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Pascal Quignard

Todas as manhãs
do mundo
Pascal Quignard

Todas as manhãs
do mundo

Tradução
Corine Todeschinni

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Para Flávia,
minha irmã de sangue,
uma gota desse negrume
que me tempera o humor
e me estufa as veias1.

1 Dedicatória da presente tradução [N.T.].

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I
Na primavera de 1650, a Senhora de São Colombo morreu. Ela deixou
duas filhas, uma com dois, outra com seis anos de idade. O Senhor de São
Colombo não pode se consolar da morte de sua esposa. Ele a amava. Foi
nesta ocasião que compôs o Túmulo das Lamentações.
Ele vivia com suas duas filhas numa casa cujo jardim dava para o rio
Bièvre1. O jardim era estreito e fechado até o rio. Havia salgueiros na
margem e uma barca na qual São Colombo sentava-se à tarde, quando o
tempo estava agradável. Não era rico, embora não pudesse se queixar de
pobreza. Tinha uma propriedade em Berry que lhe dava uma pequena
renda e vinho, que ele trocava por tecido e às vezes por caça. Era
desajeitado na caça e repugnava-lhe percorrer as florestas que dominavam
o vale. O dinheiro que seus alunos lhe enviavam completava seus recursos.
Ensinava viola de gamba, que desfrutava então de grande prestígio em
Londres e Paris. Era um mestre reputado. Tinha a seu serviço dois criados
e uma cozinheira, que se ocupava das pequenas. Um homem da sociedade
que frequentava Port-Royal, o Senhor de Bures2, ensinou às crianças o
alfabeto, os números, a escritura santa e alguns rudimentos do latim que
permitiam entendê-la. O Senhor de Bures habitava o beco da rua Saint-
Dominique-d’Enfer. Foi a Senhora de Pont-Carré que o recomendou a São
Colombo. Este havia inculcado as notas e as claves em suas filhas desde a
mais tenra idade. Elas cantavam bem e tinham verdadeira inclinação para
a música. Quando Toninha tinha cinco anos de idade e Madalena nove, os
três juntos executaram pequenos trios vocais de certa dificuldade, e a
elegância com que suas filhas as resolviam deixava-o satisfeito. Na época,
as pequenas se pareciam muito mais com São Colombo e pouco

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lembravam os traços da mãe. Contudo, a memória dela permanecia intacta
nele. Ao cabo de três anos, sua imagem estava sempre diante de seus olhos.
Ao cabo de cinco, sua voz sussurrava constantemente em seus ouvidos.
Era o mais das vezes taciturno, não ia nem a Paris nem a Jouy. Dois anos
depois da morte da Senhora de São Colombo, vendeu seu cavalo. Não foi
capaz de conter seu pesar por não ter estado presente quando sua mulher
entregou a alma. Na ocasião, ele estava na cabeceira de um amigo do
falecido Senhor Vauquelin, que havia desejado morrer acompanhado de
um pouco de vinho de Puisey e de música. Esse amigo expirou após o
almoço. O Senhor de São Colombo, no coche do Senhor de Savreux,
chegou em sua casa quando passava da meia noite. Sua mulher já estava
vestida e rodeada de círios e de lágrimas. Não disse palavra e não viu mais
ninguém. Como o caminho que levava a Paris não estava calçado, eram
necessárias duas horas a pé para alcançar a cidade. São Colombo encerrou-
se então em sua casa e consagrou-se à música. Trabalhou durante anos com
a viola e tornou-se um mestre renomado. Nas duas estações que se
seguiram ao desaparecimento de sua esposa, exercitou-se até quinze horas
por dia. Mandou construir uma cabana no jardim, sob os galhos de uma
grande amoreira3 da época do Senhor de Sully. Quatro degraus bastavam
para subir até ela. Podia assim trabalhar sem incomodar suas pequenas que
faziam suas lições ou brincavam, e mesmo depois que Guignotte, a
cozinheira, as tinha posto na cama. Achava que a música perturbava a
conversa das duas filhas que tagarelavam noite adentro antes de
adormecer. Descobriu então uma maneira diferente de segurar a viola entre
as pernas sem apoiá-la sobre a panturrilha. Acrescentou uma corda baixa
ao instrumento para dotá-lo de uma gama mais grave, de modo a lhe
proporcionar um tom mais melancólico. Aperfeiçoou a técnica do arco
aliviando o peso da mão e fazendo recair a pressão apenas sobre a crina,
com ajuda do indicador e do médio, o que realizava com um virtuosismo
impressionante. Um de seus alunos, Côme Le Blanc, o pai, dizia que ele
conseguia imitar todas as inflexões da voz humana, do suspiro de uma
jovem ao soluço de um velho, do grito de guerra de Henrique de Navarra
à doçura do hálito de uma criança concentrada a desenhar, do arfar

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desordenado e incitado pelo prazer, à gravidade quase muda, com tão
poucos acordes e ornamentos, de um homem absorto a rezar.

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II
A estrada que levava à casa de São Colombo estava lamacenta desde que
chegara o frio. São Colombo detestava Paris pelo estrépito dos cascos
sobre o pavimento, pelo tilintar das esporas, pelos guinchos dos eixos das
carruagens e do ferro das charretes. Era maníaco. Esmagava escaravelhos
e besouros com o fundo dos castiçais: isso produzia um ruído singular, as
mandíbulas ou os élitros estalando lentamente sob a pressão regular do
metal. As pequenas gostavam de ver e se deleitavam com isso. Chegavam
a trazer joaninhas para ele.
O homem não era tão frio quanto se descreveu; era canhestro na
expressão de suas emoções; não sabia fazer os gestos de carinho de que as
crianças são sedentas; não era capaz de uma conversa com ninguém, salvo
com os Senhores Baugin e Lancelot. São Colombo tinha feito seus estudos
em companhia de Claude Lancelot, e o reencontrava às vezes, nos dias em
que a Senhora de Pont-Carré recebia. Fisicamente, era um homem alto,
ossudo4, muito magro, amarelo como o marmelo, brusco. Mantinha as
costas muito eretas de uma maneira impressionante, o olhar fixo, os lábios
apertados um contra o outro. Era muito constrangido e reservado, mas
capaz de alegria.
Gostava de jogar cartas com suas filhas bebendo vinho. Nessa época,
ele fumava toda tarde um longo cachimbo feito de barro d’Ardenes. Quase
não seguia a moda. Trazia os cabelos pretos presos como no tempo da
guerra e, quando saía, o colarinho pregueado ao redor do pescoço. Tinha
sido apresentado na sua juventude ao falecido rei e, desde esse dia, sem
que se saiba porquê, não pôs mais os pés no Louvre nem no velho castelo
de Saint Germain. Nunca mais tirou o negro de suas roupas.

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Era tão violento e colérico quanto podia ser terno. Quando ouvia chorar
durante à noite, acontecia de subir com a vela na mão ao pavimento de
cima e, ajoelhado entre suas duas filhas, cantar:

Sola vivebat in antris Magdalena


Lugens et suspirans die ac nocte...

Ou, então:

Il est mort pauvre et moi je vis comme il est mort


Et l’or
Dort
Dans le palais de marbre où le roi joue encore5.

Às vezes as pequenas perguntavam, sobretudo Toninha:


— Quem era mamãe?
Então ele ficava sombrio e não se podia mais tirar dele uma só palavra.
Um dia, ele lhes disse:
— É preciso que sejais boas. É preciso que sejais dedicadas. Estou
contente convosco, sobretudo com Madalena, que é mais ajuizada. Tenho
pena por vossa mãe. Cada uma das lembranças que guardei de minha
esposa é uma porção de alegria que não reencontrarei jamais.
Uma outra vez, ele se desculpou diante delas pelo fato de que mal se o
ouvia falar; que sua mãe, ela sim, sabia falar e rir; mas que, quanto a ele,
não tinha apego pelas palavras e não tinha prazer com a companhia das
pessoas, nem com a dos livros e dos discursos. Mesmo as poesias de
Vauquelin des Yveteaux e de seus antigos amigos não lhe convinham
jamais inteiramente. Tinha sido ligado ao Senhor de La Petitière, que
guardara o corpo do Cardeal, e depois tornara-se solitário6 e sapateiro
desses senhores em substituição do Senhor Marais, o pai. A mesma coisa
quanto à pintura, exceção feita ao Senhor Baugin. O Senhor de São
Colombo não admirava a pintura que então realizava o Senhor de
Champaigne. Ele a julgava mais triste que grave, e mais pobre que sóbria.

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A mesma coisa para com a arquitetura, ou para com a escultura, ou as artes
mecânicas, ou a religião, não fosse a Senhora de Pont-Carré. É verdade que
a Senhora de Pont-Carré tocava muito bem o alaúde e a teorba, e que não
tinha sacrificado completamente este dom a Deus. Não podendo privar-se
por muito tempo de música, ela lhe enviava seu coche de tempos em
tempos, fazia-o vir até seu palacete e o acompanhava na teorba até ter os
olhos enevoados. Ela possuía uma viola negra dos tempos do rei Francisco
I, que São Colombo manejava como se se tratasse de um ídolo egípcio.
Estava sujeito a acessos de cólera sem motivo que enchiam de pavor a
alma das crianças, sobretudo porque, nessas ocasiões, quebrava os móveis
bradando “Ah! Ah!”, como se sufocasse. Era muito exigente com elas,
temendo que não fossem bem instruídas por um único homem. Era severo
e não deixava de puni-las. Não sabia repreendê-las, nem lhes deitar a mão,
nem brandir o chicote; assim, trancava-as no porão ou na adega, onde as
esquecia. Guignotte, a cozinheira, vinha soltá-las.
Madalena não se queixava nunca. A cada acesso de cólera de seu pai, ela
era como uma barca que soçobra e afunda inopinadamente: comia pouco
e se retirava no seu silêncio. Toninha se rebelava, reclamava de seu pai,
gritava nas suas costas. À medida que crescia, ela se assemelhava, quanto
ao caráter, à Senhora de São Colombo. Sua irmã, a cabeça baixa de medo,
não sussurrava palavra e recusava até uma colher de sopa. Ademais, elas o
viam pouco. Viviam na companhia de Guignotte, do Senhor Pardoux e do
Senhor de Bures. Ou iam à capela limpar as estátuas, tirar as teias de aranha
e colocar flores. Guignotte, que era originária de Languedoc e que tinha
por costume deixar os cabelos sempre soltos nas costas, fez varas de pescar
para elas partindo galhos das árvores. Quando os dias estavam bonitos,
todas as três, com uma linha, um anzol7 e um papelote atado para ver o
puxão, arregaçavam as saias e enfiavam os pés nus no lodo. Elas tiravam
do Bièvre a fritura da tarde, que misturavam em seguida na frigideira com
um pouco de farinha de trigo e de vinagre feito do vinho da videira do
Senhor de São Colombo, que era bastante ruim. Nessa época, o músico
ficava horas sentado em sua banqueta, sobre um velho pedaço de veludo
de Gênes verde que as nádegas tinham puído, encerrado em sua cabana. O

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Senhor de São Colombo a chamava de sua “vorde”. Vordes é uma velha
palavra francesa que designa a orla húmida de um curso d’água sob os
salgueiros. Do alto de sua amoreira, diante dos salgueiros, a cabeça erguida,
os lábios apertados, o torso inclinado sobre o instrumento, a mão errante
sobre as cordas, enquanto aperfeiçoava sua arte com exercícios, acontecia
de árias ou lamentações brotarem de seus dedos. Quando retornavam, ou
quando o assediavam e o importunavam em seu leito solitário, então abria
seu caderno de música vermelho e as anotava às pressas para não mais se
incomodar com elas.

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III
Quando sua filha mais velha atingiu a estatura necessária para o
aprendizado da viola, ele lhe ensinou as posições, os acordes, os arpejos,
os ornamentos. A filha menor teve violentos acessos de cólera, porque lhe
foi recusada a honra que seu pai concedia a sua irmã. Nem as privações de
comida, nem o porão puderam dobrar Toninha e acalmar a tormenta que
a dominava.
Uma manhã, antes que a aurora surgisse, o Senhor de São Colombo
levantou-se, seguiu o Bièvre até o rio Sena, o Sena até o ponto do Delfim,
e se entreteve o dia todo com o Senhor Pardoux, que era seu fabricante de
alaúdes. Com ele, desenhou e calculou, e depois voltou ao cair do dia. Na
Páscoa, quando o sino da capela soava, Toninha encontrou no jardim um
estranho sino embrulhado como um fantasma num pano de sarja cinza.
Ela ergueu o tecido e descobriu uma viola reduzida, de meio a um pé de
altura. Era, com uma exatidão digna de admiração, uma viola como aquela
de seu pai ou aquela de sua irmã, mas menor, como um pônei em relação
aos cavalos. Toninha não se conteve de alegria.
Ela ficou pálida como o leite, e chorou nos joelhos de seu pai de tanto
que estava contente. O caráter do Senhor de São Colombo e sua pequena
disposição para as palavras faziam-no extremamente reservado e, ainda que
se comovesse, seu semblante permanecia inexpressivo e severo. Era apenas
em suas composições que se descobriam a complexidade e a delicadeza do
mundo que se escondia sob este semblante e atrás dos gestos raros e
rígidos. Ele bebia vinho enquanto acariciava os cabelos de sua filha, cuja
cabeça enterrava-se em seu gibão e cujas costas sacudiam.

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Os concertos a três violas de São Colombo tornaram-se célebres muito
rapidamente. Os jovens senhores ou os filhos da burguesia, aos quais o
Senhor de São Colombo ensinava tocar viola, reclamavam poder
participar. Os músicos que pertenciam à corporação ou que estimavam o
Senhor de São Colombo também se renderam a eles. Este chegou a
organizar um concerto a cada quinze dias, que começava na véspera e que
durava quatro horas. São Colombo esforçava-se, em cada reunião, por
fazer ouvir obras novas. Contudo, o pai e suas filhas entregavam-se
especialmente a improvisações muito eruditas a três violas sobre um tema
qualquer proposto por um dos participantes da reunião.

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IV
O Senhor Caignet e o Senhor Chambonnières participavam dessas
reuniões musicais e elogiavam-nas vivamente. Os senhores tiveram seu
capricho satisfeito, de modo que se viam, além dos cavalos, até quinze
carruagens paradas sobre a estrada lamacenta obstruindo a passagem para
os viajantes e os mercadores que se dirigiam a Jouy ou a Trappes. De tanto
que se martelou em seus ouvidos, o próprio rei quis escutar este músico e
suas filhas. Ele despachou então o Senhor Caignet – que era o tocador de
viola de sua câmara, nomeado por Luiz XIV. Foi Toninha quem se
precipitou para abrir o portão do pátio para a carruagem da corte e quem
conduziu o Senhor Caignet até o jardim. O Senhor de São Colombo, lívido
e furioso por terem-no incomodado em seu refúgio, desceu os quatro
degraus de sua cabana e saudou.
O Senhor Caignet recolocou seu chapéu e declarou:
— Senhor, viveis na ruína e no silêncio. Digna de inveja é esta selvageria.
Digna de inveja são essas florestas verdes que vos sobranceiam.
O Senhor de São Colombo não desapertou os lábios. Ele o fitava
fixamente.
— Senhor, prosseguiu o Senhor Caignet, porque sois um mestre na arte
da viola, recebi a ordem de vos convidar para trabalhar na corte. Vossa
majestade manifestou o desejo de vos ouvir e, caso venha a ser satisfeita,
ela acolher-vos-á entre os músicos da câmara. Nesta circunstância, eu terei
a honra de me encontrar ao vosso lado.
O Senhor de São Colombo respondeu que era um homem idoso e viúvo;
que tinha duas filhas a seu encargo, o que o obrigava a um modo de vida
mais reservado que outro homem; que sentia dissabor pelo mundo.

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— Senhor, disse ele, confiei minha vida às tábuas de madeira cinza que
estão numa amoreira; aos sons de sete cordas de uma viola; às minhas duas
filhas. Meus amigos são as lembranças. Minha corte, os salgueiros que ali
estão, a água que corre8, a chevaina, o cadoz e as flores do sabugueiro. Diga
a vossa majestade que vosso palácio não tem nada a fazer com um
selvagem que foi apresentado ao falecido rei vosso pai, há trinta e cinco
anos desde então.
— Senhor, respondeu o Senhor Caignet, não entendestes minha
requisição. Pertenço à câmara do rei. O desejo que manifesta vossa
majestade é uma ordem.
O semblante do Senhor de São Colombo enrubesceu. Seus olhos
faiscaram de cólera. Ele avançou até o ponto de tocá-lo.
— Sou tão selvagem, Senhor, que penso pertencer só a mim mesmo.
Direis a vossa majestade que ela se mostrou demasiado generosa quando
deitou seu olhar sobre mim.
O Senhor de São Colombo foi empurrando o Senhor Caignet em
direção à casa enquanto falava. Eles saudaram-se. O Senhor de São
Colombo retornou para sua “vorde”, enquanto Toninha dirigiu-se ao
galinheiro que ficava ao canto, entre o muro fechado e o Bièvre.
Entrementes, o Senhor Caignet retornou com seu chapéu e sua espada,
aproximou-se da cabana, afastou com sua bota um peru e pintinhos
amarelos que ciscavam, deslizou sob o assoalho da cabana, sentou-se sobre
a relva, na sombra das raízes, e ficou escutando. Depois, partiu sem que
fosse visto e retornou ao Louvre. Ele falou ao rei, relatou as razões que o
músico tinha manifestado e participou-lhe a impressão maravilhosa e difícil
que lhe causara a música que escutara furtivamente.

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V
O rei estava descontente por não dispor do Senhor de São Colombo.
Os cortesãos continuavam a elogiar suas improvisações virtuosas. O
dissabor de não ter sido obedecido acrescia-se à impaciência que tinha o
rei por ver o músico tocar diante dele. Mais uma vez, então, ele enviou o
Senhor Caignet, acompanhado do abade Mateus.
A carruagem que os conduzia era acompanhada por dois oficiais a
cavalo. O abade Mateus vestia um hábito negro de cetim, uma pequena
gola franzida de renda, uma grande cruz de diamantes sobre o peito.
Madalena introduziu-os na sala. Diante da lareira, o abade Mateus
apoiou a mão repleta de anéis sobre sua bengala de madeira vermelha com
castão de prata. Diante da porta-janela que dava para o jardim, o Senhor
de São Colombo apoiou suas mãos nuas sobre o espaldar de uma cadeira
estreita e alta. O abade Mateus principiou pronunciando as palavras:
— Os músicos e os poetas da antiguidade amavam a glória e choravam
quando os imperadores ou os príncipes mantinham-nos afastados de sua
presença. Quanto ao Senhor, enterrais vosso nome entre os perus, as
galinhas e os peixinhos. Ocultais entre a poeira e a miséria orgulhosa um
talento que vem do Nosso Senhor. Vossa reputação é conhecida do rei e
de sua corte, portanto, é tempo de fazer queimar vossas vestimentas de
pano, de aceitar suas benesses e de fazer uma peruca encaracolada. Vosso
colarinho já está fora de moda e...
— ... sou eu que estou fora de moda, Senhores! Exclamou São Colombo,
subitamente vexado pela referência à sua maneira de se vestir. Os Senhores
agradecerão à Vossa majestade! bradou ele. Prefiro a luz do crepúsculo
sobre minhas mãos ao ouro que ele me propõe. Prefiro minhas roupas de

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pano a vossas perucas in folio. Prefiro minhas galinhas aos violinos do rei e
meus porcos aos Senhores.
— Senhor!
Mas o Senhor de São Colombo brandia a cadeira suspensa sobre a
cabeça deles. Ele ainda bradou:
— Deixai-me e não me faleis mais nisso! Ou quebro esta cadeira sobre
vossas cabeças!
Toninha e Madalena estavam assustadas com o aspecto de seu pai, que
mantinha a cadeira suspensa sobre sua cabeça com os braços estendidos,
temendo que ele não mais fosse senhor de si. O abade Mateus não parecia
assustado e dava pancadinhas com sua bengala sobre o ladrilho,
sentenciando:
— Morrereis seco como um ratinho no fundo de vosso estúdio de
madeira, sem ser conhecido por ninguém.
O Senhor de São Colombo girou a cadeira e a arrebentou sobre a verga
da lareira, bradando outra vez:
— Vosso palácio é menor que uma cabana e vosso público, inferior a
uma pessoa.
O abade Mateus adiantou-se acariciando com os dedos sua cruz de
diamantes e declarou:
— Apodrecereis em vossa lama, na miséria do arrabalde, afogado em
vosso riacho.
O Senhor de São Colombo estava branco como papel, tremia e tinha
ímpetos de pegar uma segunda cadeira. O Senhor Caignet aproximou-se
dele com Toninha. O Senhor de São Colombo proferia alguns “Ah!”
surdos para tomar fôlego, as mãos sobre o espaldar da cadeira. Toninha
desatou seus dedos e eles o sentaram. Enquanto o abade chamava-o de
teimoso e o Senhor Caignet enfiava suas luvas e punha seu chapéu, ele
disse bem baixo, com uma calma assustadora:
— Sois uns afogados. Por isso estendeis a mão. Não contentes de terdes
perdido o pé, quereis ainda atrair os outros para tragá-los.
A entonação de sua voz era lenta e pausada. O rei apreciou essa resposta
quando o abade e o violista de sua câmara a comunicam. Ele ordenou que

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se deixasse o músico em paz, ordenando a seus cortesãos não mais
participarem das reuniões musicais, porque ele era uma espécie de
recalcitrante ligado a esses senhores de Port Royal antes terem sido
dispersados.

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VI
Durante vários anos, eles viveram em paz e para a música. Toninha
abandonou sua pequena viola e chegou o dia em que, uma vez por mês,
passou a colocar linho branco entre as pernas. Eles não davam mais que
um concerto a cada estação, que o Senhor de São Colombo combinava
com os músicos de sua confraria, quando os estimava, e para o qual não
convidava os senhores de Versalhes, nem mesmo os burgueses que
ganhavam em ascendência sobre o espírito do rei. A cada mês, ele anotava
composições novas sobre seu caderno revestido de marroquim vermelho,
mas não desejava imprimi-las e submetê-las ao julgamento do público. Ele
dizia que se tratavam de improvisações anotadas no instante e para as quais
só o instante servia de escusa, e não obras acabadas. Madalena tornara-se
bela, de uma beleza delicada, cheia de uma curiosidade para a qual não
atinava o motivo e que lhe provocava sentimentos de angústia. Toninha
progredia em alegria, em invenção e em virtuosismo.
Nos dias em que o humor e o tempo permitiam o ócio, ele ia até sua
barca e, em seu riacho, atracado na margem, sonhava. Sua barca estava
velha e fazia água: ela tinha sido feita quando o superintendente
reorganizava os canais e tinha sido pintada de branco, embora os anos
tivessem escamado a pintura que a recobria. A barca tinha a aparência de
uma grande viola aberta pelo Senhor Pardoux. Ele apreciava o balouçar da
água, a folhagem dos galhos dos salgueiros que tombavam sobre seu rosto
e o silêncio e a atenção dos pescadores mais distantes. Ele sonhava com
sua mulher, com o entusiasmo que ela punha em todas as coisas, com os
conselhos ponderados que lhe dava quando ele solicitava, com suas ancas
e com seu grande ventre que lhe tinha dado duas filhas que se tornaram

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mulheres. Ele escutava as chevainas e os cadozes saltarem e romperem o
silêncio com um golpe de cauda ou até mesmo com suas pequenas bocas
brancas que se abriam na superfície da água para tomar ar. No verão,
quando fazia muito calor, ele deixava cair os calções, despia sua camisa e
penetrava docemente na água fresca até o pescoço, e depois, tapando os
ouvidos com os dedos, mergulhava nela seu rosto.
Um dia em que concentrava seu olhar sobre as ondas, ele adormeceu e
sonhou que penetrava na água obscura e que nela permanecia. Havia
renunciado a tudo que amava sobre esta terra, aos instrumentos musicais,
às flores, aos petiscos, aos semblantes, aos pratos de estanho, aos vinhos.
Saído de seu sonho, ele se recordou do Túmulo das Lamentações, que
compusera quanto sua mulher, certa noite, o deixara para ir ter com a
morte. Tinha muita sede também. Ele se levantou, subiu pela margem
segurando nos galhos, e apressou-se a procurar, sob a abóboda da adega,
uma garrafa de vinho envelhecido envolta com palha trançada. Ele
derramou sobre a terra batida a camada de óleo que preservava o vinho do
contato com o ar. Na noite da adega, apanhou uma taça e o degustou. Ele
dirigiu-se à cabana do jardim onde se exercitava na viola, menos, para dizer
toda a verdade, pela preocupação de incomodar suas filhas que pela
precaução de não estar ao alcance de nenhum ouvido, e de poder ensaiar
as posições da mão e todos os movimentos possíveis de seu arco sem que
ninguém no mundo pudesse emitir um juízo que fosse sobre o que quer
que tivesse vontade de fazer. Sobre a toalha azul clara que recobria a mesa,
na qual apoiava sua estante de partitura, ele colocou a botija de vinho
guarnecida de palha, a taça cheia de vinho e um prato de estanho contendo
alguns beijuzinhos enrolados9. Então tocou o Túmulo das Lamentações.
Ele não precisou recorrer a seu livro. Sua mão dirigia-se por si mesma,
ao toque de seu instrumento, e ele se pôs a chorar. Enquanto o canto se
alçava, surgiu perto da porta uma mulher muito pálida que lhe sorria, ao
mesmo tempo em que pousava o dedo sobre seu sorriso, em sinal de que
ela não falaria e de que não se perturbasse com o que fazia. Ela contornou
em silêncio a estante de partitura do Senhor de São Colombo. Sentou-se

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sobre a arca de música, que ficava ao canto, perto da mesa e da botija de
vinho, e pôs-se a escutar.
Era sua mulher e suas lágrimas corriam. Quando levantou as pálpebras,
depois que terminara de interpretar sua peça, ela já não estava mais ali. Ele
pousou sua viola e, como estendesse a mão para o prato de estanho, ao
lado da botija, viu a taça esvaziada até a metade e se espantou que a seu
lado, sobre a toalha azul, um beijuzinho estivesse meio comido.

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VII
Essa visita não foi a única. O Senhor de São Colombo, depois de ter
receado estar louco, considerou que, se fosse loucura, ela lhe dava alegria,
se fosse verdade, era um milagre. O amor que lhe dedicava sua mulher era
ainda maior que o seu, visto que ela vinha até ele e que ele era incapaz de
fazer o mesmo. Tomou um lápis e pediu a um amigo da corporação de
pintores, o Senhor Baugin, que fizesse um quadro representando a mesinha
ao lado da qual sua mulher tinha aparecido. Mas não falou desta visitação
a ninguém. Mesmo Madalena e Toninha não souberam de nada. Ele se
confessava tão somente a sua viola e às vezes registrava em seu caderno de
marroquim, no qual Toninha tinha feito com régua as partituras, os temas
que suas execuções ou que seus devaneios lhe haviam inspirado. Em seu
quarto, cuja porta trancava à chave, porque o desejo e a lembrança de sua
mulher levavam-no às vezes a arriar as cuecas e a se dar prazer com as
mãos, ele dispunha lado a lado, sobre a mesa perto da janela, na parede
diante da grande cama com baldaquino que tinha compartilhado durante
doze anos com sua mulher, o livro de música em marroquim vermelho e a
pequena tela que havia encomendado a seu amigo, guarnecida de uma
moldura negra. Alegrava-se contemplando-a. Ficava encolerizado menos
frequentemente e suas duas filhas percebiam-no, mas não ousavam dizer-
lhe. No seu íntimo, tinha o sentimento de que algo havia se concluído.
Tinha o ar mais sereno.

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22
VIII
Um dia, um criançola de dezessete anos, vermelho como a crista de um
galo velho, veio bater à sua porta e perguntou à Madalena se podia solicitar
do Senhor de São Colombo que se tornasse seu mestre de viola e de
composição. Madalena o achou muito bonito e o introduziu na sala. O
jovem, com a peruca na mão, colocou sobre a mesa uma carta dobrada
duas vezes e lacrada com cera verde. Toninha chegou com São Colombo,
que se sentou na outra extremidade da mesa em silêncio, não deslacrou a
carta e faz sinal de que escutava. Madalena, enquanto o jovem falava,
dispôs sobre a grande mesa, que estava coberta com uma peça de fazenda
azul, uma botija de vinho envolta com palha e um prato de faiança com
petiscos.
Ele se chamava Senhor Marin Marais10. Era bochechudo. Nascera no dia
31 de maio de 1656 e, com a idade de seis anos, fora recrutado por causa
de sua voz para tomar parte, à serviço do rei, no coro da igreja fronteiriça
ao castelo do Louvre. Durante nove anos, ele usara a sobrepeliz, o vestido
vermelho e o barrete quadrado negro, repousara no dormitório do claustro
e aprendera o alfabeto, aprendera a escrever, a ler e à tocar viola quando
tinha tempo disponível, pois as crianças eram constantemente solicitadas
para cumprir o ofício das matinas, dos serviços reais, das grandes missas e
das vésperas.
Depois, quando sua voz mudara e desafinara, fora posto na rua, como
estipulava o contrato com o coro da igreja. Ainda sentia vergonha. Não
soubera onde se meter. Os pelos despontavam nas pernas e nas faces, ele
se constrangia. Evocou este dia de humilhação cuja data inscrevera-se em

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seu espírito: 22 de setembro de 1672. Pela última vez, ele se escorou sob o
pórtico da igreja e pressionou com seus ombros a grande porta de madeira
dourada. Atravessou o jardim que delimitava o claustro de Saint Germain-
l’Auxerrois. Viu grandes ameixas11 na relva.
Pôs-se a correr pela rua, ultrapassou o Forte do Bispo, desceu a encosta
íngreme que levava até à praia e se deteve. O Sena estava coberto por uma
luz imensa e espessa de fim de verão, mesclada com uma bruma
avermelhada. Soluçando ele acompanhou o rio para retornar à casa de seu
pai. Dava pontapés e batia nos porcos, nos gansos, nas crianças que
brincavam sobre a relva e na lama rachada da praia. Os homens nus e as
mulheres de camisão lavavam-se no rio, a água nas canelas.
Essa água que corria pelas margens do rio era uma ferida que sangrava.
A ferida que tinha recebido na garganta parecia-lhe tão irremediável quanto
à beleza do rio. Essa ponte, essas torres, a velha cidade, sua infância e o
Louvre, os prazeres da voz na capela, as brincadeiras no pequeno jardim
do claustro, sua sobrepeliz branca, seu passado, as grandes ameixas
violetas, tudo isso recuava para nunca mais, levado pela água avermelhada.
Seu companheiro de dormitório, Delalande, ainda tinha sua voz e ficara.
Tinha o coração cheio de saudades. Sentia-se só, como um animal balindo,
o sexo espesso e peludo pendendo entre suas coxas.
Tendo a peruca na mão, sentiu subitamente vergonha pelo que acabara
de dizer. O Senhor de São Colombo mantinha as costas bem eretas, os
traços impenetráveis. Madalena estendeu ao adolescente uma das
guloseimas com um sorriso que o encorajava a falar. Toninha estava
sentada sobre o cofre atrás de seu pai, o queixo nos joelhos. O aprendiz
continuou.
Quando chegou à sapataria, depois de ter sido cumprimentado por seu
pai, não pode reter por mais tempo seus soluços e subiu precipitadamente
para fechar-se no cômodo em que, ao anoitecer, se punham as enxergas,
sobre a oficina onde seu pai trabalhava. Seu pai, a bigorna ou a forma de
ferro sobre a coxa, não parava de bater ou de lixar o couro de um sapato
ou de uma bota. Esses golpes de martelo sobressaltavam-no e o enchiam
de repugnância. Odiava o odor de urina onde as peles maceravam e o odor

24
insípido do balde de água onde seu pai deixava os contrafortes
umedecerem. A gaiola dos canários e seus trinados, o tamborete de correias
que rangia, os brados de seu pai – tudo lhe era insuportável. Detestava as
músicas ociosas ou licenciosas que seu pai cantarolava, detestava sua
loquacidade, mesmo sua bondade, mesmo suas risadas e seus gracejos
quando um freguês adentrava na oficina. A única coisa que tinha agradado
ao adolescente no dia de seu retorno tinha sido a luz fraca que se derramava
de uma armação redonda de velas suspensa muito baixa, pouco acima da
bancada e pouco acima das mãos calosas que pegavam o martelo ou que
seguravam a sovela. Ela tingia com um tênue tom ocre os coros marrons,
vermelhos, cinzas e verdes dispostos sobre o estrado ou pendurados por
cordinhas coloridas. Foi então que disse a si mesmo que deixaria para
sempre sua família, que se tornaria músico, que se vingaria da voz que o
tinha abandonado, que se tornaria um violista célebre.
O Senhor de São Colombo encolheu os ombros.
O Senhor Marais, enquanto remexia a peruca na mão, explicou que ao
deixar Saint-Germain l’Auxerrois foi ter com o Senhor Caignet, que o tomou
a seus cuidados por quase um ano, depois foi recomendado ao Senhor
Maugars: era o filho do violista que servira ao Senhor de Richelieu. Quando
o recebeu, o Senhor Maugars perguntou a ele se já tinha ouvido falar do
renomado Senhor de São Colombo e de sua sétima corda: ele havia
concebido um instrumento de madeira que cobria todas as possibilidades
da voz humana, da voz da criança, da mulher, do homem alquebrado, cujo
males tornaram mais grave. Durante seis meses, o Senhor Maugars fizera-
o trabalhar, depois ordenara-lhe que fosse procurar o Senhor de São
Colombo, que morava depois do rio, apresentando-lhe esta carta e sendo
recomendado por ele. O jovem estendeu então a carta na direção de São
Colombo. Este rompeu o lacre, desdobrou-a, mas, sem chegar a ler, teve
vontade de falar e levantou-se. É assim que um adolescente que não ousava
abrir a boca encontrou um homem taciturno. O Senhor de São Colombo
não chegou a se expressar, recolocou a carta sobre a mesa, aproximou-se
de Madalena e murmurou para ela que o necessário era tocar. Ela
abandonou a sala. Vestido de preto, o colarinho pregueado no pescoço, o

25
Senhor de São Colombo dirigiu-se para a lareira, junto à qual sentou-se
numa grande poltrona de braço.
Para a primeira lição, Madalena emprestou sua viola. Marin Marais
estava ainda mais confuso e enrubescido do que quando entrara. As filhas
sentaram-se mais perto, curiosas para ver como tocava a antiga criança do
coro de Saint Germain l’Auxerrois. Ele adaptou-se rapidamente ao porte do
instrumento, afinou-o e tocou uma suíte do Senhor de Maugars com
bastante desenvoltura e virtuosidade.
Ele olhou seu auditório. As filhas tinham a cabeça baixa. O Senhor de
São Colombo falou:
— Não creio que vá vos admitir entre meus alunos.
Seguiu-se um longo silêncio que fez estremecer o rosto do adolescente.
Subitamente, ele exclamou com sua voz rouca:
— Dizei-me ao menos porquê!
— Executais música, meu Senhor. Não sois um músico.
O semblante do adolescente enrijeceu, as lágrimas marejaram de seus
olhos. Ele gaguejou de aflição:
— Deixe-me ao menos...
São Colombo levantou-se, voltou a grande poltrona de madeira para a
lareira. Toninha disse:
— Esperai, meu pai. O Senhor Marais talvez tenha na memória uma ária
composta pelo Senhor.
O Senhor Marais inclinou a cabeça. Apressou-se. Debruçou-se
imediatamente sobre a viola para afiná-la mais cuidadosamente do que
tinha feito e tocou o Divertimento em Si.
— Está bom, pai. Está muito bom! disse Toninha quando ele terminou
de tocar e aplaudiu.
— Que dizeis? perguntou Madalena com apreensão, virando-se para seu
pai.
São Colombo ficou sentado. Ele levantou-se bruscamente e
encaminhou-se para sair. No momento de atravessar a porta da sala, virou-
se, encarou o aprendiz que ficara sentado, o semblante enrubescido,
atônito, e falou:

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— Voltai daqui há um mês. Direi então se tendes bastante valor para
que vos considere um de meus alunos.

27
IX
O ar levemente divertido que o aprendiz lhe lançara voltava às vezes à
sua memória e ele comovia-se. Era um ar mundano e fácil, mas que possuía
ternura. Enfim, esqueceu esse ar. Trabalhava mais tempo na cabana.
Na quarta vez em que sentiu o corpo de sua esposa a seu lado, ele lhe
perguntou, desviando os olhos de seu rosto:
— Falais, Senhora, apesar da morte?
— Sim.
Ele estremeceu porque reconheceu sua voz. Uma voz grave, ou ao
menos de contralto. Tinha vontade de chorar, mas não chegou a fazê-lo,
pelo tanto que estava ao mesmo tempo surpreso com o fato desse sonho
falar. Com as costas tremendo, ao cabo de um instante ele ganhou coragem
para ainda perguntar:
— Por que apareceis só de vez em quando? Por que não vindes sempre?
— Não sei, disse a sombra enrubescendo. Vim porque o que tocais
comoveu-me. Vim porque tivestes a bondade de me oferecer algo para
beber e alguns petiscos para beliscar.
— Senhora! exclamou ele.
Levantou-se bruscamente, com tanta violência que derrubou sua
banqueta. Afastou a viola de seu corpo, porque ela o incomodava, e a
encostou na parede de tábuas, à esquerda. Abriu seus braços como se
pretendesse abraçá-la. Ela exclamou:
— Não!
Ela recuou. Ele abaixou a cabeça. Ela lhe disse:
— Meus membros, meus seios esfriaram-se.

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Ela custou a recobrar o fôlego. Dava a impressão de alguém que tinha
feito um esforço muito grande. Tocava suas coxas e seus seios enquanto
pronunciava estas palavras. Ele abaixou de novo a cabeça e ela, então,
voltou a sentar-se sobre a banqueta. Quando conseguiu recobrar uma
respiração regular, ela lhe disse docemente:
— Dai-me ao menos um copo de vosso vinho tinto para molhar meus
lábios.
Ele saiu apressado, foi ao porão, desceu até a adega. Quando retornou,
a Senhora de São Colombo já não estava mais lá.

29
X
Quando chegou para sua segunda aula, foi Madalena, muito magra, as
faces rosadas, quem abriu o portão do pátio.
— Vou banhar-me, disse ela, por isso prendi meus cabelos.
Sua nuca era rosada, com pequenos pelos negros arrepiados à luz do dia.
Como ela erguera os braços, seus seios retesaram-se e empinaram.
Dirigiram-se para a cabana do Senhor de São Colombo. Era um belo dia
de primavera. Havia prímulas e borboletas. Marin Marais levava sua viola
nos ombros. O Senhor de São Colombo introduziu-o em sua cabana sobre
a amoreira e o aceitou como aluno dizendo:
— Conheceis a postura do corpo. Não falta sentimento a vossa técnica.
Vosso arco é leve e saltitante. Vossa mão esquerda pula como um esquilo
e insinua-se ligeira como um camundongo12 pelas as cordas. Vossos
ornamentos são engenhosos e por vezes encantadores. Mas não escutei
música.
O jovem Marin Marais experimentou sentimentos contraditórios ao
ouvir a conclusão de seu mestre: estava feliz por ser aceito e espumava de
raiva diante das reservas que o Senhor de São Colombo desfiava uma após
outra, sem revelar mais emoção do que se se tratasse de indicar ao
jardineiro as estacas e as sementes. Este último continuou:
— Podereis ajudar a dançar os que dançam. Podereis acompanhar os
atores que cantam em cena. Ganhareis a vida. Vivereis rodeado de música,
mas não sereis músico.
— Tendes um coração para sentir? Um cérebro para pensar? Tendes
ideia de para que poderiam servir os sons quando não se trata nem de
dançar nem de alegrar os ouvidos do rei?

30
— Contudo, vossa voz desafinada comoveu-me. Eu vos acolho por
vossa dor, não por vossa arte.
Quando o jovem Marin Marais descia os degraus da cabana, viu, na
sombra das folhagens, uma jovem alta e nua que se escondia atrás de uma
árvore. Rapidamente, ele desviou a cabeça para não parecer tê-la visto.

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XI
Passaram-se meses. Um dia, quando fazia muito frio e o campo estava
recoberto de neve, eles não puderam trabalhar por mais tempo sem que
ficassem enregelados. Seus dedos estavam entorpecidos. Deixaram então
a cabana, ganharam a casa e, próximos à lareira, esquentaram o vinho,
adicionaram condimentos, canela e beberam-no.
— Esse vinho esquenta meu peito e minha barriga, disse Marin Marais.
— Conheceis o pintor Baugin? perguntou-lhe São Colombo.
— Não Senhor, nem qualquer outro pintor.
— Eu lhe encomendei uma tela pouco tempo atrás. É o canto da minha
escrivaninha que está no meu estúdio de música. Vamos até lá.
— Agora?
— Sim.
Marin Marais olhava Madalena de São Colombo: ela estava de perfil
perto da janela, defronte à vidraça coberta de gelo que deformava as
imagens da amoreira e dos salgueiros. Ela escutava atentamente. Ela lhe
lançou um olhar singular.
— Vamos ver meu amigo, disse São Colombo.
— Sim, disse Marin Marais.
Eles se agasalharam. O Senhor de São Colombo envolveu seu rosto num
capuz de lã; Madalena estendia chapéus, capas, luvas. Perto da lareira, o
Senhor de São Colombo desabotoou o talim da espada. Foi a única vez em
que Marin Marais viu o Senhor de São Colombo usar a espada. O jovem
olhava fixamente a espada gravada: via-se, forjada em relevo, a figura do
barqueiro do inferno, um croque na mão.
— Vamos, Senhor, diz São Colombo.

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Marin Marais ergueu a cabeça e eles saíram. Marin Marais pensava no
ferreiro no momento em que cunhara a espada sobre a bigorna. Pensou na
pequena bigorna de sapateiro que seu pai apoiava sobre a coxa e sobre a
qual batia com seu martelo. Pensou na mão de seu pai e na calosidade
provocada pelo martelo quando ele acariciava sua face, à noite, quando
tinha quatro ou cinco anos, antes que tivesse trocado a oficina pelo coro
da igreja. Pensou que cada profissão tem suas mãos: os calos do dedo
médio da mão esquerda dos gambistas, as calosidades dos polegares da
mão direita dos oficiais de sapateiro.
Nevava quando saíram da casa do Senhor de São Colombo. Este estava
envolto em uma grande capa escura e apenas seus olhos apareciam sob seu
capuz de lã. Foi a única vez que o Senhor Marin Marais viu seu mestre fora
de seu jardim ou de sua casa. Ele dava a impressão de jamais deixá-los. Eles
alcançaram o Bièvre à jusante. O vento soprava, seus passos faziam estalar
a terra congelada. São Colombo tomara seu aluno pelo braço e pusera o
dedo sobre os lábios em sinal de que se calasse. Eles caminhavam
ruidosamente, as costas encurvadas para a estrada, lutando contra o vento
que fustigava seus olhos abertos.
— Escutais, meu Senhor, exclamou ele, como a ária se destaca com
relação ao baixo13.

33
XII
— Esta é Saint Germain l’Auxerrois, disse o Senhor de São Colombo.
— Sei disso mais que qualquer outro. Nela cantei dez anos, Senhor.
— Cá estamos, disse o Senhor de São Colombo.
Ele bateu com a aldrava. Era uma porta estreita de madeira trabalhada.
Ouvia-se soar o carrilhão de Saint Germain l’Auxerrois. Uma velha adiantou
a cabeça. Ela usava um antigo penteado em ponta sobre a testa. Eles
aproximaram-se do fogo no ateliê do Senhor Baugin. O pintor estava
ocupado a pintar um quadro: um copo cheio até a metade de vinho tinto,
um alaúde deitado, um caderno de música, uma bolsa de veludo negro,
cartas de baralho das quais a primeira era um valete de paus, um tabuleiro
de xadrez sobre o qual estavam dispostos um vaso com três cravos e um
espelho octogonal apoiado na parede do ateliê.
— Tudo que a morte levará está dentro de sua noite, sussurrou São
Colombo no ouvido de seu aluno.
— São todos os prazeres do mundo que se retiraram nos dizendo adeus.
O Senhor de São Colombo perguntou ao pintor se podia reaver a tela
que lhe emprestara: o pintor desejara mostrá-la para um negociante de
Flandres que fizera dela uma cópia. O Senhor Baugin acenou à velha que
usava o penteado em ponta sobre a testa. Ela inclinou-se e foi buscar os
beijuzinhos em moldura de ébano. Ele a mostrou ao Senhor Marais,
apontando com o dedo a taça e a espiral das guloseimas amarelas. Depois,
a velha impassível encarregou-se de envolvê-la com panos e cordas. Eles
contemplaram o pintor que pintava. O Senhor de São Colombo sussurrou
novamente no ouvido do Senhor Marais:
— Ouvi o som que faz o pincel do Senhor Baugin.

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Eles fecharam os olhos e escutaram-no pintar. Depois, o Senhor de São
Colombo disse:
— Aprendestes a técnica do arco.
Como o Senhor Baugin voltou-se para eles e os interrogou sobre o que
murmuravam entre si:
— Eu falava do arco e o comparava com vosso pincel, disse o Senhor
de São Colombo.
— Creio que vos enganais, disse o pintor rindo. Amo o ouro.
Pessoalmente procuro o caminho que conduz até o fogo milagroso.
Eles saudaram o Senhor Baugin. O penteado branco em ponta reclinou-
se secamente diante deles enquanto a porta fechou-se às suas costas. Na
rua, a neve estava duas vezes mais violenta e grossa. Eles não viam nada e
tropeçavam na camada de neve. Entraram em um campo destinado ao jogo
de péla14. Serviram-se de uma tigela de sopa e tomaram-na, soprando o
vapor que a envolvia, andando pelas salas. Viram senhores que jogavam
rodeados de muita gente. As jovens damas que os acompanhavam
aplaudiam nos melhores lances. Numa outra sala, viram duas mulheres que
recitavam sobre tablados. Uma dizia com voz elevada:
— Eles brilhavam por entre os archotes e as armas. Bela, sem
ornamentos, na magnificência simples de uma beleza que acabou de
despertar. Que quer você? Não sei se esta negligência, as sombras, os
archotes, os gritos e o silêncio...
A outra respondia lentamente, uma oitava mais grave:
— Eu quis falar-lhe e minha voz sumiu. Imóvel, tomada de um longo
estupor, de sua imagem em vão quisera me desfazer. Demasiado presente
a meus olhos, acreditava falar-lhe, nunca até essas lágrimas que fizera
derramar...
Enquanto as atrizes declamavam com estranhos gestos grandiloquentes,
São Colombo cochichou na orelha de Marais:
— Eis como se articula a ênfase de uma frase. A música também é uma
linguagem humana.
Eles deixaram o lugar do jogo da péla. A neve parara de cair, mas
chegava à altura de suas botas. Era noite sem que houvesse lua ou estrelas.

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Um homem passava com uma tocha que protegia com a mão e eles
seguiram-no. Alguns flocos de neve ainda caíam.
O Senhor de São Colombo deteve seu discípulo segurando-o pelo braço:
diante deles, um menino abaixara seus calções e mijava fazendo um buraco
na neve. O barulho da urina quente chocando-se com a neve misturava-se
ao barulho dos cristais de neve que se derretiam.
— Aprendestes a destacar os ornamentos, disse ele.
— É também uma cromática descendente, replica o Senhor Marin
Marais.
O Senhor de São Colombo encolheu os ombros.
— Eu porei uma cromática descendente no vosso túmulo, Senhor.
Foi o que de fato fez, anos mais tarde. O Senhor Marais acrescentou:
— A verdadeira música não estaria, talvez, ligada ao silêncio?
— Não, disse o Senhor de São Colombo. Ele estava recolocando o
capuz de lã sobre a cabeça e enterrou seu chapéu para segurá-lo. Afastando
o talim de sua espada que atrapalhava suas pernas, sempre segurando os
beijuzinhos apertados embaixo do braço, ele se virou e, por sua vez, urinou
contra o muro. Voltou-se novamente para o Senhor Marais dizendo:
— É noite alta. Tenho frio nos pés. Eu vos saúdo.
E o deixou inopinadamente.

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37
XIII
Era o início da primavera. Ele o empurrou para fora da cabana. Cada
qual com sua viola na mão, sem uma palavra, sob a chuva fina,
atravessaram o jardim em direção à casa onde entraram com grande
estrépito. São Colombo chamou suas filhas berrando. Tinha o ar colérico.
Ele vociferou:
— Vamos, Senhor. Vamos. Trata-se de fazer brotar uma emoção em
nossos ouvidos.
Toninha desceu a escada correndo. Sentou-se perto da porta-janela.
Madalena veio abraçar Marin Marais que lhe disse, colocando a viola entre
as pernas e procurando o acorde, que tocara diante do rei na capela. Os
olhos de Madalena tornaram-se mais sérios. A atmosfera estava tensa,
semelhante a uma corda a ponto de se partir. Enquanto Madalena
enxugava as gotas de chuva sobre a viola com seu avental, Marin Marais
repetia cochichando em seus ouvidos:
— Ele está furioso porque toquei ontem diante do rei na capela.
O semblante do Senhor de São Colombo tornou-se ainda mais sombrio.
Toninha acenou. Sem dar atenção, Marin Marais explicava à Madalena que
um aquecedor a carvão tinha sido posto sob os pés da rainha. O
aquecedor...
— Tocai! bradou o Senhor de São Colombo.
— Veja, Madalena. Queimei a parte de baixo de minha viola. Foi um
dos guardas que viu que minha viola ardia e que me fez sinal com sua lança.
Ela não se queimou. Ela não se queimou de verdade. Ela manchou-se de
preto e...

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Com grande estrondo, duas mãos desabaram sobre a madeira da mesa.
Todos sobressaltaram-se. O Senhor de São Colombo berrou por entre os
dentes:
— Tocai!
— Madalena, veja! continuava Marin.
— Toque! disse Toninha.
São Colombo atravessou a sala e arrancou-lhe o instrumento das mãos.
— Não! exclamou Marin que se levantou para recuperar sua viola. O
Senhor de São Colombo estava fora de si. Ele brandia a viola no ar. Marin
Marais o perseguia na sala estendendo os braços para recuperar seu
instrumento e impedi-lo de fazer algo monstruoso. Gritava: “Não! Não!”
Madalena, petrificada de terror, torcia seu avental com as mãos. Toninha
levantara-se e corria atrás deles.
São Colombo aproximou-se da lareira, ergueu a viola no ar e a
despedaçou sobre a coifa de pedra. O espelho que dela pendia partiu-se
com o choque. Marin Marais ajoelhou-se instantaneamente e urrou. O
Senhor de São Colombo atirou ao chão o que restava da viola e saltou por
cima, com suas botas em funil. Toninha puxava seu pai pelo gibão
pronunciando seu nome. Por um momento, todos os quatro se calaram.
Mantinham-se imóveis e estupefatos. Olhavam sem compreender os
destroços. O Senhor de São Colombo, a cabeça baixa, pálido, só olhava
suas mãos. Ele tentava suspirar uns “Ah! Ah!” de dor, mas não conseguia.
— Meu pai, meu pai! dizia Toninha entre soluços, apertando os ombros
e os dedos de seu pai.
Ele mexia os dedos e soltava aos poucos pequenos “Ah! Ah!” como um
homem que se afoga sem recuperar o fôlego. Por fim, abandonou o
aposento. O Senhor Marais chorava nos braços de Madalena que estava
agachada a seu lado e tremia. O Senhor de São Colombo retornou com um
saquinho do qual desatou o laço. Ele contou os luíses que continha,
aproximou-se, atirou o saquinho aos pés de Marin Marais e se retirou.
Marin Marais gritou às suas costas, pondo-se de pé:
— Poderíeis, Senhor, explicar o motivo do que fizestes!
O Senhor de São Colombo voltou-se e disse com calma:

39
— Senhor, o que é um instrumento? Um instrumento não é a música.
Tendes aí com que comprar um novo cavalo de circo para fazer piruetas
na frente do rei.
Madalena chorava com a cabeça nas suas mangas de sua camisa tentando
levantar-se por si mesma. Os soluços estremeciam suas costas. Ela
permanecia ajoelhada entre eles.
— Ouvi, Senhor, os soluços que a dor arranca de minha filha: eles estão
mais próximos da música que vossos sons. Não volteis mais aqui, Senhor,
sois um grande saltimbanco. Os pratos voam por sobre vossa cabeça e
nunca perdeis o equilíbrio, mas sois um músico menor. Sois um músico do
porte de uma ameixa15 ou de um besouro16. Deveríeis tocar em Versalhes,
isto é, sobre a Pont Neuf, e vos jogariam moedas como esmola.
O Senhor de São Colombo deixou a sala batendo a porta atrás de si. O
Senhor Marin Marais correu em direção ao pátio para partir. As portas
batiam.
Madalena correu atrás dele na estrada, alcançando-o. A chuva tinha
parado. Ela o segurou pelos ombros. Ele chorava.
— Eu vos ensinarei tudo o que meu pai me ensinou, disse-lhe ela.
— Vosso pai é um homem mau, e louco, disse Marin Marais.
— Não.
Em silêncio, ela negou com a cabeça. Ela disse mais uma vez:
— Não.
Ela reparou nas lágrimas que corriam sobre seu rosto e enxugou uma
delas. Ela percebeu as mãos de Marais aproximarem-se das suas, nuas na
chuva que recomeçara. Ela adiantou seus dedos. Eles tocaram-se e
sobressaltaram-se. Depois, deram-se as mãos, aproximaram seus corpos,
aproximaram seus lábios. Eles abraçaram-se.

40
XIV
Marin Marais vinha escondido do Senhor de São Colombo. Madalena
mostrava a ele, sobre sua viola, todos os movimentos que seu pai tinha
ensinado a ela. Em pé, diante dele, ela o fazia repeti-los, dispondo sua mão
sobre o braço da viola, ajeitando o cotovelo e a parte superior do braço
direito para o arco, posicionando a barriga da perna de modo a projetar o
instrumento para frente e fazê-lo ressoar. Assim, eles se tocaram. Depois,
eles se beijaram nos cantos ensombrecidos. Eles se amaram. Às vezes, eles
se punham embaixo da cabana do Senhor de São Colombo para escutar
quais ornamentos ele havia desenvolvido, como evoluía sua execução,
quais eram os acordes de sua preferência.
Quando ele tinha vinte anos, durante o verão de 1676, o Senhor Marin
Marais anunciou à Senhorita de São Colombo que tinha sido contratado
na corte como “músico do rei”. Eles estavam no jardim; ela o empurrou
para que se instalasse embaixo do estúdio de tábuas, construído sobre os
galhos rasteiros da velha amoreira. Ela havia ofertado a ele toda sua técnica
e toda sua experiência.
Então, chegou o dia em que desabou uma tempestade quando Marin
Marais estava escondido embaixo da cabana. Tendo se resfriado, ele
espirrou violentamente várias vezes. O Senhor de São Colombo saiu na
chuva e surpreendeu o rapaz com o queixo entre as pernas sobre a terra
úmida. Dando-lhe pontapés, bradava pelas pessoas de sua casa. Chegou a
machucá-lo nos pés e nos joelhos para fazê-lo sair. Segurando o rapaz pela
gola, ordenou ao criado mais próximo que fosse buscar o chicote.
Madalena de São Colombo interpôs-se. Ela disse a seu pai que amava
Marin, acalmando-o. As nuvens da tempestade passaram tão velozmente

41
quanto tinham sido se formado, e eles levaram até o jardim poltronas
estofadas nas quais sentaram-se.
— Não quero mais vos ver, Senhor. É a última vez, disse São Colombo.
— Não me veras mais.
— Desejais desposar minha filha mais velha?
— Não posso ainda empenhar minha palavra.
— Toninha está com o fabricante de alaúdes e voltará tarde, disse
Madalena virando seu rosto.
Ela tinha acabado de sentar-se sobre a relva perto de Marin Marais,
encostada na grande cadeira estofada de seu pai. A relva já estava quase
seca e cheirava forte a feno. Seu pai mirava, além dos salgueiros, as florestas
verdes. Ela olhou a mão de Marais, que se aproximava lentamente. Ele
colocou seus dedos sobre o seio de Madalena e deslizou lentamente para
baixo. Ela fechou suas pernas e estremeceu. O Senhor de São Colombo
não podia vê-los. Ele estava concentrado em falar:
— Não sei se vos concederia minha filha. Sem dúvida, conseguistes um
lugar de boa referência. Viveis num palácio e o rei gosta das melodias com
as quais adornais seus prazeres. Na minha opinião, pouco importa que se
exerça sua arte num grande palácio de pedra de cem cômodos ou numa
cabana que balança numa amoreira. Para mim, existe algo mais que a arte,
mais que os dedos, mais que o ouvido, mais que a invenção: é a vida
apaixonada que levo.
— Viveis uma vida apaixonada? perguntou Marin Marais.
— Pai, levais uma vida apaixonada?
Madalena e Marais falaram ao mesmo tempo e ao mesmo tempo
encararam o velho músico.
— Senhor, agradais a um rei visível. A mim não foi dado agradar. Evoco,
eu juro a você, evoco com minha mão algo invisível.
— Falais por enigmas. Jamais compreendi bem o que quisestes dizer.
— É porque não sou um ávido dissipador que caminhais a meu lado,
sobre meu pobre caminho de grama e cascalho. Pertenço às tumbas.
Publicais composições habilidosas e acrescentais engenhosamente a elas

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dedilhados e ornamentos que me roubais. Mas eles não são mais que pretos
e brancos sobre o papel!
Com seu lenço, Marin Marais limpava as manchas de sangue de seus
lábios. Ele inclinou-se subitamente em direção a seu mestre.
— Senhor, há muito tempo que desejo vos fazer uma pergunta.
— Sim.
— Por que não publicais as árias que tocais?
— Oh! meus filhos, eu não componho! Nunca escrevi nada. São
oferendas d’água, lentilhas d’água, de artemísia, lagartinhas vivas que às
vezes invento, ao me recordar de um nome e de prazeres.
— Mas onde está a música em vossas lentilhas e em vossas lagartas17?
— Quando estiro meu arco, é um pedacinho de meu coração fremente
que dilacero. O que faço não é mais que a disciplina de uma vida onde
nenhum dia é feriado. Eu cumpro meu destino.

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XV
De um lado, os libertinos eram torturados, de outro, os Senhores de
Port Royal punham-se em fuga. Estes tinham o projeto de adquirir uma
ilha na América e de nela se estabelecer, como fizeram os puritanos
perseguidos. O Senhor de São Colombo havia conservado laços de
amizade com o Senhor de Bures. O Senhor Coustel dizia que os Solitários
levavam o excesso de humilhação ao ponto de preferirem serem chamados
por “Senhor” a “Santo”. Na Rua Saint-Dominique-d’Enfer, as crianças
também se tratavam por “Senhor” e não por você. Às vezes, um desses
senhores enviava-lhe um coche para que viesse tocar para a morte de um
deles ou para a Semana Santa. O Senhor de São Colombo não podia
impedir-se, então, de pensar em sua esposa e nas circunstâncias que
precederam sua morte. Ele vivia um amor que nada amortecia. Parecia-lhe
que era o mesmo amor, o mesmo abandono, a mesma noite, o mesmo frio.
Em uma quarta-feira santa, tocou para o ofício das Trevas na capela do
palacete da Senhora de Pont-Carré. Havia arrumado suas coisas e se
preparava para voltar. Ele estava sentado na pequena aleia lateral, sobre
uma cadeira de palha. Sua viola estava a seu lado, coberta com sua capa. O
organista e duas irmãs interpretavam uma peça nova que ele não conhecia
e que era bela. Ele virou a cabeça para sua direita: ela estava sentada a seu
lado. Ele inclinou a cabeça. Ela lhe sorriu e ergueu um pouco a mão. Ela
usava meia luva preta e anéis.
— Agora é preciso recolher-se, disse ela.
Ele se levantou, apanhou sua viola e a acompanhou na obscuridade da
aleia, ao longo das estátuas de santos cobertos de mantos violetas.

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Na viela, ele abriu a porta do coche, desdobrou o estribo e subiu depois
dela, pondo sua viola diante dele. Ele disse ao cocheiro que voltaria para
casa. Sentiu a doçura do vestido de sua esposa perto dele. Perguntou a ela
se havia outrora demonstrado o quanto a amava.
— Tenho a lembrança de que me demonstrastes vosso amor, disse-lhe
ela, ainda que não ficasse ofendida se o tivesses exprimido de um modo
um pouco mais eloquente.
— Foi tão pobre e tão raro?
— Foi tão pobre quanto frequente, meu amigo, e, na maioria das vezes,
mudo. Eu vos amava. Como gostaria ainda de vos oferecer pêssegos
amassados18!
O coche havia parado. Eles já estavam diante da casa. Ele saiu do coche
e lhe estendeu a mão para que ela descesse por sua vez.
— Não posso, disse ela.
Sua expressão dolorosa deu à Senhora de São Colombo o desejo de
estender-lhe a mão.
— Não me pareceis bem, disse ela.
Ele retirou a viola de sua capa e a apoiou sobre a estrada. Sentou sobre
o estribo do coche e chorou.
Ela havia descido. Ele levantou-se às pressas e abriu o portão do pátio.
Eles atravessaram o pátio, subiram a escadaria, entraram na sala onde ele
deixou a viola apoiada contra a pedra da lareira. Ele disse:
— Minha tristeza é indefinível. Tendes razão de me censurardes. A
palavra não pode nunca dizer o que quero falar e não sei como dizer...
Ele empurrou a porta que dava para a balaustrada e para o jardim dos
fundos. Eles caminharam sobre a grama. Ele apontou com o dedo a
cabana, dizendo:
— Eis a cabana de que falo!
Ele se pôs de novo a chorar docemente. Eles foram até a barca. A
Senhora de São Colombo subiu na barca alva enquanto ele a segurou pela
borda, mantendo-a junto à margem. Ela levantou seu vestido para pisar
sobre a tábua húmida da barca. Ele se endireitou. Tinha as pálpebras

45
abaixadas. Não viu que a barca desaparecera. Ele continuou a falar, depois
de um certo tempo, as lágrimas escorrendo sobre suas faces:
— Não sei como dizer, Senhora. Doze anos se passaram, mas os lençóis
de nosso leito ainda não se esfriaram.

46
XVI
As visitas do Senhor Marin Marais tornaram-se mais raras. Madalena o
encontrava em Versalhes ou em Vauboyen, onde amavam-se numa cama
de hospedaria. Madalena confiava-lhe tudo. É assim que ela lhe confessou
que seu pai compusera as árias mais belas que já vieram ao mundo e que
ele não deixava ninguém as escutar. Havia os Prantos. Havia a Barca de
Caronte19.
Certa vez, eles passaram um susto. Estavam na casa, porque Marain
Marais havia procurado surpreender, deslizando sob os galhos da amoreira,
as árias de que Madalena falara. Ela estava em pé diante dele, na sala. Marin
estava sentado. Ela aproximou-se e projetou seus seios para a frente, bem
diante de seu rosto. Ela desabotoou a parte de cima de seu vestido, afastou
sua camisa de baixo. Seu peito pulsava. Marin Marais não podia deixar de
olhar para eles.
— Manon20! exclama o Senhor de São Colombo.
Marin Marais escondeu-se no canto da janela mais próxima. Madalena
estava pálida e recolocava às pressas sua camisa de baixo.
— Sim, meu pai.
— É preciso que executemos nossas músicas para terça e quinta-feira
santa.
— Sim, meu pai.
Ele entrou. O Senhor de São Colombo não viu Marin Marais. Eles
deixaram rapidamente a sala. Quando, ao longe, ele os ouviu afinar os
instrumentos, Marin Marais saiu de seu esconderijo e deixou furtivamente
a casa, passando pelo jardim. Ele deparou-se com Toninha, que

47
contemplava o jardim com os cotovelos apoiados na balaustrada. Ela o
reteve pelo braço.
— E eu, o que você acha de mim?
Ela projetava seus seios para frente, como fizera sua irmã. Marin Marais
riu, deu-lhe um abraço e esquivou-se, partindo precipitadamente.

48
XVII
Uma outra vez, algum tempo depois, num dia de verão, quando
Guignotte, Madalena e Toninha tinham combinado ir à capela limpar as
estátuas dos santos, remover as teias de aranha, lavar o piso, espanar o pó
das cadeiras e dos bancos e colocar flores no altar, Marin Marais as
acompanhou. Ele subiu na tribuna e tocou uma peça para órgão. Embaixo,
ele viu Toninha que esfregava com um pano de estopa o piso e os degraus
que rodeavam o altar. Ela acenou para ele. Ele desceu. Fazia muito calor.
Eles deram-se as mãos, passaram pela porta da sacristia, atravessaram
correndo o cemitério, saltaram o muro e chegaram às moitas do limite do
bosque.
Toninha estava toda esbaforida. Seu vestido deixava ver a parte de cima
de seus seios, que luziam de suor. Ela tinha olhos que brilhavam. Ela
projetou seus seios para frente.
— O suor molha as bordas do meu vestido, disse ela.
— Tendes os seios maiores que os de vossa irmã.
Ele olhava seus seios. Ele tomou-a pelos braços, quiz aproximar seus
lábios, quiz separar-se dela e partir. Ele tinha o olhar desvairado.
— Meu corpo está quente, disse-lhe ela tomando sua mão e colocando-
a entre as suas. Ela o puxou para si.
— Vossa irmã..., murmurou ele e a abraçou. Eles se apertaram. Ele
abaixava os olhos. Ele desarrumou sua camisa.
— Tire sua roupa e me possua, ela lhe disse.
Era ainda uma criança. Ela repetia:
— Tire minha roupa! Depois tire sua roupa!

49
Seu corpo era o de uma mulher roliça e cheia. Depois que eles se tiveram,
no momento de recolocar sua camisa, nua, iluminada lateralmente pela luz
do dia agonizante, os seios volumosos, as coxas destacando-se do fundo
das folhagens do bosque, ela pareceu-lhe a mulher mais bela do mundo.
— Não estou envergonhada, disse ela.
— Estou envergonhado.
— Estava com desejo.
Ele a ajudou a amarrar seu vestido. Ela ergueu seus braços e os manteve
suspensos e dobrados. Ele cingiu sua cintura. Ela não usava calções sob
sua camisa de baixo. Ela disse:
— Além do mais, agora Madalena vai emagrecer.

50
XVIII
Eles estavam seminus na cama de Madalena. Marin Marais recostou-se
na cabeceira da cama. Ele lhe disse:
— Eu vos deixo. Vistes que não tenho mais nada para vos oferecer em
meu baixo-ventre.
Ela tomou suas mãos e, pondo seu rosto entre as duas mãos de Marin
Marais, começou a chorar lentamente. Ele soltou um suspiro. Ela tomou
das mãos de Marais os cordões de seu calção e os levou até a boca. O
acordoado que sustinha o cortinado da cama despencou, quando ele o
puxou para amarrar seus calções.
— Vossas lágrimas são doces e me tocam. Eu vos deixo porque não
sonho mais com vossos seios. Descobri outros rostos. Nossos corações
são uns famintos. Nosso espírito não conhece o repouso. A vida é bela na
medida em que é feroz, como nossas presas.
Ela calou-se. Brincava com os cordões, acariciava seu ventre e não
olhava para ele. Ela ergueu a cabeça, olhou subitamente para ele, toda
vermelha, e murmurou:
— Pare de falar e vá embora!

51
XIX
A senhorita de São Colombo adoeceu. Ficou tão magra e fraca que
precisou guardar repouso. Ela estava grávida. Marin Marais não ousava
pedir notícias suas, mas combinou com Toninha vir um dia, além do
lavadouro sobre o Bièvre. Ali, ele deu feno a seu cavalo e pediu notícias
sobre a gravidez de Madalena. Ela deu à luz a um menino natimorto. Ele
confiou à Toninha um pacote que ela entregou à sua irmã: continha sapatos
amarelos, fechados com laços de cadarço que seu pai confeccionara com
couro de bezerro a seu pedido. Madalena quiz arremessá-los ao fogo, mas
Toninha a impediu. Ela se restabeleceu. Leu os Padres do deserto. Com o
passar do tempo, ele deixou de vir.
Em 1675, ele trabalhou compondo com o Senhor Luly. Em 1679,
Caignet morreu. Com vinte e três anos, Marin Marais foi nomeado
Ordinário da Câmara do Rei, ocupando o lugar de seu primeiro mestre.
Assumiu também a direção da orquestra, ao lado do Senhor Luly. Compôs
óperas. Casou-se com Catarina de Amicourt e teve com ela dezenove
filhos. O ano em que se abriram as carneiras de Port Royal (o ano em que
o rei ordenou, por escrito, que se abrissem os túmulos, que se exumassem
os corpos dos Senhores Hamon e Racine, e que fossem jogados aos cães),
ele retomou o tema da Sonhadora.
Em 1686, ele morou na rua do Jour, perto da Igreja Santo Eustáquio.
Toninha casou com o filho do Senhor Pardoux, de quem teve cinco filhos.
Como o seu pai, o filho do Senhor Pardoux era fabricante de alaúdes na
cidade.

52
XX
A nona vez em que pressentiu que sua esposa viera juntar-se a ele foi na
primavera. Foi na ocasião da grande perseguição de junho de 1679. Ele
havia retirado o vinho e o prato de beijuzinhos de sobre a mesa de música.
Tocava em sua cabana. Interrompeu-se e lhe disse:
— Como é possível que venhais aqui, depois da morte? Onde está minha
barca? Onde estão minhas lágrimas quando vos vejo? Não sois na verdade
um sonho? Sou um louco?
— Não vos inquieteis. Vossa barca está apodrecida há muito na margem.
O outro mundo não é mais estanque que o fora vossa embarcação.
— Sofro, Senhora, por não vos tocar.
— Não há nada para tocar, Senhor, senão vento.
Ela falava lentamente, como o fazem os mortos. Ela acrescentou:
— Credes que não existe sofrimento por ser vento? Às vezes, esse vento
carrega até nós porções de música. Às vezes, a luz carrega até vossos olhos
lampejos de nossa aparência.
Ela calou-se outra vez. Olhava as mãos de seu marido, que ele colocara
sobre a madeira vermelha da viola.
— Como não sabeis mesmo falar! disse ela. O que quereis, meu amigo?
Tocai.
— O que contempláveis enquanto permanecíeis calada?
— Olhava vossa mão envelhecida sobre a madeira da viola. Tocai, então!
Ele ficou imóvel. Olhou sua esposa e depois, pela primeira vez na sua
vida, ele observou sua mão emaciada, amarelada, com a pele encarquilhada,
como se assim não a tivesse percebido até então. Colocou diante de si suas
duas mãos. Elas estavam maculadas pela morte e ele alegrou-se com isso.

53
Essas manchas de velhice aproximavam-no dela ou de seu estado. Seu
coração batia até não mais poder pela alegria que experimentava e seus
dedos tremiam.
— Minhas mãos, dizia ele. Falais de minhas mãos!

54
XXI
A essa hora o sol já havia desaparecido. O céu estava carregado de
nuvens de chuva e se fazia sombrio. O ar trazia muita humidade e deixava
pressentir uma chuvarada próxima. Ele seguiu o Bièvre. Reviu a casa e sua
torrezinha e se deparou com os altos muros que a protegiam. À distância,
vez ou outra, ouviu o som da viola de seu mestre. Comoveu-se com ele.
Acompanhou o muro até a margem e, segurando-se nas raízes de uma
árvore que uma cheia do riacho desnudara, conseguiu contornar o muro e
alcançar o talude da margem que pertencia a São Colombo. Do grande
salgueiro não restava mais que o tronco. A barca também não estava mais
lá. Disse a si mesmo: “O salgueiro partiu-se. A barca afundou21. Amei filhas
solteiras que são certamente mães. Conheci sua beleza”. Ele não deu
atenção às galinhas e aos gansos que dele se acercaram, agitando-se em
torno de suas pernas: “Madalena não deve morar mais aqui. Antigamente,
ela os recolhia ao escurecer e se os ouvia piar e chacoalhar as penas durante
a noite”.
Ele deslizou pela sombra do muro e, guiando-se pelo som da viola,
aproximou-se da cabana de seu mestre. Envolvendo-se em sua capa de
chuva, aproximou o ouvido do tabique. Eram longos lamentos de arpejo.
Assemelhavam-se às árias que o jovem Couperin improvisava, naquele
tempo, nos órgãos de Saint Gervais. Pela pequena ameia da janela filtrava-
se o lume de uma vela. Depois, como a viola cessara de ressoar, ele o ouviu
falar a alguém, ainda que não tivesse ouvido resposta.
— Minhas mãos, dizia ele. Falais de minhas mãos!
E também:
— O que contempláveis enquanto permanecíeis calada?

55
Ao cabo de uma hora, o Senhor Marais partiu, empreendendo o mesmo
caminho difícil da vinda.

56
XXII
Durante o inverno de 1684, um salgueiro partiu-se sob o peso do gelo e
a margem do rio arruinou-se com a queda. Pelo buraco das folhagens, via-
se a casa de um lenhador na floresta. O Senhor de São Colombo ficou
bastante abalado com este acidente porque ele coincidiu com a doença de
sua filha Madalena. Ele vinha até a cama de sua filha mais velha. Ele sofria,
procurava, mas não achava nada que pudesse dizer-lhe. Acariciava o rosto
ossudo de sua filha com suas velhas mãos. Uma noite, em uma dessas
visitas, ela pediu a seu pai que tocasse a Sonhadora, que o Senhor Marais
compusera para ela outrora, no tempo em que a amava. Ele se recusou e
deixou o quarto muito irritado. Contudo, pouco tempo depois disso, o
Senhor de São Colombo partiu à procura de Toninha na ilha, na oficina do
Senhor Pardoux, e pediu a ela para avisar o Senhor Marais. Seguiu-se a
tristeza que se conhece. O Senhor de São Colombo não somente ficou sem
falar durante dez meses, mas também deixou de tocar sua viola. Era a
primeira vez que lhe nascia este desgosto. Guignotte estava morta. Ele não
tinha nunca se servido dela, sequer tinha tocado em seus cabelos, que ela
usava soltos nas costas, ainda que o tivesse desejado. Mais ninguém lhe
preparava seu cachimbo de barro e seu pichel de vinho. Dizia aos criados
que podiam subir ao sótão deitar-se ou jogar cartas. Preferia ficar só, com
um candelabro, sentado perto da mesa, ou com um castiçal, na sua cabana.
Não lia. Não abria seu livro de marroquim vermelho. Recebia seus alunos
sem um olhar sequer e mantinha-se imóvel, ainda que fosse preciso lhes
dizer para não se perturbarem a fim de executar música.
Nessa época, o Senhor Marais chegava tarde da noite e escutava, a orelha
colada à parede de tábuas, o silêncio.

57
XXIII
Uma tarde, Toninha e Luc Pardoux vieram à procura do Senhor Marais
quando ele servia em Versalhes. Madalena de São Colombo tivera uma
febre alta repentina, ocasionada pela varíola pequena. Temia-se que ela não
resistisse. Um guarda avisou o Ordinário da Câmara que uma certa
Toninha o aguardava lá fora.
Ele chegou algo constrangido, com suas rendas, seus tacões trançados
de ouro e de vermelho22. Marin Marais foi desagradável. Mostrando o
bilhete que ainda tinha em suas mãos, começou dizendo que não iria de
modo algum. Depois, perguntou qual era a idade de Madalena. Ela nascera
no ano em que o finado rei morrera. Tinha então trinta e nove anos, e
Toninha dizia que sua irmã mais velha não suportava a ideia de completar
os quarenta no estado de solteira. Seu marido, o Senhor Pardoux, o filho,
acreditava que Madalena tinha na verdade a cabeça transtornada.
Começara por comer pão de farelo, depois suprimira toda carne. Agora, a
mulher que substituíra Guinotte dava-lhe comida na boca. O Senhor de
São Colombo teimava em dar a ela pêssegos em xarope para garantir sua
sobrevivência. Era uma mania que dizia ter adquirido de sua mulher. O
Senhor Marais levou a mão aos olhos quando Toninha pronunciou o nome
do Senhor de São Colombo. Madalena recusava tudo. Quando os Senhores
afirmavam que a varíola pequena recrutava para a santidade e para o
claustro, Madalena de São Colombo retorquia que a santidade era o serviço
de seu pai, o claustro era este “vorde” sobre o Bièvre, e que sabendo disso
parecia-lhe inútil trocar uma coisa por outra. Quanto a ser desfigurada pela
varíola, ela afirmava que não havia porque lamentá-lo: ela já era magra

58
como os cardos e tinha tanta graça como eles. Outrora, um homem
chegara mesmo a abandoná-la porque seus seios, quando ela emagrecera
de dor, ficaram do tamanho de avelãs23. Ela não comungava mais, a menos
que houvesse nisso a influência do Senhor de Bures ou do Senhor de
Lancelot. Mas continuava piedosa. Durante anos ela fora à capela rezar.
Subia na tribuna, olhava o coro e as lajes que rodeavam o altar, punha-se
no órgão. Dizia que oferecia esta música a Deus.
O Senhor Marais perguntou como passava o Senhor de São Colombo.
Toninha respondeu que estava bem, mas que se recusava a tocar a peça
intitulada a Sonhadora. Há seis meses atrás, Madalena ainda sachava no
jardim e plantava sementes de flores. Agora, estava muito fraca para ir à
capela. Quando podia caminhar sem cair, ao escurecer, ela exigia que seu
pai fosse servido sozinho na mesa, talvez por espírito de humildade, ou
por desgosto com a ideia de comer, ficando em pé atrás de sua cadeira. O
Senhor Pardoux afirmou que ela tinha dito para sua mulher que, à noite,
ela queimava seus braços nus com a cera de candelabros. Madalena
mostrara a Toninha suas chagas na parte de cima de seus braços. Ela não
dormia, mas nisto ela era como seu pai. Seu pai a olhava ir e vir sob a lua,
perto do galinheiro, ou então cair de joelhos na relva.

59
XXIV
Toninha conseguiu convencer Marin Marais. Ela o levou depois de ter
prevenido seu pai, de modo que o Senhor de São Colombo não fosse
obrigado a vê-lo. O cômodo em que entrou cheirava a seda mofada.
— Estais cheio de fitas magníficas, Senhor, e gordo, disse Madalena de
São Colombo.
Ele não disse nada imediatamente, e empurrou uma banqueta para perto
da cama, sobre a qual se sentou, mas que achou muito baixa. Preferiu ficar
em pé, algo constrangido, com o braço apoiado contra as colunatas da
cama. Ela achou que a parte de cima de seu calção em cetim azul estava
muito justa: quando ele se movimentava, moldava suas nádegas, marcava
as dobras do ventre e a protuberância do sexo. Ela disse:
— Eu vos agradeço por terdes vindo de Versalhes. Gostaria que
tocásseis essa ária que compusestes para mim outrora e que foi impressa.
Ele falou que devia tratar-se, sem dúvida, da Sonhadora. Ela o fitou bem
nos olhos e disse:
— Sim. E sabeis porquê.
Ele se calou. Inclinou a cabeça em silêncio, depois voltou-se
bruscamente para Toninha pedindo-lhe para buscar a viola de Madalena.
— Vossas faces estão cavadas. Vossos olhos estão vazios. Vossas mãos
estão tão magras! disse ele com um ar de espanto, depois que Toninha saiu.
— É uma constatação bastante delicada de vossa parte.
— Vossa voz está mais grave que outrora.
— A vossa alteou-se.
— Sofrestes talvez de algum desgosto? Emagrecestes demais.
— Não vejo que sofresse de pena recente.

60
Marin Marais retirou suas mãos da coberta. Ele recuou até se encostar
na parede do quarto, na sombra que fazia o canto da janela. Ele falou muito
baixo:
— Vós me quereis?
— Sim, Marin.
— O que fiz outrora ainda vos inspira ódio contra mim?
— Não há só ódio de vós, Senhor! Nutri também ressentimentos contra
mim. Quis deixar-me secar primeiro por vossa lembrança, depois de pura
tristeza. Não sou mais que os ossos de Titonus!
Marin Marais riu. Aproximou-se da cama e disse a ela que nunca a achara
muito cheia de carnes, e que se lembrava, outrora, de que quando colocava
as mãos sobre sua coxa, seus dedos davam a volta e se tocavam.
— Sois espirituoso, disse ela. E imaginar que desejei ser vossa esposa!
A senhorita de São Colombo retirou bruscamente o lençol de sua cama.
O Senhor de São Colombo recuou com tanta precipitação que desprendeu
o cortinado da cama, que se desdobrou. Ela levantou sua camisola para
descer, e ele viu suas coxas e o sexo completamente nu. Soltando um
gritinho, ela pisou descalça sobre o ladrilhado, puxou a estofa de sua camisa
de baixo, estendeu a para ele e a colocou entre seus dedos dizendo:
— O amor que você me dedicava era mais magro e ralo que a bainha
dessa minha camisa.
— Você mente.
Eles se calaram. Ela colocou sua mão descarnada sobre o punho cheio
de fitas de Marin Marais e disse:
— Toque, se for de seu agrado.
Ela procurou subir novamente em sua cama, mas era demasiado alta
para ela. Ele a ajudou, empurrando suas nádegas esquálidas. Ela estava tão
leve quanto um travesseiro. Ele tomou a viola das mãos de Toninha, que
havia voltado. Toninha procurou o laço, tornou a prender o cortinado da
cama e os deixou. Ele começou a interpretar a Sonhadora, mas ela o
interrompeu, ordenando-lhe que tocasse mais lentamente. Ele recomeçou.
Ela o olhava tocar com olhos que faiscavam de febre. Ela não os fechava.
Ela esquadrinhava seu corpo devotado a tocar.

61
XXV
Ela estava ofegante. Aproximou o rosto da vidraça da janela. Através
das bolhas presas no vidro, viu Marin Marais ajudando sua irmã a subir no
coche. Ele, por sua vez, pisou com o tacão trançado de ouro e vermelho
no estribo, precipitou-se para dentro e fechou a porta dourada. A noite
chegava. Descalça, ela procurou um candelabro, depois revistou o guarda
roupa, engatinhou, encontrou um velho sapato amarelo um pouco
chamuscado e enrijecido. Apoiando-se no tabique e agarrando-se em seus
vestidos, conseguiu levantar-se e voltou para a cama com o candelabro e o
sapato. Ela os colocou sobre a mesa junto à cabeceira. Respirava como se
os três quartos da respiração de que dispunha tivessem se esvaído. Ainda
resmungou:
— Ele não queria ser sapateiro.
Repetiu a frase. Recostou-se sobre o colchão e a madeira de sua cama.
Retirou um grande cadarço dos ilhoses do sapato amarelo, que deixou
perto do candelabro. Meticulosamente, deu um nó que desliza24.
Endireitou-se e aproximou-se da banqueta que Marin Marais tomara e
sobre a qual se sentara. Ela a empurrou para debaixo da vigota mais
próxima da janela, subiu na banqueta agarrando-se ao cortinado de sua
cama, conseguiu amarrar com cinco ou seis voltas o cadarço num grande
prego ali cravado, enfiou sua cabeça no laço e o apertou. Teve dificuldades
em fazer tombar a banqueta. Escorregou25 e saltitou por um bom tempo
até que tombasse. Quando seus pés encontraram o vazio, gritou. Uma
brusca sacudidela faz estremecer seus joelhos.

62
XXVI
Todas as manhãs do mundo jamais retornam26. Os anos haviam-se
passado. Quando se levantava, o Senhor de São Colombo acariciava a tela
do Senhor Baugin e vestia27 sua camisa. Espanava o pó de sua cabana. Era
um homem velho. Entretinha-se ainda cuidando das flores e dos arbustos
que sua filha mais velha plantara antes de enforcar-se. Depois, acendia o
fogo e esquentava o leite. Servia-se de um prato fundo de faiança grossa
em que amassava seu mingau.
O Senhor Marais não via o Senhor de São Colombo desde o dia em que,
ao espirrar, fora surpreendido sob sua cabana, molhado até os ossos. O
Senhor Marais conservara a lembrança de que o Senhor de São Colombo
conhecia árias que ele ignorava, embora fossem tidas como as mais belas
do mundo. Às vezes, acordava de noite recordando-se dos nomes que
Madalena cochichara para ele jurando segredo: Os Prantos, Os Infernos, A
Sombra de Enéias, A Barca de Caronte, e então lamentava viver sem tê-las
ouvido uma só vez que fosse. O Senhor de São Colombo jamais publicaria
o que tinha composto, nem aquilo que seus próprios mestres tinham
ensinado a ele. O Senhor Marais sofria pensando que essas obras perder-
se-iam para sempre quando o Senhor de São Colombo morresse. Não
sabia o que seria de sua vida, nem como seria o futuro. Queria conhecê-las
antes que fosse tarde demais.
Ele partia de Versalhes. Mesmo que chovesse, mesmo que nevasse,
partia de noite para o Bièvre. Como outrora, amarrava seu cavalo no
lavadouro, no caminho de Jouy, para que não fosse ouvido relinchar,
depois seguia pelo caminho úmido, contornava o muro pela margem e
deslizava para debaixo da cabana úmida.

63
O Senhor de São Colombo não tocava suas árias, ou ao menos nunca
executava árias que o Senhor Marais já não conhecesse. Na verdade, o
Senhor de São Colombo tocava muito raramente. Eram, as mais das vezes,
longos silêncios durante os quais acontecia de falar sozinho. Durante três
anos, quase toda noite, o Senhor Marais voltava à cabana dizendo a si
mesmo: “Essas árias, irá ele tocá-las esta noite? Será esta noite?”

64
XXVII
Enfim, no ano de 1689, na noite do vigésimo terceiro dia, com o frio
cortante, a terra coalhada de granizo, o vento ardendo nos olhos e nas
orelhas, o Senhor Marin Marais galopou até o lavadouro. A lua brilhava.
Não havia nenhuma nuvem. “Oh! disse a si mesmo o Senhor Marais, esta
noite é cristalina, o ar puro, o céu mais frio e mais eterno, a lua plena28.
Ouço estalar os cascos de meu cavalo na terra. Talvez seja esta noite”.
Instala-se no frio, estreitando em torno de si sua capa negra. O frio era
tão cortante que, mesmo sentando sobre uma pele de carneiro dobrada29,
sentia frio nas nádegas. Seu sexo estava pequenino, encolhido e enregelado.
Escutou escondido. A orelha doía, encostada na tábua gélida. São
Colombo divertia-se fazendo soar em vão as cordas de sua viola. Extraiu
com o arco alguns acordes melancólicos. Vez ou outra, como acontecia
frequentemente, falava sozinho. Tudo o que começava interrompia-se. Sua
execução parecia negligente, senil, desolada. O Senhor Marais aproximou
a orelha de um vão entre as ripas de madeira para compreender o sentido
das palavras que ruminava vez ou outra o Senhor de São Colombo, mas
nada compreendeu. Ouviu apenas palavras sem sentido como “pêssegos
amassados” ou “embarcação”. O Senhor de São Colombo tocou a Chaconne
Dubois, que tinha outrora executado num concerto com suas filhas. O
Senhor Marais reconheceu o tema principal. A peça chegou ao final,
majestosamente. Então, ouviu um suspiro, depois, o Senhor de São
Colombo, que pronunciou baixinho esses lamentos:
— Ah! Não me dirijo senão a sombras que há muito envelheceram! Que
não mais se movem! Ah! se além de mim houvesse lá fora no mundo

65
alguém vivo que apreciasse a música! Poderíamos conversar! A ele
confiaria minha música, e poderia morrer.
Então, tremendo de frio, o Senhor Marais suspirou por sua vez.
Suspirando mais uma vez, roçou a porta da cabana.
— Quem está aí a suspirar no silêncio da noite?
— Um homem que foge dos palácios e procura a música.
O Senhor de São Colombo compreendeu de quem se tratava e alegrou-
se. Inclinou-se para a frente e abriu um pouco a porta, empurrando-a com
seu arco. Um pouco de luz adentrou na cabana, mais fraca, porém, que
aquela que se derramava da lua cheia. Marin Marais manteve-se agachado
no vão da porta. O Senhor de São Colombo inclinou-se para frente e disse
para essa visão:
— O que procurais, Senhor, na música?
— Procuro os lamentos e os prantos.
Então, o Senhor de São Colombo empurrou de vez a porta da cabana e
ele levantou-se tremendo. Saudou cerimoniosamente o Senhor Marais, que
entrou. No começo, ficaram em silêncio. O Senhor de São Colombo
sentou-se em sua banqueta e disse ao Senhor Marais:
— Sentai-vos!
O Senhor Marais, ainda enrolado na sua pele de carneiro, sentou-se. Os
braços de ambos estavam caídos pelo constrangimento.
— Senhor, posso pedir-vos uma última lição? perguntou o Senhor
Marais, animando-se subitamente.
— Senhor, posso tentar uma primeira lição? replicou com voz surda o
Senhor de São Colombo.
O Senhor Marais inclinou a cabeça. O Senhor de São Colombo tossiu e
disse que queria falar. Falou aos solavancos.
— Isto é difícil, Senhor. A música existe simplesmente para falar daquilo
que a palavra não pode falar. Nesse sentido, ela não é totalmente humana.
Então, descobristes que ela não é para o rei?
— Descobri que era para Deus.
— E vos enganastes, pois Deus fala.
— Para o ouvido?

66
— Isso de que não sou capaz falar não é para o ouvido, Senhor.
— Para o ouro?
— Não, o ouro não é nada de audível.
— A glória?
— Não. É apenas outro nome para a mesma coisa.
— O silêncio?
— Ele é só o contrário da linguagem.
— Os músicos rivais?
— Não!
— O amor?
— Não.
— As queixas de amor?
— Não.
— O abandono?
— Não e não.
— Seria para um pequeno beiju ofertado ao invisível?
— Também não. O que é um beiju? Isso se vê. Isso tem gosto. Isso se
come. Isso não é nada.
— Não sei de mais nada, Senhor. Creio que é preciso deixar um copo
para os mortos...
— Consumai-vos também.
— Um pequeno bebedouro para matar a sede daqueles cuja linguagem
desertou. Para a sombra das crianças. Para os golpes de martelo dos
sapateiros. Para os estados que precedem à infância. Quando se estava sem
fôlego. Quando se estava sem luz.
Sobre a face envelhecida e enrijecida do músico abriu-se
momentaneamente um sorriso. Ele tomou a mão gorda de Marin Marais
em sua mão descarnada.
— Senhor, agora há pouco ouvistes que eu suspirava. Vou morrer
dentro em pouco e minha arte comigo. Apenas minhas galinhas e meus
gansos lamentar-me-ão. Vou confiar-vos uma ou duas árias capazes de
acordar os mortos. Vamos!
Ele tencionou levantar-se, mas deteve-se.

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— Antes, porém, é preciso que busquemos a viola de minha filha morta,
Madalena. Vou fazer-vos escutar Os Prantos e A Barca de Caronte. Vou fazer-
vos escutar por inteiro O Túmulo das Lamentações. Não encontrei ainda, entre
meus alunos, nenhum ouvido capaz de escutá-las. Acompanhar-me-eis.
Marin Marais tomou-o pelo braço. Desceram os degraus da cabana e
dirigiram-se para a casa. O Senhor de São Colombo confiou ao Senhor
Marais a viola de Madalena. Estava empoeirada. Limparam-na com seus
punhos. Depois, o Senhor de São Colombo encheu um prato de estanho
com alguns beijus enrolados. Voltaram à cabana com a botija, a viola, os
copos e o prato. Enquanto o Senhor Marais desembaraçava-se de sua capa
negra e de sua pele de carneiro, o Senhor de São Colombo cedeu-lhe o
lugar e ajeitou a mesinha no meio da cabana, perto da lucarna por onde se
via a lua branca. Com seu dedo úmido de saliva, depois de tê-lo passado
pelos lábios, enxugou das bordas do prato duas gotas de vinho tinto
derramadas da botija empalhada. O Senhor de São Colombo abriu por um
momento o caderno de música de marroquim enquanto o Senhor Marais
entornava em seu copo um pouco de vinho tinto envelhecido. O Senhor
Marais aproximou a vela do livro de música. Olharam, fecharam o livro,
sentaram-se, afinaram os instrumentos. O Senhor de São Colombo marcou
o compasso no ar e posicionam seus dedos. Foi assim que tocaram Os
Prantos. No instante em que o canto das duas violas se elevou, olharam um
para o outro. Choravam. A luz que se filtrava na cabana pela lucarna tinha
amarelecido. Sorriram um para o outro, enquanto as lágrimas escorriam
lentamente pelas faces, pelo nariz, pelos lábios. Foi somente na aurora que
o Senhor Marais voltou para Versalhes.

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NOTAS

1 Na época, o rio Bièvre era ainda um afluente do rio Sena. Ao longo de 35 quilômetros,
percorria os departamentos de Yvelines, Essonne, Altos do Sena, Vale do Marne e
desembocava no Sena, na altura da atual Gare de Austerlitz. Hoje, encontra-se
canalizado e suas águas são captadas pelo principal coletor de esgotos de Paris. Vale
lembrar que o nome significa castor, mas também lembra bière, que significa “caixão”,
“ataúde”, “tumba”, além de “cerveja”.
2 O sobrenome Bures assemelha-se à palavra bure, que disigna “estofo grosseiro de lã”;
“poço profundo”. No sentido figurado, diz-se “N’avoir ni bure, ni buron”, “não possuir
coisa alguma”.
3 Amoreira escreve-se em francês mûrier, cuja pronúncia é muito assemelhada a mourir,
o verbo “morrer”.
4 O termo aqui é epineux. Relativamente à anatomia, epineux denota o que se assemelha
à espinha ou às protuberâncias da espinha. Como em português, porém, significa
também “espinhoso”, “dificultoso”, “de difícil trato”, “cheio de contrariedades”.
5 Ele morreu pobre e, quanto a mim, vivo como ele morreu/E o ouro/Dorme/No
palácio de mármore onde o rei ainda se diverte.
6 Os solitários compuseram uma vertente do jansenismo que preconizava o retiro
completo da vida social e uma atitude abstencionista em relação à política; afirmavam
a vaidade essencial do mundo e a salvação pelo retiro e pela solidão. Uma segunda
vertente jansenista optou pela militância religiosa.
7 Hameçon, anzol. Bastante sugestiva aqui é a existência da expressão “Mordre à l’hameçon”,
“deixar-se levar pelas aparências”.
8 No francês, este jogo de palavras é mais enfático: “Ma cour, [...] l’eau qui court”.
9 Gaufrette, diminutivo de gaufre: 1) “favo”, “doce de mel”; 2) “filhó”, “coscorão”. Sua
pronúncia evoca gouffre: 1) “abismo”, “turbilhão”, “voragem”; 2) “o que devora como
um sorvedouro”; 3) (fig.) “infelicidade”, “misérias”.

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10Marais, aqui sobrenome, é palavra que em francês significa “pântano”, “brejo”,
“lodaçal”.
11A palavra aqui empregada é quetsche, “tipo de ameixa grande e roxa”. A origem do
termo é alemã: Quetshe ou Zwetsche. A palavra evoca queteur, “pedinte”, bem como quête,
“busca”, “procura”.
12 O termo aqui é souris, que além de “rato”, “camundongo”, também significa “sorriso”.

13Jogo de palavras intraduzível. “Vous entendez, Monsieur, cria-t-il, comment se détache l’aria
par rapport à la basse” reveste-se também do significado: “Você compreende, meu
Senhor, exclama ele, como livrar-se do estorvo de baixo”.
14Nesta época, os terrenos estreitos destinados ao jogo da péla também eram utilizados
como locais para representações teatrais populares, assim como para
pronunciamentos políticos.
15Prune, “ameixa”. No sentido figurado diz-se Pour de prunes, “por pouca coisa”, “por
nada”.
16 Hanneton, “besouro”, termo que, no sentido figurado, quer dizer “avoado”,
“estouvado”, “leviano”.
17“[...] dans vos lentilles et vos chenilles ?”. Lentilles lembra lent, “lento”, “vagaroso”; chenilles
evoca chenu, “encanecido”, “velho”, “obsoleto”; mas também “perfeito”, “excelente”,
como na expressão “C’est du chenu!”
18Em francês, “pêssego” se diz pêche, palavra que faz lembrar péché, “pecado”. Assim, a
expressão “proposer des pêches écrasées” evoca a conotação de “propor um pecado
extinto”.
19 Charogne em francês quer dizer “carcaça”, “cadáver”.
20 Apelido carinhoso de Madalena, e cuja pronúncia lembra mais non, “mas não”.
21“Le saule est rompu. La barque a coulé”. Há aqui uma conotação temporal que se perde
no português, pois rompu significa também “cansado”, “fatigado”, assim como couler é
verbo cujo sentido primeiro é o de “correr”, “fluir”.
22 Usar sapatos com tacões vermelhos era sinal de nobreza para o cortesão.
23Noisette, “avelã”. “Dieu donne noisettes à ceux qui n’ont plus de dents”, literalmente, “Deus
dá avelãs a quem não tem dentes”, é provérbio francês usual, correspondente ao
português “Deus dá asas para quem não sabe voar”.
24O verbo aqui é mais uma vez couler, que além de significar “deslizar”, “correr”, “fluir”,
também carrega o sentido de “afundar”, “naufragar”, como já notamos.
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25 Em francês piétina, que evoca pieté, “piedade”.
26 No original, “Tous les matins du monde sont sans retour”.
27O verbo aqui é passer, que possui os significados do verbo “passar” em português,
embora, quando referido a roupas, signifique em francês “vestir”. Além disso, o verbo
passer acumula outros sentidos aqui sugestivos, como, por exemplo, o de “não
perceber” na expressão “Cela me passe”, ou o de “resignar-se”, “aceitar” na expressão
“En passer par”.
28No original ronde, literalmente “redonda”. A palavra ainda carrega o sentido figurado
de “franco”, “aberto”, “sincero”.
29Retournée, que aqui evoca retourne, “trunfo”, mas sobretudo retourner, “retornar”,
“devolver”.

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Sobre o autor

Pascal Quignard nasceu no ano de 1948, em Verneuil, na França. Ele vive em


Paris. Publicou, entre outras obras, Le salon du Wurtenberg, Les escaliers
de Chambord, os Petits traités e Albucius.
Em 1991, Alain Corneau dirigiu um filme baseado em Tous les matins du
monde.

Sobre esta tradução

Concluída no ano de 1995, esta tradução baseou-se na edição original francesa


publicada pela Gallimard em 1991, cuja referência completa é a seguinte:
QUIGNARD, Pascal. Tous les mantins du monde. Gallimard (Folio), Paris,
1991.

Sobre as ilustrações

Capa: Ilustração inspirada em óleo sobre tela de Lubin Baugin.


No miolo:
La dessert de gaufrettes; de Lubin Baugin (na parte VII).
Nature morte à l’échiquier, de Lubin Baugin (na parte XII).
Contracapa: Coupe de fruites, de Lubin Baugin.
Ele não precisou recorrer a seu livro. Sua mão dirigia-se por si mesma,
ao toque de seu instrumento, e ele se pôs a chorar. Enquanto o canto se
alçava, surgiu perto da porta uma mulher muito pálida que lhe sorria, ao
mesmo tempo em que pousava o dedo sobre seu sorriso, em sinal de que ela
não falaria e de que não se perturbasse com o que fazia. Ela contornou em
silêncio a estante de partitura do Senhor de São Colombo. Sentou-se sobre
a arca de música, que ficava ao canto, perto da mesa e da botija de vinho,
e pôs-se a escutar.
Era sua mulher e suas lágrimas corriam. Quando levantou as pálpebras,
depois que terminara de interpretar sua peça, ela já não estava mais ali.
Ele pousou sua viola e, como estendesse a mão para o prato de estanho, ao
lado da botija, viu a taça esvaziada até a metade e se espantou que a seu
lado, sobre a toalha azul, um beijuzinho estivesse meio comido.

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