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Universidade de Aveiro Departamento de Línguas e Culturas

2007

TEXTO COMPILADO PARA FINS DIDATICOS (I)

Estudo do conto - COUTO, Mia. O último aviso do corvo falador. In: Vozes anoitecidas

Ana Maria Teixeira Traduzindo Mundos:


Soares Ferreira Os mortos na narrativa de Mia Couto

Tese apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos


necessários à obtenção do grau de Doutor em Literatura, realizada sob a
orientação científica da Prof. Doutora Maria de Fátima Mamede Albuquerque,
Professora Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro

Apoio financeiro do FSE (PRODEP) no


âmbito do III Quadro Comunitário de
Apoio.

i
TEXTO COMPILADO PARA FINS DIDATICOS (I)

Estudo do conto - COUTO, Mia. O último aviso do corvo falador. In: Vozes anoitecidas.

Leitura a partir do destaque abaixo

da própria Morte. Assim, a Morte, que passou a ser obra dos homens, já não domina ou
intervém na vida dos humanos. A sua disformidade, o grotesco do seu aspecto revela que a
morte adquiriu uma face repulsiva e não natural:

“Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de


que, entre os viventes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma
palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.” (BNE, p.64)

Derrotada, moribunda, a morte deseja o poder revigorante das palavras. E é então


que o velho decide ir ao sonho buscar essa magia. O sonho assume, assim, uma enorme
relevância até mesmo para a Morte. Ele é revigorante pelo seu poder encantatório.
Reacende a esperança, as crenças; é feito de palavras primordiais, fecundas e vivas, “tenras
como capim depois da chuva” (BNE, p.64).
Mais tarde, porém, a Morte mata o Tempo e substitui-o pelo velho, que se torna o
seu novo mestre. E isso acontece porque o velho, julgando que iria morrer, recuperara a
memória, isto é, tinha conseguido viajar pelo passado, projectando-se nele a partir do
presente e, desta forma, dominá-lo.

“Sentindo-se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos, ele tinha
perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de
felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. E sentiu saudade, melancolia por
não poder revisitar amigos, terras e mulheres.” (BNE, p.65)

A Morte, revigorada pelas palavras do sonho, matou o seu próprio mestre, o


Tempo, tornando-se o momento em que o tempo se suspende e deixa de fazer sentir o seu
efeito. Adopta, então, um novo dono, o velho, já livre da acção do tempo e vivendo, pela
sua própria condição, uma grande afinidade e proximidade com a morte. O velho passa,
assim, a dominar a morte, uma vez que ele é, agora, o próprio tempo.
Em “O último aviso do corvo falador”, a importância dos rituais de morte é
retomada. Zuzé Paraza, pintor reformado, “vomita” um corvo que tem a capacidade de
falar e de estabelecer contacto com os mortos29. Monta, então, um negócio de adivinho e
de “telefonista das almas” (VA, p.41), que tem grande sucesso. Um dia, recebe D. Candida,

29
Vide p.196, nota84.

381
uma mulata casada em segundas núpcias com um indiano que nos momentos íntimos se
transforma em porco. Consultado o corvo, Zuzé diz a D. Candida que o problema reside no
ciúme do primeiro marido, que para se acalmar exige as suas velhas roupas. Como já não
as tem, D. Candida entrega a Zuzé as roupas de Sulemane. O adivinho decide usá-las em
público, denunciando as suas verdadeiras in
intenções. Sulemane dá-lhe uma sova e
inadvertidamente mata o corvo. Subitamente, começa a agir como um porco e Zuzé,
aproveitando a ocasião, evidencia os seus dotes de adivinho e feiticeiro. O povo acredita,
então, nos seus poderes. No entanto, quando o procuram para lhe solicitarem os seus
serviços, ele havia desaparecido, deixando para trás o corvo morto que o vento vai
depenando. A população vê neste espectáculo um aviso de desgraça e abandona a aldeia.
Revela-se, neste conto, a crença profunda na relação íntima e permanente entre os
vivos e os mortos, que com eles comunicam, nomeadamente através de animais, como o
corvo30.

“- Dar parto um pássaro? Só se o velho namorava as corvas lá nas


árvores.
- Vão ver que é a alma da mulher falecida que transferiu no viúvo.
No dia seguinte, Zuzé confirmou esta última versão. O corvo vinha lá da
fronteira da vida, ninhara nos seus interiores e escolhera o momento público da sua
aparição.” (VA, p.34)

30
Em “No rio além da curva” o narrador faz-se eco da crença popular de que os mortos encarnam em certos
animais, voltando, assim, ao mundo dos vivos para comunicar com eles, para lhes dar notícias do futuro. Daí
que seja tabu matá-los, pois isso poderá trazer grandes tragédias:

“[...] Circula entre a população o rumor de que o hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que
perdeu a vida na zona de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar profecias:
que a cidade ficará privada de chuvas e que graves doenças matarão muita gente.” ((EA
(EA,, p.97)

“-- Mataste o mpfuvo? Não sabes quem era esse animal?


- Vais ver o castigo que vamos ser dados por culpa sua...
- Nem espere por amanhã. Você se vai arrepender desse seu dedo ter gatilhado.
(...) Que poderia fazer? Acusavam-no de ter morto não um bicho mas um homem transfigurado.
Como podia adivinhar sobre a verdade do hipopótamo, suas mensageiras funções?” ((EA
(EA,, p.100)

Vide, também, p.279, nota175.

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As pessoas aceitam naturalmente a possibilidade de comunicar com os mortos,
ainda que através de intermediários, procurando obter junto deles as respostas para os seus
problemas.

“Os outros que aproveitassem obter informações dos defuntos, situação e


paradeiro dos antepassados. O corvo, através da sua tradução, responderia às
perguntas. Os pedidos logo acorreram, numerosos.” (VA, p.34)

D. Candida não tinha respeitado o período de luto e voltou a casar demasiado cedo
(“Verdade é que, nesse intervalo, nunca foi muito viúva.” (VA, p.35)). Naturalmente,
interpreta as estranhas metamorfoses que o seu marido Sulemane sofre como consequência
de uma maldição de Evaristo, o seu falecido marido, que a pune por não ter respeitado as
prescrições e tabus da tradição. Os acontecimentos maravilhosos são, assim, aceites e
explicados como consequência das acções dos espíritos, todo poderosos.
Zuzé Paraza pergunta a D. Candida se ela havia cumprido todas “as cerimónias da
tradição para afastar a morte do primeiro marido” (VA, p.36), uma vez que sendo ela
mulata podia não respeitar as tradições.

“- Cerimónias completas?
- Claro, Sr. Paraza.
- Mas como? A senhora assim mulata da sua pele, quase branca da sua
alma?
- Ele era preto, o senhor sabe. Pedido foi da família dele, eu segui.
Paraza, intrigado, parece ainda duvidar.
- Matou o cabrito?
- Matei.
- O bicho gritou enquanto a senhora cantava?
- Gritou, sim.
- E que mais, Dona Candida?
- Fui ao rio lavar-me da morte dele. Levaram-me as viúvas, banharam
comigo. Tiraram um vidro e cortaram-me aqui, nas virilhas. Disseram que era ali
que o meu marido dormia. Coitadas, se soubessem onde o Evaristo dormia...
- E o sangue saiu bem?

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- Hemorragia completa. As viúvas viram. Pelo sangue disseram que me
entendia bem com ele. Não desmenti, preferi assim.” (VA, pp.36-37)

Evidencia-se, aqui, a crença numa relação íntima entre os vivos e os mortos, um


contacto permanente em que os vivos são castigados pelos mortos se não respeitarem os
rituais de morte ou não lhes fizerem as vontades. A ira dos mortos surge como justificação
para os problemas (terrenos ou não) das pessoas.
Os mortos são tratados como humanos vivos, partilhando com eles os sentimentos
e as disposições de espírito (inveja, ira, frio), o que está bem patente na conversa que D.
Candida tenta estabelecer com Evaristo. Por outro lado, os mortos fazem pedidos aos
vivos, mas os seus pedidos são muito humanos, muito prosaicos: Zuzé Paraza diz que,
através do corvo, Evaristo está a pedir roupa, pois “nem imagina os frios que dão lá nos
mortos.” (VA, p.39)31. D. Candida, no entanto, afirma já não possuir as roupas do falecido
pois fizera com elas o que determina a tradição:

“- Roupa dele? Já não tenho. Eu não disse que pratiquei essas vossas
cerimónias? Rasguei, esburaquei a roupa, quando ele morreu. Foi assim que me
mandaram. Disseram que devia fazer buracos para a roupa soltar o último suspiro.
32
(...)” (VA,
VA, p.39)

Atravessa todo o texto uma ironia fina que suscita dúvidas sobre as verdadeiras
intenções de Zuzé. Aparentemente, quem precisava das roupas não era Evaristo, mas sim o
próprio Zuzé Paraza que se aproveita das crendices do povo em seu benefício. No entanto,
a ambiguidade mantém-se até ao final do conto, pois se o leitor desconfia das verdadeiras
capacidades mediúnicas de Zuzé e do seu corvo, a transformação de Sulemane em porco
recupera o ambiente maravilhoso. E, no final, a população abandona a aldeia, crente de
que a morte do corvo a poluíra para sempre.

31
Também em “A Rosa Caramela” a morte é vista como um prolongamento da vida e os mortos
assemelham-se aos vivos nas suas necessidades. Por isso, os rituais de morte incluem muitas vezes a
colocação na sepultura de objectos do defunto, que ele usará na morte como usou na vida (vide pp.324-325):

“- Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os
outros.” (CHR, p.22)
32
Vide p.325.

384

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