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A IMPUTAÇÁO OBJETIVA E O NEXO CAUSAL: AS CONCEPÇÕES DE ROXIN E

JAKOBS.

por Michael Procopio.


Postado em 10/07/2020

Dentro da teoria do delito, prevalece uma concepção tripartida de crime, que o define
como fato típico, ilícito e culpável. O fato típico se compõe, nos crimes materiais, de conduta,
nexo causal, resultado e tipicidade. Vale recordar que, nesses crimes materiais, o resultado
naturalístico é imprescindível para a consumação, sendo exemplos os delitos clássicos da
história do direito penal, como o homicídio, a lesão corporal e o furto. Por tal razão, também
são denominados de crimes de resultado.

Nexo causal, a grosso modo, é a relação de causa e efeito entre a conduta realizada
pelo agente e o resultado previsto em lei como necessário para a consumação do delito. É o
vínculo etiológico, que permite imputar ao agente o resultado típico e, assim, em se tratando
de um crime material, enseja a sua responsabilização pelo crime na modalidade consumada.

O nexo causal, no Brasil, está estipulado, em linhas gerais, no caput do artigo 13 do


Código Penal, que assim dispõe: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente
é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado
não teria ocorrido.” A doutrina aponta, assim, que houve a adoção da teoria da
equivalência dos antecedentes no Brasil, de modo geral.

A teoria da equivalência dos antecedentes equipara causa, concausa e condição, já


que seus precursores, John Stuart Mill e Von Buri, defendiam não haver uma base científica
para diferenciá-las[1]. Deste modo, todos os fatores, ou seja, tudo o que concorre para que o
resultado aconteça, devem ser considerados como sua causa.

Utiliza-se o raciocínio da eliminação hipotética do resultado. Caso eliminemos,


hipoteticamente, o antecedente da linha de desdobramento dos fatos e o resultado desapareça,
teríamos uma relação de causalidade. Por isso, podemos definir essa concepção como a
da conditio sine qua non, considerando causa aquele antecedente sem o qual o resultado não
teria ocorrido.

Conquanto adotada a teoria da equivalência dos antecedentes, a previsão do parágrafo


primeiro do artigo 13, representaria uma limitação ao seu alcance[2]. Diz o dispositivo que “[a]
superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só,
produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.”

A primeira crítica feita à teoria é a possibilidade de regressus ad infinitum, ou seja, a


possibilidade de voltarmos na cadeia de acontecimentos até eventos que não estariam na linha
de desdobramento natural da conduta, o que seria resolvido, para alguns, com a adoção de outra
teoria, a da causalidade adequada, de Von Kries, segundo a qual a causa é a condição
adequada a produzir o resultado, aquela que tenha idoneidade para produzir o resultado.
Vamos compreender com um exemplo. A teoria da equivalência dos antecedentes
permite que, no caso de um homicídio por meio de disparo de projéteis de arma de fogo,
consideremos haver nexo causal entre o resultado morte e a fabricação da arma e, indo mais
longe para demonstrar o regresso ao infinito, podemos pensar que o ato sexual dos pais do
assassino, o que ocasionou a sua concepção, é causa da morte da vítima vários anos depois.
Apesar de ser causa, não seria uma causa idônea, se fôssemos adotar a concepção de Von Kries.

Outra crítica feita à teoria da equivalência é que a eliminação da condição poderia tornar
impunes ações que efetivamente deram causa ao resultado. Clássico exemplo é o do café,
envenenado com doses letais por duas pessoas diferentes, sem vínculo subjetivo entre eles (um
não sabia da ação do outro, o que afasta o concurso de pessoas). Se eliminarmos uma conduta
de envenenamento, ainda assim a vítima teria morrido, o que pela teoria da equivalência nos
permitiria dizer que nenhum deles deu causa ao resultado morte, só sendo possível a punição
pela tentativa.

Pensemos em um caso culposo. Dois motoristas imprudentes ultrapassam a velocidade


permitida na via e acabam se chocando, ao mesmo tempo, com um motociclista. O motociclista
morre. Como sabemos, não se admite tentativa de crime culposo. Se eliminarmos um dos
resultados, a vítima ainda assim teria morrido. Deveriam ambos ficar impunes?

II – Imputação objetiva de Roxin

Foi, então, concebida a teoria da imputação objetiva, desenvolvida há muitos anos


pelo jurista Karl Larenz. Ela busca corrigir as deficiências das demais teorias e estabelecer um
método para definição do nexo causal entre a conduta do agente e o resultado típico. A ideia
central da imputação objetiva é considerar causa de um resultado típico o comportamento do
agente que demonstre um risco proibido ao bem jurídico tutelado, além de trazer um conteúdo
jurídico para a imputação do resultado ao autor.

O desenvolvimento da teoria, na modernidade, é feito pelo jurista Claus Roxin, o


grande pensador do funcionalismo na vertente moderada ou teleológica, que defende que
função das normas penais é a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade,
centrando-se nessa ideia para a interpretação de todo o Direito Penal, inclusive para a pena,
que só deve ser aplicada na medida em que necessária para o fim preventivo.

Para a imputação objetiva de Roxin, não há imputação do resultado ao agente se


ele diminui o risco ao bem jurídico tutelado pela norma. Se um homem vai ser atingido por
uma locomotiva e o agente o puxa com violência e o lança às pedras, as lesões provocadas não
lhe serão imputáveis. O agente evitou a morte do homem com a sua conduta, que representou
uma diminuição do risco.

Também não se imputa um resultado à conduta do agente que, ainda que seja
intencional, não represente um risco juridicamente relevante. Cansada do seu marido, uma
moça lhe incentiva e pular de bungee jump, desejando fortemente sua morte, inclusive fazendo
meditação para que isso ocorresse. Ainda que ele venha a morrer, não se pode imputar a ela tal
morte, considerando que não criou, com sua conduta, um risco juridicamente relevante ao bem
jurídico. O risco inerente aos esportes radicais é permitido em nossa sociedade, desde que o
agente voluntariamente se submeta a eles.
Vale frisar que este critério, do risco juridicamente relevante, é bastante polêmico, seja
porque não caberia falar em observância do dever de cuidado nos delitos dolosos, seja porque
a situação já estaria abarcada na violação do risco permitido[3].

Para adentrarmos em mais um critério e adaptando um exemplo utilizado por Claus


Roxin[4], imaginemos um empresário que recebe uma remessa de produtos de um país com
uma alarmante disseminação de Covid-19. Mesmo havendo regras sanitárias para desinfecção,
ele não o faz. Entretanto, prova-se, na investigação, que a matéria-prima nacional (alimento in
natura não passível de desinfecção), manuseada pelos mesmos funcionários, também estaria
contaminada – pela eliminação hipotética, a exposição dos funcionários teria ocorrido mesmo
sem a conduta do empresário de infração da norma sanitária.

Em tal caso, seria possível a imputação do resultado ao agente, já que a conduta do


empresário aumentou o risco permitido. Ainda que o risco de exposição fosse permitido,
considerando a situação de pandemia e a triste constatação de risco aos trab alhadores das
atividades essenciais, o incremento do risco torna possível a imputação do resultado a ele.

Roxin usa ainda um exemplo de Jeschek para tratar da imputação objetiva. Durante a
noite, dois ciclistas pedalam, um atrás do outro, sem nenhum farol de iluminação, apesar da
obrigatoriedade[5]. Um terceiro ciclista passa e se choca com o primeiro deles, ferindo-se
gravemente. Caso o segundo ciclista, não envolvido no acidente, possuísse farolete, o acidente
não teria ocorrido, já que ele iluminaria o ciclista que ia à frente. Entretanto, o segundo ciclista,
que vinha atrás, não poderia ser responsabilizado. Isto porque não se pode considerar que sua
conduta representou um risco proibido ao bem jurídico, considerando o âmbito de proteção
da norma.

Isto é, o dever legal imposto ao ciclista tem o escopo de evitar acidentes com o tráfego
do próprio ciclista, ou seja, aqueles que envolvam sua própria bicicleta. A imposição de tal
obrigação não busca a evitar acidentes entre terceiros, não é um dever de iluminar a via para
garantir o tráfego seguro para que outras pessoas pedalem sem iluminação alguma. Por estar
fora do âmbito de proteção da norma, a finalidade do dever imposto ao ciclista que não se
envolveu no acidente não permite que se lhe impute o resultado decorrente do choque entre
outros dois ciclistas, ainda que o equipamento de iluminação de sua bicicleta – acaso existente
– teria evitado o acidente.

Sobre o âmbito de proteção da norma, Ingeborg Puppe[6] analisa a questão de outro


ângulo, mas com a mesma conclusão de não imputação do resultado ao agente. A eminente
jurista defende não ser uma finalidade da norma que deve ser analisada, mas o próprio dever
de cuidado. Defende que, se a atenção à norma de cuidado impediria o resu ltado no caso
concreto, por fatores causais aleatórios (como por coincidência haver uma terceira bicicleta
perto do local de colisão das outras duas), a evitação do curso causal se a norma de cuidado
tivesse sido obedecida é puramente fortuita, o que impede a atribuição do resultado típico ao
agente.

Em linhas gerais, é o que defende a teoria da imputação objetiva na visão do renomado


jurista Claus Roxin.
III – Considerações de Ingeborg Puppe

Na visão de Puppe, há uma ação causadora de um resultado quando ela é “parte


necessária de uma condição suficiente do resultado conforme as leis gerais, desde que essa
condição também tenha ocorrido na realidade”[7]. Em outros termos, ainda que haja dupla
causalidade (a eliminação de uma não implica no desaparecimento do resultado), é possível
que o agente seja responsabilizado pelo resultado típico se a sua conduta é parte necessária de
uma condição (soma dos fatos) que foi suficiente para causar o resultado ocorrido. Deste modo,
se dois genros envenenam o café da sogra com doses que são suficientes para matar, eles
respondem igualmente pelo resultado morte.

A penalista alemã também admite a imputação do resultado ao autor no caso


de causalidade cumulativa. Aqui se procurará explicar com uma variação do exemplo do café,
também clássico. Imagine que duas noras envenenem o café do sogro, sem uma saber da ação
da outra (não há liame subjetivo, não configurando concurso de pessoas). Cada dose é
insuficiente para matar, por si só, mas a soma das duas doses obteve o resultado lesivo, levando
o odiado sogro a óbito. Pelo raciocínio de as condutas comporem parte necessária (cada dose
foi imprescindível) de uma condição (envenenamento) suficiente para a causação do resultado
(morte), as duas devem responder pelo homicídio consumado.

IV – Imputação objetiva de Jakobs

Günther Jakobs, por sua vez, possui uma compreensão diversa sobre a imputação
objetiva. Para o defensor do funcionalismo sistêmico ou radical, a imputação objetiva deve
possuir uma coerência sistemática, partindo, portanto, de uma crítica ao método de Roxin, que
seria indutivo, ou seja, usaria casos concretos para, a partir deles, elaborar a sua teoria [8].

Vale lembrar que a ideia de sistema, a partir da concepção de Niklas Luhmann, é a base
do funcionalismo de Jacobs. Também é fundamental para compreender o funcionalismo radical
a ideia de que a função da norma penal é garantir a sua validade, sendo a pena uma reafirmação
da validade da norma (o agente, que a violou, negava a sua vigência, sendo a pena uma resposta
à negativa, a qual demonstra que a norma é válida.). A própria pena, para ele, tem o escopo de
manutenção da vigência da norma, em decorrência do contrato social. Assim, enquanto Roxin
orienta o Direito Penal para a proteção dos bens jurídicos, Jakobs tem como ideia nuclear a
manutenção e garantia de validade e vigência das próprias normas penais.

Para Jakobs, a imputação objetiva, baseada em uma teoria do tipo objetivo e com
utilização de método dedutivo, possui dois níveis[9]. O nível do comportamento se refere à
imputação do comportamento como típico. Por sua vez, o nível do resultado se refere à
imputação do resultado naturalístico ao autor, o que só se torna relevante nos crimes materiais.
Para tais delitos, o resultado produzido se justifica exatamente pelo comportamento (primeiro
nível de imputação), que é objetivamente imputável ao autor.

Jakobs também entende que não implica em imputação objetiva o risco permitido,
inclusive os riscos acarretados pelo contato social[10]. O autor também entende que há riscos
concretos agravados que são permitidos, como dirigir com a pista molhada e escorregadia,
independentemente do destino da viagem[11].

O funcionalista radical também exclui do âmbito da imputação objetiva do resultado o


caso do devedor que paga um dinheiro que deve a um indivíduo, sabendo que este compraria
uma arma com a quantia, o que ele efetivamente faz, usando a arma comprada para matar
alguém. Ele denomina essa exclusão de responsabilidade do devedor de proibição do
regresso[12].

Por outro lado, há imputação objetiva quando o resultado se produziria mesmo sem a
conduta (omissiva ou comissiva) do agente, ou mesmo se o comportamento dele fosse
permitido. Jakobs prossegue explicando que a realização do risco não depende daquilo que
teria acontecido sem esse risco. Pelo contrário, a realização do risco depende do que aconteceu
por causa dele. A consideração de hipóteses levaria ao mesmo erro da conditio sine qua
non[13]. As elaborações hipotéticas, no fim das contas, excluiriam do bem jurídico a sua
garantia normativa.

O autor também destaca que o não-permitido é relativo, isto é, depende do risco que
levamos em consideração. Exemplifica com o dono de hotel que, se não deixa as luzes acesas
para entrada do estabelecimento (ação) ou não as acende quando devia (omissão), produz um
risco não permitido de quedas. Entretanto, a mesma conduta não representa risco proibido em
relação a assaltos que possam ocorrer na escuridão ou mesmo em relação a transeuntes
embriagados que se percam pela falta da iluminação do estabelecimento[14].

Em sua análise, Jakobs critica o critério do âmbito de proteção da norma, dizendo


que sempre que faltar um pressuposto do injusto penal, o evento estará fora da abrangência da
proteção da norma. Entende que, na verdade, não se pode conceber como risco proibido o
risco geral da vítima, como o que decorre de se viver em um grande centro urbano e se expor
ao trânsito viário[15].

Por fim, critica a teoria da elevação do risco, ou seja, a imputação do resultado pelo
aumento do risco efetuado pelo agente. Isto porque entende que a elevação de um risco serve
para definir um comportamento proibido, mas não o nexo de finalidade da norma entre conduta
e resultado. As dúvidas sobre essa relação entre o fim da norma e a imputação do resultado,
para o autor, são processuais e devem ser resolvidas com base no in dubio pro reo.

IV – Críticas e conclusão

Sobre a imputação objetiva também são feitas severas críticas. Cezar Bitencourt diz que
se busca substituir uma análise causal por um critério jurídico, sendo que a causalidade é um
conceito natural, pré-jurídico (não é a norma jurídica que diz se o veneno causou a morte,
por exemplo, mas a medicina). O jurista brasileiro também aponta que os seus conceitos são
imprecisos, levando à insegurança jurídica. Para o autor, a teoria teria importância e espaço
reduzidos, já que nos crimes comissivos não basta a relação de causalidade, nos crimes de
omissão nem sempre é necessária tal relação e, por fim, nos crimes de mera atividade a relação
é absolutamente irrelevante[16].

Em suma, a imputação objetiva busca sistematizar um conjunto de princípios aptos a


determinar a responsabilização de um agente pela produção de um resultado com base em uma
relação não meramente causal, mas também jurídica, tendo como fundamento a realização
de um risco não permitido.

Vale lembrar que toda simplificação de uma teoria complexa incorre em riscos de
críticas sobre superficialidade ou de não enfrentamento de todas as facetas dela decorrentes.
Friso, então, que aqui são feitas breves considerações para uma simples introdução à
teoria. Espero que essas linhas sobre imputação objetiva ajudem na compreensão do instituto.

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral: volume 1. 10 ed. São
Paulo: Saraiva, 2006, p. 303.

[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 129.

[3] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 142.

[4] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 143.

[5] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General, Tomo I. Fundamentos. La estrutura de la
teoria del delito. Traducción de la 2ª edición alemana. Madrid: Thomson Reuters, 1997, p. 377 -
379.

[6] PUPPE, Ingeborg. Estudos sobre imputação objetiva e subjetiva no direito penal. 1 ed. São
Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 37-38.

[7] PUPPE, Ingeborg. Estudos sobre imputação objetiva e subjetiva no direito penal. 1 ed. São
Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 23.

[8] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 146.

[9] [9] PRADO, Luiz Regis. Ibidem, p. 146-147.

[10] JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade.
MOREIRA, Luiz (org.). MENDES, Gercélia B de O.; CARVALHO, G. de (trad.). Belo
Horizonte: Del Rey, 2008, p. 295.

[11] JAKOBS, Günther. Ibidem, p. 297.

[12] JAKOBS, Günther. Ibidem, p. 309.

[13] JAKOBS, Günther. Ibidem, p. 321-322.

[14] JAKOBS, Günther. Ibidem, p. 323.

[15] JAKOBS, Günther. Ibidem, p. 327.

[16] BITENCOURT, Cezar. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte
geral: volume 1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 313.

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