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2007
Estudo do conto - COUTO, Mia. O último aviso do corvo falador. In: Vozes anoitecidas
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TEXTO COMPILADO PARA FINS DIDATICOS (I)
Estudo do conto - COUTO, Mia. O último aviso do corvo falador. In: Vozes anoitecidas.
da própria Morte. Assim, a Morte, que passou a ser obra dos homens, já não domina ou
intervém na vida dos humanos. A sua disformidade, o grotesco do seu aspecto revela que a
morte adquiriu uma face repulsiva e não natural:
“Sentindo-se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos, ele tinha
perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de
felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. E sentiu saudade, melancolia por
não poder revisitar amigos, terras e mulheres.” (BNE, p.65)
29
Vide p.196, nota84.
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uma mulata casada em segundas núpcias com um indiano que nos momentos íntimos se
transforma em porco. Consultado o corvo, Zuzé diz a D. Candida que o problema reside no
ciúme do primeiro marido, que para se acalmar exige as suas velhas roupas. Como já não
as tem, D. Candida entrega a Zuzé as roupas de Sulemane. O adivinho decide usá-las em
público, denunciando as suas verdadeiras in
intenções. Sulemane dá-lhe uma sova e
inadvertidamente mata o corvo. Subitamente, começa a agir como um porco e Zuzé,
aproveitando a ocasião, evidencia os seus dotes de adivinho e feiticeiro. O povo acredita,
então, nos seus poderes. No entanto, quando o procuram para lhe solicitarem os seus
serviços, ele havia desaparecido, deixando para trás o corvo morto que o vento vai
depenando. A população vê neste espectáculo um aviso de desgraça e abandona a aldeia.
Revela-se, neste conto, a crença profunda na relação íntima e permanente entre os
vivos e os mortos, que com eles comunicam, nomeadamente através de animais, como o
corvo30.
30
Em “No rio além da curva” o narrador faz-se eco da crença popular de que os mortos encarnam em certos
animais, voltando, assim, ao mundo dos vivos para comunicar com eles, para lhes dar notícias do futuro. Daí
que seja tabu matá-los, pois isso poderá trazer grandes tragédias:
“[...] Circula entre a população o rumor de que o hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que
perdeu a vida na zona de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar profecias:
que a cidade ficará privada de chuvas e que graves doenças matarão muita gente.” ((EA
(EA,, p.97)
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As pessoas aceitam naturalmente a possibilidade de comunicar com os mortos,
ainda que através de intermediários, procurando obter junto deles as respostas para os seus
problemas.
D. Candida não tinha respeitado o período de luto e voltou a casar demasiado cedo
(“Verdade é que, nesse intervalo, nunca foi muito viúva.” (VA, p.35)). Naturalmente,
interpreta as estranhas metamorfoses que o seu marido Sulemane sofre como consequência
de uma maldição de Evaristo, o seu falecido marido, que a pune por não ter respeitado as
prescrições e tabus da tradição. Os acontecimentos maravilhosos são, assim, aceites e
explicados como consequência das acções dos espíritos, todo poderosos.
Zuzé Paraza pergunta a D. Candida se ela havia cumprido todas “as cerimónias da
tradição para afastar a morte do primeiro marido” (VA, p.36), uma vez que sendo ela
mulata podia não respeitar as tradições.
“- Cerimónias completas?
- Claro, Sr. Paraza.
- Mas como? A senhora assim mulata da sua pele, quase branca da sua
alma?
- Ele era preto, o senhor sabe. Pedido foi da família dele, eu segui.
Paraza, intrigado, parece ainda duvidar.
- Matou o cabrito?
- Matei.
- O bicho gritou enquanto a senhora cantava?
- Gritou, sim.
- E que mais, Dona Candida?
- Fui ao rio lavar-me da morte dele. Levaram-me as viúvas, banharam
comigo. Tiraram um vidro e cortaram-me aqui, nas virilhas. Disseram que era ali
que o meu marido dormia. Coitadas, se soubessem onde o Evaristo dormia...
- E o sangue saiu bem?
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- Hemorragia completa. As viúvas viram. Pelo sangue disseram que me
entendia bem com ele. Não desmenti, preferi assim.” (VA, pp.36-37)
“- Roupa dele? Já não tenho. Eu não disse que pratiquei essas vossas
cerimónias? Rasguei, esburaquei a roupa, quando ele morreu. Foi assim que me
mandaram. Disseram que devia fazer buracos para a roupa soltar o último suspiro.
32
(...)” (VA,
VA, p.39)
Atravessa todo o texto uma ironia fina que suscita dúvidas sobre as verdadeiras
intenções de Zuzé. Aparentemente, quem precisava das roupas não era Evaristo, mas sim o
próprio Zuzé Paraza que se aproveita das crendices do povo em seu benefício. No entanto,
a ambiguidade mantém-se até ao final do conto, pois se o leitor desconfia das verdadeiras
capacidades mediúnicas de Zuzé e do seu corvo, a transformação de Sulemane em porco
recupera o ambiente maravilhoso. E, no final, a população abandona a aldeia, crente de
que a morte do corvo a poluíra para sempre.
31
Também em “A Rosa Caramela” a morte é vista como um prolongamento da vida e os mortos
assemelham-se aos vivos nas suas necessidades. Por isso, os rituais de morte incluem muitas vezes a
colocação na sepultura de objectos do defunto, que ele usará na morte como usou na vida (vide pp.324-325):
“- Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os
outros.” (CHR, p.22)
32
Vide p.325.
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