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Geopolítica Internacional A Nova Estratégia Imperial Dos Estados Unidos Fiori
Geopolítica Internacional A Nova Estratégia Imperial Dos Estados Unidos Fiori
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 11
e regimes que sejam considerados uma europeu conquistou e/ou incorporou o ter-
ameaça política ou econômica aos interes- ritório dos demais continentes, impérios e
ses norte-americanos. povos, que foram adotando, aos poucos, as
regras de convivência internacional estabe-
VI – Os EUA, ao mesmo tempo, propõem-se lecidas pela Paz de Westfália depois do fim
a retomar a liderança mundial do processo da Guerra dos 30 Anos (1628-1648).
de inovação tecnológica em todos os campos A Paz de Westfália foi assinada por cerca de
do conhecimento e, em particular, no campo 150 ‘autoridades territoriais’ europeias, mas
da guerra e dos armamentos atômicos. Da só existiam, naquele momento, seis ou sete
mesma forma, assumem seu direito de utili- ‘Estados nacionais’ na sua forma moderna e
zar sua economia e suas sanções econômicas com as fronteiras que se mantiveram depois
como instrumentos de guerra. da guerra. Depois das guerras bonapartistas,
no início da ‘era imperialista’ (1840-1914),
Em síntese, os EUA estão se propondo a esse número cresceu graças às independên-
deixar para trás seu ‘cosmopolitismo liberal’ cias dos Estados americanos; e, no final da
e sua ‘utopia globalista’ do século XX, para se Segunda Guerra Mundial, a carta de criação
converter ao realismo pragmático da velha das Nações Unidas já foi assinada por cerda
‘geopolítica das nações’ inaugurada pela Paz de 60 Estados nacionais independentes.
de Westfália em 1648. Contudo foi na segunda metade do século
XX que o sistema interestatal deu um salto e
se globalizou aceleradamente, de forma que
Uma interpretação hoje existem quase 200 Estados soberanos,
com direito a um assento nas Nações Unidas.
Como explicar essa mudança radical da Contribuíram para esse aumento geo-
política externa norte-americana? Do métrico: o fim do colonialismo europeu e a
nosso ponto de vista, a partir da própria independência dos Estados africanos e asiáti-
dinâmica expansiva do sistema interesta- cos, com destaque especial para a China, que
tal criado pelos europeus há cinco séculos. transformou sua civilização e seu império
Expliquemos melhor nossa hipótese e nosso milenar em um Estado nacional, que se inte-
argumento, considerando que a unidade grou definitivamente a todos os organismos
básica do poder territorial do sistema e regimes internacionais criados depois da
mundial, nesse início do século XXI, segue Segunda Guerra Mundial, e depois do fim
sendo o ‘Estado nacional’, com suas fron- da Guerra em Fria. Por isso, aliás, muitos
teiras claramente delimitadas e com sua analistas americanos falaram, na década de
soberania teoricamente reconhecida pelos 1990, do ‘fim da história’ e do nascimento de
demais membros do sistema. Esse ‘sistema um mundo unipolar, com a vitória da ‘ordem
interestatal’ se formou na Europa durante liberal’ e a universalização do sistema de
o ‘longo século XVI’ (1450-1650) – segundo valores ocidentais, sob a hegemonia dos EUA.
expressão usada pelo historiador francês De fato, nesse período, os EUA alcança-
Fernand Braudel para referir-se às ‘longas ram uma centralidade dentro do sistema
durações’ da história humana –, e desde seu mundial e um nível de poder global sem
‘nascimento’ se expandiu de forma contí- precedentes na história da humanidade, na
nua, para dentro e para fora do continente, mesma hora em que se acreditou na vitória
na forma de grandes ‘ondas explosivas’ que do fenômeno da globalização econômica e
ocorreram, concentradamente, nos séculos na universalização das regras e instituições
XVI e XIX, e na segunda metade do século criadas pela ordem liberal do século XX.
XX. Nesses períodos, o sistema estatal Ao mesmo tempo, essa mesma expansão do
sociedade e o establishment político dos EUA dura até o colapso total do inimigo, ou então
aparecem divididos e radicalizados. Donde se transforma em uma beligerância contínua
se possa também concluir que durante e paralisante das forças que se dividiram e
este período de grande turbulência que foram jogadas umas contra as outras, por
se anuncia pela frente, a direção do poder fatores internos, mas com a contribuição de-
global dos EUA fique cada vez mais nas mãos cisiva da potência interventora.
do seu comando militar, com suas 700 ou Nesse novo contexto, a própria defesa da
mais bases distribuídas ao redor do mundo, democracia e dos direitos humanos – que
somadas aos seus acordos de ‘ajuda’ e/ou marcou a última década do século passado –
‘defesa-mútua’ com cerca 140 países, dentro perdeu relevância, porque são intervenções
de todo o sistema internacional. que não têm limites éticos. Além disso, esta
Essa nova estratégia dos EUA pode ser nova guerra não tem nenhum compromisso
revertida? É muito difícil prever, porque ela com a reconstrução do ‘adversário’, como
é o produto de uma luta interna que ainda aconteceu, por exemplo, com a reconstrução
não acabou. Contudo o mais provável é que do Japão e da Alemanha, e com o próprio
se mantenha no futuro, mesmo depois da Plano Marshall, destinado à reconstrução
administração Trump, a menos que haja europeia, depois do fim da Segunda Guerra
uma mudança na ‘configuração de forças’ Mundial. Não está mais garantido nem
do sistema mundial. O problema, entretanto, mesmo o acesso privilegiado ao mercado
é que para que tal mudança possa aconte- interno dos EUA, como ocorreu com Coreia,
cer, as demais potências terão que seguir a Japão e vários outros países destruídos
mesma cartilha dos americanos, e este é um e depois ajudados pelos EUA. O que tem
caminho que aponta, inevitavelmente, para sido oferecido na situação atual é apenas
um horizonte de ‘guerra contínua’. o cardápio básico das reformas e políticas
neoliberais.
Por analogia, muitos analistas falam de
Na ‘periferia’ do sistema uma nova Guerra Fria, ou de uma Terceira
Guerra Mundial, quando se referem a este
Um tipo de guerra fragmentada e contínua estado de guerra intermitente e contínuo
que deve ser travada sobretudo nas regiões do século XXI. O importante, entretanto,
mais estratégicas da periferia do sistema é compreender que o fenômeno da guerra
mundial; um tipo de guerra que não envolve adquiriu novo significado e nova duração
necessariamente bombardeios, nem o uso dentro do sistema internacional, e dentro
explícito da força, porque seu objetivo prin- da estratégia de poder global dos EUA. Em
cipal é a destruição da vontade política do ad- grande medida, graças à própria necessidade
versário, por meio do colapso físico e moral endógena de reprodução e expansão contí-
do seu Estado, da sua sociedade e de qualquer nua do ‘império militar’ americano, que foi
grupo humano que se queira destruir. Um construído durante a segunda metade do
tipo de guerra no qual se usa a informação século XX, mas que se expandiu significati-
mais do que a força, o cerco e as sanções mais vamente depois do fim da Guerra Fria.
do que o ataque direto, a desmobilização
mais do que as armas, a desmoralização mais O espaço desse novo tipo de império ame-
do que a tortura. Por sua própria natureza e ricano não é contínuo nem homogêneo. Seu
seus instrumentos de ‘combate’, trata-se de poder apoia-se no controle de estruturas
uma ‘guerra ilimitada’ no seu escopo, no seu transnacionais, militares, financeiras, produti-
tempo de preparação e na sua duração. Uma vas e ideológicas de alcance global, mas não
espécie de guerra infinitamente elástica, que suprime os estados nacionais nem elimina a
hierarquia do sistema interestatal. Reconhece Seja como for, é muito importante que se
a existência de Estados que são seus adversá- entenda, sobretudo no caso dos que vivem
rios estratégicos, e exerce seu poder de ma- na ‘periferia norte-americana’, que acabou
neira diferenciada com relação aos demais: definitivamente o tempo da ‘hegemonia be-
vassalagem, no caso de alguns países do Les- nevolente’, com seu compromisso irrestrito
te Asiático e do Oriente Médio; hegemonia no e universal com a democracia, e com sua
caso dos seus aliados europeus. Só no caso da proteção seletiva de alguns casos de desen-
América Latina o poder imperial americano é volvimentismo e bem-estar social. E já não é
exercido sobre o um território contínuo4(63). mais possível retornar. s
Referências
1. Fiori JL. História, estratégia e desenvolvimento. São 4. Fiori JL. Sistema mundial: império e pauperização.
Paulo: Boitempo; 2014. Fiori JL, Medeiros C, organizadores. Polarização
mundial e crescimento. Petrópolis: Vozes; 2001.
2. Presidency of the United States. National Security
Strategy of the United States of America. Washing-
Recebido em 05/08/ 2018
ton, DC; 2017. Aprovado em 09/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
3. Fiori JL. O poder global e a nova geopolítica das na-
ções. São Paulo: Boitempo; 2007.