanel) ou do social (1968), a visão da mulher
por parte da indústria da lingerie constritiva ainda concentra-se, e muito, no entorno do papel
temático feminino considerado como correto no Antigo Regime. Após fortes transformações
mais emancipatórias, como aquelas de 1920 e 1960-70, a moda rapidamente retorna a
configurações corporais mais constritas, como é o caso da moda de 1930-50 – de cinta e
soutien cônico – ou das próprias cintas e shapers de nosso século, por vezes mais constritivas
e sujeitas a um ideal de corpo mais tirânico do que a própria silhueta do século XVIII.
Em “The Corset – A Cultural History”, Valerie Steele se pergunta se o ser constrito é,
então, sinônimo de ser civilizado (STEELE, 2001). O questionamento parece extremamente
pertinente, no que toca a permanência da “necessidade” de apoio da figura feminina em
objetos que promovam uma transformação de sua figura. Por que as rupturas com o uso de
tais objetos geralmente não duram mais que alguns anos, ao passo que os períodos de
constrição marcada são tão longos? É chocante, assim, a breviedade da moda neoclássica –
pouco mais de 20 anos – em relação ao período de quase dois séculos de uso de stays, seguido
de quase um século de uso ininterrupto do corset. Da mesma maneira, uma década, a de 1920,
contrapõe-se a quatro (1930-70) de uso abusivo de cintas e soutiens estruturados. Após uma
breve quase década de “liberdade”, de 1968-77, o corset volta a aparecer na figura das
cantoras do punk e, logo depois, de Madonna – e isto, sem mencionar que a “liberdade” do
movimento pela Libertação das Mulheres não manifesta uma “adesão global”, mas a luta de
uma minoria muito pontual que, de fato, acreditava nesta emancipação.
Chegando ao nosso século, desde 1968, não há uma expressiva luta contra os objetos
constritivos. Pelo contrário: revestidos de novos valores e novas qualidades de conforto e
mobilidade, os corsets elásticos atuais são cada vez melhor aceitos, no mercado e na gaveta de
lingerie. Seu uso, gradativamente difundido entre mulheres de todas as classes sociais,
aparece como uma alternativa prática à rigidez da dieta e dos exercícios, e segura, quando
comparada aos riscos de submeter-se à cirurgia plástica. No entanto, ainda que uma pessoa
208
opte por treinamento e cirurgia estética, ao invés do uso de um modelador, seria possível
afirmar que este corpo presentifica valores de liberdade, de emancipação?
Esta contradição é repetida, ao afirmarmos que o corpo da tightlacer é livre, apesar de
constrito ao limite do extremo. Após tantas análises, portanto, resta uma última reflexão, um
encaminhamento futuro para este trabalho, que é o questionamento, quase filosófico, acerca
do que é ser livre e do que é ser constrito. Nossa reflexão apontou que, deslocando o ponto de
vista, é possível perceber que algumas constrições podem ser lidas como liberdades, ao passo
que algumas liberdades são, em realidade, constrições. Neste aspecto, ao afirmar que o
sentido está na relação, Saussure nos presenteia com um fechamento para nossa reflexão: ser
livre ou ser constrito, em uma observação do uso do corset, depende apenas do ponto de vista
adotado pela análise, bem como do ponto de partida da comparação.
Em outras palavras, é possível determinar diferentes parâmetros de liberdade e
constrição, dependendo de onde posicionamos o ponto de partida da análise. Este
deslocamento de parâmetros foi desenvolvido ao longo de todos os estudos apresentados,
pontualmente, mas com mais força no capítulo VI, no qual optamos por perguntar ao corpo –
ou dar voz às mulheres – acerca de sua liberdade ou constrição. Esta última análise nos
revelou que, mesmo quando o corset coloca-se como advogado da liberdade feminina, a
mulher pode optar pela constrição e pela sujeição a um ideal. A mulher também pode escolher
constringir-se até o limite suportado por seu corpo, e fazê-lo não por opressão, mas por busca
da própria liberdade de expressão de si. A mulher pode cortar os cabelos e queimar e soutien,
se assim desejar. E depois de tudo isso, pode escolher um corset não constritivo, e brincar de
companheira submissa com o amante, amarrada com fitas de cetim, cinta linga e meias de
seda.
A resposta para nossa pergunta problema – se seriam as passagens por diferentes
formas do corset as determinadoras do contexto social que as engloba – parece encontrar
assim uma dupla resposta, um termo complexo articulando afirmação e negação.
Por um lado, fica evidente o marcado papel exercido pelo corset de formador das
interações sociais, sobretudo na constelação da prudência/sujeição. Estas maneiras,
delimitadas pela silhueta realizada pelo corset, delimitarão as maneiras de tratamento, de
proximidade, de contatos permitidos/interditos entre os sujeitos. Ao mesmo tempo, ainda que
o corset seja jogado em uma lata de lixo simbólica, sob ameaça de destruição por incêndio,
seu papel na formação da interação social continua sendo de suma importância, ao admitir-se
209
que o contexto social só pode ser transformado com a destruição do corset – e
consequentemente, de todos os valores que ele manifesta, ao recobrir e transformar o corpo
das mulheres.
Olhando a questão por outro ângulo, no entanto, vimos que, a partir do ponto de vista
do corpo, é possível ler as passagens por suas diferentes configurações, dadas pela não
complementaridade entre o papel do corpo e do corset, como a luta do corpo por sua
emancipação, em direção à constelação da aventura, que termina no grito feminista de 1968, e
na dominação feminina sobre o corset tradicional, manifestada na figura de Madonna. O
protagonismo do corpo, em algumas das posições analisadas, é inegável: ainda que a
importância do corset seja admitida, especialmente no que toca sua apreensão simbólica, os
esforços do corpo são importantíssimos, sobretudo na constelação da aventura/emancipação.
Da descoberta do corpo pelo corsetier, em 1795, à destruição e domesticação do corset, pós
1968, pode-se dizer que o corpo aparece “liderando” a interação, ainda que esta se coloque de
maneira ajustada, ou não hierarquizada. Igualmente, após a efervescência dos movimentos
pela Libertação das Mulheres, o corset jamais foi o mesmo: ainda que o corset tradicional
preserve seu espaço na cena fetichista ou na prática do tightlacing, a predominância do
mercado atual é aquela dos corsets elásticos e desestruturados – termo empregado de maneira
proposital, para chamar a atenção para a ferida em nosso objeto de estudo após a visibilidade
conquistada pelo feminismo.
No entanto, o que dizer de momentos em que, ainda que o corset ofereça a liberdade,
ou mesmo “aceite” sua saída de cena, o feminino clama por constrição, como é o caso da
“Little X”, que presentifica um emblema também das décadas anteriores, consecutivas à moda
de Chanel? Ou mesmo do retorno do corset, após o período neoclássico?
A cada reentrada do corset na moda, ele torna-se mais constritivo. Como se, após
ferido em uma batalha mortal, ele se retirasse por alguns anos, para retornar ainda mais forte.
Ao falar sobre a atual histeria dos padrões de beleza impossíveis, Eliette Abécassis discorre
sobre o “corset invisível” (ABÉCASSIS & BONGRAND, 2007), manifestado pela sujeição
aos ideais inatingíveis de magreza e juventude, disseminados pelas mídias atualmente. Esta
suposta presença “invisível” – e, como vimos, um dos valores investidos no corset do século
XXI é justamente aquele da invisibilidade sob a roupa, reforçando a euforia da transformação
conferida – pode ser estendida ao culto ao corpo por meio dos exercícios e da cirurgia: ambos,
em conjunto com o uso de corsets nomeados de outra maneira, reiteram a paixão de nosso
210
século por uma sujeição – extrema – aos padrões em circulação. Tal euforia da transformação
total do corpo alerta para o perigo da ilusão de sua liberdade, que pode ser extendido ao
mesmo perigo enfrentado na esfera política: a ilusão de democracia, de liberdade de
expressão, de privacidade.
Talvez seja pertinente arriscar a afirmação de que, entre todos os momentos do uso (e
não uso) do corset analisados, nosso século seja o mais constrito de todos. Nunca fomos tão
magras, e nossa busca por este ideal nunca foi produtora de tantas trajédias, que ultrapassam
as ocasionais costelas quebradas, documentadas por Ambroise Paré (apud. STEELE, 2001) –
mas consideradas por Kunzle como sensacionalismo mediático, uma vez que a manchete
“morte por tightlacing” é muito mais atraente (KUNZLE, 2004) do que uma “morte por
(qualquer outra causa)”. Nossa busca pela conformação – voluntária – a um ideal de beleza
ultrapassa o uso de objetos externos, e abarca a dieta extrema, os distúrbios alimentares, o
abuso de exercícios e até mesmo atrocidades como cirurgias caseiras de redução de estômago,
ou lipoaspirações realizadas em clínicas clandestinas – todos estes temas não abordados neste
trabalho, por não pertencerem diretamente ao uso do corset “material” como meio de
transformação do corpo.
No âmbito mais histórico, explorado nos capítulos II, IV e V, é possível contrapor,
como procuramos fazer, os valores identificados por meio da homologação das categorias da
expressão e do conteúdo, aos fatos históricos já documentados. Tal nos denunciou que, ao
longo dos séculos, ainda que a permanência de uma figuratividade do corpo seja observada,
há sempre uma renovação dos conteúdos manifestados pelo corset, adequando-o às novas
demandas do feminino e, assim, assegurando sua duradoura continuidade, na moda e na
função desempenhada no âmbito social. Em se tratando de nosso século, no entanto, muito
ficou em aberto, e caberá, talvez, aos semioticistas do futuro observar-nos e confirmar (ou
refutar) a pertinência de nossa análise. Por enquanto, contudo, é possível terminar deixando
ao leitor uma pergunta: em que medida nós, mulheres do século XXI, permitiremos que o
corset, este fortíssimo sujeito destinador, do corpo e do social, (con)forme nosso entorno,
como o fez no passado da mulher e da moda do Ocidente?

Marília Jardim
São Paulo, 09/10/2014

211
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ORGULHO e Preconceito (Pride & Prejudice). Direção: Joe Wright. França, Reino Unido,
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PUBLIC Speaking. Direção: Martin Scorsese. Estados Unidos. 2010. 1 DVD (84 min).

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Glossário

Anquinha (pt): o mesmo que bustle ou tournure, espécie de crinolina típica do final do século
XIX que recobre e aumenta apenas a traseira do vestido.

Barbatana (pt): termo genérico que define o tipo de estrutura utilizada no vestuário. Pode ser
de baleia, de diferentes densidades metálicas (em espiral ou em chapa, também chamada flat),
de madeira e até mesmo de plástico. Trata-se de um filamento de uma matéria, geralmente
com espessura de 0.5 a 2mm, largura entre 0.5 e 2 cm, que é cortado no comprimento
adequado e aplicado vertical ou obliquamente em diversos pontos do traje, para garantir
reforço e estruturação.

Bodice (en): o mesmo que corpete. Peça de roupa exterior que compõe a parte superior do
vestido. Até o século XVI a peça possuía a dupla função de traje e de peça constritora, mas a
partir do século XVII a separação entre bodice e stays tornou o primeiro exclusivamente
decorativo, e o segundo destinado à ação modeladora da silhueta.

Body (en): ou bodysuit, tipo de lingerie modeladora que une em uma peça única a calcinha, a
cinta e o soutien. Construído em modelagem semelhante àquela do maiô, esta peça
normalmente é confeccionada em tecido constritivo, com ou sem barbatanas, e geralmente
fechado com colchetes entre as pernas.

Bone (en): o mesmo que barbatana. Na língua inglesa, o termo geralmente é acompanhado de
um prefixo, indicando a matéria na qual é confeccionada, como “whalebone”, quando
produzida a partir da cartilagem das baleias, ou “steel bone”, quando manufaturada em aço.

Busk (en)/Busc (fr): até o século XVIII, tal nomeação era atribuída a uma prancha de madeira
aplicada no painel frontal dos stays. Mais largos que as barbatanas, os busks geralmente
219
continham decorações, inscrições e até mesmo declarações de amor gravadas em sua matéria,
normalmente presenteados como lembranças de um pretendente ou amante, e no caso de
avaria dos stays, este material poderia ser reaproveitado para a confecção de uma nova peça.
Em 1829, o corsetier Jean-Julien Josselin patenteou uma nova versão do busk, denominada
split-busk (busk dividido), confeccionado em aço e, como diz seu nome, dividido em duas
peças que ficavam metade para dentro e metade para fora do corset. A parte interna, composta
de um par de chapas de aço, servia à mesma função do busk do século XVIII, que é aquela de
estruturar a frente do corset. A inovação residia justamente nas parte exteriores do busk, do
lado direito uma fileira de ganchos, do lado esquerdo uma correspondente fileira de pinos ou
travas que, quando sobrepostos e encaixados, mantinham o corset fechado. Este mecanismo
permitia o abrir e fechar do corset pela frente, sem a necessidade de desfazer a amarração
traseira, que passou a servir apenas à função de ajuste da peça. Este aviamento é utilizado em
corseteria até a atualidade, e possui diversas nomeações que fazem menção às propriedades
específicas, como “wide busk” (busk largo), “spoon busk” (busk colher, mais largo e
arredondado no baixo ventre), “conical busk” (busk cônico, igualmente mais reforçado no
baixo ventre), além de “wooden busk” (busk confeccionado em madeira, próprio para réplicas
de stays do século XVII e XVIII).

Bustler (en): espécie de crinolina típica do final do século XIX, que recobria e aumentava
apenas a traseira do vestido. Também chamado de tournure, em francês, ou anquinha, em
português, este tipo de roupa de baixo foi confeccionado em diversas configurações, com
diferentes composições. Algumas eram manufaturadas em aros de aço, outras em tecido
acolchoado, ou até mesmo em tecidos rígidos, como a crina, e franzidos e drapeados que
garantiam o efeito de volume.

Cage Crinoline (en): crinolina típica de meados do século XIX, “crinolina de gaiola”,
nomeada desta maneira pelo formato de sino ou gaiola atribuído à saia, composta de
estruturas horizontais circulares, normalmente em aço, sustentadas por estruturas verticais
maleáveis, em lã, crina ou algodão rústico. Este modelo de crinolina era confeccionado em
diversas densidades, algumas mais leves, completamente vazadas e sem a aplicação de tecidos
220
sobre a estrutura em aço, ou em modelos completamente recobertos por matéria tecida. O uso
mais comum desta forma de crinolina, no entanto, combinava pontos de estrutura vazada à
aplicação de tecidos, normalmente franzidos ou drapeados, que criavam uma ilusão ainda
maior de volume, principalmente na parte inferior do vestido.

Cinta (pt): o mesmo que girdle, tipo de lingerie constritora/modeladora confeccionada em


tecidos elásticos e estruturas rígidas, geralmente metálicas, fechadas pela frente com colchetes
e sem amarração nas costas. As cintas podem ser utilizadas tanto para a finalidade estética –
redução das medidas do torso e modelagem de sua forma – ou médica/ortopédica – contensão
dos tecidos no pós-parto ou qualquer pós operatório que envolva o corte dos músculos
abdominais, ou ainda para a correção de postura e imobilização da coluna.

Corpete (pt): o mesmo que bodice ou corps, peça de roupa exterior que pode ser estruturada
ou não, e compõe a parte superior do vestido. Atualmente, a palavra “corpete” também é
utilizada no Brasil para definir um tipo de peça de roupa que pode ser interior ou exterior,
geralmente estruturada com barbatanas de plástico, mas que não possui ação modeladora
sobre o torso.

Corps (fr): o mesmo que corpete ou bodice. Peça de roupa exterior, que pode ser estruturada
com barbatanas ou não, que compõe a parte superior do vestido.

Corps à baleine (fr): o mesmo que stays, peça de roupa interior estruturada com barbatanas
de baleia e destinada à função constritora/modeladora da silhueta.

Corselet (pt): o mesmo que corpete, mas geralmente refere-se a um tipo de lingerie,
estruturada com barbatanas de plástico, que não possui ação modeladora sobre o torso. Alguns
corselets inclusive são confeccionados como réplicas dos corsets do século XIX, com abertura
frontal em colchetes e ajuste pelas costas com ilhoses e fitas ou cadarços de cetim.

Corselette (en): tipo de lingerie típica dos anos 1950, que recobre dos seios ao quadril em
uma peça única, uma espécie de camisola ou combinação estruturada, que possui ação
modeladora sobre os seios, a cintura e os quadris. Incluímos aqui este termo com a finalidade
221
de desfazer a confusão entre “corselet” e “corselette”, muito comum no Brasil, onde a palavra
“corselette” (“corselête”) é muitas vezes erroneamente utilizada para referir-se a corpete,
corselet ou corset.

Corset (en, fr): historicamente, o termo refere-se exclusivamente às lingeries constritoras e


modeladoras do século XIX, geralmente mais acinturadas do que aquelas do século XVII e
XVIII. Os corsets geralmente são confeccionados em duas camadas de tecido plano,
estruturados com barbatanas de baleia ou metálicas, com abertura frontal (split busk) e ajuste
pelas costas, por meio de ilhoses e cadarços de amarração. Ao longo do século XX, o corset
passou a ser utilizado igualmente como roupa exterior, mas sempre produzido nas mesmas
especificações de tecidos, estruturas e modelagem do século XIX e início do XX. A
característica mais marcante que separa os corsets dos corpetes e corselets é, sem dúvida, a
modelagem peculiar, que ressalta a cintura conferindo ao torso um aspecto de ampulheta ou
de vespa (“wasp waist”).

Corsetier/Corsetière (fr): também adotado na língua inglesa, profissional especializado(a)


exclusivamente na confecção de stays e corsets. Historicamente, esta profissão aparece na
moda ocidental a partir da separação entre bodice e stays, no século XVII, que marca a
separação entre os fazeres do alfaiate e do corsetier.

Crinolina (pt): o mesmo que crinioline.

Crinoline (en, fr): peça de roupa interior utilizada para armar a parte inferior do vestido. Ao
longo do século XVIII e XIX diversos modelos de crinolinas foram criados, de maneira que
esta peça é melhor conhecida pelas nomeações dos modelos (cage crinoline, hoop skirt,
bustle,...). O que todas as crinolinas possuem em comum, no entanto, é a união de duas
matérias – uma tecida, cuja mais comum era a “crina”, o que que originou tal nomeação, e
uma estrutural, normalmente madeira ou metal – para a produção de um efeito de aumento da
porção inferior do corpo, seja os quadris (século XVII-XVIII), seja o glúteo (final do século
XIX) ou a circuferência da saia como um todo (meados do século XIX).

222
E

Espartilho (pt): semelhante aos stays, peça de roupa interior constritiva, confeccionada em
tecido rígido e estruturada com barbatanas vegetais, normalmente de uma planta conhecida
como esparto (Setaria geniculata), da qual deriva sua nomeação. Espartilho é igualmente o
nome do corte do esparto em filamentos para a utilização como estrutura rígida. Na língua
portuguesa, o termo ficou conhecido como sinônimo de corsets, o que é equivocado, uma vez
que tal como stays e corps à baleine, a palavra espartilho refere-se ao tipo de estrutura (neste
caso, de esparto) empregada em sua manufatura.

Flossing (en): espécie de bordado característico do século XIX, aplicado na camada exterior
do corset, empregado não apenas como decoração, mas como reforço dos painéis nos quais
eram inseridas as barbatanas. O flossing também age como uma espécie de limite, que impede
o movimento descendente ou ascendente das barbatanas dentro da costura, protegendo a peça
do desgaste por atrito, e consequentemente de possíveis rupturas do tecido nos pontos mais
sensíveis. Com a invenção das proteções metálicas ou plásticas aplicadas nas pontas das
barbatanas, o flossing tornou-se obsoleto enquanto protetor do tecido, mas continuou sendo
empregado como ornamento.

Girdle (en): o mesmo que cinta, lingerie constritora/modeladora criada nos anos 1920,
construída a partir da mescla de tecidos firmes, planos ou elásticos, e estruturas rígidas.
Algumas destas peças ainda possuíam a amarração pelas costas, até que os tecidos
completamente elásticos passaram a ser empregados, a partir dos anos 1930, suprimindo a
necessidade de ajuste da peça ao corpo.

Gusset (en): o mesmo que nesga, uma peça de molde em forma de semicírculo ou triângulo,
utilizada para criar um volume em uma peça plana, alargando-a em um determinado ponto.
Nos corsets, os gussets são utilizados, a partir do século XIX, para formar as taças dos seios
223
ou o volume do quadril.

Midbust (corset, en): modelagem do corset até a linha dos mamilos. Literalmente: meio
busto.

Modelador (pt): no Brasil, nome genérico atual para as lingeries constritoras, que abrange os
mais diversos modelos – calcinhas, shorts, bermudas, bodies, vestidos, saias, macaquinhos,
macacões, etc.

Overbust (corset, en): modelagem do corset recobrindo todo o busto. Literalmente: sobre o
busto.

Panier (fr): o mesmo que side hoops, crinolina típica do século XVIII, confeccionada em
tecido rígido e estruturas vegetais. O que diferencia o panier das demais crinolinas é seu
formato de trapézio, com ênfase exagerada na lateralidade dos quadris.

Pocket Hoops (en): tipo de side hoops ou panier, típico do século XVIII, construído em duas
peças unidas por uma espécie de cinto, do qual pendem as duas metades da crinolina que
recobrem apenas as laterais do quadril – como se fossem dois bolsos gigantes, aos quais
refere-se o termo “pocket” – deixando livres os glúteos e a área do púbis.

Side Hoops (en): o mesmo que panier, crinolina típica do século XVIII, confeccionada em
tecido rígido e estruturas vegetais, com formato acentuado de trapézio e ênfase na amplitude
lateral do quadril. A nomeação “side hoops” significa literalmente “aros laterais”, e faz
224
referência à construção estrutural da peça, em semi ovais aplicados diretamente na lateral do
quadril, atribuindo um desenho achatado na frente e nas costas, mas dotado de prolongamento
horizontal.

Shaper (en): literalmente, “shaper” é a nomeação de uma ferramente utilizada para modelar
madeira e metal. Passou a ser empregado, a partir dos anos 1990, como nomeação das
lingeries modeladoras e constritoras mais tecnológicas. O termo é amplamente utilizado no
Brasil para nomear as mesmas peças de roupa interior, e pode ser um sinônimo de modelador.

Shapewear (en): o mesmo que shaper, singnifica literalmente roupa modeladora.

Slip (en): espécie de combinação constritora e modeladora, que une cinta e soutien em uma
única peça sem estruturas rígidas.

Stays (en): o mesmo que corps à baleine, semelhante aos espartilhos, roupa interior
constritora e modeladora do século XVII-XVIII. Confeccionada geralmente em duas camadas
de linho costuradas à mão, e estruturada com um grande número de barbatanas de baleia – os
“stays” ou “estruturas” – fechadas e ajustadas exclusivamente pelas costas, e normalmente
com alças ajustáveis. O nome da peça significa literalmente “estruturas” ou “esteios”, no
plural, que manifesta a repetição de estruturas que compõe este tipo de lingerie.

Tabs (en): ou “pontas”, são os picotes realizados na bainha inferior dos stays. Devido à
ausência de conhecimento de modelagem plana no século XVII e XVIII, os stays eram
confeccionados em uma forma triangular, que não ajustava-se à cintura e aos quadris. A
função das tabs era, portanto, aquela de fazer abrir a peça de roupa na altura dos quadris,
permitindo um ajuste mais adequado da peça ao corpo. No conjunto stays-side hoops, as tabs
também serviam de encaixe entre as duas peças, posicionando-se por fora da crinolina e
impedindo que a mesma se deslocasse do lugar correto.

Tightlacer (en): termo existente apenas no inglês, designa o praticante do “tight-lacing”, ou


225
do “aperto” (excessivo) da cintura. Em outras palavras, tightlacer é aquele que utiliza o corset
para a obtenção de uma constrição da cintura além daquela considerada como padrão nas
diversas tendências de moda.

Tight-Lacing (en): termo existente apenas no inglês, designa a prática da constrição da


cintura além do padrão aceito pela moda. Considerado até o século XIX como perversão ou
doença psiquiátrica, o tight-lacing possui suas raízes na antiguidade, quando a constrição
extrema da cintura era praticada com outros instrumentos – como cintos ou faixas de tecido.
A prática ganhou força no século XIX e pode ser observada até a atualidade, quando um
grande número de corsetiers e corsetières especializa-se na produção de corsets
especialmente para esta maneira de modificação da cintura.

Tournure (fr): o mesmo que anquinha e bustle, crinolina típica do final do século XIX que
recobre e aumenta apenas a traseira do vestido.

Underbust (corset, en): modelagem do corset que não recobre o busto. Literalmente: abaixo
do busto.

Whalebone (en): barbatana de baleia.

Whalebone bodice (en): o mesmo que corps à baleine, espécie de corpete, típico do século
XVI, que servia à dupla função de peça constritora e decorativa, compondo a parte superior
do vestido. Quando especificado como “whalebone bodice”, trata-se exclusivamente da peça
estruturada com barbatanas de baleia.

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