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Durante muito tempo esteve disponível na Internet, em vários sites,

uma versão preliminar e gratuita deste livro que, devido ao sucesso que
teve, deu origem a uma edição em moldes tradicionais (ISBN: 972-8515-
04-9) .

Os 3000 exemplares dessa edição em papel esgotaram-se recentemente,


pelo que o autor, o ilustrador e a editora decidiram comemorar esse facto
disponibilizando gratuitamente uma versão actualizada da obra.

Esta divulgação gratuita só foi possível graças aos esforços e boa-


- vontade de: Janela na Web2, F.C.C.N.3, José de Almeida4, José Abrantes5
e BaleiAzul.

Agradece-se também a Pedro Ary a cedência da crítica que escreveu


para a revista «Valor» e que aqui faz de prefácio (inexistente na versão em
papel).
Outubro 2002

Desde que tal não seja feito com fins comerciais, esta versão pode ser
livremente copiada ou reproduzida sem quaisquer limitações.

Carlos Medina Ribeiro


José Abrantes
BaleiAzul

2
www.janelanaweb.com Curiosidade: por motivos que ninguém sabe explicar, estas Notas de Rodapé
começam em “2” e não em “1”...
3
www.fccn.pt
4
José de Almeida (ja@ip.pt) fez o design total da edição impressa. Nesta, dadas as alterações gráficas a
que foi necessário proceder, só o design da capa se manteve.
5
jose.abrantes@netcabo.pt
Medina Ribeiro

Introdução

E ste livro veio na sequência das «Crónicas da InforFobia»6, de


«Jeremias na ZZZ», e de muitos textos avulso publicados pelo autor em
revistas, jornais e webzines, estando o essencial no portal
www.janelanaweb.com/humormedina.

Jeremias, a personagem que agora atravessa todo este livro, é um


jovem informático condenado a viver em empresas dominadas por pessoas
de um outro tempo… E simboliza todos os que, acabados os seus estudos e
cheios de entusiasmo idealista, descobrem, quando entram no mercado de
trabalho, que a realidade está muito desfasada em relação às suas ideias e
aos seus conhecimentos...
As vítimas do autor são, portanto, os «responsáveis» que, opondo-se ao
uso das novas tecnologias nas empresas e organizações que dirigem, as
arrastam alegremente para o abismo do atraso tecnológico ou lá as mantêm.
Adoptou-se desta vez um tom de burlesco por parecer o mais
apropriado numa história em que praticamente todas as personagens –
tirando o nosso herói e o misterioso Doctor Robert – são precisamente os
tais híbridos de dinossauro e avestruz que acima se referem.

Uma vez escrito não era evidente que o livro pudesse ter êxito numa
edição em papel pelo que se resolveu lançar primeiro uma versão virtual
com tudo o que isso implicou de possibilidades de actualização, correcção
e melhoria…
Depois, dado que teve inúmeros leitores, seguiu-se, como atrás se disse,
uma edição em papel, que esgotou.

Será preciso dizer que esta experiência (e respectiva divulgação) só foi


possível devido ao entusiasmo da rapaziada que nessa época compunha a
Dígito - que a apoiou muito para além do imaginável e quando já tudo se
encaminhava para que o texto ficasse a apodrecer nos cafundores de um
disco de computador; do José Abrantes, o cartoonista; dos diversos e
pacientes leitores-cobaias - que leram e comentaram as sucessivas versões
6
Quer esse livro quer «Jeremias, Consultor», (continuação do presente «Operação
JEREMIAS») podem ser adquiridos, com autógrafo e dedicatória do autor, em
www.janelanaweb.com/humormedina

3
Operação JEREMIAS

preliminares e deram as indispensáveis dicas, sem as quais este livro seria


intragável; da malta do programa «SUB 26»7 que se referiu ao livro em
termos tão lisonjeiros que fizeram disparar o número de clicadelas na
página da Dígito onde o livro estava, nessa altura, afixado.

Apesar de se tratar de uma obra de ficção, em que as semelhanças com


a realidade têm a obrigação de ser meras coincidências, este livro é
dedicado a todos os verdadeiros Jeremias deste mundo…

7
No programa do dia 13 Dez 98, na RTP1 e RTPi.

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Medina Ribeiro

À Laia de Prefácio
«Jeremias no País dos inforfóbicos»

Crítica feita por Pedro Ary para a revista «VALOR», 16 a 22 de Dez 1999

O Jeremias é um jovem informático, cheio de entusiasmo, que tem o


seu primeiro contacto com o mundo do trabalho. É contratado por uma
empresa, a Makro-Teknika que, apesar do nome, é uma empresa pequena
que pouco ou nada percebe de novas tecnologias e das auto-estradas da
informação. Admitido pelo chefe dos Recursos Humanos, o Dr.
Minudêncio, o jovem Jeremias é sucessivamente apresentado aos vários
membros da empresa: o excêntrico Doctor Robert, que não dispensa os
seus cinco copos de brandy, o mulherengo Doutor Macieira, o aristocrata
Alarcão d' Albuquerque (e não de Albuquerque como alguns ousam chamá-
-lo), por alcunha «o complicador», o Capitão Jeitoso, chefe do Marketing
Científico, o Dr. Filoxera, responsável pela formação, o Eng.º Patusco, a
secretária D. Florípedes e muitos mais.
Todos eles, ou quase, parecem ter uma característica em comum: não
gostam nada de computadores e percebem ainda menos as suas vantagens,
gostando de afirmar que «são máquinas que desumanizam muito» e coisas
do género. O que faz a empresa, não se percebe muito bem - nem o próprio
Jeremias - mas isso também pouco importa.
E foi para levar esta empresa com sucesso ao século XXI - que, como
bem recorda o autor, só se iniciará no dia 1 de Janeiro de 2001 - que foi
contratado o herói. Trata-se de uma verdadeira empresa retrógrada, com
personagens sui generis, uma empresa de ficção que nada tem a ver com a
realidade portuguesa dos anos 90. Ou terá?
O autor, Carlos Medina Ribeiro, é natural do Porto. Formou-se em
Engenharia Electrotécnica no Instituto Superior Técnico em 70. Sofreu
uma "doença", a inforfobia ("pavor que certas pessoas sentem
relativamente às modernices informáticas"). Felizmente, curou-se e então
decidiu alertar os portugueses contra esta terrível doença que alastra pelo
nosso País. Cheio de humor e de bom-senso, começa a escrever sobre o
tema para o «Expresso» e, como não podia deixar de ser, as suas
personagens começam a aparecer na Internet, no site «Janela na Web». Em
1997 é publicado o livro «Crónicas da InforFobia», onde aparece o jovem
Jeremias. O vai-vem entre edições em papel e na Internet continua. Este
«Operação Jeremias» começou por ser lançado em versão virtual e foi
agora publicado em livro devido à sua grande receptividade na Internet.

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Operação JEREMIAS

Escrito num estilo humorístico - ou "burlesco" como afirma o autor -


muito bem conseguido, o livro arranca ao leitor risos e até gargalhadas ao
longo das 140 páginas, ilustradas ao estilo da Banda Desenhada, por José
Abrantes. A história, sobretudo devido à sua origem, é uma sucessão de
sketches onde intervêm as várias personagens presentes na empresa Makro-
-Teknika, uns verdadeiros «híbridos de dinossauro e avestruz», como lhes
chama Carlos Medina, na introdução, por não verem nem quererem ver as
vantagens que as tecnologias de informação, nomeadamente a Internet mas
não só, podem trazer para a eficácia e produtividade da empresa. Uma
empresa onde reinam os feudos pessoais, as inimizades, as práticas
ancestrais. Por exemplo, quando o pobre Jeremias diz a palavra "Internet"
ao Dr. Minudêncio, este salta da cadeira, corre a fechar a porta do gabinete
e começa a tremer e a suar:
«Esse nome, pelo menos no meu gabinete, está proibido de ser
pronunciado!».
Tendo o herói a difícil tarefa de modernizar a empresa, calcula-se o
esforço e os mal-entendidos que resultarão.
Devido à sua apresentação e ao seu estilo, esta obra é classificada como
literatura juvenil. No entanto, apesar do estilo fácil de ler e de várias notas,
no final do livro que explicam alguns termos e remetem para alguns sites
úteis, esta obra não se destina só aos mais jovens. De facto, também pode
ser uma forma original e inteligente de fazer uma crítica forte a todas as
empresas portuguesas que não perceberam os benefícios da modernização e
da nova era que já se iniciou no mundo dos negócios. De facto, quantas
"Makro-Teknikas" não andarão por aí, no tecido industria! português? E o
bug do ano 2000 a dias de acontecer...
Quem sabe se não serão livros como este mais eficazes do que tratados
de excelente qualidade sobre a importância e as vantagens das auto-
estradas da informação para as empresas portuguesas. Por outro lado, este
«Operação Jeremias» fala-nos de outra coisa, muito mais concreta e, talvez,
muito mais importante. Esta é a historia da relação entre as pessoas
concretas dentro das empresas: os sócios, os gestores, os directores de
recursos humanos, de marketing ou de formação, os administrativos de
toda a ordem, as secretárias - com as tecnologias de informação. Estão aqui
em jogo as reacções, frequentemente irracionais e por vezes nascidas da
falta de conhecimento, das pessoas que trabalham nas empresas - os
Doutores Minudêncio, os Capitães Jeitoso, as Donas Florípedes, etc. - face
à informática e face à Internet. É que o conhecimento é poder. E, portanto,
a introdução desta fonte de poder dentro das empresas arrisca-se a
modificar e mesmo a fazer explodir as estruturas hierárquicas, muitas vezes

6
Medina Ribeiro

complexas já que misturam poder formal e poder real. É, antes de tudo,


uma ameaça ao status quo. E esta questão é essencial. Mesmo que a gestão
de topo entenda a importância vital das tecnologias da informação para a
empresa - o que não é o caso da Makro-Teknika -, fazer passar a mensagem
a todos os níveis da organização é o verdadeiro desafio que se coloca hoje
às empresas portuguesas.
Este livro, com uma aparência descontraída põe, de facto, o dedo na
ferida levantando esta questão absolutamente fundamental. Mas nem por
isso deixa de ser uma obra extremamente agradável de ler, um livro ideal
para a época de Natal.

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Operação JEREMIAS

Índice
A Admissão ................................ 9
Doctor Robert ............................ 13
O Dr. Macieira ........................... 18
O Capitão Jeitoso ....................... 23
Mestre Filoxera .......................... 25
O Produto ................................... 27
Um Lugar ao Sol ........................ 34
Gato Escondido .......................... 38
No Bom Sentido ......................... 41
Haja… Cristo! ............................ 43
Nem Sonhes! .............................. 45
A Outra Face .............................. 47
O Ponto da Situação ................... 50
Importa-se?.................................. 53
O Logótipo ................................. 56
A Boa-Hora ................................ 58
A Calinada .................................. 61
Down… Down… Download........... 64
As Bodas de Ouro ....................... 68
O Backup .................................... 70
Aquela Máquina!......................... 71
A Sociedade da Informação ........ 75
Redução de Custos...................... 76
Vida Dura!................................... 79
A Pesquisa .................................. 81
A Menina da Rádio ..................... 83
O Administra-dor ........................ 86
O Bug do Ano 2000 .....................89
Finalmente o Ano 2000! ..............92
O Segredo do Doctor Robert .......94
O Segredo Final ...........................97
Finalmente o Século XXI! ...........98

*
O autor ........................................101
O ilustrador .................................103

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Medina Ribeiro

1
A Admissão

-E ntão diga-me só mais uma coisa, meu caro Jeremias:


você tem carta de condução?
— Tenho, sim, Sr. Doutor. Tenho carta de motos.
— Dessas que podem andar nas auto-estradas?
— Sim, dessas.
— Óptimo. É que dizem que a nossa firma precisa de alguém
que se mova bem nas auto-estradas da informação.
— Está a falar com a pessoa certa.
— E ainda mais uma coisa: o seu nome é mesmo Jeremias?
— Claro! Porque é que eu havia de mentir?!
— E escreve-se com J, de Jovem, ou com G, de Gajo?
— É com J, de Jovem, Sr. Doutor.
— Então é ouro sobre azul, porque eu não gosto da palavra
Gajo.
*
Esta aparente conversa de loucos (de cujo significado só
muito mais tarde Jeremias se viria a aperceber), passava-se no
gabinete do Dr. Minudêncio, o Chefe dos Recursos Humanos da
Makro-Teknika, empresa que se debatia com terríveis problemas
relacionados com as novas tecnologias:
Alguns pomposos cinquentões, nada à-vontade com as
modernices que ultrapassassem os inevitáveis jogos de cartas,
estavam a pôr em causa a entrada da empresa no Século XXI!
E, por isso, começava a fazer falta alguém que percebesse
minimamente de informática…
—… nem que seja para limpar as teias de aranha aos poucos
computadores que há por aí… – explicou o Doutor Minudêncio,
sempre no mesmo tom de voz monocórdico e distante, em que

9
Operação JEREMIAS

era impossível descortinar um vestígio de emoção ou uma réstia


de humor.
A conversa entrara numa fase de menor tensão e por isso
Jeremias, sentado na beira da cadeira como quem pede desculpa
por estar ali à procura de emprego, começara já a olhar à sua
volta e a inteirar-se melhor do ambiente.
Sentia-se pequenino nesse gabinete luxuoso onde os grandes
sofás de couro imperavam de par com pesados móveis de estilo
e onde a sua voz, já de si sumida, parecia desaparecer absorvida
pelos pesados cortinados de veludo roxo.
Mas, de súbito, deu por si a distrair-se da entrevista e a olhar
fixamente para um enorme castiçal onde seis velas de estearina,
impecavelmente paralelas, davam uma nota aberrante pelo
manifesto despropósito e aparente inutilidade funcional:
É que, apesar de ser dia e o sol entrar a jorros pela enorme
janela virada a nascente, estavam todas acesas e até com um
aspecto de bastante usadas!
O outro não se mostrou aborrecido pela visível desatenção
do jovem, antes tomou isso como um bom motivo para discorrer
filosoficamente:
— É a minha defesa – e em parte o meu protesto – em
relação à Sociedade de Consumo… Digamos que é a minha
maneira de estar preparado para o que dizem ser os avanços da
civilização… Não sei se sabe que, mesmos nestas sociedades
que se dizem desenvolvidas, muitas vezes falta a luz… É
também por isso que eu não tenho – nem quero ter –
computador. Tenho ouvido terríveis histórias sobre trabalhos
que se perdem por faltar a electricidade!
— Mas isso é um problema da pré-história! É para isso que
há UPS 8! – comentou imprudentemente o nosso amigo.
O outro arregalou muito os olhos:

8
UPS –Uninterruptible Power Supply (Fonte de Alimentação Ininterruptível)

10
Medina Ribeiro

— Como?! Você diz que é para isso que há o PS?! Mas o


que é que a política tem a ver com isso?!
E prosseguiu, sem esperar pela resposta que, de qualquer
forma, não viria:
— Já mandei providenciar candelabros para os gabinetes
todos. Mas ainda não foi estabelecida a relação entre o grau
hierárquico e o número de velas que cabe a cada pessoa. É um
assunto que está a ser tratado pelos Estudos Gerais do
Departamento de Serviços.
Jeremias não se atreveu a comentar. Mas pensou, de si para
consigo, que andava com pouca sorte:
Depois de alguns meses na Tecno-Máxima 9 – empresa
dominada por inforfóbicos que lhe haviam feito a vida negra –
ei-lo agora em risco iminente de ter de viver numa outra,
povoada por loucos mansos!
Timidamente inquiriu:
— Mas não têm cá meia-dúzia de pessoas que saibam
trabalhar com computadores?! Não têm uma ligação à Internet?!
Ao ouvir esta última palavra o Dr. Minudêncio deu um salto
da cadeira, fazendo-a cair, e precipitou-se para a porta do
gabinete, que fechou com mão tremente.
Depois voltou a sentar-se, tirou um lenço da algibeira para
limpar o suor que, de súbito, lhe perlara a testa e explicou, em
tom assustado mas também com alguma irritação:
— Esse nome, pelo menos no meu gabinete, está proibido de
ser pronunciado!
A situação era desconfortável, mas também cada vez mais
nítida:
Jeremias estava, de facto, em vias de ser admitido em mais
uma das inúmeras firmas salpicadas de pessoas do outro tempo
que, tal como as avestruzes, preferem enterrar a cabeça na areia
a encarar as novas realidades de frente.
O outro continuou:

9
Referida, com grande destaque, no livro «Crónicas da InforFobia»

11
Operação JEREMIAS

— Temos cá um indivíduo que parece que entende de


computadores. Eu digo parece porque ele é tão confuso a falar,
a explicar e a fazer as coisas que nunca ninguém percebeu se ele
sabe ou não sabe de bits… mas também não é grave… aqui
pouca gente liga a essas coisas.
— Mas vão-me dar um computador para trabalhar ou vou ter
que trazer o meu de casa?
O estranho cavalheiro não vislumbrou humor nas palavras do
jovem. Até porque outros empregados já tinham passado pelo
mesmo e feito a mesma pergunta… Por isso limitou-se a
responder, com toda a naturalidade:
— Não será preciso. Excepcionalmente para si, como você
vai ser o nosso especialista, arranja-se um 386. Uma bomba,
segundo dizem os entendidos! Parece que é muito mais rápido
do que o 385 e está a um preço muito acessível.
Na época em que essa cena se passou já os Pentium estavam
em vias de se tornarem obsoletos, pelo que não será de admirar
o comentário desalentado do rapaz:
— Não se arranja nada melhor, Sr. Doutor?
— Bem… se faz questão... Vou tomar nota e quando houver
verba verei se lhe consigo um 387.
E, fechando o dossier de capa de oleado onde apontara tudo,
levantou-se e deu a entrevista por terminada.
Jeremias conseguira o emprego!

12
Medina Ribeiro

2
Doctor Robert

J eremias foi, em seguida, apresentado e entregue a um tal


Doctor Robert que, sem mais delongas, resolveu pô-lo a par dos
hábitos da empresa, das pequenas burocracias a respeitar…
— … e das manias de cada um destes patuscos – a começar
por mim – que também é bom que as conheças se queres andar
por aqui alguns anos a roçar o rabo pelas cadeiras…
Doctor Robert – assim parecia chamar-se a estranha
personagem que lhe coubera em sorte como chefe – tomara de
imediato a iniciativa de tratar o jovem por “tu”. Mas isso
parecia não constituir qualquer problema, muito antes pelo
contrário. E, assim, ei-los que iniciam um amigável
relacionamento que iria ter terríveis consequências para eles e
para a Makro-Teknika!
*
Jeremias foi então conduzido ao seu novo Gabinete, um vão
de escada onde o pessoal da limpeza, que entrava às cinco e
meia, guardava os detergentes, os esfregões e as vassouras.
— Deves virar o écran do teu computador para o corredor –
aconselhou-o o Doctor – para que as pessoas que passam vejam
bem que estás a trabalhar e não a brincar…
E esclareceu, embora tal não fosse necessário, baixando
conspirativamente a voz:
— É que aqui na Makro-Teknika temos muita gente que julga
que os computadores só servem para joguinhos… E, no que toca
a eles próprios e a mim mesmo, até não estão muito
enganados… Mas tenho fé que consigamos dar a volta a esta
situação bizarra!
O Doutor, como se vê, encarava a vida na empresa com um
misto de cepticismo, humor ácido e optimismo muito
controlado…
*

13
Operação JEREMIAS

— Estou só a fazer anos para a reforma, amigo Jeremias…


Mas antes de me ir embora ainda quero ver se levo esta
chafarica a entrar no Século XXI com o pé direito! –
confidenciara ele num dia em que um cálice de brandy (o
terrível quinto cálice!) o empurrara para estranhas mas
preciosas confissões…
Nesse dia estava particularmente desalentado: alguns sócios
em que depositara grandes esperanças não se mostravam nada
mobilizados para grandes modernizações…
— Talvez seja melhor ir a pouco e pouco – aventou Jeremias
- Por exemplo: começar por convencer essas pessoas a usarem
lapiseiras em vez de lápis…
Mas o outro mal o ouvia.
— Sabes? Às vezes nem sei mais o que hei-de fazer… E
quanto aos lápis… cala-te boca! Isso é outra estranha história!
E manteve-se depois durante bastante tempo de olhos semi-
-cerrados, contemplando o fundo do cálice como se nele
esperasse ler alguma revelação do Além.
Jeremias, estupefacto, acompanhava-lhe o olhar e esperava
em respeitoso silêncio.
— Se queres fazer amigos por aqui, o grande segredo é
nunca mostrares que gostas muito de computadores! Dedica-te à
tua actividade com eficiência, mas também com bastante
distanciação… De vez em quando faz comentários filosóficos,
do tipo “as máquinas amesquinham o Homem”… Diz coisas
assim e podes até dar uns murros no teclado. Vais ver como
arranjas logo amigos do peito!
— Já percebi… O meu bisavô também diz dessas coisas… Só
que não dá murros, porque está muito fraquinho.
O Doutor sorriu, apreciando o humor ingénuo do jovem,
cofiou o bigode e acariciou a careca lustrosa. Por fim, cuspiu o
palito que há algum tempo passeava entre os dentes cariados e
comentou:
— És então um apaixonado por computadores, pela
Internet… enfim, por essas coisas…

14
Medina Ribeiro

Recordado ainda da reacção do Dr. Minudêncio, Jeremias


manteve-se prudentemente calado, na expectativa da evolução
da conversa.
— Essa paixão deve ser o teu maior segredo dentro desta
casa, pelo menos para já! Vais ser um ninja da informática…
um subversivo… um conspirador a soldo do progresso digital…
Mas nunca te esqueças: o Grande Doctor Robert estará contigo
na retaguarda da luta!
— Não se preocupe, Doutor. Já percebi o problema e o que
espera de mim. Mas a Makro-Teknika não é suposto ser uma
empresa técnica?
Um gargalhada abafada sacudiu o ar:
— Sei lá! Aliás eu acho que nós ainda não sabemos muito
bem o que esta empresa é ou vai ser… No fundo, isto é uma
associação de indivíduos como eu, que resolveram sair de onde
estavam, juntar-se e fundar uma empresa. E de Consultoria, vê
lá tu… Deve ser a fusão das palavras Consultor e Ria… Mas
receio bem que em breve só fique a última parte!
O Doutor começava a falar alto demais e a atrair
reprovadores olhares das outras pessoas que tomavam o café no
bar.
— Vamos, meu jovem. Vamos sair deste sítio, que as paredes
têm ouvidos. É talvez para compensar o facto de haver ouvidos
que têm paredes…
E, agora já bem-disposto, riu-se, deliciado com esse seu
chiste que tantas vezes usava e agradado pelo efeito que as suas
palavras tinham sobre o siderado Jeremias.
— Mas, Doutor, se nesta empresa há tantos marretas
tecnológicos, como é que pode ter um nome como Makro-
-Teknika?!
Era evidente que o outro já esperava essa pergunta e estava
preparado para a resposta. Talvez por isso a gargalhada
subsequente não lhe tenha saído com tanta naturalidade como
desejaria.
Mas Jeremias não estava atento a esses pormenores e,
boquiaberto, escutou a explicação:

15
Operação JEREMIAS

— Bem…esses marretas tecnológicos, como tu lhes chamas,


podem até nem ser a maioria, mas o que é facto é que têm muita
força…
E prosseguiu:
— Esta casa, que eu quero transformar com a tua ajuda numa
empresa moderna a caminho do Século XXI, tanto se poderia
chamar Makro-Teknika, como Tekno-Makro, como outra coisa
qualquer… Os fundadores – e eu à frente deles – andaram pelos
seus dedos nas Páginas Amarelas e a fazer composições de
palavras até encontrar qualquer coisa que soasse bem e estivesse
disponível. E essa de Makro-Teknika até fui eu que me
lembrei… E fiz questão que tivesse muitos K no nome…
— Parece uma boa ideia…
— Pareceu a todos, especialmente quando eu fiz um ar sério
e comentei: «Meus caros senhores, colegas e consócios! Neste
tempo de crise, quem tem K sempre escapa!»
O Doutor ia entornando o copo (que enchera ainda mais uma
vez, antes de o levar consigo) ao relatar a cena.
Jeremias interrompeu-o:
— Então o senhor é sócio da firma?! Não é empregado?!
— Sou sócio, sim senhor! E com muita honra! Agora toma
atenção, que vou chatear aquela abécola que ali vem…
O Doutor não estava bem, pensava o nosso jovem. Ia decerto
arranjar algum sarilho… Não seria melhor arrastá-lo para
longe? Nessa altura, ao ver o Dr. Minudêncio que ia a passar,
Jeremias deu-lhe conta das suas preocupações.
Mas o outro sossegou-o:
— Não se aflija, cidadão Jeremias! O Doctor Robert é quase
dono disto! Ele é mesmo assim e a rapaziada não se importa…
Com aquele seu ar de anarquista serôdio é uma jóia de pessoa e
vai ver que vale a pena estar nas boas graças dele… Tem é o
terrível defeito de querer modernizar a empresa para além do
estritamente necessário…
Mas já a cena ao lado começara a desenrolar-se… e o Doctor
Robert travava o passo a um inseguro e surpreso cavalheiro de
laço amarelo e rosa na botoeira:

16
Medina Ribeiro

— Olhe lá, ó Rebordão, seu laçarote de meia-tigela! Você já


decidiu qual vai ser o slogan aqui da rapaziada para entrarmos
no Século XXI?
E, antes que o outro ensaiasse uma resposta ou decidisse
mesmo se devia responder, continuou:
— Eu cá já pensei em dois: «Arranjamos Makro-Soluções
para os seus Tekno-Problemas» e «Arranjamos Tekno-Soluções
para os seus Makro-Problemas». Tudo com pipas de K! Hã? Que
tal?
— Acho bem… são ambos muito bons… – respondeu a medo
o Dr. Rebordão, tentando escapulir-se.
Mas o outro, sentindo-se observado e apreciando de
sobremaneira o facto de ter público, resolveu continuar no
mesmo tom:
— Espere aí, homem! Você não se escapa de mim tão cedo!
Já tratou do Manual da Qualidade do Produto Secreto?
*
E foi através do problema do Manual da Qualidade que
Jeremias veio a tomar consciência de uma das maiores clivagens
que atravessavam a Makro-Teknika em todos os sentidos, quer
na vertical quer na horizontal…
Mas a seu tempo saberemos do que se tratava… Antes disso
vamos acompanhar o Doctor Robert na sua missão de apresentar
o jovem aos demais colegas, aproveitando tal facto para
ficarmos a conhecer, muito especialmente, as tais difíceis
personagens da empresa e as suas estranhas idiossincrasias…

17
Operação JEREMIAS

3
O Doutor Macieira

-E u é que devia ter o nome aqui deste compincha, que


tem nome de brandy – dizia o Doctor Robert, rindo-se com o
seu ar bonacheirão quando apresentava Jeremias a um estranho
indivíduo gordo, de longos cabelos e óculos extremamente
graduados e que parecia não pretender largar um pequeno lápis
que roía sem cessar.
E pondo um braço amigável em torno do pescoço dele mas
dirigindo-se ao jovem, prosseguiu:
— Pois aqui o nosso amigo Macieira, que é o terror de tudo
o que tenha saias (excepto escoceses, julgo eu!) é que te vai dar
trabalho a catequizar!
Depois, virando-se para o colega que, com um sorriso
amarelo e um pouco sem jeito, se levantara da cadeira para os
receber, esclareceu o significado da estranha frase:
— Deixe-se estar, homem, não se levante por nossa causa!
Aqui o nosso rapaz tem esta cara de anjinho mas fez testes
psicotécnicos em condições e tem carta de motos. Além disso,
parece que percebe de computadores e foi contratado para
ajudar esta nossa chafarica a entrar no Século XXI com o pé
direito! E, o que é mais importante, chama-se Jeremias!
— Então sempre se encontrou o tal Jeremias que a Makro-
-Teknika tanto procurava…
E, virando-se para o jovem, que estava perplexo com a
estranha frase, rematou:
— Pois muito prazer… Apesar da missão que aqui o traz
desejo-lhe uma boa estadia aqui na empresa…
Só que o Doctor, fazendo questão de continuar a controlar a
situação, prosseguiu:
— Parece que agora não se diz estadia… diz-se estada…
Mas isso para mim é igual ao litro. Pois, meu caro Jeremias,

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Medina Ribeiro

tens aqui na tua frente o maior inimigo dos computadores que


alguma vez se pavoneou sobre a face da Terra…
— São máquinas que desumanizam muito… – interrompeu o
outro, justificando-se – Eu acredito na superioridade do cérebro
humano sobre as máquinas… Além disso, o bug do Ano 2000
vai ser uma catástrofe para a Humanidade. Espero defender-me
como puder! Um amigo meu já fez um bunker e…
Mas o Doctor Robert não lhe deu mais tempo nem espaço de
raciocínio para desenvolver o tema. Interrompeu-o dando-lhe
uma amigável palmadinha na barriga, e, virando-se para
Jeremias, comentou:
— Como vês, intrépido mancebo, vais ter muito trabalho por
estes lados… Aqui o Macieira, que nunca na vida mexeu num
computador, só vai sofrer com o bug do Ano 2000 se ele lhe
avariar a máquina do tabaco! Nem sequer tem cartão multibanco
nem Via-Verde no carro! Prefere passar umas horas nas bichas,
no povo-unido, pois diz que essas coisas modernas… como é
que você lhes chama?
— Chamo-as pelo que de facto são, meu caro: necessidades
artificiais que a sociedade pós-moderna nos quer impor e que
eu repudio liminarmente!
— Então vamos deixá-lo com essas angústias existenciais,
que ainda tenho que apresentar aqui o nosso amigo ao resto da
rapaziada. Senão, aparece aí o Século XXI e ainda estamos
nesta conversa de chacha.
E, já no corredor:
— Estás a gostar da amostra? Agora vais conhecer o
Alarcão… O mui-nobre e famoso Alarcão d’ Albuquerque, por
alcunha o complicador.
*
Não foi fácil esse encontro nem essa apresentação.
Tratava-se de uma estranha e altiva personagem que, só por
si, levaria vários capítulos a descrever.
Dado ter sido o único, na empresa, a gabar-se de folhear o
suplemento de informática d’ «O Público» e o primeiro a jogar

19
Operação JEREMIAS

o Pac-Man num Spectrum, ganhara fama de ser perito em


informática.
E, como tal, fora justa e naturalmente promovido a Chefe
dos respectivos Serviços.
— Não gosto nada do nome serviços… Eu não estou aqui
para servir ninguém – costumava ele desabafar, de certo
pensando na sua origem fidalga.
Mas também ninguém discutia com ele.
Alguns tinham-lhe tentado pôr a alcunha de Doctor No,
como homenagem ao facto de ele dizer a tudo que não e
invariavelmente declarar que era impossível fazer o que lhe
pedissem:
— Faltam layers de software, Senhor Director! Isso só se
resolve com bytes de nove bits a 500 giga-hertz – e mesmo
assim terá que se adquirir uma linha RDIS de 2 Megavolts de
potência unitária deslizante…

Era este o tipo de explicações que ele dava para mostrar que
não era possível fazer um simples mapa de preços em
computador.
E, no caso deste exemplo, a justificação, depois de passada a
escrito e analisada cuidadosamente pela hierarquia, fora
despachada assim:
«Tendo em conta que os preços dos equipamentos
informáticos têm vindo a baixar constantemente, a Makro-
-Teknika deverá aguardar até que os bytes de 9 bits sejam
mais acessíveis. Será nomeada uma Comissão de
Acompanhamento para estudar o assunto, tanto na vertente
económica como na tecnológica. O aspecto humano
também não será descurado 10».

10
Referência a um caso em que, devido aos caracteres ASCII de 7 bits (que impedem as
cedilhas e os acentos), um nobre Sr. Marquês apareceu transformado no plebeu Sr.
Marques. (Ver as aventuras de Salvador, o Consultor, publicadas na revista «Valor»),
disponíveis m www.janelanaweb.com/humormedina

20
Medina Ribeiro

E esclarecia, em nota de rodapé, referindo-se à famosa Lei


de Moore 11:
«Consequência da chamada Lei de More que, como o
próprio nome indica, é a lei de cada vez mais»
*
Mas adiante.
Jeremias, que tinha a mania que a informática, pelo menos
para o utilizador final, devia poder ser simples («Tal como não
deve ser preciso saber Química para tirar fotografias» – dizia
ele…) veio a ter frequentes discussões com o Alarcão.
Ficou para a história da Makro-Teknika a seguinte cena, a
que assistiram várias pessoas:

— Ó Alarcão, você tem aí o número de telefone do Manel?


Confrontado com esta simples pergunta dum colega mais
incauto, o Alarcão, em vez de olhar para o papel na parede onde
estava escarrapachada a resposta…
… ligou o computador…
… arrancou o Windows 95…
e clicou em Start - Find - Files or Folders - Advanced.
Depois, escreveu “Manel” na janela que dizia Containing
Text e deu um toque final em Find Now com o ar satisfeito do
compositor que coloca a última nota numa partitura cujo
sucesso tem por garantido.
Mas não viu nada!
Lembrou-se, depois, que talvez estivesse em “Manuel”
(quem diria!) e lá encontrou, ao fim de alguns minutos, resmas
de ficheiros onde apareceria a palavra. Num deles lá estava o
tão procurado número, que exibiu, triunfante, como um troféu
de caça!
Bem… a acreditar no Jeremias, parece que a coisa ainda foi
um pouco mais complicada do que isso:

11
Lei enunciada por Gordon Moore, co-fundador da Intel, e segundo a qual a
capacidade dos processadores duplica todos os 18 meses.

21
Operação JEREMIAS

Pelo meio ainda teve que se haver com uns ficheiros


chamados Phone_List.doc (protegidos com passwords de que já
se tinha esquecido) e programas shareware (que foi nessa altura
buscar à Internet) que se destinavam a recuperá-las…
Por fim, para cúmulo, virou-se para o papel afixado na
parede, procurou com o dedo o número do Manel e,
espreguiçando-se, comentou laconicamente mas com toda a
seriedade:
— Confere!
Mas falta ainda contar a melhor:
O Alarcão, que tinha muito orgulho no seu nome, sofria
muito!
É que as pessoas costumavam tratá-lo por Alarcão de
Albuquerque.
E ele não percebia porque é que a malta se fartava de rir
quando ele corrigia, com o seu ar bonacheirão e recostando-se
na cadeira:
«D’Albuquerque, com plica… D’Albuquerque sempre com
plica!»

22
Medina Ribeiro

4
O Capitão Jeitoso

-C laro que já percebeste que Jeitoso é a alcunha aqui


deste nosso amigo, não é verdade?
O Doctor Robert entrava agora, sem prevenir, pelo gabinete
do Chefe do Marketing Científico e dirigia-se a ele com a sem-
cerimónia que o tornara proverbial:
— Para dizer a verdade já nem sei qual é o seu nome
verdadeiro… Você, com esses seus cento e cinquenta quilos mas
com a mania de que é elegante, apanhou o raio dessa alcunha e
ela colou-se-lhe ao corpo. E que corpo! – continuou ele a
gracejar sem que o outro se mostrasse preocupado, antes dando
sinais claros de apreciar a confiança.
— Pois é, Jeremias… a tua tarefa com esta encomenda
também vai ser difícil! Vais ter que convencer este nosso amigo
de que ele pode beneficiar alguma coisa com a Internet!
— Chiça! – reagiu o Capitão esbugalhando os olhos e
cuspindo as aparas das unhas que permanentemente roía. – Não
me venham para cá com essa m…, que bem me bastam os
miúdos lá em casa a chatear-me!
— Contenha-se, homem! Olhe que dá mau aspecto aqui ao
nosso jovem informático! Ele depois, com tempo, há-de cá vir
catequizá-lo… O Século XXI está à porta, homem!
— De facto a Internet pode ser muito útil nessas coisas de
Marketing – atreveu-se o nosso amigo a comentar, sentindo-se
escudado pelas palavras do chefe.
Mas o Capitão nem se dignou responder-lhe. Aliás, nem o
deve ter ouvido, de tão transtornado que estava:
— Olhe lá, ó Doctor Robert! Eu sempre lhe tive o maior
respeito! Se o senhor sabe que eu nem quero um computador no
gabinete, como é que tem o desplante de me vir falar nessa

23
Operação JEREMIAS

porcaria?! O senhor não lê os jornais?! O senhor não está a par


dos perigos?! Não viu o que fizeram ao Clinton?
Deixando-o a barafustar, o doutor, bonacheirão, arrastou
Jeremias por um braço para fora do gabinete…
— Vamos, meu rapaz! Já enlouquecemos mais este!

24
Medina Ribeiro

5
Mestre Filoxera

-E ntão, mestre Filoxera! Já tens muitos alunos, ou quê?


Olha que aqui este nosso amigo vem fazer-te concorrência! Vem
ganhar um balúrdio para dar umas aulitas cá à juventude…
desemburrar a rapaziada no que diz respeito à informática…
Estás a ver o filme, não estás? O lema é: «Não desista! Século
XXI à vista!»
E saiu-se com mais um dos seus espantosos slogans, que o
seu cérebro parecia produzir a um ritmo infernal:
— Está o Século XXI à porta e há malta que não se importa!
O Dr. Filoxera tinha, pelos vistos, a responsabilidade pela
formação na Makro-Teknika. Estranha personagem, na verdade:
Ar abatido, cabeça descaída para um lado, olhar perdido no
infinito…
Ele é Doutor em quê? – arriscou-se, mais tarde, Jeremias a
perguntar ao Doctor Robert.
A resposta demorou… Fundamentalmente porque, como que
acometido por uma síncope, o interpelado se atirou contra a
parede, lançando inicialmente o pânico no nosso jovem amigo.
Mas, poucos segundos passados, apercebeu-se de que se
tratava de mais um dos seus fulminantes ataques de riso que
quase o prostravam à força de o sufocarem.
No seu jeito muito seu, o Doctor dava agora grandes murros
na parede até que, por fim, conseguiu desembrulhar a
gargalhada terrível que o asfixiava!
— Essa pergunta é uma daquelas que nunca podes fazer
dentro destas paredes! Com que então queres saber qual o curso
do mestre Filoxera?! Terás tempo… terás tempo… Mas nunca
mais voltes a fazer-me rir assim, ouviste?
*

25
Operação JEREMIAS

Durante a apresentação também ficou claro para Jeremias


que não seria muito bem-vindo por aqueles lados.
Vendo a reacção gélida que Mestre Filoxera lhes dispensava,
o Doctor Robert abreviou a penosa cena com uma piada antiga e
bem do seu agrado:
— Deixo-te com os teus cursos, caro Filoxera… Mas lembra-
te: esses alunos que tens… quanto mais cursos, mais ursos! E
eu por mim falo, que também andei aqui na tua Escola Superior
para Cérebros Inferiores!
De facto, e talvez com razão, o nosso doutor achava que o
dinheiro gasto em formação, ali naquela empresa, era dinheiro
deitado aos peixinhos…
— … e isso para não usar nomes de certos mamíferos –
rematava ele quase sempre. Mas tem de ser… Estas coisas da
Qualidade agora obrigam…
De facto a Makro-Teknika andava a fazer esforços
desesperados para ser qualificada segundo a norma ISO 9000.
«Vamos ser modestos! – tinha sido decidido – Vamos
começar por tentar a 9001. Depois, com tempo e se tudo correr
bem, tentaremos evoluir para a 9002… talvez consigamos
mesmo concorrer um dia à 9003…» 12
*
E assim, conduzido paternalmente de gabinete em gabinete
pelo Doctor Robert, Jeremias foi tomando conhecimento do
pesadelo que o esperava: uma empresa pontuada por uma boa
dúzia de inforfóbicos de fazer corar de inveja a velha Tecno-
Máxima onde, apesar de tudo, acabara por conseguir algumas
vitórias humanas e tecnológicas…
De facto… como iriam correr as coisas ali?
Teria esse misterioso homem, que dava por um nome inglês,
força suficiente para modificar as formas de pensar daquela
gente à espera da reforma?!
De onde lhe adviria o seu estranho ascendente?! Do poder do
dinheiro? Do seu nascimento britânico?

12
9001 é o grau máximo da norma ISO 9000

26
Medina Ribeiro

6
O Produto

-M
Doutor?
as, afinal, o que é que a Makro-Teknika produz,

Jeremias estava no gabinete do seu chefe. Mantinha-se de pé,


respeitosamente, enquanto o outro se recostava na cadeira, com
ambas as mãos na nuca, espreguiçando-se.
— Está quieto, Electro! Tens pulgas, ou quê?!
O nosso jovem ficou siderado! Estaria a falar com ele?! Sim,
porque não havia mais ninguém ali no gabinete! E que ideia era
essa, lá por ele ser electrotécnico, de o tratar por Electro?! E
que história era essa das pulgas?!
Mas enganava-se:
Para sua máxima surpresa havia um enorme cão felpudo
enroscado debaixo da secretária do Doutor que, para cúmulo, se
descalçara e mergulhara os dedos dos pés nos farfalhudos pelos
do animal!
— Ah… não estou a falar contigo, Jeremias! Vejo que ainda
falta apresentar-te este sócio! Sabes que mais? Deve ser dos
indivíduos mais úteis que por aqui andam na empresa… É o meu
Electro… doméstico!
E passou a explicar:
— Deves ter visto o candelabro aceso no gabinete do Dr.
Minudêncio.
— Claro… via-se ao longe…
— E ele decerto te explicou o motivo…
— Sim, teve essa gentileza…
— Pois bem. Ainda não viste nada! A D. Míldia, da
Contabilidade, tem sempre à mão um ábaco de bolinhas para
mostrar como se pode ser eficiente sem programas de cálculo
nem máquinas de calcular; a D. Mariquita lá tem a sua máquina

27
Operação JEREMIAS

de escrever, como viste; a Florípedes deve ter escondido a pena


de pato quando tu chegaste… e o Capitão não faz segredo de
que, de vez em quando, ainda usa uma lousa como reacção aos
computadores…
— E o que é que isso tem a ver com o seu cão?!
— É simples… Ao ver esses patuscos a fazer essas coisas,
mandei que se retirassem as escalfetas que lhes tinham sido
atribuídas para o Inverno e disse-lhes que usassem cães e gatos.
Não estavas com atenção, senão tinhas reparado no Mimoso, o
gato que a D. Florípedes tem debaixo da secretária.
— Só vi o retrato…
— Mas estavas a perguntar-me o que é que Makro-Teknika
produzia… Eu podia responder-te que produz palpites, ideias e
opiniões, visto que, teoricamente, somos uma empresa de
consultoria. Mas, de facto, nunca ninguém nos consulta para
coisa nenhuma, por isso metemos o Gabinete de Concepção a
conceber um novo produto. Mas, se queres que te diga, mesmo
que soubesse o que eles andam a enjorcar não te poderia dizer.
Trata-se mesmo de um produto secreto.
— Mas algum dia se há-de saber, não há-de?
— Evidentemente, se algum dia o acabarem… Mas, primeiro,
o Rebordão vai ter que fazer o respectivo Manual da Qualidade.
Já imaginaste o que é fazer um Manual de uma coisa que não se
faz a mínima ideia do que seja?
E fez voar o tinteiro com o murro que deu na mesa a pontuar
a enorme gargalhada.
— E tem mesmo que haver esse Manual?
— Bem vejo que nunca trabalhaste em empresas que se
querem certificar pela ISO 9000! Põe-te na pele dele: o homem,
coitado, tem que fazer um documento sobre uma coisa que não
sabe o que é nem para que serve… E tem de produzir papeis…
MUITOS papéis… Mas ele vinga-se e dá a volta por cima de
uma forma que já vais perceber. E agora vamos lá abaixo ao bar
que eu, com a garganta seca, não me exprimo bem.
*

28
Medina Ribeiro

A confiança que o Doctor dava ao jovem estagiário há muito


que se tornara suspeita.
Havia muito de subversivo, quer na maneira como o primeiro
encarava a empresa, quer nos propósitos declarados com que
decidira contratar o segundo: modernizar a Makro-Teknika, que
o mesmo era dizer… descaracterizá-la!
Daí que os seus passos fossem seguidos e as suas conversas,
sempre que possível, espiadas… Fora até, uma vez, vítima de
uma cavilosa escuta!
— Olhem para este trabalho de amadores – dissera ele ao
encontrar um microfone camuflado no seu gabinete –
Esconderam mal esta porcaria na alcatifa e fui dar com o cão a
roer a pilha! Vocês querem matar-me a escalfeta, ou quê?! Que
raio! Esta m. tem mercúrio!
*
Também dessa vez, no bar, Jeremias e o Doutor, sentindo-se
observados, levantaram-se e saíram.
Mas os habituais quatro cálices de brandy não foram
poupados, o quinto já vinha a caminho, e a referência a mais um
mistério veio ainda antes de chegados de novo ao gabinete:
— Vou então pôr-te a par das minhas suspeitas - recomeçou
o Doutor, já no recato da sua sala e após descalçar os sapatos
para retomar a habitual posição com os pés enroscados no
sonolento animal.
E prosseguiu:
— Recentemente apareceu uma nova secção aqui na empresa:
O Make-Papers Department, na dependência directa do
Rebordão. E o seu nome diz tudo… Ora, como sabes, está na
moda produzir electricidade com a queima de lixos. O papel é
uma óptima matéria prima e tenho fortes razões para suspeitar
que o Rebordão tem interesses no empreendimento… Produz
papéis sobre papéis e passa a vida a mandar-nos deitar fora as
versões antigas… E lá vai tudo, de borla, enriquecer uma
Central de Queima de que ele é accionista!
— E depois? Não se pode fazer nada contra isso?! –
admirou-se o nosso amigo.

29
Operação JEREMIAS

— Ah, rapaz… falas assim porque ainda não caíste nas mãos
da seita dos Make-Papers – retrucou o outro, compreensivo…
E prosseguiu:
— Mas há mais! Suspeito também seriamente que há um
outro lobby secreto aqui na casa… o Grupo dos Confettis,
liderado pelo nosso amigo Jeitoso, e acho que, de uma forma ou
de outra, ambos estão ligados! Mas mais para o mal do que para
o bem! Uma autêntica Máfia!
Jeremias percebia cada vez menos! Make-Papers, Grupo dos
Confettis… mafiosos… estaria tudo doido?!
— Custa a crer, não custa?! Pois é… mas eu suspeito de
coisas muito piores! Eu acho que o Jeitoso, incapaz de
acompanhar as exigências da Qualidade, gostaria de se ver livre
do Rebordão. Ou, pelo menos, destruir-lhe o prestígio de que
ainda desfruta.
Mas teve que fazer uma pausa inesperada:
— Tens pulgas, tens, Electro… Tu tens pulgas…
E continuou, coçando a perna direita:
— Mas, como não consegue, decidiu juntar-se-lhe… Abriu
então uma empresa de confettis de Carnaval e exige ficar com
todas as rodelinhas resultantes das furações das páginas que o
outro cria! Não é maquiavélico?!
Jeremias começava a acreditar!
— E isso dá dinheiro? – estranhou ele.
— Oh, se dá! Mas aquilo é malta que nunca está contente
com o que tem! E sabes o que se passou depois?! O Capitão,
sempre insatisfeito, aumentou as exigências! Disse que só
apoiava o outro aqui na empresa se as folhas que ele edita
passassem a ter 4 furos! Quer dizer: aumentou em 100% a
quantidade de confettis produzidos!
— E como é que sabe isso tudo?! Ou são só desconfianças?
— Ora bem… eu tive acesso a este cálculo, mandado
elaborar pelo prejudicado (refiro-me ao Rebordão, claro) ao
Gabinete de Cálculo de Materiais. Não achas suspeito?! Está
aqui uma cópia. Podes ler, que vale a pena! O mais divertido é

30
Medina Ribeiro

que eles não conseguiram escrever, no computador, o símbolo


“Pi” nem os expoentes!

Cálculo de matéria-prima desperdiçada por cada tetra-furação numa


página A4 (DIN), de 80 g / metro quadrado:
O diâmetro de um furo de furadora é para aí uns 4 ou 5 mm.
Tiramos a média, o que dá
(4 + 5): 2 = 4, 500 000 mm.
Assim, e como o raio é metade, dá:
4, 500 000 mm : 2 = 2, 250 000 mm
Vamos depois, a seu tempo, ter em conta que a área do círculo é, se bem
me lembro e aproximadamente:
“Pi” vezes o raio ao quadrado.
Mas vamos, primeiro, resolver outro problema:
decidir qual a precisão com que se quer o número “Pi”.
Tendo em conta a mnemónica "Vai à aula o rapaz aprender um número
usado nos arcos", teremos:
3, 141 582 653 5
No entanto, como esta mnemónica foi inventada numa altura em que a
palavra aprender se escrevia com dois pês (apprender), o valor da
constante deverá ser corrigido, pelo que tomaremos:
3, 141 592 653 5
Assim, para os 4 furos, a coisa dá, em milímetros quadrados e após
arredondamento:
4 x 3, 141 592 653 5 x 2, 250 000 x 2, 250 000 = 63, 617 251 233 38

Tirando a folha das mãos de Jeremias o Doutor comentou,


apontando com o dedo:
— Logo pelas primeiras palavras se vê quem mandou fazer o
estudo. Aqui está escrito: "matéria-prima desperdiçada", o que
só é válido numa perspectiva, porque o que é desperdício para
um (o papel) é lucro chorudo para o outro (os confettis)! – E
continuou, eufórico:
— Só apanhei esta página. Na outra, que ainda cheguei a ver
de relance, convertiam este valor em microgramas de papel,
faziam as contas às calorias que esse papel poderia ter
produzido, usava-se a constante de conversão para converter as

31
Operação JEREMIAS

calorias em kWh, etc. etc. Só te digo que no fim dava alguns


contos de reis só em papel bruto e MUITO dinheiro em termos
de confettis!! – terminou Doctor Robert recostando-se, fatigado.
— E o que é que eu posso fazer, doutor? – perguntou o
rapaz, confuso, mas também lisonjeado por se ver envolvido nos
altos segredos da empresa.
— Nada, Jeremias… não podes fazer nada. Aliás, nem sei
porque é que te estou a falar disto… Ah, já sei! Veio a
propósito de me teres perguntado aquela coisa do produto
secreto que andamos a inventar…
— Sim, era disso que estávamos a falar – respondeu o rapaz.
— Pois nem eu sei, de tal forma o assunto é reservado.
Talvez estejam a inventar tripés de duas pernas… Mas o mais
certo é serem, simplesmente, máquinas de fazer mais furos nos
papéis…

Jeremias já não conseguia dormir sossegado!


Então o Produto Secreto estava em marcha!
De facto, que raio de coisa é que uma empresa daquelas
poderia inventar?!
A sua curiosidade levava-o a tentar tudo por tudo para o
descobrir.
Mas não era fácil:

32
Medina Ribeiro

A sua convivência exagerada com o Doctor Robert tornara-o


altamente suspeito e quase todos se afastavam dele.
Só a D. Gaudência, a sonolenta telefonista ruiva, parecia
aproveitar todas as oportunidades para tentar chegar à fala com
ele!
Porquê? Ninguém sabia… Outro mistério!

33
Operação JEREMIAS

7
Um Lugar ao Sol

J eremias não era pessoa para andar a escutar às portas,


mas nessa tarde havia um grupo muito especial de pessoas que
falavam mais alto do que a prudência aconselharia… E ouvia-se
tudo no corredor…
*
— Ouça lá, ó Patusco – era a voz do Doutor Cortical – você
já ouviu falar da Sun-Micro-não-sei-quê?
— Claro, Doutor… É a Sun-Microsystems.
— Pois nós vamos criar uma nova empresa para combater
esses gajos! Só tecnologia portuguesa e nada de modernices…
— E já tem nome? – quis o outro saber, mesmo correndo o
risco de ser impertinente.
— Vai ser a Sol-Makrosistemas.
Agora é que Jeremias não ia arredar pé! Era demais para
poder resistir à tentação e ficou a ouvir…
— A nossa firma está disposta a combater a concorrência e,
como você sabe, está decidida também a ganhar dinheiro à custa
dos tecnófobos. A mentalidade dessa gente, que conhecemos
muito bem, é extremamente simples…
Fez uma pausa e Jeremias ficou em pânico ao pensar que ele
poderia vir à porta verificar se alguém escutava.
Mas não. O Doutor Cortical limitava-se a acender um
charuto oportunamente rapinado ao Capitão Jeitoso.
— Trata-se – continuou ele – de defender sempre a
tecnologia anterior… Quer dizer: se actualmente se escreve
com computador, o tecnófobo defende a máquina de escrever;
quando apareceu a máquina de escrever, teria decerto defendido
a caneta; quando apareceu a caneta, teria defendido a pena de

34
Medina Ribeiro

ganso e a lousa; e assim por aí fora, até ao pedaço de carvão


com que o homem das cavernas escrevia nas paredes…
— Temos cá muita gente assim, chefe… Aliás são quase
todos… E as excepções andam caladas que nem ratos!
E atreveu-se a completar o raciocínio do chefe:
— Se disserem a um tecnófobo que pode fazer cálculos com
um computador, ele defende a máquina de calcular… Se lhe
disserem que pode usar a máquina de calcular, diz que prefere a
régua de cálculo… antes teria defendido o ábaco ou as
conchinhas para fazer contas…
— Certo, caro amigo. Já agora, visto que está a acompanhar
o meu raciocínio e quase a ultrapassá-lo…
— Longe de mim, Sr. Doutor!
— Não é grave… mas sabia que cálculo quer dizer pedra?
— Cálculos nos rins… pedras nos rins… estou a ver, estou a
ver… daí calcular estar relacionado com o tempo em que se
usavam pedrinhas para fazer contas…
A conversa começava a tornar-se muito cultural, o que não
era vulgar por aqueles gabinetes… E Jeremias estava, de facto,
a aprender umas coisas!
— Pois voltando ao princípio do que eu estava a dizer:
vamos acompanhar o atraso cultural desses tecnófobos. As
firmas preocupam-se em lançar produtos de última geração. Nós
vamos começar a propor produtos de penúltima geração.
— Ou, se possível, de antepenúltima…
— Claro! E foi para isso que o chamei. Quero que descubra
um produto que dê cabo do mercado dos…
*
Dias depois, o novo produto contra-revolucionário (por
oposição aos produtos revolucionários que a concorrência ia
colocando no mercado) estava pronto.
Mas a apresentação do protótipo iria ser secreta!
Apenas as duas personagens citadas acima e o Capitão
Jeitoso, como Director do Marketing, iriam acolitar o Director
Geral!

35
Operação JEREMIAS

Jeremias, doido de curiosidade, arranjou maneira de saber


que a apresentação se iria desenrolar… na varanda do lado Sul!
Porque seria?!
De qualquer forma, teve artes de se esconder na casa de
banho, que tinha um pequeno postigo para esse lado.
Providenciou uma placa na porta, do lado de fora, a dizer
"em reparação" e pôs em posição estratégica, no parapeito da
janela, um vaso de farfalhudas flores que o iriam dissimular na
perfeição…
Ao meio-dia a sessão começou…
Numa pequena mesa, o produto ultra-secreto, ainda coberto
por um pano bordado, aguardava o momento de ser apresentado
ao Director Geral e – em breve – ao mundo!
O Doutor Cortical, como Director de Produção, fez um
discurso de circunstância e boas-vindas, mas nada adiantou.
O Capitão Jeitoso nem se apercebeu de que devia discursar,
distraído como estava a olhar de esguelha para a mesa dos
rissóis e dos croquetes que ali ao lado esperavam a sua hora
final…
Por isso, acabou por ser o Eng. Patusco a falar e – como
Chefe do Projecto – fez a apresentação técnica. Mas fê-lo em
termos abreviados e muito genéricos, pois o Director Geral não
era pessoa muito dada a coisas técnicas e também já começava a
acompanhar o olhar do Capitão…
Por fim, destapou-se o produto:
— Para combater os relógios digitais… para combater os
relógios de quartzo… para combater os relógios de corda… para
combater os relógios de pesos… para combater as clepsidras e
até as ampulhetas… para recuar o mais atrás possível na
tecnologia da medição do tempo… aqui está o que vai ser a
primeira coroa de glória da Sol-Makrosistemas…
E, num gesto teatral, destapou… um relógio de sol!
Mas Sua Excelência não comentou e um silêncio gelado tirou
o apetite aos presentes.

36
Medina Ribeiro

O Eng. Patusco, despeitado por ter falhado o clímax em que


tanto apostara, arriscou:
— Não é do seu agrado?! O Marketing Científico diz que vai
ter muita saída… Mesmo nos Estados Unidos da América 60%
das pessoas não têm computador!
— E como é que funciona de noite? – quis saber o Grande
Chefe.
E enquanto o Dr. Cortical procurava um buraco para se
meter, o nosso Engenheiro sorriu misteriosamente, aproximou-
se da mesa e – após algum suspense que ele mesmo geriu com
cuidado – abriu uma pequena porta existente na base do relógio
e que até aí passara despercebida.
E exibiu teatralmente, sorridente e feliz, a solução já
prevista: uma lanterna!

37
Operação JEREMIAS

8
Gato Escondido…

M as estava na hora de Jeremias começar a fazer aquilo


para que estava contratado:
Divulgar a informática na empresa.
Mas como?
Qual a melhor forma de convencer aquelas pessoas mais
difíceis a aderir a uma ferramenta já tão corriqueira e tão
essencial para uma empresa do Século XX?
Jeremias, depois de muito pensar, elaborou um pequeno
ficheiro reportando os interesses de cada um desses problemas.
E iria trilhar um caminho infalível:
Se a D. Florípedes tinha por função pesquisar todos os
números do «Diário da República», ele mostrar-lhe-ia
como, através do respectivo site da Internet, poderia
encontrar tudo e mais alguma coisa em poucos minutos.
Se o Dr. Macieira era – como todos diziam – um
marialva incorrigível, Jeremias usaria as home-pages mais
frescas para o levar a aderir ao ciberespaço.
Se o Arquitecto Fininho era maluco por moedas
antigas, ele arranjaria formas de o enlouquecer com os
Grupos de Discussão ligados ao assunto.
Se o Sr. Segismundo passava a vida a consultar a Listas
Telefónicas, ele mostrar-lhe-ia o que poderia fazer com o
http://www.paginasamarelas.pt
e com o http://net118.telecom.pt/index.html !

E isto só no que dizia respeito à Internet, é claro.


Porque, tratando-se da informática mais elementar, havia
muito que fazer, a começar pelo mais que essencial processador
de texto ou pela mais indispensável folha de cálculo.

38
Medina Ribeiro

Mas aí – alto lá! – ia ser preciso, primeiro, explicar a alguns


cérebros mais lúdicos que uma folha de Excel – com os seus
quadradinhos referenciados por letras e números – não se
destinava apenas a jogar à Batalha Naval…

Enfim… usando um pouco de imaginação havia de conseguir


milagres!
*
Decidiu começar precisamente pela D. Florípedes.
Mas, antes do mais, teve que obter a concordância – para não
dizer a cumplicidade – do chefe dela, o Dr. Radical.
E até nem foi tão difícil como parecia à primeira vista.
Embora a custo, o homem lá se resolveu a olhar para a home-
-page do «Diário da República».
E teve a abertura de espírito suficiente para perceber que, de
facto, se podia ali obter muita e preciosa informação para a
empresa.
Assim, enchendo-se de coragem, chamou a D. Florípedes e
informou-a das suas directivas:
«Aprender rapidamente a navegar na Web».
A reacção não podia ser mais clara: um silêncio gelado… um
baixar de olhos… uma lágrima rebelde a brotar do canto do olho
direito…
Por isso os dias foram passando e Jeremias nunca mais
conseguia que ela dissesse quando é que, finalmente, estava
“psicologicamente preparada para essa mudança de paradigma
cultural” (eram as suas palavras).
E o que poderia ser normal atendendo às tradições da Makro-
Teknika começou a ter contornos preocupantes, tanto mais que
Jeremias descobrira ultimamente vários anúncios de Concursos
Públicos que a senhora deixara passar em claro.
— Não sei o que faça, Dr. Radical… Já tenho inimigos a
mais aqui na empresa e não é para isso que aqui ando… –
queixou-se um dia o jovem, já à beira do desespero.
O outro, acendendo o retorcido cachimbo, comentava:

39
Operação JEREMIAS

— Estranho… muito estranho… Aqui há gato… Quase


garanto que aqui há gato…
Mal sabia o homem o drama que desencadeava com esse seu
comentário!
É que, atenta aos movimentos de ambos, D. Florípedes
arranjara forma de escutar à porta…
«Como é que ele adivinhou que eu só gosto do Diário da
República em papel porque é o único que tem a medida do
caixote do gato?!»

40
Medina Ribeiro

9
No Bom Sentido…

-O lhe lá, ó Jeremias, você lembra-se de quando andou


à procura, na Internet, daquele fabricante alemão de material de
escritório? E lembra-se de que, como eu previra, não encontrou
nem rasto? Pois eu já resolvi o problema e não precisei dessa
porcaria para nada: neste fim-de-semana fui à feira de Hannover
e quando ia a passar numa rua dei de caras com uma loja que
tinha na montra o que eu queria! Só foi pena ser domingo, mas
tomei nota do número da porta e do nome da rua e agora é só
escrever para lá! Olhe, e quanto à sua Internet, pode metê-la
num sítio que eu cá sei!
E o Sr. Segismundo ria a bom rir com o ar derrotado do
nosso amigo…
Deu a morada à D. Mariquita e a carta lá seguiu.
Mas o tempo foi-se passando e nunca mais vinha a resposta
que o homem queria.
Até que, dias depois, Jeremias teve uma grande surpresa…
*
— Se calhar é melhor você ver aí na Internet se a morada
estará bem… É que a minha carta veio devolvida… Devo ter
sido eu que copiei mal o nome da Strasse… Mas ia jurar que era
o que estava na tabuleta ao princípio da rua… Mas sabe-se lá!
Aquilo na Alemanha é tudo Strasses, tudo Strasses …
Jeremias, desta vez de posse do nome da firma, encontrou
rapidamente na WEB a respectiva morada correcta e os restantes
dados. Até o endereço e-mail, por sinal!
Depois, sabendo em concreto o que o outro queria, tratou de
tudo.

41
Operação JEREMIAS

E o Sr. Segismundo nunca veio a saber que, em alemão,


“Einbanstrasse” não é nome de rua… Quer apenas dizer “Rua de
Sentido Único”…

42
Medina Ribeiro

10
Haja… Cristo!

-Ó amigo Jeremias, se você me resolver este problema


faço-lhe a vontade e converto-me ao ciberespaço!
Quem assim falava, exprimindo-se através de uma frase sem
grande nexo, era o Arquitecto Fininho…
*
Tratava-se, muito simplesmente, de tentar usar as novas
tecnologias a favor do seu hobby preferido: a numismática.
— Pois é, rapaz, quando se vai para velho é assim… Não
pode ser sempre garotas… sempre garotas… Para isso, temos cá
o Macieira! Quanto a mim, tenho que arranjar outros
passatempos… Digamos que é a outra face da moeda…
Riu-se da frase que, aliás, já trazia preparada há bastante
tempo e para a qual só estava à espera de uma oportunidade.
Jeremias estava feliz:
— E o que é que posso fazer por si?
Tratava-se – usando a Internet ou outro qualquer meio
expedito – de desencantar dados que permitissem datar com
precisão uma moeda que ele tinha acabado de comprar.
— O homem disse-me que era de Antes de Cristo... O gajo
pareceu-me sério… mas nunca fiando… nunca fiando… Temos
que conferir isso… E saber a data ao certo!
E foi assim que, durante a hora do almoço e perante o olhar
interessadíssimo do arquitecto, o nosso amigo lançou os seus
pesquisadores favoritos.
Em roman coins encontrou centenas de respostas e em breve
estava perante uma infinidade de referências, preços e
fotografias de tudo quanto era efígie de homem, mulher e
cavalo…

43
Operação JEREMIAS

O arquitecto, coitado, estava até a sentir o drama do excesso


de informação…
E, impaciente, olhava: ora para o monitor… ora para a
moeda que revirava e espremia na mão.
De súbito, deu um berro:
— Desligue lá essa porcaria do ciberespaço, que não resolve
nada! A resposta está aqui mesmo debaixo dos nossos olhos!
E, com a mão tremente, apontou o que se calhar era, em letra
muito sumida, o início da palavra LACIO 13.
— Cá está! LAC… Mas é claro! Sendo uma moeda romana,
tinha que ter a data em numeração romana! 50…AC!! E vale
uma fortuna!!

13
Localidade romana muito rica em vestígios arqueológicos.

44
Medina Ribeiro

11
Nem Sonhes!

-Ó Jeremias, você, quando dorme, tira os óculos?

*
O nosso amigo já estava habituado às estranhas e
inesperadas perguntas do Dr. Macieira desde que este ouvira
falar nas inúmeras possibilidades da Internet no capítulo que o
obcecava: as garotas.
Por isso pensou um pouco antes de dar a resposta natural:
— Claro, Doutor… claro… Mas porquê?
E a conversa, nesse dia, ficou por aí.
Mas, na semana seguinte e quando nada o faria prever, o
simpático doutor, travando-o discretamente pela manga do
casaco, voltou a interpelá-lo:
— Olhe lá, ó Jeremias, você, quando sonha, é a cores ou a
preto-e-branco?!
Essa era demais para o nosso amigo! Que raio de conversa!
Mas o certo é que, de facto, nunca tinha pensado nisso!
Pediu um minuto de reflexão, encostou-se à parede, coçou a
cabeça… e pensou… pensou… tentando recordar-se dos seus
últimos sonhos!
— Deixe lá. Se não sabe diz-me depois!
E, sem mais aquelas, desapareceu pela esquina do corredor
que dava para a Biblioteca Técnica…
*
— O que é que fizeste ao homem que ele agora só anda a ler
revistas de informática?!
Quem assim falava era o Doctor Robert que, conhecedor
como ninguém da inforfobia do colega, se apercebera, com a

45
Operação JEREMIAS

maior das perplexidades, que este, ultimamente, andava com


estranhos interesses tecnológicos do foro digital…
Ora acontecia que o vão-de-escada do Jeremias e o gabinete
do Macieira eram contíguos, pelo que foi devido a natural e
perdoável coscuvilhice que o nosso amigo começou a espiolhar
quais os artigos que o outro lia:
«Sonhos e Bases-de-Dados»; «A Informática Aplicada à
Psicologia»; «Os sonhos em HTML e em 3D»; «O código Java e
a psicoterapia através dos sonhos» – eram os títulos que
estavam, das últimas vezes, sublinhados a marcador
fluorescente!
E havia inúmeras notas escritas à margem, pelo punho dele!
E foi por aí que, após uma discreta mas persistente
investigação, Jeremias descobriu mais um grande mistério da
empresa: o Dr. Macieira, incorrigível marialva, andava
ultimamente – e todas as noites – a sonhar com a D. Míldia, a
espampanante colega da Contabilidade…
Mas os sonhos eram irritantemente desfocados e pouco
nítidos, pelo que ele ansiava desesperadamente que alguma das
novas tecnologias lhe resolvesse o problema…
«Óculos não resolvem» – era a primeira nota, escrita à
margem.

46
Medina Ribeiro

12
A Outra Face

H á qualquer coisa no espírito dos


impenitentes que faz com que eles odeiem coisas como, por
inforfóbicos

exemplo, o correio electrónico; mas adorem outras de igual ou


maior complexidade, como o telefax ou o telemóvel…
Há qualquer coisa, de facto, difícil de explicar.
Um amigo meu, o Oliveira, costuma dizer:
«Odeio tudo o que é digital! Não é por acaso que eu só uso
coisas ana… lógicas»
Coitado… por isso nem lhe falo dos telemóveis da rede
digital de que ele tanto gosta…
*
Pois na Makro-Teknika o Sr. Florentino tinha por missão
comunicar – e várias vezes por dia – com algumas empresas
estrangeiras.
E, como é evidente, fazia-o por fax, gastando a fortuna que
se sabe em longas chamadas internacionais.
Jeremias achou, pois, que podia ser uma boa ideia tentar
explicar-lhe quanto se poderia poupar usando a Internet.
Tanto mais que, como o nosso amigo teve o cuidado de
verificar antecipadamente, quase todos os destinatários tinham
e-mail.
— Já viu o dinheiro que se podia poupar, Sr. Florentino?
— Não se preocupe, Jeremias. Duzentos ou trezentos contos,
hoje em dia, já não é dinheiro.
— Mas já viu que, com o correio electrónico, pode enviar
ficheiros e tudo?
— Ficheiros?! O que é isso?!

47
Operação JEREMIAS

Enfim… para todos os argumentos que o nosso jovem


pudesse utilizar, o outro dispunha de outros tantos contra-
argumentos, sendo que a lógica estava inevitavelmente arredada
deles.
Até que um dia o Sr. Florentino ficou a trabalhar até tarde
para acabar um orçamento a enviar por fax ainda nesse dia.
Quando o fez seguir eram 10h da noite, ninguém no
destinatário, e a máquina sem papel…

No dia seguinte, logo muito cedo, nova tentativa.


E novo problema: activando nervosa e precipitadamente os
botões das memórias (grande progresso tecnológico que nos
dispensa de digitar o número completo…) enviou o orçamento
para a «Casa das Bifaninhas» de onde o pessoal mandava, por
vezes, vir o almoço…

Nova tentativa.
Dessa vez aconteceu que o destinatário, famosa empresa do
ramo electrotécnico, se debatia com um corte de electricidade!
E, seguindo os mesmos princípios de economia de recursos
que tornavam a Makro-Teknika tão temível, não tinha sequer um
gerador de emergência e estava isolada do mundo…

Mas o Sr. Florentino voltou a insistir no dia seguinte e dessa


vez correu melhor.
Só que o orçamento, ou porque fora feito com algarismos de
tamanho pequeno, ou porque a transmissão estava má, chegou
pouco legível.
E o valor em causa, de 188 mil contos, dado que os "oitos"
chegaram como "zeros", ficou bastante mais "competitivo"…

Mas o que poderia ser o golpe final se o homem não fosse


tão casmurro veio com a nova maquineta que a Makro-Teknika
comprou: um aparelho de telefax de nova geração, de alta-
velocidade, com 100 memórias e pré-programável!

48
Medina Ribeiro

E o Sr. Florentino (que a si mesmo se intitulava O Rei do


Fax) fez questão de ser ele mesmo a estreá-lo!
Dirigiu pessoalmente o trabalho de dactilografia e a D.
Mariquita aprimorou-se, na sua Olivetti, como até aí nunca o
fizera.

De posse de uma verdadeira maravilha gráfica, ele lá foi,


pelo seu punho, mandar o fax.
— Venha ver, amigo Jeremias, venha ver e tome atenção! O
número do fax é este – desta vez vai dar ao destino certo… As
letras e os algarismos são bem grandes – desta vez não há
confusão no preço! E, finalmente, aqui está o recibo que prova
que correu tudo bem! E agora adeus, vão-se todos lixar, que eu
vou de férias!
E rindo, feliz, lá saiu porta fora, levando os originais na mão
e com a satisfação do dever cumprido, pois ultimamente
trabalhara até tarde para poder ter o orçamento pronto a tempo
de poder ir esquiar para a Suíça…

E Jeremias ainda o estava a ver da janela do secretariado, a


acelerar pela rua acima, quando recebeu uma chamada pelo
telefone que estava ligado ao telefax:
— É da Makro-Teknika?! Importam-se de enviar o
documento novamente? É que acabámos de receber 10 páginas
em branco. Vocês aí não terão posto as folhas de papel com a
face ao contrário?!

49
Operação JEREMIAS

13
O Ponto da Situação

U m belo dia o Dr. Minudêncio convocou uma pequena


reunião para analisar o desempenho do jovem e fazer o ponto da
sua actividade.
E, assim, numa fria manhã de Abril e já com a presença do
nosso herói, aguardava impacientemente o Doctor Robert que,
habitualmente pontual, estava nesse dia muito atrasado.
Por fim lá apareceu, acompanhado pelo cão!
O outro que, nervoso, tinha estado a acender e a apagar
sucessivamente as velas do candelabro que entretanto colocara
na mesa de reuniões, barafustou num misto de indignação e
estupefacção:
— Então você, que é quase dono disto, não dá o exemplo?!
Além de não chegar à hora combinada, ainda me traz o animal
aqui para o gabinete?!
— O que é que você quer? Com o frio que está eu não havia
de andar com a escalfeta atrás?! Mas este é um electrodoméstico
muito especial: de vez em quando tem que se levar à rua e foi
por isso que me atrasei. Você nunca mais manda pôr uma árvore
lá no meu gabinete para o bicho não ter que ir ao jardim…
— Ó Robert! Você consegue retirar a dignidade até ao meu
gabinete! Você…
Mas já o interpelado se sentara, ajeitara o animal aos pés e
descalçara os sapatos…
— Deixe-se lá de conversas e vamos ao que aqui nos traz –
comentou, perante o riso incontido do colega e os olhos
esbugalhados de Jeremias.
De seguida, analisaram a lista das pessoas da empresa com
mais dificuldades em entrar no Século XXI…

50
Medina Ribeiro

— Você não meteu o seu próprio nome na lista, ó


Minudêncio! Não se considera um gajo atrasado em termos de
informática?!
— Não se trata disso – respondeu o outro – é que acontece
que o Século XXI ainda vem longe! Ao contrário do que muita
gente pensa, ele só começa, na realidade, no dia 1 de Janeiro de
2001.
— E nessa altura você conta já estar reformado e livre aqui
dos recos, dos ursos e dos manos…
Essa era a piada preferida do Doctor Robert quando queria
provocar o outro.
Mas o colega respondeu-lhe à letra:
— Não me esteja a provocar, que eu ainda sugiro aqui ao
nosso jovem amigo que lhe pergunte onde é que você foi
arranjar um nome inglês quando afinal nasceu em Cacilhas e é
filho de pais alentejanos…
Jeremias não sabia o que dizer, nem o que fazer, nem sequer
o que pensar!
Pelos vistos havia mais um mistério: a verdadeira identidade
do Doctor Robert!
De facto, uma pessoa assim, tão estranha e poderosa mas ao
mesmo tempo chegando a parecer louco, tinha que ter atrás de si
um grande mistério!
Jeremias, agora, olhava apenas, ora para um, ora para o
outro, e quase se sentia comprometido por, afinal, ser o motivo
da reunião.
Então, pondo os seus apontamentos em cima da mesa,
procurou atrair as atenções para o assunto que os trazia ali.
Teve êxito. E, medindo cuidadosamente as palavras,
começou a referir um por um os colaboradores que tinha
acompanhado mais de perto e a relatar os respectivos progressos
(reais ou impossíveis) em relação às novas tecnologias…
E concluiu-se que ainda havia MUITO que fazer…
Mas, ao percorrer a lista…

51
Operação JEREMIAS

— Falta aí o Navarro! – exclamou o Doctor Robert. O


homem tem estado para o estrangeiro e a coisa passou-me!
Vamos já lá falar com ele!
E, levantando-se de rompante, de tal forma agitou o ar que o
pobre Dr. Minudêncio não teve outro remédio que não fosse ir,
de novo, buscar os fósforos…
E o Doctor Robert, pegando no braço do Jeremias, levou-o
consigo…

52
Medina Ribeiro

14
Importa-se?

-I mporta-se? – perguntou o Doctor Robert abrindo, com


fingida cerimónia e com um rasgado sorriso, a porta do gabinete
do Sr. Navarro.
— Aqui tudo se importa e exporta! – foi a estranha réplica,
dada também em tom jovial.
Tratava-se do Chefe do Import-Export, ultimamente em
terrível crise pois a Makro-Teknika não conseguia exportar nem
uma anilha… quanto mais serviços de consultoria!
Mas o Sr. Navarro estava confiante e, nesse dia, explicou ao
nosso jovem:
— A minha ideia é atacar os mercados onde a concorrência
não ponha os pés. Para isso, pensei que nada melhor do que os
países em guerra, como o Iraque e o Afeganistão, por exemplo,
onde aquilo começa outra vez a aquecer…
— Óptima ideia – comentou Jeremias para ser simpático.
— Pois é. Agora só nos faltam voluntários para mandar para
lá… – e pronunciou a frase muito devagar, olhando fixamente o
nosso amigo bem no fundo dos olhos, como que a perscrutar-lhe
os subterrâneos da alma.
Mas esta conversa tinha sido ensaiada precisamente para
assustar o pobre jovem que, pálido e de olhos esbugalhados, já
se estava a ver rodeado de talibans maldispostos ou algures na
Bósnia serpenteando entre minas e bazucadas…
— Estava a brincar, meu jovem amigo! – prosseguiu o
homem, dando-lhe uma amigável palmada nas costas – Temos é
que desencantar um bom mercado para os relógios de sol! E não
pode ser nos pólos, onde só funcionariam metade do ano!
E, jovial, continuou:

53
Operação JEREMIAS

— A propósito: você sabe porque é que ninguém abre


restaurantes lá para esses lados?
— Por causa do frio?
— Nada disso! É que, como há seis meses de noite por ano,
não pode haver o prato do dia! – E deu mais uma enorme
palmada nas costas do Jeremias que, já mais descontraído, se
esforçava agora por também rir e ser simpático.
Mas não fora por acaso que o Sr. Navarro puxara a conversa
para o relógio de sol:
— Aquele oportunista do Patusco apropriou-se da minha
ideia e anda literalmente a brilhar à minha custa… E eu lixo-o!
Ai se o lixo!
Mas não havia grande agressividade na sua voz. Talvez
porque fosse gago em extremo, o que fez com que a cena que
aqui rapidamente se descreve tenha durado uma boa meia hora…
E o Doctor Robert, esquecendo por momentos que o que ali
o levava era apresentar-lhe o nosso jovem, comentou, com
malícia:
— Ó homem, você não se ofenda… Mas não está a ver que o
tempo de um Director Geral é precioso? Se fosse você a
apresentar o produto secreto, e gago como você é, nunca mais
eles saíam dali nem comiam os croquetes!
O outro, já de si jovial e habituado como estava às
brincadeiras do Doutor, limitou-se a rir com gosto.
Depois convidou os dois a sentarem-se e, fazendo o mesmo,
ofereceu um copo de água, um guardanapo e um rebuçado a
cada um.
Por fim, olhando de novo fixamente para Jeremias por cima
dos óculos de ver ao perto, perguntou com interesse não
fingido:
— Ora então este nosso amigo é que é o tal Jeremias, se bem
percebo… Vem trabalhar connosco, hem? Pois sim senhor… sim
senhor… É engenheiro, claro. E pode-se saber de que ramo?
Mas o Doctor Robert, ao ver o nosso jovem atrapalhado por,
pela primeira vez, o terem tratado por engenheiro, tomou a
iniciativa de ser ele a responder, o que fez em tom ligeiro:

54
Medina Ribeiro

— Ramo tinha o seu avô, que era macaco! Aqui o nosso


amigo Jeremias é um perito em informática! Bits, internetes,
coisas assim…
O outro, para surpresa do nosso jovem, pareceu ficar
extremamente feliz:
— Haja Deus! É mesmo de um perito como você que eu
preciso! Vamos até ao seu computador para ver uma coisa na
Internet, se não se importa!
Porquê esse súbito interesse?!

55
Operação JEREMIAS

15
O Logótipo

-V eja então aí na Internet se há camelos na Arábia…

— Não é preciso ver, Sr. Navarro… Há camelos e com


fartura!
*
Esta estranha conversa, no seguimento do que atrás se
relatou, precisa de ser explicada:
O Sr. Navarro, devido às suas funções no Import-Export,
precisava inúmeras vezes de contactar firmas e pessoas no
estrangeiro.
E, mesmo nessa altura, quase todas já tinham correio
electrónico.
Acontecia também que o Sr. Navarro se correspondia com
frequência com um primo na Austrália, que já há muito tempo
lhe dera o seu endereço e-mail e aguardava impacientemente a
reciprocidade…
Só que o Navarro sempre se fizera de desentendido e
continuara a escrever-lhe por fax para o que utilizava o da
empresa…
E como, nestas coisas de comunicações o problema do custo
é de quem envia, obrigava o outro a usar também esse método
caro quando podia fazê-lo por meia-dúzia de “tostões
australianos”…
Ora tudo se azedou quando esse primo veio a saber que o
Navarro, afinal, até tinha acesso a e-mail na Makro-Teknika,
simplesmente se recusava a usá-lo… até mesmo só para
receber!!
E um dia, perdendo a paciência, atirou-lhe com esta:
— Para te envergonhar vou passar a meter, no cabeçalho dos
faxes que me obrigas a escrever-te, um boneco de um burro!

56
Medina Ribeiro

E assim foi…
Lá arranjou um boneco de um burro que colocou, em lugar
de destaque, no cabeçalho. Bem junto do nome do Navarro, é
claro!
Só que calhou, dessa vez, o fax passar pelas mãos da D.
Mariquita…
E o pobre homem, muito envergonhado, lá teve que explicar
o que se passava…

Ora aconteceu, logo a seguir, que um cliente de uma empresa


árabe lhe fez – também por várias vezes – a pergunta de qual o
endereço e-mail da Makro-Teknika.
Mas ele… moita-carrasco… nada respondia…
*
— Ainda bem que há camelos na Arábia, Jeremias! Quer
dizer, portanto, que posso ficar sossegado… Isto que vem no
cabeçalho deste fax deve ser o logotipo da empresa…

57
Operação JEREMIAS

16
A Boa Hora

D e facto, a ideia do relógio de sol do Eng. Patusco tinha


sido plagiada, sim, mas não do Sr. Navarro.
A verdadeira história passara-se com o Professor Berimbau:
*
— Olhe só para isto, Jeremias! Veja a porcaria que me deram
no Natal!
— Qual é o problema, Sr. Professor?! Nada mau! Um relógio
de ouro… Se não o quer… – comentou o nosso amigo,
insinuando-se.
Mas o que verdadeiramente estava a pôr o Professor
Berimbau maldisposto era algo de muito mais rebuscado:
— Você já viu este descaramento? E logo oferecerem-me
isto A MIM?! Um relógio DIGITAL!!
Pois era de prever… O homem só aceitaria de boa mente um
relógio de ponteiros…
— Isto vai por bom caminho, vai! Já viu que hoje em dia é
tudo digital?!
E começou a recitar uma das suas habituais diatribes contra
o mundo moderno...
— Hoje em dia os miúdos, se forem a Londres, já nem sabem
ver as horas no Big- Ben!
Não era preciso ir buscar exemplos tão longe… O relógio da
Sé estava ali mesmo à vista… Mas o Professor Berimbau queria
desabafar, estava a gostar de se ouvir, e não ia usar exemplos
caseiros…

58
Medina Ribeiro

— Sim… Com esta história dos relógios de números, como é


que se pode ensinar Física à juventude?!
Física?! Essa era demais para a cabeça do Jeremias! Mas o
Professor Berimbau já estava à espera disso, pelo que saboreou
a pausa na conversa correspondente a essa incompreensão e
continuou, sem que fosse preciso perguntar nada:
— Você não estudou os sentidos das forças? Nunca ouviu
falar do movimento dextrorsum nem do sinextrorsum?! Claro…
Habituada a estes relógios de hoje, como é que a juventude pode
saber o que é isso do movimento no sentido dos ponteiros do
relógio?!
Bem… mas o dele – e ainda por cima! – não estava certo…
pelo menos a acreditar no da Sé.

59
Operação JEREMIAS

E foi ao acertá-lo e – instintivamente – ao querer também


dar-lhe corda, que o Professor Berimbau se apercebeu de que o
relógio, logicamente… era de, pilhas!
A sua fúria, então extravasou para além do razoável.
E, vendo um certo gozo na cara do Jeremias, teve um
repente:
— Ai você acha graça?! Então tome lá esta porcaria!
Ofereço-lha!
E foi assim que o nosso amigo se viu possuidor de um
esplêndido relógio de ouro!
Mas havia um pequeno problema:
É que calhou, por ironia máxima do destino, que a pilha
morreu nesse mesmo momento.
Perante o embaraço do nosso amigo, o bom do Professor
Berimbau teve um ataque de riso infindável.
— Ó Jeremias, gosta dessas porcarias? – gozou ele,
apercebendo-se do que se estava a passar.
— Tem assim tanta graça o relógio ter parado, Sr.
Professor?!
— Se tem graça?!! Então não tem?! Tem pilhas!

60
Medina Ribeiro

17
A Calinada

-Ó Jeremias, hás-de ver lá nas tuas informáticas se há


algum programa para analfabetos.
Quem assim falava, com voz arrastada e rodopiando o
brandy no fundo do cálice era, como não podia deixar de ser, o
nosso Doctor Robert.
*
Na Makro-Teknika havia pessoas altamente qualificadas:
bons técnicos, bons arquitectos, bons advogados… mas havia
alguns que eram imparáveis criativos em erros de português e
de ortografia!
Enquanto os disparates não saíam de dentro da empresa, não
era muito grave, pois, até certo ponto, estava-se entre iguais e
os “subescrevo-me” e os “a gente fáçamos”, especialmente em
linguagem falada, passavam despercebidos…
O pior era quando se tratava de telexes (!!), cartas ou
telefaxes (e agora, embora só muito de vez em quando, de
mensagens de correio electrónico).
O escândalo começou a ser incontornável quando toda a
gente por esse mundo fora já usava computadores e na Makro-
-Teknika ainda se escreviam cartas à mão…
Juntava-se o ridículo com o anedótico, temperava-se com um
pouco de analfabetismo e a mistura – explosiva – só era
ignorada quando do outro lado estava um correspondente igual
ou pior.
*
— Temos o da Priberam14 Doutor. E há também o Ciberdúvidas
da Língua Portuguesa15,que até nos responde a perguntas
específicas…

14 www.priberam.pt/DLPO

61
Operação JEREMIAS

— Pois é, Jeremias… mas deixa lá os WWW. Para isso era


preciso ligar à Internet de cada vez que houvesse dúvidas e não
fazíamos outra coisa…
— Arranja-se uma ligação RDIS 16, chefe.
Mas o outro corrigiu o que antes tinha dito:
— Quero dizer… dúvidas até não há muitas, pois esta minha
rapaziada escreve os disparates com toda a convicção! Nem têm
dúvidas, sequer!
Havia, então, uma solução: as cartas passariam todas a ser
dactilografadas pela D. Mariquita.
Depois Jeremias passá-las-ia num scanner faria o
reconhecimento óptico de caracteres e poria a correr um
corrector ortográfico…
A ideia, apresentada em Reunião Geral de Sócios, fez furor!
«Está a chamar-nos analfabetos?!» – era o tom geral do
protesto.
Mas o Doutor não era homem para se intimidar facilmente:
— Não a todos, mas a alguns de vocês estou, sim senhor! E
até acho que, em vez de se gastar uma pipa de massa num
corrector ortográfico, devia antes gastar-se o dinheiro numa
professora primária aqui para a empresa!
Fez-se um silêncio pesado. E foi nessa altura que o Doutor
Paramécia suspirou:
— Isso é uma humilhação! Eu, pelo menos, nunca cometo
erros de caligrafia!
— Ortografia, deve querer você dizer – corrigiu o outro
displicentemente.
Mas o Paramécia, seguro do que dizia, subiu atrevidamente o
tom de voz:
— Perdão, senhor Robert…– e ficou, por momentos a ver o
efeito de ter tratado o Doutor apenas por senhor:

15 www.ciberduvidas.com
16 Ligação digital, muito rápida.

62
Medina Ribeiro

É que o pobre do Paramécia gostava muito de fazer isso:


retirava o título do interlocutor para reforçar o tom acintoso das
suas tristes interpelações!
—Eu sei muito bem o que digo! Caligrafia vem de cali mais
grafia e tem a mesma origem que calinada.
E foi por estas e por outras que se deu prioridade total à
compra do programa, numa versão reforçada para o Dr.
Paramécia…
*
Mas em breve se deparou um problema grave e de difícil
solução:
É que o corrector ortográfico apenas analisava as palavras
comparando-as com as existentes na sua base de dados. Desde
que elas existissem, para ele estava tudo bem…
E foi assim que um dia o Jeremias, distraído, deu como bom
o seguinte texto:
«À muito tempo que as vossas impressoras de lazer (há cerca
das quais conta-mos…)»
E terminava:
«Comprimentos»
«O Doutor Paramécia está a melhorar!» – pensou ele – «Já
escreve sem um único erro!»

63
Operação JEREMIAS

18
Down…Down…Download

-O
Matemática?
iça lá, ó amigo Jeremias, você percebe de

Era o Dr. Macieira, o incorrigível marialva da Makro-


Teknika, a querer puxar conversa…
— Qualquer coisa, Sr. Doutor, qualquer coisa…
— Então já ouviste falar da entidade Xis, com certeza…
A mudança de tratamento denunciava uma inesperada
procura de intimidade …
— Claro… o Xis é o valor da incógnita…
A conversa era estranha… e mais estranha ainda se tornou
pela continuação que teve:
Macieira sentou-se frente a um computador, ajeitou as calças
que o incomodavam um pouco na proeminente barriga, esfregou
as mãos como se tivesse frio ou se preparasse para uma grande
acção e disparou:
— Ora então vamos lá ver o Xis da questão!
E, siderado, Jeremias viu como o outro (que poucos dias
antes mal se entendia com um gravador de chamadas),
manipulava agora o rato e o teclado.
E não só! O Macieira tratava agora de activar um modem e
de se ligar à Internet!
— Trata-se de descobrir um programa de cálculo muito
especial na rede-das-redes, caro sócio!
Mas não foi preciso muito para que o nosso jovem
percebesse o que era o tal programa de cálculo, juntamente com
a explicação da tal conversa dos "xis":
Um site pornográfico, cheio de "xis" no nome, bem
indicativo de que havia malandrice – e da grossa!

64
Medina Ribeiro

Por isso é que o homem tinha desviado o écran por forma a


que não se visse do corredor!
Ah! Mas aquela cara de quem estava de roda de um problema
de alta matemática é que era demais!
— E para que é que me chamou, Senhor Doutor? Foi para ver
isto?! – estranhou o nosso amigo.
— E qual é o problema, rapaz? Se calhar não gostas, não?!
Olha-me só para isto agora! Só geometria! Só curvas!
E os dedos do Macieira voavam no teclado, num corrupio de
HTTPs, de WWWs, de XXXs e de coisas assim!
*
Mas, pensando bem, o culpado de toda aquela paródia até
tinha sido o próprio Jeremias, que arrastara para o ciberespaço o
Doutor Carvalhido (doidinho por aeromodelismo), o Arquitecto
Palhinhas (maluco por ursinhos de peluche), o Major Cachucho
(um desvairado por fotografia a preto e branco) e por aí fora…
Ora, sendo o Macieira um taradinho por mulheres, fora por
aí que Jeremias atacara:
Um belo dia, como quem não quer a coisa, pusera bem à
vista do homem uma revista frescota com endereços Internet
bem escarrapachados, deixara um computador ligado e – mesmo
ao lado – um pequeno manual de "como navegar na Web".
E ali estava o resultado!
*
— Resumindo… em que é que o posso ajudar?
Mas o homem não respondeu logo…
Um estendal de rabinhos e pernocas ocupava-lhe toda a
atenção… até que, interrompendo de súbito as clicadelas que o
levavam de link em link e de maminha em maminha, desfechou:
— Achei!! Bem me parecia que estava por aqui perto! Vês
este endereço? É preciso fazer essa coisa a que chamam não sei
o quê.

65
Operação JEREMIAS

Referia-se a um download 17 e o que o obcecava era a


possibilidade de obter um software malandreco de um jogo de
poker erótico!
— É fácil – disse o nosso amigo – é só clicar duas vezes.– E
preparou-se para sair dali antes que algum chefe o apanhasse
naquela brincadeira.
— Não fujas, homem! Deixa-te estar aí sentado! Faz cara de
quem me está a ensinar informática, que ninguém topa… E
quanto a clicar ali, já tentei, é claro, mas a chamada acaba por
ir abaixo quase no fim!
Jeremias sentiu-se um pouco mais à vontade. Vendo a coisa
assim, podia-se dizer que se tratava, então, de um problema
técnico:
O velho drama dos downloads que caem no último instante…
Quando parece que já só falta um bit ou dois, lá se vai tudo por
água abaixo e é preciso começar de novo!
E aqui havia até uma conclusão filosófica a tirar:
Macieira podia já ter atirado com aquilo tudo de pantanas,
pois é assim que reagem as pessoas avessas às coisas novas
quando se lhes depara a mais pequena dificuldade…
Mas não! O simpático doutor já andava naquilo há uma
eternidade e queria mesmo o software!
Ora o nosso amigo Jeremias tinha acabado de ler numa
revista que esse problema tinha um solução fácil:
Havia vários programas que permitiam retomar o processo
no ponto exacto em que a chamada se perdesse. Um ovo de
Colombo, afinal!
Bastava ir à Internet, ao site onde esse software auxiliar se
encontrava, e trazê-lo!
— Então trata lá disso, caro amigo… trata lá disso, antes que
esse borrachinho envelheça! – dizia o Macieira, feliz da vida,
apontando uma mimosa teenager que se bamboleava no monitor
à custa de applets Java 18.

17
Transferência de ficheiros informáticos de um computador para outro.
18
Pequenos programas que permitem dar animações às páginas da Internet

66
Medina Ribeiro

E, chegando-se para o lado, ficou a ver, interessadíssimo,


como Jeremias acedia ao site que lhe interessava.
— Ora aqui está o Abre-te Sésamo que lhe vai dar acesso aos
programas de cálculo que o senhor quer…
— És cá dos meus, ó Jeremias! Afinfa-me aí esse programa
salvador!
E o nosso amigo levou com uma enorme e amigável palmada
nas costas que quase o ia fazendo cuspir o almoço.
*
Noite cerrada… Além dos dois, já não havia ninguém no
escritório…
Ecoando lugubremente pelos corredores ouvia-se a voz rouca
do Doutor Macieira:
— Há-de dar! Há-de dar!
Pois… É que, mesmo nos últimos bytes… o download do
programa salvador estava sempre a cair!

67
Operação JEREMIAS

19
As Bodas de Ouro

-O lha quem ele é! O Comendador Bisnaguinha! Ah,


grande campeão!
Era esta a frase que, em tom de festa, mais se ouvia pelos
corredores.
Pois o Comendador Bisnaguinha, cavalheiro muito distinto,
era o mais velho funcionário da Makro-Teknika.
Com 79 anos e uma saúde de ferro nunca faltara nem nunca
falara, sequer, em reformar-se.
Só que, ultimamente e sem que ninguém soubesse ao certo
porquê, tinha metido baixa e desaparecido!
Por isso, só muito depois de estar na empresa é que Jeremias
lhe foi apresentado.
E, de facto, ficou impressionado com o aspecto alquebrado
do homem…
O próprio Doctor Robert também estava admirado e, ao fazer
as apresentações, aproveitou para se inteirar da situação.
O outro lá foi adiantando, mas sem saber muito bem se havia
de contar tudo ou não:
— Quem havia de dizer, amigo Robert! Eu, casado há
cinquenta anos, e com o casamento em perigo!
E decidiu-se a explicar melhor, enquanto acendia o seu velho
cachimbo, não disfarçando um ar abatido e triste:
— Não sei se você sabe que, se há coisa que me faz
confusão, é isso da Internet…
— Já sei… mas você vai ver que isso passa… Temos agora
aqui o nosso novo colaborador, o Jeremias…
— Não sei, não! É que agora apareceu-me essa coisa lá em
casa!

68
Medina Ribeiro

A revelação era espantosa! Internet no lar do Comendador


Bisnaguinha, que nem sequer tinha filhos?!
— E quem é que a utiliza, se o senhor vive sozinho com a
sua mulher? – perguntou o outro, manifestamente intrigado.
— Se eu não uso e se somos só os dois em casa… é claro que
é ela…
Tratava-se, então, de um caso estranho… D. Lídia, aos 77
anos, decidira ligar-se!
— Muito bem… muito me conta! E que mal tem isso? Não é
óptimo que ela tenha com que se entreter?

E seguiu-se a explicação: aparecera recentemente um


«Comité Internacional para a Moralização da Internet».
Foram seleccionadas as pessoas mais virtuosas do país para
constituírem a Delegação Nacional e lá na zona fora nomeada a
D. Lídia…
— E agora ela passa as noites a surfar! Eu nem me
aproximo… só a oiço a dizer «Oh! Ah! Que horror!». Mas
ontem acabei por ir espreitar… Ela já tem (naquilo a que, ainda
por cima, chama os favoritos!) dezenas de endereços de pouca-
vergonha…
O Doctor Robert não resistiu e comentou, com um sorriso
brejeiro:
— Olhe lá, ó Comendador, e que mal é que isso faz?!
— Que mal faz?! É que ela toma nota desses endereços todos
para os mandar para o Comité de Moralização, mas a seguir,
quando dá por terminado o trabalho da noite, mete-se na cama
e… bolas, Robert! Já não tenho idade! Não aguento!

69
Operação JEREMIAS

20
O Backup 19

E stá a aproximar-se do fim a lista das pessoas que tem


interesse conhecer na Makro-Teknika.
Mas não podemos deixar passar o médico da empresa, o Dr.
Matos Mata, que só lá vai uma vez por semana.

Pois, por estranho que possa parecer, o Dr. Matos Mata


(talvez por passar lá pouco tempo…) converteu-se rapidamente
às novas tecnologias e a primeira coisa que fez foi passar para
formato digital as fichas dos seus doentes.
A seguir desatou a fazer gráficos em Excel com tudo o que
fossem variáveis e as análises do pessoal foram logo passadas a
bits com desastrosas consequências para muita gente…
Mas ficou muito preocupado quando o Jeremias o alertou
para os problemas dos vírus.
Começou por estranhar a designação...
— Não falo daqueles que o senhor combate, doutor… mas
olhe que são igualmente perigosos…
E foi assim que, após uma breve mas convincente
explicação, ele passou a fazer backups de tudo. E muito bem.
*
Mas passava-se também uma coisa engraçada: o Dr. Mata
desde garoto que baralhava os nomes mais simples do mundo!
Já a D. Judite, sua professora primária, perdia a cabeça com
ele:
— E queres tu ser médico! – insurgia-se ela – Continuas a
chamar Ursa Máxima e Ursa Mínima à Ursa Maior e à Ursa
Menor!

19 Cópia de segurança de ficheiros informáticos.

70
Medina Ribeiro

E havia muitas outras confusões deste género, que faziam a


loucura da pobre senhora e a delícia da malta lá na escola.
E, no entanto, ele agora não hesitava no nome de nenhum
órgão do corpo humano nem na designação do mais cabalístico
composto químico, orgânico ou inorgânico!
Só que um dia, quando menos se esperava, teve uma recaída!
E a coisa passou-se precisamente com o alquebrado
Bisnaguinha:

Este andava desconfiado que tanta digitalização não podia


dar bons resultados, porque via o outro a teclar no computador
os valores da tensão arterial em vez de os escrever, com a
previsível letra ininteligível, nas habituais fichas de cartolina…
Felizmente o homem não estava por dentro das linguagens
informáticas, senão teria ficado em pânico quando o Dr. Mata,
talvez influenciado pelas recentes notícias de clonagens, lhe
sentenciou, coçando a orelha e fazendo cara de caso:
— Amigo Bisnaguinha, este seu corpinho está mas é a
precisar que a gente lhe faça um backup…
Coitado! Ele queria dizer… checkup…

71
Operação JEREMIAS

21
Aquela Máquina!

A incapacidade de a D. Mariquita se libertar da


máquina de escrever (e começar a usar o novo computador já
comprado especialmente para ela) estava a criar grandes
problemas.
Jeremias, chamado a tentar arranjar uma solução satisfatória,
lembrou-se então de um tal Sr. Luís, que conhecera na Tecno-
-Máxima 20.
Ora esse simpático velhinho, que durante dezenas de anos
fizera a manutenção de máquinas de escrever, era também um
inventor de talento.
E a solução podia passar por ele…
*
— Eu tenho pensado muito em si, senhor Luís… E talvez se
pudesse arranjar uma solução interessante…
Era Jeremias que expunha a sua ideia. E prosseguia:
— Não seria possível o senhor fazer uma geringonça? A
ideia era ela continuar a trabalhar como até agora… E o senhor
arranjava maneira de ligar ao computador as teclas da máquina
de escrever. Talvez usando uns micro-switches 21…
O senhor Luís riu a bom rir!
— Já pensei nisso, meu amigo! Mas não é fácil… No entanto
tenho uma solução que acho que D. Mariquita vai aceitar… Ela
não vai de férias hoje?
*
Quando a boa senhora regressou, um mês depois, ia
desmaiando:
20
No livro «Crónicas da InforFobia» o Sr. Luís era a salvação das velhas máquinas de
escrever da Tecno-Máxima.
21
Interruptores miniatura.

72
Medina Ribeiro

O computador e a máquina de escrever tinham trocado de


lugar e agora, no seu posto de trabalho, era a bomba que a
esperava e já ligada!
Nesse mesmo momento o Doctor Robert, que estivera atento
à sua chegada, segurou-lhe carinhosamente pelo braço e
acalmou-a:
— Não se assuste… este computador foi preparado
especialmente para si!
Ao ouvir essa estranha frase D. Mariquita ficou ainda mais
confusa!
Sem adiantar mais nada o Doutor tocou numa tecla que dizia
«começar» e o programa de processamento de texto abriu-se de
imediato, apresentando o aspecto tranquilizador de uma folha
A4.
Tinham sido retiradas todas as opções “desnecessárias” e a
única letra possível era a Courier, a que mais se parecia com a
da máquina de escrever.
Vendo-se perante uma imagem familiar, D. Mariquita
sentou-se, um pouco mais calma mas ainda tremendo…
Depois teclou, a medo e sem convicção, uma letra ao acaso.
E – surpresa das surpresas! – ouviu o tac habitual do
martelinho a bater no papel!
É que, nas suas férias, o senhor Luís instalara uma placa de
som no computador e preparara tudo. Por isso havia MUITO
mais surpresas:
O PLIM! da campainha quando era preciso mudar de linha, o
RRRR dos carretos… enfim, tudo!
— Ó senhor Luís, o senhor não quer vir trabalhar com a
gente? – perguntou-lhe por fim o Doutor.
— E seria para fazer o quê?
— Trabalhar aqui connosco, nestas coisas de computadores!
Só que o homem já tivera tempo de se informar sobre
algumas realidades da empresa...
— E sob as ordens desse tal Alarcão que vocês cá têm?! Nem
pensar!

73
Operação JEREMIAS

— Está enganado. Precisávamos de si, mas era para chefe


dele!

74
Medina Ribeiro

22
A Sociedade
da Informação

O tempo foi-se passando e era cada vez mais visível


para o nosso herói e para o Doctor Robert que a acção porta-a-
porta, gabinete-a-gabinete, estava a chegar ao limite das suas
possibilidades.
Era preciso fazer mais qualquer coisa, especialmente no
capítulo da formação.
E aí entrava, naturalmente, o Dr. Filoxera.
Mas, apesar da sua posição, responsabilidades e funções, o
Dr. Filoxera também desconfiava da informática e, por ele, não
iria mexer uma palha para organizar cursos sobre ela.
— Ai mexes uma palha, mexes! E até a comes, se eu mandar!
– atirou-lhe o Doctor Robert ao perder a cabeça com as
resistências do outro.
É que o surpreendera no bar a discorrer assim, num
verdadeiro comício em que era orador e estrela:
— Sabem o que é disciplina? Então sabem o que é
indisciplina! Sabem o que é tratável? Então sabem o que é
intratável!
E deu mais uma série de exemplos, para demonstrar o que já
todos sabiam:
Que o prefixo “in” está associado a negação.
E concluiu, perante as gargalhadas dos assistentes:
— Assim, se não houver formação, fazemos a vontade a uns
palermas que há para aí e entramos pela porta grande na
Sociedade da In…formação!

75
Operação JEREMIAS

23
Redução de Custos

I a uma grande agitação na Makro-Teknika:

O Relatório de Contas deste ano indicava resultados


desastrosos e impunha-se uma redução de custos… a todo o
custo.
E Jeremias achou que tinha chegado a sua hora de glória.
Pobre ingénuo!
*
O nosso jovem começou, de novo e desta vez com forte
alento, a pregar as vantagens das novas tecnologias na
economia de custos da empresa.
E não se ficou apenas pelas prédicas nem pelos palpites:
resolveu fundamentar as suas opiniões e fez algumas contas…
Vamos dar com ele no gabinete do Doctor Robert, que o
escuta, compreensivo:
— Pois é, amigo Jeremias… Tu até tens alguma razão… Mas
não estás a ter em conta o reverso da medalha: já imaginaste
quantas horas de formação seriam necessárias para ensinar
alguns voluntários que aqui tenho a ligar um computador?!
E continuava, desalentado, batendo na mesa com os nós dos
dedos:
— Ainda se eu tivesse a certeza que esses gajos
aprendiam!…
De facto era verdade e Jeremias já contava com essa reacção.
Por isso trazia na manga um argumento infalível:
— Chefe, isso está tudo muito certo. Compreendo que, para
poupar 10 ou 20 contos em faxes, não valha a pena gastar 100
ou 200 a ensinar certas pessoas a enviar um e-mail. Mas já não
será o mesmo no que toca ao Professor Delírios…

76
Medina Ribeiro

E aqui o nosso amigo interrompeu-se e ficou à espera da


reacção do chefe que já sabia que havia de vir...
Remexendo-se na cadeira, não escondendo uma enorme
incomodidade decerto fruto de anteriores peripécias e
dissabores, o Doctor Robert rosnou, numa voz arrastada que
prenunciava grossa tempestade:
— O que é que se passa agora com essa tarântula?!
Ora cabe aqui explicar que o Professor Delírios era o
responsável máximo do Controlo da Perfeição.
O homem sabia tudo e mais alguma coisa sobre os standard
ISO, NP, DIN e VDE… Até a dormir era capaz de recitar as
normas de projecto e de fabrico, recomendações e resoluções
dos mais incríveis organismos internacionais… Enfim, pelo
menos nesses assuntos, ninguém discutia com ele!
E, juntando a essa sabedoria toda uma boa pitada de mau-
feitio, o homem fizera uma carreira imparável na Makro-
Teknika.
E ninguém se atrevia a contrariá-lo, nem mesmo o todo-
poderoso Doctor Robert!
Ora o que Jeremias agora propunha era – nada mais nada
menos – que se usassem os novos métodos de Tele-Qualidade 22,
alterando os hábitos ancestrais do professor Delírios: acontecia
que o Professor Delírios tinha que se deslocar todas as semanas
à Beira-Alta para assistir aos ensaios de recepção na fábrica que
produzia os lápis para a Makro-Teknika.
Daí, o grande interesse em começar a usar a Tele-
Qualidade…
Mas o Professor Delírios já se tinha encarregado de o
mandar estar quieto:
— Não me chateie, menino Jeremias. Você, que nasceu
ontem, julga que não houve já quem pensasse nisso?!
Jeremias estava habituado a esse tipo de respostas:
Se a ideia era má… só mostrava como era estúpido.

22
Emprego das Tecnologias de Informação para a efectivação, à distância, dos testes de
Qualidade.

77
Operação JEREMIAS

Se era boa, já alguém pensara nisso…


Quanto ao motivo porque as coisas não se faziam… isso era
outra história…
Mas, neste caso, o motivo parecia que era forte e a
gargalhada do Doctor Robert deve ter-se ouvido na estrada, a
quinhentos metros dali:
— Deves ser o único que não sabe! É que o Delírios, à força
de ir todas as semanas à Beira-Alta, arranjou por lá uma amiga
que… bem… digamos que o trata com carinho… E agora vais tu
querer que ele adira à Tele-Qualidade?! Só quando se inventar a
Tele-Marmelada!

78
Medina Ribeiro

24
Vida Dura!

J eremias estava mesmo confuso de todo!

Então era preciso ir alguém, e tão longe, para verificar se a


«Fábrica Lapiseira» fazia os lápis em condições?!
E eles não se compravam, simplesmente, numa papelaria
normal?!
Como é que uma empresa como a Makro-Teknika, tão
preocupada com a redução de custos, tinha um professor
dedicado a uma coisa dessas?!
Como sempre, a explicação do mistério tardou mas veio. E
foi, evidentemente, o Doctor Robert quem a deu:
— Sabes, rapaz? Aqui é sempre muito difícil comprar-se
qualquer coisa… A D. Míldia, da Contabilidade, tem ordens
muito rigorosas para controlar as compras que se fazem.
Inclusivamente há uma distinção muito nítida entre o que são
consumíveis e o que é material de longa vida.
— Então ainda menos se compreende! Os lápis não são,
precisamente, o que se dá sempre como exemplo de
consumíveis?!
A resposta foi uma gargalhada:
— Isso era verdade antes de o Minudêncio intervir! Ele
mandou fazer a diferenciação dos lápis conforme a respectiva
dureza… e criou até um novo slogan: «Quanto mais duro, mais
dura!».
— Essa está boa!
— Pois… Mas a Makro-Teknika mandou fazer lápis
especiais – e por isso o Prof. Delírios tem de ir verificar.
Conheces, decerto, os lápis de dureza HB, 2H, 3H, 4H… Mas a
Makro-Teknika mandou fabricar lápis 10H…
— E isso existe?!

79
Operação JEREMIAS

— Agora, pelo menos…


— Mas não rasgam os papéis todos?
— Claro! Por isso é que eu desconfio que aí anda, novamente e
sempre, o dedo do Rebordão, do Jeitoso e da sua Máfia dos
papeis…

80
Medina Ribeiro

25
A Pesquisa

-Ó Jeremias, não consigo encontrar isto em lado


nenhum… Você, lá nas suas internetes, veja se consegue
descobrir a morada do representante!
Quem falava assim era o Eng. Patusco:
O homem estava mesmo muito preocupado pois precisava
urgentemente de descobrir o fabricante cuja marca vinha
gravada numa anilha de aço.
Uma anilha especial, pelos vistos… Especial, essencial e
urgente!
O nosso amigo pegou no objecto e conteve o riso.
Fez um ar sério, sentou-se com impensável à-vontade em
frente do outro e fez-lhe algumas perguntas:
Quis saber de onde tinha vindo aquela amostra, se havia
alguma norma que a enquadrasse, se havia documentação
técnica… Enfim, com alguma malícia Jeremias tratou de
mostrar quanto iria ser difícil resolver o problema.
— Isto nunca se sabe… Pode ser rápido, pode ser lento…
Como o senhor mesmo diz: a Internet é uma coisa muito lenta…
— Ó homem, por isso é que eu o chamei! Use lá a sua
Internet e descubra! Não é isso que você passa a vida a dizer
que é capaz de fazer?! Então mexa-se! Dou-lhe 48 horas!
— Com o modem que eu tenho, não sei se chegará… É um de
14k… – alegou o nosso amigo manhosamente.
— Catorze quilates, só?! De facto é pouco… Então compre
um duplo! Ou um triplo, para pôr em cima desse! Em paralelo,
em série, ou por dentro! Eu sei lá! Você é que é o especialista!
E foi assim que Jeremias conseguiu autorização para
comprar o seu modem de 56 k…
Foram dois dias descansados…

81
Operação JEREMIAS

Por fim, já próximo do prazo limite, apresentou-se no


gabinete do engenheiro.
— Importa-se, então, que vá à loja comprar a peça?
O outro nem queria acreditar!
— Você… você encontrou?!! – gaguejava de emoção.
Jeremias, sem grandes explicações, saiu e voltou passadas
algumas horas. Entregou a anilha e afastou-se.
— Espere lá, homem! Quanto é que isso custou? – avançou o
outro, metendo a mão ao bolso para procurar a carteira.
— Não se preocupe, nem chegou a 5 escudos… Aliás
ofereceram-ma, porque não tinham troco.
— Não é possível! E afinal quem é o representante dessa tal
marca XONI?!
— Não é XONI… o senhor… nós… – corrigiu Jeremias
mesmo a tempo! – … estávamos era a ler a marca de pernas para
o ar…

82
Medina Ribeiro

26
A Menina da Rádio

-Ó Sr. Engenheiro Jeremias, essa coisa da Internet


também tem a ver com telefones?
O nosso amigo ficou espantado, pois era a primeira vez que,
ali na empresa, o tratavam por senhor – e ainda por cima por
Senhor Engenheiro!
Aquilo devia trazer água-no-bico…
Mas, de facto, já há muito tempo notara que a senhora
procurava uma ocasião propícia para o abordar a sós!
Jeremias então, muito sucintamente, explicou que, de facto,
a ligação à Internet se fazia através de uma linha telefónica.
E já estava a explicar as vantagens da sua utilização para se
fazerem chamadas de longa distância a custo de chamada local
quando ela o interrompeu:
— Passam a telefonar pela Internet e eu fico no desemprego,
é isso?!
Jeremias ia a sossegá-la dizendo-lhe que, numa empresa
como aquela, nunca correria riscos de que isso viesse a
acontecer… Mas D. Gaudência também não estava interessada
em dissertar sobre o gosto que certas pessoas têm em gastar
dinheiro em telecomunicações:
— Essas coisas agora não me interessam. Eu quero é saber se
o senhor, como percebe de internetes, também sabe de
telefones.
Ah! Assim já se compreendia a conversa! Ela devia ter
algum problema com a aparelhagem e recorria a ele, o jovem
engenheiro com a chave de parafusos sempre no bolso da
camisa…
E a angustiada senhora passou a explicar o seu problema:

83
Operação JEREMIAS

A Makro-Teknika quase nunca recebia chamadas telefónicas


e acontecia, por isso, que ela adormecia com muita frequência
no serviço.
E, assim, quando calhava alguém telefonar, a pessoa ficava
uma eternidade à espera ou, o que era pior, fazia acordar a D.
Gaudência que, estremunhada, desatava a dizer disparates ao
atender, incluindo, com frequência, algumas obscenidades!
— A minha ideia era meter um atendedor de chamadas.
Aparecia uma voz a dizer que a linha estava muito ocupada e
que esperassem um pouco. Entretanto eu recompunha-me…
penteava-me… Será muito caro?
— Um desses atendedores que dão música enquanto se
espera?
— Bem… música não digo, por causa dos direitos de autor,
que se têm de pagar, se calhar mesmo ao Mozart. A minha ideia
era ligar o telefone ao rádio.
— Mas isso já existe!
Jeremias omitiu a sua opinião acerca dessa violência que
certas empresas aplicam sobre quem lhes telefona, como se já
fosse pouco fazerem as pessoas ficarem à espera.
A pobre senhora também não tinha coragem de pedir à
Direcção a compra de um tal aparelho, incapaz de explicar as
verdadeiras razões.
Mas tinha uma solução para isso:
— Se não for muito caro, eu mesma pago do meu bolso…
Talvez até se arranje um aparelho desses em segunda mão, quem
sabe?
E foi assim que, após muita pesquisa e esforço de bricolage,
Jeremias meteu clandestinamente em serviço um desses
aparelhos, prudentemente disfarçado por debaixo de uma pilha
de listas telefónicas…

Mas só muito mais tarde é que veio a saber que essa


emissora passava, a toda a hora, agressivos anúncios da Tekno-
Teknica, a terrível e impiedosa… concorrente da Makro-
-Teknika!

84
Medina Ribeiro

85
Operação JEREMIAS

27
O Administra-dor

-A nda cá, Jeremias, vou-te apresentar uma pessoa


que ainda não conheces porque só cá vem de vez em quando.
O Doctor Robert, nessa manhã, estava particularmente bem
disposto porque era a última sexta-feira do trimestre e nesses
dias acontecia sempre uma coisa interessante e divertida:
A palestra do Master Mikaka 23!
Tratava-se de um Master in Management oriundo do Japão e
com provas dadas em Itália, e que aparecera um belo dia na
Makro-Teknika propondo os seus serviços de especialista em
gestão e reorganização de empresas segundo um novo método
nipónico.
Apresentara-se com um curriculum escrito em japonês (que o
Dr. Minudêncio observara com ar entendido e crítico) mas
exprimia-se naquilo a que vulgarmente se chama um inglês-das-
docas e com muitos termos italianos à mistura.
Ora – e isso tinha sido decisivo para o Doutor o contratar –
no cartão de visita constava, por baixo do nome e em puro
português:

= Administrador =

— E é mesmo administrador? – perguntou o nosso amigo


quando iam a chegar ao gabinete dessa personagem.
Jeremias teve que dar tempo a que a já previsível gargalhada
se iniciasse, desenrolasse e acabasse…
— Ao princípio todos nós acreditámos nisso, pois não é
coisa que uma pessoa se ponha a aldrabar, assim sem mais nem
menos…
— E afinal…?
— Bem… veio-se a saber que nesse ano era administrador do
condomínio onde vivia.
— E não correram com ele?
23
Não se trata de humor de mau-gosto. O nome existe mesmo.

86
Medina Ribeiro

— Ora… Há sempre um lugar para um infeliz desses. Além


do mais, um administrador de condomínio faz sempre jeito. Mas
o pior foi que lhe deram ouvidos quando começou a debitar as
suas ideias geniais de gestão à japonesa…
E o Doctor Robert, contendo o riso com algum esforço,
continuou a tentar fazer luz no cérebro do pobre jovem a quem
já nada, naquela casa, deveria fazer confusão:
— Um dia, quando eu comecei a defender que a Makro-
-Teknika estava a ir por-água-abaixo por falta de espírito de
equipa e de formação das pessoas, ele convenceu os sócios de
que os problemas não eram esses mas sim a má estruturação da
casa.
— Se calhar também tem importância… Mas, afinal, o que é
isso da gestão à japonesa?
— Não sei… O certo é que ele apareceu aí com uma mala
cheia de cubos de brincar e escreveu em cada face os nomes das
pessoas da Makro-Teknika.
— Não é possível!
— Aqui tudo é possível. Depois, e desde esse dia, passa
tempos infinitos a fazer composições de cubos, usando-os para
simular e experimentar novos organogramas 24. Depois, na última
sexta-feira de cada trimestre, vem cá e faz uma palestra sobre
gestão e reengenharia da empresa em que propõe as soluções a
experimentar no trimestre seguinte.

Estavam agora junto à porta do gabinete de Master Mikaka e


preparavam-se para entrar.
Mas…
— Se calhar é melhor não o interrompermos. Ele parece
muito ocupado a preparar a intervenção para esta tarde, no
auditório...
De facto, espreitando pela porta entreaberta, podia-se ver um
homenzinho de aspecto oriental, de óculos de aro e fato às
riscas, manipulando freneticamente uma enorme colecção de
cubos que colocava em estranhas posições.
— Há assim tantas combinações possíveis?! – perguntou,
num sussurro, o nosso amigo.
— Nem imaginas! Primeiro, ele defendia uma empresa com
organização em pirâmide, com a base em baixo…
24
Parece que agora já não se diz «organigramas».

87
Operação JEREMIAS

— Não é o habitual? – estranhou Jeremias.


— Devia ser, mas aqui não é muito apreciada e não deu
nada. Por isso depois experimentou-se a pirâmide de bico para
baixo… A seguir experimentou-se a estrutura vertical,
correspondente aos cubinhos todos encarrapitados uns em cima
dos outros… Depois, a horizontal, representada pelos cubinhos
em combóio… Mas, por mais que lhe façam a vontade, esta
chafarica nunca se endireita. O mal está nas mentalidades das
pessoas, Jeremias… Isto não vai lá com a troca de gabinetes,
como este patusco quer e alguns julgam…Olha: para mim, os
que vão na conversa dele… são burros ao cubo!
Nessa altura um estranho ruído de desabamento, saído
precisamente do gabinete do sábio, levou-os a espreitar
discretamente pela porta entreaberta:
O homem, de gatas, apanhava um a um os cubos que tinham
caído e se haviam espalhado pelos quatro cantos do gabinete.
— Coitado… – comentou o Doctor Robert, afastando-se e
levando o nosso jovem pelo braço – É melhor não o
interrompermos agora. Palpita-me que ele hoje… ou vai
apresentar o novo método de downsizing ou a chamada
Organização em Torre de Pisa…

88
Medina Ribeiro

28
O Bug do Ano 2000
25

A forma como o famoso problema do Bug do Ano 2000


era encarado na Makro-Teknika era típica da maioria das
empresas:
A maior parte das pessoas nem sabia do que se tratava.
Outras, embora tendo umas ideias, não se preocupavam, dado
que, por lá, as pessoas que usavam computadores contavam-se
pelos dedos das mãos.
Outros ainda pensavam: «Que se lixe. Na altura vê-se…»

Mas o nosso amigo Jeremias, sentindo-se responsável por,


pelo menos, sensibilizar as pessoas para o problema, perguntou
ao Doctor Robert o que havia de fazer.
— Nessa altura achas que ainda cá estás?! Mas explica lá
essa coisa com exemplos concretos: vou deixar de poder jogar o
TETRIS?
Uma vez sossegado nesse aspecto, passou a ouvir com
atenção e no fim comentou:
— De facto tem que se ver bem essa coisa. Mas temos que
ser nós a tratar disso, de contrário o Alarcão sugere uma
Comissão de Estudo composta só por ele mesmo e a primeira
reunião vai ser no dia 1 de Janeiro do ano 2000…
— Nesse dia não poderá ser. O dia 1 de Janeiro é sempre
feriado – comentou Jeremias sem pretender fazer humor – E o
Sr. Alarcão não gosta de trabalhar fora do horário normal.
*
E foi assim que, perante a raiva contida do próprio Alarcão
D’ Albuquerque, Jeremias expôs o problema, em termos muito
simples, em Reunião Geral da empresa.

25
Bug é um erro ou gralha em programa informático. Embora se tenha tornado corrente
a expressão Bug do Ano 2000, talvez a expressão mais correcta fosse: «O problema do
Ano 2000».

89
Operação JEREMIAS

Na altura das perguntas e respostas o Dr. Minudêncio,


exaltado, pediu a palavra. Não para fazer perguntas, mas sim
para se manifestar:
— É com vivo prazer que vejo que o próprio arauto das
chamadas novas tecnologias reconhece publicamente o
descalabro mundial (e repito: mundial!) que os computadores se
preparam para provocar!
Um salva de palmas irrompeu da parte da sala onde se
tinham sentado as pessoas que, à partida, pensavam como ele.
Estava dado o tom ao que se iria seguir.
Mas o Doctor Robert interveio em apoio do nosso amigo
que, tremendo dos pés à cabeça, não sabia mais o que dizer.
E perguntou, para levar o debate para aspectos da realidade
concreta:
— E quanto pode custar resolver o problema?
— Talvez uma centena de contos. Será preciso contratar um
especialista que cá venha uns dias.
— Pois é… teremos que fazer o pedido ao Conselho de
Finanças, que só reúne nos dias 29 de Fevereiro. – Era o
Professor Colorau quem esclarecia – Alguém sabe se o ano de
1999 é bissexto?
Não o sendo, foi sugerido avançar-se com uma colecta
interna. Mas poucos foram os que aceitaram contribuir.
Jeremias, então, ofereceu-se para fazer ele mesmo o
trabalho, para o que estudaria, à noite e fora de horas, a
linguagem de programação COBOL 26…
— Mas não conte que lhe paguem – advertiu a D. Gracília,
da Contabilidade, sem levantar os olhos e continuando a limar
as unhas. – Aqui, quem trabalha fora de horas é pago em
prestígio.
— Esperem lá! Tive uma ideia! – era o Capitão Jeitoso que
pedia a palavra.
— Segundo percebi bem, você diz que é preciso passar o
sistema de datas de dois dígitos para quatro dígitos. Para que os

26
A maior parte dos programas envolvidos no chamado bug do Ano 2000 foram escritos
nessa linguagem de programação, em que os anos eram apenas referenciados com os
dois últimos dígitos, para poupar recursos de computação, na altura escassos.

90
Medina Ribeiro

computadores – por exemplo – saibam que 23 quer dizer 2023 e


não 1923. É isso?
— Certo…
— Então você está a aldrabar-nos, pois não é preciso gastar
tanto dinheiro! Em vez de passar de dois dígitos para quatro,
basta passar para três! 023, no exemplo que dei, serve
perfeitamente. Em 1023 não havia computadores e não há
confusão possível!
Fez-se grande burburinho.
A ideia era de génio! Metade do trabalho… metade da
despesa!

Mas ainda havia outra intervenção.


O Sr. Navarro pedira a palavra:
— A minha ideia não substitui a anterior, mas completa-a.
E, levantando-se, pigarreou e passou a expor:
— Decerto já ouviram falar do Afeganistão. Os talibans
estão em vias de ser nossos clientes e tive de aprender muita
coisa – como a recusa do álcool, da carne de porco, etc. E é por
eu ter estudado muito esses assuntos que vos posso dizer: a
datação islâmica é diferente da nossa. Nós usamos uma
contagem relacionada com o nascimento de Cristo e eles usam
uma outra, relacionada com a ida de Maomé de Meca para
Medina. Neste momento, em que nós dizemos que estamos em
1998, eles estão em 1419. Estão a acompanhar o meu
raciocínio?

91
Operação JEREMIAS

29
Finalmente, o Ano 2000!

N essa noite do último dia de 1999 Jeremias não


conseguia dormir. Aproximava-se a hora de o grande Bug
atacar!
Ao soarem as 12 badaladas, e enquanto cá fora toda a gente
festejava o acontecimento, o nosso amigo, que ficara no seu
posto de trabalho, observava as máquinas e os computadores um
por um com o carinho de quem olha pelas criancinhas de um
infantário de órfãos desvalidos.
*
Mas parecia estar tudo a correr bem.
Inclusivamente quando, morto de sono, foi ao bar preparar
um café e beber uma água, deu consigo a pensar:
— Que maravilha! Até esta máquina passou o teste do Bug…
E o frigorífico também se portou como deve ser…

Só o relógio de ponto parecia estar com problemas.


Mas isso era outra história, que vale a pena contar, fazendo
mais um pequeno desvio na narrativa:
Tentando aumentar a produtividade da empresa, o major
Portaló – aquisição recente da Makro-Teknika para a área do
Controlo de Perdas & Danos – modificara, às escondidas, a
programação do aparelho:
Todas as tardes, à saída, os assalariados eram confrontados
com a capciosa informação de que ainda tinham que trabalhar
mais trinta minutos para cumprirem as 8 horas – mesmo que já
tivessem trabalhado 9, 10 ou mesmo mais!!
Pois esse escabroso aparelho, certamente torcendo-se com o
terrível Bug do Ano 2000 que lhe consumia as entranhas,

92
Medina Ribeiro

fumegava e babava-se, como possivelmente faria o seu


programador se fosse internado no hospício merecido.

Ah! Mas havia ainda mais qualquer coisa que o terrível Bug
atacara!!
O elevador, recentemente equipado com um novo
automatismo da «Sobe & Desce L.da», estava encravado entre o
rés-do-chão e o primeiro andar…
E foi ao tentar desempaná-lo que o nosso amigo se apercebeu
de que havia gente lá dentro! Uns gemidos… uns suspiros…
Discretamente afastou-se. E foi de bem longe que viu o Dr.
Macieira sair de lá, muito a medo e olhando para todos os lados,
com a capitosa D. Manuela sorridente e descomposta!
Na segunda-feira o simpático Doutor, muito comprometido,
interpelou o nosso jovem:
— Ó Jeremias, eu sei que tu topaste a malandrice… Mas
espero poder contar com a tua discrição…
— Não se preocupe, Doutor! Sou um cavalheiro! Um túmulo!
— Óptimo! E só mais uma pergunta: para quando é que está
previsto haver outro Bug destes?

93
Operação JEREMIAS

30
O Segredo
do Doctor Robert

C omo temos visto, o Doctor Robert era uma personagem


misteriosa… Aliás, diziam as más línguas que nem sequer era
doutor… «Deve ter o Curso de Tirador de Cerveja!»
Mas quem se atreveria, na Makro-Teknika, a pedir-lhe a
carta de curso?! Sim, quem?!
Inversamente, havia quem sustentasse que ele era formado
por Cambridge, opinião essa que o seu nome ajudava a
credibilizar…
Mas a verdade era muito mais complicada!
Aliás, a verdade era tão incrível, que é por casos como este
que se diz muitas vezes que "a realidade ultrapassa a ficção".
*
A confissão do Doctor Robert passou-se assim:
Um dia, na cantina, Jeremias e ele almoçavam juntos.
— Ainda me faltam dois meses para terminar o meu contrato.
O que é que eu ainda poderei fazer pela Makro-Teknika?
— Olha, sabes que mais? Pira-te, antes que pires – O doutor
sempre adorara trocadilhos.
Jeremias fez que "sim" com a cabeça, mas o seu cérebro
dizia que "não"… Ainda havia MUITO que fazer e a luta
apaixonava-o!
Seguiu-se um longo silêncio, só entrecortado pelos ruídos de
ambos a sorver a sopa.
A certa altura, e sem que nada o fizesse prever, o Doutor pôs
de lado o pratinho dos salgados e respirou fundo.

94
Medina Ribeiro

— Estou a ver, meu jovem, que vou ter que te contar o


grande segredo da minha vida… Não aguento mais! Tenho que
desabafar! – e, inesperadamente, a cabeça caiu-lhe para a
concha das mãos, soluçando, baixinho!!
Vendo que o chefe perdera o apetite, Jeremias, enquanto o
animava dando-lhe palmadinhas amigáveis com a mão esquerda,
ia-lhe rapinando os rissóis e os croquetes com a direita.
Por fim, recompondo-se, o bom do doutor continuou, em
surdina:
— Sabes, meu rapaz? Sou tanto Doutor como tu… Ou
melhor: tu ainda tens estudos, enquanto eu… tenho a escola da
vida, como se diz por aí…
E voltava a chorar, mas agora desalmadamente!!
Depois, fazendo novo esforço para se conter, continuou a
explicar que desde muito jovem trabalhara nas feiras… Os
leitores mais velhos decerto se recordarão dos Robertos…
— O senhor trabalhava com Robertos?! Ó, doutor! Mas isso
é maravilhoso! E fazia aquela voz de cana rachada dos
fantoches?!
— POIS É CLARO!
Aqui, houve um pequeno percalço:
O "doutor" pronunciou essa interjeição em voz muito alta e
no tom esganiçado a que a conversa se reportava, fazendo com
que toda a gente no refeitório parasse de comer e ficasse a
olhar!
Muito envergonhado e disfarçando o melhor que podia,
continuou, chegando-se à frente e de novo num murmúrio:
— Já estás a ver de onde me veio o nome… Roberto passou a
ser o meu "nome artístico"…
— Desculpe – interrompeu o nosso amigo – Mas a ideia de
inglesar o nome também foi sua?
— Ah, não, essa é outra história! Um dia, numa empresa em
que estive, ao imprimir uma carta o computador deu uma
mensagem de erro: "O seu texto está fora da área de impressão.

95
Operação JEREMIAS

Quer continuar?". Fiz OK e Roberto acabou por sair Robert.


Achei um piadão, e assim ficou…
Jeremias não cabia em si de espantado!
— E a ideia de tomar o título de Doutor – ou Doctor – como
é que nasceu?
— A ideia do “D-R” veio daquele filme «D. Roberto»… E o
Doctor veio na sequência do Robert…
E, agora já mais bem-disposto (mas não parecendo nada
preocupado com o efeito que as suas incríveis revelações
provocavam no nosso jovem amigo), preparou-se para dar as
explicações por encerradas começando a trautear a canção dos
Beatles que se imagina 27…

27
«Doctor Robert», Lennon/McCartney…

96
Medina Ribeiro

31
O Segredo Final!

M as havia ainda um outro mistério para esclarecer e


Jeremias, fazendo sentar o “doutor”, aproveitou a maré de
confidências para tentar a sorte:
— Porque é que, logo no primeiro dia, quiseram saber se eu
me chamava mesmo Jeremias? E porque é que as pessoas andam
sempre a dizer que eu sou o tal Jeremias?
— Isso já é querer saber demais! Mas vá lá, eu digo-te.
Quando eu decidi que esta empresa tinha de ser modernizada
para poder sobreviver, a maior parte do pessoal entrou em
pânico! Então eu disse, em Reunião Geral de Sócios, que a
solução era arranjarmos um Jovem Engenheiro Recrutado para
Ensinar um Mínimo 28 de Informática aos Assarapantados
Sócios…».
— E depois?!
— Nessa altura, o Minudêncio – que é daquelas pessoas que
acreditam em bruxas e em premonições – interrompeu-me, aos
gritos: «Eureka! É essa a solução: J.E.R.E.M.I.A.S.!!»

28
Há quem diga que a frase foi, na realidade: Ensinar umas M*****

97
Operação JEREMIAS

32
Finalmente, o Século XXI ! 29

P assou-se um ano…

A vida na Makro-Teknika ia decorrendo sem história.


As pessoas mantinham-se, os hábitos também, e as
estruturações e re-estruturações iam sendo feitas periodicamente
ao sabor das combinações de cubos de Master Mikaka…
Até que um dia o pessoal foi surpreendido por um enorme
cartaz afixado à entrada das instalações:
=ESTE ANO O RÉVEILLON É POR MINHA CONTA=
O Doctor Robert resolvera organizar uma festa de arromba
para comemorar a entrada da Makro-Teknika no Século XXI!
E nessa noite lá estavam todos, incluindo o octogenário
Bisnaguinha que fizera questão de levar a gaiteira da mulher!
E dava gosto vê-los, no Refeitório transformado em Salão
Nobre devidamente engalanado, dançando ao som de música do
Charles Aznavour enquanto esperavam as badaladas da meia-
noite…
Uma…Duas…
Eram elas, as badaladas!
Não faltou nenhuma (houve até duas a mais…), e todas dadas
por um vetusto relógio de pesos e ponteiros, concessão feita ao
Dr. Berimbau como condição imposta para aceitar comparecer.
— Entrámos no Século XXI! A Makro-Teknika entrou no
Século XXI! – Gritavam todos em coro, tocando pífaros e

29
Ao contrário do que muita gente pensava na altura, o século XXI só começou em 1 de
Janeiro de 2001

98
Medina Ribeiro

cornetas e lançando infinitos confettis que o Capitão Jeitoso


fornecera com generosidade suspeita 30.

Mas ainda faltava o momento de oiro: o discurso do Doctor


Robert, que teria lugar depois do champanhe, dos foguetes e das
passas.
Fazendo calar todos, gerindo o tempo e o silêncio com a arte
que ele tão bem dominava, discursou por fim, erguendo a taça:
— Amigos, colegas, compinchas e companheiros de luta!
Vejo, com um misto de surpresa e alegria, que a nossa empresa
conseguiu chegar intacta ao Século XXI! Está, pois, na altura de
vos anunciar a minha grande decisão.
Fez-se um silêncio mortal. Apenas se ouvia o tic-tac do
enorme relógio pontuando o suspense…
O Doutor bebeu um último trago, como que para ganhar
coragem, e, atirando a taça pelos ares, proclamou finalmente,
mas sem qualquer emoção:
— Vou-me reformar. Boa noite e obrigado a todos.
Fez-se um burburinho incrível!
Sem o Grande Chefe como é que a empresa ia singrar?!
Mas a intervenção, ao contrário do que dera a entender,
ainda não acabara:
— Calma, rapaziada! Está tudo previsto. A partir de hoje, as
minhas cotas na empresa passam a pertencer à pessoa a quem
todos nós mais devemos! Ao nosso jovem Jeremias que,
praticamente, fica a ser o dono disto!
*
Muitas empresas arrastam atrás de si lendas mais ou menos
fabulosas.
Pois, desde essa altura, a Makro-Teknika também passou a
ter a sua:

30
Para a auditoria do fim do ano tinha sido elaborado um novo Manual da Qualidade.
Com 8 furos.

99
Operação JEREMIAS

Diz-se que por vezes em noites de lua cheia ecoa pelas suas
salas, caves e corredores o eco lúgubre de um pavoroso grito
juvenil que uma vez se ouviu pouco depois das badaladas da
meia-noite:

— NÃ-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-Ã-O-O-O-O-O-O!!!!!!!!

FIM

100
Medina Ribeiro

O Autor

C arlos Medina Ribeiro31 é natural de Cedofeita,


Porto, onde nasceu em 17 de Novembro de 1947.
Engenheiro Electrotécnico formado pelo IST em
1970, exerce a sua actividade no ramo da Energia desde
1973.
Em Outubro de 1996, na revista «Net.News», começa
a escrever acerca da inforfobia (o pavor que certas pessoas sentem
relativamente às modernices informáticas), doença de que também ele
havia padecido até pouco tempo atrás…
Em Dezembro desse ano é convidado a escrever sobre o assunto para o
«Expresso-XXI» onde, em nove episódios, dá vida à personagem do Sr.
Oliveira (com ilustrações de Paulo Buchinho), que ainda mantém alguma
vida virtual...
Em Outubro de 1997 a Editora «Centro Atlântico»32 publica o livro
«Crónicas da InforFobia» (patrocinado pela Missão para a Sociedade da
Informação e prefaciado pelo Prof. Mariano Gago), feito essencialmente a
partir dos textos publicados na Net-News e onde pela primeira vez aparece,
a trabalhar na Tecno-Máxima, o esforçado Jeremias…
A mesma editora alberga, gratuitamente, a «Casa da Página»33 do autor,
onde também uma Edição Virtual estará disponível para download.
Medina Ribeiro colaborou também regularmente em vários Webzines e
em muitos jornais e revistas34.
*
Nota à Edição de Junho 2002:

Além do presente livro (editado em 1999), o autor publicou (em papel


ou em bits):
«Jeremias e as Incríveis Consultas do Dr. Reboredo» (em fascículos,
nos números 19 a 24 da revista «Cyber-Gui@»; «Jeremias e o Incrível
Coronel Reboredo» (continuação do anterior); «Jeremias, Consultor» (ed.
BaleiAzul, continuação do presente «Operação JEREMIAS»); «Januário,

31
medina_ribeiro@hotmail.com
32 www.centroatl.pt
33 www.centroatl.pt/medina -
34 Tudo em: www.janelaweb.com/humormedina

101
Operação JEREMIAS

Guru e Empresário»; «O Clube dos Inventores»; «Desventuras com


Telemóveis»; «Ensaios de BD»; «Salvador, o Consultor» (editado na
revista «VALOR»); «Crónicas do Eng. Estultício» e «Serapião, o
Sabichão» (editados na revista «Internet Prática».

O autor teve ainda colaborações esporádicas na «BIT», na «Personal


Computer World», n’ «O Diferencial», na «Visão», no «Tecnologia e
Qualidade», na «Cyber-Gui@», na «PC Manual», no «Maia Hoje», etc., e
desde Janeiro de 2002 tem uma coluna regular no «Expresso» intitulada
«Carta Branca».

Medina Ribeiro foi o impulsionador do chamado «Clube de Inventores


de Histórias Electrónicas», iniciativa integrada no programa «Internet na
Escola», do MCT, e que envolveu várias escolas do Ensino Básico e
Secundário, com particular destaque para a Eugénio dos Santos e a EBS 2,3
Luís de Camões (em Lisboa) e a Pêro Vaz de Caminha, no Porto.

O endereço www.janelanaweb.com/humormedina é actualmente o do


portal onde estão reunidos todos esses trabalhos do autor.

102
Medina Ribeiro

O Ilustrador

J osé da Piedade de Lancastre e Távora de


seu verdadeiro nome, é um autor e ilustrador de grande experiência, com
25 anos de carreira comemorados em 2000.

José Abrantes tem-se dedicado nos últimos anos sobretudo à criação e


edição de livros, onde se tem firmado e destacado sobretudo no panorama
da literatura infantil, actuando de forma bastante activa e dinâmica na
divulgação do importante papel desta na vida psíquica da criança,
fundamentalmente no domínio da fantasia, isto é, nos seus sentimentos,
emoções, pensamentos e ideias;

Nasceu em Lisboa (Portugal) em 1960 e apenas com 15 anos começou


a ilustrar e a fazer Banda Desenhada. Trabalhou em vários Jornais e
revistas (Público, Correio da Manhã, Rua Sésamo, Pais & Filhos) e
desempenhou as funções de ilustrador, criativo, storyboarder e animador
na série televisiva Rua Sésamo em todas as suas temporadas. Participou em
diversos festivais, concursos e exposições. Paralelamente executou álbuns
de BD, tiras humorísticas e ilustração, desde o início da década de 90.
Fundou a Editora BaleiAzul, onde publicou com sucesso as séries Jeremias
(textos de Medina Ribeiro) e do gato Zu, para os mais pequeninos.

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